Hermeto Entrevista - Revista Manchete 1982

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Hermeto Pascoal - Revista Manchete (1982)

Hermeto Pascoal sempre foi reconhecido como um músico dos mais criativos do mundo. Sua
forma de compor e executar suas músicas chamam a atenção pelo inusitado, e principalmente
pelo belo resultado final. Falar de Hermeto é falar de um Brasil universal, que ganha
fronteiras e conquista os ouvidos que buscam algo de novo, e encontram em sua música todo
um universo musical que se abre e despeja sobre as pessoas uma música que não se prende
somente a amplitude das sete notas musicais. Em 1982, a revista Manchete trazia uma
matéria com esse grande músico, assinada pelo editor da revista, e crítico e pesquisador
musical dos mais respeitados - Roberto Muggiati. A matéria se intitula "O homem que
inventou a música". Em uma introdução à entrevista, a revista traz o seguinte texto:
"Chorinhos, zabumbas, guarânias, frevos, valsas, dobrados, xotes, xaxados, modinhas,
improvisos jazzísticos e peças de ar erudito. - a caixa de surpresas de Hermeto Pascoal tem de
tudo. Aos 46 anos, o mago da música instrumental voltou à cena com uma recente temporada
carioca e um novo disco. Neste, o primeiro que lança depois de quase três anos, Hermeto
novamente se multiplica, tocando bombardino, cavaquinho, flautas, sax alto, ocarina, bateria,
surdo, percussão, piano (usa o piano acústico com folhas de jornal), hormônio, clavinet,
apitos, assobio e voz, ou efeitos vocais que incluem uma 'voz satírica com apito'. Ao lado dos
nomes dos músicos, figuram créditos tão estranhos como o dos 'cães vocalistas' Velho,
Princesa, Bolão, Mike e Penélope, e os cantos a cargo do Galinho Garnizé e da Cigarra do
Flamboyant. Enquanto não está viajando, pelo Brasil ou pelo exterior (em 83 vai repetir com
seu grupo a turnê europeia do ano passado), Hermeto 'se esconde' no Bairro Jabour, em
Bangu, a 40 km do centro do Rio. A gente do bairro já se acostumou com os gringos
extraviados em busca do ashram de Hermeto; muitos, mesmo, desembarcam no Galeão e vão
direto para Bangu à procura do mestre. Roberto Muggiati, de Manchete, achou o caminho e
conversou com Hermeto sobre o seu trabalho atual e seus planos. Eis um resumo da
entrevista:

Animais musicais - “Tudo começou no Rio, há muitos anos, no FIC. Levei um porco e quatro
galinhas, mas o pessoal ficou assustado, pensou que eu fosse soltar o porco no auditório. Eu
tive paciência e esperei. Em Missa dos Escravos usei o porco como queria, como introdução da
música com os dois violões, e a partir daí todo mundo passou a entender a minha ideia. Mas
foi neste último disco que consegui um lance ainda mais bonito, com os cachorros, a cigarra e
o galo. Gravei em casa, com a intenção de usar no disco, mas sem saber em que música.
Queria que fosse surpresa, até para mim. Coincidiu que a passagem do galo é uma coisa
maravilhosa: a música é em si bemol e, quando toquei, o galo estava em si bemol também.
Tecnicamente, passamos cada som para um canal e usei os bichos em cada faixa como um
instrumento. A cigarra eu vou continuar: num próximo disco quero transcrever os sons da
cigarra, que são uma infinidade.”

O som da surpresa – “Sintetizador? Se eu tenho minha capacidade de criação, não sinto


necessidade do sintetizador. Não acrescenta nada, apenas encobre muitas coisas. Posso até
tocar um, dar uma canja, mas não vou levar para um estúdio. Um estúdio de gravação é para
mim como uma catedral. E já tem tanta coisa lá mesmo - um cinzeiro, uma tampa de piano -
que o sintetizador é um negocinho pequenininho. E, depois, o timbre dele é horroroso,
irritante. Eu gosto do som diferente. O som do sintetizador é programado, não é um som de
surpresa. Quando toquei com o McLaughlin no Festival de Jazz de São Paulo, me deram um
sintetizador. Eu escolhi tocar sem nenhum programa, usando-o como se fosse um simples
piano. Ele e seus músicos deliraram, o baterista até rasgou a bateria e me deu um abraço que
quase me sufocou. Foi uma jogada diferente: é isso que eu chamo o som da surpresa.”
Um desafio – “Num recente programa de TV, eu falei que gostaria de fazer uma espécie de
duelo - um desafio sadio - em que viesse um músico com todos os sintetizadores do mundo e
eu usando o que quisesse, coisas que as pessoas me trazem, ou que eu trago de casa: um
pedaço de enxada, égua com pedras dentro, uma mesa, um espelho, dois ou três cachorros
pequenos. Acho que o sintetizador não dava nem pra começar...”

O instrumento Hermeto – “Quer saber como surgiu esta coisa de usar a voz, os lábios, o
corpo? Eu acho que o músico é um mágico e tudo é possível para ele. Só é preciso que confie
em si mesmo. Eu imagino um cara com um lenço, fazendo uma mágica, eu me sinto assim.”

Sua obra composta – “Fico invocado quando tento juntar minhas músicas, de tanta coisa que
tenho guardada. Pretendo lançar um dicionário-método, com meus temas escritos, cifrados e
tudo, as pessoas me pedem muito. Faço música como escrevo uma carta. Nos últimos shows,
eu compunha enquanto os músicos ensaiavam no palco. Por isso não ouço muita coisa dos
outros, muitos discos, me dá vontade imediatamente de pegar um instrumento e sair tocando,
compondo. Devo ter umas mil ou 1.500 composições, só das novas; das antigas, põe outros
tantos.”
O som de tudo – “As pessoas me trazem muitas ideias, as conversas, eu aproveito tudo, até
um cara xingando, outro cara rindo. Eu vejo cada pessoa como um instrumento, um som, uma
voz. Tudo isso, a fisionomia das pessoas, me atrai, me dá uma motivação, e eu saio correndo
pra compor.”

O próximo disco – “Agora vou dar um furo: vou fazer um disco sozinho. Sozinho mesmo... Sem
instrumento, sem nada, sabe como é? Não vou levar instrumento nenhum e quero fazer tudo
com a voz - ritmo, pandeiro, bateria. Vou alterar a velocidade para que a voz fique fininha e
imite um trompete. Tudo que eu imaginar de instrumento que existe eu quero fazer com a voz,
e com sons do meu corpo, abrindo os vocais, tipo grupo, sem escrever nada, no estúdio,
usando vários canais... Vou fazer blocos, vou fazer ritmos. Vou me desafiar mesmo. E vai ser
um lance fascinante... "

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