UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS
GERDNA VIEIRA MARTINS
ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS DE LEITURA NA INTERAÇÃO COM CONTOS – A PERCEPÇÃO DO DISCURSO UNIVERSAL NO TEXTO LITERÁRIO
Recife - PE
2017
GERDNA VIEIRA MARTINS
ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS DE LEITURA NA INTERAÇÃO COM CONTOS – A PERCEPÇÃO DO DISCURSO UNIVERSAL NO TEXTO LITERÁRIO
Dissertação apresentada à Coordenação do Programa de Pós-graduação em Letras (Profletras) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para a obtenção do grau de Mestre em Letras.
Área de concentração: Linguagens e Letramentos
Orientador: Professor Dr. Eduardo Melo França
Coorientadora: Professora Dra. Gláucia Renata Pereira do Nascimento.
Recife-PE
2017
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204
M386e Martins, Gerdna Vieira
Estratégias metacognitivas de leitura na interação com contos: a percepção do discurso universal no texto literário / Gerdna Vieira Martins. – Recife, 2016.
172 f.: il., fig.
Orientador: Eduardo Melo França.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Artes e Comunicação. Letras, 2017.
Inclui referências, apêndice e anexos.
1. Estratégias metacognitivas. 2. Discurso universal. 3. Contos. 4. Leitor literário. I. França, Eduardo Melo (Orientador). II. Título.
410 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2017-14)
GERDNA VIEIRA MARTINS
ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS DE LEITURA NA INTERAÇÃO COM CONTOS – A PERCEPÇÃO DO DISCURSO UNIVERSAL NO TEXTO LITERÁRIO
Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para obtenção do grau de Mestre.
APROVADA EM: 15/12/2016
BANCA EXAMINADORA
Professor Dr. EDUARDO MELO FRANÇA (Orientador)
Professora Dra. SIANE GOIS CAVALCANTI RODRIGUES (Examinador interno)
Professor Dr. EDUARDO CESAR MAIA FERREIRA FILHO (Examinador externo)
Universidade Federal de Pernambuco
Às pessoas que estiveram presentes na minha trajetória acadêmica.
Dedico
AGRADECIMENTO
Aos meus familiares e amigos que incentivaram e apoiaram minha escolha profissional.
Aos estudantes e professores que tive ao longo da minha trajetória, por terem contribuído para que eu me tornasse uma professora capaz de desenvolver este trabalho.
Aos colegas de estudo e de trabalho, pelas trocas de experiências vividas no ambiente escolar.
Ao professor Dr. Eduardo Melo França, por ter me orientado.
À professora Dra. Gláucia Renata Pereira do Nascimento, pela coorientação.
Aos meus outros professores do programa Profletras, por todas as experiências e conhecimentos trocados durante as aulas.
Ao professor Dr. Lourival Holanda, por, desde a graduação, ter me proporcionado leituras inspiradoras, as quais motivaram reflexões com relação à abordagem do texto literário e por ter me ensinado como a literatura transforma nossa forma de olhar o mundo e, consequentemente, nossa forma de viver, ao propor animadas discussões a partir de textos literários, abordando os seguintes valores: esperança, utopia, razão, universalidade, igualdade e autonomia.
Aos professores que avaliaram este trabalho em diferentes momentos de construção e contribuíram com excelentes críticas, além de importantes sugestões de leitura: Dr. Frederico J. Machado Silva, Dra. Lívia Suassuna e Dr. Eduardo Cesar Maia.
“A literatura é a busca do sentido inalienável das coisas.”
“A metáfora cria um outro espaço onde o olho vê, pelo viés analógico, a realidade. Uma realidade que é, simultaneamente, a mesma e já outra.”
“A complexidade das operações da linguagem literária suporta superpor significações, dirigir a atenção do leitor através de um uso singular da sintaxe, da gramática, da organização temática e da interação das figuras.”
“Recalcar a linguagem é recalcar um modo de sentir o mundo.”
(Lourival Holanda, 2019, p.144, 157, 266, 267)
RESUMO
Esta pesquisa busca aplicar uma abordagem do ensino de leitura no intuito de contribuir na formação do leitor literário, através de estratégias metacognitivas de leitura que auxiliem os alunos a se tornarem leitores ativos e reconhecerem no conto o discurso universal inerente ao texto literário. Nosso embasamento teórico associa Estética da Recepção com Jauss (1979), Teoria do Efeito Estético, representada por Iser (1979), ensino de Literatura com Bordini &Aguiar (1993), Zilberman (2014) e Cosson (2014) à interação com o uso das estratégias de leitura, respaldado em Flavell (1976), Baker & Brown (1980), Solé (1998), Duke & Pearson (2002) e Kleiman (2007). Sendo assim, os teóricos da teoria da literatura e da psicolinguística dialogam para justificar a nossa proposta de entrelaçamento dessas áreas, visando um ensino de Literatura que respeite os aspectos literários e utilize os conhecimentos linguísticos para construção de significados do texto. A metodologia utilizada é qualitativa. Participaram da pesquisa 30 voluntários, estudantes do 9º ano de uma escola pública. As fases de aplicação das atividades para a coleta de dados foram divididas em diagnóstica, ensino de leitura e teste/avaliação. As atividades foram produzidas com base nos contos (O Crime do Professor da Matemática, de Clarice Lispector; O Conto se Apresenta, de Moacyr Scliar; O Gato Preto, de Edgar Allan Poe) lidos em cada fase, sendo elas o Questionário Avaliativo de uso de Estratégias Metacognitivas de Leitura e o Questionário de Compreensão do Conto, em todas as fases e o Guia de Leitura, nas duas últimas fases. O corpus foi constituído por 234 fichas de atividades (questionários e guias de leitura). Os resultados indicam que é possível a percepção do discurso universal, quando o estudante é capaz de transubstanciar a ficção inerente ao texto literário.
Palavras-chave: Estratégias metacognitivas. Discurso universal. Conto. Leitor literário.
ABSTRACT
The present study aims to apply a teaching Reading approach in order to contribute to the literary reader formation through metacognitive reading strategies that help students become active readers and recognize in the short story the universal discourse inherent in the literary text. Our theoretical basis associated Aesthetics of Reception with Jauss (1979), Theory of Aesthetic Response, represented by Iser (1979), literature teaching with Bordini & Aguiar (1993), Zilberman (2014) and Cosson (2014) to the interaction with the use of reading strategies, represented by Flavell (1976), Baker and Brown (1980), Solé (1998), Duke and Pearson (2002) and Kleiman (2007). Thus, literary theory and psycholinguistics dialogue to justify our proposal of interweaving these areas, seeking a literature teaching that respects the literary aspects and use the language skills to build text meanings. The methodology is qualitative. The participants were 30 volunteers, students from 9th grade in a State School. The implementation stages for the data collection were divided into diagnostic, teaching of reading and test/evaluation. The activities were produced based on the short stories (O crime do Professor de Matemática by Clarice Lispector; O Conto se Apresenta by Moacyr Scliar; O Gato Preto by Edgar Allan Poe) read at each stage, they were the Assessment Questionnaire on the use of Metacognitive Reading Strategies, Short Story Comprehension Questionnaire, at all stages and the Reading Guide in the last two stages. The corpus consisted of 234 activities sheets (questionnaires and reading guides). The results indicate that the universal discourse perception is possible, when the student is able to transubstantiate fiction inherent in the literary text.
Keywords: Metacognitive strategies. Universal discourse. Short story. Literary reader.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Resultado quantitativo das respostas dadas ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase I (diagnóstica) .................................................082
Tabela 2 – Resultado quantitativo das respostas dadas ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase II (ensino de leitura) ........................................097
Tabela 3 – Resultado quantitativo das respostas dadas ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase III (teste/avaliação da metodologia) ...............109
LISTA DE SIGLAS
QC1 Questionário de Compreensão do Conto
“O Crime do Professor de Matemática”, de Clarice Lispector. da fase I (diagnóstica)
QC2 Questionário de Compreensão do Conto
“O Conto se Apresenta”, de Moacyr Scliar. da fase II (ensino de leitura)
QC3 Questionário de Compreensão do Conto
“O Gato Preto”, de Edgar Allan Poe. da fase III (teste/avaliação da metodologia)
QA1 Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase I
QA2 Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase II
QA3 Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase III
SAEB Sistema de Avaliação Educacional da Educação Básica
SAEPE Sistema de Avaliação Educacional de Pernambuco
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 12
2 REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO ENSINO DO TEXTO LITERÁRIO NA ESCOLA ................................................................................................................................ 18
2.1 ESTADO DA ARTE ................................................................................................... 30
2.2 IMPLICAÇÕES DOS SISTEMAS DE AVALIAÇÃO EXTERNA NO ENSINO DE LITERATURA NO 9º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL ............................................. 35
2.3 O GÊNERO CONTO COMO RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO DE LITERATURA NO 9º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL ............................................. 37
2.4 A ESCOLHA DOS CONTOS: QUAIS AS VARIÁVEIS QUE ENVOLVEM A ESCOLHA DOS TEXTOS? ................................................................................................... 43
3 A IMPORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO DISCURSO UNIVERSAL NO TRABALHO COM O TEXTO LITERÁRIO NA SALA DE AULA ............................... 51
4 A ABORDAGEM DA TEORIA DA RECEPÇÃO E DO EFEITO ESTÉTICO NO ENSINO DE LITERATURA ........................................................................................ 57
5 O USO DE ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS DE LEITURA NO ENSINO DE LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO .......................................................................... 64
5.1 ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS DE LEITURA COMO AUXÍLIO PARA INTERAÇÃO ANTES, DURANTE E APÓS A LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO........ 67
6 MATERIAL E MÉTODOS ..................................................................................... 75
7 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ...............................................................80
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 128
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 132
APÊNDICE – Roteiro de atividades e materiais produzidos ...............................................136
ANEXOS ............................................................................................................................. 147
1 INTRODUÇÃO
O trabalho com o texto literário em sala de aula, nas muitas escolas da rede estadual, em grande parte, é direcionado pelo livro didático e a forma como os textos são utilizados para fazer exercícios de interpretação acabam limitando muito a reflexão literária, por apresentar questionamentos que induzem a uma resposta ideal. Devido a isso, geralmente, os estudantes ficam inseguros no momento de dar respostas objetivas, não só em exercícios no livro didático, como em avaliações externas, nas quais predominam questões de múltipla escolha que, muitas vezes, não refletem a primeira impressão que o estudante tem ao ler o texto.
Em outras situações, nas interações em sala de aula, o professor, buscando facilitar a relação do aluno com o texto literário, acaba direcionando uma interpretação temática que dificulta acionamento do horizonte de expectativa
Regina Zilberman explica que Hans Robert Jauss (1921-1997) encontrou um parâmetro para medir as possibilidades de recepção de uma obra literária, recorrendo a noção de horizonte formulada pelo seu professor Hans George Gadamer (1900-2002), que, por sua vez, se inspirou nas leituras da fenomenologia de E. Husserl (1859-1938). Para Jauss “cada leitor pode reagir individualmente a um texto, mas a recepção é um fato social – uma medida comum localizada entre essas reações particulares; este é o horizonte que marca os limites dentro dos quais uma obra é compreendida em seu tempo e que, sendo “trans-subjetivo”, “condiciona a ação do texto” (ZILBERMAN, 1989, p.39, grifos da autora). No entanto, Martin Heidegger (1889-1976) que foi discípulo de Husserl, ampliou a discussão e propôs um modelo filosófico baseado na fenomenologia hermenêutica, com uma perspectiva mais ampla do conceito, antes da formulação de Jauss. (JAUSS, 1979) pelo estudante e isso pode resultar em uma antecipação da interpretação que deveria ser feita a partir do contato do aluno com o texto. Dessa forma, a leitura mal direcionada pode limitar a reflexão sobre as impressões que os estudantes têm durante o primeiro contato com o texto e essa ação repercutirá na forma de interpretação.
É importante refletirmos sobre como direcionar as atividades de leitura do texto literário de forma cautelosa para não tirar do estudante o momento de reflexão e de construção da significação, impedindo-o de interagir ativamente com o texto. Portanto, a mediação do professor deve favorecer o momento de interação do estudante com o texto, fornecendo recursos para o leitor perceber as lacunas existentes no texto literário que permitem a ele participar da construção de sentido.
A escolha deste trabalho com leitura do texto literário partiu da análise dos resultados apresentados pela escola estadual Santa Apolônia
Escola regular, de pequeno porte (481 alunos e 19 turmas), da rede estadual de ensino, vinculada a Gerência Regional Metro-sul, funciona em uma instalação anexa à Faculdade de Odontologia de PE (FOP-UPE) situada no município de Camaragibe, atende a uma comunidade de baixo poder aquisitivo, muitos estudantes moram em galpões (salas do prédio da FOP que foram ocupadas há muitos anos) em cima da escola. nas avaliações externas com relação ao nível de proficiência em leitura dos estudantes. Essa escola é de ensino regular e de pequeno porte. As turmas são formadas, em média, por 30 alunos em cada sala. Tanto a coleta de dados, como a aplicação das atividades foram feitas em uma turma de 9° ano dessa unidade.
Os dados referentes ao resultado das avaliações externas dessa escola forneceram indícios de que um dos aspectos que precisava ser investigado era por que algumas habilidades referentes à leitura dos gêneros da ordem do narrar não foram desenvolvidas. Conquanto haja vários gêneros narrativos ficcionais que poderiam ser utilizados para a abordagem proposta, decidimos utilizar o conto, não só por ser um dos gêneros mais presentes na abordagem do texto literário no 9º ano do ensino fundamental, mas por ser um gênero relativamente curto (o fato de ser um texto breve facilita o trabalho, sem quebras de leitura durante as aulas), não possuir uma estrutura fixa e por funcionar como uma porta que dá acesso a vários mundos de forma breve, assim, fazendo o leitor encontrar significados diversos para refletir sobre questões humanas universais.
Partindo desse contexto, acreditamos que a consciência acerca das estratégias metacognitivas, por parte dos estudantes do 9° ano, direcionadas à leitura dos contos poderia promover a descoberta do discurso universal inerente ao texto literário e questionamos se a ação mediadora do professor ao criar e aplicar atividades com estratégias metacognitivas de leitura contribui para o desenvolvimento do processo criativo e reflexivo na interação do estudante com o texto literário.
Sendo assim, nossa proposta foi utilizar a Teoria da Recepção e do Efeito Estético, considerando os fundadores de tais vertentes Hans Robert Jauss (1921-1997) e Wolfgang Iser (1926-2007) para, a partir dela, buscarmos estratégias que fornecessem ao professor recursos para mediar a interação do estudante com a leitura de contos. Com isso, ele poderia associar o prazer que o texto literário provoca à percepção da universalidade (com base no conceito aristotélico que será melhor desenvolvido na seção 3 desta dissertação, para tentar explicar o que entendemos por discurso universal) do texto ao desenvolver sua habilidade de leitura e capacidade de atribuição de significação ao interagir com o texto literário. O discurso universal, nesse contexto, deve ser entendido como as representações ficcionais que nos permitem dialogar com a humanidade de forma metafórica ao nos reconhecermos nelas por meio de ações miméticas.
No intuito de promover o desenvolvimento das habilidades de leitura dos estudantes, buscamos utilizar, de modo explícito, estratégias metacognitivas de leitura, aplicadas aos contos para que eles interagissem ativamente com o texto e pudessem experienciar, desde o primeiro contato com a leitura, a construção de sentidos, correlacionando de forma consciente, simultaneamente, seus conhecimentos prévios com o texto literário para apreensão do discurso universal inerente a ele. Como aporte teórico para o embasamento das estratégias metacognitivas, utilizamos a concepção de Isabel Solé:
Consideramos as estratégias de compreensão leitora como um tipo particular de procedimento de ordem elevada. Como poderão verificar, cumprem todos os requisitos: tendem à obtenção de uma meta, permitem avançar o custo da ação do leitor, embora não a preservem totalmente; caracterizam-se por não estarem sujeitas de forma exclusiva a um tipo de conteúdo ou a um tipo de texto. (1998, p. 72)
As estratégias metacognitivas são procedimentos de leitura que os estudantes podem fazer com o objetivo de refletir sobre o texto antes, durante e após a leitura. Elas são importantes para fazer com que as formulações de hipóteses sejam ativadas, monitoradas, avaliadas e reformuladas ao longo do processo de leitura, pois essas ações quando feitas de forma consciente, no momento de aprendizagem da leitura, ajudam o leitor a ler com maior autonomia e criticidade sobre aspectos não só estruturais e temáticos, mas desenvolvendo a percepção do discurso universal presente no texto literário. Dessa forma, essas ações conscientes passam a ser feitas naturalmente com a prática de leitura.
Apesar de serem vários os benefícios que o uso das estratégias metacognitivas de leitura podem proporcionar ao leitor, na abordagem proposta, vamos enfatizar dois aspectos: o primeiro é o papel fundamental do leitor diante do texto, como um sujeito ativo que preenche espaços vazios, participando assim, do processo de significação do texto. O segundo é o direcionamento da regulação da compreensão para a consciência do discurso universal do texto literário, que como já mencionamos, permite que o aluno possa mais facilmente se reconhecer como parte fundamental na construção de sentidos do texto.
Como consequência desse trabalho interativo, fizemos uma abordagem na qual, a partir dos sentidos construídos durante a interação com o texto, os estudantes pudessem refletir sobre o discurso universal do texto literário. Durante o processamento do texto literário, o estudante precisaria preencher as lacunas deixadas pelo autor para gerar sentido. Algumas das estratégias metacognitivas de leitura utilizadas para a interação ativa do leitor com o texto, segundo Solé (1998), são predições, regulação com automonitoramento e autoavaliação com o uso de inferências e levantamento de hipóteses durante a leitura detalhada, em busca de pistas dadas pelo autor. Assim, o leitor pode acionar seu conhecimento de mundo e estabelecer relação com o texto para refletir sobre o que o torna atemporal e o que pode ser reconhecido como discurso universal.
Buscamos propor direcionamentos de atividades a serem utilizadas como modelos de procedimentos que podem ser adaptados para trabalhar o gênero na sua totalidade. Dessa forma, as atividades podem ser usadas com vários textos do gênero conto dentro desta proposta, no intuito de contribuir para a formação de um leitor reflexivo no contato com textos desse gênero. Da mesma forma como uma piada só cumpre sua função se o leitor entender o humor presente no texto, através de processos inferenciais, o texto literário só cumpre sua função se o leitor, também, compreender as características que lhe são intrínsecas: o discurso universal presente nos aspectos ficcionais com as suas possíveis relações com o mundo. Ao perceber isso, o leitor vivencia de forma catártica o prazer da leitura de um texto literário. Defendemos a importância de estimular os estudantes a terem consciência das estratégias metacognitivas para a regulação da leitura como um meio valioso para o alcance de objetivos de compreensão dos textos em geral, os quais incluem a identificação, não só de determinadas características, mas, principalmente, das funções desses textos, como as citadas acima acerca do gênero piada e dos gêneros textuais do domínio literário em geral.
A intenção de associar a abordagem da Estética da Recepção e a Teoria do Efeito Estético com uso das estratégias metacognitivas de leitura se fundamenta na perspectiva do letramento para a formação do leitor literário. As estratégias são recursos para aprimorar a interação do estudante-leitor com o texto, haja vista muitos alunos no 9° ano do ensino fundamental da rede pública de ensino ainda não serem considerados leitores autônomos por estarem em processo de formação (os dados das provas externas evidenciam esse fato), devido às vicissitudes das condições de ensino e do próprio sistema de avaliação, os quais permitem uma flexibilidade para a progressão do estudante de uma série para outra, sem acompanhamento adequado que garanta o desenvolvimento de habilidades e competências básicas de leitura não desenvolvidas ao longo do processo.
Mesmo assim, entendemos que ao nos tornarmos leitores autônomos, ainda estaremos em processo de formação leitora, mas com habilidades básicas de leitura desenvolvidas, pois nesse sentido a formação se dará no aspecto mais abrangente referente
à capacidade de interagir com as ideias do texto em nível mais sofisticado, já que um leitor autônomo é capaz de dominar as estratégias básicas para interpretar um texto.
Outrossim, as estratégias metacognitivas podem servir para o desenvolvimento de uma análise mais profunda do texto, sem normatizar a interpretação, pois cada leitor poderá questionar e revelar os sentidos a partir do seu conhecimento de mundo ao preencher as lacunas do texto. Dessa forma, o estudante irá, não só, reconhecer no texto ideias condescendentes ao seu horizonte de expectativa, mas ampliar seus horizontes, por confrontar com ideias que possam quebrar sua expectativa. Portanto, o objetivo é a expansão do horizonte de expectativa, através da fusão de horizontes, assim revela-se o prazer causado pela descoberta do discurso universal inerente a obra literária. Para Jauss é fundamental essa vivência:
A atitude de prazer, que a arte provoca e possibilita, é a experiência estética primordial. Ela não pode ser suprimida; pelo contrário, deve voltar a ser objeto de reflexão teórica, quando se trata hoje de defender a função social da arte e da ciência que a serve contra os que – letrados ou não – suspeitam dela. (JAUSS apud ZILBERMAN, 1989, p. 49)
Partimos da hipótese de que é possível oferecer um ensino do texto literário no intuito de conceder ao estudante um momento de fruição da obra literária, propiciando a interação efetiva e mais íntima entre leitor e texto. Sendo assim, acreditamos que o estímulo para a conscientização acerca de estratégias metacognitivas de leitura, utilizando o conto como recurso para abordar os aspectos inerentes ao gênero literário, pode ser um dos meios de desenvolvimento para formação mais consciente do leitor literário.
