Cerca de 2% das propriedades rurais da Amazônia e cerrado são responsáveis por mais da metade, 62%, do desmatamento ilegal dos biomas. Concentrada numa minoria de fazendas, essa destruição pode estar contaminando cerca de 20% da soja e pelo menos 17% da carne exportadas para a UE (União Europeia), segundo estudo publicano nesta quinta (16) na revista Science.
A pesquisa "As maçãs pobres do agronegócio brasileiro" coincide com um momento em que o Brasil sofre grande pressão de mercados internacionais pelo desmatamento crescente na Amazônia.
Os pesquisadores analisaram dados da Amazônia e do cerrado, os dois biomas mais ameaçados pela expansão da fronteira agrícola brasileira e com as maiores taxas de desmatamento anual.
Em 12 meses, entre agosto de 2018 e julho de 2019, foram desmatados mais de 10.000 km² na Amazônia, segundo os últimos dados do Prodes, programa do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais ) que mede o desmate anual. Foi o recorde na década.
O cerrado também sofre com elevados níveis de destruição. Na última medição feita pelo Inpe, também referente ao período entre agosto de 2018 e julho de 2019, foram registrados 6.483 km² destruídos, valor alto considerando que o bioma tem quase metade do tamanho da Amazônia.
Para chegar à proporção de exportações possivelmente contaminadas com desmatamento ilegal, os pesquisadores analisaram dados de desmatamento, de uso da terra e informações de 815 mil propriedades rurais do CAR (Cadastro Ambiental Rural). Também observaram documentos de transporte de gado para rastrear movimentação entre fazendas e abatedouros.
Segundo Raoni Rajão, pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e um dos autores do estudo, cerca de 20% da produção possivelmente ligada a desmatamento ilegal (e menos 20% das propriedades rurais com áreas destruídas possivelmente ilegalmente após 2008) já é suficiente para contaminar as cadeias agropecuárias.
“Há um conjunto muito concentrado de imóveis problemáticos. Isso reforça a possibilidade de acabar com o desmatamento”, diz Rajão. “É possível acabar com o desmatamento sem destruir o agro. Vinte por cento não é pouco, mas não vai paralisar a produção.”
O pesquisador da UFMG diz que os dados, mais uma vez, apontam concentração das ilegalidades em médias e grandes propriedades.
De acordo com ele, o trabalho mostra o tamanho do problema e aponta a possibilidade de solucioná-lo. “Mas se continuarmos a tapar o sol com a peneira, corremos o risco de prejudicar a maior parte dos produtos”, afirma Rajão.
As queimadas de 2019, as ações do governo Bolsonaro e o crescimento constante do desmatamento na Amazônia têm alertado o mercado internacional, que passou a pressionar o Brasil quanto ao compromisso do país com a preservação ambiental.
Recentemente, 29 fundos de investimento e pensão, responsáveis por US$ 4,1 trilhões (mais de R$ 20 trilhões), enviaram uma carta aberta a sete embaixadas brasileiras na Europa, no Japão e nos EUA expressando preocupação com a situação ambiental e com o pedido de uma reunião para discutir o desmatamento na Amazônia.
Na última semana, o vice-presidente e chefe do Conselho da Amazônia, Hamilton Mourão, se encontrou com investidores. Após a reunião, o diretor de investimentos responsáveis do Nordea Asset Management, Eric Pedersen, afirmou que ainda estava pendente um plano diretor ou estrutura para conseguir controlar o desmatamento a médio e longo prazo.
A crescente destruição da Amazônia também tem gerado uma ameaça de bloqueio do acordo entre Mercosul e União Europeia.
Além do mercado europeu, a China, outra grande importadora do agronegócio brasileiro, também tem sinalizado uma crescente preocupação com cadeias de produção.
Já há mecanismos para impedir a compra de grãos e carne produzidos em áreas de desmatamento. A ação de mais sucesso quanto a isso é a moratória da soja, um acordo que proíbe o comércio, a aquisição e o financiamento de grãos produzidos em áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia após julho de 2008. Pesquisas apontam que a moratória foi efetiva para reduzir o desmatamento ligado a plantações de soja.
