Hermeto Entrevista - Revista Planeta 1982
Hermeto Entrevista - Revista Planeta 1982
Hermeto Entrevista - Revista Planeta 1982
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Por: Carlos Roque. Fotos: Cristina Villares para a Revista Planeta/115 de abril de 82,
gentilmente cedida por Graciela Kruscinski.
Canceriano de Arapiraca (Alagoas), seis filhos e uma única esposa, 45 anos de idade e 38 de
iniciação musical, autoproclamado "cidadão do mundo", Hermeto Paschoal é hoje uma das
mais perfeitas sínteses entre o conhecimento teórico musical e a expansão intuitiva da mente
através da magia dos sons. Depois de cinco álbuns gravados (três aqui e dois nos EUA) e
"duelado" com os mais competentes, sofisticados e simples músicos da Terra, além de
parcerias com outros animais (organizadíssimas orquestras de sapos, porcos talentosos e
outros bichos), ele fala a Planeta sua experiência como músico, místico e telepata, da mente
em turbilhão.
De todas as formas existentes e conhecidas de arte, a música parece ser a forma de expressão
que mais comporta e traz em si mesma a magia e o mistério da emoção imediata, forma esta
detectada pelas antenas mais sensíveis, talvez por tocar de uma maneira mais aguda os
centros emocionais dos seres. Hermeto Paschoal, considerado pela crítica especializada como
um dos melhores e mais criativos músicos do mundo, é o que poderia ser chamado de um
músico instantâneo. Respira e exala música pelos poros, voz, toques, narinas, olhos,
expressões.
Nos encontramos numa tarde em que chovia densamente, no Estúdio de Arte Fotográfica
Preto&Branco, no coração de Sampa, alguns dias após a estréia, no Teatro da Universidade
Católica, do espetáculo "Brasil Universo", onde Hermeto e sua banda, composta por
magníficos e virtuosíssimos músicos, deram uma mostra da atual fase do inquietante e
controvertido trabalho hermetiano. Sandálias de couro, chapéu de palha estilo panamenho,
enormes cabelos brancos puxados para trás, óculos semiescuros, bata cor de açafrão com
bordados delicados. Sua personalidade lembra, à primeira vista, um gnomo em proporções
humanas. Parece um personagem extraído do Livro das Fábulas, de Hermann Hesse.
Indubitavelmente Hermeto é um bruxo do Bem - naturalmente -, como o Don Juan de Carlos
Castañeda. Aos 45 anos de idade, natural de Lagos da Canoa, município de Arapiraca, Alagoas,
teve suas primeiras experiências musicais aos 7 anos de idade, quando abraçava-se à
harmônica de oito baixos que seu pai, após tocá-la, deixava sobre a cama.
Depois de urna breve familiarização com o instrumento, ele e seu irmão, José Neto, tocavam
para seu pai ouvir. Desde então não parou mais. Tido como mestre por músicos do quilate de
John McLaughlin (ex-integrante do grupo Mahavishnu Orcuestra e considerado pela crítica
especializada como o guitarrista mais ágil do jazz) ou do tecladista Crick Corea, Hermeto já foi
alvo de calorosos e arrebatadores elogios como os que recebeu de Claude Nobs, organizador
do Festival de Jazz de Montreux, que o considera um dos maiores jazzman do mundo.
Hermeto jamais estudou música formalmente. Quer seja em conservatório ou através de aulas
particulares. Aprendeu tudo sozinho. Sua voz é baixinha, pausada e cálida. Ele diz assim:
"A música acontece comigo de uma maneira intuitiva. Eu tenho uma maneira toda minha de
escrever música. É um trabalho que venho desenvolvendo ao longo de todos esses anos e que
futuramente pretendo editar. Por não ter tido professor eu criei uma nova maneira de escrever
música. Meu professor chama-se Mundo. Esse é o meu professor. Eu acho que a música só é
convencional quando a gente não cria. O negócio é intercalar as coisas. São como as cores;
tudo depende do gosto das pessoas. Então eu pego as notas musicais e simplesmente jogo
com elas. Eu conheço todas as claves e todos os instrumentos. Eu escrevo pra sinfônica, banda,
coro e pra qualquer tipo de orquestra."
Um pedaço de pau tem a mesma importância do saxofone
Hermeto estabelece com a música uma relação cromática. Seu universo musical parece ser
grávido de cores. Ele mesmo explica-se: "Da mesma maneira que um pintor pinta um quadro
eu posso compor. Tudo isso porque eu já tenho os sons na mente. Posso tocar piano
imaginando um piano. Eu não sinto falta de instruumento."
