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40 anos da visita de João Paulo 2º ao Brasil: as curiosidades esquecidas da primeira viagem de um papa ao Brasil
- Author, André Bernardo
- Role, Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Ainda hoje, a professora Maria Christina de Sá, de 84 anos, não se esquece da "cara de susto" dos militares quando, em uma reunião na Arquidiocese do Rio, ela começou a listar os lugares que João Paulo 2º, o primeiro papa a visitar o Brasil, poderia conhecer na cidade: o Corcovado, o Maracanã, o Vidigal... "O quê? O papa numa favela? Como será possível?", quiseram saber. "Se o papa queria mesmo chegar o mais perto possível do povo, o Vidigal era o lugar ideal", explica Christina que fora convidada pelo arcebispo Dom Eugênio Salles (1920-2012) para coordenar a visita — que nesta terça-feira (30/06) faz 40 quarenta anos.
"Você não faz ideia da ousadia que foi. Não havia celular, computador, nada disso. Tudo era feito por carta ou telefone", relata.
A escolha do Vidigal, na Zona Sul do Rio, não foi casual. Desde 1976, seus moradores estavam ameaçados de remoção. A Prefeitura alegava risco de deslizamento para transferir a comunidade para Antares, em Santa Cruz, a 30 quilômetros de distância. Mas, como a maioria dos moradores trabalhava na Zona Sul, eles se recusaram a sair. Foi quando tiveram a ideia de pedir ajuda ao padre Ítalo Coelho, da Igreja de Santa Cruz, em Copacabana, que levou o problema para Dom Eugênio, que acionou o jurídico da Cúria. Na liminar que impediu a remoção, o juiz alegou que os moradores já ocupavam o local há mais de 20 anos e que a encosta não apresentava risco iminente.
A ideia de levar o papa para conhecer uma favela foi aceita. Mas, foi montado um rigoroso esquema de segurança. Desde a meia-noite do dia anterior, o Vidigal foi interditado para quem não fosse morador. Soldados do Exército e agentes da Polícia Federal vasculharam as casas próximas ao caminho que seria percorrido pelo papa e revistaram seus moradores. "Nossa preocupação era grande. O papa não podia sofrer um arranhãozinho sequer. Se não, era mais um motivo para remover a comunidade", afirma Paulo Roberto Muniz, de 65 anos, morador do Vidigal e presidente da associação de 1981 a 1983 e de 1985 a 1987.
Durante a visita, ninguém entrava, ninguém saía. Até o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Ivo Lorscheiter (1927-2007), e o secretário da instituição, Dom Luciano Mendes (1930-2006), foram impedidos de entrar. O ônibus em que estavam errou o caminho e se atrasou cinco minutos. Conclusão: os dois foram barrados na avenida Niemeyer, que dá acesso ao morro.
No Vidigal, papa quebrou protocolo ao doar anel episcopal à comunidade
A visita ao Vidigal começou às oito da manhã do dia 2 de julho de 1980. Na comunidade, o papa inaugurou a capela de São Francisco de Assis, construída em mutirão pelos moradores. "Vim aqui, não por curiosidade, mas porque amo vocês e lhes quero bem", declarou em seu discurso.
Depois de abençoar a capela, quebrou o protocolo ao presentear a comunidade com seu anel episcopal, e entregá-lo ao padre Coelho, coordenador da Pastoral das Favelas. Dias depois, Coelho confiou a joia ao frei Benjamin Remiro Diaz, da paróquia Santa Mônica, no Leblon. Feito de ouro maciço, ele tem 18 quilates e pesa 21 gramas.
"O anel não foi vendido, nem leiloado. Dom Eugênio achou melhor guardá-lo no Museu de Arte Sacra, onde está até hoje. Foi feita uma réplica que, por sugestão do próprio papa, ficou com os moradores", relata Frei Benjamin, hoje vigário da Nossa Senhora da Saúde, em São Paulo (SP).
No percurso até o asfalto, o papa entrou na casa de Elvira Almeida de Lima, de 64 anos. "Dona Elvira ficou tão emocionada que disse: se pudesse, jamais varreria de novo o lugar onde o papa pisou", recorda frei Benjamin.