A moratória, contudo, só leva em conta as áreas de propriedades amazônicas (não de outros biomas, como cerrado) efetivamente envolvidas com a produção de soja. Já o estudo publicado na Science trata do desmatamento ocorrido no imóvel rural como um todo. Os dados da pesquisa apontam cerca de 11 milhões de toneladas de soja potencialmente contaminadas com desmatamento ilegal.
Cerca de 41% das importações do grão pela União Europeia são oriundas do Brasil. Segundo os cálculos dos pesquisadores, cerca de 1,9 milhão de toneladas de soja produzida em propriedades com desmatamento ilegal (0,5 milhão só na Amazônia) podem ter ido parar em mercados europeus.
Segundo cálculos dos pesquisadores, as importações de soja da União Europeia provenientes de áreas brasileiras com desmate legal e ilegal, entre 2009 e 2017, podem ser indiretamente responsáveis por emissões de carbono na casa de 58 milhões de toneladas.
Há uma dificuldade a mais na contaminação de desmate ilegal na cadeia de soja. Grãos de diferentes produtores são misturados para estocagem e, dessa forma, a soja de uma fazenda com desmate ilegal pode acabar misturada a produtos de áreas que respeitam a legislação.
Algo semelhante acontece com o gado. Os animais normalmente passam por diferentes propriedades no processo de engorda até chegarem aos abatedouros.
Observando dados de propriedades e abatedouros, os pesquisadores concluíram que, só em 2017, quase metade da carne exportada de Mato Grosso e Pará para a União Europeia pode ter sido contaminada, direta ou indiretamente, por desmatamento ilegal.
Os pesquisadores também olharam diretamente para a origem, em 2017, de cerca de 4 milhões de cabeças de gado que chegaram a abatedouros. Desse total, estimam que cerca de meio milhão vieram diretamente de propriedades com destamento potencialmente ilegal.
Entre 25% e 40% da carne importada pela União Europeia vem do Brasil.
Os pesquisadores também verificaram que, a partir dos dados do CAR analisados, cerca de 45% das propriedades rurais da Amazônia não têm o mínimo de reserva legal exigida pelo Código Florestal ou não respeitaram as regras de conservação de APPs (Área de Preservação Permanente, que são topos de morro e as áreas próximas a corpos de água). No cerrado, cerca de 48% das propriedades não respeitam essas regras.
Rajão disse que os dados citados acima e nível de desmatamento ilegal no cerrado chamam a atenção. "Não estão sendo preservadas mesmo áreas com menor exigência de reserva legal", diz.
A reserva legal é uma área dentro das propriedades rurais que deve ser preservada, sem derrubada da vegetação natural. Dependendo do bioma, a porcentagem de área varia de 20% até 80%. Na Amazônia, proprietários devem manter 80% da área com vegetação nativa e no cerrado 35%.
Procurada, a Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) afirma que o estudo deixa lacunas que comprometem a análise do resultado. A associação diz, por exemplo, que a pesquisa não indica a porcentagem de áreas identificadas com desmatamento ilegal que estão embargadas.
"A soja produzida em áreas desmatadas ilegalmente, embargadas por órgãos de fiscalização ambiental e incluídas na lista de trabalho escravo não entra na cadeia produtiva do setor. Essa é a forma como os exportadores podem garantir a legalidade da origem da soja e o cumprimento da Moratória da Soja na Amazônia", afirma a Abiove, em nota.
A associação ainda diz que a "responsabilidade sobre fiscalização das áreas sem soja não pode ser transferida para a indústria. Se a tecnologia para esse monitoramento já está disponível e os dados do CAR comprovam de forma objetiva que há desmatamento ilegal nas áreas que não fazem parte da cadeia da soja, cabe aos órgãos competentes a notificação e embargo das propriedades".
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