Portanto, o objetivo geral foi constatar se a mediação do professor na interação do estudante com o texto literário pôde contribuir na sua formação como um leitor crítico, capaz de refletir sobre o texto, confrontando seu conhecimento de mundo com as novas visões de mundo oferecidas pelo reconhecimento do discurso universal no texto literário ao relacionar a ficção ao mundo em que ele vive.
De forma específica, procuramos desenvolver uma abordagem de ensino de leitura que contribuísse para a formação de leitores proficientes do texto literário a partir de atividades com estratégias metacognitivas de leitura. Verificamos se as estratégias metacognitivas de leitura puderam ajudar os alunos no reconhecimento do papel ativo do leitor para interação com o texto literário e assim chegar à percepção do discurso universal inerente a ele.
No intuito de encorajar o estudante a se colocar como parte fundamental do processo de significação e reconhecer o discurso universal inerente a ele, usamos o conto como recurso para fruição na descoberta do prazer causado pelo confronto de horizontes de expectativas.
De acordo com os objetivos expostos, este trabalho está embasado teoricamente em quatro eixos, sendo o primeiro referente às reflexões sobre a prática do ensino de Literatura no ensino fundamental. Analisamos como a literatura é apresentada no 9º ano e defendemos a importância da percepção do discurso universal presente no texto literário, utilizando como recurso o gênero conto. No segundo, tratamos sobre o processo de identificação do discurso universal no texto literário e sua importância na formação do leitor literariamente letrado. Apresentamos a abordagem da Teoria da Recepção e do Efeito Estético no ensino de literatura, no terceiro eixo. Buscamos estabelecer um vínculo das teorias literárias com as estratégias metacognitivas de leitura, apresentando-as como recursos para as ações de compreensão do texto literário. Por último, versamos sobre o uso de estratégias metacognitivas de leitura no ensino de leitura do texto literário, aliando a essa proposta, os conceitos da Teoria da Recepção e do Efeito Estético e apresentamos como as estratégias metacognitivas de leitura puderam auxiliar na interação para compreensão do texto não apenas nos seus aspectos estruturais, mas literários, antes, durante e após a leitura de contos.
Após as reflexões teóricas, apresentamos a metodologia da pesquisa-ação, seguida da análise e discussão dos dados.
Com base nos dados coletados, durante a pesquisa, foi possível identificarmos que as propostas de atividades foram positivas e contribuíram na formação leitora dos estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental com relação ao gênero textual proposto. Por conseguinte, os aspectos envolvidos no direcionamento das atividades e a utilização dos recursos para elas podem servir como mais uma proposta para a formação do leitor literário.
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO ENSINO DO TEXTO LITERÁRIO NA ESCOLA
O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.
(William Faulkner)
Vivemos em uma sociedade letrada, na qual ser um leitor autônomo é uma das competências que se faz necessária para construção do conhecimento e a capacidade de relacioná-lo com a sua percepção do mundo e, em consequência disso, desenvolvemos nosso senso crítico e expandimos nossos horizontes. Grande parte da formação desse tipo de leitor é desenvolvida na escola, visto que esse é o ambiente oficial no qual se aprende a ler. Nesse espaço, a aula de Português deveria ter como função primordial formar o leitor. Para isso, sabemos que é imprescindível que o aluno tenha acesso aos mais diversos gêneros textuais para desenvolver sua competência leitora em várias situações de uso da língua. Nesta pesquisa, destacaremos para reflexão a leitura do texto literário e para o desenvolvimento de nosso trabalho, selecionamos um gênero desse domínio. Acreditamos que estimular o ensino de leitura do texto literário é um dos caminhos para formação de leitores humanizados e críticos. Humanizados no sentido de compreensão da contingência do comportamento humano para tolerar as diferentes visões de mundo, assim, desenvolvendo a habilidade de conviver com as diferenças refletidas pelas diversas formas de cultura e seus padrões sociais. Críticos na acepção de tornar-se reflexivo, questionador, capaz de relativizar as ideias e temáticas presentes nos textos para ter uma visão multifacetada, transvalorizando conceitos diversos, valores morais e ideológicos, com o objetivo de ampliar o horizonte de expectativas.
O ensino de literatura na aula de Português é importante para incutir o gosto pela leitura, pois logo ao ingressar no ambiente escolar, a criança entra em contato com os textos literários que despertam sua imaginação e seus sentimentos, fazendo-a refletir sobre a realidade através da ficção. Segundo Rachel Caiano,
O mundo cresce para as crianças porque existem a curiosidade e a vontade de saber: o mundo cresce e não tem limite, cresce para cima e para baixo, para dentro e para fora. E a literatura é um meio para mostrar o tamanho do mundo: daquele que existe – corpo, objeto – e daquele que não existe – imaginação, pensamento. (2013, p.105)
Para a autora, a literatura é um meio de trazer discussões para dentro, despertar a dúvida. Assim, é possível desenvolver a capacidade dialética de refletir sobre o sim e o não que o mundo nos apresenta e questionarmos com o talvez, pois a literatura nos proporciona estabelecer um diálogo conosco (intrapessoal), com o(s) outro(s) (interpessoal) e relativizar valores convencionados como positivos e negativos.
Posto que o texto literário está inserido nas aulas de leitura no ensino fundamental, precisamos refletir como são utilizados esses textos, quais são os objetivos que regem a aula de português ao utilizar esses textos, pois segundo Compagnon “o espaço da literatura tornou-se mais escasso em nossa sociedade há uma geração: na escola, onde os textos didáticos a corroem, ou já a devoraram” (2009, p. 21).
Rildo Cosson trata sobre a literatura escolarizada, fazendo uma crítica à restrição da leitura do texto literário no ensino fundamental às atividades de leitura extraclasse ou atividades especiais de leitura, nas quais a escolha dos textos é feita com base na temática ou linguagem de acordo com os interesses da escola (em primeiro lugar), do professor (em segundo lugar) e do aluno (por último) (COSSON, 2014, p.19-23). Dessa forma, alguns textos literários, muitas vezes, perdem lugar para outros textos, que seriam mais adequados como material de leitura e modelo de escrita padrão.
Podemos discutir, a partir disso, dois fatores que orientam o ensino do texto literário na escola de forma inadequada: primeiro, quando, na primeira leitura, há um direcionamento dos textos literários, dando ênfase aos aspectos linguísticos em detrimento dos aspectos literários do texto e utiliza a leitura do texto literário, apenas, para estudos de aspectos estruturais do gênero. Nesse caso, a leitura do texto se limita ao estudo da forma como a linguagem é utilizada para exemplificar determinado gênero ou quando se trata de textos cuja linguagem foge à norma padrão, serve de exemplo para estudar variação linguística de forma descontextualizada. Destarte, concordamos com Tzvetan Todorov ao dizer que
pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim. (...) As inovações trazidas pela abordagem estrutural nas décadas precedentes são bem-vindas com a condição de manter sua função de instrumento, em lugar de se tornarem seu objetivo próprio. (...) podemos manter os belos exemplos do passado sem ter de vaiar tudo que encontra sua origem no mundo contemporâneo. Os ganhos da análise estrutural, ao lado de outros, podem ajudar a compreender melhor o sentido de uma obra (2012, p.31-32, grifos nossos).
Um segundo fator, também, muito comum, é quando a escola desenvolve um projeto social com um determinado tema e o professor de português é direcionado a trabalhar com suas turmas textos literários que tratem desse tema. No entanto, a reflexão do texto acaba sendo extrapolada para trazer, de forma centralizada, discussões temáticas que fogem ao trabalho de análise e interpretação do texto em seus aspectos prioritariamente literários. Nesse contexto, a aula de literatura se torna pretexto de uma sociologia questionável para discutir problemas do mundo atual. Não descartamos a importância de reconhecermos as temáticas sociais e as ideologias que um texto literário pode apresentar, pois reconhecer tais aspectos no texto contribui indubitavelmente para a construção de uma visão mais crítica do mundo. Acreditamos que cada um, ao ler uma determinada obra, vai encontrar nela seu sentido particular para ver o mundo de um jeito novo. Para Todorov, “o leitor não profissional”, ou seja, o leitor comum, não lê obras literárias com o objetivo de “dominar um método de ensino” ou para
retirar informações sobre as sociedades a partir das quais foram criadas, mas para nelas encontrar um sentido que lhe permita compreender melhor o homem e o mundo, para delas descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo. O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um. O caminho tomado atualmente pelo ensino literário, que dá as costas a esse horizonte (...), arrisca-se a nos conduzir a um impasse – sem falar que dificilmente poderá ter como consequência o amor pela literatura (TODOROV, 2012, p.32-33).
Assim, devemos respeitar a plurissignificação do texto literário, considerando que se colocarmos como ponto central uma determinada temática, estaremos apagando outras possíveis dentro do texto. Portanto, o professor de português pode e deve discutir as temáticas presentes no texto, mas sem a necessidade de usar o texto literário como pretexto para abordar apenas uma determinada temática. Além disso, seria mais apropriado discutir com aprofundamento as ideologias do texto literário em parceria com um professor de sociologia, como projeto interdisciplinar ou transdisciplinar, assim não correríamos o risco de descaracterizar o ensino de literatura para dar prioridade a uma determinada temática que embora tenha seu valor, pode ser desenvolvida de forma mais enriquecedora com o aprofundamento de um profissional da área.
Existe também, um terceiro fator, mas este está mais evidente no trabalho com literatura durante o ensino médio, quando os textos literários são apresentados dentro de uma linha histórica e os aspectos do contexto histórico são associados às características das escolas literárias apresentadas em cada época, como se fossem fixas, imutáveis e não estabelecessem relação com outras épocas e outros estilos anteriores ou posteriores. Nessa abordagem o foco do ensino recai sobre os aspectos históricos e estilísticos da obra e a plurissignificação do texto, assim como a descoberta do discurso universal da obra não ficam em evidência, pois as questões presentes nos livros didáticos e em exercícios abordados pelo professor em sala de aula, nesse caso, se baseiam em respostas de múltipla escolha sobre os aspectos puramente históricos e estilísticos, com o objetivo de treinamento para o vestibular. Quanto a esse estilo de ensino, podemos verificar que, mais uma vez, aspectos que deveriam contribuir para a construção de sentido do texto são colocados como preponderantes na análise. Todorov, também, critica esse estilo de ensino no qual “os alunos do ensino médio aprendem o dogma segundo o qual a literatura não tem relação com o restante do mundo, estudando apenas as relações dos elementos da obra entre si o que, não se duvida, contribui para o desinteresse crescente que esses alunos demonstram pela filière littéraire” (2012, p.39).
Para evitarmos tais práticas, precisamos, primordialmente, ponderar sobre duas questões: qual é o objetivo do ensino de literatura? Que tipo de estudantes ajudamos a formar ao ensinar literatura? Essas questões estão interligadas e direcionam o ensino para trilhar o caminho da prática pedagógica de forma concatenada com o embasamento teórico defendido pelo professor cuja preocupação está em contribuir para que o estudante se torne um leitor habitual de textos literários não só no ambiente da sala de aula, como fora dela.
O objetivo de ensinar literatura está relacionado à importância de ler literatura. Sendo assim, o núcleo da questão se torna: por que ler literatura? Pode parecer uma pergunta capciosa, mas como seres humanos, buscamos sentido em tudo, e não é estranha a nossa tentativa de encontrar uma função para a literatura na nossa vida. Para iniciarmos a justificativa, vamos tomar como base, quatro explicações do poder da literatura ao longo dos tempos apresentadas por Antoine Compagnon (2009).
No primeiro momento, com base na definição clássica, Compagnon apresenta os conceitos aristotélicos de mímesis e catharsis, afirmando que a literatura deleita e instrui. Nessa percepção, é através da mímesis (representação/ ficção/ imitação) que o homem se instrui e vivencia a catharsis (purificação ou apuração das paixões pela representação). Ele complementa com a afirmação de que o conto, a quimera, a ficção educam moralmente, de acordo com Manon Lescaut que diz “não ser possível refletir sobre os preceitos da moral sem admirar vê-los ao mesmo tempo amados e negligenciados” (COMPAGNON, 2009, p.31).
De fato, concordamos que o leitor, ao entrar em contato com o mundo de possibilidades do universo ficcional, pode experienciar condutas virtuosas e dissolutas. Essa ação provoca no leitor a sensação prazerosa de se reconhecer nas virtudes ou nas ações moralmente impróprias, de acordo com seus preceitos morais. De uma forma ou de outra, as vivências dessas representações estimulam, consciente ou inconscientemente, questionamentos acerca dessas atitudes dicotômicas, as quais contribuem para uma formação humanizadora. No entanto, afirmar que a literatura instrui pode ser perigoso, se pensarmos nessa ação como uma forma de doutrinação, de ensinar preceitos morais.
Antonio Candido questiona em A Literatura e a Formação do Homem, se a literatura tem a função formativa do tipo educacional. Segundo o autor:
A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa, — o Verdadeiro, o Bom, o Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua concepção de vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (esta apoteose matreira do óbvio, novamente em grande voga), ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela, — com altos e baixos, luzes e sombras (1972, p.84, grifos do autor).
Portanto, Candido acredita que a função da literatura é formadora no sentido de proporcionar reflexões sobre a vida relativizando conceitos como o verdadeiro, bom e belo que, muitas vezes, representam apenas a ideologia ou a moral de determinado grupo social. Sendo assim, a literatura busca estabelecer o contato do leitor com a obra literária apresentando valores e ideologias diversas para que sejam questionados e, dessa forma, chegar a uma reflexão humanizadora, pois, para ele, a literatura “não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 1972, p. 85, grifos do autor). Essa função apresentada por Candido é determinante para o entendimento de uma prática de ensino de literatura que visa à formação do leitor literário crítico e criativo.
No segundo momento, Compagnon expõe que, no Século das Luzes, surge a função da literatura como remédio e essa visão é aprofundada pelo romantismo. Nessa percepção a obra literária contribui para a liberdade do indivíduo, “o poder de nos fazer escapar ‘das forças de alienação ou de opressão’” (SARTRE, 1965, apud COMPAGNON, 2009, p.34). Dentro dessa percepção, a literatura concede ao homem moderno ter uma visão além das limitações da vida cotidiana, por ser concomitantemente sintoma e solução do mal-estar na civilização. Assim, ele conclui que a literatura cura ou intoxica, ou cura intoxicando (COMPAGNON, 2009, p. 36).
Essa percepção que compreende a literatura como remédio faz lembrar o diálogo Fedro de Platão, no qual ele descreve a cena da origem da escrita apresentada por Sócrates no antigo mito egípcio de Theuth. Nesse mito, Theuth apresenta ao deus-rei Thamous sua invenção e diz: “Eis aqui oh Rei, um conhecimento que terá por efeito tornar os egípcios mais instruídos e mais aptos para se rememorar: memória e instrução encontraram seu remédio” (PLATÃO, 2000, p. 121). Sócrates compara os textos escritos a uma droga que Fedro trouxe consigo, sendo, nesse sentido, a escrita representada como um phármakon, veneno e remédio.
Para Jacques Derrida “Esse phármakon, essa ‘medicina’, esse filtro, ao mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda ambivalência. Esse encanto, essa virtude, essa fascinação, essa potência de feitiço, podem ser – alternada ou simultaneamente – benéficas e maléficas” (DERRIDA, 2005, p.14). Nesse sentido mais amplo, a propriedade de ser phármakon, não é exclusiva da literatura, ou da linguagem escrita, mas da linguagem em geral, inclusive a oral. Na obra Gramatologia, Derrida (1973, p.35) diz que “a origem da escrita, a origem da linguagem, as duas questões dificilmente se separam”. Para ele “A escritura é a dissimulação da presença natural, primeira e imediata do sentido à alma como inconsciência. Assim, descontruir esta tradição não consistirá em invertê-la, em inocentar a escritura. Antes, em mostrar por que a violência da escritura não sobrevém a uma linguagem inocente” (DERRIDA, 1973, p.45). Tanto a linguagem escrita, quanto a linguagem falada apresenta um conjunto finito de signos que geram múltiplas interpretações, as quais dependem da interação entre quem produz a mensagem e quem a recebe.
Devemos estar conscientes de que a ficção presente no texto literário é uma forma de despertar a reflexão sobre as ações, sentimentos e representações simbólicas, as quais podem simular a representação da realidade. Ter consciência disso é aceitar que o texto não pode ser “remédio” ou “veneno”; “bem” ou “mal”, pois o phármakon representa a capacidade de relativizar essa ambivalência, por ser sempre uma representação do que se pretende comunicar, associada a interpretação de quem lê. De acordo com Derrida, a “‘essência’ do phármakon é que, não tendo essência estável, nem caráter "próprio" não é em sentido nenhum dessa palavra (metafísico, físico, químico, alquímico), uma substância” (DERRIDA, 1991, p. 73).
O texto literário não pode ser compreendido como um remédio para curar os males do mundo, mas como um meio que despertará a inquietação geradora da dúvida. Assim, ao estimular a habilidade de ponderação, nos tornamos mais críticos e com discernimento para ponderar diante de diversas situações e refletirmos sobre as ações humanas.
O texto literário não pode ser entendido como capaz de trazer um mal em si, mas a forma como a aula de literatura é feita pode acabar desperdiçando a análise do texto, quando ignora o trabalho dos aspectos literários (linguagem artística; linguagem ficcional; verossimilhança; discurso universal). A literatura, como objeto de ensino na escola, pode ser mal aproveitada, pois dependerá da forma como a representação da realidade presente na ficção é compreendida e utilizada, por ser sempre um texto aberto a múltiplas interpretações, dentro de um jogo limitado de signos. Nesse sentido, os que usam o texto literário para fins de instrução de moralidades ou para instrumento de análise da língua (de forma descontextualizada) podem parecer que dominam a compreensão do texto, quando na verdade, não proporcionam o amadurecimento das ideias ali presentes, não estimulam a vivência de sensações pessoais que cada leitor pode ter e formam leitores que terão apenas alguns recursos de leitura que limitam sua capacidade de análise. Nesse caso, eles poderão reconhecer um ou outro gênero literário, por meio de suas características gerais, mas ficarão em dúvida quando um gênero se apresentar de forma híbrida. Poderão saber relatar o enredo das histórias lidas, mas terão limitadas as habilidades de raciocinar criticamente sobre a leitura, por acreditar que há apenas uma única forma de interpretação. Portanto, devemos estar atentos ao modo como a literatura é inserida na escola e aproveitá-la, visando à formação do leitor crítico e criativo.
No terceiro momento, Compagnon endossa que a literatura corrige os defeitos da língua, de acordo com a concepção de Roland Barthes que a qualifica como “fascista”, “pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES apud COMPAGNON, 2009, p. 40, grifos do autor). Para ele a literatura nos revela o que já estava em nós e não nos dávamos conta, pois a linguagem literária excede as limitações da língua e a fronteira da filosofia. Compagnon também relaciona a literatura como uma forma de linguagem mais livre que filosofia, ele entende da leitura que fez de Foucault que a literatura serve para se livrar da filosofia.
Não obstante o texto literário desperte em nós sentimentos, emoções e ideias adormecidas, ele também nos permite identificarmos, de imediato, com tudo isso de forma consciente e até relacionarmos com vivências anteriores. A literatura não toca apenas no nosso inconsciente, mas nos faz conscientemente relacionarmos nossas vivências com as das personagens e também, experienciar essas vivências como uma espécie de sublimação, ou seja, uma transferência de realização de uma situação para a das personagens.
Embora entendamos que a literatura apresente uma linguagem livre por ser carregada de simbolismos, sendo assim, aberta a múltiplos significados, devemos repensar a colocação de que a literatura serve para se livrar da filosofia. Se entendermos que a filosofia é um recurso que utilizamos para levantar suspeitas, para ativar o ceticismo diante de tudo, então podemos dizer que é preciso ler literatura com um olhar filosófico, dessa forma, não afastamos a literatura da filosofia, mas as aproximamos, ao compreender que quem lê filosofia usa os óculos do ceticismo e lida com os porquês diante da vida e quem lê literatura deve usar óculos com lentes que fundem as suas idiossincrasias como leitor com sua vivência de mundo e lida com o “por que não?” Ambas questionam a realidade, no entanto, uma tem seu limite quando os porquês são respondidos e a outra não tem limites, pois é baseada na relatividade de cada leitor e na simulação.
