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Martim Vasques da Cunha

Três livros provocadores confrontam a arrogância das elites

Ruptura social levou a impasse que assombra o mundo

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Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] Três livros provocadores recém-lançados nos EUA tratam do esgarçamento das relações sociais entre as elites progressistas e a massa da população que se considera excluída. As saídas propostas nessas obras, contudo, são tão desesperadas quanto as do progressismo que criticam, o que reforça a atual paralisia no debate público, avalia autor.

A discussão pública no Brasil e no mundo está paralisada por causa do progressismo. Sim, o progressismo, ele mesmo, o grande protetor da humanidade, a panaceia que nos deu o "fim da história", o laço que nos amarra a um futuro pleno de paz e harmonia, segundo os seus defensores.

Apelidado por seus amigos de liberalismo, e por seus inimigos de neoliberalismo, o progressismo se baseia no mito de que, para o ser humano, o progresso é o verdadeiro e único paraíso possível.

Segundo esse raciocínio, o seu oposto é o originalismo —a visão de mundo que defende o retorno a uma tradição imemorial e eterna, para construir uma sociedade baseada na ideia de bem comum.

Pichação com a frase “perdeu, mané” na vidraça de sede do STF, em Brasília, após ataque de vândalos em 8 de janeiro - Pedro Ladeira/Folhapress

No léxico da praça pública, o originalista seria o conservador, o reacionário, o populista, o iliberal —enfim, um espantalho retórico criado pelos progressistas quando, na verdade, trata-se de um eufemismo deles para "ralé".

Esses "deploráveis" (segundo a expressão desta progressista-mor que é Hillary Clinton) se transformaram nos "muitos" que, desde 2016, se revoltaram contra as elites, os "poucos" que até hoje não entenderam fenômenos políticos díspares como Donald Trump, o brexit, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro e, agora, a ascensão surpreendente de Javier Milei nas primárias presidenciais da Argentina.

Apesar de um tropeço e outro (as derrotas de Trump em 2020 e Bolsonaro em 2022), paira o espectro da ameaça de um levante desses muitos. No Brasil, por exemplo, o nosso 8/1 (conhecido também como o "golpe contra a democracia") impulsionou o Supremo Tribunal Federal a ser um poder moderador que perdeu a moderação há muito tempo, impondo medidas coercitivas que acentuam a tensão entre os progressistas e os originalistas.

Enquanto isso, três intelectuais americanos publicaram livros importantes que propõem saídas para esse impasse mundial. E com um detalhe: eles não estão inseridos na cartilha do progressismo.

Seus nomes são Adrian Vermeule, Sohrab Ahmari e Patrick Deneen. O primeiro é um constitucionalista de Harvard; o segundo, um polêmico jornalista que fez carreira nas maiores Redações dos EUA; e o terceiro trabalha como professor de filosofia política na Universidade de Notre Dame, em Indiana. Os três recusam o rótulo de originalistas, pois alegam defender uma ordem pós-liberal que substituiria o progressismo por meio de uma mudança de regime político.

Não à toa, este é justamente o título do novo livro de Deneen, "Regime Change", lançado há poucos meses. Em um movimento coordenado, essa trinca de autores publicou suas obras uma seguida da outra, com tópicos que se complementam.

Em "Common Good Constitucionalism", Vermeule revira a ciência do direito pelo avesso, defendendo um ordenamento jurídico que restaure a lei comum dos clássicos, fora do positivismo das normas escritas.

Em "Tyranny, Inc.", Ahmari explica que o verdadeiro perigo de nossos tempos não é o governo em si, mas as empresas privadas que se transformaram em uma corporação tirânica que, unida ao Estado tecnocrático, vigia os cidadãos em seus detalhes mais íntimos.

Deneen já é conhecido do mundo intelectual brasileiro. Seu livro anterior, "Por que o Liberalismo Fracassou?", lançado aqui pela editora Âyiné, foi muito elogiado até por Barack Obama. Nesse sentido, "Regime Change" é uma continuação da obra anterior e também o seu aprofundamento radical.

Seu argumento principal é que o progressismo, ao defender que os poucos devem guiar os muitos em suas vidas, pois estes últimos seriam incapazes de escolhas morais complexas, precisa aprofundar ainda mais essa divisão social para permanecer relevante.

Contudo, como o seu próprio sucesso é também a certeza de seu fracasso, esse cisma só tende a crescer, já que os muitos começam a se rebelar por meio do único instrumento disponível para mudar o estado das coisas: o voto.

A consequência imediata é que as elites não aceitam essa atitude e passam a querer reverter o próprio processo democrático, controlando a disseminação de conhecimento a qualquer custo por meio de leis arbitrárias, na crença de que assim fazem o melhor para a sociedade. Na verdade, a única coisa que provocam é o aumento exponencial do autoritarismo, chegando ao limite do totalitarismo.

A mudança de regime surgiria da rebelião dos muitos, uma vez que os poucos simplesmente perderam a autoridade moral de guiar esses pobres-diabos.

Portanto, segundo Deneen, seria necessária uma revolta que venha "de baixo para cima" e que use do poder político para criar, enfim, um novo tipo de governo, baseado em uma Constituição mista (semelhante à que existia na Roma imperial descrita por Políbio) e que saiba usar de "meios maquiavélicos para atingir fins aristotélicos".

A declaração acima impressiona tanto pela frieza do diagnóstico como pela objetividade de suas soluções. Deneen não hesita ditar medidas governamentais que fariam qualquer progressista ficar vermelho de raiva: para ele, as liberdades de imprensa e de expressão são relativas; a pornografia deveria ser banida; os conselhos comunitários substituiriam as instituições burocráticas; os artesãos são mais importantes do que os intelectuais; além de recomendar que os EUA deveriam unir o lado secular ao teológico o mais rápido possível.

