Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Os brasileiros são anticiência?

Nova pesquisa mostra que cerca de 60% se interessam por ciência, mas a maioria não a compreende

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Yurij Castelfranchi

Somos todos náufragos, no dilúvio da desinformação científica. Alguns, abandonados. Outros, agarrados a uma boia. Uma pesquisa, recém-divulgada, nos ajuda a identificar quem ficou à deriva. E pode ajudar a construir botes salva-vidas.

A pesquisa, do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, em parceria com o Instituto Nacional para a Comunicação Pública da Ciência (INCT-CPCT), foi coordenada por Adriana Badaró e contou com entrevistas domiciliares e amostra representativa da população brasileira de 16 anos ou mais.

Arte ilustra um homem em pé em uma canoa de madeira, ele está olhando por uma luneta
Ilustração: Lucas Moratelli/ Instituto Serrapilheira - Instituto Serrapilheira

Pesquisas como essa são importantes e feitas no mundo todo: medem interesse, consumo de informação científica, confiança e atitudes sobre ciência e tecnologia (C&T), mostram o estado de saúde de uma nação e podem auxiliar políticas: não basta contar o número de doutores que formamos ou de artigos que publicamos, se não integrarmos esses números a indicadores que dizem se a ciência no país tem futuro (jovens podendo seguir carreiras científicas, cidadãos confiando em suas instituições, conhecimento circulando e podendo ser apropriado). Assim como não existe ciência sem cientistas, não existe democracia sem cidadania, e a cidadania, hoje, é tecnocientífica.

Na América Latina, o Brasil foi pioneiro nessas pesquisas, conduzindo surveys análogos em 1987, 2006, 2010, 2015, 2019. O que nos dizem esses dados? Em primeiro lugar, que os brasileiros não odeiam ciência e tecnologia: eles as consideram importantes, interessantes, benéficas. Cerca de 60% da população declara ter interesse pelo tema. É mais que o interesse em esportes, paixão nacional, e muito mais que o interesse em política, treta nacional.

Apenas 6% dos entrevistados acreditam que ciência e tecnologias impliquem "mais malefícios do que benefícios" para a humanidade. Contrariamente às impressões de intelectuais assustados por haters, muitos cidadãos, quando se trata de escolher fontes de informação confiáveis, preferem cientistas de universidades públicas e médicos. O índice de confiança em jornalistas, religiosos e militares é muito menor, e em queda.

A maioria dos brasileiros (81%) afirma que o investimento em C&T deve ser aumentado, que ciência e tecnologia "estão tornando nossas vidas mais confortáveis", e geram oportunidades para os jovens. Por outro lado, demandam que a população seja ouvida nas decisões sobre C&T, que cientistas expliquem riscos e benefícios: não parece um povo anticiência, mas, sim, atento às suas implicações sociais, e que quer exercer cidadania.

Isso não significa que os brasileiros compreendam a ciência. O conhecimento de noções ou instituições científicas é muito baixo. Cerca de 80% dos entrevistados não conseguem citar nenhuma instituição que faz pesquisa; mais de 70% acreditam que antibiótico "serve para matar vírus". Os brasileiros não são anticiência, mas muitos são excluídos da ciência, exilados de uma cidadania científica, o que torna a desinformação particularmente perigosa, mesmo afetando uma minoria.

Vinte e sete por cento dos brasileiros dizem que compartilharam desinformação, sem querer; 9% afirmam que compartilharam mesmo suspeitando que a informação pudesse estar errada. Embora a maioria da população concorde com a existência das mudanças climáticas, 20% acreditam que a causa principal seja "natural". Quanto às vacinas, 26% dos entrevistados concordam totalmente com a afirmação "algumas vacinas podem causar autismo": milhões de pessoas vítimas da desinformação orquestradas nas redes.

Um resultado central que emerge da pesquisa é que a falta de conhecimento não é a única causa da difusão de desinformação. Entre as pessoas que recusam as vacinas há graduados, inclusive em áreas científicas. A desinformação é muito mais do que falta de informação: é uma recusa. Em alguns casos, um ato político.

No caso dos (poucos) brasileiros terraplanistas, os dados mostram que eles podem ser tanto ateus como religiosos, de baixa escolaridade ou graduados. Mas a chance aumenta entre quem acredita que homens são melhores cientistas ou melhores políticos que as mulheres. E também aumenta entre as pessoas que acham que o setor privado, e não o Estado, deva ser o principal responsável pela educação, a saúde, as aposentadorias. Os valores influenciam nossa maneira de selecionar fatos.

O mesmo acontece com as mudanças climáticas. A chance de um entrevistado declarar que elas não existem diminui com a alfabetização científica, mas depende também de seus valores: aumenta, como no caso acima, entre pessoas que discordam da intervenção estatal ou que concordam com afirmações sexistas.

Grupos de interesses que usam a dúvida como arma acoplam desinformação a valores. O objetivo é atacar mediadores da democracia (jornalistas, Judiciário, cientistas), para que as pessoas construam sua própria ignorância, rejeitando a informação que vem dessas fontes. O público-alvo não são os "ignorantes", mas todos nós, manipulados para acreditar que, para ser um bom cidadão, verdadeiro progressista ou valente conservador, é preciso rejeitar alguma evidência e receber informações de uma bolha.

Por isso, educação científica e checagem de fatos são armas cruciais, mas insuficientes. Campanhas de letramento digital deveriam incorporar estudos sobre as motivações dos que rejeitam as evidências. Conteúdos impecáveis de divulgadores apaixonados nas redes digitais, mas que não constituem uma política pública, tendem a alcançar as pessoas que menos precisam deles, as que não veem em fatos científicos uma ameaça à sua identidade. Sem levar em conta valores e política, exilados e auto-exilados da ciência continuarão vítimas fáceis dos mercadores de mentiras.

*

Yurij Castelfranchi é físico, divulgador da ciência e professor do departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais. É pesquisador do Instituto Nacional para a Comunicação Pública da Ciência (INCT-CPCT) e coordena o Amerek, Curso de Especialização em Comunicação Pública da Ciência da UFMG.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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