O quarto tópico de Compagnon (2009, p.41) apresenta o questionamento sobre a funcionalidade da literatura, apresentando uma citação de Rolan Barthes (2003) “A literatura não permite andar, mas permite respirar” e complementando com a afirmação de um adepto fiel da escrita de Pequim o qual entendia que o único poder da literatura era “matar o tempo”, ele apresenta a visão de muitos escritores que não viam na literatura nenhuma funcionalidade, ou que rejeitavam que a literatura pudesse ter uma finalidade pedagógica, ideológica ou mesmo linguística. Ele apresenta também outros autores, como Theodor Adorno e Blanchot, os quais, segundo Compagnon, entendiam que a literatura era vã e incapaz de impedir os horrores da guerra, pois “a arte não podia pretender redimir o horror nem reabilitar a vida, e a literatura estava acometida por interdições” (COMPAGNON 2009, p.42-43). Nesse sentindo, só restava à literatura o poder da recreação e essa visão motivou o conceito equivocado ou simplista de entender a literatura, apenas, como um prazer lúdico. Essa ideia se difundiu no fim do século XX e, baseado nela, qualquer uso da literatura que não fosse apenas por fruição seria uma traição.
Devemos considerar nesse quarto tópico a presença de uma relação paradoxal, pois é um raciocínio falacioso dizer que a literatura não possui uma função, mas que é “como respirar” ou serve apenas para “deleitar-se”, “matar o tempo”, pois essas ações comparativas também estão imbricadas de uma funcionalidade velada. Compreendemos que mesmo em determinado momento histórico, quando alguns escritores viam a literatura como objeto de fruição e qualquer outro uso da literatura fosse recriminado, eles, ainda assim, estavam a utilizando com uma finalidade. Hoje, afastados um pouco dessa fase, podemos ponderar com o provérbio “Não se deve jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Para evitarmos cometer o erro de eliminar algo essencial, tentando nos livrar do que consideramos desnecessário, precisamos chegar a um meio-termo nessa funcionalidade da literatura que permita compreendê-la como capaz de ampliar as possibilidades de compreensão do mundo, nos fazendo participar de um jogo de linguagem que representa ações humanas em determinado momento histórico, com suas visões e ideologias socioculturalmente situadas, mas que permitem, de forma atemporal, o leitor vivenciar essa ficção e sentir prazer estético, além da fruição desinteressada.
Pretendemos concluir, então, que a função da literatura está sintetizada na definição de literatura de Antonio Candido:
A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade tanto do criador, no momento de conceber e executar, quanto do receptor, no momento de sentir e apreciar. Isto ocorre em qualquer tipo de arte, primitiva ou civilizada (1972, p.53).
Assim, entendemos a literatura como uma forma de representação da realidade para o mundo das possibilidades da ficção, lugar onde a vida se apresenta metaforicamente. A metaforização é uma ação inerente às artes que buscam de forma sutil representar o que poderia ser real quando nos torna impossível descrever essa realidade. Por isso, quando dizemos que algo é uma obra de arte, estamos sentindo por meio dela o prazer e o efeito de fruição proporcionados pela leitura do que ela representa para nós, de acordo com nossos valores, ao representar o real, buscando a verossimilhança que nos faz relacionar a nossa realidade, ou, de alguma forma, achar sentido no que está sendo representado. No entanto, a arte ficcional não tem a pretensão de ser uma tradução fiel desses valores pessoais carregados de nossas idiossincrasias. Ela é sempre uma tentativa de ser, uma possibilidade de representar. Ou seja, ela nunca está acabada, não é finita, pois é revestida de subjetividade. Dessa forma, ela dá margem à abstração e a outras possibilidades de associação de sentidos para todos os que a recebem.
Outrossim, se concordarmos com o formalista russo Viktor Chklovski que diz
A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularizarão [ostranenie] dos objetos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objeto, aquilo que já se “tornou” não interessa mais a arte (1999, p.82, grifos do autor)
e associarmos com a forma de ler literatura, podemos compreender que a obra literária não é completa em si, pois ela sempre dependerá da interação do leitor para ganhar sentido, por apresentar sempre uma aporia
O termo está sendo usado no sentido atribuído por Jacques Derrida (1973). Para ele, todos os textos escritos têm hiatos, espaços e contradições, que na perspectiva do desconstrutivismo, permitem uma pluralidade de sentidos do texto por parte do leitor. , não permite uma conclusão, além de ser constituída por essa gratuidade na construção da obra (o autor tem liberdade criativa na elaboração do seu texto) e na recepção pelo leitor (o leitor possui liberdade receptiva na interpretação), sem a imposição de o autor corresponder a determinado discurso ideológico, embora a ideologia esteja presente em ambas as partes.
O processo da elaboração e de recepção da obra formam um jogo no qual autor e leitor participam não podendo, nenhum deles, colocar como determinante sua ideologia no processo de interpretação, posto que ela é relativamente livre. Há infinitas formas de interpretação, mas todas estão sujeitas ao jogo do texto.
É importante ressaltar que o termo aporia apresentado aqui como característica da obra literária não é simplesmente a condição de indecisão entre duas premissas contraditórias como define sua raiz etimológica de origem grega, mas é uma possibilidade para a ponderação que sempre existirá, não só, pelo fato de cada leitor ter uma leitura diferente, mas também, a cada leitura feita pelo mesmo leitor, em momentos diferentes, uma nova ideia a respeito do texto é construída. Cada leitura revelará uma nova experiência.
Derrida (1973) cunhou o termo diferência
Derrida cria e justifica o neologismo no texto Da Essência do Fundamento em Theorié d’esemble, mantivemos a tradução diferência já utilizada em A Escritura e a Diferença. para explicar como funciona o processo de desconstrução no modo de ler um texto. Em francês, “différance” (com “a”) é um jogo entre “différence” (com “e”, que significa “diferir”) e “deférrer” (que significa “adiar”). Essa característica do texto escrito definida por Derrida de diferência nos permite perceber mais nitidamente na palavra escrita do que na fala que tudo deve ser interpretado dentro do texto de forma contínua, pois o significado não pode ser dado de forma direta, mas construído e desconstruído continuamente numa ação de adiar e diferir.
Ao lermos um texto literário, por exemplo, as ideias vão se encaixando numa dinâmica de preenchimento de espaços dadas pelo autor na obra e à medida que o leitor vai interagindo ao atribuir significados, as concepções vão se alterando, novas hipóteses vão sendo formuladas para serem confirmadas e/ou refutadas, enquanto mais informações serão requeridas por parte das informações textuais e por parte do conhecimento de mundo do leitor para construir uma interpretação que não acabará, nem mesmo, ao findar a leitura do texto. Ao longo de sua obra Gramatologia, Derrida se refere a esse conceito e o apresenta como uma fusão das suas leituras de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger ao dizer:
A diferência não resiste à apropriação, ela não lhe impõe um limite exterior. (...) Talvez seja isso que quis escrever Nietzsche e o que resiste a leitura heideggeriana: a diferença em seu movimento ativo – o que é compreendido, sem esgotá-lo, no conceito de diferência – é que não só precede a metafisica mas também transborda o pensamento do ser. Este não diz nada senão a metafísica, mesmo que a exceda e a pense como o que é em sua clausura (DERRIDA, 1973, p.176, grifos do autor).
Nesse sentido o jogo da linguagem tanto escrita, como falada é sempre um jogo que permite substituições infinitas de sentidos dentro de um conjunto finito de signos. Assim, o texto literário também possui essa característica revestida de uma metáfora da própria vida que nos possibilita participar desse jogo, vivenciando essas infinitas possibilidades, transformando nossa forma de ver o mundo, devido à ampliação de concepção de mundo que a leitura nos proporciona.
Diante de todas essas reflexões, podemos dizer que o ensino de literatura na escola tem uma função. O professor precisa apresentar essa função para os estudantes e uma forma mais simples é retomar a analogia de Faulkner citada na epígrafe: “A literatura é como um fósforo que permite ver quanta escuridão existe ao seu redor”. Dessa forma, a sua função não é ser ferramenta para ensinar moralismos, apresentar o que é certo ou errado ou revelar verdades, mas ser um recurso para refletir sobre os moralismos, as verdades, o certo e o belo. Por exemplo, Aristóteles ao se referir às formas de imitação na tragédia e na comédia, as compara com outras artes para afirmar que:
Como aqueles que imitam imitam pessoas em ação, estas não necessariamente são boas ou más (pois os caráteres quase sempre se reduzem apenas a esses, baseando-se no vício ou na virtude a distinção do caráter), isto é, ou melhores do que somos, ou piores, ou então tais e quais, como fazem os pintores; (...). Evidentemente, cada uma das ditas imitações admitirá essas distinções e diferirão entre si por imitarem assim objetos diferentes (ARISTÓTELES, 2005, p.20).
Assim, podemos entender que, na literatura, encontraremos, como representações da realidade, personagens com caráteres diversos e não necessariamente modelos de conduta a serem seguidos, mas todas as formas possíveis de comportamento humano, as quais nos proporcionam sentimento de empatia ou repulsa que nos permite estabelecermos ligação com nossa realidade de uma forma ou de outra. Portanto, desperta-nos para a reflexão diante dessas diversas possibilidades.
A literatura se aproxima da filosofia por questionar o mundo, mas a transcende, por possibilitar que cada um crie sua própria forma de ler o mundo, através do confronto entre suas vivências pessoais e as novas experiências vividas nas leituras literárias. A essa função do ensino de literatura estão aliadas outras sub-funções que auxiliam o leitor a ter os meios necessários de participar do jogo literário e desenvolver a habilidade ou a autonomia que essa funcionalidade exige.
As sub-funções são as chaves de leitura ou recursos (aspectos estruturais; aspectos históricos; aspectos ideológicos; aspectos socioculturais etc.) para que os estudantes possam utilizar e se sentir como corresponsáveis no processo de significação do texto literário, propiciando momentos de fruição da obra literária e, por conseguinte, tornando-se leitores críticos e criativos capazes de reconhecer o discurso universal inerente à obra para trocar ideias sobre as mesmas com outros, ampliando seu conhecimento de mundo, tornando sua bagagem cultural mais rica.
ESTADO DA ARTE
Analisamos vários estudos recentes sobre o ensino de leitura do texto literário e selecionamos alguns deles que tivessem uma proximidade com o tema do nosso estudo, pois é relevante conhecermos outras perspectivas teóricas e metodológicas que dizem respeito às reflexões abordadas no nosso trabalho de pesquisa. Esses estudos revelam como está sendo feita, atualmente, a abordagem do ensino de leitura do texto literário.
Um relatório de Estágio do Mestrado, cujo título é “O contributo da pré-leitura na compreensão do texto literário: atividades didáticas”
CAETANO, Ana da Costa. O contributo da etapa de pré-leitura na compreensão do texto literário: atividades didáticas. Relatório de estágio de mestrado em ensino de Português e de Línguas Clássicas, Universidade de Coimbra, setembro de 2015., realizado por Ana da Costa Caetano (2015), nos interessou por apresentar uma proposta de atividades direcionadas por três fases do processo de leitura que ela chama de pré-leitura, leitura e pós-leitura, com base em Morim (2013), Vaz (1998), Solé (1998), Sim-Sim (2007) e no “Programa de Português para o Ensino Secundário” (2001-2002). A pesquisadora apresenta em sua metodologia o “potencial” da “imagem” e da “música” enquanto “recursos educativos” na fase de “pré-leitura” das obras literárias e algumas delas foram Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, Mensagem, de Fernando Pessoa, Felizmente há luar!, de Luís de Sttatu Monteiro e Memorial do Convento, de José Saramago.
Ao analisarmos a metodologia proposta, percebemos uma preocupação em facilitar a compreensão do texto literário, por meio da leitura e interpretação de imagens e letras de música que antecipam uma temática presente nas obras. Podemos problematizar nessa abordagem, ao menos, dois pontos fundamentais, primeiro o que ela entende por “pré-leitura” e segundo a implicação dessa ação quando antecipa uma temática da obra literária.
O(s) texto(s) utilizado(s) na “pré-leitura”, também, envolve(m) uma complexidade de procedimentos de leitura para formulação de significados que resultam em uma interpretação dele, sendo assim, não faz sentido essa nomenclatura. O que se chama de “pré-leitura”, na verdade já é uma leitura que pode servir como estratégia para ativação de conhecimentos prévios, formulação de hipóteses para criar expectativas e ampliação do conhecimento de mundo do leitor, antes de entrar em contato com uma outra obra que apresente elementos de intertextualidade ou interdiscursividade. Essa ação de utilizar textos motivadores antecipadores de uma das temáticas presentes na obra literária pode interferir diretamente na interpretação da obra de forma positiva ou negativa. Quando essa abordagem tem o propósito de direcionar a interpretação para antecipar sentidos no texto literário, isso pode desfavorecer a percepção da multiplicidade de significados que a obra ficcional apresenta. No entanto, quando o propósito é de ampliar a leitura para estabelecer um diálogo com a obra, sem antecipar a temática, mas problematizando e confrontando as leituras ou estimulando a interligação entre o texto que antecipa e o que segue, podemos, então, entendê-la como positiva, por confrontar as expectativas do leitor e ampliar seu conhecimento de mundo.
No relatório analisado, a metodologia apresentada pela professora deixa claro que foram selecionados trechos das obras literárias, ou seja, elas não foram totalmente contempladas nas atividades de leitura, no entanto, os “recursos educativos” de “pré-leitura” foram analisados, detalhadamente, com perguntas feitas oralmente e questionário por escrito. Após a leitura dos trechos dos textos literários, os alunos responderam aos questionários sobre as obras e suas respostas foram avaliadas em duas categorias: corretas, quando as interpretações apontavam para a temática antecipada e erradas quando não apresentavam relação com a temática antecipada.
Se o objetivo era a compreensão de uma (pré)determinada temática nos trechos das obras literárias selecionadas, esse foi alcançado, pois houve um reforço de leitura direcionado aos “recursos educativos” para “facilitar” a compreensão de uma (pré)determinada temática nos trechos das obras literárias. Nas considerações finais, a pesquisadora coloca que uma das preocupações foi “despertar nos alunos a capacidade de ativar os esquemas cognitivos, levando-os a prever e antecipar o que iria ser lido” (CAETANO, 2015, p.74). Essa técnica embora seja de fundamental importância para a ativar os conhecimentos prévios dos alunos, quando é direcionada da forma como foi apresentada, acaba limitando a interpretação do texto, pois não favorece o reconhecimento da plurissignificação das representações ficcionais e dos símbolos presentes na linguagem poética.
Uma pesquisa em andamento, relatada no artigo Estratégias de Leitura e seleção de obras infanto-juvenis
Artigo publicado no periódico ULBRA V. 17 n. 35, p. 194-207, set/dez 2015. Disponível no site: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/txra/article/viewFile/1595/1258, pela mestranda Simone Alves Pedersen e a Dra. Jussara B. Tortella, traz a discursão de que as estratégias de leitura podem auxiliar os alunos no aprofundamento da compreensão dos textos literários, com base no procedimento de Close Reading, a partir de pressupostos teóricos da autorregulação, na perspectiva sociocognitiva (Teoria Social Cognitiva) de Albert Bandura (2008). Segundo as pesquisadoras, essa investigação se propõe “a entender quais estratégias de natureza metacognitiva os alunos utilizam quando entram em contato com a literatura e como essas contribuem para a construção de alunos autônomos e autorreguladores” (PEDERSEN, 2015, p.197).
Essa pesquisa nos interessa por apresentar uma preocupação parecida com a nossa, quando busca investigar estratégias metacognitivas de leitura para interação com o texto literário. O Close Reading
Detalhes sobre a técnica do Close Reading podem ser encontrados nos sites: http://writing.wisc.edu/Handbook/CloseReading.html e http://www.ascd.org/publications/educational-leadership/dec12/vol70/num04/Closing-in-on-Close-Reading.aspx é uma técnica de leitura que pode ser utilizada para aprofundar qualquer texto, pois faz uso de diversas estratégias de leitura como, por exemplo, sublinhar palavras desconhecidas e procurar o significado, entender o ponto de vista do autor através de questionamentos sobre ideias presentes no texto, analisar a estrutura do gênero e sua composição textual. Na prática, o processo basicamente possui três fases: sendo a primeira, determinar o que o texto diz por meio de uma leitura geral da superfície textual (analisar vocabulário, fazer um resumo, identificar gênero, analisar a organização da estrutura textual etc.); segunda fase, reler o texto e anotar as principais ideias de cada parágrafo (identificar palavras chaves em cada parte, inferir sentidos e associar ideias entre os parágrafos etc.) e a terceira fase é reler, mais uma vez, para aprofundar a compreensão (identificar a intenção do autor, a ideia geral, responder perguntas sobre o texto, entender como a escolha das palavras e o ponto de vista presentes podem afetar a interpretação do leitor) e escrever sobre o texto ou dar continuidade a ele.
Nas escolas norte americanas essa técnica é muito utilizada para estudar textos literários. O Partnership for Assessment of Readiness for College and Careers
Partnership for Assessment of Readiness for College and Careers (Parceria para avaliação de prontidão para faculdade e carreiras). (2011). PARCC model content frameworks: English language arts/literacy grades 3–11. (PARCC) nos esclarece o que é Close Reading da seguinte forma:
Close, analytic reading stresses engaging with a text of sufficient complexity directly and examining meaning thoroughly and methodically, encouraging students to read and reread deliberately. Directing student attention on the text itself empowers students to understand the central ideas and key supporting details. It also enables students to reflect on the meanings of individual words and sentences; the order in which sentences unfold; and the development of ideas over the course of the text, which ultimately leads students to arrive at an understanding of the text as a whole. (PARCC, 2011, p. 7)
(Close Reading), leitura analítica que enfatiza o engajamento direto com o texto suficientemente complexo e examina o significado cuidadosamente e metodicamente, encorajando os estudantes a ler e reler deliberadamente. Dirigindo a atenção do aluno no próprio texto, capacita o aluno a compreender as ideias centrais e os detalhes principais. Isso também permite que os alunos reflitam sobre os significados das palavras e frases individuais; a ordem em que as sentenças se desdobram; e o desenvolvimento das ideias ao longo do texto, o que acaba por conduzir os estudantes a chegar a uma compreensão do texto no seu conjunto.
Ao analisarmos essa proposta, percebemos que embora o Close Reading seja uma forma eficiente para ler de maneira mais profunda um texto, essa técnica focaliza mais aspectos estruturais, pois foi criada para facilitar a interpretação de “textos complexos/difíceis”, ou seja, textos com linguagem incomum para os estudantes. Geralmente, o Close Reading é mais adequado para textos literários com linguagem rebuscada, porque permite que a barreira da decodificação da linguagem seja quebrada para melhor interação com os significados do texto e apesar de propiciar uma leitura mais profunda, não apresenta estratégias claras para a percepção do discurso universal inerente ao texto literário.
O artigo intitulado Estratégias didático-metodológicas para o “ensino” da leitura do texto literário publicado em 2015, por Sharlene D. Valarini, na época, doutoranda, faz uma crítica ao ensino de literatura que é voltado para treinar os alunos para o vestibular e utiliza o texto literário como pretexto para ensinar gramática ou produção textual. Ela apresenta, como alternativas para “fazer com que o aluno interaja com o texto literário” e “reconheça as possibilidades de reconhecimento do mundo” (VALARINI, 2015, p.1), três estratégias didático-metodológicas de ensino de literatura mais conhecidas e estudadas, atualmente, nos cursos de Letras (licenciatura em Língua Portuguesa):
O modelo de Cosson (2006) que se baseia nas técnicas de oficina, andaime e portfólio. Ele apresenta o modelo básico (motivação introdução leitura interpretação) e o expandido (as mesmas fases do básico, no entanto, o momento de interpretação é dividido em compreensão global e aprofundamento em algum aspecto do texto de acordo com o objetivo do professor). Esse modelo se fundamenta no princípio do letramento literário para construção de uma comunidade de leitores, cujo o objetivo é ampliar e consolidar o repertório cultural do aluno, através de um movimento contínuo de leitura, partindo do conhecido para o desconhecido, do simples para o complexo, do semelhante para o diferente.
O Método Recepcional de Bordini & Aguiar (1993) constituído por cinco etapas: determinação do horizonte de expectativas atendimento do horizonte de expectativas ruptura do horizonte de expectativas questionamento do horizonte de expectativas ampliação do horizonte de expectativas. Esse método se fundamenta na participação do aluno como leitor ativo em contato com o texto, portanto seus objetivos são fazer com que os alunos: realizem leituras compreensivas e críticas; sejam receptivos a novos textos e a leituras de outrem; questionem as leituras realizadas em relação a seu próprio horizonte cultural; transformem os próprios horizontes de expectativas bem como os do professor, da escola, da comunidade familiar e social.
