A política de agrotóxicos do Brasil está sendo adaptada aos interesses do lobby agroindustrial em detrimento dos direitos humanos, e o chamado PL do Veneno (PL 6.299/2002) agravaria ainda mais essa situação, avalia o relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para tóxicos e direitos humanos, Marcos A. Orellana.
Professor de legislação ambiental internacional na Universidade George Washington (EUA) e consultor de vários organismos e convenções das Nações Unidas sobre o tema, ele encabeça o pedido de nove especialistas de diferentes áreas da entidade para que os senadores brasileiros rejeitem o projeto.
Aprovado às pressas em fevereiro na Câmara dos Deputados por 301 votos a favor e 150 contra, o projeto de lei entrou na pauta do Senado e fez soar o alarme de organizações da sociedade civil e pesquisadores ligados a saúde, ciência, alimentação e meio ambiente.
A petição dos especialistas da ONU afirma que o projeto de lei representa um "retrocesso monumental" para o Brasil no campo dos direitos humanos e que sua adoção, além de enfraquecer as regulações do governo no uso de pesticidas, exporia pessoas de todas as idades às "potenciais consequências devastadoras que substâncias perigosas representam para a saúde e o bem-estar".
O texto afirma que, ao contrário, o Brasil deveria seguir as diretrizes e os parâmetros da maior parte dos países da OCDE, grupo de nações ricas no qual o país pleiteia vaga há anos.
Hoje, o Brasil permite que seus alimentos tenham resíduos de pesticidas até mesmo centenas de vezes maiores que aqueles tolerados em frutas, verduras e grãos na União Europeia, por exemplo.
"Para café e cana-de-açúcar, o Brasil permite níveis dez vezes superiores aos da UE; para a soja, são 50 vezes os da UE. Para maçãs e brócolis, 200 vezes os da UE. Para alface, 600 vezes", alerta Orellana, citando estudos comparativos do setor.
Além disso, diz o relator especial da ONU, dos dez agrotóxicos mais vendidos no Brasil em 2020, estão proibidos na União Europeia por seus riscos à saúde humana ou aos ecossistemas. "O uso excessivo dessas substâncias interfere na garantia de direitos à vida, à saúde, à alimentação e à água, entre outros", diz o advogado especialista em meio ambiente.
Segundo Orellana, a exposição a pesticidas perigosos aumenta a mortalidade infantil e causa uma ampla gama de distúrbios de saúde, como câncer, infertilidade e abortos, além de má-formação física de fetos e deficiências em seu desenvolvimento neurológico. É algo que afeta agricultores, trabalhadores, comunidades no campo, povos indígenas e quilombolas.
Um exemplo é o glifosato, pesticida mais usado no país que ajudou o Brasil a se tornar líder mundial na produção de grãos.
Ao mesmo tempo em que seu uso aumentou desproporcionalmente o PIB (Produto Interno Bruto) dos estados produtores de soja em relação ao restante do país, fez aumentar também em 5% a mortalidade infantil em municípios que recebem água de regiões do Sul e Centro-Oeste onde predomina a cultura da soja. O dado foi revelado por estudo de pesquisadores da Universidade Princeton (EUA), da Fundação Getulio Vargas e do Insper.
"O Brasil deve banir o uso de glifosato de seu território, como fizeram tantos outros países depois que a Organização Mundial da Saúde apontou para o seu potencial carcinogênico [de causar câncer]", diz Orellana.
"O país deve reconhecer que a saúde de sua população é sua prioridade número um. A produção de alimentos e o crescimento econômico não legitimam os abusos e violações de direitos humanos previsíveis decorrentes do uso excessivo de pesticidas."
O PL 6.299 altera a lei 7.802, aprovada em 1989, que trata, desde a pesquisa até a comercialização, os registros e a fiscalização de agrotóxicos.
Para a pesquisadora Larissa Mies Bombardi, professora do departamento de geografia da USP, há muitos pontos do projeto que merecem mais discussão.
Entre os mais problemáticos, diz ela, está a alteração de parte do artigo 3º, que proíbe o registro de substâncias que revelem características teratogênicas (que alteram embriões e fetos), carcinogênicas ou mutagênicas (que causam mutação no DNA).
"A proposta de texto insere a expressão 'substâncias que causam risco inaceitáveis', termo que abre uma brecha jurídica incontornável porque a própria lei não define o que é inaceitável e o que não é", diz ela.
Bombardi também aponta para a proposta de concentrar a emissão de autorizações para novas substâncias no Ministério da Agricultura. No modelo atual, a pasta divide essa responsabilidade com os ministérios da Saúde, por meio da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e do Meio Ambiente, a partir do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
A especialista também cita mudanças nas autorizações temporárias de substâncias. O PL, entre outras medidas, confere autorização automaticamente às substâncias cuja análise o governo não conseguir fazer no prazo estipulado.
A pesquisadora menciona ainda a falta de alterações importantes da legislação brasileira já recomendadas ao país pela própria ONU, como o fim da pulverização aérea de pesticidas, uma prática banida na União Europeia desde 2009.
Orellana destaca que "o direito de viver em um ambiente não tóxico é um elemento substantivo do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável, que é protegido pela Constituição Brasileira e foi reconhecido pelo Conselho de Direitos Humanos em outubro de 2021 na sua resolução 48/13, à qual o Brasil votou a favor".
Além do relator especial para tóxicos e direitos humanos, subscrevem à petição peritas do Grupo de Trabalho da ONU sobre discriminação contra mulheres (Melissa Upreti, Dorothy Estrada Tanck, Elizabeth Broderick, Ivana Radači e Meskerem Geset Techane), o relator especial sobre o direito à alimentação (Michael Fakhri), o relator especial sobre os direitos dos povos indígenas (Francisco Cali Tzay) e a perita independente sobre os direitos humanos pelas pessoas idosas (Claudia Mahler).
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