Ex-ombudsmans dizem o que veem de ruim na Folha e o que pode ser feito para melhorar
Treze profissionais já ocuparam a função criada pelo jornal de forma pioneira no Brasil, em 1989
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Nos 100 anos de história da Folha, em mais de 31 o jornal contou com um ombudsman, cargo criado de forma pioneira no jornalismo brasileiro, em 1989. Os 12 jornalistas que já ocuparam a função, além da atual, Flavia Lima, foram procurados para falar sobre quais deficiências enxergam atualmente no jornal —e o que sugerem ser feito para superá-las.
Houve uma certa recorrência na avaliação de que, nos veículos de uma forma geral, a qualidade média do que é publicado está abaixo do desejável, além de haver certa incompreensão da dinâmica das redes sociais.
Com base nessa visão, sugere-se, entre outras coisas, a retomada ou incremento de programas de capacitação das equipes, opção por profissionais mais experientes, esmero na edição, uma postura mais interativa nas redes sociais, além de mais diversidade nas equipes, na apuração e na linha editorial.
A cobertura do governo de Jair Bolsonaro, da nova direita e de seus extremismos, também foi objeto de crítica e reflexão.
Carlos Eduardo Lins da Silva foi um dos que reclamaram da qualidade do produto oferecido pela imprensa, de uma forma geral.
Ele afirma que o padrão médio dos textos traz não só erros gramaticais —“alguns escandalosos, vexatórios, constrangedores"—, mas também ambiguidades, contradições, falta de clareza, coerência e lógica.
Lins da Silva defende treinamento e capacitação das equipes, que os textos tenham pelo menos a leitura de um segundo profissional não envolvido na apuração ou redação, além de incentivo para que as equipes leiam ao menos uma bibliografia básica de clássicos da boa escrita, do jornalismo e da literatura.
“O saber escrever, o escrever direito, o escrever bem é o instrumento essencial da profissão e dele depende a credibilidade do profissional e do jornal.”
Também fizeram avaliações similares, embora com abordagens em parte distintas, Vera Guimarães, Junia Nogueira de Sá, Marcelo Beraba e Bernardo Ajzenberg.
Vera diz acreditar que a pandemia e a crise econômica devem encurtar a transição para o digital e provocar mudanças no panorama da imprensa brasileira. Pode se dar aqui um movimento de concentração de leitores semelhante ao vivido nos EUA, onde o New York Times chegou a 7 milhões de assinaturas, enquanto centenas de jornais desapareceram.
"A distância limita geograficamente a concorrência entre os jornais. No jornalismo plenamente digital cai essa barreira, e a qualidade do conteúdo será mais decisiva."
Nesse aspecto, diz Vera, os três maiores jornais brasileiros têm bastante a melhorar. "Em muitas reportagens, a rapidez predomina sobre a qualidade, parece que não houve segunda leitura ou edição. Isso podia ser compreensível no começo do jornalismo digital. Não mais."
Primeira mulher a ocupar a função —e a mais jovem, aos 32 anos—, Junia diz que a soma de alguns aspectos conspiram contra a qualidade na Folha e na imprensa, de uma forma geral.
O primeiro, afirma, é um retrocesso na política de apoiar a formação de seus jornalistas, em especial os mais jovens.
"A Folha já teve a prática de capacitar seus repórteres, um programa robusto de controle de qualidade —a própria seção Erramos e o ombudsman são fruto disso—, uma série de cursos, palestras e formações, entre outras coisas, que ajudaram a fazer dela um grande jornal. E a gente vê que isso se perdeu."
Essa situação, prossegue, contribui para que o jornal se veja, em muitos momentos, buscando inutilmente se assemelhar e competir com a internet.
Junia também cita o The New York Times como exemplo a ser seguido. “Como leitora, sou fisgada por esse jornal em vários momentos, de blogs nichados a posts nas redes sociais ou longas reportagens especiais. É o melhor exemplo de jornal com uma Redação que está conseguindo entender como cada formato hoje funciona para cada público, e crescendo em importância.”
Beraba aponta uma percepção, que também não se restringe à Folha, de que há uma carência de jornalistas especializados. Ele cita a educação como exemplo.
“Embora tenhamos muitos jornalistas especializados em educação, eles não estão necessariamente nos meios. Não significa que os que ficaram não sejam muito bons, mas houve uma perda real e isso tem consequência. Os meios de comunicação se superam porque parte do nosso DNA de jornalista é de superação”, afirma.
A solução, em sua avaliação, passa pela recuperação de fontes de receita que propiciem a manutenção de um corpo de jornalistas com o maior grau possível de especialização em sua área. “A sociedade vem exigindo cada vez mais que a cobertura não seja superficial em temas que são complexos.”
