Como a percepção sobre o aborto mudou ao longo da história

Pílula ao lado de copo de água

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, O procedimento abortivo é proibido no Brasil com apenas algumas exceções
  • Author, Alisha Palmer
  • Role, The Conversation

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou nesta semana um julgamento que pode descriminalizar o aborto.

O tema é polêmico e divide opiniões.

Atualmente, no Brasil, o aborto é permitido em apenas três situações: em caso de estupro, quando a gestação gera risco de vida para a gestante e, por decisão do próprio STF, quando é constatada anencefalia fetal.

Mas engana-se quem pensa que a interrupção da gestação é um fenômeno particularmente moderno.

Segundo Alisha Palmer, doutoranda em Literatura Inglesa na Universidade de Edimburgo, na Escócia, há muitas evidências sugerindo que o aborto tem sido uma constante na sociedade durante milhares de anos.

Em artigo para o site de notícias acadêmicas The Conversation, ela escreve: "A história do aborto é muitas vezes contada sob o prisma da legalidade, mas ele vem sendo realizado independentemente, talvez até apesar da regulamentação legal".

Confira o artigo abaixo.

O antigo papiro egípcio Ebers é frequentemente visto como uma das primeiras evidências escritas da prática do aborto.

Datado de 1600 a.C., o texto descreve métodos pelos quais "a mulher esvazia o concebido na primeira, segunda ou terceira menstruação", recomendando ervas, duchas vaginais e supositórios. Métodos semelhantes de indução ao aborto foram registrados, embora não recomendados, pelo filósofo grego Hipócrates (460 a.C. — 377 a.C.) por volta do século 4º a.C.

Parte da vida diária dos cidadãos antigos, o aborto também entrou na sua arte. O poeta romano Publius Ovidius Naso (43 a.C — 18 d.C) , comumente conhecido como Ovídio, foi um poeta romano cuja coleção de obras Amores descreve a turbulência emocional do narrador enquanto observa sua amante sofrer um aborto mal administrado.

Uma arte de um manuscrito do século 13 mostra um fitoterapeuta preparando uma mistura contendo poejo (planta medicinal e aromática originária da Europa, Ásia e Arábia) para uma mulher; o chá, que ficou famoso na música da banda americana Nirvana, Pennyroyal Tea, era usado na medicina popular para induzir o aborto e aliviar os sintomas menstruais
Legenda da foto, Uma arte de um manuscrito do século 13 mostra um fitoterapeuta preparando uma mistura contendo poejo (planta medicinal e aromática originária da Europa, Ásia e Arábia) para uma mulher; o chá, que ficou famoso na música da banda americana Nirvana, Pennyroyal Tea, era usado na medicina popular para induzir o aborto e aliviar os sintomas menstruais.
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"Enquanto ela precipitadamente está derrubando o fardo de seu ventre grávido, a cansada Corinna corre perigo de vida. Tendo tentado um perigo tão grande sem me avisar. Ela merece minha raiva, mas minha raiva morre com o medo", escreveu Ovídio.

A preocupação de Ovídio a princípio é com o risco de perder seu amor, Corinna, e não o filho em potencial. Mais tarde, ele pede aos deuses que ignorem a "destruição" da criança e salvem a vida de Corinna. Isso revela alguns aspectos importantes das atitudes históricas em relação ao aborto.

Embora os debates sobre o aborto no século 21 girem frequentemente em torno de questões relacionadas a vida e à pessoalidade, nem sempre foi assim.

Os antigos gregos e romanos, por exemplo, não acreditavam necessariamente que um feto estivesse vivo.

Pensadores antigos como Santo Agostinho (354-430 d.C.), por exemplo, distinguiram entre o embrião "informatus" (não formado) e "formatus" (formado e dotado de alma).

Com o tempo, a distinção mais comum passou a ser feita nos primeiros movimentos do feto, que era quando a gestante sentia o bebê se mexer pela primeira vez. Isso determinava que o feto estava vivo (ou tinha alma).

Como o atraso da menstruação era muitas vezes o primeiro sinal de que algo estava errado, e uma mulher podia não se dar conta de que estava grávida por muito tempo, vários conselhos sobre a prática do aborto se concentravam em restaurar irregularidades ou bloqueios menstruais, em vez de, na prática, interromper uma possível gravidez (ou feto).

Como resultado, muitas dessas recomendações ao longo da história não mencionam necessariamente o aborto.

Em outras palavras: frequentemente dependia da interpretação pessoal se um aborto havia ocorrido ou não.

Na verdade, receitas de "abortivos" (qualquer substância usada para interromper uma gravidez) podiam ser encontradas em textos médicos como os da freira alemã Hildegard von Bingen (1098-1179) em 1150 e em livros de receitas nacionais com tratamentos para outras doenças comuns já no século 20.

No Ocidente, essa distinção sobre os primeiros movimentos do feto saiu gradualmente de moda no final do século 19 e início do século 20.

No entanto, as mulheres continuaram a praticar abortos, apesar das mudanças nas leis e nas crenças sobre a origem da vida.

Na verdade, eles ocorriam com bastante frequência, segundo registros.

O Papiro Ebers (c. 1600 aC) do Antigo Egito

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, O Papiro Ebers (c. 1600 aC) do Antigo Egito

Epidemia de abortos

Em 1920, a Rússia tornou-se o primeiro estado do mundo a legalizar o aborto e, em 1929, a famosa defensora do controle da natalidade, Marie Stopes (1880-1958), lamentou que "uma epidemia de abortos" estivesse a varrer a Inglaterra.

Relatos semelhantes da França e dos EUA também indicam um aumento percebido na prática.

Anúncios de serviços de aborto em 1842
Legenda da foto, Anúncios de serviços de aborto, como estes publicados no jornal americano New York Sun em 1842, eram comuns durante a era vitoriana; na época, o aborto era ilegal em Nova York

Em meio a esse contexto, surgiu uma onda de peças, poemas e romances que incluíam o aborto.

Em 1923, Floyd Dell (1887-1969), editor e escritor de uma revista americana, publicou uma nova obra de ficção, Janet March, na qual a personagem principal reclama do número de romances que apresentam abortos, afirmando que "já havia coisas terríveis o suficiente nos romances, mas elas aconteciam apenas com meninas pobres — meninas ignorantes e imprudentes".

Mas a literatura do início do século 20, com muitas histórias baseadas nas experiências reais das mulheres, evidencia uma gama mais ampla de abortos do que a imagem estereotipada das intervenções clandestinas dos anos 1900.

Uma imagem de 1902 publicada em um jornal francês de uma mulher buscando um aborto tardio

Crédito, Alamy

Legenda da foto, Uma imagem de 1902 publicada em um jornal francês de uma mulher buscando um aborto tardio

Por exemplo, a romancista inglesa Rosamond Lehmann (1901-1990) registra uma sedutora "conspiração feminina" de mulheres que abortam esperando com "tato, simpatia, comprimidos e garrafas de água quente", no seu romance de 1926, O Tempo nas Ruas.

Esses textos fazem parte de uma longa tradição de contar histórias sobre o aborto que é um antecessor do ativismo contemporâneo.

Por exemplo, We Testify é uma organização dedicada à liderança e representação de pessoas que fazem aborto. E Shout Your Abortion, uma campanha de mídia social na qual as pessoas compartilham suas experiências de aborto online sem “tristeza, vergonha ou arrependimento”.

O aborto tem uma história longa e variada, mas acima de tudo estes textos — desde os papiros egípcios de 1600 a.C. até às publicações nas redes sociais de hoje — mostram que o aborto foi e continua a ser central na nossa história, nas nossas vidas e até na nossa arte.

*Alisha Palmer é doutoranda em Literatura Inglesa na Universidade de Edimburgo (Escócia).

**Este artigo foi publicado no The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original em inglês.