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Memoria da Independéncia: Marcos e Representagoes Simbélicas RESUMO Este artigo procura resgatar 0 sentido histérico des aconrecimentos gue definiram o Sete de Setembro como 0 marco fundante da navionalidade brasileira, Nesse sentido, analisa a dimensda simbélica da construgdo dessa memiria, buscando idensificur, na forma de sua representaciio ¢ asravés-da endlise critica de documentagio referente e das interpretugdes historiagrificas, as can- dicionantes politicos que encaminharam « definigau do Grito do Ipiranga como e ato inconteste de proclamacdo da Inde~ pendéncia de Brasil Maria de Lourdes Viana Lyra* ABSTRACT This paper seeks to recover the histarical meaning of the facts that esta- blished the 7 af September as the main milestone of the foundation of the Brazi- lian nationality. The symbolic dimensions of the construction of this memorial date are analyzed, antempting to identify, through a critical analysis of the con- cerned dacuments und of the histo~ ringraphical interpretations. the political conditionings which led to the definition of the “Grito do Ipiranga” as the un- chaillengeable act of proclamation of the independence of Brazil . Em estudo anterior sobre os elementos definidores do processo de formagao do Estado mondrquico imperial no Brasil, destacamos 0 caréter utépico do projeto politico elaborado, desde finais do século XVII, pelo reformismo ilustrado luso-brasileiro com 0 objetivo de, a pactir das imen- sas potencialidades do Brasil, fundar um poderoso império portugués, considerando seus dominios no lado ocidental do Atlantico. Nesse estudo, observamos o quanto a particulatidade da vinculagdo Brasil/Portugal, no contexto das relagdes coloniais, influiu no cardter diferenciado do proces- so de Independéncia da América portuguesa em relagdo aos outros mode- los de independéncias coloniais ¢, conseqiientemente, na génese da nova nacionalidade - a brasileira. Percebemos, enti, que a adogao inicial de um modelo emancipador - que nfo implicava ruptura com a “mde-pd- trig”, pelo contrério, baseava-se no pressuposto da unidade nacional luso- brasilica - resultou no encaminhamente de uma politica de aproximagao, e *Professora da Universidad: Federal do Rio de Janeire. Rev. Bras. de Hist. | §. Paulo | v.15,n°29 | pp. 173-206 1995 nao de rejeigao, entre os dois mundos e, ainda, o quanto este movimento. singular influiu no desenvolvimento do Processo de construgao da ordem nacional brasileira. Alguns pontos foram entio ressaliados como merecedores de um estudo mais apurado dessa conjuntura inicial da histéria nacional, para melhor apreensdo do conhecimento sobre os elementos constitutives da sociedade brasileira. A meméria do acontecimento fundador da nacionali- dade brasileira, por exemplo, constitui um desses pontos. A identificagao do fato do Sete de Setembro como marco definidor da Independéncia do Brasil, e a representagiio dessa meméria tanto na historiografia, como nas imagens alegoricas produzidas em pinturas - umas mais, outras menos céle- bres,?- revelam discordancias incoeréncias em aspectos essenciais, indi- cando a necessidade de reviséo; de uma apreciacdo mais atenta, de um tratamento diverso sob novas perspectivas. Aos estudiosos desse periodo, ¢ intrigante a anséncia, na documentagao referente, de registros sobre ¢ Grito do Ipiranga no Sete de Setembro de 1822 como sendo o ato de proclamagao da Independéncia. Nesse sentido, a tarefa que no momento nos propomos ¢ iniciar uma discussio sobre a dimensio simbélica dessa baliza, ou seja, buscar na forma de sua representagao os condicionantes politicos que encaminharam a definigio do Grito do Ipiranga como marco fundante da nacionalidade brasileira. A discussio sobre representagdes simbdlicas da nacionalidade pode fornecer elementos preciosos de roflexio sobre 0 Processo histérico em geral e, particularmente, maior compreensao sobre as estruturas de pensa- mento da sociedade. A anilise do sentido da criagdo de formas ou imagens que compdem os simbolos identificadores de uma determinada sociedade amplia o. campo de estudo sobre os seus préprios componentes definidores. Considerar igualmente os simbolos ¢ as realizagBes as mais expressivas da tradigdo nacional, ¢ os instrumentos de formagao desta tradigao signifi- ca alargar as possibilidades de reflexo sobre a constituigao da identidade politica da nago.’ No caso da discussao sobre o sentide hi t6rico do Grito do Ipiranga como o marco fundador do Estado-Nago brasileiro, a refle- xiio sobre sua dimensao simbélica se mostra particularmente importante Por permitir uma melhor apreensao do nfvel das divergéncias entre as dife- renles concepgoes de sistema de governo representativa e de soberania nacional, o que amplia sobromaneira o conhecimento sobre o sentida dos conflitos entdo existentes na sociedade em formagao, Ocstudo distanciado do enfoque da ambigiiidade e, sobretdo, atento as estruturas de pensamento definidoras da linha de ago politica dos prin- 174 cipais agentes envolvidos no processo de Independéncia, permite novas possibilidades de andlise sobre os componentes formadores do Estado ¢ da ordem nacional brasileira. O olhar mais apurado sobre o perfodo de engendramento dessa nagdo revela facetas insuspeitas que exigem novas investigagao no cendrio dos acontecimentos correspondents, ¢ este se apre~ senta rico em sugestées. ACONJUNTURA HISTORICA DA INDEPENDENCIA Atuando o Brasil, desde 1808, como sede da Monarquia portugue- 8a € centro inconteste do império atlintico portugués - visto entao pelos contempordneos luso-brasileiros com promessas de grandioso futuro ¢, por isso, sempre referide como poderoso império - os grupos sociais de domi~ nagiio, liderados sobretudo por aqueles origindrios das provincias cireunvizinhas da Corte do Rio de Janeiro, cuidaram, desde o inicio, de centrar a acdo politica no sentido de manter 0 modelo de emancipacéo entiio adotado. Ou seja, o modelo que atendia & concep¢ao de Reino Uni- do, institufdo em 1815, 0 qual, para os contemporfineos, constitufa a “Car- ta Magna da Emancipugdo do Brasil". A elevagao do Brasil a Reino, que extinguia oficiaimente o estatute colonial - embora abolido, de fato, desde 1808, quando se libertou das amarras do exclusive comercial ¢ se trans- formou em sede do governo imperial -, e a sua conseqiiente emancipagao significava essencialmente: liberdade de comercializagio e de defini¢ao de suas prioridades, fossem elas de ordem econdmica ou politica, desde que identificadas com os interesses basicos da Monarquia portuguesa ¢ suas decisdes tomadas pelos cortesiios pertencentes A aristocracia lusa. que absolutamente nao encerrava o sentido de ruptura com a “ndae-pd- tria” ou seja, com o Reino de Portugal.‘ Noentanto, a revolucao liberal que rebentou em Portugal, em agos- to 1820, constituiu golpe mortal aesse modelo de emancipagdo do Reino do Brasil. Desencadeada justamente em virtude da situagao de pentiria do velho Reino - provocada pela estagnagao do comércio ¢ da indiistria apés a perda do papel de sede da Monarquiia - essa revolugao, liderada pelos portugueses da Europa, derrabavao absolutismo monérquicoe reivindica- va a redefinig¢do dos papéis atribuidos as partes componentes do Estado portugués, como forma de luta pela regeneragdo do Reino evropeu &, con- seqiientemente, da nagao portuguesa. Ora, o projeto de construgao do im- pério atlantico, que até entio vinha sendo posto em andamento pelo 175 reformismo ilustrado apoiava-se, sobretudo, no “sacrossanto principio de unidade” entre as quatro partes do mundo Portugués, ou seja, na idéia de unidade do Estado monérquico ¢ de identidade do povo portugués, uni- dade essa construida através do sentimento de pertencimento & Monarquia lusa. No ideal de unidade nacional do Estado que abrangia os dois Jados do Atlntico repousava, justamente, esse Projeto politico concebido soba perspectiva de um venturoso destino Para a nagao lusitana. Tanto a trans- feréncia da sede do governo portugués para 0 Rio de Janeiro - projeto longamente acalentado mas s6 realizado face a guerra na Europa que ame- agava extinguir o Estado ¢ a Monarqia portuguesa -, como a oficializago da preeminéncia do Reino do Brasil como sede de governo ¢ centro do império atlantica, significaram decisGes politicas ancoradas no pressupos- to da “unido natural” existente entre as partes do mundo portugués o que ampliava consideravelmente o principio da coexisténcia de Estados iguais unidos pelos interesses reciprocos e pelos lagos de solidariedade nacional. A revolugio de 1820 fazia desmoronar esse quadro tesrico orientador da politica encaminhada pelo reformismo ilustrado. A politica de aliancas pretendida esbarrara na dificuldade de conciliar interesses opos- tos. Isto porque, face a inversdo acontecida em 1808 - que retirara de Lis- bea o papel de sede da monarquia e extinguira exclusive comercial do grupo mercantil de Portugal, o que colocava a antiga metr6pole na condi- ao de uma simples provincia, ou mesmo de “coldnia do Brasil” -, eviden- clava-se a dificuldade de afirmagio da idéia de “unido natural” existente entre as partes do mundo portugues ¢ furdada numa relago de parceria que. em reciproca vantagem, construiria a prosperidade de cada parte ¢ elevatia a nagio portuguesa ‘ao maior auge”. Esse era o pressuposto te6- rico bisico do projeto politico em execugao mas, sobretude para o velho Reino portugués, a parceria ¢ 08 frutos do Reino Unido de Portugal, Bra- sil ¢ Algarves estavam longe de atender aos seus interesses imediatos, 0 que explica a reagdo contra o sistema de monarquia absolutistaea propos- tarevolucionaria de adogao de um governo representativo, através do qual ‘OS gtupos Mercantis € a aristocracia agrdria pudessem alterar as bases do império atlantico lusitano. Reunidos em Cortes, a partir de janeiro de 1821, para deliherarem sobre @ organizagio da Monarquia Constitucional a ser instalada ¢ sobre.os novos caminhos que levassem a prosperidade das rela- ges comerciais entre Portugal e o Brasil, a representagao politica do ve- tho Reino colocava em destaque a discussiio sobre os reais interesses naci- Onais os quais, para cles, consistiam essencialmente naqueles que promo- vessem a regeneragdo das forgas produtivas do Reino eurapeu.’ 