Eleições na Bolívia: o paradoxal sucesso das multinacionais na 'economia plural' de Evo Morales 

Evo Morales com Antonio Brufau, presidente da Repsol

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Evo Morales com Antonio Brufau, presidente da petroleira espanhola Repsol
  • Author, Boris Miranda (@ivanbor)
  • Role, BBC News Mundo

Em 2002, terminava a desventura do McDonald's na Bolívia.

A icônica rede de fast food se despediu do país apenas cinco anos após ter chegado — e não conseguido obter os resultados esperados.

Na época, a Bolívia dava continuidade a mais de 15 anos de governos liberais, com vocação pró-mercado e abertura ao capital internacional.

No entanto, sua economia estava tão retraída que comprar uma promoção no McDonald's era caro demais para a maioria dos bolivianos, mesmo os da classe média.

Foi assim que a Bolívia se tornou o primeiro país da América Latina em que a rede abriu e fechou as portas.

Agora, 17 anos depois, muita coisa mudou na Bolívia. Houve uma virada ideológica no país, que passou de presidentes alinhados às demandas do mercado a um que, em seus discursos, fustiga sem piedade o capital internacional e as multinacionais.

Ele também enviou uma mensagem clara ao mundo em seu primeiro ano de mandato, decretando a nacionalização do setor de petróleo e gás.

O paradoxo é que, segundo analistas e investidores, hoje o McDonald's faria sucesso sem problemas em terras bolivianas, assim como centenas de outras franquias e empresas internacionais que desembarcaram no país na última década.

A Bolívia socialista de Evo Morales — que busca o quarto mandato presidencial nas eleições de 20 de outubro — tornou-se um terreno fértil para alimentos, roupas e eletrodomésticos estrangeiros, assim como para multinacionais de setores como petróleo, mineração ou agronegócio.

Burger King em La Paz
Legenda da foto, Ao contrário do McDonald`s, o Burger King sobreviveu aos anos de recessão na Bolívia

Uma década de atraso

Estima-se que a Bolívia tenha chegado à era do consumo global com pelo menos uma década de atraso.

Entre o fim do século passado e o início do atual, quase não se via shoppings no país, tampouco redes internacionais de lanchonetes e restaurantes, que já se multiplicavam por muitas cidades latino-americanas.

Apenas um punhado de multinacionais se arriscou a investir em uma Bolívia em crise e pobre. Em 2002, segundo o Banco Mundial, 63% da população viviam abaixo da linha da pobreza — em 2018 esse percentual foi reduzido para 35%.

Além disso, enquanto o investimento estrangeiro direto no país girava em torno de US$ 250 milhões em 2005, chegou a alcançar US$ 1,7 bilhão nos últimos anos, segundo a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal).

Evo Morales em 2006

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Em 2006, Evo Morales decretou a nacionalização dos hidrocarbonetos da Bolívia e renegociou contratos com empresas transnacionais de petróleo

"Essa mudança tão grande nos favoreceu muito", explica o analista de mercado Alfredo Troche, ex-presidente da Câmara Boliviana de Franquias.

Troche explica à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que, na última década, mais de 300 redes internacionais decidiram entrar na Bolívia, principalmente nas áreas de alimentação, moda, entretenimento e serviços, sem contar com os investimentos multimilionários feitos por empresas de petróleo e mineração vindas do exterior.

"Antes o mercado era muito pequeno, nada atraente, mas desde 2010 as marcas começaram a entrar com muito mais força, sobretudo por causa da abertura dos shoppings", diz Troche.

Mulher indígena em praça de alimentação de shopping
Legenda da foto, Não é raro encontrar indígenas e camponeses nos shoppings de La Paz

O analista destaca que "os indicadores macroeconômicos favoráveis ​​e o crescimento sustentado são um bom sinal para os investimentos estrangeiros" — e esse foi um dos fatores determinantes.

Segundo ele, o crescimento da receita das redes internacionais no país é de cerca de 11% ao ano.

Santa Cruz de la Sierra, cidade boliviana com maior população e onde está localizada a maioria das indústrias nacionais e estrangeiras, é a principal anfitriã das franquias e empresas multinacionais de petróleo e da indústria agrícola.

É seguida por La Paz, a sede dos Poderes do país.

Socialismo para uns, capitalismo para outros

Samuel Doria Medina foi o segundo colocado nas eleições presidenciais de 2014 — sua bancada no Congresso é a mais numerosa da oposição.

Além disso, ele é o empresário que levou o Burger King para a Bolívia no início do século e manteve a franquia funcionando durante os anos de recessão no país. Agora, possui operações nas áreas de turismo e alimentação.

Em entrevista à BBC News Mundo, o político argumenta que a ascensão das multinacionais na Bolívia pode ser explicada porque Morales governa com "capitalismo para seus amigos e socialismo para seus inimigos".

"Morales tenta atrair investimento estrangeiro para tentar substituir com ele o investimento público, e é por isso que ele tem um discurso duplo que está totalmente longe da realidade", diz Doria Medina.

Samuel Doria Medina

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Samuel Doria Medina não disputa as eleições deste ano, mas mantém sua posição crítica ao governo Evo Morales

Segundo ele, o presidente boliviano "diz uma coisa e faz outra" ao bater no capitalismo internacional e, ao mesmo tempo, ser amigo de grandes capitalistas.

"Há contradições muito grandes. Setores como o dos produtores de coca, que não pagam impostos, têm licença para praticar um capitalismo selvagem impulsionado pelo governo. O mesmo se aplica aos grandes empresários do agronegócio que também são muito próximos de Evo Morales", acrescenta.

