Ciência Fundamental

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O lado ainda fechado da ciência aberta

Se não investirmos em uma avaliação científica mais transparente, corremos o risco de abolir um dos pilares centrais da validação da ciência

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"Eu de fato preciso de conselhos e consolo sincero, se você puder me dar. Tive uma boa conversa com Lyell sobre o meu trabalho acerca das espécies e ele foi enfático em insistir que eu publique algo. Sou firmemente contra qualquer periódico ou revista, pois não quero de jeito nenhum me expor a um editor ou a um conselho editorial, permitindo que minha publicação seja achincalhada."

Poucos textos da história da ciência transmitem tanta insegurança quanto esse trecho redigido pelo mais importante nome da biologia de todos os tempos: Charles Darwin. Depois de 18 anos trabalhando para embasar a ideia de seleção natural, Darwin lidava com a pressão dos amigos para que publicasse sua teoria e reivindicasse sua autoria. No entanto, o medo da avaliação de seus pares era infinitamente maior do que o receio de que outra pessoa chegasse às suas conclusões antes dele —o que acabou acontecendo.

arte ilustra um homem sentado na cadeira em frente a um computador; da tela sai uma mão que entrega um envelope ao homem
Clarice Wenzel/Instituto Serrapilheira

A avaliação por pares é um dos pilares mais fundamentais da ciência e um dos mais odiados. São inúmeras as ocasiões em que grandes cientistas reagiram a ela, de Charles Darwin a Albert Einstein. E com razão, afinal, seus erros e injustiças se acumulam na história.

Por outro lado, é a avaliação por pares que está na base do que faz da ciência uma modalidade de conhecimento tão reconhecida atualmente. Dos tempos de Darwin até hoje, coube às revistas acadêmicas determinar, via revisão por pares, o que era digno ou não de ser publicado e validado.

Embora esse modelo permaneça dominante, ele vem sendo desafiado por práticas alternativas abrigadas sob o rótulo de "Programa da Ciência Aberta". Ainda não existe uma definição única para ele, mas há consenso de que o programa surgiu para tornar a comunicação científica mais adaptada às demandas de um mundo hiperconectado.

A facilidade em acessar e difundir artigos pela internet, por exemplo, tornou quase inútil a assinatura de revistas acadêmicas, ameaçando a principal fonte de renda dos grandes publishers. À onda do acesso aberto, somaram-se os chamados servidores de preprint, plataformas virtuais nas quais é possível depositar um manuscrito sem passar pelos filtros editoriais tão temidos por Darwin. Já os dados das pesquisas estão à mão em repositórios de replicabilidade, uma novidade que promete tornar a pesquisa científica mais escrutinável aos pares.

No entanto, tornar mais acessíveis os textos e dados produzidos pela ciência não tem sido sinônimo de torná-los mais abertos à avaliação, ao contrário. O número de artigos depositados em servidores abertos de preprint cresce exponencialmente a cada ano, mas a proporção avaliada por pares permanece ínfima. O mesmo se aplica às bases de dados, cada vez mais replicáveis, mas nem por isso efetivamente replicadas.

Existem algumas iniciativas que pretendem dinamizar a avaliação por pares. Como destaca Lilian Nassi-Caló, todas elas têm de lidar com desafios como a baixa profissionalização do trabalho de avaliação acadêmica, a ausência de mecanismos de reconhecimento e recompensa dos avaliadores, bem como a falta de transparência de todo o processo de revisão. Porém, os investimentos em interfaces de avaliação aberta têm sido bem menores que aqueles em plataformas para a disponibilização de manuscritos e dados.

As razões para essa assimetria são várias. Um dos receios à avaliação aberta é que ela escancare o que há de mais nefasto na ciência: egos inflados, acusações impróprias, julgamentos enviesados etc. Embora reais, esses receios são cegos para um risco oposto e, talvez, mais provável: que a imensa maioria da produção científica nunca seja avaliada, transformado os servidores de preprint em arquivo morto de descobertas científicas. O Bioarxiv, maior servidor de preprint da área de ciências biológicas contava com mais de 25 mil manuscritos em 2020, dos quais apenas 7,3% foram comentados ou discutidos por usuários cadastrados.

