Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.
Cortar é bom, escrever é melhor
Frase que Drummond negou ter dito tem seu valor, mas é superestimada
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"Escrever é cortar palavras." Volta e meia encontro o conselho, que virou um tremendo clichê, atribuído na internet a Carlos Drummond de Andrade —uma lenda antiga. Não, o maior poeta brasileiro não disse a frase. Se disse, veio a se arrepender de ecoar dessa forma uma banalidade, pois em conversa com Armando Nogueira negou ser seu autor.
A inegável condição de clichê não significa que o conselho seja errado, de modo algum. Parcial e superestimado, sem dúvida. Em primeiro lugar porque deixa fora do quadro o fato —óbvio, mas nada trivial— de que antes de cortar palavras é preciso... escrevê-las.
Além disso, há aqueles casos textuais mais graves, infelizmente comuns na escrivaninha dos melhores escribas, em que qualquer tentativa de salvação por enxugamento vocabular equivaleria a tratar uma fratura exposta com mertiolate e band-aid.
Me lembro de ter visto certa vez uma entrevista de Milton Hatoum em que ele botava no seu devido lugar, com classe, a frase feita do corte de palavras como essência da boa escrita.
Famoso pela lentidão com que elabora seus livros de ficção, que são do tipo poucos e bons, o autor de "Dois Irmãos" se defrontou com a seguinte pergunta: era verdade que passava anos a fio enxugando seus textos antes de considerá-los prontos para a publicação?
Vou parafrasear de memória a resposta de Hatoum, pois não consegui localizar o tal vídeo no mercadão online (terá sido cortado?). Sim, era verdade que às vezes ele suprimia palavras, mas havia muitas ocasiões em que tinha que acrescentar palavras novas também.
O trabalho de um escritor, explicou, é apurar o foco do texto sobre os conflitos com que se debatem seus personagens. Se há casos em que se chega lá por subtração, não é menos comum que para obter o mesmo efeito seja preciso escrever mais —mais uma cena, mais um diálogo, mais um monólogo interior.
Em outras palavras (estas minhas e não do autor amazonense): nem sempre menos é mais; às vezes, menos é só menos mesmo. Claro que isso não significa que vômitos verborrágicos sejam uma boa ideia.
A ênfase no enxugamento costuma ser mais útil no âmbito restrito da frase e do parágrafo do que no do arco amplo da história. É parte da rotina de escrever a eliminação das gorduras, rebarbas, soluços e automatismos que quase sempre acompanham a primeira versão de um texto em sua chegada à página.
O mais interessante é que nem só o que está evidentemente sobrando, por redundância, cacofonia ou insipidez, merece ser limado; há algo de mais misterioso na disciplina do enxugamento.
Confesso não me lembrar de um único texto meu que, dado por acabado e precisando depois disso ser cortado —com grande dor— a fim de obedecer à tirania do espaço vigente na imprensa de papel, não tenha no fim ficado melhor. Como é possível?
Importante deixar claro que estou falando de textos jornalísticos. Se é evidente que a literatura também pode se beneficiar de cortes, nesse caso a reescrita, alma do negócio, exige mais cuidado.
Por fim, o conselho clichezento "do Drummond" tem um problema que poderíamos chamar de intrínseco: contraria a lei que promulga no próprio ato de promulgá-la.
Quem vai negar que "Escrever é cortar palavras" é uma frase que pode ser aprimorada, tornando-se mais essencial e vibrante, sem perder informação alguma, com o simples corte de uma palavra? "Escrever é cortar." Sem mais.
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