Um dos biomas mais ameaçados pelo avanço do desmatamento, a mata atlântica corre o risco de perder algumas de suas camadas de proteção legal com o avanço de projetos de lei no Congresso que flexibilizam as restrições para exploração da floresta.
Um deles está na pauta da Comissão do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados para ser deliberado na quarta-feira (19). O texto propõe a flexibilização da exploração de áreas estratégicas para a sobrevivência do bioma, além anistiar mais de uma década de desmate ilegal.
A proposta do deputado Alceu Moreira (MDB-RS) altera a Lei da Mata Atlântica para abrir espaço para a exploração dos chamados "campos de altitude" —áreas essenciais para a captação de água e alimentação das nascentes dos rios.
Além do texto original, também foram apresentados dois substitutivos por deputados da bancada ruralista, José Mario Schreiner (MDB-GO) e Nelson Barbudo (PL-MT). Os parlamentares foram procurados nesta terça (18), mas não responderam até a publicação deste texto.
Ambos determinam que o marco temporal do desmatamento ilegal do bioma passe a ser 22 de julho de 2008, data de vigência do Código Florestal brasileiro —na prática, a mudança faria com que que não exista responsabilização pelo que foi derrubado antes disso.
A Lei da Mata Atlântica, vigente desde 2006, não determina de forma expressa um marco temporal.
Contudo, no início da década de 1990 foi publicado um decreto presidencial, com efeitos de lei, que proíbe a derrubada da floresta nesse bioma, o que, portanto, faz com que toda intervenção não autorizada posterior a isso seja ilegal.
Ambientalistas e advogados ouvidos pela Folha afirmam que, caso aprovada, a proposta ameaça ainda mais essa mata, que já viu, entre 2020 e 2021, o desmatamento crescer 66%, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Malu Ribeiro, uma das diretoras da SOS Mata Atlântica, explica que o bioma hoje é fragmentado em diversas áreas preservadas, mas com pouca continuidade, o que fragiliza a floresta e contribui para sua destruição. Além disso, a proximidade da mata com as cidades faz com que as mudanças nela tenham impacto direto nos espaços urbanos.
"Os campos de altitude são importantes para retenção de água. Se tiver uma mudança da atividade do solo [nessas áreas], vai impactar grandes bacias hidrográficas com águas subterrâneas que afloram em outras regiões. Os campos garantem uma perenidade das nascentes e dos rios. A diminuição dessas áreas potencializa os eventos extremos do clima, é muito grave", diz Ribeiro.
"A mata atlântica está sob duas ameaças, a do clima e outra das forças políticas que se mobilizam para atacar o único bioma que tem uma lei específica de proteção", afirma ela.
Suely Araújo, advogada, ex-presidente do Ibama e diretora do Observatório do Clima, lembra que a mata atlântica tem características peculiares que fazem com que o Código Florestal, apenas, não baste para sua preservação. E acrescenta que a existência de uma lei específica para o bioma está prevista na Constituição.
"A lógica da lei da mata atlântica é distinta, você analisa o estágio da vegetação —se é primária, secundária etc.— e, conforme estágio da vegetação, você torna as restrições mais rigorosas ou não. Então não é que não se aplica o Código Florestal para a mata atlântica, se aplica ainda mais uma camada de lei", explica ela.
O projeto de lei, se aprovado, permitiria o "corte e a supressão de vegetação" nos campos de altitude para atividades "agrossilvopastoris" em todos os estágios da vegetação. Permitiria ainda a anistia do desmatamento nessas regiões.
"Uma parcela muito significativa da população [cerca de 70% dos brasileiros] está no bioma mata atlântica e depende dele, por exemplo, para ter água. As nascentes que abastecem as grandes capitais na faixa litorânea são mantidas em função de remanescentes de mata atlântica. A importância é prática, além da preservação da biodiversidade, claro", afirma João de Deus Medeiros, coordenador da Rede de ONGs da Mata Atlântica.
O relator do tema na Comissão de Meio Ambiente, Nilto Tatto (PT-SP), emitiu parecer contrário à aprovação dos projetos. Segundo ele, existe "a necessidade de manter o atual status de conservação conferido aos campos de altitude pela Lei da Mata Atlântica".
Na sessão de quarta, a comissão pode decidir seguir o seu voto, acatar algum dos substitutivos apresentados por deputados ligados à bancada ruralista ou então ainda optar por um novo relatório —o que ainda permite que o texto seja aprovado.
A proposta tramita de forma conclusiva, ou seja, se for aprovada na comissão de Meio Ambiente e depois, pela de Constituição e Justiça, não precisa ser submetida ao plenário e vai direto ao Senado Federal.
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