Doria Medina ressalta que a Bolívia é um país com insegurança jurídica e baixa incidência de separação dos Poderes, o que dificulta as condições para investir, a menos que "se faça parte do esquema do capitalismo de amigos", onde estão localizadas empresas muito poderosas de diferentes áreas.

Paradoxalmente, acrescenta o entrevistado, são os bolivianos que têm agora mais dificuldade em realizar empreendimentos econômicos devido à burocracia e às políticas tributárias.

"Há muitas empresas multinacionais de petróleo que receberam muitos favores e obtiveram condições muito favoráveis ​​graças ao governo, apesar de o discurso oficial falar de uma nacionalização do petróleo", conclui.

Bolivianas diante de duas televisões em shopping
Legenda da foto, Os investimentos diretos estrangeiros multiplicaram de 2005 até hoje

Os benefícios

As multinacionais dos setores de petróleo e mineração, por exemplo, são as grandes beneficiárias da exploração dos recursos naturais bolivianos, afirmam especialistas do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (Cedla), com sede em La Paz.

"O ciclo de preços altos das matérias-primas incentivou a exploração acelerada e, em muitos casos, excessiva de petróleo e minerais. O resultado foi o aumento absoluto dos lucros das transnacionais e, na ausência de exploração obrigatória (de novos veios ou campos), a perigosa redução das reservas (da Bolívia)", afirmou o analista Carlos Arze à BBC News Mundo.

O especialista ressalta que os privilégios concedidos às empresas de petróleo vão desde incentivos à produção e reconhecimento dos custos, à "abertura de áreas protegidas e parques nacionais à exploração de hidrocarbonetos (petróleo e gás)".

Refinaria

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Empresas como a Petrobras permaneceram na Bolívia após a nacionalização e renegociação de contratos

Segundo dados do Cedla, as multinacionais controlam 80% da produção de petróleo e gás da Bolívia e, depois de terem explorado as reservas todos esses anos, não investiram na prospecção ou desenvolvimento de novos campos.

"Nos quase 14 anos de governo, nenhum novo campo importante foi descoberto", diz Arze.

No caso da mineração, o especialista destaca que o caso mais ilustrativo é o da multinacional San Cristóbal, que administra a mina que produz a maior quantidade dos principais minerais metálicos para exportação.

"Ela paga ao Estado menos de 10% do valor de suas exportações na forma de royalties e impostos", diz o pesquisador do Cedla.

'O segredo do sucesso boliviano'

Para o governo de Evo Morales, o "segredo de seu crescimento econômico e social" se deve ao que eles chamam de Modelo Econômico Social Comunitário Produtivo.

É o que afirma o ministro da Economia, Luis Arce Catacora, considerado um dos arquitetos do chamado "milagre boliviano" que colocou a economia do país entre as que mais cresceram na América Latina nos últimos anos.

Arce Catacora não concorda com aqueles que apontam as multinacionais como as grandes beneficiárias da exploração dos recursos naturais.

Segundo ele, a nacionalização dos hidrocarbonetos foi um dos três pilares da transformação econômica da Bolívia, juntamente com a redistribuição de renda e a participação ativa do Estado na economia.

"A nacionalização determinou que os recursos anteriormente enviados ao exterior, remetidos pelas empresas multinacionais que operavam em nosso país, permaneçam para beneficiar os bolivianos", diz Arce Catacora.

Evo Morales em centro comercial

Crédito, ABI

Legenda da foto, Evo Morales costuma participar da inauguração de centros comerciais em cidades médias da Bolívia

O ministro argumenta que os bônus e a política redistributiva iniciada no governo Evo Morales são a razão pela qual a Bolívia expandiu sua capacidade de consumo.

"(Os bônus) tiveram um efeito dinamizador sobre a demanda interna, que beneficiou não apenas os consumidores bolivianos, mas também os setores empresariais de grande, médio e pequeno porte, inclusive microempresas, que viram suas vendas aumentarem como em nenhum outro período da história do país", conclui.

Um país que gasta

Arce Catacora não menciona, mas o analista de mercado Alfredo Troche reconhece que o aumento da capacidade de gastos na Bolívia não só beneficiou a indústria nacional, como também a transnacional.

"As pessoas mudaram. Por exemplo, como há distâncias cada vez maiores e menos tempo, na hora do almoço elas preferem comer um frango frito ou um hambúrguer em vez de ir para suas casas. É por isso que as franquias continuam a crescer", diz ele.

Shopping em La Paz
Legenda da foto, Os shoppings se multiplicaram nas principais cidades da Bolívia na última década

Mas não se trata apenas de comida. O relativamente novo consumismo boliviano já colocou em alerta os produtores locais, que veem a preferência por produtos estrangeiros ficar cada vez maior.

A Confederação Nacional das Médias e Pequenas Empresas da Bolívia se preocupa com isso há alguns anos.

"Existe uma cultura de consumir o que vem de fora, eles buscam produtos de marca e não qualidade", afirmou a entidade, que está preocupada com a queda nas vendas devido à chegada maciça de mercadorias do exterior.

Esse receio já levou o governo a estabelecer que um percentual do bônus que os trabalhadores recebem no Natal e no fim do ano deve ser gasto em produtos nacionais.

Uma medida que mostra que, entre as muitas mudanças (boas, regulares ou ruins) que ocorreram nos três mandatos de Evo Morales, estão os hábitos de gasto e consumo dos bolivianos.

Portanto, na opinião de Alfredo Troche, se o McDonald's quer voltar para a Bolívia, este é o momento.

Línea

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