Ele não tem idéia de quantos instrumentos toca. Ao que se sabe, Hermeto é um
multiinstrumentista. Toca piano, órgão, harmônio, bateria, clarinetes, triângulos, violão,
cavaquinho, flautins, sax-soprano, flautas, pedal de órgão, tamborim, surdo, saxofones, etc.,
faz dueto com sapos, grilos e porcos, além dos instrumentos por ele inventados, como a bacia
e as garrafas d'água. Ele explica como vê um instrumento musical: "Cada vez que eu pego um
instruumento eu sinto que nunca é igual. Eu sinto como se fosse um outro instrumento. A
mesma importânncia que dou a um saxofone eu dou a um pedaço de pau. Porque com um
pedaço de pau eu faço um som tão importante quanto eu faço num saxofone, piano ou
qualquer outro instrumento."
Paschoal diz que toda pessoa faz música. Mesmo sem o saber. Exemplifica esse conceito da
seguinte maneira: "Quando alguém pega uma panelinha, põe um ovo pra fritar... você já ouviu
que som lindo é um ovo fritando? Pra mim todas as pessoas são grandes percussionistas. Só
que muitas são percussionistas inconscientes. Por exemplo: você tá na cozinha e escuta a
pessoa dizer: 'O Fulano, me traz aqui a colher de pau!"
Para Hermeto, todos esses detalhes do cotidiano ganham conotações musicais. Assim sendo,
ele in-terpreta a frase acima musicalmente e é uma pena que no texto, se já é impossível
traduzir a beleza com que Hermeto cantou: "Oh Fulano, me traz aqui a colher de pau."
Usa a imaginação para criar sons e simplesmente os concebe, através dele. Instantaneamente.
Ele diz assim: "Pra mim tudo é música e a música é tudo." Trata-se de um artista do signo de
Câncer, filho da Lua, das águas, Mãe da Terra. Perguntado se acredita em Astrologia,
responde: "Eu acredito em tudo, desde que seja feito com muita seriedade, estudo e muito
respeito. Eu acho a Astrologia uma coisa seriíssima Mas tem muita brincadeira nisso tudo.
Como também tem muita brincadeira em cima da música.
Hermeto trabalhou na Rádio Difusora de Caruaru (PE) e tocou na feira dessa mesma cidade
além de peregrinar por várias regiões do Nordeste; das caatingas às feiras populares. Mais
tarde, já em São Paulo, sentava nos degraus da escada da Igreja da Consolação, de noite, e
fazia um som. Tocou também muitas vezes nas boates paulistas. Suas aparições em televisão
se deram em meados dos anos 60, na época dos festivais de música que ele gosta muito "pela
oportunidade que dão aos músicos de mostrarem seus trabalhos".
Ele acha que o músico é um mágico. Mas faz questão de frisar: "Mas nem todo mágico é um
músico. Porque há determinadas pessoas que já nascem com o dom da música. Então é
preciso que esse dom seja lapidado, desenvolvido. Cada pessoa nasce com um dom específico.
Esse negócio da gente querer agradar as pessoas e dizer que todo mundo é inteligente, tem
um mesmo nível ... eu acho errado. É claro que ninguém tem culpa, mas existem determinadas
pessoas que assimilam as coisas com muito mais facilidade. Modéstia à parte, eu sou uma
delas." Ele lembra uma passagem muito interessante ocorrida em Berlim, durante um Festival
no qual participou, onde fazia um número tocando flauta. Momentos antes de entrar em
cena, ocorreu-lhe a idéia de pegar uma flauta, que parece uma bengala, e introduziu dentro
da mesma uma outra flauta de bambu. Hermeto já tinha ouvido falar que na "terra de
Beeethoven" havia um público muite exigente, mas, como sempre, achou que não há
diferença de público, seja europeu ou hindu. Entrou em cena como se estivesse em qualquer
teatro brasileiro.
O telepata que viaja com os sons no plano astral
Vamos agora ouvir o desfecho dessa história através do próprio Hermeto: "Aí eu pensei assim:
'Quando eu for tocar não vai sair nada, nem uma nota.' Fiz uma expressão como se estivesse
apavorado. Bicho, quando eu soprei e não saía nada eu ouvia o sussurro do público alemão
que parecia uma porção de abelhas, como a dizer assim: 'Coitado, coitado do rapaz ... que
vexame: Eu escutava tudo, não pelas palavras, mas sim pelas vibrações mentais que eu
captava das pessoas que estavam me vendo. Na verdade o som não é importante. O que
ocorreu é que eu sabia o que elas falavam entre si. Quando eu atingi o máxino do desespero
possível na platéia e também pra efeito de um impacto maior, eu inclinei a flauta um pouco e
de dentro da flauta maior foi saindo, aos pouquinhos, a flauta de bambu. O teatro, quase caiu.
