Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP
Desamparo do bebê ou da mãe?
Os cuidados com o bebê vêm adquirindo contornos obsessivos
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Donald Winnicott era um pediatra que se tornou um dos grandes psicanalistas de nosso tempo. Como pediatra, teve acesso às mães desde os primórdios de sua relação com seus bebês, e nos ofereceu sacadas de gênio.
Uma das pérolas de Winnicott era a seguinte frase: "o bebê não existe" ("There's no such thing as a baby"). Para quem não dorme faz meses por causa de um cara "que não existe", essa frase pode soar como um deboche, mas a ideia é bem interessante.
Só existe um bebê para um adulto. Dito de outra forma, sem o adulto, não há bebê como tal, pois a dependência do recém-nascido daquele que dele se ocupa é absoluta. Nossa sobrevivência, física e psíquica, dependeu da boa vontade de estranhos. Desse fato fundamental nos resta a marca de nosso desamparo primordial e o reconhecimento de nossa finitude.
Seguindo o raciocínio de Winnicott, somos todos filhos de alguém que, necessariamente, nos acolheu no momento fundante de nossa existência, caso contrário, não estaríamos aqui a compartilhar essas linhas, eu que escrevo e você que as lê. Alguém esteve lá para nós. Independentemente da qualidade desse acolhimento, em algum nível ele foi suficiente para que um sujeito emergisse e seguisse sua vida.
Esse preâmbulo é uma tentativa de apontar o mal-estar que um filme como "Tully" (2018), em cartaz, causa. O filme é simples, bem distante do roteiro e da direção engenhosos que Diablo Cody foi capaz de produzir em "Juno" (2007), mas tem como grande mérito a profunda interpretação de Charlize Theron.
O mal-estar decorre do fato de que, no drama do casal de classe média com dois filhos cuja esposa está grávida de um terceiro bebê inesperado e o marido compreensivo se esforça para bancar as contas, não há nada de novo. Com situações socioeconômicas infinitamente piores, iguais ou melhores, mulheres estão realizando a tarefa fundamental da nossa existência nas piores condições possíveis.
O fato é tão gritante e disseminado que resta a dúvida: as pessoas se dão conta de que o filme não fala de uma situação de exceção, mas de uma cena absolutamente corriqueira? A personagem de Charlize está às voltas com uma tarefa humanamente impossível: cuidar dos filhos, sendo que um é recém-nascido, da casa e de si mesma sozinha, arriscando a própria integridade psíquica. A forma como ela especificamente lida com a situação é quase irrelevante. Cada um se vira como pode nesses casos.
O chocante é a incapacidade de reconhecermos que esse arranjo, no qual uma mulher se ocupa sozinha dos filhos, privando-se da vida pessoal, amorosa, profissional, é um descalabro da modernidade, sem precedentes na história. Mas, ao invés de reconhecermos o engodo do que consideramos o papel adequado de uma mãe, nos chegam aos consultórios mulheres acreditando que há algo de errado com elas.
Assim como os manicômios viviam repletos de mulheres consideradas loucas porque liam, porque desejavam sexo, porque falavam o que pensavam, nos chegam as mulheres que confessam que "não dão conta". Supõem que não são boas o suficiente e fazem do divã o confessionário de suas faltas, das faltas de suas próprias mães. Ou ainda, morrem de medo de se ocupar de bebês, que parecem precisar que elas deixem de existir para que sejam bem cuidados.
Ora idealizando, ora demonizando a maternidade —dois lados da mesma moeda— os cuidados com o bebê vêm adquirindo contornos obsessivos e as violências correspondentes. Ter um bebê desejado é uma experiência maravilhosa. Pena que poucas mulheres estão tendo o devido acesso a isso. O desamparo das mães é maior do que o desamparo dos bebês porque elas estão lá para eles, enquanto que não há ninguém por elas.
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