Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Ler 'Matadouro-Cinco' é ver a guerra como um sacrifício de crianças
Centenário de Kurt Vonnegut nos lembra de toda a sujidade dos conflitos bélicos, como o da Ucrânia
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São 100 mil mortos ou feridos para cada lado, disse o chefe do Estado-Maior dos Estados Unidos, comentando a guerra na Ucrânia. Também há mortos e feridos entre os civis ucranianos: uns 40 mil. São esses números que explicam, em parte, a retirada russa de Kherson. Não é fácil justificar o matadouro.
Aliás, nunca é —e a palavra matadouro não foi usada por acaso. Há precisamente cem anos, nascia Kurt Vonnegut (1922-2007), talvez o mais incompreendido dos escritores americanos do pós-Segunda Guerra Mundial.
Não critico essa incompreensão: também não sou fã de ficção científica, e as primeiras histórias de Vonnegut, a "slick fiction" que ele escrevia para as revistas populares, não fazem a minha praia.
As coisas só começam a ficar interessantes com "Cat’s Craddle" (1963) e, obviamente, com "Matadouro-Cinco" (1969), que reli por esses dias.
É uma obra-prima, tecnicamente falando: a forma como Vonnegut investiga a possibilidade de escrever um romance sobre o bombardeio de Dresden, que ele presenciou em 1945, e a forma como o faz, estilhaçando a linha temporal da história, é um assombro para qualquer literato.
Mas, deixando a técnica de lado, o que me impressiona ainda é o anti-herói que ele escolheu —Billy Pilgrim— para passar pelas agruras do inferno, exatamente como Vonnegut passou.
Estamos na batalha do Bulge, uma das mais sangrentas da Segunda Guerra: 500 mil alemães tentam furar as linhas defensivas dos aliados nas Ardenas. Tal como na guerra ucraniana, morreram ali 100 mil alemães e 80 mil aliados.
Billy Pilgrim, tal como Vonnegut, é capturado pelo inimigo. Transportado até Dresden num trem esquálido, é acomodado num matadouro da cidade juntamente com outros prisioneiros.
Mas então chega a noite de 13 de fevereiro de 1945. Dresden era uma "cidade livre", sem interesse militar para os Aliados. Mas é praticamente apagada do mapa como retribuição pelos bombardeios nazistas de Londres.
Morreram de 25 mil a 35 mil pessoas (estimativa conservadora). Billy Pilgrim, tal como Vonnegut, sobreviveu. Mas sobreviveu mesmo?
Talvez não, se alargarmos o conceito de vida para lá das funções fisiológicas fundamentais. A mente de Billy foi sequestrada pelo trauma da guerra –ou, seguindo a metáfora de Vonnegut, sequestrada por estranhos extraterrestres (os Tralfamadorians) que lhe apresentam o segredo da vida: devemos render-nos ao destino, sem fazer perguntas desnecessárias, e fechar os olhos à infelicidade, concentrando-nos nas coisas felizes.
É um conselho infantil e alienante, tão alienante como a própria guerra, mas que Billy, porém, cumprirá até ao fim da vida.
Ler a obra-prima de Kurt Vonnegut no centenário do seu nascimento é lembrar a sujidade da guerra em toda a sua patética, brutal e surreal dimensão.
Mas é também lembrar as suas vítimas: não, não são os estadistas ou até os generais que as começam com proclamações ideológicas ou ressentimentos históricos fatais. Vladimir Putin, em princípio, não morrerá nas trincheiras de Donetsk.
O subtítulo de "Matadouro-Cinco", convém lembrar, é "A Cruzada das Crianças", porque são elas, as crianças, os rapazes, os imberbes, os infelizes, os Billy Pilgrims deste mundo, que marcham para o front e são devorados pela ambição e pela maldade dos seus superiores.
Na Guerra da Ucrânia, em apenas dez meses, 200 mil terão morrido. Outros tantos terão viajado para outros planetas, levados nas asas do desespero e da loucura. É o eterno retorno.
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