A ciência estima a existência de 20 quatrilhões de formigas no planeta – isso significa 20 bilhões de milhões distribuídos em mais de 15 mil espécies e subespécies nomeadas. Esses insetos são cruciais para a natureza e desempenham diferentes papéis em quase todos os ecossistemas do globo. Foi a versatilidade desses pequenos seres e sua presença marcante nas interações biológicas que despertou o interesse da ecóloga Laura Leal.
É a partir desses animais que a professora da Universidade Federal de São Paulo investiga os mutualismos, uma relação ecológica de cooperação entre indivíduos de espécies diferentes. Exemplo clássico é o da abelha e da flor – a primeira se alimenta do néctar ou pólen e, em contrapartida, poliniza a segunda, sem que uma gere danos à outra.
Mas na ciência as coisas não costumam ser tão simples. Se a literatura diz que nessas relações ninguém sai prejudicado, a realidade se mostra menos simplista. "Existem vários contextos que podem desequilibrar essas parcerias. Uma definição melhor seria ‘exploração mútua’, na qual uns ganham mais, outros menos e alguns até se prejudicam com a interação", explica Leal.
E as formigas são justamente sua principal ferramenta para entender esses descompassos. Levando em conta a relação desses insetos com plantas, a ecóloga investiga essas variações e em quais contextos o mutualismo pode de fato beneficiar mutuamente os indivíduos e em quais um pode superexplorar o outro.
De acordo com a literatura, as formigas quase sempre saem no lucro. Modelos matemáticos mostram que esses insetos exploram as plantas e podem muitas vezes receber mais do que doam nessa troca de favores. Mas talvez, na prática, não seja bem assim. Segundo a ecóloga, ainda existe muito a ser estudado. "Não há evidências empíricas suficientes para comprovar esses modelos. É uma presunção humana de que as plantas, por serem imóveis, são incapazes de manipular as formigas, mas existem estudos que mostram o contrário", ela diz.
Leal atua na interface entre o que a teoria diz e o que a realidade mostra. Seu trabalho consiste em coletar dados observacionais e experimentais para alimentar e reformular os atuais modelos teóricos.
"A ciência não é sobre estar certo, mas sobre estar menos errado", ela defende. E aponta que melhorar a compreensão dos fenômenos não quer dizer que eles estejam solucionados. "As inconsistências sempre estarão lá, seja por limitação de recursos, tempo e espaço para pesquisas, seja por vieses dos pesquisadores. Nossa missão é elucidar o que ainda está mal explicado."
Seus dois modelos principais são a dispersão de sementes – a planta oferece alimento às formigas e estas, por sua vez, espalham as sementes no ambiente –, e a interação de proteção anti-herbivoria – as formigas ganham abrigo ou alimento das plantas, enquanto as defendem contra herbívoros, como lagartas.
"Nesse segundo sistema modelo, é possível que as plantas ofertem um alimento de baixa qualidade para as formigas parceiras enquanto são bem protegidas, ou as formigas podem se alimentar do que é ofertado pela planta, enquanto não a defendem de forma eficiente. As assimetrias podem ser muitas."
A rotina da cientista consiste em fazer observações na natureza, a partir das quais elabora descrições quantitativas dos fenômenos como forma de entendê-los e pensar em possíveis causas. Em seguida, conduz experimentos que simulam ou manipulam diferentes situações para fins comparativos.
Por exemplo: se a presença de formigas na planta é mais significativa no período da manhã, isso quer dizer que o néctar que ela oferta à formiga durante esse período é de melhor qualidade? Com base nessa observação, Leal e sua equipe manipulam a qualidade do néctar em diferentes horários para entender melhor o comportamento dos animais.
A pesquisadora já passou por diferentes biomas, mas seu coração está nos ambientes áridos. Bióloga pela Universidade Federal de Pernambuco e com pós-doutorado em zoologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, Leal trabalhou por muitos anos na caatinga. Com a mudança para São Paulo, ela se encantou pelo cerrado.
"Nos ambientes áridos, muitas plantas têm suas sementes dispersas exclusivamente por formigas. Existe uma espécie de formiga dispersora de cerca de 3 cm que pode carregar sementes por até 30 metros. É uma interação ecológica pela qual sou especialmente apaixonada", conta.
O interesse de Leal por esses animais não é apenas afetivo, mas também prático. As formigas são amplamente distribuídas e possuem um papel importante em diversos ecossistemas. "Elas monopolizam o mundo subterrâneo, realizam uma série de serviços de que não temos ideia e conectam vários componentes de um sistema. Trabalhar com elas é ter muitas portas abertas, pois as perguntas são infinitas. Como disse o biólogo Edward O. Wilson, elas são ‘as pequenas coisas que governam o mundo’."
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Pedro Lira é jornalista no Instituto Serrapilheira.
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