Quando soube que o santo padre tinha escolhido a casa de sua mãe para visitar, o então presidente da associação de moradores, Armando Almeida Lima, saiu correndo, burlou a segurança e entrou. Chegou a tempo de responder a uma pergunta do visitante ilustre: "Quantas pessoas moram em cada casa?". "De cinco a dez", respondeu o líder comunitário.
Depois de um bate-papo rápido, o papa presenteou mãe e filho com dois terços e foi embora. "Tínhamos medo de que o papa sofresse um atentado no Vidigal. Felizmente, deu tudo certo. Nem o Beijoqueiro deu as caras por aqui", suspira, aliviado, Armando Almeida Lima, de 78 anos, referindo-se ao taxista português José Alves de Moura.
'A benção, João de Deus. Nosso povo te abraça...'
Ainda no Rio, João Paulo 2º celebrou uma missa campal para um público estimado de um milhão de fiéis no Parque do Flamengo. Um coral de 2,5 mil vozes recebeu o papa ao som de A bênção, João de Deus, música-tema da visita escrita pelo jornalista Péricles de Barros e composta pelo maestro Moacyr Maciel.
A canção foi escolhida através de um concurso realizado pela Arquidiocese do Rio. "O Burle Marx não gostou de saber que uma missa seria celebrada no Aterro do Flamengo. Tinha medo de que a multidão destruísse as árvores do parque. O que fizemos? Cada paróquia disponibilizou 15 jovens que montaram um cordão de isolamento ao redor das árvores. Tudo terminou bem", festeja Maria Christina.
No Maracanã, 150 mil pessoas assistiram à ordenação de 76 novos padres. Dois deles eram do Rio: Manuel Manangão, hoje vigário episcopal para a caridade social da Arquidiocese do Rio, e Silas Vianna, hoje cura da catedral militar Rainha da Paz, em Brasília (DF).
"O Maracanã estava lotado. Até minha família, que era batista, foi assistir à ordenação. Após o rito da imposição das mãos, o papa repetia para cada um de nós: 'Coragem!'. Até hoje, essa palavra ecoa no meu coração. Não é todo dia que você é ordenado por um papa canonizado", orgulha-se padre Silas, de 65 anos.
Em sua visita, João Paulo agendou encontros com padres, bispos, religiosas, operários, índios e até cientistas. O físico José Goldemberg, da Universidade de São Paulo (USP), foi um deles. No Centro de Estudos do Sumaré, no Rio Comprido, Zona Norte do Rio, o então presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) perguntou ao papa como a Igreja explica o erro de perseguir Galileu Galilei pelo simples fato de ele ter demonstrado de que a Terra não era o centro do universo.
"João Paulo não fugiu da pergunta e respondeu que o Criador se manifesta não apenas através dos sacerdotes e da Igreja, mas de todos os seres humanos que são também criaturas de Deus. Explicou ainda que a Igreja já retificou as medidas tomadas contra Galileu e que admitia o fato incontestável de que, na ocasião, ele estava certo e a Igreja, errada", relata o cientista.
Em 12 dias de viagem, o papa visitou 13 cidades e proferiu 49 discursos
A cidade do Rio foi a terceira escala da visita ao Brasil. A primeira viagem apostólica de um papa ao país durou 12 dias. Começou em 30 de junho de 1980, em Brasília (DF), às 12h08, e terminou no dia 11 de julho, em Manaus (AM), às 18h28.
Na base aérea de Brasília, o papa foi recebido pelo presidente do país, o general João Figueiredo (1918-1999), que o presenteou com um quadro do artista plástico gaúcho Glauco Rodrigues (1929-2004), e a primeira gramática em tupi guarani do jesuíta espanhol José de Anchieta (1534-1597).
Ao desembarcar, João Paulo 2º repetiu o gesto que o tornara famoso: ajoelhou-se para beijar o solo do país visitado. A primeira das 13 missas que celebrou no Brasil foi realizada na Praça dos Três Poderes para 700 mil pessoas. Cem crianças receberam a primeira comunhão das mãos do santo padre.
