Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Um vazio no meio do mapa
Cerrados do Jalapão não merecem seguir como autódromo de veículos 4x4 e mero cenário de fotos instagramáveis
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O Jalapão, que visitei há pouco, é uma região de bruta beleza cênica —e também um retrato da cisão entre nossos padrões de turismo e a educação ambiental da sociedade. Tal como configurado pelo sistema turístico vigente, o Jalapão não passa de um parque de diversões destinado a gerar imagens para o Instagram.
A região estende-se por 34 mil km². O Parque Estadual do Jalapão, com 1.589 km², no vale do rio Novo, ocupa a área central, que é emoldurada por uma APA. A espinha dorsal do sistema de turismo é formada por cerca de cem agências que transportam os visitantes entre os núcleos de Ponte Alta, Mateiros e São Félix em veículos 4x4 com suspensão modificada. São raros os que, como eu, aventuram-se por conta própria nas estradas estaduais de lama ou areião, a depender da estação do ano.
As estradas formam um anel periférico no Jalapão. É ao longo delas, em propriedades particulares, que se situam quase todos os pontos de visitação habituais. São os "atrativos", na reveladora linguagem do sistema turístico, especialmente dezenas de lindos fervedouros (nascentes de águas subterrâneas submetidas à intervenção paisagística dos proprietários).
No mapa turístico do Jalapão, um vazio ocupa o espaço central. Nele, situa-se o parque, onde destaca-se apenas um "atrativo" de visitação frequente: as célebres dunas. O parque carece de guardas-parque, monitores ambientais, centro de visitação e trilhas para caminhadas. É, basicamente, uma ficção cartográfica.
As agências moldam a experiência dos turistas, conduzindo-os de um "atrativo" a outro. Os guias-motoristas não conhecem a geomorfologia ou a ecologia do Jalapão. São, com honrosas exceções locais, pilotos encarregados de depositar, na hora certa, suas cargas humanas nos "atrativos", restaurantes e pousadas selecionados.
O roteiro-padrão praticamente ignora o parque. Não há tempo, interesse ou estrutura para caminhadas ou, de modo geral, para uma imersão nas feições naturais da região. Deseducação ambiental: a vegetação de cerrados, as veredas úmidas onde brota o capim dourado e a morfologia dos tabuleiros formam cenários fugazes vislumbrados pelas janelas escurecidas dos potentes veículos.
Mais que a experiência turística, o sistema de agências esculpe fisicamente o próprio Jalapão, perenizando o vazio no centro do mapa. A dificuldade de deslocamento é o pilar que sustenta o modelo turístico hegemônico. Por isso, o lobby articulado por tal modelo de negócios impede a pavimentação das vias de tráfego, uma óbvia aspiração da população local. A palavra "preservação" surge, aí, como cínico pretexto para conservar o isolamento e a inacessibilidade. A soja avança pelo entorno do Jalapão, destruindo a vegetação nativa, assoreando leitos fluviais e contaminando os cursos d’água.
O Jalapão é o faroeste, mas não no sentido empregado pela publicidade. Tudo se concentra nas áreas privadas; o parque público é terra abandonada. Há alternativas, que exigem ação estatal. A pavimentação das estradas deveria ser acompanhada pela expansão, em mosaico, das áreas protegidas, evitando a urbanização linear ao redor das vias de tráfego. Por meio da federalização, o parque precisaria escapar à esfera ficcional, ganhando infraestruturas e pessoal técnico especializado. No lugar de saltos entre "atrativos", isso propiciaria uma experiência ambiental mais profunda.
Sob o impacto da urbanização descontrolada, o Brasil já conseguiu degradar vastas faixas litorâneas —e, agora, ensaiamos privatizar praias, mangues, restingas e dunas. Transformamos o santuário ecológico de Fernando de Noronha numa fútil "Ilha de Caras" voltada para folguedos de celebridades. Distraídos, assistimos à devastação extensiva do Pantanal. Os cerrados do Jalapão não merecem seguir como autódromo de veículos 4x4 e mero cenário de fotos instagramáveis.
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