Esta última afirmação é, sem dúvida, um anátema em qualquer ambiente progressista. Afinal, o progresso é a única religião que deveria existir. Contudo, a lógica de Deneen, apesar de ir contra os últimos 500 anos da modernidade, explicita o desejo de que os nossos deploráveis estão prestes a partir para as vias de fato.

Uma prova disso é a permanência surreal de Donald Trump na corrida para a Presidência dos EUA. A cada novo processo criminal em que se torna réu (quatro no total), Trump se fortalece no reduto do Partido Republicano, prejudicando as chances de reeleição do democrata Joe Biden. Os muitos querem chutar os poucos de seus privilégios do modo mais humilhante possível, mesmo que às custas de colocar novamente no poder um narcisista possuído pelo ressentimento de ter sido preterido há três anos.

Ironicamente, Deneen, Vermeule e Ahmari perceberam algo que os progressistas deveriam ser os primeiros a abraçar, mas têm medo de admitir: o fato de que a mudança é inevitável. Aí está a nossa paralisia, que se aprofunda com a sensação de que "não há alternativa" e que vivemos presos, como diria o pensador britânico Mark Fisher, "dentro do castelo do vampiro".

Como sair desta masmorra? Em primeiro lugar, os progressistas precisam aceitar que o diagnóstico feito por Deneen, Vermeule e Ahrabi é extremamente pertinente, em contato com a realidade desses muitos. Isso, entretanto, é difícil de acontecer, pois os poucos se sentem privilegiados e acham que só eles são os donos do paraíso prometido.

Assim, nessa dinâmica mortífera de "amigo e inimigo", os vínculos afetivos entre os membros de uma sociedade são rompidos com tamanha intensidade que a única consequência possível é ter um governo cujos "fins maquiavélicos" serão o resultado de usar todos os "meios diabólicos" possíveis.

A oposição de Deneen & Cia. tem o mesmo travo amargo de desespero que os originalistas acusam nos progressistas. No anseio de praticar o bem comum a qualquer custo, eles se esquecem de que esse mesmo bem está partido em inúmeros pedaços, jogados a esmo pelo mundo, e evitam reconhecer que a atividade política é algo intrinsecamente trágica.

Por isso, a segunda possibilidade de sair do castelo do vampiro é entender os conceitos corretamente, sem entrar na arapuca dos clichês. Neste ponto, "O Dicionário do Conservadorismo" (É Realizações), feito sob a direção dos franceses Frédéric Rouvillois, Christophe Boutin e Olivier Dard, é de uma ajuda inestimável, pois faz com que o leitor comum compreenda que o progressismo não é somente o antípoda dos originalistas, mas sobretudo o seu complemento, transformando-se no verdadeiro reacionário que evita ver que a história não está mais do seu lado.

Este sentimento de ser um "exilado no tempo" abrange todos os lados do espectro político, sem exceção. E aqui temos a terceira e última chance para que o vampiro da paralisia não nos agarre com suas presas: a compreensão de que a história, especialmente a história que só se preocupa com o debate político e nada mais, será o palco de um "julgamento das nações".

A expressão apocalíptica vem de um dos livros do escritor galês Christopher Dawson —assunto, aliás, de "O Sábio de Malvern Hills" (É Realizações), um ensaio monumental (em escopo e em qualidade) escrito por Maurício G. Righi, recentemente lançado e que, se bem lido, cria saídas tanto para os originalistas do lado de lá, como os do lado de cá.

Infelizmente, são mínimas as probabilidades de que isso aconteça, e este detalhe dá enorme satisfação aos nossos progressistas. Caso contrário, teriam a confirmação imediata de que metade do país é composta pela "ralé" mais abjeta.

Nossa oposição ao progressismo é feita dentro do próprio ambiente da "idolatria do progresso" —e ela, ao contrário do que fizeram Deneen & Cia., é incapaz de pensar numa moldura diferente, ora caindo no liberalismo pecuniário mais rastaquera, ora partindo para um perenialismo que tem vergonha de dizer o seu nome.

O que um historiador como Christopher Dawson nos ensinará é que o apocalipse não é apenas a revelação das primeiras e últimas coisas, segundo sua definição mais célebre; ele é a confirmação de que todos nós, algum dia, seremos julgados, independentemente de sermos poucos ou muitos.

No fundo, trata-se de uma mensagem de esperança, algo de que Patrick Deneen, Adrian Vermeule e Sohrab Ahmari, assim como os progressistas, parecem ser completamente destituídos. Uma esperança, contudo, perigosa, fundada na ideia de que os muitos irão invadir, sem nenhum aviso, o castelo do vampiro.

É este o alerta que ninguém ousa gritar aos "poderes e potentados" para não parecer um louco no deserto. Ao mesmo tempo, isto só colabora ainda mais com o clima de paralisia que vivemos. E, assim, o paraíso do progresso se transformará no inferno original do qual queremos escapar há séculos, com a diferença de que, agora, a ira dos deploráveis será infinitamente mais funesta do que a arrogância das elites que desejam nos controlar para sempre.

Regime Change: Toward a Postliberal Future

Avaliação:
  • Preço: R$ 177,41 (288 págs.); R$ 49,83 (ebook)
  • Autoria: Patrick J. Deneen
  • Editora: Sentinel

Common Good Constitucionalism

Avaliação:
  • Preço: R$ 194,34 (270 págs.); R$ 97,26 (ebook)
  • Autoria: Adrian Vermeule
  • Editora: Polity Press

Tyranny, Inc.

Avaliação:
  • Preço: R$ 118,42 (288 págs.); R$ 81,55 (ebook)
  • Autoria: Sohrab Ahmari
  • Editora: Forum

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