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(n.t.)| REVISTA LITERÁRIA EM TRADUÇÃO ANO III - SETEMBRO/2012 - EDIÇÃO BILÍNGUE SEMESTRAL - ILHA DO DESTERRO/BRASIL TRADUÇÕES ROBERTO Arlt GEORGE Bacovia RAYMOND FORUGH Carver Farrokhzad SEVERINO DI TOMMASO PIERRE Giovanni Landolfi Louÿs KENJI Miazawa H. G. Oesterheld NIZAR Qabbani JUAN HERNÁNDEZ MURASAKI HJALMAR BRAM Ramírez Shikibu Söderberg Stoker Sulpícia MARY Wollstonecraft EDITH Wharton 1 ISSN 2177-5141 5 Ficha catalográfica elaborada por: Francisca Rasche CRB 14/691 (n.t.) Revista Literária em Tradução -- n. 1, set. 2010 -.- Florianópolis, 2010 – [recurso eletrônico]. Semestral, ano 3, n. 5, set. 2012 Multilíngue Editada por Gleiton Lentz Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: world wide web: http://www.notadotradutor.com/ Portal interativo: Calaméo; Scribd ISSN 2177-5141 1. Literatura. 2. Poesia. 3. Tradução. II. Título. Indexada no Latindex e Sumários.org Licenciada na Creative Commons Outro 2 O ROMANC NCE DO GENJI LIVRO XXXIV: OS JOVENS BROTOS MURASAKI SHIKIBU · O TEXTO: Narrativa em japonês clássico, escrita por or uma dama da corte imperial no século XI, O Romance do Genji é tópico frequente fre da infindável discussão sobre qual teria sido o primeiro romancee (s (se a definição inclui o Oriente, ele é o mais antigo). Para a literatura japon ponesa, tal como ela se configura hoje, trata-se do texto fundador. Foi tradu duzido inúmeras vezes, tanto para o japonês moderno (dentre outros, pela poet oeta Yosano Akiko e em duas versões pelo romancista Tanizaki Jun’ichirô) como mo para o inglês (Waley, 1933; Seidensticker, 1976; Tyler, 2001), francês (Sieffert fert) e espanhol e catalão (Roca-Ferrer). Uma tradução para o português (dee C Carlos de Oliveira) foi finalmente publicada em 2008 pela Relógio d’Água, a, de d Lisboa; no entanto, ela não foi feita diretamente do japonês e não incluii o último terço da obra (livros XXXIV a LIV). Texto traduzido: 紫式部, 日本古典文学全集 (23) 源氏物語 (4) [単行本 単行本]. 東京: 小学館, 1997. · · · A AUTORA: Murasaki Shikibu (973?-1014?) era mem membro da aristocracia média de Heiankyô (atual Quioto, Japão). Desde crian riança, sempre teve facilidade para ler e escrever, tanto chinês clássico como o o vernáculo japonês – habilidades que, sendo ela mulher, não eram vistass ccomo muito úteis pela sua família. Serviu como dama de companhia da futu utura imperatriz Shôshi, educando-a nas artes e nas sensibilidades necessári árias ao alto cargo. Foi provavelmente escolhida para esse posto devido à fama fam de suas narrativas, que ela continuou a escrever e que foram reunidas em O Romance do Genji. Além dessa obra imensa (a mais recente tradução para ara o inglês tem mais de mil páginas), deixou um diário e uma coletânea de poesia. poe AS TRADUTORAS: A equipe de tradução é formada por po Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik, alunas do curso de Letras L Tradutor Japonês/Português da Universidade Federal do Rio Grande Gra do Sul, e coordenada pelo professor e tradutor Andrei Cunha (O Livro Liv de Travesseiro de Sei Shônagon, Escritos, 2008; Histórias da Outra Margem, de Nagai Kafû, Estação Liberdade, no prelo). O grupo vem realizando uma a leitura conjunta de O Romance do Genji desde 2010. Contos|Davi Pessoa Carneiro C (trad.) 336 Ilustração para O Romance do Genji, edição de 1651. © National Diet Library 源氏物語|紫式部(Muras rasaki Shikibu) 337 Ilustração para O Romance do Genji, edição de 1651. © National Diet Library 源氏物語|紫式部(Muras rasaki Shikibu) 338 O ROMANCE DO GENJI LIVRO XXXIV: OS JOVENS BROTOS “De longe avistei/Mas não colhi/O ramo que me faz suspirar/ Que ainda me faz ansiar/Florescendo ao entardecer.” ________________ MURASAKI SHIKIBU N um dia de céu claro do terceiro mês vieram prestar visita ao Genji, em sua residência na Sexta Avenida, o príncipe Hotaru, ministro da guerra, e Kashiwagi, o intendente da guarda do portão principal, dentre outros. O Genji os recebeu e, durante a conversa, observou: — A vida neste lugar anda muito tranquila. Nesses dias, não encontro o que me distraia do tédio. Não tem nada acontecendo, nem em minha vida privada, nem na pública. O que é que eu vou fazer para passar o dia? Acrescentou ainda: — Hoje de manhã, veio aqui o comandante Yûgiri1. Para onde terá ido agora? Eu deveria ter-lhe pedido uma demonstração de arco e flecha, daquelas que ele sempre faz com o koyumi2 e que são tão animadas. Também estavam aqui uns jovens, a quem agrada esse tipo de atividade. Será que ele ainda está aí? — perguntou. Responderam-lhe que Yûgiri estava na parte nordeste da propriedade, assistindo a um jogo de bola3 que ele organizara com diversos outros rapazes. Então, o Genji disse: Filho do Genji com a dama Aoi, sua primeira esposa. Aoi morreu durante o parto, vítima da alma viva penada da dama Rokujô. As almas vivas (ikiryô) são fantasmas japoneses, almas que saem de seus corpos durante o sono, em busca de vingança. (n.t.) 2 O koyumi é um arco mais curto, usado em campeonatos. O atirador deve estar com uma perna flexionada e a outra ajoelhada. O arco japonês mais comum é longo, e usado para a prática a cavalo. (n.t.) 3 O kemari é um jogo de bola tradicional do Japão. Os jogadores fazem uma roda e o objetivo é manter a bola no ar, por meio de pontapés ou cabeçadas. (n.t.) 1 O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 348 — Não é jogo dos mais refinados, mas é divertido para os que assistem e requer muita habilidade dos que jogam. Diga-lhes que venham para cá. Yûgiri veio em seguida, acompanhado de muitos jovens. — Trouxeram a bola? — perguntou o Genji. — Veio Fulano? E o Sicrano, veio? — Sim, vieram. E se jogássemos aqui? — Yûgiri perguntou. A jovem Akashi4 voltara ao Palácio Imperial com seu bebê e suas damas de companhia, e a ala leste da casa principal estava vazia e silenciosa. Os rapazes saíram a procurar um lugar propício ao jogo, encontrando uma parte plana do jardim onde dois riachos se uniam. Dos filhos de Tô no Chûjô5, vieram Kôbai, o consultor de câmara, Hyôe no Suke, o assistente da defesa, e Tayû no Kimi, o comissário. Junto com seus irmãos mais jovens, destacavam-se dos outros por sua bela aparência. Já estava entardecendo quando Kôbai decidiu se juntar ao jogo. Ele não resistira à beleza do dia, perfeito para um jogo de bola. O Genji observou: — Vejam só, mesmo o consultor não resistiu! Sendo jovem, não há de fato necessidade de se conter e ficar de mero espectador. Eu também, quando era mais moço, ficava frustrado se não podia participar, ainda que esse jogo não seja dos mais aristocráticos! Com as palavras de incentivo do Genji, Yûgiri e Kashiwagi também resolveram descer aos jardins. Estavam magníficos à sombra das cerejeiras em flor à luz do sol poente. O jogo de bola costuma ser um tanto ruidoso e tumultuado, mas isso depende do lugar e dos jogadores. O bonito bosque enevoado tinha diversas árvores floridas, e já se via um pouco do verde das folhas novas. Os homens se entregavam com calor ao jogo — afinal, ninguém queria perder. Nenhum, entretanto, equiparava-se a Kashiwagi, que jogou por pouco tempo. Por ser belo e possuir atitudes sofisticadas, vê-lo se transmutar em puro ímpeto para o jogo era ainda mais fascinante. À sombra de uma cerejeira próxima ao degrau da varanda, o Genji, o príncipe Hotaru e outras pessoas assistiam absortos à cena. Os jogadores entusiasmados pisavam nas flores, distraídos com a competição. As rodadas se sucediam, e as damas da corte, também em polvorosa, aproximaram-se para assistir aos jovens oficiais que, de tão animados, esqueciam as boas maneiras. Alguns deles haviam mesmo deixado o chapéu cair sobre a testa. Yûgiri, esquecendo-se de sua alta nobreza, jogava despreocupado. Usava uma túnica6 da cor das flores de cerejeira, amaciada Filha do Genji com a dama de Akashi. Residia normalmente na ala leste da mansão. (n.t.) Melhor amigo e cunhado do Genji; às vezes, seu rival em conquistas amorosas. (n.t.) Nôshi. Túnica usada pelos nobres da Era Heian. A parte superior da vestimenta dos homens, em forma de casaco. (n.t.) 4 5 6 O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 349 pelo uso. Ele levantara as barras da calça, deixando-a bufante, o que não lhe dava uma aparência de leveza; ainda assim, quem o via tinha a impressão de que ele era o mais belo de todos. Notando as flores de cerejeira que caíam como neve, Yûgiri se sentou em um dos degraus da escada e, enquanto fazia um breve intervalo, pegou um raminho quebrado de cerejeira. Kashiwagi veio se juntar a ele, dizendo: — As flores de cerejeira são tão frágeis. Talvez devêssemos evitá-las7 — E, ao dizer essas palavras, olhou de relance em direção aos aposentos da Terceira Princesa. Pelas frestas das persianas de bambu, via-se a figura indistinta das jovens e inquietas damas de companhia. Entreviam-se também mangas de cores vivas sobrando para fora da persiana8, o que lembrava os belos tecidos das oferendas aos deuses da primavera. Quem estava de fora conseguia perceber claramente a presença de várias pessoas atrás do kichô9, que fora erguido. Nesse instante, um gato chinês10 muito bonitinho, perseguido por um maior, tentou passar por debaixo da persiana, e se pôde ouvir nitidamente o farfalhar das roupas das damas de companhia, que tentavam se afastar. O gato pequeno, talvez por não ter sido ainda domesticado, estava preso por um longo cordão, amarrado ao pé do kichô. Puxava o cordão com força para fugir, e acabou erguendo uma parte da persiana que ninguém correu para arrumar. As damas que estavam próximas ao pilar apenas se agitaram, assustadas. Um passo para trás do kichô, havia uma dama em pé, vestindo um magnífico quimono. Encontrava-se a dois pilares de distância dos rapazes e podia ser vista perfeitamente. Com tons do rosa avermelhado das flores de ameixeira, suas roupas iam da cor mais escura à mais clara em vibrantes camadas que lembravam páginas de um livro. A túnica de seda da cor das flores de cerejeira parecia um tanto longa. Seu cabelo, sedoso em todo o seu comprimento e com pontas bem aparadas, descia-lhe gracioso pelas costas, arrastando-se ainda por cerca de vinte centímetros pelo chão. Por ser esbelta e pequena, suas vestes pareciam ainda mais longas. De perfil, a sua aparência e seus longos cabelos tinham um ar elegante. No entanto, como a Referência a um poema waka de origem desconhecida. “Se o vento fosse gentil, deveria evitar as flores de cerejeira nesta primavera, para que elas não caiam”. (n.t.) As mulheres não podiam ser vistas, mas deixavam as mangas dos quimonos para fora das cortinas, para indicarem sua presença e como sinal de elegância de sua indumentária. (n.t.) 9 Kichô. “Cortina portátil” de pano, pendurada em uma vara horizontal presa a dois mastros verticais (formando um T), utilizada quando não havia cortinas fixas em um aposento e era necessário proteger uma dama dos olhares de um cavalheiro. Por estar presa a um pé móvel, podia ser recolhida e deslocada facilmente. Ao contrário do biombo, era baixa, de altura suficiente apenas para ocultar uma pessoa sentada no chão. (n.t.) 10 De raça chinesa. Provavelmente, preto e branco, em oposição ao gato japonês, que é de três cores (mike). (n.t.) 7 8 O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 350 luminosidade do dia estava indo embora, Kashiwagi teve frustrado seu desejo de observar melhor o seu cômodo. Assistindo concentradas aos jovens que, absortos em seu jogo de bola, ignoravam as pétalas cadentes, as damas de companhia não perceberam de imediato que estavam expostas. A Terceira Princesa era a imagem mesmo de uma mocidade bela, despida de malícias, enquanto olhava para o gatinho, que miava alto. Yûgiri ficou chocado ao ver que a persiana estava levantada, expondo o interior do aposento. Porém, como achou inadequado ir ele mesmo arrumála, limitou-se a dar uma tossidinha, chamando a atenção da Terceira Princesa. Ela então se afastou silenciosamente para o interior do aposento. Enquanto observava tudo isso, o comandante se lamentou por não poder ver mais. Ao mesmo tempo, o gatinho foi solto e a persiana, arrumada. Yûgiri deixou escapar um suspiro, decepcionado. Ainda mais triste ficou Kashiwagi, que observava a jovem fixamente, e sentiu um aperto no peito quando ela se foi. Vestida como estava, não havia como o intendente confundir a Terceira Princesa com as outras damas, e a imagem dela ficou gravada na sua memória. Kashiwagi tentou disfarçar, mas Yûgiri não acreditou que ele não tivesse visto nada. Sentia um pouco de pena da Terceira Princesa. Kashiwagi chamou o gatinho e o segurou em seus braços, como se quisesse se consolar. Ao sentir o cheiro de incenso e ouvir seus miados, não pôde deixar de pensar que fosse a própria princesa. — Um lugar tumultuado como este não é apropriado para nobres de alto nível. Venham comigo — disse o Genji, encaminhando-se para a ala sul. Todos o seguiram. O príncipe Hotaru permaneceu ao seu lado, prosseguindo com a conversa. Os distintos cavalheiros se sentaram em almofadas redondas dispostas na varanda. Sem muitas cerimônias, misturadas em tampas de caixas, foram servidas comidas como mochi11 enrolado em folhas de camélia, nashi12 e tangerinas, as quais os cavalheiros comeram com alegria. Também foi trazido o saquê, com o indispensável acompanhamento de frutos do mar secos. Kashiwagi observava as flores de cerejeira com um ar pensativo. Yûgiri, que também havia presenciado a cena, podia imaginar que o amigo estava se lembrando da figura da jovem. Não entendia como a Terceira Princesa podia ser tão descuidada a ponto de ficar perto da varanda, nem como alguém de sua posição pudera se comportar daquela maneira. O comandante concluiu 11 12 Mochi. Bolinhos de arroz socado. Neste caso, o arroz é misturado ao xarope de uma planta. (n.t.) Nashi. Pera japonesa. (n.t.) O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 351 que tal defeito era a razão pela qual seu pai não se interessava por ela, apesar da nobreza de seu nascimento. Faltava-lhe o recato próprio das damas da corte e, ainda que sua imaturidade tivesse algo de gracioso, também era preocupante para o marido, pensou Yûgiri, com desdém. Contudo, todas as suas faltas nada significavam para Kashiwagi, pois um acaso permitira que a visse por uma fresta, mesmo que indistintamente. “Isso deve ser um bom presságio para o desejo que carrego em meu coração há tanto tempo”, pensou. Apenas lamentava não ter podido ver mais. Genji estava contando aos convivas sobre acontecimentos do passado e disse a Kashiwagi: — Seu pai, o chanceler13, foi meu melhor amigo e principal rival em várias ocasiões. Porém, sua habilidade no jogo de bola era superior. Nem todas as qualidades dos pais são transmitidas aos filhos, mas é estranho notar como os filhos herdam as técnicas dos pais. Seu desempenho no jogo de hoje foi excepcional. — Para aqueles de nós a quem falta mais habilidade nos assuntos administrativos, esse é o tipo de qualidade que dificilmente impressionará nossos descendentes — respondeu Kashiwagi, com um sorriso. Ao que o Genji replicou: — Não há desmerecimento, pois habilidades que se destacam devem ser transmitidas para as gerações futuras. Kashiwagi, ao perceber a jovialidade com que o senhor da Sexta Avenida disse isso e outras coisas, indagou-se como poderia se comparar ao Genji e ainda conquistar o coração da Terceira Princesa. Finalmente, compreendeu o quanto o Genji era superior a ele e, inconsolável, retirou-se. O comandante Yûgiri e ele tomaram a mesma carruagem e vieram conversando durante o caminho. — A residência do Genji é o lugar perfeito para se passar esses dias de ócio — começou o intendente Kashiwagi. Yûgiri respondeu: — Meu pai disse para voltarmos se estivermos livres num dia como este, enquanto as cerejeiras ainda estiverem floridas. Neste mês, antes que a primavera se vá, traga seu koyumi de novo. A conversa continuou até o ponto da estrada em que deviam se separar, ao que Kashiwagi decidiu mencionar a Terceira Princesa. — O Genji parece passar todo o tempo na ala da dama Murasaki — ele disse. — Imagino como não se sente a Terceira Princesa. O ex-imperador 13 Tô no Chûjô. (n.t.) O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 352 Suzaku a tratava como a fonte do seu orgulho; ela deve sentir falta disso agora. Sinto pena dela. Yûgiri negou: — Meu pai não faria uma coisa dessas. Ele não conheceu a dama Murasaki da maneira tradicional, pois na verdade ela foi criada por ele, e esse é o único motivo por que eles têm uma maior intimidade. Mas a Terceira Princesa é, acima de tudo, a esposa oficial e é tratada como tal. — Ora, vamos, não me venha com essa. Do que sei sobre essa história, a vida da princesa tem sido uma sucessão de humilhações. E pensar que ela já foi tão querida! Nunca vi algo assim! O intendente declamou: Por que vai o rouxinol A todo galho e em cada flor E esquece cada vez A cerejeira florida?14 — O que levaria o rouxinol a esquecer, dentre todas as flores da primavera, justo a cerejeira? A mim isso parece muito estranho. Yûgiri, ao ouvir o amigo dizer algo tão inadequado, teve certeza de que ele se apaixonara pela Terceira Princesa. Respondeu: Por que iria o belo pássaro Que toda noite descansa Na mesma árvore dos montes Esquecer a cerejeira florida?15 — Você está enganado! O Genji não pode nem ao menos descansar? E Yûgiri achou melhor não falar mais desse problema com um Kashiwagi tão exaltado. Prosseguiram caminho falando de outros assuntos, até chegarem ao ponto da estrada em que cada um tomava seu rumo. Kashiwagi ainda vivia sozinho na ala leste da residência de Tô no Chûjô. Vivia assim há algum tempo por suas próprias razões, e podia culpar apenas a si mesmo nas horas em que se sentia perdido e solitário. Contudo, era orgulhoso e não via motivo para não poder ter o que desejava. Depois daquela noite, tornara-se excessivamente melancólico e taciturno. 14 O rouxinol japonês (ugúisu, Horornis diphone) representa a primavera; neste caso, representa também o Genji, que visita todas as outras mulheres, menos a Terceira Princesa (a flor da cerejeira, justamente a mais importante para a poesia clássica). (n.t.) 15 O belo pássaro representa o Genji; a árvore da montanha (sem graça) seria a dama Murasaki, em cujos aposentos ele vai “descansar”; e a Terceira Princesa é a cerejeira florida. (n.t.) O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 353 Perguntava-se quando teria novamente um vislumbre da Terceira Princesa. Se fosse alguém de mais baixo nascimento, sim, não haveria caprichos de privacidade, tabus direcionais ou qualquer outra coisa que o impedisse de vêla; mas, sendo ela tão nobre, não havia o que fazer. Cercada de atenções como estava, como poderia ele sequer informá-la de sua profunda devoção? De tanta dor e sofrimento que sentia, Kashiwagi enviou uma carta para Kojijû16, a dama de companhia da Terceira Princesa: Quão triste eu fico ao pensar na má impressão que causei naquele dia, ao entrar naquele nobre jardim, guiado pelo vento de primavera. Desde aquela tarde, estou enfermo, atormentado por meus pensamentos! De longe avistei Mas não colhi O ramo que me faz suspirar Que ainda me faz ansiar Florescendo ao entardecer No entanto, Kojijû não sabia que Kashiwagi vira a Terceira Princesa e pensou que suas insinuações não diferiam em nada das cartas anteriores. Aproveitando que não havia muitas damas próximas à princesa, Kojijû lhe mostrou a carta e lhe disse, rindo: — Essa pessoa tem escrito frequentemente sobre seus sentimentos para com a senhora, e não sei o que fazer. Ele causa tanta pena que eu não sei se poderei resistir ao impulso de ajudá-lo. — Que coisa horrível de se dizer — respondeu a Terceira Princesa, com ar de indiferença, lendo a carta que Kojijû lhe mostrara. A carta lembrava-a do vergonhoso caso da persiana, o que a fez corar. Sempre que estavam juntos, Genji dizia-lhe que tivesse cuidado para nunca deixar que Yûgiri a visse. — Você é tão inocente para certas coisas que qualquer momento de desatenção pode ser perigoso. Nunca lhe havia ocorrido que outra pessoa pudesse tê-la visto, pois em nada mais conseguia pensar, a não ser no Genji e em como ele ficaria irritado se Yûgiri lhe contasse coisa semelhante. Seu medo do Genji tornava claro o tipo de moça que ela era. 16 Kashiwagi, apaixonado pela Terceira Princesa, já enviara cartas a Kojijû anteriormente, mas esta se recusava a servir de intermediária entre o rapaz e sua ama. (n.t.) O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 354 Vendo que a princesa estava demorando demais para responder, e sem saber mais o que dizer, Kojijû se retirou, levando a carta. Discretamente, escreveu uma resposta a Kashiwagi: No dia do jogo, você fingiu que não me conhecia. Não admito que você escreva esse tipo de coisa para minha senhora. O que você quer dizer com “avistei, mas não colhi”? Você está passando dos limites. Não vou mais aceitar Nenhum apelo seu Não quero ouvir que seu anseia Por um ramo da cerejeira! Desista, é inútil! Kashiwagi era obrigado a reconhecer que Kojijû tinha razão, mas ainda assim, pensou que ela era muito cruel em sua franqueza. Além disso, as cartas superficiais da dama de companhia já não o satisfaziam. Desejava poder trocar algumas palavras com a princesa, sem intermediários, e sofria com essa impossibilidade. Nutria um respeito sem limites pelo Genji, e por isso a vergonha que tinha de seus sentimentos crescia na mesma proporção que seu desejo pela Terceira Princesa. No final do mês, os oficiais do palácio fizeram uma visita à residência da Sexta Avenida os oficiais do palácio. Kashiwagi não estava com disposição para se juntar a eles, mas quando pensou que poderia se distrair vendo as flores da residência de sua amada, decidiu acompanhá-los. O concurso de arco e flecha que normalmente era realizado no Palácio Imperial fora cancelado, devido ao luto pela imperatriz Fujitsubo. Por isso, o Genji decidiu organizar uma competição na sua residência da Sexta Avenida. Como os comandantes da Esquerda e da Direita eram parentes do anfitrião, e seus filhos estavam presentes, os guardas imperiais também foram chamados para jogar e o número de participantes aumentou bastante. O Genji convidou também célebres mestres do arco longo, ainda que a competição principal fosse de arco curto. Os participantes da Esquerda e da Direita se dividiram em dois grupos e competiram até o início da noite. A neblina do final de primavera e a brisa noturna que soprava sobre as cerejeiras, fazendo com que as pétalas caíssem sobre o jardim, eram comoventes. Todos já estavam levemente embriagados. — Os prêmios são magníficos. Não é justo que apenas aqueles com grande técnica os recebam. Afinal, não tem graça uma competição entre O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 355 soldados que são mesmo capazes de acertar cem vezes uma folha de salgueiro. Algumas pessoas simples, com pouca habilidade, deveriam participar também. — dizia o comandante, entre outras coisas, enquanto desciam para o jardim. O intendente Kashiwagi estava deprimido, com um ar pensativo. O comandante Yûgiri não sabia muito bem por que, mas suspeitava do motivo. Receava que um relacionamento entre Kashiwagi e a Terceira Princesa gerasse um escândalo. Além de ser o irmão mais velho de sua esposa, também era seu amigo desde a juventude, e tinham grande afeição um pelo outro. Por outro lado, Kashiwagi por si só também causava certa preocupação em Yûgiri. O intendente olhava para o rosto do Genji com um sentimento de reverência e parecia se sentir envergonhado por alguma falta cometida. Absorto em seus pensamentos, Kashiwagi pensava que deveria obter para si o gatinho chinês, como forma de consolo. O gato seria uma companhia para os momentos solitários, quando ele não tivesse ninguém a quem contar os sofrimentos que trazia em seu coração. Parecia louco, tinha febre e pensava em roubar o gato, e isso, em si, já era um problema. Tentando esquecer a Terceira Princesa, Kashiwagi resolveu visitar sua irmã, a Kokiden. Era uma dama tão refinada que se ocultava atrás do kichô mesmo em presença do irmão. Havia um contraste entre a conduta da Kokiden e a da Terceira Princesa, que permitira que vissem seu rosto; no entanto, para alguém com uma paixão como a dele, o comportamento da amada não era visto como reprovável. Falou em seguida com o Príncipe Herdeiro, marido de sua irmã. Achava que encontraria em seu rosto traços que lembrassem os da Terceira Princesa, já que eram irmãos; observou atentamente suas feições, vendo um rosto fascinante e refinado, como apenas os nobres possuíam; mas o homem não tinha o charme encantador da moça. O gato que o príncipe tinha em seus cuidados era um dos muitos irmãos do gatinho da Terceira Princesa. Ao vê-lo andar graciosamente, disse: — O gatinho da Terceira Princesa é muito bonito. Tive a oportunidade de vê-lo. Tem boa aparência e feições raras. Como o Príncipe Herdeiro apreciava muito os gatos, pediu mais detalhes. — É um gato chinês, diferente dos nascidos em nosso país — respondeu Kashiwagi. — Há os que dizem que são todos iguais, mas posso dizer que é um gatinho de boa natureza, acostumado à companhia humana. Kashiwagi dizia isso enquanto desejava que o coração da princesa pudesse ser como o do gatinho. O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 356 Essa conversa instigou a curiosidade do Príncipe Herdeiro com relação ao animal. Decidiu pedi-lo às damas de Akashi, que o enviaram como presente. As damas da corte o acharam adorável, e Kashiwagi percebeu que o próprio príncipe sem dúvida demonstrava muito interesse por ele, tendo intenções de mantê-lo consigo. Querendo saber do gato, retornou alguns dias depois para visitá-lo. O ex-imperador Suzaku sempre lhe dera pequenas missões e privilégios, desde que era pequeno e, como o imperador estava agora em um templo nas montanhas, as visitas de Kashiwagi eram ainda mais frequentes. Enquanto auxiliava o príncipe em suas lições com o koto17, ele observou: — Há tantos gatos aqui! Pergunto-me qual deles seria aquele meu conhecido. E, ao dizer isso, encontrou o gatinho que procurava. Kashiwagi, achandoo o mais bonitinho de todos, encheu-o de carinhos. — Ele é realmente muito fofo, não é? — disse o príncipe. — Mas ainda não se acostumou comigo; imagino que seja um desses gatinhos que tem medo de estranhos. Ele é muito arisco; há outros melhores. — Os gatos não são dados a essas coisas de gostar ou odiar as pessoas. Contudo, são inteligentes, e acredito que tenham alma. — respondeu o intendente. — Há tantos gatos excelentes aqui, que gostaria de pedir para ficar com este por algum tempo. Ao fazer esse pedido, o intendente sentiu que agia de forma tola. Então, finalmente Kashiwagi pôde ter consigo o tão querido gatinho da Terceira Princesa, com quem podia até dormir. Pelo dia, podia acariciá-lo e passar o tempo ao seu lado. E assim, o gatinho que não se acostumava às pessoas logo se acostumou a Kashiwagi, vindo se enroscar nas barras do seu quimono e acomodando-se junto ao seu corpo para dormir. O intendente o amava cada vez mais. Enquanto Kashiwagi contemplava o nada, perdido nos seus próprios pensamentos, o gatinho veio a ele fazendo “Miau! Miau!”, ao que ele respondeu acariciando seu pequeno objeto de afeição e sorrindo. — É como se você fosse o meu trágico amor em outra forma. O que será que me diz Quando vem miando assim? Talvez as promessas De uma vida passada. 17 Espécie de cítara japonesa. (n.t.) O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 357 O gatinho miou de forma ainda mais adorável ao ver a expressão que Kashiwagi fazia, e ele o envolveu em um abraço, tornando a ficar pensativo. As damas de companhia comentavam: — Que estranho, não é mesmo? De repente, ele demonstra tanta afeição por um gato... Ele sempre pareceu tão indiferente a esses bichos. O Príncipe Herdeiro chegou a mandar alguém para buscar o animal, mas Kashiwagi nunca o devolveu — decidiu mantê-lo consigo para ter alguém com quem conversar.18 18 O romance entre os dois jovens tem um fim trágico. Eles se tornam amantes e a Terceira Princesa engravida de Kashiwagi. O sentimento de culpa por ter traído o Genji devora o rapaz de tal maneira que ele acaba morrendo. Kaoru, o filho desse amor, será criado como se fosse do Genji. (n.t.) O Romance do Genji|Clicie Araujo, Lídia Ivasa e Maria Luísa Vanik (trads.) 358 INDEX CAPA: Detalhe de Quipu inca – Cusco, Peru ARQUIVO (n.t.) INTERNAS: Aline Daka (p. 3) Dos extremos da noite, 2012 Nanquim sobre papel ARQUIVO (n.t.) VINHETAS: Fotos de: Roger Sulis (pp. 8 e 378) Gleiton Lentz (pp. 120, 162, 191 e 218) ARQUIVO (n.t.) ENTRADAS: Shahram Karimi (p. 9) Forugh, 2011 Colagem sobre tecido LTMH GALLERY, NOVA YORK Ahmad Moualla (p. 27) Sem título, 2008 Colagem sobre tela WWW.AHMADMOUALLA.COM Hiroshi Oshima (p. 40) Detalhe de Kenji - Fazenda Koiwai no inverno, [s.d.] Fotografia WWW.KENJI-WORLD.NET Bernardino de Sahagún (p. 53) Detalhe de Oferenda de milho, 1575-77 Ilustração do Códice Florentino LIBRARY MEDICEA LAURENTIANA, FLORENÇA Index 375 Georges Barbier (p. 121) Detalhe de Bilitis, 1922 Ilustração para o livro Les Chansons de Bilitis ED. PIERRE CORRARD, PARIS Saul Steinberg (p. 146) Vinho e guarda-chuva, c. 1954 Ilustração para o livro The Passport THE SAUL STEINBERG FOUNDATION, NOVA YORK Joshua Reynolds (p. 163) Sra. Richard Bennett Lloyd, 1775-76 Óleo sobre tela COLEÇÃO PARTICULAR Gustave Boulanger (p. 180) Hércules aos pés de Ônfale, 1861 Óleo sobre tela COLEÇÃO PARTICULAR Benito Quinquela Martin (p. 192) Detalhe de Cemitério de barcos, 1953 Óleo sobre tela FUNDACIÓN PROA, BUENOS AIRES Sigrid Hjertén (p. 219) Vista da Slussen, 1919 Óleo sobre tela MODERNA MUSEET, ESTOCOLMO Edward Hopper (p. 238) Quarto em Nova York, 1932 Óleo sobre tela SHELDON MEMORIAL ART GALLERY, LINCOLN Edward Gorey (p. 270) A Casa do Juiz, [s.d.] Ilustração para o livro The Haunted Looking Glass NEW YORK REVIEW BOOKS Solano López (p. 304) El eternauta (Homenaje a H. G. Oesterheld), 2004 Ilustração com dedicatória MUSEO DE ARTE Y MEMORIA, BUENOS AIRES Mino Maccari (p. 325) Se for dar xeque-mate, faça-o, 1931 Linoleografia COLEÇÃO PARTICULAR Suzuki Harunobu (p. 336) A Terceira Princesa e seu Gato, 1767-68 Impressão em madeira, tinta sobre papel MUSEUM OF FINE ARTS, BOSTON Index 376 O Romance do Genji (pp. 337 e 338) 651 Ilustrações para O Romance do Genji, edição de 1651 Impressão em madeira NATIONAL DIET LIBRARY, TÓQUIO Pompeia (pp. 360 e 361) Detalhe de Retrato de Paquius Proculus e sua mulher her, c. 30 d.C. Afresco romano Apenas “Safo”, c. 50 d.C. Afresco romano (medalhão) MUSEO ARCHEOLOGICO NAZIONALE, NÁPOLES ILUSTRAÇÃO: Aline Daka (pp. 372-374) Grito Noturno, 2012 Sobre poema homônimo de Severino Di Giovanni Quadrinhos, nanquim sobre papel ARQUIVO (n.t.) CONTRACAPA: Gleiton Lentz Istambul (Tercüme: escritório de tradução), 2011 Fotografia ARQUIVO (n.t.) * [a (n.t.) | 5º acabou-se de editar em 01 de novembro de 2012] Fontes ocidentais: Book Antiqua, Palatino Linotype,, Baramond Farsi: Farsi Simple Bold Árabe: Lateef Japonês: MingLiU Index 377 (n.t.)| (n.t.)|Istambul/Turquia (n.t.) COSMOPOLIZE IZE-SE Index 378