Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Um dia um robô jogará melhor que Pelé, mas não será Pelé
Mas aplaudiremos o cientista que o criou como aplaudimos o Rei?
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A primeira vez que ouvi falar de trans-humanistas julgava que eram extraterrestres que, nascidos no corpo errado, se sentiam seres humanos.
Erro meu. Os trans-humanistas serão os nossos sucessores, da mesma forma que o Homo sapiens é o sucessor do macaco. Sim, esses seres do futuro poderão conservar alguns traços da nossa humanidade, mas serão uma versão infinitamente melhorada de nós.
Esse, pelo menos, é o cenário que Adam Kirsch pinta no seu livro "The Revolt against Humanity: Imagining the Future without Us" (a revolta contra a humanidade: imaginando o futuro sem nós, em tradução livre). Ainda não li a obra, mas o aperitivo que ele publicou na "American Scholar" permite antecipar o amanhã.
Eis a tese: a Terra já não aguenta as predações dos pós-macacos (nós). Podemos tentar regredir na escala da civilização e, sei lá, voltar para a selva, vivendo como nossos antepassados há milhares de anos.
Mas essa opção não é apelativa para quem se habituou a ter água encanada em casa. Na impossibilidade de regredirmos, que tal progredirmos, como sempre fizemos?
Nós, humanos, somos limitados, estúpidos e dramaticamente violentos. Mas os pós-humanos serão uma versão perfeita das nossas velhas carcaças.
Para que viver até aos 80 se podemos chegar aos 800 ou até abolir a morte?
Quem disse que temos só cinco sentidos quando podem existir mais cinco ou mais 50 ou mais 500?
Quem disse que um Q.I. de 140 era de gênio quando é possível atingir os 1.400 e envergonhar esse débil chamado Einstein?
Sem falar dos corpos: alguns foram agraciados com corpos de Adônis, embora isso nem sempre seja uma bênção. Sei do que falo, é um fardo enorme. Mas por que não todos?
Um dos trans-humanistas de que Adam Kirsch fala, o conhecido Ray Kurzweil, já se está preparando para esse futuro glorioso. Todos os dias, toma 250 pílulas e faz seis terapias intravenosas por semana.
É uma forma de se manter vivo, diz ele, até poder dar o salto para um ciborgue, imagino eu. Espero que o ciborgue tenha melhor saúde mental do que a velha cabeça de Kurzweil.
Calma, leitor, não vou estragar suas fantasias de imortalidade. Elas são mais velhas que o mundo e os trans-humanistas não são tão originais assim.
Nossos antepassados sempre sonharam com uma existência sem doença, sem sofrimento, sem morte, onde os humanos viveriam como deuses. Ler Hesíodo em "Os Trabalhos e os Dias" é a comprovação de que os trans-humanistas começaram lá atrás.
Além disso, se a genética, a nanotecnologia e a robótica permitirem melhorias no tratamento da doença, isso será apenas mais um capítulo na longa história do progresso humano.
Nada contra. Eu, por exemplo, não me importaria de aumentar certas partes do meu corpo com material inquebrável. As pernas, digamos.
O problema é que a filosofia trans-humanista contém quatro erros óbvios, que parecem escapar aos seus entusiastas.
O primeiro erro está no seu historicismo infantil –a ideia de que o progresso é um dado adquirido e uniforme. Será?
Talvez. Mas só se a humanidade não se autodestruir com uma guerra nuclear ou qualquer outra catástrofe imprevista que nos jogue de volta à Idade da Pedra. Nunca devemos subestimar a inteligência dos pós-primatas.
Por outro lado, como garantir que um avanço tecnológico será, por definição, um avanço moral? Os trans-humanistas partem sempre do pressuposto de que os homens-máquina exibirão as nossas virtudes em grau superior. Mas nunca admitem que os nossos vícios podem conhecer igual upgrade.
O terceiro erro é uma questão de perspectiva: o que para os trans-humanistas são males intoleráveis (a morte, por exemplo) pode representar, pelo contrário, qualidades importantes de uma existência feliz. Sem a sombra do fim, será que existiria alguma urgência para viajar, criar, amar, procriar, experimentar?
Duvido. Como lembrava o filósofo Bernard Williams, o tempo infinito traz um tédio infinito. Já imaginou passar os dias na praia, bebendo um chope para sempre com um amigo de lata?
Finalmente, que graça tem resolver um problema matemático, escrever um romance ou bater um recorde olímpico porque alguém implantou em nós um chip caprichado?
Não é o resultado que nos interessa; é o processo que conduz ao resultado, aquilo que Aristóteles designava por "florescimento".
Um dia, haverá um robô que jogará melhor do que Pelé. Mas não será Pelé. Estaremos dispostos a aplaudir o cientista que o criou da mesma forma que aplaudimos a história, o esforço e o talento do senhor Edson Arantes do Nascimento?
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