Na hora me veio o pensamento que aquilo era magia pura. Naquele momento eu agradecia ao
Ser Maior, ao Infinito por eu ter tido a idéia de me comunicar com o público de uma maneira
tão mágica e tão sublime e que serviu de introdução para a música que eu ia tocar. Então eu
peguei a flauta de bambu, pus a flauta maior no chão, e fiz um solo maravilhoso que arrasou
com tudo."
A magia faz parte integrante não só do seu trabalho, mas tammbém da sua própria vida. Ele
conta agora uma incrível experiência transcendental ocorrida num teatro de São Paulo. "Uma
vez eu tocava piano num show e comecei, repentinamente, a ver uma porção de coisas. O que
eu vou falar pode dar a impressão de que são coisas assombrosas, mas não são não. Eu via
aranhas, um negócio assim, tudo misturado, e eu vendo aquilo imediatamente fui levando o
piano comigo, tocando sem parar e o piano indo embora comigo e eu indo embora com o
piano até que eu passei do palco com piano e tudo e caí lá embaixo, no chão. Foi uma
sensação tão maravilhosa que não tem expressão que possa definir. "
Hermeto diz que não consegue chorar. Seu choro é interior. Pra ele a tristeza não existe. Mas
tem horas que sente um estranho embargo na voz, o famoso nó na garganta. Sua visão de
mundo é neutralista e singularizada. Diz que quem faz o mundo somos nós mesmos e que
parar pra analisá-lo é não conseguir nada. "Enquanto nós pensamos as coisas rolam e o
importante é que estejamos todos unidos. Pensar juntos é melhor que pensar separados."
Praticante de vários exercícios mentais, ele diz que se quisesse ficar rico abriria uma academia
para ensinar esses exercícios. Mas como essa realmente não é a dele, prefere ficar na música
mesmo. "O que é que adianta eu ficar rico? Pra depois morrer do coração e ainda por cima
frustrado?"
Ensina alguns exercícios que pratica e que, para ele, funcionam como uma espécie de
relaxamento meditativo-contemplativo e, ao mesmo tempo, como exercícios ideais para a
expansão da consciência.
Um dos exercícios mais praticados por ele consiste em fechar os olhos, exercendo leve
pressão sobre as pálpebras com as pontas dos dedos, e relaxar. Hermeto diz que quando
pratica o exercício consegue ver coisas e cores maravilhosas. Aponta para minha blusa de lã
colorida e diz que as cores da blusa são "mais ou menos" se comparadas com as cores que
consegue vislumbrar quando pratica esse exercício. Não raro, no auge desses exercícios,
pintam temas musicais. E então vai correndo pegar um dos instrumentos dispostos
caoticamente sobre sua cama e compõe uma canção com os olhos fechados.
E também desenha, não obstante o fato de quando está em transe - vamos dizer assim - não
conseguir as cores como as que vê, "pois são cores sublimes, mas como diz o ditado: 'Quem
não tem cão caça com gato'."
Hermeto vê o que quer. Numa simples cortina ou numa poça d'água consegue vislumbrar as
mais belas imagens. Nos shows que dá consegue ver até arco-íris no meio da platéia. Por esses
relatos incríveis dá pra perceber, nitidamente, que Hermeto é uma criatura que - como diria
Friedrich Nietzsche - está acima do Bem e do Mal. Simplesmente é portador da terceira visão,
que nele parece ser altamente desenvolvida.
À semelhança do Don Juan de Castaneda, Hermeto não olha simplesmente para as pessoas ou
para as coisas. Ele "vê" as coisas com seu "olho especial", fato que para ele é normal. Me
arrisco a falar que ele consegue "ver" tudo isso porque tem olhos de feiticeiro. Ele retruca e
diz que o termo "feiticeiro" é muito confundido e que nada tem a ver com algo demoníaco.