O bispo de Roma chegou ao Brasil a bordo de um DC-10 da Alitalia. Além da comitiva e da tripulação, o avião transportava cerca de 50 jornalistas, entre repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. Desses, cinco eram brasileiros: Albino Castro, de O Globo; Araújo Neto (1929-2003), do Jornal do Brasil; Carlos Heitor Cony (1926-2018), da Manchete; Marco Antônio Rezende, da Veja; e Pedro Del Picchia (1948-2018), da Folha de S. Paulo.
"Foi uma experiência exaustiva", recorda Castro, que trabalhou como correspondente de O Globo em Roma, de 1977 a 1981. "Cobri a viagem de Brasília a Manaus. Trabalhava 16 horas por dia. Escrevia as matérias durante o dia e as despachava à noite, por telex, para a redação", conta.
João Paulo 2º passou a maior parte do voo em seus aposentos, atrás da cabine do piloto, revisando seus discursos. Pouco depois do meio-dia, o cardeal italiano Agostino Casaroli (1914-1998), secretário de Estado do Vaticano, recomendou aos repórteres que permanecessem sentados e disse que cada um teria direito a fazer uma pergunta.
"Se fizerem bagunça, ele vai embora", advertiu. O fotógrafo oficial da Santa Sé, o italiano Arturo Mari, de 80 anos, contou ao jornalista e escritor Carlos Heitor Cony que, na volta de uma viagem apostólica à África, em 12 de maio de 1980, um americano e um francês chegaram a trocar socos e pontapés por causa de fotos. "O papa viu a briga, nada disse e voltou a seus aposentos", relatou Cony no artigo "Fome de Deus", publicado na revista Manchete de 12 de julho de 1980.
Mari era um dos 25 membros da comitiva do papa. Em 52 anos de atividade profissional, registrou imagens da vida de cinco pontífices, de Pio 12 a Bento 16. Além dele, a comitiva trazia dois médicos: o polonês Mieczyslaw Wislocki e o italiano Renato Buzzonetti. No Brasil, ganhou o reforço de uma equipe multidisciplinar, formada, entre outros, pelo endocrinologista César de Souza Lima Colaneri, de 74 anos.
À época, Colaneri transformara um helicóptero modelo Sikorsky S-61N, de fabricação americana, numa UTI móvel, com respirador mecânico, monitor cardíaco e cilindro de oxigênio, entre outros apetrechos médicos. "O papa era discreto e reservado. Falava pouco e rezava muito. Limitava-se a abençoar as cidades que via da janela", conta o médico, que integrou a equipe em São Paulo, Aparecida e Salvador.
Papa se reuniu com presos em Brasília e doentes em Belém
Do Rio, o papa seguiu para São Paulo, onde se reuniu com 12 mil freiras no ginásio do Ibirapuera e com 150 mil operários no estádio do Morumbi. O líder sindical Waldemar Rossi (1933-2016) foi o escolhido para ler a saudação. "João, João, João, o papa é nosso irmão!", gritava a multidão. No altar montado no Campo de Marte, celebrou uma missa em louvor ao beato José de Anchieta.
Além de celebrar missas em estádios de futebol, o papa realizou algumas visitas inusitadas: ao presídio da Papuda, em Brasília (DF); à favela de Alagados, em Salvador (BA), e ao hospital com doentes de hanseníase de Marituba, a 11 quilômetros de Belém (PA).
"A visita a Marituba foi o pior momento da viagem", aponta Albino Castro. "Fazia um calor insuportável. A impressão que se tinha é que, a qualquer momento, o papa teria um ataque cardíaco. Suava horrores e tinha o rosto vermelho", descreve. Em Manaus (AM), o sumo pontífice assistiu ao encontro das águas dos rios Negro e Solimões, a bordo de uma corveta da Marinha.
Antes de seguir para Marituba, João Paulo passou duas horas e quinze minutos no seminário de São Pio X, em Ananindeua. Lá, ele e sua comitiva almoçaram e tiraram um cochilo. Simples, não? Nem tanto. Os seminaristas foram orientados a permanecer em silêncio, não fazer gestos bruscos e a evitar o refeitório na hora do almoço.