176 Oconfronto entre interesses opostos forgou a opgao, por parte dos setores dominantes do Reino do Brasil, pela ndependéncia, ou seja, pela separagao “absoluta”, “total”, “definitiva”, era relagao 2 “mée-patria”, ou seja, Portugal. Rompia-se, assim, com o modelo de emancipagdo até entio adotado, e decidia-se pela ruptura da unidade luso-brasileira, isto é, pela irdependéncia do Reino do Brasil. Em defesa da causa do Brasil, arregimentaram-sc os representantes das “provincias coligadas” - Rio de Janeiro, Minas Gerais ¢ Sao Paulo. No inicio, bastante hesitantes, restrin- gindo-se a denunciar a atitude “impolftica” das “maquiavélicas” ¢ “desorganizadoras” Cortes Gerais e Constituintes de Lisboa, que delibe- ravam sem a “manifestagao geral da nagdo” e, ainda, teivindicando a condigao de detentores da nacionalidade portuguesa: “sempre fomos por- tugueses € queremos ser irméos dos da Europa”.* Depois, a partir de janeiro de 1822, cada yez mais incisivos: ao se arregimentarem para a ficada do principe regente, D, Pedro, no Brasil; ao conferirem ao mesmo, 0 titulo de “Defensor Perpétuo do Brasil”; ao convocarem uma Assembiéia Constituinte para deliberar especificamente sobre o Reino do Brasil; ao proclamarem a “independéncia politica-constitucional” do Brasil ¢ de- cretarem resisténcia militar As hostilidades de Portugal; ao comunicarem aos “brasileiros”, que jd eram “um povo soberano” ¢ que ja havia sido “dado o grande passo da vossa independéncia”; ao anunciarem 3s “na- Ges amigas”, que o Brasi) proclamava “a face do universo a sua inde- pendéncia politica.’ Deve-se, no entanto, anotar que, em todas estas manifestag6es, se explicitava a intengdo de ruptura da unidade, ou seja, de declaragao de independéncia face, apenas, as Cortes Constituintes, nao.em relagdo ao rei ot 4 nacionalidade portuguesa. Somente nos meses finais de 1822, quando o confronto entre os interesses dos dois reinos atingiu o auge, exacerbando o debate entre as respectivas representagdes em torno da quest4o da permanéncia do Brasil no status de reino emancipado, o discurso passou a ser mais convincente, denunciando a determinagio pela ruptura da unidade luso-brasileira, ou seja, pela definitiva ¢ absoluta inde- pendéncia do Reino do ultramar. Ocasides diversas foram entio referidas como marcos definidores da proclamagao da Independéncia. Em Londres, o jornal Correio Brasiliense publicava, cm outubro de 1822, 0 Decreto de 1° agosto apon- 1ando-0 como 0 registro inconteste da declaragao de Independéncia, Nesse decreto D. Pedro explicitava que, em face do Brasil jé ter “proclamado a sua independéncia politica-institucional”, havia convocado “por voto undnime uma Assembléia Constituinte” e, por considerar 0 rei D. Joao VI 177 “in carcere constitutus”, declarava inimigas as tropas que, vindas de Por- tugal, pretendessem desembarcar nos portos do Brasil. Instruir ainda as autoridades civis ¢ militares sobre as estratégias de vigilncia da costae de fortalecimento das linhas de defesa.* E, em anélise complementar & publicagao desse decreto, 0 Correio Brasiliense, tecia consideragdes ilustrativas sobre o sentido da agao decorrente sobre a real intengiio das diretrizes politicas no Brasil: “S.A.R. chamou a si um Conselho de Estado (...) dat expediu um decreto para convocagao de uma Assembléia Constitu- inte e Legisiativa; ¢ finalmente declaron a Independencia do Brasil por um decreto de I° de agosto (...) Em uma pala- vra o Brasil pode e quer ser independente; sua Indepen- déncia esté declarada, e é jd de fato uma nagde livre e sobe- rana (...) para determinar sua forma de governo, e isto ndo por um comege ilegal contra a autoridade do soberano e governo existente, como sucedeu em Portigal, mas com uma legalidade inaudita na histéria das nagées, porque é 0 mes- mo principe que os rege, e 0 delegado do seu rei, por ele espontaneamente nomeado, quem faz convocagfo, @ quem Prope ao povo nova constituigao”.” (grifo nosso) Observemos que Hipslito da Costa além de considerava esse de- creto como o momento definidor da Independéncia, ainda traduzia com clareza a linha basica do pensamento corrente dos bomens da Hustragdo acerea dos principios de representacao, de legitimidade constitucional ¢, sobretudo, de soberania. A atitude dos revolucionérias de Portugal, que deslocava a soberania da pessoa do rei para a nacho, passando esta a se representar através dos seus representantes, era veementemente criticada pelos homens deo reformismo ilustrado, que as consideravam ilegais andrquicas. E significativo 0 fato do jornalista no ter feito mengao a0 “manifesto aos brasileiros”, datado igualmente de 1° de agosto de 1822 - documento bem mais divulgado pela historiografia - que também falava da Independéncia politica do Reino do Brasil, no entanto, resguardava ain- da a permanéncia dos “vinculos da fraternidade portuguesa." No Rio de Janeiro, o Regulador Brasileiro, periédico subvencio- nado pelos Andradas ¢ redigido por Frei Francisco Sampaio, afirmava, também, em outubro de 1822, a determinagio pela Independéncia e conclamava aos brasileitos “das provincias do Norte e do Sul do Brasil” 178 a ndo esquecerem, jamais, o lema patridtico: “Independéncia, 0 nosso imortal Pedro, ou a morte”. Apontava, noentanto, outro documento como, explicitador da declaragao de Independéncia, nao deixando de registrar momentos outros como definidores da ago de um Estado independente: “Deveria aparecer a majestoso templo da Constituigdo de- baixo dos troféus de sua Independéncia politica. Dia 3 de junho, quando sairds da nossa lembranca! Ak! a gratidéo nunca pode deixar de ser a virtude dos brasiteiros; 0 dia 12 de outubro mostrard a Europa e ao universo os pitblicos tes- temunhos de nosso reconhecimento; as nagdes que nos vi- tam oprimidos (...) Vés desejdveis que se proclamasse a Independéncia do Brasil ¢ 0 manifesto as nagées apareceu proclamando essa independéncia”."' (grifo nosso) Ora, 0 “Manifesto as Nagdes”, de 6 de agosto, que proctamava “‘é face de universe” aindependéncia politica do Brasil, reivindicava ao mesmo tempo a condigio de “reino irméo” ea permanéncia da “justa reunido de todas as partes da monarquia debaixo de um s6 rei”. Alids, essa dubie- dade do discurso quanto a decisiio de ruptura completa da unidade luso- brasileira constitui um outro dado que, ao lado da inexisténcia de referén- cia ao Sete de Setembro, mais chama a atengio nos estudos sobre esta conjuntura. O olhar mais atento aos registros da imprensa ou aos discursos politicos sobre‘os acontecimentos de 1822, e sobre asirepercussdes ocorri- das na sociedade da época, revela, nio apetias omissSes ou desencontros freqiientes quanto ao marco definidor de ruptura da unidade luso-brasilei- ra, isto €, sobre a data precisa da Independéncia, mas evidencia ainda o completo siléncio quanto ao Sete de Setembro como o marco definitivo da proclamagao da Independéncia, representacdo que se tornaria no simbolo maior da meméria nacional. O Espelho - jornal de citculagao no Rio de Janeiro & ligado aos grupos do governo, considerado por isso érgdo dulico - registrou, em 13 de setembro, “a entrada que fez na cidade de Sao Paulo o serenissimo Sr. D. Pedro de Alcantara (...) onde entrou na manha do dia 25 (agosto) dia por certo inuito memordvel ”, descrevendo as alegorias dos majestosos arcos colocadas nas ruas e pragas da cidade, num dos quais destacava-se “a figura de paulicéia em atitude de jibilo", ou dos monumentos: um “que escudava as armas do Reino-Unido” ¢ outro que ostentava as “figu- ras da lei, da liberdade, da felicidade e da paz”. Noticiava ainda sobre as 179 ceriménias religiosas (7e Deum), os fogos de attificio ¢ os espetaculos noturnos de dpera, onde 0 principe “sempre que entra € recebido pelas espectadores com aplausos, como merecem sua real pessoa ¢ altas qua- lidades”,"° Ora, na noite seguinte, 14 dé setembro, chegava D. Pedro ao Rio de Janeiro de volta de Sao Paulo e, ao registrar; dias depois, o “maior Jabilo” pela chegada do principe, o mesmo jornal, que se detivera na des- crigio detalhada da entrada majestosa do principe na cidade de Sao Paulo, simplesmente nao fazia nenhuma mengio ao fato marcante do Sete de Se- tembro, Restringia-se a felicitar os “honrados habitantes desta capital pela felictssima chegada do nossa augusto principe regente”, ¢ a regis- tear “as mais patriotas demonstragées de inabaldvel fidelidade dos for- tes, e constantes paulistas” a0 principe regente.'4 Deixava de se referir, inclusive, a “proclamagdo aos pautistas”, de 8 de setembro, na qual o Principe regente, fazendo confissio do “amor que eu consagro ao Brasil em geral ¢ a vossa provincia em particular”, confidenciava: “Quando cu, mais que contente, estava junto de vés, che- gam noticias que de Lisboa os traidores da nagao, os infa- mes deputados pretendem fazer atacar o Brasil, e tirar-the do sew seio 0 sew defensor Cumpre-me, como tal, tomar to- das as medidas que minha imaginagdo me sugerir; e para que estas sejam tomadas com aquela madureza que em tais crises se requer sou obrigado, para servir ao meu idolo, 0 Brasil, a separar-me de vés (0 que muito sinto), indo para o Rio ouvir meus conselheiros e providenciar sobre negécios de tao alta monta”5 Apés assegurar 0 quanto “minka alma sofre” por separar-se dos “meus paulistas, a quem o Brasil eudevemos os bens que gozamos”, st despedia aconselhando-os na preservagao da “unido entre vds” como o primeiro ¢ tinico “dever de todos os bons brasileiras” no momento em que a patria se encontrava “ameagada de sofrer uma guerra”. E conclufa ‘© manifesto com a recomendacio da adoclo, por todos, do lema “Inde- pendéncia ou morte” como divisa do Brasil sem, em nenhum momento, fazer referéncia ao acontecimento da tarde anterior, as margens do Ipiranga, Ao contrario, explicitava que, em vista das noticias chegadas de Lisboa, que indicavam as pretensdes das Cortes - observemos que nao se refere a decretos, ou qualquer resolugao ja tomada -, 0 momento exigia “madure- za” © cumpria-Ihe yoltar & Corie para, junto a0 ministétio, tomar as medi- das cabfveis.. 