O método de Juracy A. Saraiva & Ernani Mügge (2006), cuja sequência é: leitura compreensiva para preparar o aluno a responder: como o texto diz aquilo que diz? leitura interpretativa para deixar o leitor apto a responder: qual o sentido do texto? etapa de aplicação para refletir sobre a questão: que diálogo há entre texto e o contexto estético-histórico-cultural atual e o momento da produção?
A pesquisadora conclui que essas estratégias didático-metodológicas partem de uma base em comum: “a recepção do leitor, o modo como esse leitor pode ser levado a pensar crítica e criativamente sobre o mundo a sua volta” (VALARINI, 2015, p.7-8). Deveras, as Teoria da Recepção e do Efeito Estético estão perspícuas na fundamentação desses métodos apresentados. Todas elas enfatizam a necessidade de proporcionar uma leitura, na qual o estudante possa aprofundar a compreensão do texto literário e apreender sua relação com o mundo, no entanto, é preciso desenvolver estratégias que proporcionem ao leitor os recursos para conquistar a autonomia durante a leitura e aprofundar o texto. O processamento da leitura deve ser feito de forma consciente durante todo o processo e as estratégias metacognitivas de leitura possibilitam a interação entre texto e leitor de forma ativa para que ele desenvolva sua autonomia leitora e consiga construir, naturalmente, os significados do texto.
Portanto, levamos em consideração todas essas metodologias que embasam a abordagem do texto literário para pensarmos em mais uma forma de não apenas possibilitar o aprofundamento da leitura através do contato íntimo entre leitor e texto, mas fornecer recursos para que este consiga, ao seu modo, durante o processamento da leitura (antes, durante e após), interligar ideias e perceber o discurso universal no texto literário.
IMPLICAÇÕES DOS SISTEMAS DE AVALIAÇÃO EXTERNA NA ABORDAGEM DO TEXTO LITERÁRIO NO 9º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
Hodiernamente, podemos elencar, ao menos, dois grandes entraves para um ensino significativo de literatura no ensino fundamental. O primeiro é um fator interior, ligado diretamente à prática pedagógica, já explicitado anteriormente, que diz respeito às aulas de literatura, cujo objetivo, muitas vezes, se restringe a discutir um determinado tema, deixando em segundo plano os aspectos literários do texto e quando se analisa a linguagem, na maioria das vezes, é para fazer análises estruturalistas, de forma descontextualizada, desconsiderando que o estilo inerente à linguagem do texto é como o fio que usamos para tecer os significados. Essas inadequações refletem a falta de clareza sobre as metodologias de ensino de literatura. Um segundo entrave é um fator exterior, ligado ao sistema educacional. A forma como as avaliações externas são entendidas por algumas secretarias de educação, as quais pressionam as escolas em busca de resultados rápidos para mostrar a “eficiência” do ensino de leitura nas escolas, desnorteiam a real função que essas avaliações deveriam ter. Aqui estamos nos referindo aos sistemas de avaliação do Governo Federal e das Secretarias de Educação Estaduais que avaliam o desempenho dos estudantes em leitura e classificam as escolas em um Ranking que proporciona, em alguns casos, benefícios financeiros para premiar as que se destacam. Esse sistema acaba desvirtuando a forma de ensino de português e descaracterizando o real objetivo que deveria existir nessas avaliações, quando utilizado de forma inadequada. Citamos apenas esses dois instrumentos avaliativos, porque esses são os aplicados na referida escola, nosso objetivo não é analisar profundamente esses instrumentos, mas apresentar os dados recentes apresentados por essas avaliações para justificarmos alguns problemas referentes à leitura do texto literário.
Os sistemas de avaliações externas presentes no nosso estado são o SAEPE (Sistema de Avaliação Educacional de Pernambuco) e o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Dentro do SAEB, são realizados três tipos de avaliação e a apresentada para comprovar o baixo desempenho dos estudantes em relação à leitura foi especificamente a Prova Brasil. Esses sistemas afirmam que, através dos níveis de proficiência especificados nas provas, é possível ter um diagnóstico para verificar o desempenho dos estudantes em habilidades específicas de leitura.
O grande equívoco do uso dessas avaliações pelo sistema de ensino, principalmente de algumas secretarias estaduais, é tê-las como instrumento de ensino (as provas são utilizadas para “treinar” os estudantes a responderem questões como as que aparecem nela) para as turmas das séries finais que serão avaliadas, em vez de usá-las como diagnóstico para investigar o porquê de as habilidades avaliadas não estarem apresentando resultados satisfatórios. Devido a isso, o ensino fica mecanicamente focado em atividades para treinar os estudantes com questões semelhantes às apresentadas nessas avaliações, em detrimento do ensino que valoriza uma interação mais efetiva entre os estudantes e os textos não só do domínio literário, como de outros domínios discursivos. Em virtude dessa situação, apresentamos uma breve descrição dessas avaliações com o propósito de constatar que a forma como o texto literário é tratado nessas atividades não favorece um ensino de leitura de forma adequada.
Com base no resultado da avaliação do SAEPE-2014
Anexo A, páginas 147,148., podemos verificar a situação dos estudantes da escola estadual Santa Apolônia e comparar com o resultado nos níveis atingidos por outras escolas que fazem parte da mesma gerência regional e com o resultado geral do Estado. A prova do SAEPE é anual e apresenta quatro padrões de desempenho: Elementar I (indica que há um nível de aprendizagem muito abaixo do conhecimento básico que é esperado para a etapa de escolaridade na qual o aluno se encontra); Elementar II (indica que o aluno possui um conhecimento aproximado do que seria básico para sua etapa de escolaridade); Básico (indica que o aluno desse nível possui condições mínimas para avançar no processo de escolarização) e Desejável (indica que o aluno possui conhecimento acima do básico para sua etapa escolar). O resultado
Fonte: http://www.saepe.caedufjf.net/resultados/resultados-2013/resultados-por-escola/ (acessado em 04/09/2015). dessa avaliação em 2013 apontou que 66% dos alunos dessa escola estão com proficiência em leitura abaixo do nível desejável.
A prova Brasil é bienal e apresenta um resultado mais detalhado para complementar a justificativa, pois apresenta o nível de proficiência e aponta as habilidades específicas nas quais se encaixam os alunos de cada nível. O resultado da escola pode ser comparado com o de outras escolas, tanto no nível municipal, como estadual e nacional. Nesse sistema, os níveis variam numa escala de 1 a 8 e os valores de proficiência em cada nível variam de 0 a 500, no nível 1 o desempenho é ≥ 150 e ≤ 175, no nível 8 é ≥ 325. Dentro deste parâmetro, o resultado
Anexo B, nas páginas 149, 150 há tabelas que apresentam detalhadamente. da escola em 2013
Fonte:http://sistemasprovabrasil.inep.gov.br/provaBrasilResultados/view/boletimDesempenho/boletimDesempenho.seam (acessado em 04/09/2015). para os estudantes do 9° ano foi de 37,14% dos alunos abaixo do nível 1; 21,05% no nível 1; 34,74% no nível 2; 2,40% no nível 3; 2,26% no nível 4; 2,40% no nível 5 (desempenho ≥ 300 e ≤ 325), a partir desse nível, provavelmente não houve desempenho.
Os dados apresentados deixam claro que precisamos repensar as práticas de ensino e investigar por que as habilidades referentes à leitura dos gêneros da ordem do narrar
Usamos esse termo de acordo com as categorias estabelecidas por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). não foram desenvolvidas. Conquanto haja vários gêneros literários nessa categoria que poderiam ser selecionados para a abordagem proposta, decidimos utilizar o conto.
O GÊNERO CONTO COMO RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO DE LITERATURA NO 9º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
Para todos os gêneros textuais há diferentes formas de se fazer uma leitura. Até mesmo um tipo específico de gênero textual pode ser lido de diferentes formas, a depender do objetivo do leitor. Assim, entendemos que os gêneros do domínio discursivo literário, também, apresentam peculiaridades diferentes na forma de serem lidos, se comparados aos gêneros de outros domínios discursivos, não só através da forma (estrutura), mas através da apresentação do conteúdo, da abordagem ficcional e do discurso universal inerente ao texto literário.
Consideramos o gênero conto com seu objetivo de leitura voltado para fruição desinteressada, também conhecido como leitura deleite, mas também levamos em consideração a fruição estética com o estudo dos aspectos estilísticos que ajudam na interação do leitor com o texto para que este compreenda o jogo criado pelo autor para causar determinados efeitos no leitor. Entendemos que esses aspectos são inseparáveis, sendo assim, devem ser trabalhados no sentido de fazer o leitor perceber (conscientemente) que a fruição estética acontece quando ele consegue interagir com o texto literário, construindo os significados a partir das ligações entre pistas textuais explícitas e implícitas no texto. Nessa perspectiva, levamos em consideração a prática da interação na relação autor, texto e leitor. Dentro desse contexto, o professor é o mediador do processo que fornecerá ao estudante recursos de leitura para a interação com o texto literário, através do ensino de estratégias metacognitivas de leitura, no intuito de contribuir na formação do aluno como um leitor do texto literário, capaz de identificar no texto seus aspectos artísticos (composição ficcional) e estéticos (estrutura e seus significados possíveis) entrelaçados, os quais são constitutivos dos gêneros literários.
Sabemos que é recorrente o uso do gênero conto na sala de aula, com o propósito de analisar, primordialmente, aspectos estruturais, quando, muitas vezes, o enunciado das questões induz o estudante a identificar o gênero textual, sem refletir sobre os aspectos literários do texto. Para isso, o estudante faz uma leitura skimming do texto, com o objetivo de perceber as características do formato e identificar o gênero. Essa é uma estratégia importante para se reconhecer que há diferenças na estrutura dos gêneros literários, mas esse tipo de leitura de aspectos estruturais não contribui para uma compreensão mais profunda do texto. Como esse tipo de análise é muito recorrente em provas externas, muitos professores acabam norteando o ensino do gênero, enfatizando os aspectos estruturais do texto. No entanto, para se entender o conceito de um gênero, não basta conhecermos sua estrutura, mas, primordialmente, sua(s) função(ões) dentro de determinado(s) contexto(s). Embora os estudantes não necessitem de uma explicação teórica nesse aspecto, o professor precisa entender essa noção.
Quando se trata de um gênero literário como o conto, esse tipo de questão se torna ainda mais complicado, pois o conto possui semelhanças com outros gêneros como a crônica e a novela, além de, como tantos outros gêneros, ter sofrido mutações, desde o seu surgimento até hoje e continuar se reinventando.
É antiga a tendência de classificar as formas discursivas em categorias de gêneros. Os primeiros estudos voltados para a teorização dos gêneros começaram pelas análises de gêneros literários. Irene Machado (2008, p.151 – 165) faz um resumo sobre os precursores das teorias de gêneros nessa perspectiva e relata sobre as classificações desde Platão quando ele, inicialmente, propôs uma classificação baseada em obras representativas de juízos de valor que dividia em gênero sério e gênero burlesco, sendo este composto pela comédia e a sátira e aquele pela epopeia e a tragédia. Segundo Machado,
Já em A república, Platão elabora a tríade advinda das relações entre realidade e representação. Ao gênero mimético ou dramático pertencem a tragédia e a comédia; ao expositivo ou narrativo, o ditirambo, o nomo e a poesia lírica; ao misto, a epopeia. A classificação triádica fundada na mimese é a base para a Poética de Aristóteles, em que a tragédia é tomada como paradigma para o que ele chama de poesia. Essas são as linhas gerais da base teórica consolidada e que até hoje orienta a análise de tudo o que se entende como gênero (2008, p.151, 152, grifos da autora).
O estudo dos gêneros literários ganhou nova perspectiva, a partir das análises de Mikhail Bakhtin que levou em consideração o dialogismo do processo comunicativo no texto, a começar pelo romance. A opção pelo gênero romance foi fundamental para a percepção da relatividade estrutural dos gêneros, pois “mais do que reverter o quadro tipológico das criações estéticas, o dialogismo, ao valorizar o estudo dos gêneros, descobriu um excelente recurso para “radiografar” o hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos na cultura” (MACHADO, 2008, p.153). Portanto, a percepção de que nos gêneros da prosa, diferentemente dos gêneros poéticos, há mais possibilidades de hibridismo e pluralidade (paródia, estilização, linguagem carnavalizada, heteroglossia) na construção estilística abriu um campo de estudos que até hoje ainda é discutido.
A constituição dos gêneros está associada à criatividade nas produções comunicativas em diferentes contextos sociais, dessa forma, a produção de um conto, assim como de qualquer outro gênero textual, está sujeita a variações, pois para Bakhtin
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa (BAKHTINN, 1997, p. 279).
Para explicar melhor como o conto se apresenta como gênero, após nos embasarmos nessa perspectiva, consideramos o que diz Nádia Battella Gotlib no seu livro A Teoria do Conto, no qual ela explica que há fases de evolução dos modos de se contarem estórias, mesmo sendo impossível saber como iniciou o Contar História, pois remonta aos tempos antes do surgimento da escrita. “Enumerar as fases da evolução do conto seria percorrer a nossa própria história, a história da nossa cultura, detectando os momentos da escrita que a representam. ” (GOTLIB, 2006, p. 6). Gotlib apresenta em seu livro várias concepções de contistas e críticos literários que buscam conceituar o conto através de suas características estruturais, provando que não há um conceito engessado. Assim como Carl H. Grabo (1913, p.01-05) no livro The Art of the Short Story afirma que embora tenham sido muitas as tentativas de definir o conto, nenhuma definição se mostrou suficiente para ter uma aceitação universal, apesar de muitos o classificarem como uma narrativa curta, ele considera que até mesmo essa característica é relativa.
Sendo assim, podemos afirmar que as características do conto são insuficientes para compreendermos seu conceito, haja vista ele possuir várias formas de condensar a intensidade de uma história em suas diversas peculiaridades de forma sucinta e não haver um consenso nem entre críticos literários, nem entre contistas, sobre sua definição conceitual. Logo, devemos priorizar uma abordagem desse gênero literário que enfatize uma análise na qual haja a interação do leitor com o texto para explorar estratégias inferenciais antes, durante e após a leitura, com o objetivo de fazer o leitor perceber o discurso universal presente no conto. Ivanda Silva (2003, p.518) afirma que, nas escolas, a ênfase da leitura está associada a perguntas para constatação de informações. Sendo assim, o aluno se torna um “leitor reprodutor”, pois não é dado destaque a uma leitura como construção e negociação de sentidos, na qual o estudante utilize estratégias inferenciais para entender o lado lúdico e criativo da leitura.
Diante disso, devemos nos questionar sobre qual deve ser nossa função ao ensinar literatura a partir da leitura do texto literário. Devemos formar leitores reprodutores de informações que apenas se limitam a fazer uma leitura superficial ou formar leitores do texto literário, capazes de interagir com o texto, conscientemente, por meio de estratégias metacognitivas que possibilitem ao estudante acionar seu horizonte de expectativa e fazer inferências para perceber o discurso universal a ele inerente?
Defendendo a necessidade de o professor orientar a leitura do texto literário de forma mais interativa, Silva afirma:
O aluno deveria ser orientado para compreender o papel estético da literatura, bem como a função social desta manifestação artística. Não encontrando uma relação direta entre o texto literário e o seu cotidiano, o aluno não percebe a literatura como espaço de construção de mundos possíveis que dialogam com a realidade. É fundamental que a escola aborde a função social da literatura como uma possibilidade de “ler o mundo”, contribuindo, assim, para a formação de leitores críticos, capazes de articular a leitura de mundo à leitura produzida em sala de aula (2003, p. 517, grifos da autora).
Por conseguinte, a abordagem do texto literário precisa ser direcionada para proporcionar ao estudante a possibilidade de utilizar estratégias metacognitivas de leitura como recurso de interação para reconhecer no texto seu discurso universal e ampliar seu horizonte de expectativa, tornando-o um leitor mais reflexivo e criativo. O trabalho com gênero conto contribui para fazermos essa abordagem, por possibilitar uma leitura mais profunda dos aspectos estruturais e temáticos de cada texto de forma breve, aliando assim, o ensino de leitura concomitante ao estudo do texto literário.
Para as atividades propostas nesta pesquisa, decidimos escolher contos que possuem características em comum, haja vista tantas variantes com relação aos formatos que esse gênero pode apresentar. Então, tomamos como base uma perspectiva desse gênero descrita por Julio Cortázar em sua obra Valise de Cronópio. Ele, como autor de contos, defendia que “Ninguém pode pretender que só se devam escrever contos, após serem conhecidas suas leis. Em primeiro lugar, não há tais leis; no máximo cabe falar em pontos de vista, de certas constantes que dão estrutura a este gênero tão pouco classificável” (CORTÁZAR, 1993, p. 150). Não há leis para definir o conto, conquanto haja algumas características recorrentes que permitem uma certa modalidade composicional (aspectos em comum na composição estrutural dos contos, porém variáveis de acordo com o estilo do autor), sempre haverá pontos de semelhança com outros gêneros. Bakhtin enfatiza esse aspecto que não diz respeito apenas ao gênero conto, mas a qualquer gênero, ao abordar a problemática e definição dos gêneros do discurso da seguinte forma:
O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1997, p. 279, grifos do autor).
Cortázar apresenta algumas descrições, as quais nos permitem abordar alguns aspectos literários do gênero conto, mas algumas das características poderiam ser facilmente atribuídas a outros gêneros literários. No entanto, vamos nos apoiar nas características relativamente estáveis do gênero para justificarmos a escolha dos contos. Como uma das características, ele aponta que o conto está para o romance, assim como a fotografia está para o filme:
fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmara. (...), o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma (CORTÁZAR, 1993, p. 151).
Dessa forma, os contos escolhidos apresentam enredos, os quais têm sua composição baseada em um evento que desencadeia uma série de ações que a ele se ligam, construindo os possíveis significados e o evento base de cada conto poderia, mesmo, ser representado por uma imagem.
Cortázar (idem, p.154) afirma que o contista ao refletir sobre aspectos da realidade, a partir do seu ponto de vista social, histórico e cultural, escolhe um determinado assunto para elaborar um conto com maior ou menor grau de verossimilhança. No entanto, essa escolha é complexa, pois, para ser excepcional, ele deve atrair “todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até ideias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na sensibilidade” (CORTÁZAR, 1993, p.154). O contista pode pensar em um determinado tema para produzir seu conto, mas não significa que esse tema seja sempre explicitamente óbvio, visto que ele é um feixe de fios condutores ao longo do texto, o qual representa os diversos assuntos que podem estar intrínsecos na narrativa ficcional e cada um desses fios podem ter maior ou menor relevância para o leitor ao interpretar o texto e identificar nele um tema. Destarte, concordamos com a noção de Cortázar quando afirma que o contista
num determinado momento escolhe um tema e faz com ele um conto, será um grande contista se sua escolha contiver – às vezes sem que ele saiba conscientemente – essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana (1993, p.154).
O tema nasce de uma intenção do autor, mas não se define por isso, pois a significação do tema envolve a formação do conto em dois aspectos que se constituem antes e depois de sua criação, como descreve Cortázar:
(...) quando dizemos que um tema é significativo, (...), essa significação se vê determinada em certa medida por algo que está fora do tema em si, por algo que está antes e depois do tema. O que está antes é o escritor, com a sua carga de valores humanos e literários, com a sua vontade de fazer uma obra que tenha um sentido; o que está depois é o tratamento literário do tema, a forma pela qual o contista, em face do tema, o ataca e situa verbal e, estrutura-o em forma de conto, projetando-o em último termo em direção a algo que excede o próprio conto (1993, p. 155-156).
Portanto, os contos utilizados nas atividades aqui propostas apresentam temáticas que nascem de uma intenção do autor, mas ganham sua forma na interação com o leitor. Para Cortázar, pouco serviria se reduzíssemos o tema do conto ao sentido e à significação propostos pelo autor. Por isso, ele considera o leitor como elo final do processo criador que fecha esse ciclo. Ao concluir sua concepção do gênero conto, ele usa a seguinte metáfora: “(...) o conto tem de nascer ponte, tem de nascer passagem, tem de dar o salto que projete a significação inicial, descoberta pelo autor, a esse extremo mais passivo e menos vigilante e, muitas vezes, até indiferente, que chamamos leitor” (CORTÁZAR, 1993, p. 157).
Essa definição metafórica do gênero conto, nos leva a admitir que o mais relevante é a sua função, a qual surge como uma necessidade de buscar explicação para as inquietações da vida, para as coisas que não temos respostas objetivas e por isso, o autor constrói representações ficcionais para provocar no leitor determinadas sensações e reflexões sobre aspectos do comportamento humano. No entanto, quando Cortázar se refere ao leitor como “passivo”, “menos vigilante”, “indiferente”, todas essas características estão no sentido de deixar evidente que nem sempre o que tocou a sensibilidade do autor vai, em mesma intensidade, tocar a sensibilidade do leitor. Para justificar essa conclusão, usaremos, de forma aparentemente paradoxal, como explicação, que o leitor pode interagir de forma ativa, vigilante e entusiasmada no texto e encontrar outros aspectos mais significativos ou não. De qualquer forma, não só o conto, mas qualquer gênero literário tem a função de ser “ponte”, “passagem”, “salto” de uma intenção inicial do autor, marcada por seu estilo, para uma interpretação pessoal do leitor, a qual estará atrelada às pistas textuais explícitas ou implícitas no texto. No final, essa interpretação estará imbricada de sensações que o texto causou no leitor e na ampliação da perspectiva de mundo pela qual todos nós passamos ao ler um texto literário, tornamo-nos humanamente mais ricos.