De quebra, tiveram que entregar fotocópias de seus documentos para as autoridades policiais. "O bispo auxiliar, Dom Tadeu Prost, chegou a dizer: 'Quem fizer algo de errado poderá ser expulso!", recorda o vigário geral da diocese de Castanhal, no Pará, monsenhor Gabriel Silva, de 60 anos.
Durante a visita, a segurança foi reforçada com cães farejadores, polícia montada e helicópteros sobrevoando o seminário. Na hora da despedida, mais uma quebra de protocolo. "O papa posou para fotos no meio dos seminaristas. Todos queriam tocá-lo. Ele não resistiu e caiu na risada."
Ao todo, o papa visitou 13 cidades: Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Aparecida (SP), Porto Alegre (RS), Curitiba (PR), Salvador (BA), Recife (PE), Teresina (PI), Belém (PA), Fortaleza (CE) e Manaus (AM). Em algumas, como o Rio de Janeiro (RJ), passou a noite. Em outras, como Teresina (PI), poucas horas.
"Aparecida foi o único município visitado que não era capital, mas, sim, uma cidade do interior. Foi o próprio João Paulo 2º que, por sua devoção mariana, incluiu Aparecida no roteiro", revela o padre Antônio Agostinho Frasson, de 74 anos.
"Eu tinha apenas sete anos de sacerdócio e a sagração do altar acabou marcando meu ministério. Ainda hoje, me lembro de cada palavra de São João Paulo 2º. Na imensidão daquele santuário, estive praticamente sozinho com o papa. Foi emocionante", recorda o missionário redentorista que atua no Santuário Nacional desde 1975.
De Norte a Sul, o papa proferiu 49 pronunciamentos, entre homilias, saudações e agradecimentos. Os discursos vieram prontos de Roma, mas, a pedido da CNBB, sofreram ajustes. Em caso de dúvida na pronúncia do português, o papa consultava o padre Fernando Guimarães, assessor de Dom Eugênio. Nas palavras terminadas em "ão", por exemplo, o santo padre lia como se não houvesse o til.
4ºC graus em Porto Alegre e 45ºC em Manaus
O motivo oficial da viagem fora a 10ª edição do Congresso Eucarístico Nacional, no estádio do Castelão, em Fortaleza (CE). Duas imensas velas de jangada, uma branca e outra amarela, as cores do Vaticano, tendo por mastro uma cruz, formaram o fundo do altar. ]
Tanto na capela do seminário da Prainha, onde ficou hospedado, quanto na missa de abertura do congresso, João Paulo 2º foi auxiliado pelo padre Gilson Marques Soares, de 72 anos. "O primeiro abraço da paz do papa foi comigo", conta, orgulhoso, o hoje pároco da Nossa Senhora das Graças, em Fortaleza (CE).
No Sul, o papa celebrou uma missa de quatro horas de duração — a mais longa de sua visita ao Brasil — no Centro Cívico, de Curitiba (PR), e encarou um frio de quatro graus em Porto Alegre (RS). A cerimônia no Gigantinho atraiu fiéis de outros países, como Argentina, Chile e Uruguai.
A última missa no Brasil foi celebrada em Manaus (AM). Antes da cerimônia, o papa passou mal e foi socorrido pelos médicos. Culpa do calor de 45 graus! Durante a cerimônia, líderes indígenas ofertaram um cocar, um arco e flecha, frutos silvestres e uma arara. No discurso de despedida, o santo padre cantarolou: "Quem parte leva saudade de alguém...", citando o trecho de um samba. Para amenizar o calor, o Corpo de Bombeiros jogou jatos de água na multidão.
João Paulo deixou seu anel no Brasil. Em compensação, levou uma infinidade de presentes: de peças de artesanato a barras de ouro, de amostras de café a imagens sacras, de uma viola caipira a uma jangada nordestina.
Nada, porém, que se compare ao jegue que ganhou de um nordestino que vivia em Brasília (DF). "Alguns presentes são guardados e expostos no Museu do Vaticano. Outros são doados e outros, ainda, leiloados para que se utilize o fundo recolhido em ação social", explica monsenhor André Sampaio, diplomata da Santa Sé de 1998 a 2008.
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