180. Dias depois, em 20 de setembro, o mesmo jornal, O Espelho, inici- ava a matéria com o lema “/ndependéncia ou morte! Eis 0 grito acorde de todos os brasileiros”, na qual, apds acusar as Cortes de terem sacrifi- cado, em virtude do “seu orgulho e da sua ambigdo, a uniao dos dois hemisférios, ¢ os estreitos lagos de parentesco ¢ amizade”, € teagir com veeméncia aos “decretos injustos e cruéis” de uma “facedo arragante” que dominava o “Congresso da nacdo”, afirmava ter o Brasil finalmente acordado do “sew letargo”, percebido nao ser possivel “uma nagdo rica ser escrava de uma pobre, um terreno imenso receber leis de um peque- no circulo” e, resolvido “na sua dignidade, sacudir 0 peso que o opri- mia”. Entéo: “O perpétuo defensor do Brasil conheceu.que eram justos os clamores do povo fiel que preferia um inimigo declarado @ wm amigo traidor; que a excessiva paciéncia inculcava fraqueza; que era tempo de desenvolver os reciirsos que 0 patriotismo oferece contra a escravidao; pos-se a frente do Brasil, que udora, ¢ um grito universal proclamou - Inde- pendéncia ou morte”.'6 Observemos que 0 texto jd revelava a firme decisao pela ruptura da unidade luso-brasileira, mas nao indicava o momento preciso da procla- magao anunciada. Ao contrério, manifestava o sentido real do movimento. hist6rico em prol da Independéncia, movimento este marcado pela diivida em relagdo A conveniéneia, on niio, da decisao de ruptura da unidade luso- brasileira. E pertinente anotar que esse mesmo texto trazia, em anexo, uma proclamagdo de adesio da provincia de Pernambuco “é santa causa do Brasit”, para grande “satisfagdo” do editor, para quem “unido e cons- tancia so nossas éncoras” ¢ 0 principe D. Pedro “a nossa firme espe- vanca”, A postura independente de Pernambuco em relagao as diretrizes da Corte do Rio de Janeiro ov 4s Cortes de Lisboa - mas defensora ardente dos prinefpios constitucionais adotados pelas mesmas Cortes - preocupava 98 agentes lideres nas “provincias coligadas”, por temerem diticuldades quanto adesdo das demais provincias do Brasil as diretrizes do Rio de Janeiro principalmente daquelas mais importantes, como Pernambuce ¢ Bahia. Era, portanto, compreensivel a satisfacao do editor do jornal face & mensagem impressa na proclamagao do govern de Pernambuco. Com vivas a “unido brasiliense” ¢, ao mesmo tempo, “ae Sr. D. Jodo Vi, nosso bom rei constitucionat” ¢, ainda, com louvores ao principe regente “que 181 se sacrifica todo em nossa defesa”, a Junta de Governo da provincia de Pernambuco confirmava anccessidade de “nos unirmos a ele” (referindo- se aD. Pedro), para aleangar a “gldria do Brasil”. Eevocava o brado dos revolucionarios franceses para conclamar: “As armas, pois, amados concidadaos, para sustentar a. nossa gloria, A Assembléia Geral para confirmar nossos direitos. Se ndo vos falamos tio claro hd mais tempo foi porque co- nhecemas que 0 grande génio tutelar do Brasil também até agora mostrava ainda esperar alguma emenda dos atentadores contra nossa liberdade, e nisto mesmo the obe- deciamos e 0 seguiamos. Eia, pois, amados concidadéos; unido ¢ mais unido! Sistema constitucional é $6 0 que nes convém. Adestio e firmeza como nosso constitucional ¢ amé- vel principe é 86 0 que nos pode salvar”. O texto daprociamagdo revela a.utilizagaio de uma linguagem mais incisiva ¢ determinada em, prol da liberdade do Reino do Brasil e quanto 40 direito de elaboragio de suas préprias leis, o que significava a explicitagdo de sua independéncia politico-constitucional. Mas, ao mesmo tempo, ainda defendia a preservacao da unidade Juso-brasileira, a0 evocar D. Joao VE como “nosso bom rei constitucional” ¢ 20 se posicionar, me~ ses antes, em defesa da “delegacdo do poder executivo sem restri¢ao alguna” ao principe regente, desde que fosse resguardada a unido “com os nossos irmdos de Portugal e Algarves em tudo o que se nao encontrar com os nossos direitas”.*, A decisao de ruptura da unidade luso-brasileira, ou seja, de deter- minagio pela “independéncia absoluta” do Brasil aparece mais explicitada na carta de D. Pedro ao paj, datada de-22 de-setembro, embora ainda res- salvada a ligagdo afetiva dos brasileiros ao rei de Portugal, 0 que pode revelarum dltimo recurso de preservagio da unidade. Nessa carta, o prin- cipe regente - avisando que escrevia “esta ditima carta sobre questoes jd decididas pelos brasileiros” - insultava com veeméncia os “infames de- putados europeus e brasileiros do partido dessas despéticas Cortes Exe= cutivas” e defendia o principio de justiga que cabia ao Brasil de se levan- tar revolucionariamente contra as mesmas Cortes: “Firmes nestes inabaldveis princtpios, digo (tomando a Deus por testemunha e ao mundo inteiro) a essa cdfila sanguind- 182 ria, que ew, como principe regente do Reino do Brasil e seu defensor perpéto, hei por bem declarar a todos os decretos pretéritos dessas facciosas, horrorosas, maquiavélicas, desorganizadoras, hediondas e pestiferas Cortes, que ainda néo mandei executar, e todos os mais fizeram para o Brasil, nulos irritos, inexeqiifveis, e como tais com todos, que uni- dos a mim me ajudam a dizer: ‘De Portugal nada, nada; nao queremos nada’. {...) Jazemos por muito tempo nas tre- vas; hoje vemos a luz. Se V.M. cd estivesse seria respeitado e entéo veria que 0 povo brasileiro, sabendo prezar sua liber- dade e independéncia, se empenha em respeitar a axtorida- de veal, pois no é um bando de vis carbondrios e assassi- nos, como tém a V.M. no mais igminoso cativeiro. Triunfa e triunfaré a independéncia brasilica, ou a morte nos hd de custar’.'(grifos nossos) D. Pedro escrevia ao pai em resposta a carta de 3 de agosto, que chegara em suas maos naquele mesmo dia, 22 de sctembro, acompanhada das cartas régias datadas de 1 © 2 de agosto com as tiltimas resolugdes tomadas pelas Cortes de Lisboa em relagdo ao Reino do Brasil. Na carta do tei, encontra-se 0 apelo ao filho quanto a “observaincia e obediéncia as ordens que recebes” € o lembrete de que deveria ser essaa atitude de um: principe cauteloso, Na carta do principe, registra-se o escérnio as Cortes - “que nunca foram gerais ¢ que sao hoje ent! dia sé de Lisboa” - que teduziam orei ao “estado de coacdo”” Ora, estas resolugdes, que acaba- vam de chegar de Lisboa ¢ que provocaram a indignagao de D. Pedro, sio as mesmas indicadas pela historiografia como as causadoras da reagio irada do principe-regente em Sete de Setembro, incitando-o ao grito de “Independéncia ou Morte” &s margens do Ipiranga, gesto que consumaria definitivamente a separagiio da colénia Brasil’ demarcaria o nascimento do novo Estado-Nagao brasileiro. Esta €, aliés, a imagem corrente na me- moria histérica do fato da Independéncia, 0 que nos obriga auma aprecia- gio mais cuidadosa sobre a construgao desse fato. Vale anotar que Varnhagen, ao escrever a primeira Histéria da In- dependéncia do Brasil, em 1875, se mostrou ¢auteloso ao narrar a ordem dos acontecimentos do Sete de Setembro. Solidamente ancorado nos pres- supostos teérico-metodolégicos da época, que impunha ao historiador a “vendade histérica” dos fates, Varnhagen no deixou de registrar que 0 navio chegado ao Rio de Janeiro, em 28 de agosto, 36 trazia “noticias de 183 Lisboa até 3 de jutho”, imediatamente acrescentando, no entanto, que as mesmas noticias chegadas jd transmitiam a certeza da impossibilidade de aprovagio, pelas Cortes de Lisboa, das rei vindicagées a favor do Reino do Brasil e, mais precisamente, a iminente resolugdo de submeter administra- tivamente o Brasil as decisdes das Cortes, além da anulagio dos decretos de convocagio dos procuradores de provincias e de Cortes no Brasil, da exigéncia de averiguagiio das razSes da auséncia dos deputados de Minas Gerais nas Cortes de Lisboa, c da apuragao das responsabilidades da Jun- ta de Sao Paulo por haverem liderado o movimento em favor da ficada de D. Pedro no Brasil.” Sdo estas, alids, as mesmas resolugées, apontadas nos relatos dos contemporineos e repetidas nas andlises historiogrificas subseqtientes, recebidas por D. Pedro as margens do Ipiranga. Ao infor- mar que as resolugdes das Cortes “sé vieram comunicadas oficialmente muito depois, em cinco cartas redigidas ao principe em datas de | e 2 de agosto”, Varnhagen retrucava diretamente 8 narrativa de Pereira da Silva - uma das mais romanceadas sobre 0 Sete de Setembro - que assegurava ter D, Pedto recebido naquele dia “os quatro decretos das Cortes de I° de agosto”.= No entanto, apesar do cuidado em precisar a ordem dos aconte- cimentos, 0 autor afirmava, logo em seguida & enumeragio das resolugdes, que: “para dar conhecimento ao regente de todas estas ordens e noticias despachou o ministério imediatamente 0 correio.(Paulo Bregaro), como préprio, que seguisse a toda pressa para Sdo Paulo” O que revela dubiedade, contradi¢ao ¢ conseqiiente fragilidade da andlise sobre 0 acon- tecimento do Sete de Setembro, tendéncia que se repetiria nas andlises historiogréficas subseqiientes. Em realidade, nao se encontra nos registros da época nenhuma re- feréncia sobre 0 acontecimento em questa. Nenhum edital de goyerno ou qualquer comunicagao informal sobre o fato foi assinalado naquele mo- mento. Nem mesmo na referida carta de 22 de sctembro D. Pedro faz qual- quer mengao ao fato, limitando-se a registrar o ema que jd era corrente, “Independencia ou morte”, de forma ampliada: “triunfard a independén- cia brasilica, ou a morte nos hd de custar”, como pode ser observado na citagdo acima, em destaque. pertinente uma atenc%o mais detalhada as ocorréncias bro de 1822. Dois decretos do 18 de setembro jé indicavam i objetives no sentido da identificagio do novo Estado independente, Um criava o Escudo Real de Armas - por ser indispensavel “que ndo sd se distingam das de Portugal e Algarves, até agora reunidos, mas que se- Jam caracteristicas deste rico e vasto continente” - composto da esfera 184 armilar, em ouro, circundada por dezenove estrelas, em prata, (represen- tando as provincias do Brasil), a coroa real diamantina ladeada por ramos de café e tabaco “como emblemas de sua riqueza comercial”. Esse mes- mo decreto criava também a Bandeira Nacional nas cores verde e amarela portando, no centro, o escudo das armas. O outro criava o Lago ou Tope Nacional, também nas cores verde ¢ amarelo - “a flor verde do braco esquerdo dentro de um angulo d’oiro, ficaré sendo a divisa voluntdria dos patriotas do Brasil que jurarem o desempenho da legenda indepen- déneia ou Morte, lavrada no dito angulo”. No mesmo diaem que D. Pedro escrevia ao pai dizendo nada mais querer de Portugal, o Senado da Camara do Rio de Janeiro realizava, numa. das salas do Mosteiro de S40 Bento, a sessfio de apuragdo dos votos da cleigao - reguladas pela Insteugao de 16 de junho - para deputados da pro- vincia @ Constituinte. Findo o ritual de apurago sairam todos - autorida- des, deputados eleitos e eleitores - com estandartes da Camara e acompa- nhados de banda de miisica, em “majestosa procisséo” rumo & capela para a celebragdo do Te Deum. Seguiram-se festejos de fogos e misicas na Praga da Constituigdo, com manifestagdes de “vivas & Independéncia” ¢ espetaculo de teatro que contou com a presenca dos principes reais. Dias antes, em 17 de setembro, o presidente da Camara expedira circulares - por decisio tomada “em vereagao de 7 de setembro” - as outras cimaras do Brasil, propondo urgente necessidade; “De investir quanto antes 8.A.R. 0 principe regente do Bra- sil, e seu