A ESCOLHA DOS CONTOS: QUAIS AS VARIÁVEIS QUE ENVOLVEM A ESCOLHA DOS TEXTOS?
Faz parte do planejamento do professor, geralmente, fazer escolhas de textos literários para os alunos, e algumas vezes, deixá-los escolher “livremente”. De uma maneira ou de outra, o professor, precisa estabelecer alguns direcionamentos, ou sobre o gênero, ou sobre a temática, ou sobre os autores etc. Esse direcionamento precisa acontecer para podermos ter uma linha de trabalho coerente com os objetivos propostos para cada caso.
Antes de ser uma questão metodológica, a razão da escolha dos contos e os objetivos estabelecidos para o trabalho com eles é uma questão teórica que necessita ser analisada de forma arguta pelo professor, posto que as razões dessa escolha refletem diretamente nos resultados propostos para a atividade de leitura.
Esta pesquisa utiliza o conto com um objetivo predeterminado de estimular o estudante a se colocar como parte fundamental no processo de significação e reconhecer o discurso universal (quando o aluno consegue reconhecer no texto ficcional uma situação que pode ser diferente da sua realidade, mas que lhe toca em uma dimensão humana) inerente a ele, por meio do uso de estratégias metacognitivas de leitura. Por isso, resolvemos escolher não só a temática (trabalhada de forma implícita na relação interdiscursiva presente nos contos), como também os autores, de forma a estabelecer uma sequência de atividades interligadas, porquanto as variáveis que interessam ao nosso estudo só podem ser analisadas, se os estudantes lerem os mesmos textos, numa mesma sequência.
É importante salientar que embora haja a escolha de um tema para direcionar as atividades, isso não implica o direcionamento antecipado da interpretação dos contos para o reconhecimento de uma pré-determinada temática central. A escolha de obras que tenham em sua composição temáticas em comum pode servir para análise de como o assunto é tratado em perspectivas diferentes, reconhecidas através de relações intertextuais ou interdiscursivas. O professor precisa ter cuidado para não deixar que determinada temática seja o único foco da interpretação da obra, mas permitir o reconhecimento e análise das temáticas presentes.
Os alunos podem perceber uma determinada temática e considerá-la como central na obra de forma espontânea e isso acontecerá, naturalmente, se houver a proposta de abordar um mesmo tema presente em textos diferentes. A construção do texto literário envolve muitos assuntos entrelaçados e embora o autor tenha pensado em determinado assunto para construção do conto, não significa que esse seja o principal para o leitor que pode encontrar no tecido da trama outros tão interessantes quanto o previsto pelo autor. A leitura de uma obra literária é relativamente livre, no sentido de haver várias possibilidades de interpretação dentro de um limite construído pelo autor.
O primeiro passo foi pensarmos em textos que despertassem o interesse, a curiosidade dos alunos, pois, geralmente, a forma de leitura de um texto literário, por muitos estudantes da faixa etária do 9º ano, está muito vinculada à leitura superficial, a qual se preocupa, primordialmente, em querer saber o que acontece com as personagens. Não há, geralmente, um interesse do leitor em refletir sobre as ações das personagens e relacioná-las ao comportamento humano, nem a consciência sobre o processo de preencher as lacunas do texto para inferir sentidos não explícitos, os quais podem gerar pontos de vista diferentes sobre uma determinada situação narrada. Então, tentamos escolher textos que pudessem conquistar o leitor logo pelo título e que, nos primeiros parágrafos, pudessem despertar o interesse imediato de formular expectativas que fossem sendo desconstruídas e reconstruídas ao longo da leitura.
Para Regina Zilberman a didática deve se submeter às virtualidades cognitivas do texto literário, isso “implica algumas opções por parte do professor, delimitadas estas, de um lado, pela escolha do texto e, do outro, pela adequação deste último ao leitor”, além disso, “a seleção de textos advém da aplicação de critérios de discriminação. (...). É necessário que o valor por excelência a guiar esta seleção se relacione à qualidade estética” (ZILBERMAN, 2014, p. 26).
Sendo assim, optamos por trabalhar inicialmente com o conto de Clarice Lispector “O Crime do Professor de Matemática”
O conto está no Anexo C, página 151.. O título do conto já aguça a curiosidade, por sugerir que a personagem central (o professor de matemática) cometeu um crime e isso já desperta o interesse inicial do estudante em querer desvendar qual foi o crime, como aconteceu e por que aconteceu.
Clarice Lispector é uma autora cujo estilo é marcado pelo fluxo da consciência das personagens, o que cria uma leitura bastante propícia para as inferências e reflexões sobre as ações narradas no conto e, principalmente, as digressões da personagem (apresentadas pelo narrador onisciente em terceira pessoa, que, em alguns momentos, passa a ser eu-narrador, em primeira pessoa) sobre suas ações do passado e a confissão dos seus sentimentos. Sendo assim, o conto dá abertura a várias possibilidades de análise, dentro de uma temática psicológica sobre o conceito de culpa.
Esse conto apresenta, em seus aspectos literários, um material riquíssimo para a formulação de questões sobre as diversas possibilidades de leitura para o professor explorar com seus alunos, pois “ao professor cabe o desencadear das múltiplas visões que cada criação literária sugere, enfatizando as variadas interpretações pessoais, porque decorrem da compreensão que o leitor alcançou do objeto artístico, em razão de sua percepção singular do universo representado” (ZILBERMAN, 2014, p. 28).
O segundo passo foi encontrarmos dois outros contos para estabelecermos uma lógica de progressão das atividades, partindo do texto que serve para avaliação diagnóstica (“O Crime do Professor de Matemática”), sequenciando com um conto para o ensino e exercício das estratégias metacognitivas de leitura, aliadas à interpretação literária do conto e concluindo com outro conto que estabelece uma relação interdiscursiva com o primeiro, no intuito de fazer a avaliação comparativa.
O conto de Moacyr Scliar “O Conto se Apresenta”
O conto está no Anexo C, página 157. possui como uma das suas características a metatextualidade, que se define por ser “um texto que olha para si mesmo, apontando para sua própria construção, discorrendo criticamente sobre os processos utilizados na escritura” (PASCOLATI, 2009, p.90). Essa característica pode ser muito útil, não só para propiciar o ensino reflexivo sobre os aspectos estruturais do gênero conto, como também, suas funções literárias, porquanto “o processo metatextual de produção do texto o transforma num objeto de leitura dupla, já que nele estão presentes tanto o material ficcional, quanto o comentário sobre a escritura da ficção, a reflexão crítica” (PASCOLATI, 2009, p.90). Dessa forma, um dos critérios para a escolha do segundo conto foi o fato de apresentar essa característica.
Estimular o aluno a ler duplamente um conto sobre o conto é conceder recursos para ele desenvolver e aprimorar suas estratégias de leitura em um texto literário. Destarte, o estudante aprimora suas habilidades para compreender que o texto literário pode ter essa capacidade de descobrir-se “ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura” (BARTHES apud PASCOLATI, 2009, p. 91).
O terceiro e último passo para definir a escolha do conto que liga a sequência de atividades foi encontrar um texto que tivesse relação interdiscursiva com o primeiro, pois, dessa forma, as variáveis para identificação das estratégias de leitura utilizadas pelos alunos poderiam ser mais facilmente interligadas e analisadas. Com isso, poderíamos estabelecer um campo fértil para a interação do estudante-leitor com o texto literário e avaliar se o ensino das estratégias para estimulá-lo a ter consciência das possíveis ações de leitura o tornaria mais hábil para reconhecer o discurso universal no texto literário.
Para tal, optamos por utilizar o conto de Edgar Allan Poe “O Gato Preto”
O conto está no Anexo C, página 162.. Esse conto aborda também o tema da culpa e da relação homem/animal, na qual os valores humanos e animalescos são transmutados entre si. No entanto, o tema da culpa aparece de uma forma ambígua, pois há uma fusão entre o aspecto verossímil e fantástico que permite o leitor interpretar a forma como o narrador-personagem utiliza possíveis subterfúgios para justificar suas ações agressivas numa perspectiva objetiva, com base no comportamento alterado pelo uso de bebidas alcoólicas e por uma perspectiva subjetiva, com base na crença de superstições de sua esposa que parece o influenciar, de certa forma.
Há pontos de convergência não só estrutural como temática entre o conto de Clarice Lispector e o de Edgar Allan Poe, já que ambas as narrativas possuem como base um momento de tensão conflitiva a partir de um sentimento de crise interior marcada pela culpa, as personagens contam suas histórias, com flashbacks narrativos que permitem inferências sobre a forma como cada um deles relatam suas experiências com os respectivos animais de estimação, pelos quais, inicialmente, tinham afeição que se transformou em indiferença, aversão e hostilidade, resultando, assim, em ações que geraram neles um possível sentimento de culpa.
Apesar de termos no conto de Clarice Lispector um narrador onisciente em terceira pessoa, esse narrador apresenta os pensamentos e sentimentos da personagem que se transforma em eu-narrador (na primeira pessoa do singular), de tal forma, que em alguns trechos, temos a impressão de ambos estarem fundidos. Assim, mesmo apresentando diferenças na construção estrutural do foco narrativo, há nos contos uma aproximação na expressão dos relatos memorialistas.
Já mencionamos anteriormente, mas achamos necessário enfatizar, que abordar textos literários cujos temas apresentam valores negativos não é comum em sala de aula, pois ainda há o (pre)conceito de que a literatura deva ser utilizada para ensinar valores morais nobres. Sabemos que
são significativas ainda hoje as restrições que pais e educadores fazem a textos que veiculam medo e sofrimento de qualquer natureza, pois, a seu ver, tais obras cometem violência contra os jovens leitores, causando-lhes temores infundados e sentimentos negativos. Com uma concepção idealizada da infância e da juventude, épocas de despreocupação e felicidade – paraíso perdido –, muitos adultos acreditam que, nesse momento, talvez não sejam apropriadas discussões sobre a violência, o medo e, tampouco, o sexo e a morte, como se tais assuntos fossem alheios à vida real (MARTHA, 2013, p. 88).
No entanto, notamos que os jovens no mundo hodierno têm acesso a várias mídias repletas de informações sobre temas de diversos assuntos, inclusive, os de valores negativos, os quais são vistos por pais e educadores como indecentes, imorais, grotescos, desvirtuosos etc. Não há como colocar uma redoma no jovem que o impeça de ter contato com assuntos dessa natureza, pois, no seu dia-a-dia, ele terá acesso a essas informações de uma forma ou de outra. A grande questão é como apresentar esses temas negativos para os jovens no intuito de despertar neles o senso crítico para problematizar esses assuntos, quebrando tabus e estimulando a maturidade da discussão, levando-o a formação de juízos de valor. Devemos nos questionar sobre o que é mais coerente: propor debates sobre um tema negativo e discuti-lo sobre vários pontos de vista, visando ao respeito e à troca de opiniões sobre o assunto, com a moderação de um professor, ou ignorar que esses temas existem e as suas implicações no ambiente sociocultural no qual os alunos estão inseridos?
Segundo Alice A. P. Martha,
queiramos ou não, textos lidos por crianças e jovens, como toda literatura, são espelhos nos quais os leitores construirão, pela percepção estética, situações e sentimentos direta ou indiretamente ligados a questões prementes para o ser humano. Assim, parece ser quase impossível selecionar temas e assuntos que não possam compor o cardápio literário destinado a esses leitores, pois, na literatura infantil e juvenil, ajustados às peculiaridades do gênero, todos os sentimentos, desejos, aspirações do homem devem estar presentes, especialmente porque sabemos que a violência, estampada em sua plenitude na mídia impressa e televisiva, além dos jogos e do cinema, atinge seu apogeu no cotidiano de crianças e jovens espancados, abandonados, drogados, prostituídos, atingidos por balas nas ruas e em escolas, enfim, perdidos no caos da vida contemporânea (2013, p. 95).
Sendo assim, nós professores, precisamos abordar de forma adequada qualquer tema, inclusive, os mais polêmicos, sempre levando em consideração quais as estratégias de leitura são mais apropriadas de acordo com o nível dos estudantes, para facilitar a compreensão da linguagem e dos temas presentes no texto em cada situação. Dessa forma, os temas poderão ser abordados de acordo com a maturidade que o indivíduo possui em cada fase para compreender certos conceitos, tendo em vista que uma mesma obra pode ser lida de forma diferente na infância, na juventude e na fase adulta e, a cada leitura, o jogo muda, pois o leitor, como parte fundamental para interação com o texto, também apresenta um novo olhar que carrega um horizonte de expectativas mais amplo a cada (re)leitura.
Não é preciso forçar ou direcionar a atenção do aluno para determinado assunto, pois é importante deixá-lo perceber e comentar de forma espontânea. A intervenção do professor deve partir dos questionamentos surgidos pelas inquietações dos próprios estudantes, eles revelarão nas suas colocações as dúvidas, incertezas e curiosidades que direcionarão o debate no nível mais adequado a capacidade de percepção deles. Durante os questionamentos provocados pelo professor que farão o estudante relacionar a ficção com aspectos da realidade, ele vai desenvolvendo a percepção dos aspectos universais do texto literário e de forma despretensiosa as relações entre o real e o ficcional vão se estabelecendo e as colocações dos alunos irão conduzir o debate da forma mais apropriada.
Para Martha,
O fundamental é que observemos os modos de construção da violência na estrutura interna de obras juvenis, com base em elementos como narrador/focalizador e personagens, de modo que possamos estabelecer o grau de proximidade pretendido com os leitores e compreender a instauração do processo de identificação entre jovens e os seres do mundo ficcional, que oferece aos receptores a possibilidade de refletir sobre sua condição e elaborar sua imagem enquanto seres-no-mundo. Os discursos estéticos potencializam a representação da violência como experiência, na medida em que a situam em espaços e situações familiares aos seus leitores, propiciando-lhes o estabelecimento de conexões entre os fatos narrados e suas vivências (2013, p. 96).
Por conseguinte, os contos utilizados neste trabalho apresentam algumas temáticas que podem ser vistas como negativas, por envolver situações de abandono, morte, assassinato, violência etc. Contudo, essas situações serão abordadas numa perspectiva que possibilita a discussão desses temas em relação à percepção dos alunos ao se colocarem como parte ativa na interpretação dos textos, criando, assim, a possibilidade de discutir sobre esses assuntos com naturalidade e propiciando o confronto de horizontes de expectativas para ampliação dos seus conceitos e valores. Outrossim, os temas negativos estão presentes na mídia e podem fazer parte do cotidiano de alguns alunos, essa experiência é muito importante para promover a discussão em outra perspectiva proporcionada pela ficção.
O texto literário permite ao leitor se colocar em situações nas quais ele pode refletir sobre os valores além do bem e do mal, do bom e do ruim, do belo e do feio, pois, ao experienciar emoções e sentimentos em situações simuladas pela ficção, suas projeções ultrapassam os valores dicotômicos para vivenciar situações, nas quais ele pode se sentir representado ou não, ao mesmo tempo em que vive, por alguns momentos, a situação das personagens com os quais ele pode se identificar de forma confortável ou sentir aversão.
Desse modo, essas obras, como objetos estéticos, carregam em seu bojo o real transfigurado e, mesmo que nem sempre reflitam apenas o bem, o belo e o bom, expressam situações e emoções que possibilitam o reconhecimento de verdades fundamentais a todo ser humano. No ato de ler, os leitores simulam experimentar situações semelhantes às vividas pelas personagens, mas o distanciamento possibilita que eles, também sujeitos às intempéries do mundo real, reflitam sobre suas próprias experiências, rejeitando-as ou não (MARTHA, 2013, p. 103).
Outrossim, devemos levar em consideração que a própria criação dos contos não deve estar vinculada a um objetivo moralizante ou educativo, como insistimos em evidenciar ao longo dessa dissertação. Assim sendo, concordamos com Cortázar ao afirmar que
Contrariamente ao estreito critério de muitos que confundem literatura com pedagogia, literatura com ensinamento, literatura com doutrinação ideológica, um escritor revolucionário tem todo o direito de se dirigir a um leitor muito mais complexo, muito mais exigente em matéria espiritual do que imaginam os escritores e os críticos improvisados pelas circunstâncias e convencidos de que seu mundo pessoal é o único mundo existente, de que as preocupações do momento são as únicas preocupações válidas (1993, p.161)
Essas palavras de Cortázar corroboram a ideia apresentada no início desta seção sobre uma das funções da literatura de estar desobrigada em professar o que é certo ou errado, por ela ser um meio de questionar e relativizar esses conceitos. Assim, “o conto não tem intenções essenciais, não indaga nem transmite um conhecimento ou uma “mensagem”” (CORTÁZAR, 1993, p. 235). O que o conto transmite vai além de uma temática identificada no texto, pois ele acorda ou faz surgir pensamentos e sensações que nos transforma, expandindo a compreensão de nós mesmos e do mundo.
A IMPORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO DISCURSO UNIVERSAL NO TRABALHO COM O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA
A literatura antecipa sempre a vida.
Não a copia, amolda-a aos seus desígnios.
(Oscar Wilde)
Uma das propostas deste trabalho é fazer uma abordagem do ensino de literatura, na qual o estudante perceba no texto literário o discurso universal. Por tanto, é importante discorrermos sobre o significado do aspecto universal no texto literário e para isso, optamos por abordar, inicialmente, a relação entre poesia e história (universal e particular) no tratado Poética de Aristóteles no capítulo IX que diz:
(...) não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (...) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as coisas que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais sério do que a história, pois se refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nome aos seus personagens (...) (1994, p. 115-116).
Para Aristóteles o texto poético tem como característica a capacidade de representar por verossimilhança os fatos sem o compromisso de tentar relatar a realidade. O poeta, ao narrar, procura representar o que há de comum ao ser humano representado por uma personagem que, embora tenha um nome que a individualiza, possui características universais as quais podem ser reconhecidas como prováveis de suceder a qualquer outro indivíduo. Segundo F. E. Peters (1983, p.124) Aristóteles entende universal como “aquilo que pela sua natureza é capaz de ser predicado de vários objetos”.
Aristóteles também afirma que há duas causas naturais que dão origem à poesia:
Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar. (...) Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos filósofos, mas igualmente aos demais homens, com a diferença de que a estes em parte pequenina. Se a vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla aprender a identificar cada original; por exemplo, “esse fulano”; aliás, se, por acaso, a gente não o viu antes, não será como representação que dará prazer, senão pela execução, ou pelo colorido, ou por alguma outra causa semelhante (2005, p.21-22, grifos nossos).
Se unimos esses dois aspectos, poderemos entender que a literatura nos faz aprender pela imitação, ou seja, ao relacionarmos a ficção com nossas vivências, acontece o que Oscar Wilde diz na epígrafe desse capítulo “a literatura antecipa sempre a vida, não a copia, amolda-a aos seus desígnios”. Dessa forma, aprendemos porque possuímos o desejo imanente de buscar sentido por meio de ações miméticas. Quando a literatura antecipa a vida, ela nos apresenta as possibilidades de vivenciarmos os sentimentos e comportamentos humanos, os quais são apresentados através de uma simulação da realidade. Se estabelecemos conexões entre nosso horizonte de expectativas e a ficção, sentimos prazer nessa descoberta, não apenas pelo fato de já termos vivenciado algo semelhante, mas pela possibilidade de descobrir algo.
É comum nos identificarmos com personagens de alguma obra literária de que gostamos por reconhecer nelas, valores e emoções que sentimos ou gostaríamos de sentir. Também, quando percebemos a relação entre o fato narrado e uma situação vivenciada ou desejada de ser vivida. Essa sensação de identificação é o que nos torna iguais nas diferenças. Mesmo quando o contexto histórico é diferente, mesmo quando a cultura é diferente, ainda é possível estabelecer conexões que desatinam um momento de catarse. Essa fruição nos faz íntimos do texto, devido ao prazer que esta descoberta provoca. Portanto, possibilitar ao aluno reconhecer no texto literário uma situação ou sentir uma emoção que lhe desperte empatia em uma dimensão humana é fazê-lo identificar o discurso universal.
Ademais, quando Aristóteles fala sobre os elementos da tragédia, ele elenca vários elementos que a constitui, mas apresenta a mais importante das partes como sendo a disposição das ações. Para ele,
a tragédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade. Segundo o caráter as pessoas são tais e tais, mas é segundo as ações que são felizes ou o contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a fábula constituem a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que mais importa (2005, p. 25).
