Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
A era dos cafajestes
Até onde se esperaria algum respeito à liturgia dos cargos, a baixeza faz-se automática
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
Não é preciso sequer observação minuciosa de notícias, artigos e blogs da mídia nacional para se dar conta de que juízos de natureza moral suplantam em muito as classificações políticas tradicionais, do tipo esquerda ou direita. O foco maior está na conduta de figuras públicas: machismos, grosserias, agressões, preconceitos etc.
Em casos extremos, oscila-se entre canalhice e cafajestice, o que demanda algum esclarecimento sobre a distinção etimológica. Sobre o canalha, há um razoável consenso filológico em torno do significado de vilania, registrado em dicionários. Já cafajeste é um exemplo enigmático, senão questionável, porque parece ter origem em "cafas" no português de séculos atrás, com sentido sempre duvidoso, entre o indesejável e o vulgar. No Brasil de hoje, pode ser resumido como a referência popular a um adulto de classe média para cima com conduta publicamente reprovável.
Não se conhece cafajeste do sexo feminino, nem cafajeste pobre. Tanto que existiu, anos atrás, um Clube dos Cafajestes, composto por playboys ricos e notórios. Gastavam dinheiro a rodo em façanhas grosseiramente pueris e irresponsavelmente reproduzidas na imprensa. Mas em "Os Cafajestes" (1962), o cineasta Ruy Guerra optou por uma etnografia de picaretas ou pilantras, que se comprazem na humilhação de mulheres. A crítica do filme converge hoje para a identificação dos personagens com o arbítrio perverso de turistas brasileiros em seu relacionamento com mulheres no exterior.
Foi o que aconteceu durante a Copa do Mundo quando alguns deles divertiam-se nas ruas de Moscou com expressões obscenas para jovens russas que, sem entender português, sorriam para fotos, acreditando estar em contato com a mitológica alegria brasileira.
O que parecia restrito à perversão privada dissemina-se agora na esfera pública com personagens oficiais. Busca-se mandato para conseguir audiência. Mas fica patente o quanto podem ser abjetos os modos reais de pensar e agir das figuras que reverberam nas redes sociais. Até mesmo onde se poderia esperar algum respeito à liturgia dos cargos, a baixeza faz-se automática. Eis a fórmula paradigmática: "Uso o bem público para comer gente". O cafajeste é sem noção.
O inquietante é a aparente normalização desses fatos pelo espírito do tempo cultural e moralmente rebaixado que se atravessa: uma insólita era da cafajestice com holofotes digitais. Pode-se condenar ou cassar um exagero por demais visível, mas agora o rastro algorítmico dessa modalidade de fama, melhor, de infâmia, persiste como rastilho da incivilidade paralela nas redes. E com horripilantes consequências políticas: cada like divertido será, na urna, um voto cafajeste.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters