Academia.eduAcademia.edu

Heidegger (Benedito Nunes)

2020, Philósophos - Revista de Filosofia

Resenha da obra "Heidegger" de autoria de Benedito Nunes.

RESENHA DOI:http://dx.doi.org/10.5216/phi.v25i1.51869 HEIDEGGER1 Luís Gabriel Provinciatto (UFJF)2 [email protected] Obra resenhada: NUNES, Benedito. Organização e apresentação: Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Loyola, 2016. 164pp. A presente obra é uma coletânea de textos de Benedito Nunes (1929-2011), organizados por Victor Sales Pinheiro, e pode ser caracterizada como uma introdução ao pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), de cuja obra Nunes foi um dos pioneiros estudiosos no Brasil. Benedito Nunes possui uma extensa produção, destacando-se tanto pela sua escrita crítica quanto pela capacidade interpretativa, ou seja, o autor não se mostra somente como um recebedor da filosofia de Heidegger no Brasil, ocupando-se como um comentador, mas estabelece com as obras do filósofo alemão um diálogo crítico, propondo-se a compreendê-las em seu cerne. A caracterização da presente obra enquanto uma intro1 2 Recebido: 06-03-2018/ Aceito: 14-03-2019/ Publicado on-line: 05-10-2020. É professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brasil. PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. 279 2 Luís Gabriel Provinciatto dução ao pensamento de Heidegger cumpre um duplo objetivo: 1) ser uma introdução em sentido horizontal, isto é, apresentando os principais textos e problemáticas do filósofo alemão ao leitor ainda não familiarizado com a mesma; 2) ser uma introdução em sentido vertical, de modo a conduzir o leitor ao interior do próprio pensamento heideggeriano, problematizando-o e extraindo dele alguns pontos fundamentais para compreender a questão central da filosofia desenvolvida por Heidegger, a questão do ser. Percebe-se esse duplo movimento introdutório na disposição da obra: a primeira parte – Caminhos e palavras – se configura pelo caráter ensaístico dos textos. Os quatro textos aí compreendidos são curtos, típicos de ensaios, e utilizam uma linguagem clara e objetiva, sem recorrer ao uso excessivo de referências e citações. Essa primeira parte, de fato, dá a primeira panorâmica do pensamento de Heidegger e coloca o leitor a par da questão do ser, central ao pensamento de Heidegger, e entorno da qual giram algumas outras questões, tais como a da história, da técnica, da linguagem e da arte. A segunda parte da obra – Metafísica do Dasein – está composta por três capítulos de livros e uma conferência: são textos mais longos que os ensaios da primeira parte e, ao contrário daqueles, fazem maior uso de referências e citações diretas. Essa parte se mostra como fundamental para compreender o termo central ao redor do qual gira a primeira fase do pensamento de Heidegger: Dasein, que, diga-se de passagem, Benedito Nunes prefere não traduzir, conforme exposto no texto A tradução de Dasein presente na primeira parte da obra. A terceira parte do livro – História do Ser – reúne três artigos científicos e um 280 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. RESENHA HEIDEGGER texto opúsculo – O Nietzsche de Heidegger (São Paulo: Pazulin, 2000) – e se caracteriza pelas referências a outros autores, destacando Nietzsche como uma referência fundamental para Heidegger e Merleau-Ponty como um desdobramento da filosofia heideggeriana. Além disso, essa parte trabalha com o encontro de Heidegger com a poesia e o problema suscitado pelofilósofo sobre a essência da técnica. Justamente por serem resultado de artigos científicos, os textos desta parte se apresentam como mais complexos e fazem uso de comentadores, o que pouco se vê na segunda parte e o que não aparece na primeira parte. Há ainda um Apêndice que reúne dois outros textos – Heidegger e a política e O misticismo de Heidegger –, ensaios publicados, respectivamente, em 1969 e 1971, nos quais Benedito Nunes apresenta dois temas marginais à questão central da obra filosófica de Heidegger. Iniciando com ensaios e terminando com artigos científicos, a obra aqui apresentada, quando acompanhada em sua integralidade, exerce no leitor aquele duplo movimento introdutório acima mencionado. Essa é uma das qualidades dessa coletânea: dispor os textos de modo sensato para que haja uma introdução ao e no pensamento de Heidegger. Além de contribuir para os estudos sobre Heidegger em língua portuguesa, Benedito Nunes também auxilia no modo de escrita filosófica, mostrando ser possível falar e fazer filosofia de diferentes formas: ensaios, capítulos de livro e artigos científicos. E mais: o autor, após apresentar a centralidade do pensamento de Heidegger, ocupa-se com tal questão, não se perdendo na argumentação e, com isso, perfazendo um caminho sensato. Essa é outra qualida- PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. 281 Luís Gabriel Provinciatto de dessa coletânea: identificar um fio condutor nos textos de Nunes e manter-se atento a ele. Segue-se, então, os principais desdobramentos das três partes que compõem essa obra, bem como dos textos presentes no apêndice. A obra se inicia com o texto. A vereda heideggeriana de Benedito Nunes, assinado por Victor Sales Pinheiro, no qual se encontram alguns dados biográficos a respeito de Benedito Nunes, menções às suas principais obras filosóficas e de crítica literária, bem como se deu a proximidade entre ele e a filosofia heideggeriana, de modo que “a afinidade aqui não significa uma simples predileção do estudiosos, mas uma sintonia no modo de compreensão filosófica do mundo” (PINHEIRO apud NUNES, 2016, p. 13). Além disso, o autor da apresentação faz questão de frisar que Nunes se ocupou na maioria das vezes com a relação entre a questão do ser e a questão da linguagem, entendendo-as como inseparáveis: atente-se a essa característica porque ela permeia toda a seletiva de textos porvindoura. Os quatro textos que compõem a primeira parte da obra podem ser subdivididos e lidos sob a seguinte perspectiva: os dois primeiros – Introdução à leitura de Heideggere A sinfonia inacabada de Heidegger– dão um panorama do pensamento de Heidegger e de sua recepção no ambiente acadêmico. Esses primeiros textos trabalham para mostrar as principais características daquilo que costumeiramente se denominou de Heidegger I e Heidegger II. Benedito Nunes, porém, pretende mostrar que para além da divisão está a eminente relação entre essas duas fases, conforme se pode notar a partir da publicação das Obras completas (Gesamtaus- 282 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. RESENHA HEIDEGGER gabe) de Heidegger. Com isso, tem-se o posicionamento de Nunes frente ao pensamento de Heidegger: longe de cindilo em fases distintas, o autor o trata como um pensamento em construção. Dessa maneira, é possível chegar ao pensamento de Heidegger por diferentes vias. Os outros dois textos que compõem essa primeira parte – O esquecimento da fala e A tradução de Dasein – já trazem aquela perspectiva de relação entre a questão do ser e a da linguagem. O ponto comum entre os textos: a indicação do termo Dasein como central para o pensamento de Heidegger, bem como a dificuldade de sua tradução. Por isso, tecendo alguns comentários à tradução do Dicionário Heidegger, de Michael Inwood (Rio de Janeiro: Zahar, 2002), Nunes já deixa clara a dificuldade da tradução e opta, conforme mostra o texto que encerra essa primeira parte, pelo uso do termo tal qual o original. Além disso, o último texto faz alguns apontamentos a respeito do problema de se traduzir Dasein por presença, termo que, de acordo com Nunes, eliminaria o caráter relacional implicado em Dasein. O autor indica que traduzir Dasein por ser-aí garante a ênfase ao aí, mas mesmo assim mantém sempre o termo em alemão. A segunda parte da presente obra se ocupa com aquilo que Benedito Nunes chama de primeira fase do pensamento de Heidegger: a analítica existencial, que tem seu ápice em Ser e tempo (1927), no qual a filosofia se identifica com a fenomenologia ontológico-hermenêutica. Nesse sentido, essa parte da obra traz algumas características da analítica existencial, logo, aqui se encontram textos centrais para compreender o termo chave dessa primeira fase: Dasein. No entanto, Benedito Nunes não se ocupa, a princípio, com a PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. 283 Luís Gabriel Provinciatto simples apresentação dos aspectos ontológicos do Dasein, mas com a sua constituição no pensamento heideggeriano. Nesse sentido, os textos que compõem essa segunda parte flutuam entre algumas obras de Heidegger: justamente por não se deter em somente uma delas, o autor mostra que Heidegger está em confronto com a tradição metafísica e, por isso, encontra-se e se desencontra com ela em seus textos. Além disso, cabe perceber que Benedito Nunes deixa nas entrelinhas dos textos um apontamento sutil e fundamental: há uma continuidade, às vezes imperceptível, nos textos de Heidegger. Justifica-se essa continuidade através de um ponto que aparece em todos os textos dessa segunda parte: a questão do tempo. Na verdade, o tempo é a peça fundamental para a colocação e compreensão da questão do ser. Nesse sentido, o texto Experiências do tempo, o segundo dessa parte, deve ser lido com especial atenção, pois ele se mostra como o texto chave dessa segunda parte da obra. Há uma continuidade em relação ao texto Heidegger e Aristóteles que o antecede: Heidegger está num movimento de rupturacontinuidade em relação à noção de tempo apresentada por Aristóteles, pois se, por um lado, Heidegger aponta que a noção trazida pelo filósofo grego é a base da compreensão vulgar de tempo, com a qual se deve romper para então se apropriar do tempo de maneira autêntica, por outro, há uma continuidade porque não se pode pensar a noção de inautenticidade sem a autenticidade; justamente porque elas estão num jogo é possível o encontro-desencontro com Aristóteles, logo, com a tradição metafísica. À continuidade, os textos Heidegger e Sartre e A ques- 284 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. RESENHA HEIDEGGER tão do outro em Heidegger ainda tangenciam a questão do tempo, embora se ocupem com outros pontos: o primeiro apresenta as divergências ontológicas entre Heidegger e Sartre, mas destaca que há um ponto de convergência entre ambos, a compreensão de História, que, por sua vez, fundamenta-se numa compreensão do tempo. No outro texto Nunes se ocupa em mostrar, brevemente, como a “questão do outro” é elaborada em Hegel, Husserl e Scheler, conduzindo-a até Heidegger, que a faz girar entorno do núcleo do Dasein. A proposta de Benedito Nunes é clara: circunscrever a principal diferença no modo como essa questão é tratada entre os autores. Sem abandonar a intencionalidade e a intuição, Heidegger não entende tal questão como um problema epistemológico da consciência, isto é, como se o outro fosse abordado na condição de objeto do conhecimento; o outro recebe, pois, o tratamento ontológico, condizendo, então, com o método fenomenológico-hermenêutico. A diferença, então, está na posição que o outro ocupa: antes entendido como uma questão epistemológica, agora como um problema ontológico. O outro, por isso, ocupa lugar na analítica existencial: “quem diz Dasein também diz ser-nomundo, e quem diz ser-no-mundo também diz ser-com-ooutro” (NUNES, 2016, p. 77). A terceira parte da obra possui dois fios condutores que interligam os textos entre si da seguinte maneira: o primeiro fio liga o texto O Nietzsche de Heidegger ao texto Physis, Natura – Heidegger e Merleau-Ponty; o segundo liga História e ontologia (da essência da técnica) a Heidegger e a poesia. A característica do primeiro fio: a relação de Heidegger com outros pensadores. Benedito Nunes, em O Nietzsche de PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. 285 Luís Gabriel Provinciatto Heidegger, mostra Heidegger na condição de leitor e intérprete e em Physis, Natura – Heidegger e Merleau-Ponty o coloca na condição de principal referência, sendo lido e interpretado pelo filósofo francês. O segundo fio tem como principal característica a importância dada por Heidegger a diferentes temas – a técnica e a poesia – e como eles estão interligados à questão do ser. Diante disso, a terceira parte da obra apresenta a segunda fase do pensamento de Heidegger, caracterizando-a como um amálgama de questões que convergem na História do Ser e, por isso, perfazem a história do pensamento metafísico ocidental. A seleta de textos apresentada nesta parteevidencia que a segunda fase do pensamento de Heidegger gira entorno às Contribuições à filosofia (do acontecimento-apropriador) (1936-1938), desdobrando-se também em seminários e conferências. Nesse sentido, autores e temas não