Isso significa que são as ações das personagens que constituem as características humanas que nos possibilitam a identificação de aspectos universais. Não é simplesmente uma qualidade descrita, mas um conjunto de qualidades constituídas nas ações que nos possibilita perceber e relacionar e atribuir significados aos sentimentos, desejos, sonhos, em síntese, ao comportamento humano.
Para Umberto Eco (2003, p.16-18) podemos fazer investimentos passionais, não só em alguns personagens que se tornam coletivamente verdadeiros, mas situações e objetos descritos nos textos literários, porque nós nos reconhecemos como seres humanos no comportamento e nas situações representadas no texto ficcional. Segundo Eco,
devemos realmente encontrar o espaço do universo onde estes personagens vivem e determinam nossos comportamentos, de forma que os elegemos como modelos de vida, nossa e de outros, e nos compreendemos muito bem quando dizemos que alguém tem complexo de Édipo, um apetite gargantuesco, um comportamento quixotesco, os ciúmes de um Otelo, uma dúvida hamletiana ou é um irremediável Dom Juan, uma perpétua. E isso em literatura, não acontece somente com os personagens, mas também com as situações e os objetos (2003, p.17).
É essa capacidade de identificação que nos permite sermos íntimos do texto e sentirmos o prazer catártico que a literatura proporciona. Segundo afirmação de Compagnon, essa é uma ideia corroborada pela filosofia moral contemporânea que “restabeleceu a legitimidade da emoção e da empatia ao princípio da leitura: o texto literário me fala de mim e dos outros, provoca minha compaixão; quando eu leio me identifico com os outros e sou afetado por seu destino; suas felicidades e seus sofrimentos são momentaneamente os meus” (2009, p.48-49). Compagnon também afirma que “a tradição teórica considera a literatura como una e própria, presença imediata, presença eterna e universal; a tradição histórica encara a obra como outro, na distância do seu tempo e seu lugar” (2009, p. 14).
Outra relação possível entre o universal e a literatura é estabelecida por Antonio Candido (2014, p.23) em O direito à Literatura, ele diz “a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”. Candido faz uma analogia entre a necessidade de criação ficcional ou poética e a necessidade de sonhar. Podemos inferir disso que ao dormirmos, deixamos nosso inconsciente se apoderar dos nossos medos, ansiedades, desejos, fantasias misturados à realidade como uma válvula de escape e vivemos situações de relaxamento ou tensão provocadas durante o sono. Quando estamos acordados a arte nos proporciona esse momento de escape como “uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CANDIDO, 2014, p.23).
O caráter universal da literatura causa um efeito de transformação no mundo do leitor, algo que pode ser notado mais nitidamente quando se é capaz de relacionar a ficção a vivências reais do comportamento humano. A percepção dessa relação imbricada no texto literário, pode deixar o leitor inquieto e reflexivo, resultando em um momento de fruição. Ao lermos um texto literário, não estamos sozinhos, estamos dialogando com a humanidade de forma metafórica. Isso nos proporciona uma ampliação do conhecimento de mundo que temos de forma complexa, pois não decodificamos apenas a mensagem explícita, mas os seus possíveis significados em contextos diferentes.
A melhor forma de finalizarmos essa tentativa de explicar o discurso universal de uma obra literária é através da capacidade de transfiguração de uma metáfora, assim, concordamos com Aristóteles ao falar sobre a linguagem na tragédia “(...) pois ser capaz de belas metáforas é ser capaz de apreender as semelhanças” (2005, p. 45). Portanto, ler uma obra literária é uma espécie de viagem a um lugar, no qual cada leitor pode construir seu roteiro e alterá-lo durante a viagem. Assim, ao final, cada um tem uma ideia particular do lugar e uma impressão pessoal da viagem que fez, trazendo ao seu mundo mais informações e experiências para seu enriquecimento sociocultural, capaz de potencializar o amadurecimento intrapessoal.
Cosson (2014, p. 27) define o bom leitor como “aquele que agencia com os textos os sentidos do mundo, compreendendo que a leitura é um concerto de muitas vozes e nunca um monólogo. Portanto, embora o ato de leitura possa ser individual, a sua compreensão depende do diálogo do leitor com as várias vozes presentes no texto de forma solidária para tecer a compreensão. Segundo o autor, “A interpretação é feita com o que somos no momento da leitura. Por isso, por mais pessoal e íntimo que esse momento interno possa parecer a cada leitor, ele continua sendo um ato social” (COSSON, 2014, p. 65) e quando nos identificamos com a situação apresentada no texto é comum compartilharmos essa experiência com outros e assim deve ser feito na sala de aula. Pois, “por meio do compartilhamento de suas interpretações, os leitores ganham consciência de que são membros de uma coletividade e de que essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura” (COSSON, 2014, p. 66).
Podemos considerar que o leitor que está disposto a debater sobre as ideias provocadas pelo texto literário que leu e a ouvir opiniões diversas da sua é considerado um leitor letrado literariamente e se está disposto a agir dessa forma, supõem-se que entendeu o discurso universal presente no texto literário.
Na sala de aula, podemos encontrar muitos alunos avessos à leitura literária ou leitores que quando leem obras literárias são literariamente iletrados, ou seja, aquele que só lê quando está ocioso e por curiosidade, tem o único propósito de ler para descobrir o que aconteceu na trama e depois disso perde o interesse pela história (LEWIS, 1961, p. 17). Nesse caso, “alguma coisa precisa estar sempre acontecendo. Seus termos favoritos para condenar uma obra são ‘lenta’, ‘enfadonha’ e expressões do tipo” (LEWIS, 1961, p.31). Esse tipo de leitor se prende mais ao desdobramento dos fatos ficcionais, atento a realidade representada, geralmente, ele faz uma leitura superficial, por isso, não percebe a relação da realidade com o caráter universal representado na ficção. Em muitos casos, esse é o tipo de leitor que não gosta da história quando essa se distância da “realidade”, por trazer aspectos do fantástico que não são tão verossímeis como gosta esse tipo de leitor. O leitor iletrado ou se interessa por uma literatura que para ele seja “realista” no sentido de representação mais fiel do seu cotidiano, como se fosse baseada em fatos reais, na qual ele possa se colocar na leitura e vivenciá-la como sua “verdade” ou até gosta das fantasias e descrições fantásticas da história, mas seu objetivo, nos dois casos, é apenas entender a trama de modo superficial, sem estabelecer relações com o mundo (aspectos humanos universais) ou sem se questionar sobre os significados que os símbolos representados por esses elementos fantásticos possam ter.
Na aula de literatura é importante desenvolver a percepção do discurso universal do texto literário para que o estudante seja um leitor mais ativo, capaz de ler com profundidade um texto literário e, ao realizar essa experiência, possa interagir com outros que tenham uma leitura diferente da sua e descobrir que a literatura proporciona essa forma de preencher as lacunas dentro do texto e revelar sempre ideias novas. Assim, a leitura não terá a finalidade única de desvendar o final da trama, mas ir além disso, pois ao desvendar o final da trama, ele vai procurar entender quais as ideias que podem ser discutidas a partir disso e voltar sempre ao texto para ampliar sua visão e ainda confrontar suas ideias com as dos colegas.
Teresa Colomer apresenta a importância de “ler com os outros” para estabelecer “uma ponte do individual ao coletivo” e assim, contribuir para estimular o hábito da leitura de textos literários nos estudantes, ao afirmar que: “Para a escola, as atividades de compartilhar são as que melhor respondem a esse antigo objetivo de “formar o gosto” a que aludimos; porque compartilhar a leitura individual com a realizada por outros é o instrumento por excelência para construir o itinerário entre a recepção individual das obras e sua valorização social” (2014, p. 144).
Esse exercício de ampliação de suas experiências de leitura e de confronto com outras leituras é de fundamental importância para um exercício de saberem que não há verdades absolutas. O aluno aprende a lidar com as diferenças de opiniões, entendendo que mesmo se ele não concordar com o ponto de vista do colega sobre um texto lido, ele deve respeitar e aprender a dialogar para fazer o outro também perceber seu ponto de vista, sem a necessidade de criar uma interpretação única, pois todas serão possíveis, desde que fundamentadas nos recursos textuais.
Esse momento de debate e troca de ideias é para Colomer uma forma de estabelecer redes horizontais, nas quais “realizar estas atividades ajuda, de imediato, a compreensão das obras e proporciona uma aprendizagem inestimável de estratégias leitoras, já que cada criança tem a oportunidade de ver a forma em que operam as outras para entende-las” (2014, p.148). No entanto, isso não significa dizer que só pelo compartilhamento é possível chegar a uma percepção do discurso universal inerente ao bom texto literário, pois se o leitor interagir ativamente, também, poderá desenvolver essa percepção. O compartilhamento de leituras é mais um recurso imprescindível para a expansão do horizonte de expectativas e quanto mais habilitado for o estudante para interagir com o texto, melhor será o debate e, consequentemente, o enriquecimento cultural e humanizador proporcionado pelas leituras.
Portanto, o professor precisa fornecer recursos para o estudante interagir ativamente no processo de leitura do texto literário, dessa forma, ele poderá sistematizar suas ideias, monitorando sua compreensão na busca de construir relações entre seu horizonte de expectativas, sua compreensão do texto e a percepção da vida ou do comportamento humano nele representado, chegando, finalmente, a compreensão do discurso universal inerente ao texto literário.
4 A ABORDAGEM DA TEORIA DA RECEPÇÃO E DO EFEITO ESTÉTICO NO ENSINO DE LITERATURA
A leitura é um afrontamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de minha palavra e a do autor.
(Maurice Merleau-Ponty)
Para compor uma forma de abordagem do texto literário que respeite a interação do texto com o leitor, pretende-se aliar neste estudo a Estética da Recepção de Hans Robert Jauss e a Teoria do Efeito Estético de Wolfgang Iser. Os dois teóricos possuem estudos que se complementam para uma abordagem mais efetiva, pois Jauss se preocupa com a forma de recepção do texto e Iser com o efeito produzido na interação autor-obra-leitor. Dessa forma, Luiz Costa Lima esclarece as duas perspectivas no prefácio “O leitor demanda d(a) literatura” à primeira edição do livro A Literatura e o Leitor: textos de estética da recepção:
(...) as posições de Jauss e Iser, não são, nem nunca foram, totalmente homólogas. Ao passo que Jauss está interessado na recepção da obra, na maneira como ela é (ou deveria ser) recebida, Iser encontra-se no efeito (Wirkung) que causa, o que vale dizer, na ponte que se estabelece entre um texto possuidor de tais propriedades — o texto literário, com sua ênfase nos vazios, dotado pois de um horizonte aberto — e o leitor. Com o primeiro, pensa-se de imediato no receptor, com o segundo, ele só se cogita mediatamente (LIMA, 2002, p. 52, grifos do autor).
Jauss (1979) concebe na sua Estética da Recepção o prazer estético como resultado no momento da leitura da descoberta do sentido do mundo pelo leitor ao confirmar ou confrontar sua percepção da realidade durante a experiência de fruição. Ele utiliza os conceitos aristotélicos de poiesis (criação), aisthesis (sensação) e katharsis (efeito catártico) para descrever a interação desses elementos no ato da leitura como contemplação desinteressada e participação experimentadora por parte do leitor:
A determinação do prazer estético como prazer de si no outro pressupõe, por conseguinte, a unidade primária do prazer cognoscente e da compreensão prazerosa, restituindo o significado, originalmente próprio ao uso alemão, de participação e apropriação. Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais do que si mesmo: experimenta‐se na apropriação de uma experiência do sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua atividade produtora, quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é passível de ser confirmado pela anuência de terceiros (JAUSS, 1979, p.77).
A partir dessa leitura, podemos relacionar a importância de propiciar ao estudante um momento solitário de interação com o texto para que ele possa, ao seu modo, encontrar a experiência individual transformadora na capacidade de ser o(s) outro(s) e ter prazer na descoberta dos sentidos do texto. Nesse sentido, Iser vai complementar a forma de percepção do leitor diante do texto ao apresentar seu papel ativo durante a leitura.
Iser (2011) explica a responsabilidade que o leitor tem ao interagir com o texto para se aproximar do autor e juntos produzir sentido, a concepção por ele apresentada é da interação como um jogo no qual existe uma performance que é a ação e o trabalho escrito construído para o leitor o qual terá um papel a ser desempenhado no jogo. Dessa forma, para o autor:
O jogo encenado no texto não se desdobra, portanto, como um espetáculo que o leitor meramente observa, mas é tanto um evento em processo como um acontecimento para o leitor, provocando seu envolvimento direto nos procedimentos e na encenação. Pois o jogo do texto pode ser cumprido individualmente por cada leitor, que, ao realizá-lo de seu modo, produz um “suplemento” individual, que considera ser o significado do texto. O significado é um “suplemento” porque prende o processo ininterrupto de transformação e é adicional ao texto, sem jamais ser autenticado por ele (ISER, 2011, p.116).
Iser chama de suplemento o significado que o leitor dá ao texto e sendo assim, podemos inferir a individualidade da significação, por esta depender do horizonte de expectativa de cada leitor em contato com o texto. Nessa percepção, é possível relacionar a postura crítica que o estudante pode ter durante a leitura ao agir ativamente para a construção de sentidos do texto.
Bordini & Aguiar (1993, p. 85-86) apresentam várias alternativas metodológicas de ensino de literatura e a que teremos como base para aliar a abordagem aqui proposta é o Método Recepcional cujos objetivos são: efetuar leituras compreensivas e críticas; ser receptivo a novos textos e à leitura de outrem; questionar as leituras efetuadas em relação a seu próprio horizonte cultural; transformar os próprios horizontes de expectativas. Sendo assim, na metodologia aqui proposta, o uso das estratégias metacognitivas de leitura serão realizadas com base nos aspectos literários do texto com o objetivo de estimular a interação do leitor para concatenar as suas partes de forma interativa, no intuito de fazer revelar o aspecto ficcional que representa o discurso universal e, dessa forma, alargar os horizontes de expectativas do leitor.
Por tanto, o ensino de leitura do texto literário leva em consideração dois momentos importantes durante o complexo processo de interpretação que começa antes mesmo do contato com o texto e não tem prazo para concluir, já que todas as vezes que relemos um texto percebemos algo novo. Rildo Cosson (2014, p.65) apresenta esses momentos dentro de um cenário de letramento literário, no qual inicialmente há o momento interno, determinado pelo encontro do leitor com a obra, nesse momento “a interpretação é feita com o que somos no momento da leitura” e posteriormente acontece o momento externo, apresentado como um ato social, por ser “a concretização, a materialização da interpretação como ato de construção de sentido em uma determinada comunidade”. Cosson, ao propor esses dois momentos como constitutivos do processo de interpretação, corrobora a proposta da abordagem do Método Recepcional no sentido de, indiretamente, anunciar a descoberta do discurso universal no texto literário como um aspecto inerente a interpretação textual por concluir que
Quando interpretamos uma obra, ou seja, quando terminamos a leitura de um livro e nos sentimos tocados pela verdade do mundo que ele nos revela, podemos conversar sobre isso com um amigo, dizer no trabalho como aquele livro nos afetou e até aconselhar a leitura dele a um colega ou guardar o mundo feito de palavras em nossa memória (COSSON 2014, p.65).
Quando o leitor se sente tocado pela “verdade do mundo” que o texto literário revela é porque ele conseguiu perceber a relação entre a verdade ficcional e a sua verdade do mundo real, mesmo que haja distanciamento cultural e histórico entre o leitor e a situação representada no texto, o reconhecimento desse aspecto revela o efeito humanizador da literatura.
Iser escreve um ensaio com o título O Jogo do Texto, no qual ele argumenta sobre a interconexão entre autor, texto e leitor como em um jogo. Essa forma de abordagem defendida por ele representa estratégias de interação durante a leitura que podem dialogar com as ações cognitivas conscientes, as quais chamamos de estratégias metacognitivas de leitura. Podemos observar essa ligação na forma como Iser descreve os três níveis do texto literário que é o espaço do jogo entre o autor e leitor:
Como o espaço entre autor e leitor, o texto literário pode ser descrito em três níveis diversos: o estrutural, o funcional, o interpretativo. Uma descrição estrutural visará mapear o espaço; a funcional procurará explicar sua meta e a interpretativa perguntar-se-á por que jogamos e por que precisamos jogar. Uma resposta à última questão só pode ser interpretativa pois que o jogo, aparentemente, é fundado em nossa constituição antropológica e pode, com efeito, nos ajudar a captar o que somos (2011, p. 109).
Quando Iser fala em mapear o texto literário, ele se refere a uma leitura na qual o leitor “converte o texto de um ato mimético em um ato performativo” (2011, p.110), ou seja, a leitura não é apenas para compreender o componente mimético da representação no texto, mas chegar ao “suplemento” ao colocar o aspecto performativo em primeiro plano. Para Iser, poderíamos comparar essa ação a um processo de tradução, no qual
o menor espaço do jogo é produzido pelo significante fraturado, que perde sua função designante de modo a poder ser usado figurativamente, por efeito da indicação ficcional do texto, segundo a qual o que é dito há de ser tomado como se pretendesse o que disse. O significante, portanto, denota algo mas, ao mesmo tempo, nega seu uso denotativo, sem que abandone o que designava na primeira instância. Se o significante significa algo e simultaneamente indica que não significa aquilo, funciona como um análogo para a figuração de algo mais que ajuda a esboçar. Se o que é denotado é transformado em análogo tanto do ocasionar como do formar uma atividade-que-mostra, então algo ausente é dotado de presença, embora aquilo que está ausente não possa ser idêntico ao análogo que favorecia ser concebido. Assim o significante fraturado – simultaneamente denotativo e figurativo – invoca uma coisa que não é pré-dada pelo texto mas engendrado por ele, que habilita o leitor a dotá-lo de uma forma tangível (ISER, 2011, p. 110, grifos do autor).
Na interação desse jogo, quando o significante passa a ter um significado que o transforma em algo diferente, sem perder a essência da sua representação, mantendo, concomitantemente, sua representação denotativa e figurativa, o leitor estabelece um tipo de ação, a qual faz transubstanciar a ficção para alcançar uma interpretação do discurso universal inerente ao texto literário. Há nesse processo, ações de ordem metacognitivas, porquanto se faz imprescindível um esforço de elucubrar sobre as pistas textuais explícitas e implícitas, relacionando-as ao conhecimento de mundo do leitor.
Com relação a interpretação do texto ficcional dada através desse processo, Iser expõe:
em termos do texto, o análogo é um “suplemento”; em termos de receptor, é a pauta que o habilita a conceber o que o texto esboça. Mas, no momento em que isso se torna concebível, o receptor tenta atribuir significação ao “suplemento” e todas as vezes que isso suceda o texto é traduzido nos termos à disposição do leitor individual, que encerra o jogo do significante fraturado ao bloqueá-lo com um significado. Se o significado do texto, no entanto, não é inerente mas é atribuído e alcançado apenas por meio do movimento do jogo, então o significado é um meta-enunciado acerca de enunciados ou mesmo uma metacomunicação acerca do que se supõe ser comunicado (isto é, uma experiência por meio do texto) (2011, p. 110-111, grifos do autor).
Percebemos, mais uma vez, que o fato de ler um texto literário envolve uma peça chave, a qual faz a interpretação ser algo sempre contingente, pois ao interagir com o jogo criado pelo autor, o leitor preenche com suas leituras de mundo as lacunas deixadas intencionalmente para a formação de sentido, ampliando o seu horizonte de expectativas. Sendo assim, o estudante precisa saber como participar do jogo, fazendo uso de estratégias metacognitivas de leitura para abrir o espaço desse jogo, assimilando a ficção e transubstanciando-a, uma vez que para Iser “o jogo, portanto, começa quando a assimilação desloca a acomodação no uso dos esquemas e quando o esquema se converte em uma projeção de maneira a incorporar o mundo em um livro e cartografá-lo de acordo com as condições humanas” (2011, p.111-112).
Os autores Duke e Pearson (2002, p.205-206) também enfatizam a natureza da compreensão leitora como um processo e abordam o ensino eficaz dela. Eles tratam do processo de forma generalizada, ou seja, referindo-se a ações de leitura para qualquer tipo de texto. Sendo assim, estabelecem um perfil do bom leitor como alguém que é: ativo durante a leitura; tem objetivo; olha o texto como um todo antes de ler; faz predições; lê seletivamente; constrói, revisa, e questiona os significados; determina o significado de palavras pelo contexto; integra o conhecimento prévio com o texto; pensa sobre os autores do texto, estilo, opinião, intenção etc.; monitora o entendimento; avalia a qualidade e o valor do texto e reage intelectualmente e emocionalmente; lê diferentes tipos de textos de formas diferentes; processa o texto não só durante a leitura, mas antes e depois também; a compreensão da leitura é satisfatória e produtiva. Percebemos assim, a existência de várias dinâmicas no contato com o texto que podem variar de acordo com o gênero lido e o propósito da leitura, tendo em vista o fato de lermos diferentes gêneros textuais com objetivos variados de acordo com as situações vivenciadas no cotidiano.