Jornalista e escritor, Ajzenberg cita a área cultural.
“A Folha perdeu muito na cobertura cultural, em especial no campo da literatura. O espaço dedicado a isso é muito pequeno. Faltam resenhas, indicações, crítica, serviço. Quem quer saber como anda a literatura, quem gosta ou precisa de livros, especialmente de ficção, não encontra na Folha, hoje, uma referência”, afirma.
Caio Túlio Costa, consultor digital e sócio-fundador da ferramenta de monitoramento digital Torabit, afirmou ser necessário o jornal aprimorar bastante seu desempenho nas redes sociais.
“Falta um âncora, ou uma âncora, para cada rede. Falta alguém para conduzir e organizar a interação, e auscultar o que se fala nas redes e o que se discute, tanto para se informar e criar pautas quanto para manter um diálogo constante com os leitores”, diz Caio Túlio, defendendo um "abraço sem preconceito à condição interativa das redes sociais".
Ele critica a decisão da Folha de ter deixado de publicar seu conteúdo no Facebook, diz que o jornal usa Instagram e Twitter de forma burocrática, como mero republicador de reportagens, além de carecer de material periódico e pensado especificamente para o YouTube.
A Folha deixou de publicar seu conteúdo no Facebook em 2018 após a decisão da rede social de diminuir a visibilidade do jornalismo profissional nas páginas de seus usuários.
A Folha é o maior jornal diário brasileiro no Instagram, com 2,6 milhões de seguidores. No Twitter, usa threads para contextualizar notícias, e algumas viralizaram, como a da demissão de Moro.
Renata Lo Prete ressalta a necessidade de o jornalista ampliar o seu leque de fontes e de usar a inquietude inerente à profissão para ir além dos círculos social e online em que vive.
"O jornalista vive em pelo menos duas bolhas. A social, formada por relações familiares e de outro modo pessoais, especialmente determinantes em uma sociedade na qual o CEP original sela destinos. E a digital. Somos cada vez mais conduzidos por nossos hábitos online, pelos cliques que fazemos ou deixamos de fazer. O algoritmo reconhece e incentiva a repetição: ir aos mesmos endereços, rodar as mesmas timelines, consultar as mesmas vozes, ouvir os mesmos argumentos", afirma.
Isso tem um efeito perverso sobre o jornalismo, avalia. "Quando se limita a ouvir a bolha, o jornalista tende a produzir para... a bolha, esperando o aplauso dela. Tornam-se escassas as surpresas, os momentos de autoralidade, em que a produção foge do roteiro estabelecido pelas fontes, oficiais ou não, expandindo as fronteiras do debate público.”
Ao dizer que jornalismo é movimento, ela defende que não apenas a Folha, mas todo veículo de imprensa enfrente "a lógica do algoritmo" e rejeite "a cultura da autossuficiência e da lacração". Ainda que a pandemia tenha imposto grandes limitações, afirma, "ela não desobriga a Folha, e todo jornalista que tenha a inquietude em seu DNA, de se movimentar cada vez mais.”
Paula Cesarino e Junia Nogueira de Sá defenderam maior diversidade.
Paula diz ver uma busca perceptível da Folha nesse sentido, mas ressalta que há muito o que avançar em termos de gênero, raça, origens e formação.
Ela também afirma ver uma "diferença visível de tom editorial em relação, por exemplo, a dois parceiros de um mesmo projeto”, Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes. “O desafio da pluralidade de ideias econômicas, tanto no noticiário quanto nos editoriais e colunas de opinião, é um dos problemas mais relevantes num país com aumento da desigualdade e do desemprego, com queda na renda, fragilidade de rede de proteção social e crescimento econômico pífio.”
Para Junia, a falta de diversidade dificulta a interpretação de muitas questões do mundo atual. "Eu vejo hoje uma equipe com perfil muito semelhante ao de trinta anos atrás, quando eu circulava pela Redação. Talvez seja a hora de encarar isso na Folha."
Já Flavia Lima, que é a atual ombudsman, Mario Vitor Santos e Marcelo Leite apontaram o que consideram erros ou hesitação do jornal na cobertura da nova direita e do governo Jair Bolsonaro.
Flavia diz considerar um equívoco acomodar-se à suposição de que “a livre competição de ideias —quaisquer que elas sejam— seja o suficiente para que a verdade prevaleça” e afirma que “o jornal precisa delimitar o que é informação de interesse público e o que é ruído, que dá clique e viraliza, mas não presta nenhum serviço à informação”.