complementam o pensamento de Heidegger, mas o integram. Em História e ontologia (da essência da técnica) dois pontos se evidenciam: 1) há um fio que liga a fenomenologia ontológico-hermenêutica com o período da História do Ser, de modo que há uma continuidade no pensamento de Heidegger e 2) a virada (Kehre) não significa um abandono, mas uma torção no próprio caminho, ao qual se somam novas perspectivas, temáticas e autores; a virada, inclusive, implica em um reassumir alguns temas sob nova perspectiva, o que não significa abandonar a perspectiva antiga, mas permitir que se chegue à questão do ser por diferentes vias. A discussão a respeito da virada se estende até o principal texto dessa parte, Heidegger e a poesia, no qual se percebe a qualidade de escrita de Benedito Nunes seja pela sua ca- 286 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. RESENHA HEIDEGGER pacidade de discutir o tema aí proposto, seja pela sua capacidade de adentrar profundamente no pensamento de Heidegger, mostrando a fina sintonia que há entre a primeira e a segunda fase de seu pensamento. Desse modo, a questão da linguagem e da poesia não podem ser pensadas somente como desdobramento do período da História do Ser. Essa problemática já se encontra no período da ontologia fundamental, mesmo que o encontro efetivo de Heidegger com a poesia e com a linguagem poética tenha sido seu último grande entrave filosófico. Em outras palavras: mesmo se iniciando em meados dos anos 1930 com preleções sobre Hölderlin, a relação entre pensamento e poesia – logo, entre pensador e poeta – acompanham Heidegger até seus últimos cursos e conferências, influenciando, inclusive, a leitura que o filósofo alemão tem dos primeiros pensadores gregos. Há ainda um Apêndice, a respeito do qual se faz a seguinte nota: não parece ser ocasional a colocação de tais textos como um adendo à obra. Justifica-se: tendo em vista o desdobramento dos textos de Benedito Nunes, tanto a noção de uma ideologia política no pensamento de Heidegger – vide Heidegger e a política – quanto a ideia de um misticismo presente em sua filosofia – O misticismo de Heidegger – são algo à margem da filosofia desenvolvida pelo filósofo alemão. Isso são significa que tais temas não mereçam discussões; ao contrário: precisam ser melhor compreendidos para que não haja afirmações descabidas e que, por certo, prejudicariam a compreensão do projeto filosófico de Heidegger. No entanto, o que não pode ocorrer, enfatiza Benedito Nunes, é a equiparação de tais aspectos à questão do PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020. 287 Luís Gabriel Provinciatto ser, central à filosofia heideggeriana. Nesse sentido, quando comenta a respeito da adesão política de Heidegger, Nunes não salva o filósofo, mas salva sua filosofia. O projeto filosófico de Heidegger,conclui o autor, não se justifica mediante os escritos políticos. De igual maneira, Nunes não nega a possibilidade de ligar o pensamento de Heidegger com a própria mística humana, embora o próprio autor não apresente nenhuma definição de mística, atendo-se à sua função: “em vez de categoria negativa, como limite último do pensar, o misticismo, desempenhando o papel de eros filosófico, será o impulso originário da filosofia empenhada em registrar o olvido do Ser” (NUNES, 2016, p. 160). Por fim, os textos de Benedito Nunes aqui reunidos conduzem para além deles mesmos, fazendo com que o leitor se depare com a obra do próprio Heidegger. À tarefa de comentador, então, soma-se a de condutor, daí a ideia de uma introdução em dupla perspectiva: a princípio, Nunes conduz uma apresentação da obra de Heidegger – introdução no sentido horizontal – e, com o passar dos próprios textos, conduz o leitor ao cerne dos mesmos e, com isso, do próprio pensamento de Heidegger – introdução no sentido vertical. É fundamental que se siga o roteiro proposto por esta obra, à qual se recomenda a leitura, para que, de fato, o leitor se perceba introduzido ao e no pensamento de Heidegger. E mais: se perceba impelido para além dos sensatos comentários de Benedito Nunes, permitindo se encontrar com os textos do próprio filósofo alemão. 288 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 25, N. 1, P.279-288, JAN./JUN. 2020.