É possível, por conseguinte, estabelecermos relação entre as quatro estratégias fundamentais, as quais se referem aos tipos de jogos apresentados por Iser (2011), baseado na teoria de jogos desde Caillois
CAILLOIS, Roger. Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. México: Fondo de Cultura Económica, 1986., com algumas das ações metacognitivas de leitura propostas por Duke e Pearson (2002), pois todas as estratégias apresentadas por Iser são realizadas a partir de reflexões que podem envolver: formulação de predições; elaboração de hipóteses com base nas pistas textuais que serão testadas, avaliadas e reformuladas ao longo do processo e formulação de uma síntese semântica. A seguir apresentaremos entre parênteses, algumas ações metacognitivas relacionadas às estratégias elencadas por Iser (2011, p.112):
Agon: Acontece quando o leitor “luta” para tomar posicionamento, diante de um conflito de normas ou valores, gerado pelo texto. (Algumas ações metacognitivas envolvidas: pensar sobre o autor do texto, estilo, opinião, intenção, ideologia, etc.; monitorar o entendimento; avaliar a qualidade e o valor do texto e reagir intelectualmente e emocionalmente).
Alea: Realiza-se quando o leitor quebra suas expectativas em relação ao texto. O horizonte de expectativa e conhecimento de mundo do leitor são ativados e em seguida reconstruídos por meio da “subversão da semântica familiar”. (Algumas ações metacognitivas envolvidas: fazer predições; construir, revisar, e questionar os significados; determinar o significado de palavras pelo contexto; integrar o conhecimento prévio com o texto).
Mimicry: Ocorre quando o que quer que seja revelado pelo que o leitor entendeu é tomado como se fosse o que diz o texto, no sentido de mimetizar a ficção. (Algumas ações metacognitivas envolvidas: construir, revisar, e questionar os significados; determinar o significado de palavras pelo contexto; monitorar o entendimento).
Ilinx: Acontece quando há um constante reposicionamento do modo de ler o texto, com a finalidade de perceber a polifonia presente ao “subverter as posições assumidas no jogo”. (Algumas ações metacognitivas envolvidas: ler seletivamente; construir, revisar, e questionar os significados).
Segundo Iser,
embora essas estratégias admitam a realização de jogos diversos, é frequente que se liguem como modos mistos (...) essas estratégias podem ser mesmo invertidas, jogando contra suas intenções subjacentes. (...) Isso pode também mostrar que todas as formas de significado não passam de mecanismos de defesa destinados a conseguir o fechamento em um mundo em que reina a abertura, a falta de conclusão (2011, p. 113-114).
Para que o leitor chegue a perceber o discurso universal inerente ao texto literário, ele precisa interagir ativamente nesse jogo, compreendendo-o como “um processo de transformação das posições (...) aquilo que o texto atinge não é algo pré-dado, mas a transformação do material pré-dado que contém. (...) A transformação chega à plena fruição pela participação imaginativa do receptor nos jogos realizados, pois a transformação é apenas um meio para um fim e não um fim em si mesmo” (ISER, 2011, p.115). Dessa forma, ele é capaz de se sentir responsável pela atribuição de sentidos, ao perceber que esse discurso universal é construído através da percepção da verossimilhança presente na ficção, transubstanciando-a em uma forma mais abrangente de ver o mundo.
5 O USO DE ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS DE LEITURA NO ENSINO DE LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO
Yo no creo en caminos
pero que los hay
hay
(Paulo Leminski)
A literatura tem um valor relacional e particular, pois depende da inter-relação entre texto e leitor. Ao se processar informações sobre o uso da linguagem produzida pelo autor com uma intenção comunicativa e o horizonte de expectativa do leitor, durante essa interação, ele ativa seu conhecimento de mundo, mesmo que de forma inconsciente, para gerar sentido. Ou seja, essa interação exige ações cognitivas e quando o estudante não consegue relacionar essas informações para monitorá-las de forma consciente é necessário estimulá-lo a fazer uso de estratégias de leitura que o ajudem a monitorar e regular a compreensão.
A perspectiva teórica da leitura, como processo cognitivo, considera o processo de leitura por etapas. Se o sujeito, no momento da leitura, for direcionado com perguntas que induzam uma interpretação antecipada da temática do texto, ele pode acabar descartando a possibilidade de criar significado a partir de suas experiências intuitivas para relacionar o significado do texto às expectativas criadas por meio dos questionamentos. Percebemos assim, a implicação que pode haver na interpretação de um texto quando são acionados mecanismos que interferem na produção de sentidos durante a leitura.
Para Marisa Lajolo,
ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista (1982ab, p. 59).
Nessa perspectiva, entendemos a leitura como um processo ativo, no qual o leitor interage com o texto para atribuir-lhe sentido. Para isso, ele pode estabelecer conexões com outros textos e situações, dialogar com o autor para refletir sobre a possível intenção presente e tomar posição diante dela.
O professor deve ter consciência do seu papel de mediador, estando atento para não interferir com antecipação temática, no intuito de normatizar a interpretação, no processo de interação base (o primeiro contato) entre o estudante-leitor com o texto, pois “na leitura, o diálogo do aluno é com o texto. O professor, mera testemunha desse diálogo, é também leitor e sua leitura é uma das leituras possíveis” (GERALDI, 2008, p.92).
A compreensão da leitura se torna efetiva quando aquilo que se lê faz sentido para o leitor, tendo em vista o significado posto para a leitura e os objetivos criados para ela. Segundo João Wanderley Geraldi (2008, p.42) “a língua só tem existência no jogo que se joga na sociedade, na interlocução. E é no interior de seu funcionamento que se pode procurar estabelecer as regras de tal jogo”. Portanto, o estudante precisa desenvolver a habilidade de interagir com o texto e relacionar as informações ali contidas com seu conhecimento prévio e, a partir disso, ampliar seu horizonte de expectativas.
A interpretação de textos depende, dentre outros aspectos, das concepções (a forma de ler o mundo) do leitor e das condições sócio-históricas e culturais que marcam a sua vivência de leitura. O texto literário permite preenchimentos de lacunas pelo leitor com uma complexidade que permite tanto que haja facilidade em preencher esses espaços, como dificuldade em estabelecer conexões. Para Iser,
o aumento dessa dificuldade significa que as representações do leitor devem ser abandonadas. Nessa correção, que o texto impõe, da representação mobilizada, forma-se o horizonte de referência da situação. Esta ganha contornos, que permite ao próprio leitor corrigir suas projeções. Só assim ele se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu horizonte (1979, p. 89).
Para desenvolver essa habilidade de interação com o texto é preciso reconhecer quando há lacunas na compreensão durante a leitura e as estratégias metacognitivas de leitura são recursos para a regulação e o monitoramento da compreensão. As estratégias metacognitivas de leitura são comumente reconhecidas em ações nas quais há o pensamento sobre o pensamento. O primeiro a teorizar sobre o assunto foi John Hurley Flavell, nos seus estudos a partir das leituras que fez das obras de Piaget por volta de 1963
Flavell, J. H. (1963). The developmental psychology of Jean Piaget. New York: D.Van Nostrand. , mas foi em 1971 que Flavell lançou sua teoria com o termo de metamemória
Flavell, J. H. (1971). First discussant's comments: What is memory development the development of? Human Development, 14, 272-278. . O termo metacognição só será usado a partir de 1976 quando ele reconhece que a metacognição consiste em aspectos do monitoramento e da regulação. Ele se refere à metacognição como “um conhecimento acerca dos próprios processos cognitivos ou qualquer coisa relacionada a eles. ” (FLAVELL, 1976, p. 232).
Para relacionar o processo de leitura na perspectiva dos processos cognitivos, Angela Kleiman (2007, p. 49) estabelece as estratégias de leitura como operações regulares para abordar o texto, as quais são classificadas em estratégias cognitivas (automatismos da leitura) e metacognitivas (desautomatização do processo de leitura). Para a autora, o leitor proficiente é aquele que apresenta flexibilidade na leitura, ou seja, possui duas características básicas (ter objetivo em mente e faz escolhas baseando-se em predições) que “tornam sua leitura uma atividade consciente, reflexiva e intencional” (KLEIMAN, 2007, p.51). Ao ler um texto, o leitor aciona inconscientemente, estratégias de ordem cognitiva, por fazer associações com informações presentes na sua memória com as informações do texto, antes de fazer uma interpretação semântica do que está sendo lido.
A diferença de ler um texto informativo e outro essencialmente narrativo ficcional nesta etapa do processamento cognitivo, na qual há a relação do conhecimento de mundo com o texto, pode ter resultados diferentes na interpretação. No texto informativo, se há um direcionamento temático do que vai ser encontrado nele, antes da leitura, esse direcionamento pode facilitar a compreensão dele, pois a temática estará explícita no próprio texto, entretanto, no texto narrativo ficcional, se há um direcionamento temático, antes da leitura, automaticamente, o leitor vai procurar associar as informações prévias durante a leitura para tentar criar sentido e isso pode limitar a percepção de outras temáticas presentes na obra. Por isso, a mediação do professor deve ser cautelosa ao propor esse tipo de direcionamento, durante o primeiro contato do estudante com o texto literário.
Tendo em vista que para uma abordagem eficiente do ensino da leitura, precisamos acionar estratégias metacognitivas que não só precedem a leitura, mas permeiam sua ação e têm continuidade após ela, buscamos articular uma forma de adequá-las para a leitura do texto literário, por meio do conto como recurso, no intuito de tornar o ensino de literatura mais significativo.
5.1 ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS DE LEITURA COMO AUXÍLIO PARA INTERAÇÃO ANTES, DURANTE E APÓS A LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO
Apesar de haver uma diversidade de estratégias de leitura e a proposta deste trabalho ser a de fornecer ao estudante essas formas de interação com o texto como recursos para contribuir na sua formação como leitor literário, é necessário deixar explícito, que não há uma forma padrão para ler um determinado gênero, portanto, o ensino dessas estratégias se dará na prática da leitura em ação. As estratégias utilizadas para o reconhecimento do discurso universal do texto literário podem ser moldadas de acordo com a necessidade do leitor, por isso o professor deve estar atento para sugerir questões para reflexão antes, durante e após a leitura e assim, o estudante poderá acionar essas estratégias para regular sua compreensão quando sentir necessidade. Dessa forma, uma ação que para um leitor autônomo é feita de forma automática, o aluno em formação vai aprendendo a fazer conscientemente.
De acordo com Isabel Solé (1998, p. 80), “deve-se conseguir que os alunos se transformem em leitores ativos e autônomos, que aprendam de forma significativa as estratégias responsáveis por uma leitura eficaz e que são capazes de utilizá-las independentemente em vários contextos”. Sendo assim, quanto mais semelhante à situação de leitura natural do texto, mais significativa será a leitura, pois, se o estudante é capaz de criar seus objetivos de leitura e formular hipóteses sobre o texto, ele se sentirá motivado a ler de forma interativa. A forma como se lê um texto literário na escola deve aproximar-se da forma como é lido em outros ambientes. Dessa maneira, o professor poderá estimular um ambiente de leitura crítica e reflexiva, além de proporcionar a troca de experiências de leitura entre os alunos, com o objetivo de ampliar sua visão de mundo, ou seja, seu horizonte de expectativas.
O professor tem como responsabilidade apresentar as diferentes formas de estratégias metacognitivas de leitura, em diferentes situações de uso e os estudantes as utilizarão de acordo com suas necessidades. Os comandos dados pelo professor durante as atividades de leitura serão como cores diferentes que o estudante irá escolher para pintar a imagem que ele lerá no contato com o texto. Dessa forma, não haverá uma aula específica para ensinar como conteúdo as estratégias de leitura que o estudante deva usar em determinada situação de leitura, pois, de acordo com Ana Carolina P. Brandão,
O ensino de diferentes formas e recursos para interagir com o texto não deve ocorrer em aulas específicas para ensinar “listas de estratégias de leitura”, como se estas se tratassem de técnicas a serem definidas e exemplificadas para, mais tarde, serem devidamente aplicadas pelos alunos durante a leitura de certos textos. Ao contrário, as estratégias devem ser aprendidas em uso, em situações de leitura concretas, que, por sua vez, deveriam estar inseridas em contextos comunicativos, propostos pelo professor (2006, p. 69).
Sendo assim, é importante o professor mediar a interação do estudante com o texto para estimulá-lo a desenvolver estratégias metacognitivas de leitura, ou seja, a sua consciência sobre as ações cognitivas que envolvem o processo de leitura, com o intuito de torná-lo um leitor ativo. Nesse sentido, Solé (1998) dá uma grande contribuição ao descrever estratégias de leitura, relacionando-as com o ato de compreender, à medida que o leitor vai construindo sentido ao efetuar o esforço cognitivo que pressupõe a leitura. Para a autora, o processo é dividido em três fases: antes (antecipação do tema ou ideia principal; levantamento do conhecimento prévio sobre o assunto; expectativas em função do suporte; expectativas em função da formatação do gênero; expectativas em função do autor ou instituição responsável pela publicação), durante (confirmação, rejeição ou retificação das antecipações ou expectativas criadas antes da leitura; localização ou construção do tema ou da ideia principal; esclarecimentos de palavras desconhecidas a partir da inferência ou consulta do dicionário; Formulação de conclusões implícitas no texto; formulação de hipóteses a respeito da sequência do enredo; identificação de palavras-chave; busca de informações complementares; construção do sentido global do texto; identificação das pistas que mostram a posição do autor; relação de novas informações ao conhecimento prévio; identificação de referências a outros textos) e depois (construção da síntese semântica do texto; utilização do registro escrito para melhor compreensão; troca de impressões a respeito do texto lido; relação de informações para tirar conclusões; avaliação das informações ou opiniões emitidas no texto; avaliação crítica do texto). Devemos entender que é preciso selecionar as estratégias que melhor se encaixarão ao gênero lido e ao objetivo da leitura antes, durante e depois do processo.
Por meio de uma abordagem de ensino de perspectiva construtivista, Isabel Solé (1998, p.80-81) apresenta um ensino de estratégias de compreensão leitora com base teórica em Palincsar e Brown (1984), nas quais elas propõem um modelo de ensino recíproco. Esse modelo consiste em ensinar a utilização de quatro estratégias básicas de compreensão de textos: formular previsões, formular perguntas sobre o texto, esclarecer dúvidas e resumi-lo. Nesse processo, o professor interage com os estudantes para ajudar a manter o foco no texto e garantir o uso e aplicação das estratégias que tenta ensinar com o objetivo de fazer os estudantes assumirem a responsabilidade e o controle da compreensão leitora. Conforme exposto anteriormente, Solé expande esse modelo, dividindo-o em três etapas constituídas por ações Para Compreender... Antes da leitura; Construindo a Compreensão... Durante a leitura e Depois da Leitura: Continuar compreendendo e Aprendendo. Conforme explicitado acima, para cada etapa há estratégias de leitura específicas que dependem do objetivo de leitura e do texto a ser lido. Partindo do estudo dessas ações sugeridas pela autora, procuramos focar, dentre as várias estratégias de leitura, quais delas podem contribuir para a compreensão do gênero literário conto em seus aspectos estruturais e temáticos, para aliar a análise à compreensão de um viés pouco discutido na leitura de gêneros do domínio literário, mas que constitui intrinsecamente a essência da literariedade do texto: o discurso universal.
O professor, portanto, tem o papel inicial de estimular o debate sobre o texto, com perguntas (sobre os objetivos pessoais da leitura; motivacionais; de previsão) que farão os estudantes acionarem o conhecimento prévio ou o seu horizonte de expectativas para relacioná-lo ao texto durante a leitura. Kleiman trata da importância do conhecimento prévio do leitor para a compreensão do texto, quando diz que
a compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. (...) A ativação do conhecimento prévio é, então, essencial à compreensão, pois é o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto que lhe permite fazer as inferências necessárias para relacionar diferentes partes discretas do texto num todo coerente (2013, p. 15, 29, grifos da autora).
Ao acionar o conhecimento prévio, o leitor é capaz de criar esquemas que são “o conhecimento parcial, estruturado que temos na memória sobre assuntos, situações, eventos típicos de nossa cultura que determina as nossas expectativas sobre a ordem natural das coisas” (KLEIMAN, 2013, p. 26). Essas ações permitem ao leitor se preparar para confrontar seu horizonte de expectativas com a expectativa do autor presente no texto. O encontro desses horizontes pode ser facilmente aceito e compreendido pelo leitor, como pode ser conflituoso e causar a sensação de estranhamento, porquanto, “no ato de produção/recepção, a fusão de horizontes de expectativas se dá obrigatoriamente, uma vez que as expectativas do autor se traduzem no texto e as do leitor são a ele transferidas. O texto se torna o campo em que os dois horizontes podem identificar-se ou estranhar-se” (BORDINI & AGUIAR, 1993, p. 83).
Os objetivos e expectativas de leitura com levantamento de hipóteses também são ações metacognitivas para a compreensão do texto e pressupõem atos de reflexão sobre o próprio conhecimento. Essas estratégias ajudarão o leitor durante o processo de leitura do texto, pois servirão de base para o monitoramento da compreensão, quando ele verificar se os objetivos foram atingidos e se as expectativas foram confirmadas ou refutadas. Kleiman (2013, p.31-47) cita um trecho do ensaio de Virgínia Woolf Como se deve ler um livro? E conclui que o estabelecimento de objetivos e expectativas deve ser algo individual, particular, por depender da idiossincrasia de cada leitor, mas deve ser estimulado pelo professor. “Assim, uma atividade que pode começar como um jogo de adivinhação dirigido por um adulto pode ser, de fato, o ponto de partida para o desenvolvimento de estratégias metacognitivas do leitor” (KLEIMAN, 2013, p. 47). Solé também afirma que
com o autoquestionamento pretende-se que os alunos aprendam a formular perguntas pertinentes para o texto em questão. A previsão consiste em estabelecer hipóteses ajustadas e razoáveis sobre o que será encontrado no texto, baseando-se na interpretação que está sendo construída sobre o que já se leu e sobre a bagagem de conhecimentos e experiências do leitor (1998, p.119).
Quando o professor transfere para o aluno a oportunidade de estabelecer os objetivos e criar as expectativas, o estudante se sente motivado a ler, porque ele próprio estará fazendo a leitura ser significativa.
Embora um leitor experiente saiba realizar ações que permitem interagir com o texto para preencher lacunas de compreensão e buscar estratégias para monitorar a compreensão, alguns estudantes necessitam de modelos de ações que podem ser realizados durante a leitura para facilitar a interpretação do texto. Para Solé (1998, p.116) apesar de a leitura ser um processo interno, deve ser ensinado. Segundo a autora, “embora em nível inconsciente, à medida que lemos, prevemos, formulamos perguntas, recapitulamos a informação e a resumimos e ficamos alertas perante possível incoerência ou desajustes”. Sendo assim, os estudantes precisam ao ler, desenvolver essas habilidades, pois é habitual nos livros didáticos e em provas o estímulo de leitura linear e superficial, na qual o foco é a identificação de informações explícitas no texto, seja com relação à estrutura do gênero ou a um determinado tema abordado, em detrimento dos aspectos literários, desconsiderando as possibilidades de sentidos mais profundos do texto.
Iser escreve em O Ato da Leitura um capítulo sobre a interação entre o texto e o leitor no qual explicita o papel ativo do leitor ao encontrar no texto os lugares vazios que permitem sua participação, pois
os lugares vazios regulam a formação de representações do leitor, atividade agora empregada sob as condições estabelecidas pelo texto. (...) Os lugares vazios omitem as relações entre as perspectivas de apresentação do texto, assim incorporando o leitor ao texto para que ele mesmo coordene as perspectivas. Em outras palavras, eles fazem com que o leitor aja dentro do texto, sendo que sua atividade é ao mesmo tempo controlada pelo texto (ISER, 1996, p.107).
Segundo Iser, os lugares vazios são as lacunas que marcam os limites entre o que é explícito no texto e o não-dito que deve ser preenchido pelo leitor: “O não-dito de cenas aparentemente triviais e os lugares vazios do diálogo incentivam o leitor a ocupar as lacunas com suas projeções. Ele é levado para dentro dos acontecimentos e estimulado a imaginar o não-dito como o que é significado” (ISER, 1996, p.106). Como o estudante precisa desenvolver a habilidade de interagir nos lugares vazios e preencher o não-dito, faz-se necessário que o professor o estimule a utilizar algumas estratégias metacognitivas durante a leitura.