“Também em nome da informação, é preciso abrir mão do recurso fácil de recorrer à ideia de 'polarização' para equiparar a extrema direita e a esquerda, que, a despeito de seus erros, não transpôs os limites democráticos e da civilidade”, afirma, acrescentando que os cem anos do jornal é uma boa marca para “renovar o pacto com a democracia por meio de um comprometimento maior com o pluralismo político e econômico”.
Para Mario Vitor, há um “acovardamento político” do jornal diante do governo Bolsonaro.
“Por que até hoje a Folha não pediu abertamente, em editorial, com o destaque e a clareza que a questão exige, o impeachment do presidente da República, a despeito de ele ter cometido tantos crimes de responsabilidade à vista de todos?"
Mario Vitor diz que a Folha critica o governo no varejo, mas o apoia na "estratégia econômica ultraneoliberal" de Paulo Guedes, ”ofende" colunistas que representem "ameaças políticas", como o ex-ministro Fernando Haddad (PT), e, por fim, deveria fazer autocrítica pela cobertura da Operação Lava Jato, o que, afirma, levou ao “golpe judicial-parlamentar contra Dilma Rousseff, a prisão e proibição da candidatura Lula e, afinal, a eleição do próprio Bolsonaro”.
Assim como no caso de outros presidentes, a Folha faz uma cobertura crítica em relação a Bolsonaro, sendo até hoje um de seus principais alvos de ataques. São do jornal, por exemplo, as reportagens sobre a evolução patrimonial da família Bolsonaro, a revelação da funcionária fantasma Wal do Açai e do disparo ilegal em massa de mensagens pró-Bolsonaro na eleição de 2018. Pesquisa do Datafolha divulgada no final de janeiro mostra que 84% dos leitores acham adequada a cobertura do governo feita pelo jornal.
Haddad decidiu encerrar sua coluna em reação a um editorial que relembrava o seu papel de “poste” de Lula na eleição de 2018 e que dizia que ele poderia estar esperançoso por nova chance ao defender a candidatura do ex-presidente para 2022, “algo que depende de um complexo arranjo legal”.
Marcelo Leite aponta “uma certa hesitação do jornal diante do governo Bolsonaro e uma timidez na hora de denunciar suas muitas falsidades”, assim como afirma ter ocorrido, em governos passados, na resposta a críticas infundadas vindas de setores da esquerda.
Segundo ele, não basta só o fact-checking, mas, a exemplo da antiga seção "não é o que parece", é preciso uma fórmula mais avançada de ouvir o ‘outro lado’ que não seja sua mera aceitação pelo valor de face.
“Acho, por exemplo, que a checagem factual deve ser exercida sobre artigos de opinião, também. Se o ministro escreve algo mentiroso na página 3 [de Tendências e Debates], o jornal não deveria aceitar o artigo até que seja corrigido.”
Leite também se diz favorável a ampliar o papel do ombudsman, deixando mais de lado questões como a discussão sobre se determinada notícia deve sair “acima ou abaixo da dobra” [do jornal impresso] e retomando com mais ênfase a crítica de mídia.
“O escritório do ombudsman poderia ter mais pessoas e publicar algo mais ousado e ambicioso, indo além dos detalhes desta e daquela matéria para falar da paisagem e do comportamento do jornalismo profissional.”
Suzana Singer, que hoje é editora de Especiais, Seminários, Treinamento e Qualidade, afirmou que tenta melhorar o jornal e não vê sentido em criticar o que ela mesmo ou os colegas fazem.
Mário Magalhães disse que, como ex-ombudsman, não se sente à vontade para opinar sobre o jornal de hoje.
Em muitas reportagens, a rapidez predomina sobre a qualidade, parece que não houve segunda leitura ou edição. Isso podia ser compreensível no começo do jornalismo digital. Não mais
O saber escrever, o escrever direito, o escrever bem é o instrumento essencial da profissão e dele depende a credibilidade do profissional e do jornal.
O jornalista vive em pelo menos duas bolhas. A social, formada por relações familiares e de outro modo pessoais, especialmente determinantes em uma sociedade na qual o CEP original sela destinos. E a digital. Somos cada vez mais conduzidos por nossos hábitos online, pelos cliques que fazemos ou deixamos de fazer. O algoritmo reconhece e incentiva a repetição: ir aos mesmos endereços, rodar as mesmas timelines, consultar as mesmas vozes, ouvir os mesmos argumentos
A checagem factual deve ser exercida sobre artigos de opinião, também. Se o ministro escreve algo mentiroso na página 3 [de Tendências e Debates], o jornal não deveria aceitar o artigo até que seja corrigido
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