Os juízes que estão se demitindo para virar influenciadores, ter liberdade e ganhar mais dinheiro
- Author, Matheus Gouvea de Andrade
- Role, Para a BBC News Brasil
A remuneração bem acima da média nacional e a estabilidade no emprego fazem com que muitos sonhem com a carreira de juiz de Direito no Brasil.
Os concursos são disputados e exigem muitas vezes anos de dedicação para uma aprovação.
Pode parecer improvável, então, que alguém abra mão da magistratura, mas é o que têm feito alguns juízes graças a novas oportunidades criadas pelas redes sociais.
Há vários relatos na internet de quem decidiu deixar os tribunais para investir em seus perfis nas redes e se dedicar exclusivamente à carreira de influenciador.
Também oferecem desde serviços de advocacia, mentorias para concursos a atividades que não têm a ver com o mundo jurídico.
Poucos acumulam tanta influência nas redes sociais quanto o ex-juiz Samer Agi, de 35 anos, que se demitiu do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em 2022.
Ele tem hoje 2 milhões de seguidores no Instagram e 111 mil assinantes em seu canal no YouTube, onde fala de vários assuntos, de relacionamentos a finanças pessoais.
Agi conta à BBC News Brasil que decidiu trocar de carreira porque queria mais "liberdade, tempo e possibilidade de crescimento".
Além disso, com as redes sociais, "as ideias de uma pessoa são compartilhadas por milhares ou milhões de pessoas que se identificam com sua visão de mundo", diz ele.
"Seu conhecimento pode ser disseminado não apenas a uma classe de 50 ou 100 pessoas, mas a um auditório online de 10 ou 20 mil."
A popularização e multiplicação das redes criou essa chance para quem domina o saber jurídico de tentar uma nova profissão e até mesmo com a perspectiva de ganhar mais.
"Sem as redes sociais, os juízes que saíram da magistratura nunca teriam feito isso", diz Agi.
"A remuneração fora da magistratura tem que ser superior. Caso contrário, o sujeito continuaria juiz."
'Postura empreendedora'
Erik Navarro Wolkart foi juiz federal por 19 anos. Após pedir exoneração, ele fez uma transmissão ao vivo em meados de julho em que explicou por que deixou os tribunais.
Ele contou que sua função limitava o que ele podia falar em público e, além disso, queria dar vazão à sua "postura empreendedora".
O ex-juiz de 46 anos oferece para seus quase 90 mil seguidores no Instagram um curso em que ele promete ensinar como "acelerar a tramitação dos processos, multiplicar a taxa de efetividade dos pedidos e se destacar na advocacia contenciosa".
Esse é um caminho comum para os ex-juízes, que oferecem cursos preparatórios para concursos a milhares de seguidores nas redes.
Não falta demanda por esse tipo de serviço. O Brasil tem o maior número de advogados por habitante do mundo.
Há um profissional da advocacia para cada 164 brasileiros, enquanto, nos Estados Unidos, por exemplo, há um para cada 253.
Todos os anos, cerca de 120 mil pessoas fazem a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para exercer a advocacia.
Jaylton Lopes Júnior, ex- juiz do TJDFT, vende aulas de Direito sucessório para seus 150 mil seguidores.
Ele pediu demissão no início de agosto, depois de oito anos no cargo, para se dedicar à "docência, bem como à consultoria jurídica e à advocacia".
Também em agosto, José André Neto anunciou para os seus 450 mil seguidores no Instagram que estava deixando o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) após 21 anos para trabalhar exclusivamente como professor, "sem amarras e sem restrição".
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Quem trabalha como juiz tem algumas restrições para tentar ganhar a vida como influenciador paralelamente.
Em 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu magistrados de oferecerem serviços de coach e similares, voltados à preparação de candidatos para concursos públicos.
O juiz Senivaldo dos Reis Júnior chegou a ser exonerado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) por ter trabalhado como coach em 2020. À época, Reis Júnior estava no chamado estágio probatório, o que não oferece todas as garantias comuns a alguém já consolidado no cargo.
Após a decisão, ele acionou o CNJ alegando que a pena de demissão era "irrazoável e desproporcional". Dois anos depois, o plenário do CNJ decidiu reintegrá-lo.
O relator do caso disse que as atividades do juiz na internet, como vendas de material e apostilas, extrapolavam as funções da docência.
Mas ele considerou que a demissão foi uma punição excessiva. O TJ-SP recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que manteve a decisão do CNJ.
Reis Júnior foi procurado pela BBC News Brasil, mas não respondeu.
Neste ano, a Corregedoria Nacional de Justiça, instância vinculada ao CNJ, determinou a suspensão dos perfis das redes sociais do juiz Navarro Wolkart, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2).
A Corregedoria disse que estava avaliando sua suposta atuação como coach nas redes. Seguindo o movimento do mercado, o juiz pediu exoneração do cargo.
Na ocasião, ele afirmou que não seria coach ou mentor, e disse em seu Instagram que não tratava de casos pendentes. "Meu método aborda a prática processual pela ótica das neurociências", apontou.
Wolkart não respondeu à tentativa de contato da BBC News Brasil.
Os pedidos de exoneração de juízes já causam preocupação.
Questionada sobre os pedidos de exoneração dos ex-juízes que apostam na carreira de influencers, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) afirmou à BBC News Brasil que há um processo de "perda de quadros" que foi "agravado nos últimos anos pela desvalorização da carreira".
"Ao perceberem a possibilidade de maiores ganhos no setor privado, muitos profissionais deixam o cargo público com o intuito de obter melhores condições de vida para si e suas famílias – uma escolha difícil, que, infelizmente, tem sido muito frequente", disse a AMB em nota.
"Se não houver uma reestruturação que promova a valorização por tempo na magistratura é provável que o cenário de evasão se acentue."
De acordo com a instituição, há ainda "um grave quadro de insegurança" no meio.
"Metade dos juízes no Brasil vive ou já viveu situação de ameaça à vida ou à integridade física, com abalos profundos na saúde do magistrado e de sua família."
'Outros valores'
Juliana Oki, de 37 anos, destoa nas redes sociais da maioria dos outros juízes que pediram exoneração recentemente.
Após nove anos no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5), ela decidiu deixar a magistratura para ser psicoterapeuta em tempo integral.
Oki decidiu fazer isso mesmo sem ter muitos seguidores. Quase um mês depois, o número quase quadruplicou.
"Criei o meu perfil no Instagram, como forma de compartilhar os conhecimentos que estava adquirindo na minha jornada de formação", disse à BBC News Brasil.
"Me dei conta de que, embora fosse uma juíza comprometida e produtiva, eu não era feliz. Meu fazer estava descompassado com meu sentir."
Ela diz que a maior dificuldade foi bancar a decisão de que faria "algo que soa reprovável a um primeiro olhar".
"Nossa profissão é, na nossa sociedade, um aspecto identitário. Então, uma exoneração, ainda que planejada e desejada, é uma ruptura com uma parte de si –um luto, com perdas simbólicas e concretas."
Oki vê com alguma naturalidade que profissionais busquem mais flexibilidade nas carreiras atualmente.
Ela diz que ser juiz continua sendo valorizado socialmente, mas acredita que cada vez mais outros valores são levados em conta nas escolhas profissionais – como realização pessoal e estilo de vida que se deseja ter.
"O ser humano tem potencias múltiplos. Está tudo bem redefinir objetivos, recalcular rotas."