Diz ser freqüenntemente visitado, em sonhos, por seres que o ajudam a solucionar, quando
ocorre, alguma dificuldade no seu trabalho musical. Depois do problema resolvido entra num
processo altamente angustiante, no sentido de tentar identificar esses seres ou entidades
espirituais que o ajudam. Mas por mais que queira, não consegue saber quem o ensinou. Para
isso ele tem uma explicação: "O que acontece é que a 'pessoa' não quer se identificar. Quando
comecei a aprender música eu só distinguia as notas através do processo em que eu
classificava as notas pretas e as notas brancas. Quando eu passei do oito baixos para o
acordeon eu me lembro que sonhei que as notas pretas tinham um som diferente do som das
notas brancas. Tive um sonho bastante inquieto. Me levantei, fui para o acordeon e os sons
das notas pretas eram exatamente os sons que em sonho eu ouvi."
A arte no reino animal: dois porcos no Bel Canto
No começo dos anos 70 Hermeto grava seu primeiro disco: A Música Livre de Hermeto
Paschoal. Sua primeira viagem ao Exterior foi para compor e arranjar músicas para o
percussionista brasileiro Airto Moreira e para a cantora Flora Purim. Desde então vem
solidificando seu nome no mercado internacional do disco e cada vez tem recebido mais
proopostas para trabalhar no Exterior, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Já
tocou com alguns dos maiores nomes - só para citar alguns - do jazz, como Airto Moreira,
Miles Davis, Ron Carrter, Chick Corea, John McLaughhlin, entre outros. Hermeto conta agora a
já histórica e mítica ocasião em que levou dois porcos num estúdio de gravação norte
americana.
"Eu já tinha tentado fazer esse trabalho aqui no Brasil, mas infelizmente as pessoas ficaram
com medo. Todo artista inovador, quando sugere ou vem com algo que foge dos padrões tidos
como convencionais, é erroneamente alcunhado de maluco. Meu lance com os porcos foi
justamente para registrar o som que esses animaizinhos emitem. Muitas pessoas tentavam
imitar o som do porco, do cachorro, enfim, o som dos animais de uma maneira que eu
constatava. Pegavam plástico, essas coisas industrializadas, para tentar imitar o som dos
animais. Então eu sempre achei que o animal, que é tão pequeno, poderia ser levado para o
estúdio e assim fazer um trabalho fiel no sentido de reproduzir o som que eles emitem de uma
maneira muito mais bonita do que um som artificial. Aqui, infelizmente, não consegui fazer
esse trabalho, mas nos Estados Unidos, onde sou muito respeitado, fiz com a maior facilidade
do mundo. As pessoas logo ficaram por demais curiosas e prontamente liberaram o estúdio.
Conseguimos arrumar dois porcos de estimação mas tivemos que levar os donos dos porcos,
pois eles ficaram muito intrigados pensando assim: 'O que será que vai acontecer? Será que
ele vai maltratar os bichinhos?' Então fomos todos para o estúdio. Chegando lá eu disse asssim
para o Airto: 'Airto, eu vou lá pra mesa de som e você fica com os dois porcos. Quando eu pedir
para você levantar o número 1, que tem a voz mais grave, você simplesmente levanta o
bichinho; quando eu pedir pra você levantar o número 2, que tem a voz mais aguda, você faz a
mesma coisa.' E assim foi feito. Gravamos a voz de cada porco em canais separados. No final
todo mundo ficou contente, porque ficou uma gravação maravilhosa. Aliás, essa música
chama-se "Missa dos Escravos" e foi concebida na hora da gravação, muito embora eu já
tivesse o tema em mente e que era o de uma missa sendo celebrada dentro da mata e os
porquinhos andando em volta."
Para ele o Brasil é o país mais criativo e o maior celeiro musical do planeta. Hermeto não
ambiciona a riqueza nem a glória: "Quero ficar rico, cada vez mais rico, só que em notas
musicais."
O Campeão conta agora uma interessante passagem ocorrida na Argentina e que tem a ver
com sua postura de universalidade. "Fui convidado a participar de um programa em que havia
música erudita e música popular. Pra mim essas classificações são despropositais na medida
em que eu considero tudo apenas música. Eu não gosto de ouvir bobagem. Então o cara
anunciou que eu ia tocar música popular brasileira. Daí eu perguntei: 'Você toca música na sua
rádio?' Aí o cara respondeu que sím e eu completei: 'Pois é, eu vou fazer música. Não sei o que
é. Só sei que é música.' Ele pediu desculpa e eu disse que queria total liberdade no estúdio para
fazer o programa. Eu me lembro que pedi uns papéis, uns pedaços de plástico que agora eu
nem me lembro pra que eram. É o tal negócio da criatividade imediata. Então me deram tudo
que eu pedi e me deixaram absolutamente à vontade no estúdio. No final saiu um som tão
maravilhoso que eu acabei fazendo três programas. Eu não sei dizer o que aconteceu comigo.
