Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"
As crônicas não escritas
Dentro da cabeça de cada democrata vive um Bolsonarinho cuspindo absurdos
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Bolsonaro é um buraco negro. Ele suga nossa atenção, nossa alegria, nossa esperança, nosso raciocínio, nosso ócio e nosso negócio.
No segundo semestre de 2018 eu estava, com outros quatro roteiristas, escrevendo uma série de humor. Todo dia, entre rubricas, tramas e piadas, o assunto surgia, incontornável: e se o Bolsonaro ganhar as eleições? O que significaria um governo dele?
Era o fim da reunião. Não conseguíamos mais falar de outro tema. Jogávamos uma espécie de truco macabro em que cada um aumentava a aposta do outro nas previsões apocalípticas.
“Ele vai destruir a imprensa livre, como o cara lá na Hungria!”. “Ele vai aparelhar o judiciário, como o cara lá na Polônia!”. “Ele vai assassinar os desafetos, como o cara lá da milícia, amigo da família, Adriano da Nóbrega”.
Depois de algumas semanas de masoquismo e inércia produtiva, escrevemos em giz amarelo, bem grande, no alto da lousa preta, “NVFSB”: “Não Vamos Falar Sobre Bolsonaro”.
Toda vez que um de nós percebia aproximarmo-nos do horizonte de eventos do buraco negro, gritava “NVFSB!” —e retornávamos à terra firme.
Bolsonaro venceu. Há um ano e meio temos que lutar diariamente contra os ataques deste siderado à ordem democrática, ao estado de direito, à verdade, à lógica. Para além disso, há outro estrago: dentro da cabeça de cada democrata brasileiro vive um Bolsonarinho cuspindo absurdos e vomitando truculência —sem máscara, claro— 24 horas por dia.
O buraco negro está dentro de nós. Este espaço aqui, outrora dedicado à crônica, é mais uma vítima do ralo cósmico.
Foi engolido o texto em que contava como eu e a minha mulher, isolados com as crianças no meio do mato, havíamos nos esquecido da páscoa. Queria ter escrito sobre o complexo protocolo de entregas do coelho, inventado por mim: começava pelo litoral e deixava por último as cidades interioranas localizadas nas montanhas.
Não contei aqui, como queria, sobre a ida inútil à cidade mais próxima, onde não encontrei à venda um único ovo de chocolate, obrigando-me a esconder paçocas e pés de moleque pelo jardim. “Com a pandemia, filhos, o coelho prefere valorizar os produtos locais”.
Na semana seguinte, não escrevi a crônica contando como minha filha, diante das patacoadas pascoais de seu pai, deixou de acreditar ao mesmo tempo no coelho, no Papai Noel e na Fada do Dente. Em junho, nos meus dez anos de casado, não escrevi a crônica sobre a noite de 2007 em que me apaixonei pela mãe destas crianças, no mezanino do Bar Balcão.
Se não houvesse o desgoverno, neste exato momento eu apagaria os parágrafos anteriores e recomeçaria daqui: escreveria uma crônica sobre o Balcão. Seria, no fundo, uma crônica sobre o meu pai, com quem comecei a frequentar o bar, ainda adolescente. Não o vejo há meses e ele está chateado comigo, porque ainda não li seu próximo livro. Tem razão.
A crônica falaria sobre as mudanças nas relações entre pais e filhos ao longo dos anos. Sobre rancores e culpa e amor e perdão. Sobre “o tempo que perdemos com o que nos parece urgente”, como bem diz o lugar comum, “esquecendo do que é importante”; as festas e datas especiais; as pessoas especiais; o “Hambúrguer da capa”, no Balcão e do outro lado, vejam só, o amor da minha vida. Tudo isso é e será para sempre importante, décadas e décadas depois que Bolsonaro tiver retornado à sua cósmica desimportância.
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