(n.t.)|
REVISTA LITERÁRIA
EM TRADUÇÃO
ANO III - SETEMBRO/2012 - EDIÇÃO BILÍNGUE SEMESTRAL - ILHA DO DESTERRO/BRASIL
TRADUÇÕES
ROBERTO Arlt
GEORGE
Bacovia
RAYMOND
FORUGH
Carver
Farrokhzad
SEVERINO DI
TOMMASO
PIERRE
Giovanni
Landolfi
Louÿs
KENJI
Miazawa
H. G.
Oesterheld
NIZAR
Qabbani
JUAN HERNÁNDEZ
MURASAKI
HJALMAR
BRAM
Ramírez
Shikibu
Söderberg
Stoker
Sulpícia
MARY
Wollstonecraft
EDITH
Wharton
1
ISSN
2177-5141
5
Ficha catalográfica elaborada por:
Francisca Rasche CRB 14/691
(n.t.) Revista Literária em Tradução -- n. 1, set. 2010 -.- Florianópolis, 2010 –
[recurso eletrônico].
Semestral, ano 3, n. 5, set. 2012
Multilíngue
Editada por Gleiton Lentz
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: world wide web: http://www.notadotradutor.com/
Portal interativo: Calaméo; Scribd
ISSN 2177-5141
1. Literatura. 2. Poesia. 3. Tradução. II. Título.
Indexada no Latindex e Sumários.org
Licenciada na Creative Commons
Outro
2
O ROMANC
NCE DO GENJI
LIVRO XXXIV: OS JOVENS BROTOS
MURASAKI SHIKIBU
·
O TEXTO: Narrativa em japonês clássico, escrita por
or uma dama da corte
imperial no século XI, O Romance do Genji é tópico frequente
fre
da infindável
discussão sobre qual teria sido o primeiro romancee (s
(se a definição inclui o
Oriente, ele é o mais antigo). Para a literatura japon
ponesa, tal como ela se
configura hoje, trata-se do texto fundador. Foi tradu
duzido inúmeras vezes,
tanto para o japonês moderno (dentre outros, pela poet
oeta Yosano Akiko e em
duas versões pelo romancista Tanizaki Jun’ichirô) como
mo para o inglês (Waley,
1933; Seidensticker, 1976; Tyler, 2001), francês (Sieffert
fert) e espanhol e catalão
(Roca-Ferrer). Uma tradução para o português (dee C
Carlos de Oliveira) foi
finalmente publicada em 2008 pela Relógio d’Água,
a, de
d Lisboa; no entanto,
ela não foi feita diretamente do japonês e não incluii o último terço da obra
(livros XXXIV a LIV).
Texto traduzido: 紫式部, 日本古典文学全集 (23) 源氏物語 (4) [単行本
単行本]. 東京: 小学館, 1997.
·
·
·
A AUTORA: Murasaki Shikibu (973?-1014?) era mem
membro da aristocracia
média de Heiankyô (atual Quioto, Japão). Desde crian
riança, sempre teve facilidade para ler e escrever, tanto chinês clássico como
o o vernáculo japonês –
habilidades que, sendo ela mulher, não eram vistass ccomo muito úteis pela
sua família. Serviu como dama de companhia da futu
utura imperatriz Shôshi,
educando-a nas artes e nas sensibilidades necessári
árias ao alto cargo. Foi
provavelmente escolhida para esse posto devido à fama
fam de suas narrativas,
que ela continuou a escrever e que foram reunidas em O Romance do Genji.
Além dessa obra imensa (a mais recente tradução para
ara o inglês tem mais de
mil páginas), deixou um diário e uma coletânea de poesia.
poe
AS TRADUTORAS: A equipe de tradução é formada por
po Clicie Araujo, Lídia
Ivasa e Maria Luísa Vanik, alunas do curso de Letras
L
Tradutor Japonês/Português da Universidade Federal do Rio Grande
Gra
do Sul, e coordenada pelo professor e tradutor Andrei Cunha (O Livro
Liv de Travesseiro de Sei
Shônagon, Escritos, 2008; Histórias da Outra Margem, de Nagai Kafû, Estação
Liberdade, no prelo). O grupo vem realizando uma
a leitura conjunta de O
Romance do Genji desde 2010.
Contos|Davi Pessoa Carneiro
C
(trad.)
336
Ilustração para O Romance do Genji, edição de 1651.
© National Diet Library
源氏物語|紫式部(Muras
rasaki Shikibu)
337
Ilustração para O Romance do Genji, edição de 1651.
© National Diet Library
源氏物語|紫式部(Muras
rasaki Shikibu)
338
O ROMANCE DO GENJI
LIVRO XXXIV: OS JOVENS BROTOS
“De longe avistei/Mas não colhi/O ramo que me faz suspirar/
Que ainda me faz ansiar/Florescendo ao entardecer.”
________________
MURASAKI SHIKIBU
N
um dia de céu claro do terceiro mês vieram prestar visita ao Genji, em
sua residência na Sexta Avenida, o príncipe Hotaru, ministro da guerra,
e Kashiwagi, o intendente da guarda do portão principal, dentre outros. O
Genji os recebeu e, durante a conversa, observou:
— A vida neste lugar anda muito tranquila. Nesses dias, não encontro o
que me distraia do tédio. Não tem nada acontecendo, nem em minha vida
privada, nem na pública. O que é que eu vou fazer para passar o dia?
Acrescentou ainda:
— Hoje de manhã, veio aqui o comandante Yûgiri1. Para onde terá ido
agora? Eu deveria ter-lhe pedido uma demonstração de arco e flecha,
daquelas que ele sempre faz com o koyumi2 e que são tão animadas. Também
estavam aqui uns jovens, a quem agrada esse tipo de atividade. Será que ele
ainda está aí? — perguntou.
Responderam-lhe que Yûgiri estava na parte nordeste da propriedade,
assistindo a um jogo de bola3 que ele organizara com diversos outros rapazes.
Então, o Genji disse:
Filho do Genji com a dama Aoi, sua primeira esposa. Aoi morreu durante o parto, vítima da alma viva penada da
dama Rokujô. As almas vivas (ikiryô) são fantasmas japoneses, almas que saem de seus corpos durante o sono, em
busca de vingança. (n.t.)
2 O koyumi é um arco mais curto, usado em campeonatos. O atirador deve estar com uma perna flexionada e a outra
ajoelhada. O arco japonês mais comum é longo, e usado para a prática a cavalo. (n.t.)
3 O kemari é um jogo de bola tradicional do Japão. Os jogadores fazem uma roda e o objetivo é manter a bola no ar,
por meio de pontapés ou cabeçadas. (n.t.)
1
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
348
— Não é jogo dos mais refinados, mas é divertido para os que assistem e
requer muita habilidade dos que jogam. Diga-lhes que venham para cá.
Yûgiri veio em seguida, acompanhado de muitos jovens.
— Trouxeram a bola? — perguntou o Genji. — Veio Fulano? E o
Sicrano, veio?
— Sim, vieram. E se jogássemos aqui? — Yûgiri perguntou.
A jovem Akashi4 voltara ao Palácio Imperial com seu bebê e suas damas
de companhia, e a ala leste da casa principal estava vazia e silenciosa. Os
rapazes saíram a procurar um lugar propício ao jogo, encontrando uma parte
plana do jardim onde dois riachos se uniam. Dos filhos de Tô no Chûjô5,
vieram Kôbai, o consultor de câmara, Hyôe no Suke, o assistente da defesa, e
Tayû no Kimi, o comissário. Junto com seus irmãos mais jovens,
destacavam-se dos outros por sua bela aparência.
Já estava entardecendo quando Kôbai decidiu se juntar ao jogo. Ele não
resistira à beleza do dia, perfeito para um jogo de bola. O Genji observou:
— Vejam só, mesmo o consultor não resistiu! Sendo jovem, não há de
fato necessidade de se conter e ficar de mero espectador. Eu também,
quando era mais moço, ficava frustrado se não podia participar, ainda que
esse jogo não seja dos mais aristocráticos!
Com as palavras de incentivo do Genji, Yûgiri e Kashiwagi também
resolveram descer aos jardins. Estavam magníficos à sombra das cerejeiras
em flor à luz do sol poente. O jogo de bola costuma ser um tanto ruidoso e
tumultuado, mas isso depende do lugar e dos jogadores. O bonito bosque
enevoado tinha diversas árvores floridas, e já se via um pouco do verde das
folhas novas. Os homens se entregavam com calor ao jogo — afinal,
ninguém queria perder. Nenhum, entretanto, equiparava-se a Kashiwagi, que
jogou por pouco tempo. Por ser belo e possuir atitudes sofisticadas, vê-lo se
transmutar em puro ímpeto para o jogo era ainda mais fascinante. À sombra
de uma cerejeira próxima ao degrau da varanda, o Genji, o príncipe Hotaru e
outras pessoas assistiam absortos à cena. Os jogadores entusiasmados
pisavam nas flores, distraídos com a competição.
As rodadas se sucediam, e as damas da corte, também em polvorosa,
aproximaram-se para assistir aos jovens oficiais que, de tão animados,
esqueciam as boas maneiras. Alguns deles haviam mesmo deixado o chapéu
cair sobre a testa. Yûgiri, esquecendo-se de sua alta nobreza, jogava
despreocupado. Usava uma túnica6 da cor das flores de cerejeira, amaciada
Filha do Genji com a dama de Akashi. Residia normalmente na ala leste da mansão. (n.t.)
Melhor amigo e cunhado do Genji; às vezes, seu rival em conquistas amorosas. (n.t.)
Nôshi. Túnica usada pelos nobres da Era Heian. A parte superior da vestimenta dos homens, em forma de casaco.
(n.t.)
4
5
6
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
349
pelo uso. Ele levantara as barras da calça, deixando-a bufante, o que não lhe
dava uma aparência de leveza; ainda assim, quem o via tinha a impressão de
que ele era o mais belo de todos.
Notando as flores de cerejeira que caíam como neve, Yûgiri se sentou em
um dos degraus da escada e, enquanto fazia um breve intervalo, pegou um
raminho quebrado de cerejeira. Kashiwagi veio se juntar a ele, dizendo:
— As flores de cerejeira são tão frágeis. Talvez devêssemos evitá-las7 —
E, ao dizer essas palavras, olhou de relance em direção aos aposentos da
Terceira Princesa. Pelas frestas das persianas de bambu, via-se a figura
indistinta das jovens e inquietas damas de companhia. Entreviam-se também
mangas de cores vivas sobrando para fora da persiana8, o que lembrava os
belos tecidos das oferendas aos deuses da primavera. Quem estava de fora
conseguia perceber claramente a presença de várias pessoas atrás do kichô9,
que fora erguido.
Nesse instante, um gato chinês10 muito bonitinho, perseguido por um
maior, tentou passar por debaixo da persiana, e se pôde ouvir nitidamente o
farfalhar das roupas das damas de companhia, que tentavam se afastar. O
gato pequeno, talvez por não ter sido ainda domesticado, estava preso por
um longo cordão, amarrado ao pé do kichô. Puxava o cordão com força para
fugir, e acabou erguendo uma parte da persiana que ninguém correu para
arrumar. As damas que estavam próximas ao pilar apenas se agitaram,
assustadas.
Um passo para trás do kichô, havia uma dama em pé, vestindo um
magnífico quimono. Encontrava-se a dois pilares de distância dos rapazes e
podia ser vista perfeitamente. Com tons do rosa avermelhado das flores de
ameixeira, suas roupas iam da cor mais escura à mais clara em vibrantes
camadas que lembravam páginas de um livro. A túnica de seda da cor das
flores de cerejeira parecia um tanto longa. Seu cabelo, sedoso em todo o seu
comprimento e com pontas bem aparadas, descia-lhe gracioso pelas costas,
arrastando-se ainda por cerca de vinte centímetros pelo chão. Por ser esbelta
e pequena, suas vestes pareciam ainda mais longas. De perfil, a sua aparência
e seus longos cabelos tinham um ar elegante. No entanto, como a
Referência a um poema waka de origem desconhecida. “Se o vento fosse gentil, deveria evitar as flores de cerejeira
nesta primavera, para que elas não caiam”. (n.t.)
As mulheres não podiam ser vistas, mas deixavam as mangas dos quimonos para fora das cortinas, para indicarem sua
presença e como sinal de elegância de sua indumentária. (n.t.)
9 Kichô. “Cortina portátil” de pano, pendurada em uma vara horizontal presa a dois mastros verticais (formando um T),
utilizada quando não havia cortinas fixas em um aposento e era necessário proteger uma dama dos olhares de um
cavalheiro. Por estar presa a um pé móvel, podia ser recolhida e deslocada facilmente. Ao contrário do biombo, era
baixa, de altura suficiente apenas para ocultar uma pessoa sentada no chão. (n.t.)
10 De raça chinesa. Provavelmente, preto e branco, em oposição ao gato japonês, que é de três cores (mike). (n.t.)
7
8
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
350
luminosidade do dia estava indo embora, Kashiwagi teve frustrado seu desejo
de observar melhor o seu cômodo.
Assistindo concentradas aos jovens que, absortos em seu jogo de bola,
ignoravam as pétalas cadentes, as damas de companhia não perceberam de
imediato que estavam expostas. A Terceira Princesa era a imagem mesmo de
uma mocidade bela, despida de malícias, enquanto olhava para o gatinho, que
miava alto.
Yûgiri ficou chocado ao ver que a persiana estava levantada, expondo o
interior do aposento. Porém, como achou inadequado ir ele mesmo arrumála, limitou-se a dar uma tossidinha, chamando a atenção da Terceira Princesa.
Ela então se afastou silenciosamente para o interior do aposento. Enquanto
observava tudo isso, o comandante se lamentou por não poder ver mais. Ao
mesmo tempo, o gatinho foi solto e a persiana, arrumada. Yûgiri deixou
escapar um suspiro, decepcionado. Ainda mais triste ficou Kashiwagi, que
observava a jovem fixamente, e sentiu um aperto no peito quando ela se foi.
Vestida como estava, não havia como o intendente confundir a Terceira
Princesa com as outras damas, e a imagem dela ficou gravada na sua
memória.
Kashiwagi tentou disfarçar, mas Yûgiri não acreditou que ele não tivesse
visto nada. Sentia um pouco de pena da Terceira Princesa. Kashiwagi chamou
o gatinho e o segurou em seus braços, como se quisesse se consolar. Ao
sentir o cheiro de incenso e ouvir seus miados, não pôde deixar de pensar que
fosse a própria princesa.
— Um lugar tumultuado como este não é apropriado para nobres de alto
nível. Venham comigo — disse o Genji, encaminhando-se para a ala sul.
Todos o seguiram. O príncipe Hotaru permaneceu ao seu lado, prosseguindo
com a conversa. Os distintos cavalheiros se sentaram em almofadas redondas
dispostas na varanda. Sem muitas cerimônias, misturadas em tampas de
caixas, foram servidas comidas como mochi11 enrolado em folhas de camélia,
nashi12 e tangerinas, as quais os cavalheiros comeram com alegria. Também
foi trazido o saquê, com o indispensável acompanhamento de frutos do mar
secos.
Kashiwagi observava as flores de cerejeira com um ar pensativo. Yûgiri,
que também havia presenciado a cena, podia imaginar que o amigo estava se
lembrando da figura da jovem. Não entendia como a Terceira Princesa podia
ser tão descuidada a ponto de ficar perto da varanda, nem como alguém de
sua posição pudera se comportar daquela maneira. O comandante concluiu
11
12
Mochi. Bolinhos de arroz socado. Neste caso, o arroz é misturado ao xarope de uma planta. (n.t.)
Nashi. Pera japonesa. (n.t.)
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
351
que tal defeito era a razão pela qual seu pai não se interessava por ela, apesar
da nobreza de seu nascimento. Faltava-lhe o recato próprio das damas da
corte e, ainda que sua imaturidade tivesse algo de gracioso, também era
preocupante para o marido, pensou Yûgiri, com desdém.
Contudo, todas as suas faltas nada significavam para Kashiwagi, pois um
acaso permitira que a visse por uma fresta, mesmo que indistintamente. “Isso
deve ser um bom presságio para o desejo que carrego em meu coração há
tanto tempo”, pensou. Apenas lamentava não ter podido ver mais.
Genji estava contando aos convivas sobre acontecimentos do passado e
disse a Kashiwagi:
— Seu pai, o chanceler13, foi meu melhor amigo e principal rival em várias
ocasiões. Porém, sua habilidade no jogo de bola era superior. Nem todas as
qualidades dos pais são transmitidas aos filhos, mas é estranho notar como os
filhos herdam as técnicas dos pais. Seu desempenho no jogo de hoje foi
excepcional.
— Para aqueles de nós a quem falta mais habilidade nos assuntos
administrativos, esse é o tipo de qualidade que dificilmente impressionará
nossos descendentes — respondeu Kashiwagi, com um sorriso.
Ao que o Genji replicou:
— Não há desmerecimento, pois habilidades que se destacam devem ser
transmitidas para as gerações futuras.
Kashiwagi, ao perceber a jovialidade com que o senhor da Sexta Avenida
disse isso e outras coisas, indagou-se como poderia se comparar ao Genji e
ainda conquistar o coração da Terceira Princesa. Finalmente, compreendeu o
quanto o Genji era superior a ele e, inconsolável, retirou-se.
O comandante Yûgiri e ele tomaram a mesma carruagem e vieram
conversando durante o caminho.
— A residência do Genji é o lugar perfeito para se passar esses dias de
ócio — começou o intendente Kashiwagi.
Yûgiri respondeu:
— Meu pai disse para voltarmos se estivermos livres num dia como este,
enquanto as cerejeiras ainda estiverem floridas. Neste mês, antes que a
primavera se vá, traga seu koyumi de novo.
A conversa continuou até o ponto da estrada em que deviam se separar,
ao que Kashiwagi decidiu mencionar a Terceira Princesa.
— O Genji parece passar todo o tempo na ala da dama Murasaki — ele
disse. — Imagino como não se sente a Terceira Princesa. O ex-imperador
13
Tô no Chûjô. (n.t.)
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
352
Suzaku a tratava como a fonte do seu orgulho; ela deve sentir falta disso
agora. Sinto pena dela.
Yûgiri negou:
— Meu pai não faria uma coisa dessas. Ele não conheceu a dama Murasaki
da maneira tradicional, pois na verdade ela foi criada por ele, e esse é o único
motivo por que eles têm uma maior intimidade. Mas a Terceira Princesa é,
acima de tudo, a esposa oficial e é tratada como tal.
— Ora, vamos, não me venha com essa. Do que sei sobre essa história, a
vida da princesa tem sido uma sucessão de humilhações. E pensar que ela já
foi tão querida! Nunca vi algo assim!
O intendente declamou:
Por que vai o rouxinol
A todo galho e em cada flor
E esquece cada vez
A cerejeira florida?14
— O que levaria o rouxinol a esquecer, dentre todas as flores da
primavera, justo a cerejeira? A mim isso parece muito estranho.
Yûgiri, ao ouvir o amigo dizer algo tão inadequado, teve certeza de que
ele se apaixonara pela Terceira Princesa. Respondeu:
Por que iria o belo pássaro
Que toda noite descansa
Na mesma árvore dos montes
Esquecer a cerejeira florida?15
— Você está enganado! O Genji não pode nem ao menos descansar?
E Yûgiri achou melhor não falar mais desse problema com um Kashiwagi
tão exaltado. Prosseguiram caminho falando de outros assuntos, até
chegarem ao ponto da estrada em que cada um tomava seu rumo.
Kashiwagi ainda vivia sozinho na ala leste da residência de Tô no Chûjô.
Vivia assim há algum tempo por suas próprias razões, e podia culpar apenas a
si mesmo nas horas em que se sentia perdido e solitário. Contudo, era
orgulhoso e não via motivo para não poder ter o que desejava. Depois
daquela noite, tornara-se excessivamente melancólico e taciturno.
14 O rouxinol japonês (ugúisu, Horornis diphone) representa a primavera; neste caso, representa também o Genji, que
visita todas as outras mulheres, menos a Terceira Princesa (a flor da cerejeira, justamente a mais importante para a
poesia clássica). (n.t.)
15 O belo pássaro representa o Genji; a árvore da montanha (sem graça) seria a dama Murasaki, em cujos aposentos ele
vai “descansar”; e a Terceira Princesa é a cerejeira florida. (n.t.)
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
353
Perguntava-se quando teria novamente um vislumbre da Terceira Princesa.
Se fosse alguém de mais baixo nascimento, sim, não haveria caprichos de
privacidade, tabus direcionais ou qualquer outra coisa que o impedisse de vêla; mas, sendo ela tão nobre, não havia o que fazer. Cercada de atenções
como estava, como poderia ele sequer informá-la de sua profunda devoção?
De tanta dor e sofrimento que sentia, Kashiwagi enviou uma carta para
Kojijû16, a dama de companhia da Terceira Princesa:
Quão triste eu fico ao pensar na má impressão que
causei naquele dia, ao entrar naquele nobre jardim,
guiado pelo vento de primavera. Desde aquela tarde,
estou enfermo, atormentado por meus pensamentos!
De longe avistei
Mas não colhi
O ramo que me faz suspirar
Que ainda me faz ansiar
Florescendo ao entardecer
No entanto, Kojijû não sabia que Kashiwagi vira a Terceira Princesa e
pensou que suas insinuações não diferiam em nada das cartas anteriores.
Aproveitando que não havia muitas damas próximas à princesa, Kojijû lhe
mostrou a carta e lhe disse, rindo:
— Essa pessoa tem escrito frequentemente sobre seus sentimentos para
com a senhora, e não sei o que fazer. Ele causa tanta pena que eu não sei se
poderei resistir ao impulso de ajudá-lo.
— Que coisa horrível de se dizer — respondeu a Terceira Princesa, com
ar de indiferença, lendo a carta que Kojijû lhe mostrara. A carta lembrava-a
do vergonhoso caso da persiana, o que a fez corar. Sempre que estavam
juntos, Genji dizia-lhe que tivesse cuidado para nunca deixar que Yûgiri a
visse.
— Você é tão inocente para certas coisas que qualquer momento de
desatenção pode ser perigoso.
Nunca lhe havia ocorrido que outra pessoa pudesse tê-la visto, pois em
nada mais conseguia pensar, a não ser no Genji e em como ele ficaria irritado
se Yûgiri lhe contasse coisa semelhante. Seu medo do Genji tornava claro o
tipo de moça que ela era.
16 Kashiwagi, apaixonado pela Terceira Princesa, já enviara cartas a Kojijû anteriormente, mas esta se recusava a servir
de intermediária entre o rapaz e sua ama. (n.t.)
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
354
Vendo que a princesa estava demorando demais para responder, e sem
saber mais o que dizer, Kojijû se retirou, levando a carta. Discretamente,
escreveu uma resposta a Kashiwagi:
No dia do jogo, você fingiu que não me conhecia. Não
admito que você escreva esse tipo de coisa para minha
senhora. O que você quer dizer com “avistei, mas não
colhi”? Você está passando dos limites.
Não vou mais aceitar
Nenhum apelo seu
Não quero ouvir que seu anseia
Por um ramo da cerejeira!
Desista, é inútil!
Kashiwagi era obrigado a reconhecer que Kojijû tinha razão, mas ainda
assim, pensou que ela era muito cruel em sua franqueza. Além disso, as cartas
superficiais da dama de companhia já não o satisfaziam. Desejava poder
trocar algumas palavras com a princesa, sem intermediários, e sofria com essa
impossibilidade. Nutria um respeito sem limites pelo Genji, e por isso a
vergonha que tinha de seus sentimentos crescia na mesma proporção que seu
desejo pela Terceira Princesa.
No final do mês, os oficiais do palácio fizeram uma visita à residência da
Sexta Avenida os oficiais do palácio. Kashiwagi não estava com disposição
para se juntar a eles, mas quando pensou que poderia se distrair vendo as
flores da residência de sua amada, decidiu acompanhá-los.
O concurso de arco e flecha que normalmente era realizado no Palácio
Imperial fora cancelado, devido ao luto pela imperatriz Fujitsubo. Por isso, o
Genji decidiu organizar uma competição na sua residência da Sexta Avenida.
Como os comandantes da Esquerda e da Direita eram parentes do anfitrião, e
seus filhos estavam presentes, os guardas imperiais também foram chamados
para jogar e o número de participantes aumentou bastante. O Genji
convidou também célebres mestres do arco longo, ainda que a competição
principal fosse de arco curto. Os participantes da Esquerda e da Direita se
dividiram em dois grupos e competiram até o início da noite. A neblina do
final de primavera e a brisa noturna que soprava sobre as cerejeiras, fazendo
com que as pétalas caíssem sobre o jardim, eram comoventes. Todos já
estavam levemente embriagados.
— Os prêmios são magníficos. Não é justo que apenas aqueles com
grande técnica os recebam. Afinal, não tem graça uma competição entre
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
355
soldados que são mesmo capazes de acertar cem vezes uma folha de
salgueiro. Algumas pessoas simples, com pouca habilidade, deveriam
participar também. — dizia o comandante, entre outras coisas, enquanto
desciam para o jardim.
O intendente Kashiwagi estava deprimido, com um ar pensativo. O
comandante Yûgiri não sabia muito bem por que, mas suspeitava do motivo.
Receava que um relacionamento entre Kashiwagi e a Terceira Princesa
gerasse um escândalo. Além de ser o irmão mais velho de sua esposa,
também era seu amigo desde a juventude, e tinham grande afeição um pelo
outro. Por outro lado, Kashiwagi por si só também causava certa
preocupação em Yûgiri. O intendente olhava para o rosto do Genji com um
sentimento de reverência e parecia se sentir envergonhado por alguma falta
cometida.
Absorto em seus pensamentos, Kashiwagi pensava que deveria obter para
si o gatinho chinês, como forma de consolo. O gato seria uma companhia
para os momentos solitários, quando ele não tivesse ninguém a quem contar
os sofrimentos que trazia em seu coração. Parecia louco, tinha febre e
pensava em roubar o gato, e isso, em si, já era um problema.
Tentando esquecer a Terceira Princesa, Kashiwagi resolveu visitar sua
irmã, a Kokiden. Era uma dama tão refinada que se ocultava atrás do kichô
mesmo em presença do irmão. Havia um contraste entre a conduta da
Kokiden e a da Terceira Princesa, que permitira que vissem seu rosto; no
entanto, para alguém com uma paixão como a dele, o comportamento da
amada não era visto como reprovável.
Falou em seguida com o Príncipe Herdeiro, marido de sua irmã. Achava
que encontraria em seu rosto traços que lembrassem os da Terceira Princesa,
já que eram irmãos; observou atentamente suas feições, vendo um rosto
fascinante e refinado, como apenas os nobres possuíam; mas o homem não
tinha o charme encantador da moça.
O gato que o príncipe tinha em seus cuidados era um dos muitos irmãos
do gatinho da Terceira Princesa. Ao vê-lo andar graciosamente, disse:
— O gatinho da Terceira Princesa é muito bonito. Tive a oportunidade
de vê-lo. Tem boa aparência e feições raras.
Como o Príncipe Herdeiro apreciava muito os gatos, pediu mais detalhes.
— É um gato chinês, diferente dos nascidos em nosso país — respondeu
Kashiwagi. — Há os que dizem que são todos iguais, mas posso dizer que é
um gatinho de boa natureza, acostumado à companhia humana.
Kashiwagi dizia isso enquanto desejava que o coração da princesa pudesse
ser como o do gatinho.
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
356
Essa conversa instigou a curiosidade do Príncipe Herdeiro com relação ao
animal. Decidiu pedi-lo às damas de Akashi, que o enviaram como presente.
As damas da corte o acharam adorável, e Kashiwagi percebeu que o próprio
príncipe sem dúvida demonstrava muito interesse por ele, tendo intenções de
mantê-lo consigo. Querendo saber do gato, retornou alguns dias depois para
visitá-lo. O ex-imperador Suzaku sempre lhe dera pequenas missões e
privilégios, desde que era pequeno e, como o imperador estava agora em um
templo nas montanhas, as visitas de Kashiwagi eram ainda mais frequentes.
Enquanto auxiliava o príncipe em suas lições com o koto17, ele observou:
— Há tantos gatos aqui! Pergunto-me qual deles seria aquele meu
conhecido.
E, ao dizer isso, encontrou o gatinho que procurava. Kashiwagi, achandoo o mais bonitinho de todos, encheu-o de carinhos.
— Ele é realmente muito fofo, não é? — disse o príncipe. — Mas ainda
não se acostumou comigo; imagino que seja um desses gatinhos que tem
medo de estranhos. Ele é muito arisco; há outros melhores.
— Os gatos não são dados a essas coisas de gostar ou odiar as pessoas.
Contudo, são inteligentes, e acredito que tenham alma. — respondeu o
intendente. — Há tantos gatos excelentes aqui, que gostaria de pedir para
ficar com este por algum tempo.
Ao fazer esse pedido, o intendente sentiu que agia de forma tola.
Então, finalmente Kashiwagi pôde ter consigo o tão querido gatinho da
Terceira Princesa, com quem podia até dormir. Pelo dia, podia acariciá-lo e
passar o tempo ao seu lado. E assim, o gatinho que não se acostumava às
pessoas logo se acostumou a Kashiwagi, vindo se enroscar nas barras do seu
quimono e acomodando-se junto ao seu corpo para dormir. O intendente o
amava cada vez mais.
Enquanto Kashiwagi contemplava o nada, perdido nos seus próprios
pensamentos, o gatinho veio a ele fazendo “Miau! Miau!”, ao que ele
respondeu acariciando seu pequeno objeto de afeição e sorrindo.
— É como se você fosse o meu trágico amor em outra forma.
O que será que me diz
Quando vem miando assim?
Talvez as promessas
De uma vida passada.
17
Espécie de cítara japonesa. (n.t.)
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
357
O gatinho miou de forma ainda mais adorável ao ver a expressão que
Kashiwagi fazia, e ele o envolveu em um abraço, tornando a ficar pensativo.
As damas de companhia comentavam:
— Que estranho, não é mesmo? De repente, ele demonstra tanta afeição
por um gato... Ele sempre pareceu tão indiferente a esses bichos.
O Príncipe Herdeiro chegou a mandar alguém para buscar o animal, mas
Kashiwagi nunca o devolveu — decidiu mantê-lo consigo para ter alguém
com quem conversar.18
18 O romance entre os dois jovens tem um fim trágico. Eles se tornam amantes e a Terceira Princesa engravida de
Kashiwagi. O sentimento de culpa por ter traído o Genji devora o rapaz de tal maneira que ele acaba morrendo. Kaoru,
o filho desse amor, será criado como se fosse do Genji. (n.t.)