defensor perpétuo, no exercicio efetivo de todos os atributos do poder executivo, que no sistema constitucional competem ao rei constitucional (...) nas circunsténcias em que o Brasil atualmente se acha relativamente a Portugal, a sua separagdo deste néio sé era necesséria mas até indis- pensdvel, pois que este queria por forga das armas obrigar o Brasil a aceder a um pacto social leonino (...) resultando de tudo manifestar-se a opinide publica em uma ventade decisiva de declarar a sua Independéncia de Portugal, e aclamar a$.A.R. imperador constitucional do Brasil’ *(grifo nosso) A ata de vereagdo extraondindria, realizada em 10 de outubro, j4 registrava com jiibilo as respostas afirmativas de “muitas cémaras desta provincia, da de Minas, Sdo Paulo, e capitania do Espirito Santo” a esta 185 circular que conclamava a unifo de todas na defesa do Brasil, cuja auto- nomia perigava face as “yltimas noticias vindas de Portugal”. Noticias estas que falavam da intengio de “roubar o centro seguro da sua unido e Preparavam: grossas expedigées para vir castigar os rebeldes do Bra- sil”. O argumento era o de “pedir a legitimidade do ato que s6 podia ser vdlide quando assentasse sobre uma declaragéo absolutamente livre da maior parte do povo do Brasil”, expressando a crenga de que este era 0 caminho seguro ¢ legitima para a declaraciio de Independéncia do Brasile considerando a aclamagio do imperador, como uma “Conseqiiéncia necessdria, a qual recai bem no mesmo august senhor, néio 6 por ser 0 sucessor hereditdrio do trono portugues, e neste caso ter um direito legitimo a prefe- rir na coroa do Brasil, mas por ser esta a vontade universal de todo « povo do Brasil, e um prémio bem devide & heréica resolugdo de que 0 mesmo senhor tomou de ficar no Brasil, sendo 0 primeiro que conformando-se com a opiniéo domi nante deste reino declarou a sua independéncia”. © tom do discurso explicitava o condicionamento da iniciativa de D, Pedro, pela declaragio de Independencia, a “opinido dominante” dos habitantes do Reino do Brasil e, mais objetivamente, como mais adiante actescentava, & “vontade undnime de todo o povo”. O que demonstra 0 cuidado entao existente quanto A clareza dos pressupostos ideolégicos na definigao das bases do pacto estabelecido com o principe, a quem 0 povo, reconhecido pelas demonstrages de amore de fidelidade do mesmo A cau- sa do Brasil, premiava escolhendo-o como defensor da sua causa ¢ acla- mando-o imperador constitucional do Brasil. Observemos quanto o discurso politico era inovadore intimamente ligado as proposigdes revolucionarias do pensamento critico da Hustra- 40, ou seja, daquela corrente que reivindicava a existéncia de um pacto de unido entre os cidadios centendiao governante como suporte legitimo Anova sociedade assentadg no pressuposto da liberdade do homem. Eesse €um dado importante a ser anotado no estudo dessa conjuntara, principal- mente se o relacionarmos 4 decisao final dos membros do Senado da Ca- mara do Rio de Janeiro, a qual, apés a concessio, “por undnime aclama- ao dos cidadéos presentes”, do titulo de imperador, requeria que se de~ clarasse “na ata, que é nossa vontade que assim o sancione a Assem- bléia Constituinte, como urtigo de lei fundamental’, Medida essa que, 186 contraditoriamente, retirava da Assembléia Constituinte - j4 convocada mas ainda nfo em exercicio - a faculdade de Wecisio sobre a forma de govemo a ser adotada pelo novo Estado-Nagac! O que esvaziava bastante 0 contetido inovador da proposta apresentada. Sobre esia questio, 0 pesicienamento do jornal Regulador Brasi- leiro, expressado no exemplar que circulou em 23 de outubro, é bastante esclarecedor sobre a forma de tratamento da quéstao central que norteava © pensamento dos agentes politicos, ou seja, 0 déstino “natural” da forma- iio de uma monarquia imperial no Brasil: "Q Brasil separado era mui grande para ser uma Republi- ca; mui extenso para ser uma Monarquia ordindria como essas que apenas se divisam na catta da Europa; a natureza 0 havia destinado para ser um nolo império nesta parte do meio dia d’América; 0 decreto da pravidéncia esteve suspenso até o dia 12 de outubro de 1822 e nesse dia sempre glorioso, sempre lembrado, caiudo seio das nuvens:o diplo- ma de sua criagao”” Assim, aidéia correntemente aceita de predestinago do Brasil como monarquia imperial - 0 que realizariao “poderoso império”, “um império florescente com grande peso na balanga politica do mundo” - era um dado estrutural que se sobrepunha aos princ{pios inovadares ¢ formadores de novas sociedades e que por si mesmo se justificava sem se chocarcom 08 pressuposto da liberdade do cidadao ou com princfpios fundamentais das assemnbléias constitucionais, a quem cabia o poder exclusivo de deci- sio sobre forma e sistema de governo a ser adotado. Merece atenciio, ain da no texto acima citado, a referéncia ao dia da Aclamagao, 0 12 de outu- bro, como o marco da declaracao da Independéncia do Brasil. Esta refe- réncia pode ser analisada em interligacdo ao texto da proclamagdo do imperador ao povo portugués, também datada de 23 de outubro, na qual, apés historia os tiltimos acontecimentos lamentando as ocorréncias, rea- gia as atitudes das Cortes Gerais de Lisboa e amlunciava que: “0 heréico povo do Brasil, vendo fechar-se todos os meios de conciliagao, usou de um direito que ninguém the pode contestar, aclamando-o, no dia 12 de outubro, seu impera- dor constitucional e proclamando sua independéncia”. 187 Ora, a0 contrério do siléncio sobre o Sete de Setembro, o edital do Senado da Camara do Rio de Janeiro, de 21 de setembro - que comunicava “ao povo ¢ tropas desta cidade, que tendo previsto que era vontade undni- me de todos aclamar imperador constitucional do Brasil, a $.A.R.., 0 prin- cipe regente” ¢ marcava para o dia 12 de outubro, aniversdrio do principe, © ato de sua aclamagiio coma imperador do Brasil - teve grande divulga- 20 na imprensae amplo reconhecimentona sociedade. “Que a vontade de todo 0 Brasit requer, € que por esta ra- zo, e pela importancia de suas conseqiiéncias, deve apare- cer & face do mundo inteiro revestido das formulas solenes, que estéo reconkecidas por iniciativas da vontade undnime dos povos.”* A noticia circulow nos jornais cos cronistas ¢ viajantes descrevem, em detalhes, os festejos acontecidos nas ruas e pragas esmeradamente deco- radas em arcos omamentais, para a ceriménia solene, no paldcio ¢ na igre- ja, de “aclamagdo do imperador constitucional do Brasit”® Seria 0 12 de outubro, inclusive, que demarcaria 0 calendério nacional, quando.o de- creto de 10 de dezembro fixaria 1822 como o primeira anoda Independén- cia edo Império: “Sendo conveniente memorizar a gloriosa época da Inde- pendéncia do Brasil, e a sua elevagéo a categoria de Impé- rio, hei por bem ordenar que nos diplomas d’ora em diante (..) 08 nimeros dos anos que decorrem depois da mencio- nada época, 0 qual deverd contar desde 0 memordvel dia 12 de outubro do presente ano, em que por espontdnea unani- midade dos povos se celebrou o solene ato da minha acla- magao” Assim, 0 12 de outubro também definiria a mudanga do nome de Reino do Brasil, para ode Império do Brasil. Vale ainda o registro de que, no dia seguinte ap da aclamagio, o imperador ordenava, por decreto, a forma do novo tratamento merecedor “de tao alta dignidade”, definindo que: “Nas provisées se principie pela forma seguinte: - D. Pedro, pela graga de Deus, e unénime aclamagao dos povos, Impe- 188 rador Constitucional e Defensor Perpétuo do Império do Brasil (...) nos alvards se use somente 0 seguinte: - Eu o. Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Império do Brasit”." MARCO DE REPRESENTACAO DA INDEPENDENCIA: 0. SETE DE SETEMBRO Apenas em maio de 1823, na “Fala” de abertura dos trabalhos da Assembléia Constituinte, o imperador D. Pedro, referindo-se ao “brioso peve” da “agraddvel e encantadora” provincia de Sio Paulo, afirmava que teria sido ele prdprio o responsdvel pela decisaio de ruptura da unidade luso-brasileira. E que essa deciso de Independéncia havia sido tomada em So Paulo quando, face A situagio de desordem existente naquela pro- vincia provocada por um “partido de portugueses ¢ brasileiros degene- rados, totalmente afeto as Cortes do desgragado e encanecido Portu- gal”, o havia forgado a viagem: “Parti imediatamente para a provincia, entrei sem receio porque conhego que todo o povo me ama, dei as providénci- as que me pareceram convenientes, a ponto que a nossa independéncia foi Id primeiro que em alguma parte pro- clamada, no sempre memordvel sitio do Piranga. Foi na patria do fidelissimo ¢ nunca assaz louvado Amador Bueno da Ribeira, onde fui pela primeira vez aclamada impera- dor”. (grifo nosso) Essa primeira referéncia & primazia da proclamagao da Indepen- déncia “no memordvel sitio do Piranga” - que revela um tom de afirma- g40 categérica com a intengdo de ditimir duvidas existentes ou criat uma nova interpretag4e sobre o fato definidor da proclamagao da Independén- cia ¢ da aclamagao do imperador -, permaneceu, no entanto, ainda por um tempo, sem repercussdo, nao encontrando cco imediato nos registros da €poca. Esse é um aspecto intrigante, pois se tratava de um registro feito pelo imperador num dos textos politicos da maior importancia nas discus- ses daquele momento, 0 que nos faz retomar ao’questionamento inicial sobre as raz6es histdricas da sua posterior definigio como o marco da Tuptura acontecida entre o Brasil ¢ Portugal, ou seja, como arepresentagao. 