Como Evo Morales perdeu o apoio do Exército e dos sindicatos na Bolívia
- Author, Marcia Carmo
- Role, De Buenos Aires para a BBC News Brasil
Quando chegou à Presidência da Bolívia, em 2006, Evo Morales contou com pilares considerados fundamentais para sua governabilidade: as Forças Armadas, a polícia, os sindicatos, os produtores da folha de coca, os movimentos indígenas e os trabalhadores da mineração.
Com o tempo, o crescimento econômico e a queda nos índices de pobreza contribuíram para que Morales, que tinha sido eleito com quase 54% dos votos, tivesse mais de 60% nas seguintes votações de suas reeleições em 2009 e em 2014.
Mas, em 2016, ocasião do plebiscito que Morales convocou para saber se os bolivianos queriam que ele buscasse seu quarto mandato seguido, o respaldo da população foi inferior aos 50% — ainda assim, alto, observaram ministros do seu governo, para alguém que estava havia tanto tempo no poder.
Nos últimos dias, porém, quase 14 anos depois de ter assumido a Presidência, aqueles mesmos respaldos que tinham sido pilares da sua governabilidade minguaram ou desapareceram, contribuindo para que Morales anunciasse sua renúncia na noite de domingo (10/11).
A BBC News Brasil conversou com o ex-ministro da Economia do governo de Evo, Luis Arce, com dois analistas bolivianos, com um executivo de empresa e uma ex-assessora do primeiro governo de Morales para entender como essa base de apoio se esfacelou levando à crise atual.
O ex-ministro opinou que o fato de os policiais terem virado as costas para o presidente foi "decisivo" para acelerar a crise e sua renúncia. O motim dos policiais, iniciado na sexta-feira e ampliado no sábado, foi realizado em vários pontos do país depois de quase 20 dias de confrontos nas ruas entre apoiadores e opositores do governo.
Os confrontos surgiram depois da questionada apuração dos votos da eleição presidencial do dia 20 de outubro — os resultados finais apontaram vitória de Morales em primeiro turno, a apuração foi considerada fraudulenta pela oposição e a Organização dos Estados Americanos (OEA) recomendou a realização de um novo pleito.
"Os interesses econômicos pesaram muito. Camacho prometeu de tudo para eles", disse Arce, pelo telefone, referindo-se ao líder opositor Luis Fernando Camacho, que já foi chamado de "Bolsonaro boliviano" por seus discursos de cunho religioso.
De aliados a críticos
No domingo, o comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, pediu a Morales que renunciasse "diante da escalada do conflito" e para "permitir a pacificação do país".
Antes, as Forças Armadas eram frequentemente convidadas por Morales para suas ações de governo, mesmo que o tema não estivesse diretamente ligado à farda, como ocorreu quando ele determinou a nacionalização dos setores de petróleo e de gás no país, pouco depois de assumir a Presidência.
Para o analista Roberto Laserna, do instituto Ceres, de Cochabamba, a decisão de Morales de "se perpetuar no poder" com a busca do um quarto mandato gerou decepção inclusive em setores que o apoiavam.
"Isso convenceu aos mais céticos de que Evo não poderia continuar. Além disso, a desconfiança no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a apuração da eleição, com (denúncias de) fraudes, levou às manifestações no país", afirmou Laserna. "E, ontem (domingo), o ponto decisivo foi que a COB (Central Operária da Bolívia) se uniu ao pedido de renúncia de Evo."
A COB é uma entidade histórica no país, a principal central sindical boliviana, que reúne vários sindicatos e se manteve fiel a Morales desde que ele chegou ao palácio presidencial Quemado.
Uma ex-assessora da área política do governo, que se afastou da administração central há alguns anos, contou que alguns setores sindicais foram fragmentados durante a gestão de Morales — e essa fragmentação também foi, na sua opinião, enfraquecendo o apoio quase majoritário que o presidente tinha antes.
"A forma de Evo construir poder incluía a divisão. (...) A gestão de Evo foi marcada pelo sentimento de 'te amo' ou 'te odeio', sem meio termo", opinou.
Um dos exemplos citados pela ex-assessora foi o do projeto de construção da rodovia que ficou conhecida como Tipnis, em uma área indígena e reserva ecológica, entre Cochabamba e Beni. Para o governo, a estrada serviria para unir o país. Para defensores do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), não seria assim, o que gerou decepção entre apoiadores locais.
"O apoio que Evo tinha em diferentes setores foi minando por suas próprias medidas, como no caso do Tipnis", afirmou o analista político e econômico Javier Gómez, do centro de estudos Cedla, de La Paz.
Manifestações de jovens
Mas as manifestações que acabaram gerando sua renúncia contaram, principalmente, com a participação dos jovens. Universitários, estudantes do secundário que acabaram convencendo também aos seus pais que deveriam ir para as ruas.
"Estas manifestações são novas na Bolívia e por isso aqui se diz que é a primavera boliviana e isso não tem nada de golpe, como disse Evo", afirmou Gómez.
Segundo ele, os produtores de coca — conhecidos como "cocaleros" — e os mineiros que antes apoiavam Morales passaram a se unir às manifestações dos últimos dias.
Para o analista, os mineiros cooperativistas do Departamento (Estado) de Potosí e os cocaleros de La Paz aderiram aos protestos por seus próprios motivos, mas simbolizando, na sua visão, que a "insatisfação" não se limitou às classes médias, mas aos setores que até pouco tempo apoiavam Evo.
"Os cocaleros de La Paz queriam, havia muito tempo, os mesmos direitos de produção e de comercialização que os produtores do Chaparé, em Cochabamba, mas não foram ouvidos. Os mineiros de Potosí saíram em caravana para La Paz para protestar e no caminho foram alvos de emboscadas muito suspeitas. Os ônibus foram queimados e eles foram alvos de tiros e que não eram da polícia", disse Gómez.
Na entrevista à BBC News Brasil, o ex-ministro Luis Arce disse que as situações dos produtores de coca de cada região eram diferentes entre si e que, no caso dos mineiros, disse, os que aderiram aos protestos eram mais ligados aos empresários do que propriamente aos mineiros.
"Nós fomos alvo de um golpe que contou com ajuda externa. Além disso, Camacho (o empresário opositor de Evo e que pediu sua renúncia) é filho de um colaborador do ex-ditador Hugo Banzer. Os comitês cívicos se uniram e abriram caminho para o que aconteceu", afirmou Arce, referindo-se à saída de Morales.
Um executivo de Santa Cruz de la Sierra, cidade que é uma das referências dos chamados "comitês cívicos" (reuniões de críticos do governo), disse que, acreditando que o Movimento ao Socialismo (MAS), de Morales, fosse continuar na Presidência, muitos empresários mantinham uma relação "pragmática" com o presidente — informação corroborada pelo ex-ministro Luis Arce.
"Mas quando principalmente os mais jovens começaram a fazer manifestações, depois dos incêndios (que afetaram áreas florestais bolivianas, na mesma época dos incêndios na Amazônia brasileira), os empresários também foram aderindo aos protestos. Foi uma manifestação pacífica que incluiu a greve de quase 20 dias, depois da eleição, em vários pontos do país", disse o executivo.
Para Arce, o governo Morales "não fez nada de errado", e sim "ao contrário", ao melhorar a qualidade de vida dos bolivianos, mas ele reconheceu que a renúncia foi uma consequência da perda de apoio entre os grupos que tradicionalmente o sustentavam.
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