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Diante da capa do livro, com o rosto de Woody Allen ocupando 100% do espaço útil e o título “Autobiografia”, impossível, mesmo a um mau jornalista como eu, não se entusiasmar com a ideia de que lá dentro haverá um monte de fofocas sobre um caso que acompanhei muito superficialmente.
O início não é promissor. É a história de um jovem de família modesta do Brooklyn, em Nova York —família imigrante, é claro, embora de segunda geração—, mas história mais ou menos semelhante a todas as histórias de filhos de famílias pobres e imigrantes nos Estados Unidos.
A diferença é que o humor entra em cada parágrafo ao menos uma vez. Ainda assim, parece que alguma coisa falta. Parece um texto escrito para ser interpretado por Woody Allen, com seus casos de felicidades e infelicidades, de falta de jeito para o mundo, gosto pelas meninas, brigas domésticas, esquisitices dos tios etc. Duas coisas se destacam, o prazer de estar com as meninas e a recusa da escola.
O aluno vagal que foi, cujo rancor pelas professoras rígidas se mantém intacto até hoje, logo consegue se aprumar como redator de piadas, depois vai se arranjando no burlesco; dali a pouco se nota que é um redator de talento, humorista idem e pronto –com 30 anos já é roteirista de sucesso e pouco depois estreia como diretor de cinema. Quase um conto de fadas.
A vantagem é que aqui já esquecemos da dicção de Allen, de seu modo de entoar as palavras e colocar o corpo. A narrativa corre solta, encontros, amores, amizades.
E, pelo que diz, uma enorme queda por se meter em encrencas com as mulheres. Nessa altura sabemos que a parte das fofocas chegará. Provavelmente filtrada por mil olhos atentos de advogados, mas chegará. Antes passa pelo encontro com Diane Keaton, com quem tem um breve romance, muito menor do que a parceria entre ambos naquela que é talvez a melhor série de filmes de Woody Allen.
Conhecemos a história, em linhas gerais. Allen era casado com Mia Farrow até que um belo dia esta descobre que ele tem um caso com uma das suas filhas adotivas, a coreana Soon-Yi. Um pedófilo, sem dúvida. E incestuoso, ou quase.
Essa é a fama. Segundo Allen, não foi nada disso. “Ainda há pirados que acham que me casei com minha filha, que acreditam que Mia era minha esposa, que creem que adotei Soon-Yi, que juram que Obama não é americano.”
A história frequentou os tabloides e não tabloides pelo mundo afora durante meses. Voltou à tona na onda do MeToo, quando Farrow apresentou outra filha como vítima de um Woody Allen, promovido então a assediador.
Para resumir bem resumido, a autobiografia é a versão de um dos lados. Um lado a cujos olhos, para ser bem sintético, Mia Farrow é quase a encarnação do bebê de Rosemary, que ela trouxe à luz no filme de Roman Polanski.
Farrow aparecia na imprensa como a benfeitora que adotava crianças como filhas, por exemplo. Woody Allen diz que não é bem assim. Era, segundo ele, uma ação de relações públicas. Farrow arrebanhava as crianças, é verdade. Cuidar delas é outra história. A prova disso seria ninguém menos que Soon-Yi. Ela diz a ele que nunca quis sair da Coreia do Sul, que se sentia muito bem entre as freiras do orfanato onde estavam. Sua ida aos Estados Unidos teria sido, na prática, uma imposição de Farrow.
O fato de essa história nunca ter emplacado na Justiça não muda muito as decorrências dilacerantes. Uma parte dos filhos tomou o partido de Farrow, outros de Allen. Para que a sandice seja completa (ou definitivamente incompleta), há os filhos de Farrow, sete, sendo quatro adotivos. Alguns a favor dela, outros a favor de Allen, sem contar Soon-Yi. E, no meio, há o favorito dela, o garoto que ela arrastava à noite, quando ia jantar com Allen. É o que ele escreve. Pelo sim pelo não, a Amazon engavetou um filme do cineasta.
Sendo a autobiografia o ponto de vista de Allen, ele conclui essa parte dizendo que está feliz como está, que teria feito tudo igual outra vez (ou seja, ficar com Soon-Yi, com quem é casado há 23 anos), que “Mia embarcou numa vingança ao estilo Ahab”, o capitão de “Moby Dick”. E que espera tranquilo que a verdade irrompa, já que tem a consciência tranquila et cetera e tal.
Quando termina essa parte, o leitor diz "ufa!". Chega disso. Voltemos aos filmes. Não de todo, pois na catalogação a que Allen então se dedica se pode ver que a fase sombriamente bergmaniana coincide basicamente com os anos Mia Farrow.
Seria esse pendor para o drama que atraiu a atriz? Seria o fraco por mulheres complicadas (antes de Farrow houve o casamento com Louise Lasser) que atraiu Allen? O certo é que essa conjunção derivou para um melodrama tipo “A Guerra dos Roses”, que não acaba bem para nenhum deles, e de que esta autobiografia é, enfim, a versão de Woody Allen de uma história com uma única vilã, Mia Farrow, em meio a uma classe cinematográfica adorável.
No mais, Allen insiste que não é intelectual, ao contrário do que todo mundo pensa, embora salpique aqui e ali provas de uma bela cultura (talvez lacunar, como convém aos autodidatas, mas nem por isso), fala de seus métodos de filmagem, amizades e inspirações e se descobre sempre menor do que os grandes diretores. Mas, sobretudo, não perde o humor. Assim, ao comentar “Setembro”, “quando terminei de rodar o filme, juntei tudo e vi o que tinha, um Tchékhov, sim —Moe Tchékhov, o encanador”.
Sua situação pode ser um tanto dramática, mas o humor continua intacto.
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