189. simb6lica do momento fundador da nacionalidade brasileira, Uma expli- cago talvez possa ser encontrada na anélise dos impasses criados por ocasiao das conversagdes € acertos diplomaticos para a aprovagaio das clausulas do tratado de reconhecimento da Independéncia do Brasil. No texto final desse Tratado de Paz ¢ Alianga, assinado em 1825 - que se inicia com o registro dos “mais vivos desejos de restabelecer a paz, amizade e boa harmonia entre os povos irmios, que os vinculos mais sa~ grados devem conciliare unir em perpétua alianga” - ratificava o reconhe- Cimento, por parte de Portugal, do Brasil “na categoria de Império inde- pendente”. O rei D, Joo VI assegurava que, “‘cedendo e transferindo de sua livre vontade'a soberania do dito império ao seu filho e aos seus legi- limos sucessores”, a0 mesmo tempo em que, face © “reconhecimento de respeito ¢ amor”. tomava “para sua pessoa, o titulo de Imperador’,* Ob-~ servemos que o texto do Tratado de Paze Alianga traduzia o sentido expli- cito de concessio, por parte do rei de Portugal, da soberania do Brasil, 0 que substitufa o principio de aclamagiio dos povos, ou seja, o sentido de. soberania conquistada e partilhada pelo povo, concepgdio entdo aceita € evocada pela maioria dos agentes diretores do proceso histérico de Inde- pendéncia do Brasil. Esta nos parece ser a questi nodal devendo ser a ela dada maior atengao. A anélise desta questo nos induz a uma observagao mais apurada sobre 0 posicionamento da Inglaterra, como mediadora das negociagdes de paz entre Portugal eo Brasil, por revelar dados importantes, seja quan- © to aos acertos finais para o reconhecimento da Independéncia ¢ aos ele- mentos detinidores dos marcos simbélicos da meméria nacional, sejacm telagdio aos desdobramentos produzidos no interior da sociedade brasilei- ra, Escolhida como mediadora nas conversagées diplométicas, a Inglater- ra aconselhou ao imperador do Brasil o caminho da negociagio “em lugar de exigir reconhecimento prévio da Independéncia”, orientagio aceita, “apesar de forte preconceito brasileiro em contrério”, segundo o teste- munho do ministro inglés Canning feitoem carta ao’ plenipotencidrio Stuart. Argumentando sobre:as vantagens de um. rapido reconhecimento da Independencia - havia o particular interesse inglés na renovagao com o Brasil das clusulas do Tratado de 1810 assinado com Portugal por quinze anos -, os mediadores ingleses defendiam o distanciamento do caminho da ratificagio do tratado por um pacto de dircito internacional e a adogao conseqilente de urna solugdo simplificada, na qual 0 reconhecimento seria feito por concessio da coroa portuguesa. Essa seria a solugao ideal, infe- tia a diplomacia inglesa, por evitar o fechamento a uma solugo futura de 190 reunificagao das. coroas da casa de Braganga, 0 que reataria a unidade Juso-brasileira, aspiragdo maior dos agentes gestores da politica portugue- sa. Para tanto, se impunha a definigao clara sobre o reconhecimento do imperador do Brasil como herdeiro do trono de Portugal, uma vez que, por parte do Brasil, D. Pedro j4 deixara o caminho em aberto ao dissolver a Assembléia Constituinte ¢, “repelindo em siléncio a cldusula que proibia a unido das duas coroas”, 4 outorgara uma Constituigo que nao definia 9s limites do Estado imperial. Portugal se posicionou com firmezano sen- tido da definig&o clara quanto a forma ¢ 4s condigdes da concessio, exi- gindo o reconhecimento, por parte do Brasil, da autoridade do rei, o qual, num primeiro momento, também assumiria o titulo de imperador, e's6 de- pois outorgaria ao filho o titulo imperial ¢ conceder-lhe-ia a soberania sobre o Brasil.® Essa era a idéia impressa na proposta apresentada em maio de 1825 por Portugal: “Fui servido por minha carta patente da data desta, ocorrer aos sobreditos males, e remover todos os obstdculos que pudessem impedir a concérdia e felicidade, assim dos rei- nos de Portugal e dos Algarves, ¢ seus dominios, como do Reino do Brasil, dignando-me para tao importante fim ce- der ¢ transferir o exercicio da seberania deste ultimo reino com o titulo de império na pessoa do meu sobre todos mui- to amado e prezado filho e sucessor, D. Pedro” **(grifo nos~ so) Assim, além da cvidéncia do real interesse das partes envolvidas na retomada do projeto de cdificagio do império atlantico - junto ao qual a Inglaterra continuaria a exercer grande influéncia - se observa a colocago. de uma quest& mais profunda, em termos dos pressupostos ideoldgicos. basicos das diretrizes da politica entao desenvolvida, ¢ interligada a dis- cussao nevrdlgica seja em relagdo As estruturas sociais, seja em relagdo 4 soberania do Estado imperial nascente, Confrontavam-se entao duas cor- rentes distintas defenseras de prinefpios diversos de soberania: uma, re- formista¢ conservadora, que sé reconhecia legitimidade na soberania.con- cedida pelo rei - traduzida na proposta portuguesa - ; outra, revolucionéria ¢ avangada que reconhecia apenas no povo ¢ direito de aclamagao do im- perador c 0 poder sobcrano de sua investidura “como um rei cidadao” - traduzida na agao politica em prol da independéncia, no Brasil.” 191 Nas conferéncias finais para discussao sobre as cléusulas do trata~ do, realizadas no Rio de Janeiro entre 25 de julho e 29 de agosto, a repre~ sentagao brasileira conseguiu mudar apenas o termoconcesséo para reco- nhecimento da Independencia - “querendo de uma vez remover todos os obstdculos que possam impedir a alianca (...) reconheceu o Brasil na categoria de Império Independente” -, permanecendo, no entanto, o sen- tido da concessao da soberania do Impétio - “cedendo e transferindo de sua livre vontade a soberania de dito Império”. Essa cra uma solugdo que feria os principios mais caros defendidos com vigor pelos agentes liticos do novo Estado imperial, Por outro lado, a fitme resisténcia ini do governo do Brasil quanto 2 exigéncia anglo-lusa de alterag&o do titulo do imperador foi igaalmente quebrada no final das conversagées. Na mi- nuta de ratificagdo do Tratado, o titulo do imperador aparecia na forma expressada no decreto de outubro de 1823 ¢ na Constituiggo de 1824, ou seja, “D. Pedro, por graca de Deus e unénime aclamacao dos Poves, Imperador Constitucional e Defensor Perpétu do Império do Brasil”; forma essa terminantemente rejeitada pelo mediador inglés - “na forma em que elas foram minttadas eu ndo posso admiti, nem enviar a Portu- gal? - que propds a sua redugio para “Imperador por graga de Deus ¢ de acordo coma Constituigdo do Estado”. O Conselho de Estado, convo- cado para resolver o impasse, ponderando sobre a inconveniéncia ou nio da defesa de um “titulo democrdtico” ou “titulo demagédgico’’, pot asse~ melhar os brasileiros a “republicanos sem o serem”, entendeu ser mais prudente aceitar a alteragdo exigida, Como solugao conciliatéria, foi acei- to pelas partes o titulo simplificado de “Majestade Imperial” c, 0 Tratado foi, finalmente, ratificado pelo Brasil em 5 de setembro.”Em carta ao pai, datada de 3 de setembro D. Pedro jd comunicava ter aceito as cléusulas impostas, “fiz da minha parte tudo que podia (...) concedendo no tratado ontos bene dificeis ¢ bastantemente melindrosos”, ¢ se dizia tao confian- te na ratificagao por parte de Portugal, que comunicava o imediato anun- cio oficial da legatizagao do Tratado que “estabelecia a mais perfeita harmonia entre as nacées portuguesa ¢ brasileira”. A imperatriz Leopoldina também escreveu ao sogro dizendo esperar “que VM. ratifi- que o Tratado, para que se mosire ao mundo inteiro 0 mais generoso dos pais, ¢ se destrua, de uma vez, o sistema democrdtico que ters aqui rei- nado com tanto furor neste hemisfério” A celebragio oficial da assinatura do Trarado de Paz e Alianga, em 7 de setemiro de 1825, mereceu toda.a pompa que o acontecimento reque- ria: Te Deum, revista ¢ desfile de tropa, cortejo no Pago, fogos e musica 192 nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, devidamente engalanada para .os festejos. A assinatura do Tratado, no entanto, projetava um clima de inqui- etag4o preocupante, face 4s desconfiangas da populagfio pelas concess6es feitas, como testernunhou 6 conselheiro Lufs Moutinho: “‘o pior a mex ver é ter-se espalhado no piiblico, nao sei como, que é essa divida do titulo do imperador; ¢ 08 inconvenientes de se calar isto sdo de muita gravida- de"’*" Naquele dia de festa, e a0 lado do corpo diplomético da Inglaterra, da Austeia, e da Franca, o imperador anunciava ao povo a boa nova arran- cando do brago, em gesto teatral ¢ de grande simbolismo, a divisa Inde- pendéncia ou Morte, como alguém consciente da situagao embaragosaem que se encontrava, face ao prego pago para colocar o Brasil “no grande concerto de nagdes europeu-americanas(sic)”. A empreitada de firmar 0 Brasil como Estado independente ¢, ao mesmo tempo, resguardar a alian- ¢a com Portugal, custara o sacrificio dos principios mais caros aos brasi= leiros, o de pacto de unido ¢ 0 de soberania do pove, princfpios estes que haviam atuado como aglutinadores de todos os brasileiros em “vortade undnime”, na decisio em prol da aclamagio do imperador e da conse- qiiente ruptura da unidade luso-brasileira. A situagdo era delicada e exigia medidas eficientes para dirimiro clima de desconfianca criado em relagao & postura dita liberal do impera- dor ¢ quanto a possibilidade de restauragao da unifio Juso-brasileira. Ao assinar 0 Tratado que anulava o principio da aclamagio dos povos, D. Pedro punha em divida a sua conduta constitucional, jé bastante desgastada face a dissolugao arbitraria da Assembléia Constituinte, em novembro de 1823. E, ao aceitar a confirmagiio de herdeiro da coroa portuguesa, fazia aumentar as suspeitas quanto ao interesse da reunificagSo, o que em 1825 j4 nado mais se aspirava no Brasil, face a restauragdo do absolutismo em Portugal. A imagem do defensor perpétuo e imperador constitucional ji vinha sendo desgastada desde 0 golpe desfechado contra a Assembléia’ Constituinte e sua resisténcia para convocagdio da Camara Legistativa agra~ vava, a cada ago, oclima de insatisfagdo geral. A Constituigao outorgada de 1824, que tolhia com firmezao ideal de autonomia provincial, j4 provo- cata a reag&o das provincias do Norte, as quais, sob a lideranga de Pernambuco, haviam-se reunido em confederagao contra o imperador, entSo considerado “traidor das aspiragées nacionais”. B mais, a Constituigio de 1824, modeladora do Estado imperial, institufa um quarto poder, o Moderador, antes no cogitado - o que ampliava a ingeréncia do Executi- vo em relagao agdo do Legislativo -, e suprimia a cléusula que impedia ao imperador do Brasil a heranga do trono de Portugal. Esta cldusula, que 193 exigia do detentor da coroa brasileira abdicar dos direitos a outra coroa estrangeira, constava do projeto elaborado pelos deputados constituintes, justamente para evitar a possibilidade de reunificagdo futuradas coroas de Portugal ¢ do Brasil, As suspeitas, portanto, se avolumavam e, em 1825, D. Pedro ja niio mais recebia o tratamento carinhoso de “nosso imperador”,como anotara anteriormente a inglesa Maria Graham. O erescente: desprestigio do im- perador poderia por em risco a continuidade da diretriz politica que busca- va realizar a grandeza do Estado imperial. Impunha-se, portanto, a recu- peragao da sua imagem positiva, ou seja, da imagem de um principe mag- nanimo, liberal, ¢, sobretudo, resoluto na defesa constante dos interesses do Brasil. Cumpria recuperar o sentido expresso no seu titulo de “Defen- sor Perpétuo” e, precisamente nessa conjuntura adversa, comegaram a Surgir referencias objetivas ao Sere de Setembro como o matco indiscutt- vel da Independencia do Brasil. Vejamos ent&o como a meméria dessa nova data foi sendo construida: O Diario Fluminense, de 7 de setembro de 1825, ao anunciar as festividades do “dia de grande gala”, pelo término do Tratado de Paz ¢ Alianga assinado entre o Brasil e Portugal, registrava as “congratula- ¢6es” de José Eloi Outoni a“S.M./. 0 Sx: D. Pedro no dia do aniversdrio da Independéncia do Brasil” e, significativamente, publicava um soneto, cuje verso finalizava com a divisa “Independéncia ou morte”.® KE curio- 80, nO entanto, que na carta de D. Pedro ao pai, acima citada, na qual o imperador comunicava a decisao de anunciar publicamente, nessa mesma data, a assinatura do Tratado de Paz, o mesmo tenha deixado de, explicita- mente, identificé-la como sendo odia do aniversério da Independéncia. Um outro registro do Sete de Setembro foi feito, também nessa tmesma Conjuntura, pela inglesa Maria Graham quando, ao retornar ao Brasil €m 1824 - para exercer as fungdes de governanta da Princesa Maria da Gi6ria € aqui permanecer até 0 ano seguinte - escreveu anotagées para serem acrescentadas nto seu “Didrio de uma viagem ao Brasil”, que abar- cava 0 periodo de setembro de 1821 a outubro de 1823, mas nele nao fizera qualquer alusio ao fato em questao. E pertinente observar a interligagae que a autora faz da agao dos Andradas em prol da causa do Brasil - “Os Andradas compreenderam que o Brasil néio poderia conti- nuar sob o dominio de Portugal por mais tempo e de maneira nenhuma” ~ entendendo-a como responsdvel direta pela transformagao do principe D. Pedro “no lider da grande revolugdo que se Processava”, ¢ também a forma como registra 0 Sere de Setembro, seguindo muito proxima a narra- 194 tiva encontrada na Fala do imperador, mas acrescentando alguns detalhes e floreios que resultam na tradugao de uma imagem um pouco diversa da anteriormente produzida: “A 7 de setembro, estando o imperador em Séo Paulo, de- elarou a Independéncia do Brasil nos famosos campos do Piranga, aonde o partido o havia induzido air e mostrar-se aos paulistas, os mais briosos habitantes do Brasil, e aque+ les cujos hdbitos estdo embebidos de mais liberdade que qualquer outros habitantes da Sul. Naqueles campos, situa- dos na quinta de Amador Bereno (Bueno), 0 principe falou ao povo e concitou-o a adotar uma divisa especial com 0 lema: independéncia ou morte, sobre uma roseta verde e amarela. Uma placa com essas palavras gravadas tornou- Se o sinal de patriotismo”.* (grifo nosso) Observemos que, nessa narrativa, a imagem do imperador aparecia menos vigorosa - é um partido que induz o principe & viagem, Eo momen- to de decisao pela proclamagao € menos intenso - D. Pedro apenas fala ao povo convidando-o a adotar a divisa: Independéncia ow Morte, E perti- nente anotar que Maria Graham privava, naquele momento, do convfvio da Corte, o que Ihe facilitava 0 acesso a informagao. E, a0 mesmo tempo, registrar que, possivelmente, as leituras feitas apdés as anotagdes para o seu Di4rio - ela mesma confessa que, ao voltar para a Europa em fins.de 1823, adquirira o Didrio da Assembléia ¢ outros jornais do Rio de Janei- 10, entre os quais O Tamaio, o que talvez explique a inter-relacao indireta feita entre o Sete de Setembro e a agdo dos Andradas - tenham proporcio- nado a inglesa uma observagdo mais apurada sobre o pafs que habitava. O Tamoio, jornal dedicado & construgao da imagem do pai fundador, José Bonifacio e, na opinido da inglesa, “o mais bem escrito de todos”, pode ter exergido influéncia nas suas observagées. Alids, o discurso de O- Tamoio revela aspectos relevantes para uma melhor apreciagdo dos conflitos ocor- ridos naquele momento. Em setembro de 1823, por exemplo, o jornal pu- blicava um artigo escrito pelo proprio José Bonifacio, no qual 0 “parriar- cada Independéncia” expressava regozijo pela gléria ter sido o primeito brasileiro a ocupar o cargo de Ministro de Estado ¢ ter sido “o primeiro” que, “das alturas da paulicéia”, trovejara contra as “pérfidas Cortes Por- fuguesas”; 0 primeiro a pregar a “independéncia e liberdade do Brasil”, E, em nota de rodapé, invocava a Fala do Trono como prova “desta ver- 195 dade atestada pelo mesmo imperador”.*5 E verdade que estes sao dados que remetem & cansativa ¢ improdutiva querela presente na historiografia, que contrapée fluminenses e paulistas (ou 0 grupo de Gongalves Ledoe 0 grupo dos Andradas) na luta pelo reconhecimento da preeminéncia nas decisGes em prol da Independéncia. No entanto, se analisados sob 0 angu- Jo da divergéncia de peitsamento politico ¢ de interesses de grupos, tais dados ajudam a entender nuangas muitas vezes fundamentais a uma maior compreensiio dos elementos em jogo na construeao do Estado Nacional e, consegiientemente, da sua meméria histérica. Em 1826, uma lei promulgada em 9 de setembro inclufa o Sere de Setembro - ao Jado do 9 de jancito (0 Fico), 025 de margo (0 juramento da Constitnigdo de 1824), 0 3 de maio (a abertura da Assembléia Constituin- te) €0 12-de outubro (a actamacio da imperador ¢ a oficializagao do Im- pério do Brasil) - no calendério “de festividade nacional em todo 0 Imp ria” ** A \ei em questo, no entanto, simplesmente elencava as datas festi- vas, nao tecendo comentarios sobre nenhuma delas, Mas, nesse mesmo ano de 1826 era significativamente publicado por M. J. Rocha, 0 docu- mento que faltava para a mais completa fundamentagiio da memiéria do Sete de Setembro, Tratava-se de um documento produzido por um dos companheiros de viagem do principe & Sao Paulo ¢, segundo um contem- Pordneo, seu “confidente e mentor”, o Pe, Belchior Pinheiro de Oliveira, que era primo de José Bonifacio ¢, em 1823, fora deputado & Constituinte por Minas Gerais. O “Relato do Padre Belchior” constitufa comprovagao preciosa, face a testemunho minucioso e cabal dos acontecimentos da- quele dia, o que respaldava a construgao idealizada do Sete de Setembro. Segundo esse relato, D. Pedro teria bradado, “De hoje em diante estdo quebradas as nossas relagées: nada mais quero do governo portugués € proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal”, apés tomat co- mhecimento - através da leitura (feita pelo padre a pedido do principe) da correspondéncia chegada do Rio de Janeiro das “instrucaes das Cortes, uma carta de D. Joao, outra da princesa, outra de José Bonifacio, e ainda outra de Chamberlain”, e depois de pedir @ opiniao do padre ¢ ouvir a resposta de que nao restava “outro caminho; sendo a independén- cia e a separagdo”. Na descrigao do Pe. Belchior nio faltava, inclusive, a indicagio do contetido das “instrugées” referidas: “As Cortes exigiam o regresso imediato do principe, a prisiio e processo de José Bonifacio”, instrugées estas que sé chegariam posteriormente, através das cartas régi- as de 1 ¢ 2 de agosto, como jé foi acima anotado. Aceito sem reservas, 0 Relato do Pe. Belchior, bem como dois ou- 196 tros relatos surgidos posteriormente e também escritos por membros da comitiva real de 1822 - o do Cel. Marcondes, em 1862, ¢ o do Tenente Canto e Mello, em 1865 -, passatiam a servir de referéncia basica As ana- lises historiograficas sobre o tema da Independéncia. As incoeréncias exis- tentes neles ¢ as divergéncias de informagées entre essas pormenorizadas descrigio do Grito do Ipiranga foram comumente relevadas como “sinais naturais”, provocados pela distancia do tempo.* Seria, no entanto, a obra de José da Silva Lisboa que daria forma definitiva & narrativa do Sete de Setembro, passando a constituir fonte imprescindfvel ao estudo do tema. Constituindo um dos agentes mais ex- pressivos do reformismo ilustradoe um dos primeiros brasileiros a rece- ber titulo de nobreza, 0 visconde de Cairu se encarregaria de teconstituir a cena do Sete de Serembro, explicitando minuciosamente o significado des- sa data histérica. O ritmo ¢ a forma de elaboragdo da escrita do autor é particularmente instigante pot se apresentar em fragmentos que vao sendo ampliados a cada capitulo, transmitindo a idéia exata de histdria montada. E exemplificadora a sua obra Histéria dos principais sucessos do Impé- rio do Brasil, escrita entre 1827 e 1830 e, segundo seu préprio testemu- nho: “A ordem superior, que me incumbiu de escrever a histéria do Brasil, impés-me também o dever de expor PRINCIPAL- MENTE 0 seu tiltimo perfode, que comega no ano de 1821, em que o principe regente, o senhor D. Pedro, principiou a influir nos destinos deste continente, e se constituiu o funda- dor do primeiro império da América Meridional. Cumpri, quanto pude, este penoso dever, dirigindo-me sempre pela dita ordem, a qual unicamente teve objeto a exposigdo dos sucessos dignos de meméria".* (grifo no original) No volume publicado em 1829, Cairu dedica um capitulo de quase seis paginas a descrigGo da viagem do principe Sdo Paulo sem mencionar © fato do Sete de Setembro. Algumas paginas adiante, no entanto, retoma otemae escreve que: “Finalmente exuuriu-se a paciéncia do principe regente quando recebeu os decretos das Cortes. Achando-se ainda na provincia de Sao Paulo e abrindo os oficios do ministé- rio, estando no campo da Piranga com grande acompanha- 197 mento militar e popular, af imediatamente em 7 de setembro fez.a proclamacao vocal de Independéncia ov morte, que foi aplaudida e seguida de unéinime voto do povo, que o acla- mou - imperador do Brasil’ 5 Silva Lisboa, no entanto, apenas mencionava os decretos das Cor- tes, remetendo o lcitor a alguns capitulos anteriores, onde transcreveu: frag- mentos de trés dectetos, “retirados dos Didrios das Cortes”, sem o cuida- do de precisar a data de regulamentacao dos mesmo e restringindo-se 10 seguinte comentario: “O dia I de jutho de 1822, em que nas Cortes se acordaram estes decretos, pode-se dizer dia do rompimento de Portugal com o Brasil”. Vale anotar, no entanto, que o contetido das resolugéies destes decretos coincide com o teor das resolugdes comunicadas nas cartas régias de | €2 de agosto e s6 chegadas no Brasil, como informa Vambagen, apenas cm 22 de setembro. O que pode indicar ter o autor se apoiado em minutas de propostas, para discussdc posterior nas sess6es das Cortes Gerais Constituintes, como meio de justificativa do ato de, impaciéncia de D. Pedro eda sua decisio pelo grito de independéncia. Interessa-nos pontuar nessa narrativa a forma utilizada: nela entra- va 0 povo que aplaudia e endossava a proclamagio da Independéncia do Brasil e também votava pela aclamagao do imperador, mas jé enunciavao perfil de um principe cesoluto na defesa do seu povo, a quem se devia reconhecer como o responsével tinico pela decisao de tomar o Brasil livre do jugo portugués. Bastante pertinente éa observagao que vem a seguir: “Valtando & Corte do Rio de Janeiro foi universal o entusi- asmo dos fluminenses, que nio cederam aos paulistas em unanimidade de sentimentos de gratidao ao seu libertador, Eles com solenissima pompa de todas us ordens do Estado, em 12 de outubro 0 actamaram Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, Pode-se sem hipérbole dizer, que o Sr D. Pedro de Alcantara nas resolugdes de 13 de maio, 3 de junko e 7 de setembro, completou 0 TRIUNFO DO BRASIL, € se assemethou av mitolégico potestade do Atlanti- co, que (...) chegou em 1rés passos & extremidade da orbe”. (grifo no original) Observemos que Silva Lisboa conseguia reunir, numa 86 imagem, 08 varios momentos vistos entio. como marcos da Independéncia e, ainda, 198 conciliar numa mesma representagdo tanto 0 povo que aclamava D. Pedro imperador do Brasil, como o imperador que proclamava a libertagdo do Estado brasileiro e, nesse movimento conjunto e sincrénico entre o povo ¢ © imperador, assentar a base da soberania do Estado imperial. Também vale destacar a anotagdo de pé de pagina, feita apés este pardgrafo: evo- cando a figura de José Bonifacio - que, naquele momento, encontrava-se exilado na Europa ~ reconhecia hele o direito adquirido de constar nos “Anaes do Brasil”, pela primazia do alerta e participagdo inicial na luta contra as “pérfidas intengdes das Cortes de Lisboa” Conclufa, no entan- to, que a “fatalidade do seu génio excéntrico” o havia privado “da gloria de consumar a Emancipagdo do Brasil” Mostra-se com bastante clare- za.a intengao do nde de Cairu em afastar o velho Andrada da memé- tia da independé Talvez pela necessidade de fortalecer a imagem do imperador através da recuperagao da trajetéria de um principe jovem ¢ ainda sem muita experiéncia na polftica, mas vigoroso e suficientemente decidido na defesa da causa do Brasil, e na conquista do amor do povo que o acolherac 0 instigara a optar pela nova patria. Um governante que sabia como agir no momento certo da tomada de decisdo, sem qualquer aconselhamento, na defesa dos interesses da patria. Essa seria a imagem que procuraria tragar com mais precisio logo depois, em 1830, quando publicou a Seco III dessa obra aqui analisada, Retomando mais uma vez anartativa do Sete de Setembro - e dedicando-lhe um capitulo inteiro - Silva Lisboa passava a descrever com mais detalhe este acontecimento, relatando-o desde 0 momento do recebimento, por D. Pedro, da correspon- déncia chegada do Rio de Janeiro: “O principe regente achava-se na provincia de Séo Paulo pronto para partir para o Rio de Janeiro quando recebeu os referidos decretos (...) a impressdo impetuosa (como era natural) da leitura de-taes decretos, levou o animo do jo- vem herdéi ao zénite da indignagio; e subinde a montanha do Paranapiacaba, proclama aos brasileiros - Independén- cia ou Morte, O principe entao tirow de si o lago nacional das Cortes de Portugal”. (grifo iosso) Em seguida, passou a comentar o texto da proclamagdo aos paulistas, de 8 de setembro - sem nenhuma referéncia as comemoragées notumas na capital da provincia, ou qualquer cuidado em explicar como se encontrava ainda o principe em Sao Paulo, quando no inicio da narrativa 199 afirmara que o mesmo jé estava de partida para o Rio de Janeiro - acres- centando que D. Pedro teria “depois” ordenado que se levantasse “no dito sttio um monumento para perpetuar a meméria de sua heréica resolu- edo, e da undnime aprovagao dos povos e logo ali se langaram as pri- meiras pedras”. Apés compor, com todos 6s elementos simbélicos neces- s&rios, o quadro idealizade dos acontecimentos daqueles memordveis dias, Silva Lisboa evocava, como testemunho de tudo 0 que escrevera, a “de- claragdo que o seu visitador, o Senior D. Pedro, se dignou fazer na sua Fala ao Trono na instalagdo da Assembléia Constituinte”, como sc na Fala estivessem registradas todas as informagées contidas na sua narrati- va ¢ parecendo desconhecer, ou afcrindo pouca importincia, ao relato do Padre Belchior. Como conclusao do texto, esmerou-se na justificativa da determinagao desse momento como marco definidor da nacionalidade bra- sileira, O tom € 0 de quem buscava objetivamente firmar o.novo marco da Independéncia.e, também, anular todas as dtividas que ainda pudessem existir sobre o mesmo: “Pode-se pois com razio dizer, que o dia 7 de setembro de 1822 fixa a 1" maxima época dos Anaes do Brasil, e faustos da sociedade pelo ato do principe regente em que dew herciileo galpe as Cortes de Lishoa, aniquilando a sua arro- gada soberania sobre o Brasil, declarando a total indepen- déncia da nagao brasileira. Por este ato surgiu na América Austral na regiao do Cruzeiro, um Estado livre, como saido do caos” * (grifo no original) Apés o que, sem descuidar de firmar definitivamente a imagem re- soluta do intrépido herdi, ponderava sobre a idéia que poderia ainda per- sistir acerca da forga decisiva das “instéincias de Senado da Camara do Rio de Janeiro e pelos votos das provincias do Sul” nas tesolugdes ante- Tiores do principe regente, referindo-se 4 resolugio do Fico, ao aceite do titulo de Defensor Perpétuo, ou & convocagiio da Assembiéia Constituinte, Mas sobre a “declaragdo da total Independéncia da nagéo brasileira” nao poderiam pairar dividas. Bla era incontestavelmente: “Obra exponténea ¢ tinica sua, sem protétipe na histéria dos impérios, por ser resolvida estando fora da Corte, sem ministros-¢ conselheiros de Estado, sem solicitagdo, e moral forca de requerimento dos povos, A gloria pois deste ato pelo acontectmento inopinada é pura, privativa, e inaufertvel do senhor D. Pedro de Alcantara”. (grifo no original) 200, Silva Lisboa montaya com maestria o cendrio histérico do Sete de Setembro, atingindo o objetivo possivelmente desejada: a sua narrativa oliminava nfo apenas a imagem de um imperador sujeito 20 desejo dos povos, mas, ao mesmo tempo, a de submissac As diretrizes dos ministrose conselheiros da Corte do Rio de Janeiro e, ainda, anulava a diivida quanto aexisténcia de compromissos mais firmes com a coroa de Braganca. Des- sa forma, a construgio idealizada do Grito do Ipiranga atendia com per- feigdo & memGria que se queria firmar: a ruptura da unidade luso-brasilei- Ta € a conseqiiente Independéncia absoluta do Brasil constitufram atos exclusivos da vontade do imperador-herdi, que tudo fizera para defesada liberdade do seu povo. Assim, jéem 1827, 0 jornal Didrio Fluminense, de 10 de setembro, comentava os festejos do “faustissimo aniversdrio” da Independéncia, acontecido no 7 de setembro, “declarado de festa nacional pela Assem- bigia Legislativa”, ao mesmo tempo em que reivindicava mais pompa no transcurso da data festiva, uma vez que 0 acontecimento “merecia ser celebrado com maior solenidade”. No ano seguinte, 0 jornal Aurora Fluminense, publicava, em 15 de setembro, o discurso pronunciado na Camara dos Deputados pelo orador oficial, Bernardo Pereira de Vascon- celos, “no dia 7 de setembro, sexto aniversdrio da Independéncia do Brasil”. No discurso, o deputado exaltava “o dia do Brasil” nascido do “mdgico grito- Independéncia ou morte, e transmitido por ele em deli- ciosa repercussdo ao Prata e ao Amazonas”. O Jornai do Comércio, de 6 de setembro de 1830, anunciava as festividades que deveriam ocorrer no dia seguinte, para comemoragiio do “aniversdrio da proclamacdo danos- sa independéncia politica” (grito no original), ¢ convidava a populagio para o Te Deuma ser celebrado na Igreja de So Francisco de Paula: “roga- se em geral aos cidad&os de ambos os sexos de comparecerem neste ato politico ¢ religioso”. Trés dias depois, esse mesmo jornal publicava ex- tensa matéria descrevendo em detalhes as celebrag6es ocorridas na festa do aniversdrio da Independéncia: salva de tiros nas fortalezas embandeiradas; Te Deum na capela imperial; cumprimentos do corpo di- plomatico, nobreza, magistratura, oficialidade “e grande nimero de cida- déos distintos”, no Pago imperial; salva de artilharia; revistae desfile de tropas, vivas ao imperador no Campo da Aclamagao; concentragao popu« lar na Praga da Constituig&o para ouvir cantos patristicos. F. de se acredi- tar que o editor do Didrio Fluminense, aquele que cobrara trés anos antes maior festividade na celebragio da data comemorativa da nacionalidade, tenha ficado satisfeito com o programa de solenidades pomposas para co- 201 memorar condignamente 0 Sete de Setembro. Donde se percebe que:a festa magna da nacionalidade brasileira ia se impondo a cada ano com mais forga c sendo celebrada mesmo no 7 de setembro de 1831, momento de dificuldades reais para a preservagao da meméria do imperador, que cafra em desgraga e fora forgado a abdicar do trono do Brasil. Nesse dia, o mesmo Jornal do Comércio publicava um antincio convidando “os bons patriotas” & solenidade de ago de gragas pela protegdo do Brasil, mandada celebrar pela “Sociedade Defensora da Independéncia e Liberdade Nacional” na \greja de S40 Francisco de Paula. No antincio, a Sociedade Defensora observava que, ‘Com essa protecdo divina nos livramos da ambigdo dos anarquistas, como nos livramos da tirania de um déspota estrangeiro”, ¢ simbolicamente conclufa com uma trova que dizia: “Embora conspire 0 inferno/ Contra o ditaso Brasil/ O céu, gue nos favorece/ Salvard a patria gentil”. Nesse mesmo numero 0 jornal, significativamente, publicava um soneto intitulado, Patria, Consti- tmigdo e Liberdade, que enaltecia o Sere de Setembro como: “O dia maior que o Brasil tem tido (.,.) Mais que 0 7 de abril és conhecido (...) Da patria 5 dia, dia idolatrado”. Apreende-se, portanto, que apesar da execragao do heréi maior da cena histérica do Sete de Setembro, D. Pedro - de “principe magnénimo”, passara & condigio de “tirano", de “déspota estrangeiro™ -, a representagao do seu notavel gesto naquele dia histérico, permaneveria na meméria como o marco fundador da nacionalidade brasi- Teira. Resta observar que apés 1829 as obras de viajantes ¢ cronistas - como Robert Walsh, Luiz D’ Alincourt, John Armitage ou Saint Hilaire ** ~ jé aceitavam 0 Sete de Setembro como o marco inconteste da proclama- cao da Independéncia, embora a maioria nao tenha deixado de se referir ao 12 de outubro, apontando-o como um outro marco da ruptura entre o Bra- sil © Portugal. No mesmo sentido se posicionam as principais obras historiogréficas referentes ao tema da Independéncia, como Varnhagen, Mello Moraes ou Pereira da Silva, obras estas produzidas a partir dos anos sessenta, quando, por ocasido das comemoragées dos quarenta anos da Independéncia, da Assembiéia Constituinte e da Constituigao de 1824, voltou & tona a discuss&o sobre a fundamentagao histérica do Sete de Se- tembro. Bastante significativo foi, alids, 0 esforgo entao empenhado, na sede da Corte, para a construgao dos monumentos em louvor ao Imperador D. Pedro Le ao Patriarca da Independéncia, José Bonifacio. O primeiro, cuja idéia inicial datava de 1825, foi inaugurado em 1865 na Praca da Constituigao, hoje Tiradentes, eo segundo no Largo de Sao Francisco,em 202 1872. Também em Sao Paulo, concentraram-se os esforgos para a constru- gio do Monumento do Ipiranga - cujos primciras contribuigées jd haviam sido solicitadas & populagao na época mesma da Independéncia, em 1824 - mas cujos trabalhos de edificagdo sé tém inicio em 1885. Tais monu- mentos seriam fundamentais para a preservagio da memoria de fato da independéncia em Sete de Setembro. Os estudos elaborados posteriormente continuariam aceitando, sem uma anilise critica mais apurada, os marcos j4 estabelecidos pela tradi- gio, Oliveira Lima endossou a interpretagiio do fato da Independéncia a partir dos relatos dos testernunhos das narrativas historicas, nao deixan- do, no entanto, de questionar, em tom de ironia, s¢ José Bonifécio nao teria induzido D. Pedro a viajar para S40 Paulo com a intengdo objetiva de fazer com que a Independéncia fosse proclamada na sua terra natal. E Tobias Monteiro, ao atentar para o curto espago de tempo transcorrido entre 0 Grito de Independéncia ou Morte as margens do Ipiranga ¢ a festa comemorativa no teatro da cidade de S40 Paulo - na qual o principe {4 trazia no brago a divisa nacional cravada em ouro (segundo 0 relato de Canto ¢ Mello, desenhada por D, Pedro ¢ executada pelo ourives Lessa) ja cantava, junto com o pove que © ovacionava, o hino da independéncia que havia composto “neste interim” - apenas comentou: “Se ndo fora 0 testemunho dos contempordneos, custaria a acreditar que em trés horas ¢ meia terminassem. tantas operacées”. Nas anotagGes que fez ao texto de Varnhagen, para mais uma reedigao (a quarta), Helio Vianna observou, com pertinéncia ¢ objetividade, como “iém fantasiado varios autores & falta de documentos decisivos e diante de documentos imprecisos € as vezes contraditorios”, informando inclusive sobre a fragilidade da prova documental da propalada carta de José Bonifacio “infelizmente incomple- ta”, que ndo passava de um rascunho sem data,” As andlises mais recentes ¢ elaboradas por ocasiao do sesquicentendrio da Independéncia ou conti- nuam partidaristas em relagZo A preeminéncia de grupos na'lideranga dos acontecimentos, ou ignoram completamente o tema, deixando de lado uma discussAo que contribuird, sem diivida, para maior compreensio da pro- blemdtica histérica, sobretudo em relacdo as estruturas do pensamento politico que baseou a ago dos agentes envolvidos e sobre a farmaciio das instituigdes basicas do Estado nacional. Acreditamos ser este um tema suscitante, sobretudo no momento atual, no qual a bistoriografia se defron- tacom a retomada da discussao sobre a questéo nacional e cujos elemen- tos basicos se encontram intimamente ligados aos simbolos de nacionali- dade.** Afinal, perscrutar os lugares de meméria, ensina Pierre Nora, 6 um 203 exereicio rico por abrir um vasto campo de possibilidades para os estudos hist6ticos. NOTAS * Ver andlise recentemente desenvolvida por LYRA, Maria de Lountes Viana. A wtopiu do padero- 50 itpério. Portugal ¢ Brusil: bastidores da Politica, 1798-1822. Rio de Janeiro, Sette. ‘Letras, 1994, * Duas elas - uma, produzida em 1844 pelo pintor francés PR, Moreaux existente no Museu Impe- tial, ¢ outra produzida, por encomenda do governo paulista, em 1888, por Pedro Américo - slo. exemplos significativos de representaydes pictéricas com mensagens simbdlicas distintas de om mesmo fato, Cf. breve reflexio sobre o temaem LYRA, Masia de Lourdes Vianna, op.cit., p.219- 220. * CF NORA, Pierre. “Présentation” a Les Lieux de Mémoire. 1f- La Niion. 1. Héritage, Histo- rigraphie, Paysages. Paris, Gallimard, 1986. “ Cf.LYRA, Maria de Lourdes Viana, op. cit,, p. 49 esegs, * Una andlise mais abrangente e aprofundada das questdes aqui enfocadas ea indicagdo das fontes: utilizadas podem ser encontradas em LYRA, Maria de Lourdes Viana, op.cit,p. 191 esegs. * Of. Representagdo de Jusé Bonifiivia, 24 de dezembro de 1821 ” CE. Documentos pura a Histéria da Independéncia, v.1. Lishoa-Rio de Janeiro, Biblioteca Na. cional do Rio de Janeiro, 1923. Vera andlise desenvolvida e a documentagdo citada em LYRA, ‘Maria de Lourdes Viana, op. cit., Parte 4, p. 191-234. “CE Documentos para a Histéria da Independéncia, op. cit..p. 390-391 * Ch: Comrein Brasiliense. w° 173, v. XXIV, p. 170, 176. "Ch Manifesto aos Brasileinns. 1° de agosto de 1822. "Cf. 0 Reguludor Brasileiro, 2 de outubro de 1822, “Cf. Manifesto do Brasil aos Gavernas e Nagbes Amigas. 6 de agosto de 1822. * Cl. O espetta. 13 de setembro de 1822, “CF. Oespelhi, 17 de setembro de 1822. “CE: Proclamagdo aos paulistas.& de setembro de 1822. "CEO espetha, 20.de setemibro de 1822, "Wider. scheme de vereagilo « representucdo do puva de vila de Recife-de Pernambuco. 1° de junko le "CE. Carta de B. Pedro wo pai, D. oda Ve, 2 de setembro de 1822, "Ct. thidem. * Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Hisiiria da independéncia do Brasil. Edigdo Especial Belo Horizonte, Itatiaia, S50 Paulo, EDUSR, p. 134-135, 1981. Scr thidem, p, 134 ¢ SILVA, Pereira da. Mirtéria da Fundagio de Impérie Brasileiro, Rio de Janeiro, Gamier,¥.6, p. 216, 1865. "Cf. tbidem, p. 135 204 “CE MORABS, Melio. Histiiria do Brasil-Reino e Brasil-Impéri So Paulo, EDUSP, p: 450, 1982. * Cf: Ofteia da Camara da Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1822. Cf. Verengéiv extraordindria, 10 de outubro dé 1822. "CFO regulador brasiletro. 23 de outubro de 1822. CH O.espelho. 24 de setembro de 1822. ” 0 Correin Extranrdindrio, de 21 de setembro de 1822, publica o Edital em folha inteira, em forma de cartaz. O espetho reproduz 0 Edital em 24 de setembro. “CE Decreto.10 de derernbro de 1822. “CF, Decreio.13 de outubro de 1822. “Cf Didrio du Assembléia Geral Constitiinte e Legislativa do mpéria do Brasil. 1823. Ed. fac similar, Senado Federal. Obra Comemorativa do Sesqiicentério da Instituig&o Parlamentar. v. 1, 1973. Sessdo de 3 de maio, p.15, Sobre o termo Picanga informa Tobias Monteiro que: “Na épaca da Independéncia escrevia-se Piranga (..) Depots apareceu o acréscimo da vogal”. CF. Histé- ria do Império: a elaburacao da Independéncia. 2d, Beio Horizonte, Itatiaia/S40 Paulo, | EDUSP, £2, p. $20, 1982. “ Of Tratado de 29 de agosto de 1825. Colegio de Leis do Brasil, 1825. “Cf. Carta de George Canning u sir Charles Start, 14 de margo de 1825. “Ch Projeto de El Rei D. Jodo VI reconhecendo a Independéncia do Brasil e determinando 0 modo de sucessda na Corna de Portugal e Algarves. Documentos para a Histéria da Indepen- déncia. v. 1, Lisboa-Rio de Janeito, Biblioteca Nacional, 1923. Nos restringimos a andlise de um dos.aspectos do Tratado de reconhecimento da Independéncia, on seja, o que se refere 4 discussio sobre o principio de suberania. Para maiores informagbes sobre o tema consultar adocumentagioe as reflexes elaborades na historiografia pertineate. Uma visio abrangente pode ser obtida na fhigtoriografia sobre a Independéncia em geral, desde a obrade VARNHAGEN, F. A. Historia da Independéncia do Brasil. \Oed. Belo Horizonte, latiais/Si0 Paulo, EDUSP, 198i, até 2 mais recente, de RODRIGUES, José Honétio. Independéncia: revolugo e contra-revolugao. Rio de Janeiro. F. Alves, Sv.,1975; MONTEIRO, Tobias. Hisiéria do hmpério: o primeiro reinado, cons- titui uma das obras inais abrangentes sobre o tema. “CE. Projeto de El Rei D. Jude VI reconhecendo « Independéncia do Brasil .. acima citeda, "CE. Manifesto aos brasileiras. 1° de agosto de 1822. ™ Arquivo diplomatico da Independéncia, Citaio por José Honéric RODRIGUES, op.cit., v5, p. 150, "Cf. Correspondéncia diplomiitica entre George Canning, Henry Chamberlain, Charles Stuart, Documentos w°s 12, 13, 14 15, teanseritos por RODRIGUES, José Hondrio, op. cit., v. 5, p. 298- 319. “Of. Cartas de 3 de serembro de 1825. * Citado por RODRIGUES, José Honério, op. cit.,p. 151. CE. GRAHAM, Matia, Ditirio de uma viagem au Brasil. Trad, A.J.L., Belo Horizonte, Itatiaia, ‘Sho Paulo, EDUSP, 1990, p. 280. “\C£. Didsio Fluminense, 7 de setembrode 1825. “CE.GRAHAM, Matia, op. cit.,p. 417. “Cf, OTaumuie. 2 de setennbro de 1823. “CE. Colecda de Leis do Brasil. p.7, 1826. -2ed, Belo Horizonte, Itatinia/ 205 "CE Relato do Patdre Belchior Pinheiro de Oliveira. Transctito, mais tarde, junto corm outres és relatos, por CINTRA, Assis.D. Pedra eo Grit de Ipiranga. $80 Paulo, Melhoramentos, p.211- 213, 1921, * Sobre o tema consular ahistoriografia da Independéncia: obcas tmdicionais, como VARNHAGEN, F.A., op. cit: SILVA, Pereira, op. cit; MORAES, Mello, op. cit; MONTEIRO, Tobias, op cit; LIMA, Oliveira .O movimento da Indenendéncia. 1821-1822. Sed, Si Paulo, Melhoramentos, 1972; ¢ obras mais recentes, coma OBERACKER JR., Carlos. Imperatiz Leuprldina: sua vida € sua épova. Ensaio de uma biografia. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Caltura, 1973; ¢ RODRIGUES, José Hondrio, op. cit Lv, "CE. LISBOA, José da Silva. Histéria dus principais sucessos poltiicas do Impéria do Brasil Parte X. Seegao N. Rio de Janeiro, Typ. Impr: Nec.,p. IIL, 1827. “Wide. p. 197. * thidem, p. 167-170. “Silva Lisboa compara a decisiva ago de José Ronificio, contra a intengSo portuguesa de “assenhorar-se du Terva de Santa Cruz", & Polypheno que langara "ad mar wna montanha sabre Ulisses e seus companheirox que tentareon cegé-ta” CF. op. cit, p. 198. “ Cf. LISBOA, Silva, op. cit., secgao Ill, p. 53. “hide, p.54. “Cr. Respectivamente: Noticias do Brasil, (eserita entre 1828 € 1820). Trad. Regina Junquesta. reedigdo. Belo Horizonte, Itatiaia/Sdo Paulo, EDUSP, 1985, Memdria sobre a viagem do porta de Santos @ cidade de Cuiabd. Rio de Janeiro, Typ. imperial e Nacional, 1830; Hiswiria do Brasil (Publicada em 1836) 4 ed. Sao Paulo, Martins, 1972; Viagem a provincia de Sao Paulo, (escrita gm 1845). Trad. Regina Junqueira. reediga0. Belo Horizonte, tatiaia/Sio Paulo, EDUSP, 1976. * Cf. Cecilia Sales de Oliveira emestudo ainda em clesenvolvimento sobre.o monumento do Ipiranga, O espetéculn do Ipiranga: reflextes sobre o imagindrio da Independéncia, a sex publicado em breve nos Anais do Museu Paulista, 7 “CE VARNHAGEN, BA.,op.cit. p. 135-136. “Ocexemplo mais mente € interessante trabalbo de CARVALHO, José Murilo de. forage das almas. $30 Paulo, Companhia das Letras, 1992, 206

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