Eu fiz um som absorvendo os fluidos do pais em que eu me encontrava. No final o cara virou-se
pra mim e falou: 'Mas que som! Até parece aqui de nossa terra!' Então eu perguntei: 'Da nossa
terra que você quer dizer é a sua, não é?' Ele disse que sim e eu falei: 'Da sua terra não, bicho,
da nossa terra, pois a sua terra é a minha também'!"
Hermeto prefere gravar no escuro, "para acender suas luzes interiores". Quando era criança
ficava horas em frente ao espelho tentando encostar o queixo na testa. Como não conseguiu
tal proeza aproveitou esse difícil exercício facial e, quando bate a mão sobre o queixo,
consegue fazer um som oco e absolutamente original. Outro recurso por ele explorado é o de
bater um instrumento contra o outro. Hermeto conta agora uma incrível experiência espiritual
que teve com o saxofonista norte americano Cannonball Adderley, ex-integrante do grupo de
Miles Davis. Deixemos que ele mesmo conte a história: "Quando eu estava nos Estados Unidos
conheci Cannonball Adderley. Conheci muito superficialmente e jamais estive em sua casa.
Não tinha nenhuma afinidade física com ele mas sim uma enorme afinidade espiritual, que
constataria mais tarde. Tanto é que sempre quando eu ia para os Estados Unidos, não sei de
que forma, ele sempre vinha a mim."
Depois da morte de Cannonball, uma música precisa ser reconhecida pela esposa do artista
Relatando esse caso, Hermeto assume um semblante grave e seus pequeninos olhos brilham
de emoção. E prossegue: "No disco dele eu fui convidado pra fazer um arrranjo, na hora,
dentro do estúdio, além de ter feito a música. Mas Deus levou Cannonball. No interrvalo da
gravação desse disco fomos jantar. No meio do jantar eu parei de comer, pedi um guardanapo
grande e pedi para Airto deesenhar as imagens que eu ia recebendo. Tinha que desenhar
rápido porque as imagens eram muito rápidas e evanescentes. Na medida em que eu ia
recebendo as imagens ia passando para o Airto desenhar. Eu pedi pra ele desenhar uns anjos e
o que ele não soubesse desenhar pra escrever as palavras que designavam as imagens que eu
recebia. Quando ele terminou os desenhos eu me levantei da mesa e disse: 'Preciso ir para o
estúdio agora.' Aí fomos correndo para o estúdio. Chegando lá falei para o técnico: 'Vamos
gravar agora. Pelo amor de Deus. Precisamos gravar agora.' Então, quando gravávamos recebi
a mensagem de Cannonball Adderley. Depois da gravação ter sido concluída eu mandei a fita
para a esposa dele, que ainda estava muito chateada com a perda do marido. Essa música foi
enviada através de um amigo do casal. Mas eu recomendei que ele não dissesse nada. Apenas
pedi pra ele que mostrasse a música e procurasse saber a reação dela após ouvi-la. No dia da
gravação todo mundo chorou; o técnico, os músicos... todos choraram. Todo mundo ficou
muito louco. Superhigh. Quando a esposa de Cannonball ouviu a introdução veio
instantaneamente na mente dela a imagem do marido. A música chama-se "Cannonball", mas
ela não sabia disso. Foi só depois dela ter dito, ao amigo que levara a fita, que aquela música
fez com que ela lembrasse do esposo, é que ele contou toda a história. Ela ficou
sensibilizadíssima e pediu que ele agradecesse a mim e, como reconhecimento por essa
homenagem que eu prestei a ele, mandou o saxofone dele para que eu usasse. Porque antes
dela ouvir a música o saxofone seria levado ao museu. Mas eu não quis usar o saxofone
porque achei que os americanos iam ficar com ciúmes. Vão pensar que além de eu fazer uma
música em homenagem a um cara que eu não conhecia intimamente quis ficar com o saxofone
dele. Então, pra evitar mal-entendidos, eu recusei o saxofone." .
Hermeto não sabe quantos disscos já vendeu e nem se preocupa com isso, pois mesmo que
procurasse saber nunca saberia ao certo. O que sabe, e tem certeza, é que pelo menos 10
trilhões de pessoas o escutam assiduamente em todos os planetas.