Chuvas torrenciais nas últimas semanas têm causado estragos em série em diversas regiões do Brasil, como Espírito Santo, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Sergipe e Distrito Federal. A ocorrência mais frequente de altos volumes de precipitação em espaços curtos de tempo pode indicar efeitos das mudanças climáticas, que causam alterações nos regimes de chuva.
Para enfrentar essas dificuldades, especialistas dizem que as intervenções de infraestrutura e os protocolos de emergência precisam de um reforço de longo prazo, com políticas de habitação e combate à pobreza.
Além disso, é necessário ampliar a capacidade de prefeituras e redes comunitárias, chaves para a prevenção especialmente entre populações mais pobres, que precisam enfrentar o medo da destruição de tudo que têm para sair de casa em situações de desastre iminente.
O desafio cresce porque a população afetada por enchentes e deslizamentos de terra no Brasil pode dobrar ou até triplicar nas próximas décadas, segundo o relatório mais recente do painel do clima da ONU, o IPCC.
As ferramentas para prevenção e resposta estão disponíveis há anos. Mauricio Ehrlich, professor de engenharia geotécnica da Coppe, centro de pesquisa da UFRJ, é um dos autores de um estudo sobre uma delas, que cruzou dados de chuvas com os de risco de deslizamento.
A base dessa técnica são as informações da Geo Rio, empresa pública da prefeitura carioca que iniciou o monitoramento em 1998. "A gente fez um cruzamento e tem uma correlação bastante confiável em relação ao que se pode esperar em função do quanto chove", diz o pesquisador, para quem a cidade do Rio tem informações suficientes para dar segurança à população.
Eduardo Mario Mendiondo, coordenador científico do Ceped (Centro de Educação e Pesquisa de Desastres) da USP, avalia que o país está no mesmo patamar de EUA, Japão e Europa em relação a sensores e tecnologia para monitoramento de chuvas e deslizamentos. O Brasil fica aquém, no entanto, na densidade —quantidade de aparelhos em uma mesma área, o que aumenta a precisão.
Apesar disso, diz o especialista, esses países, além dos vizinhos da América Latina, têm o Brasil como referência em tema de alertas para populações em um cenário de desigualdade socioeconômica, o que exige comunicação sobre ocupações em áreas de risco.
O que torna o Brasil eficiente é o modelo com equipes formadas por profissionais de diferentes áreas que avaliam como fazer os alertas.
"O Brasil faz isso bem há mais de dez anos porque tem uma equipe interdisciplinar. São meteorologistas, engenheiros, hidrólogos, cientistas sociais, que discutem a emissão, a antecedência e o nível dos alertas", diz Mendiondo.
Ele afirma que essa estrutura se difundiu entre órgãos estaduais desde a criação do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), em resposta às 900 mortes, em 2011, devido a chuvas em Petrópolis —a cidade fluminense viveu nova tragédia em fevereiro de 2022 e, nos últimos dias, vem enfrentando alagamentos. O órgão é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
Para Mendiondo, porém, falta vontade política para reforçar os investimentos nos órgãos ligados à área e também em educação da população, o que é uma lacuna importante na gestão de riscos no país.
"Essa geração precisa entender como gerir risco de desastre de maneira mais pedagógica, desde o ensino fundamental. Senão estamos fadados a um investimento em tecnologia e operação, mas a população vai continuar na mesma porque não sabe viver com risco", afirma. "No Japão, por exemplo, há projetos-piloto nos quais se pretende que a decisão de evacuar [o imóvel] seja do cidadão."
Além disso, a ocupação de áreas de risco não é um problema novo no Brasil, assim como saneamento básico, gerenciamento de resíduos sólidos e o planejamento urbano como um todo.
"Tem que orientar o crescimento [das cidades]. A população ocupa certos locais porque mora distante, é difícil chegar ao trabalho, daí preferem morar perto, mesmo que mal. Isso é uma questão de transporte e habitação, por exemplo", diz Ehrlich.
Segundo Maria do Carmo Sobral, professora titular do departamento de engenharia civil e ambiental da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), a sobreposição de riscos exige políticas mais robustas, porque as cidades hoje formam ambientes pouco permeáveis e com sistemas de drenagem e recarga do solo sobrecarregados por lixo e esgoto sem tratamento.
"Se nos perguntarmos 'como chegamos aqui', temos uma população grande morando em áreas de morro, margens de rio e áreas públicas. As pessoas têm medo de deixar suas casas por conta de saques. Precisamos melhorar condições de vida, isso é trabalho dos governos federal, estadual e municipal", diz.
"É preciso um controle do uso do solo, mas que se dê alternativa. Não é simplesmente retirar. Essas pessoas vão morar onde? Isso é trabalho integrado e tem custo muito grande."
Para ela, a COP27, conferência da ONU sobre mudanças climáticas realizada em novembro, trouxe oportunidades de financiamento com a criação de um fundo de perdas e danos para ajudar países vulneráveis a enfrentar os impactos das mudanças climáticas.
"Com o presidente eleito Lula [PT], o mundo aguarda que o Brasil tenha uma postura diferenciada em relação a mudanças climáticas e particularmente em relação a desmatamento e incêndios, não apenas na Amazônia, mas no país todo", diz Sobral.
O Cemaden planeja ampliar as campanhas com ONGs, escolas e as defesas civis locais. "Todas as instâncias têm suas responsabilidades, mas a população pode se preservar com campanhas e instruções da Defesa Civil, observar rachaduras na parede ou movimentações de terra e inclinação de árvores", diz Regina Alvalá, coordenadora de relações institucionais.
Enquanto o número de mortes por desastres tem aumentado, chegando a 494 até junho deste ano, o recurso para combate a eles vem registrando quedas na última década, segundo o centro. O valor aprovado para 2022, de R$ 1,2 bilhão, é 81,5% menor do que o destinado em 2013, de R$ 11,6 bilhões (em valores corrigidos pela inflação).
Para José Marengo, que coordena as pesquisas em desenvolvimento no Cemaden, as políticas precisam superar os ciclos dos mandatos de governantes, já que os principais desafios são a formação continuada de agentes e a manutenção de redes entre as comunidades e as prefeituras.
"Muda governo, prefeito, chefe da Defesa Civil e precisamos treinar novamente, mas aí as chuvas já começaram. E as piores vêm aí, em janeiro e fevereiro", diz ele, que reforça que as mudanças climáticas tornarão esses problemas cada vez mais complexos.
"Temos o aumento da população e os cenários de [temperatura do planeta] 1°C ou 1,5°C mais quente."
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
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