Outros partidários do programa da ciência aberta argumentam que a avaliação por pares não deve ser tão central como outrora. Eles creem no projeto de uma ciência aberta autorregulada, na qual a avaliação se daria pelos outros cientistas no momento da citação de um artigo. Esse projeto esbarra, contudo, em alguns obstáculos.

Primeiro, a distinção entre boa e má ciência não pode ser relegada nem ao tempo, nem às práticas de citação. A pandemia da Covid-19 mostrou não apenas a urgência da ciência aberta, mas também indicou que não podemos esperar décadas para que as convergências científicas se consolidem "naturalmente". Segundo, é praxe citar e avaliar positivamente todo trabalho que convirja com nossas descobertas, ainda que depois eles se revelem equivocados. Terceiro, a abertura dos debates científicos ao grande público aumentará o número de artigos predatórios, sobretudo depois da popularização das tecnologias de inteligência artificial generativa.

A multiplicação de manuscritos disponíveis em preprints tende a aumentar as pressões para sua hierarquização, o que hoje ainda depende das revistas tradicionais. Por isso tudo, é urgente desenvolver e experimentar tecnologias de avaliação aberta, não apenas porque elas podem nos conduzir a avanços científicos de modo mais eficaz, mas também porque não o fazer pode ameaçar o programa da ciência aberta como um todo.

Uma saída para esses dilemas seria a criação de um servidor de preprint em linguagem Wiki. Quem recorre ao portal virtual Wikipédia nem sempre tem dimensão da complexa infraestrutura de avaliação dos verbetes criada pela plataforma. Em tese, qualquer pessoa pode redigir um verbete na enciclopédia. Mas para que seja validado, ele deve passar pelo crivo de um complexo sistema deliberativo de avaliação e revisão de um sem-número de pareceristas credenciados pela plataforma. Já existem em operação periódicos acadêmicos construídos em linguagem Wiki, mas não grandes servidores de preprint.

A avaliação e revisão no sistema Wiki é aberta em múltiplos sentidos. Primeiro, porque qualquer pessoa pode se cadastrar como avaliadora. No entanto, sua permanência e prestígio na plataforma dependem da sua postura nos fóruns abertos de discussão sobre os verbetes. Segundo, porque mantém registro das discussões sobre os textos, todas devidamente acessíveis na plataforma. Terceiro, e mais importante, os avaliadores podem ser avaliados, subindo ou descendo na hierarquia de status criada pela plataforma. Quarto, a revisão é aberta no sentido de especializada. Na Wikipedia, avaliadores credenciados contestam ou atestam partes específicas de um texto, e não o manuscrito como um todo, o que é bem mais adequado à ciência atual do que o modelo no qual pareceristas são obrigados a avaliar o artigo todo, de uma só vez.

Vale lembrar que um dos receios de Darwin se concretizou: sua teoria foi enunciada por Alfred Wallace, um colega naturalista que chegou a conclusões muito similares, ainda que por caminhos diversos. Graças a amigos em comum, Wallace se convenceu de que Darwin possuía muito mais evidências da teoria, um sinal de que ele era o verdadeiro pioneiro. Ambos enviaram à Lynnean Society um manuscrito conjunto, descrevendo a teoria e manifestando o entendimento de ambos sobre sua autoria.

Ao contrário das expectativas de Darwin, o manuscrito foi bem recebido pela comunidade científica e serviu de base para sua grande obra, "A Origem das Espécies". De todo modo, seu receio nos deixa uma lição: se não investirmos em interfaces mais modernas e dinâmicas de avaliação científica, o programa da ciência aberta corre o risco de abolir um dos pilares centrais da validação do conhecimento científico.

*

Luiz Augusto Campos é professor de sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, editor-chefe da revista acadêmica DADOS e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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