O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.)
358
INDEX
CAPA:
Detalhe de Quipu inca – Cusco, Peru
ARQUIVO (n.t.)
INTERNAS:
Aline Daka (p. 3)
Dos extremos da noite, 2012
Nanquim sobre papel
ARQUIVO (n.t.)
VINHETAS:
Fotos de:
Roger Sulis
(pp. 8 e 378)
Gleiton Lentz
(pp. 120, 162, 191 e 218)
ARQUIVO (n.t.)
ENTRADAS:
Shahram Karimi (p. 9)
Forugh, 2011
Colagem sobre tecido
LTMH GALLERY, NOVA YORK
Ahmad Moualla (p. 27)
Sem título, 2008
Colagem sobre tela
WWW.AHMADMOUALLA.COM
Hiroshi Oshima (p. 40)
Detalhe de Kenji - Fazenda Koiwai no inverno, [s.d.]
Fotografia
WWW.KENJI-WORLD.NET
Bernardino de Sahagún (p. 53)
Detalhe de Oferenda de milho, 1575-77
Ilustração do Códice Florentino
LIBRARY MEDICEA LAURENTIANA, FLORENÇA
Index
375
Georges Barbier (p. 121)
Detalhe de Bilitis, 1922
Ilustração para o livro Les Chansons de Bilitis
ED. PIERRE CORRARD, PARIS
Saul Steinberg (p. 146)
Vinho e guarda-chuva, c. 1954
Ilustração para o livro The Passport
THE SAUL STEINBERG FOUNDATION, NOVA YORK
Joshua Reynolds (p. 163)
Sra. Richard Bennett Lloyd, 1775-76
Óleo sobre tela
COLEÇÃO PARTICULAR
Gustave Boulanger (p. 180)
Hércules aos pés de Ônfale, 1861
Óleo sobre tela
COLEÇÃO PARTICULAR
Benito Quinquela Martin (p. 192)
Detalhe de Cemitério de barcos, 1953
Óleo sobre tela
FUNDACIÓN PROA, BUENOS AIRES
Sigrid Hjertén (p. 219)
Vista da Slussen, 1919
Óleo sobre tela
MODERNA MUSEET, ESTOCOLMO
Edward Hopper (p. 238)
Quarto em Nova York, 1932
Óleo sobre tela
SHELDON MEMORIAL ART GALLERY, LINCOLN
Edward Gorey (p. 270)
A Casa do Juiz, [s.d.]
Ilustração para o livro The Haunted Looking Glass
NEW YORK REVIEW BOOKS
Solano López (p. 304)
El eternauta (Homenaje a H. G. Oesterheld), 2004
Ilustração com dedicatória
MUSEO DE ARTE Y MEMORIA, BUENOS AIRES
Mino Maccari (p. 325)
Se for dar xeque-mate, faça-o, 1931
Linoleografia
COLEÇÃO PARTICULAR
Suzuki Harunobu (p. 336)
A Terceira Princesa e seu Gato, 1767-68
Impressão em madeira, tinta sobre papel
MUSEUM OF FINE ARTS, BOSTON
Index
376
O Romance do Genji (pp. 337 e 338)
651
Ilustrações para O Romance do Genji, edição de 1651
Impressão em madeira
NATIONAL DIET LIBRARY, TÓQUIO
Pompeia (pp. 360 e 361)
Detalhe de Retrato de Paquius Proculus e sua mulher
her, c. 30 d.C.
Afresco romano
Apenas “Safo”, c. 50 d.C.
Afresco romano (medalhão)
MUSEO ARCHEOLOGICO NAZIONALE, NÁPOLES
ILUSTRAÇÃO:
Aline Daka (pp. 372-374)
Grito Noturno, 2012
Sobre poema homônimo de Severino Di Giovanni
Quadrinhos, nanquim sobre papel
ARQUIVO (n.t.)
CONTRACAPA:
Gleiton Lentz
Istambul (Tercüme: escritório de tradução), 2011
Fotografia
ARQUIVO (n.t.)
*
[a (n.t.) | 5º acabou-se de editar em 01 de novembro de 2012]
Fontes ocidentais: Book Antiqua, Palatino Linotype,, Baramond
Farsi: Farsi Simple Bold Árabe: Lateef Japonês: MingLiU
Index
377
(n.t.)|
(n.t.)|Istambul/Turquia
(n.t.)
COSMOPOLIZE
IZE-SE
Index
378