Solé (1998, p. 118) estabelece ações durante a leitura retomando as atividades de leitura propostas por Palinscar e Brown (1984) e acrescentando a elas outras estratégias de Cassindy Schmitt e Baumann (1989) como avaliar e fazer novas previsões e relacionar a nova informação ao conhecimento prévio. Dessa forma, Solé propõe um ensino recíproco no qual o professor e o aluno são corresponsáveis de organizar a tarefa de leitura e de envolver outros na mesma, partindo de uma leitura do texto ou de partes dele (silenciosa ou em voz alta) seguida de perguntas e comentários sobre o que foi lido e estabelecendo previsões do que ainda não foi lido, sempre recapitulando e fazendo previsões com perguntas para estabelecer hipóteses. No entanto, essas estratégias devem estar articuladas com questões que estimulem o leitor do texto literário a agir quando tem a sensação de não estar compreendendo, pois é pressuposto no momento de monitoração da compreensão desse tipo de texto
que a obra fornece pistas a serem seguidas pelo leitor, mas deixa muitos espaços em branco, em que o leitor não encontra orientação e precisa mobilizar o seu imaginário para continuar o contato. A atitude de interação tem como pré-condição o fato de que texto e leitor estão mergulhados em horizontes históricos, muitas vezes distintos e defasados, que precisam fundir-se para que a comunicação ocorra (BORDINI & AGUIAR, 1993, p. 82-83).
Para complementar a ideia de como é importante o monitoramento da compreensão pelo leitor, ao perceber lacunas de compreensão, e a partir disso, concatenar as partes do texto para inferir e construir significado, podemos nos apoiar em Iser. Para ele,
os lugares vazios indicam que não há necessidade de complemento, mas a necessidade de combinação. Pois, só quando os esquemas do texto são relacionados entre si, o objeto imaginário começa a se formar; esta operação deve ser realizada pelo leitor e possui nos lugares vazios um importante estímulo (1996, p.126).
Portanto, ao ler o texto o estudante irá interagir, encaixando seu conhecimento prévio com as pistas apresentadas pelo próprio texto e a intermediação das perguntas reflexivas do professor. Assim como Solé (1998) baseada em Paliscar & Brown (1984) e Cassindy Schmitt e Baumann (1989), Bordini & Aguiar (1993) compartilham a ideia de que o professor deve provocar situações que propiciem o questionamento do texto de forma interativa. Ao fazer isso, o professor fomenta o senso crítico e criativo do estudante para interagir ativamente com o texto e ampliar o seu horizonte de expectativa.
Jauss (1994, p. 27) explica em sua tese sobre a análise da experiência literária do leitor que
a recepção e efeito de uma obra se constituem a partir das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre a linguagem poética e a linguagem prática (1994, p.27).
Jauss ao enfatizar o efeito produzido pela obra no leitor leva em consideração o conhecimento prévio do leitor diante da obra, pois
ela não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para avaliá-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores (1994, p. 28).
Os autores citados concordam sobre a importância de a predição estar sempre relacionada à formulação de hipóteses baseadas nas pistas que o texto apresenta ao leitor para o processo da interpretação. Especialmente no texto literário, as expectativas podem ser constantemente refeitas ao longo da leitura, pois o próprio texto irá direcionando o leitor a preencher as lacunas para negociar as intenções do autor e do leitor. A posição do professor nessa relação é de proporcionar esse momento de interação e durante as colocações dos alunos, avaliar se as hipóteses estão sendo feitas com base nas pistas dadas pelo texto. Esse momento pode ser feito tanto durante como após a leitura.
Na etapa após a leitura, as questões devem ter como foco a identificação do tema e da ideia principal, através de estratégias nas quais os alunos entendam a distinção entre essas duas atividades. Solé (1998, p. 135) se baseia em Aulls (1978) para estabelecer a distinção entre tema e ideia principal. Assim, para saber o tema, deve-se responder à pergunta: De que trata o texto? E para saber a ideia principal, a pergunta a ser feita é: Qual é a ideia mais importante que o autor pretende explicar com relação ao tema? Portanto, a compreensão da ideia principal depende da compreensão do tema (entretanto, em um texto literário, refletir sobre as possíveis intenções do autor funciona apenas como mais uma pista na construção da significação do texto). Partindo disso, Solé propõe o ensino da ideia principal na sala de aula como “condição para que os alunos possam aprender a partir dos textos, para que possam realizar uma leitura crítica e autônoma” (SOLÉ 1998, p. 138). A autora cita como base de estratégias metacognitivas as regras de Brown e Day (1983) de omissão ou supressão para eliminar a informação trivial ou redundante e de substituição nas quais se integram conjuntos de fatos ou conceitos supraordenados que levam a identificar a ideia do texto. No entanto, essas propostas de Brown e Day são mais fáceis de serem aplicadas em textos predominantemente expositivos do que em textos narrativos ficcionais.
Sendo assim, propomos que as questões reflitam sobre quais aspectos presentes no texto podem ser relacionados às situações nas quais o leitor pode fazer a ligação entre os aspectos ficcionais e a realidade para se reconhecer ou identificar as atitudes típicas do ser humano, causando tanto um sentimento de concordância como de estranhamento, pois, ao reconhecer esses aspectos, o leitor irá se autoquestionar sobre que reflexão o autor do texto possibilitou ao abordar esses aspectos, os quais estão interligados com o objetivo do texto literário e, por conseguinte, possibilitarão o reconhecimento do discurso universal. Nessa perspectiva, é importante aliarmos a tarefa compartilhada proposta por Solé (1998, p.141) “– que pode ser realizada durante ou depois da leitura – onde é fundamental que haja transferência de competência e controle da atividade do professor para o aluno”. Dessa forma, durante um debate após a leitura, os alunos poderão trocar ideias sobre suas percepções particulares acerca do texto e ampliar sua percepção com relação à ideia principal dele (do ponto de vista individual), notando que quando se trata do texto literário, ela é relativa, embora todas elas convirjam para uma base comum que é o limite do jogo – as pistas textuais da obra.
Estimular o estudante a refletir sobre o texto literário e externar sua compreensão, não significa dizer que tudo o que ele disser é uma interpretação aceitável do que diz a obra, pois deve-se estabelecer um critério para não extrapolar os espaços deixados pelo autor para construção de sentido. Portanto, concordamos com Brandão (2006, p. 62)
não podemos construir qualquer significado ignorando ou distorcendo informações explícita ou implicitamente colocadas no texto. Em outras palavras, o trabalho de formação de um leitor ativo, que processa o texto e traz para o ato de leitura seus conhecimentos, experiências e esquemas prévios, deve considerar a distinção fundamental entre o que foi efetivamente escrito pelo autor e quais são as nossas expectativas, crenças e opiniões pessoais. A escola deve, portanto, viabilizar espaços para que o leitor desenvolva a capacidade de distinguir entre esses dois polos e, consequentemente, confrontá-los.
Apresentamos teóricos de áreas diferentes, tanto da teoria da Literatura como da Linguística para justificar teoricamente a nossa proposta de articular conhecimentos de perspectivas teóricas, as quais, geralmente, são estudadas separadamente e provar a proximidade entre elas, que poucas vezes é percebida. Assim, reforçamos a ideia de que ao trabalharmos com leitura do texto literário, os recursos e conceitos da psicolinguística e da teoria da literatura se complementam para uma análise mais ampla do texto e contribuem para a construção de significados, ou seja, para interpretação do texto.
6 MATERIAL E MÉTODOS
“Falta na humanidade moderna a segurança do instinto (...); a incapacidade de executar algo de perfeito é apenas a consequência: o indivíduo nunca reconquista a disciplina da escola.”
(Friedrich Nietzsche)
Este trabalho foi resultado de uma pesquisa-ação, a qual envolveu uma intervenção pedagógica junto a estudantes do 9º ano da escola estadual Santa Apolônia. A pesquisa-ação e as atividades desenvolvidas poderiam ser aplicadas em qualquer série do ensino fundamental ao ensino médio, no entanto, elas foram aplicadas em turmas do 9° ano do ensino fundamental por dois motivos. Primeiro, devido ao fato de o mestrado profissional em Letras (PROFLETRAS) ser direcionado para professores que lecionam no ensino fundamental; segundo, porque essa série é alvo das provas externas SAEPE e SAEB. Por isso, é comum a cobrança, por parte da secretaria de educação, em propor que haja nas escolas um “treinamento” dos estudantes para realizar essas provas, com o intuito de que obtenham bons resultados. Como consideramos que essas avaliações deveriam ser tradas como avaliações diagnósticas e não como parâmetro para direcionar o ensino de língua, nossa intenção foi propor atividades de leitura diferenciadas, as quais permitam ao leitor uma interação mais ativa com o texto literário.
A análise dos dados utilizou o método indutivo, pois o experimento e o teste são fundamentais para analisar fatos não antecipados, os quais compõem a questão de pesquisa apresentada neste trabalho. Portanto, recorremos à observação de várias atividades que contemplaram o ensino de estratégias metacognitivas de leitura para avaliar se os estudantes conseguiram fazer uso desses recursos para desenvolverem proficiência leitora ao ler contos. Verificando especificamente:
Se as estratégias metacognitivas de leitura puderam ajudar os alunos no reconhecimento do papel ativo do leitor para interação com o texto literário e assim chegar a percepção do discurso universal inerente a ele. Em consequência disso, constatar se a mediação do professor na interação do estudante com o texto literário pôde contribuir na sua formação como um leitor crítico, capaz de refletir sobre o texto, confrontando seu conhecimento de mundo com as novas visões de mundo oferecidos pelo reconhecimento do discurso universal no texto literário ao relacionar a ficção ao mundo em que ele vive.
De acordo com Baldissera (2001, p.6)
A pesquisa-ação exige uma estrutura de relação entre os pesquisadores e pessoas envolvidas no estudo da realidade do tipo participativo/coletivo. A participação dos pesquisadores é explicitada dentro do processo do “conhecer” com os “cuidados” necessários para que haja reciprocidade/complementariedade por parte das pessoas e grupos implicados, que têm algo a “dizer e a fazer”. Não se trata de um simples levantamento de dados.
Nesse sentido, para alcançarmos o objetivo proposto por esta pesquisa, articulamos o conhecimento teórico e a ação a partir da observação dos dados fornecidos em cada atividade. As atividades desenvolvidas levaram em consideração a inter-relação do uso de questões que ativassem estratégias metacognitivas de leitura para estimular o estudante a interagir com o texto e perceber no texto literário o discurso universal dentro de uma abordagem que une a Teoria da Estética da Recepção e do Efeito Estético.
Ao realizarmos uma pesquisa-ação, fazemos uso de estratégias para que o professor-pesquisador possa utilizar suas pesquisas para aprimorar sua metodologia de ensino e, por conseguinte, o aprendizado dos seus alunos. Sendo assim, seguimos um ciclo de ação e investigação que segundo David Tripp (2005) consiste em: planejar uma melhora da prática agir para implantar a melhora planejada monitorar e descrever os efeitos da ação avaliar os resultados da ação e retomar o planejamento, pois o professor pesquisador precisa estar sempre analisando a sua prática de forma cíclica, dentro dessas ações. Entre as modalidades de pesquisa ação estabelecidas por Tripp, a que desenvolvemos foi uma pesquisa-ação prática, pois “o pesquisador tem em mira contribuir para o desenvolvimento das crianças, o que significa que serão feitas mudanças para melhorar a aprendizagem e a autoestima de seus alunos, para aumentar interesse, autonomia ou cooperação” (TRIPP, 2005, p.457).
Participaram da pesquisa trinta estudantes, com idade entre 13 e 17 anos, os quais foram voluntários
O projeto foi submetido ao comitê de ética e os pareceres (de aprovação para início do projeto e o parecer final de conclusão da pesquisa) estão no anexo D, páginas 168 – 172.. Durante as atividades de leitura foram utilizados como recursos: guias de leitura, questionário de compreensão referentes a cada conto com respostas subjetivas, questionários de avaliação de uso de estratégias metacognitivas de leitura com respostas objetivas. Esses materiais serviram para verificar se as atividades aplicadas tiveram ou não efeitos na melhoria do desempenho dos alunos ao ler e compreender os contos. Dessa forma, foi possível se obter dados que forneceram informações sobre o efeito do uso de estratégias metacognitivas de leitura para compreensão dos textos e sobre a utilização e consciência dessas estratégias. Utilizamos uma abordagem interativa, desenvolvendo questões direcionadas para atingir os objetivos específicos desta pesquisa. Dessa forma, os estudantes receberam as atividades pedagógicas elaboradas no intuito de melhorar o desempenho na leitura do texto literário ao reconhecer na leitura dos contos não apenas características formais do gênero, mas perceber o discurso universal a ele inerente.
Para Tripp (2005, p. 453), toda pesquisa-ação começa com um reconhecimento que é “uma análise situacional que produz ampla visão do contexto da pesquisa-ação, práticas atuais, dos participantes e envolvidos”, portanto se fez necessário planejar como fazer o monitoramento da situação atual. Dessa forma, em um primeiro momento, optamos por elaborar um questionário sobre o conto (“O Crime do Professor de Matemática”, de Clarice Lispector), com perguntas objetivas, para identificar as práticas de leitura corriqueiras dos estudantes ao ler o gênero conto e verificar se, durante essa leitura eles utilizam estratégias de leitura que contribuam para identificação do discurso universal presente no texto, sem guias de leitura, apenas com a leitura silenciosa. Em seguida, eles responderam a outro questionário de compreensão do conto. Depois disso, houve a exposição dos alunos a respeito das suas impressões sobre o texto e a retomada das questões presentes nos questionários para discutir sobre os diversos aspectos do texto.
O segundo momento de uma pesquisa ação segundo Tripp (2005) é agir para implementar a melhora desejada. Sendo assim, a atividade com o segundo conto (“O Conto se Apresenta”, de Moacyr Scliar) foi realizada, primeiramente, com leitura silenciosa. Perguntas que acionem estratégias metacognitivas de leitura foram direcionadas antes, durante e após a leitura do conto, com o uso do guia de leitura
Ver apêndice, páginas 140 -144., para apresentar essa nova abordagem de leitura do conto, ensinando-os a utilizar essas estratégias através da ação prática. Depois, eu, como professora, li com os estudantes o conto e, em seguida, eles respondem ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura para, depois, responderem ao questionário de compreensão do conto.
Como foi colocado anteriormente, o professor tem um papel de mediador para estimular o estudante a desenvolver estratégias metacognitivas de leitura que o auxiliam na interpretação do texto, portanto, ações antes, durante e após a leitura devem ser feitas para desenvolver no estudante as habilidades que, com o tempo, se tornarão automáticas no leitor autônomo do texto literário. Os guias de leitura são, portanto, meios de fazer o estudante organizar as ideias e sistematizá-las para facilitar a compreensão do texto. Não serão fórmulas de ensino de leitura ou esquemas fixos de abordagem do texto, porque os guias são moldáveis de acordo com o texto lido e as possibilidades de questionamentos que podem ser feitas de forma personalizada pelo próprio aluno. No entanto, os guias trazem espaços que possibilitam questões de antecipação, previsão e inferência para estabelecer articulação entre conhecimento prévio e os aspectos peculiares ao texto literário, no caso, utilizado para as exemplificações dessa pesquisa, o gênero conto.
Seguindo o ciclo de ação e investigação de Tripp (2005) o terceiro momento é de monitorar e descrever os efeitos da ação. Por isso, a atividade nessa etapa utilizou outro conto (“O Gato Preto”, de Edgar Alan Poe) e os estudantes fizeram uma leitura silenciosa do texto com o uso do guia de leitura, depois eles ouviram o áudio com a gravação do texto (como o texto não é tão curto como os outros, poderia ser cansativo ler tudo novamente de forma silenciosa, então, para prender a atenção do estudante, optamos por colocar um áudio), seguido do preenchimento do questionário avaliativo do uso de estratégias metacognitivas de leitura e, depois, do questionário de compreensão do texto
Ver apêndice, páginas 145-146. Após as atividades com os questionários, houve uma livre exposição oral dos alunos sobre as impressões do texto e a retomada das questões dos questionários para debate sobre os vários aspectos do conto.
Com a finalidade de obtermos uma melhor compreensão da abordagem de ensino adotada, os resultados foram descritos através da análise dos questionários de interpretação dos contos, do preenchimento dos guias de leitura e dos questionários avaliativos referentes aos usos de estratégias metacognitivas de leitura. Esses resultados foram tratados de forma qualitativa, concretizando-se por meio de uma análise crítica dos dados fornecidos por esses instrumentos de análise.
A metodologia de pesquisa aplicada se caracteriza, por tanto, como qualitativa, pois, “tem o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como instrumento fundamental” (GODOY, 1995, p. 62), além de ter um caráter descritivo, já que buscamos o entendimento do fenômeno na sua complexidade, por meio de uma visão ampla do processo de leitura e o significado que daremos aos dados coletados e a abordagem dos textos literários são a nossa preocupação essencial. Nossa metodologia, portanto, recorre à coleta de dados presentes nas respostas subjetivas dadas pelos estudantes nos questionários de interpretação referentes aos contos, inicialmente. Posteriormente, houve a compilação de dados dos questionários de avaliação do uso de estratégias metacognitivas (com respostas objetivas), o qual foi utilizado para cruzamento de informações com as respostas dadas pelos alunos no questionário de interpretação sem o auxílio dos guias de leitura na etapa inicial e com o auxílio do guia de leitura nas etapas seguintes.
7 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Existe maior dificuldade em interpretar as
interpretações do que em interpretar as coisas.
(Montaigne)
A análise das atividades é apresentada em três fases (diagnóstica; ensino de leitura; teste/avaliação da metodologia), sendo cada uma delas dividida em dois aspectos: (1) uso de estratégias metacognitivas de leitura para interação do leitor ativo antes, durante e após a leitura do conto, com a finalidade de contribuir para a formulação de uma síntese semântica do texto e (2) uso de estratégias metacognitivas de leitura após a leitura do conto para a percepção do discurso universal, com a finalidade de contribuir para a descoberta dos possíveis significados na relação entre os aspectos ficcionais e a realidade extratextual.
FASE I – DIAGNÓSTICA: Leitura e interpretação do conto “O crime do professor de matemática”, de Clarice Lispector. Participaram desta etapa 30 estudantes.
Com o objetivo de avaliar o uso de estratégias metacognitivas de leitura para interação do leitor ativo antes, durante e após a leitura do conto, apresentamos, a seguir, na tabela 1, o resultado geral do Questionário Avaliativo de uso de Estratégias Metacognitivas de Leitura (QA1) e analisamos, em seguida, algumas das respostas dadas pelos alunos no Questionário de Compreensão do Conto (QC1) nos quatro primeiros quesitos, pois as respostas dadas a essas perguntas nos permitem diagnosticar se houve interação ativa do leitor durante o processo de leitura para a formulação de uma síntese semântica do texto. Devemos ressaltar que os questionários avaliativos do uso de estratégias metacognitivas de leitura não fornecem resultados suficientes para diagnosticar, com exatidão, se o estudante, ao responder “sim” ou “não”, utilizou determinada estratégia metacognitiva de leitura, pois as respostas apenas refletem o que ele pensa que fez, ou seja, se ele acha que praticou determinada ação de leitura. Para chegar mais próximo a um resultado que comprove se ele realizou determinada ação, é necessário fazer um cruzamento de dados com os questionários de compreensão. Mesmo assim, não podemos ter um resultado exato, apenas uma tentativa de verificação do uso dessas estratégias, pois compreendemos as limitações desses instrumentos de coleta de dados.
A seguir, apresentamos o questionário avaliativo do uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase I (QA1), seguido da tabela com os resultados quantitativos referentes às respostas objetivas para facilitar a compreensão da compilação dos dados.
Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QA1)
Com base na leitura do conto responda:
Ao ler o título, você criou expectativas sobre qual tipo de crime a personagem teria cometido?
( ) sim ( ) não
Ao ler a primeira parte do conto, você imaginou o que a personagem estaria enterrando?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você refletiu sobre o porquê a personagem estava enterrando um cachorro?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você parou para reler alguma parte?
( ) sim ( ) não
Você compreendeu por que a personagem estava enterrando o cachorro?
( ) sim ( ) não
Você conseguiu entender o tema abordado no conto?
( ) sim ( ) não
Você conseguiu estabelecer relação entre o título do conto e o enredo:
( ) sim ( ) não
A leitura do conto fez você refletir sobre o comportamento humano?
( ) sim ( ) não
Tabela com base no questionário QA1
Questão
SIM
NÃO
Resultado
A
25
05
83,3% afirmam ter criado expectativas sobre qual tipo de crime a personagem teria cometido.
B
14
16
46,6% afirmam ter imaginado o que a personagem estaria enterrando ao ler a primeira parte do conto.
C
19
11
63,3% afirmam ter refletido sobre o porquê a personagem estaria enterrando um cachorro.
D
17
13
56,6% afirmam ter parado para reler alguma parte do texto.
E
21
09
70% afirmam ter compreendido por que a personagem estaria enterrando o cachorro.
F
13
17
43,3% afirmam ter entendido o tema abordado no conto.
G
14
16
46,6% afirmam ter conseguido estabelecer relação entre o título do conto e o enredo.
H
25
05
83,3% afirmam que a leitura do conto fez refletir sobre o comportamento humano.
Tabela 1- Resultado quantitativo das respostas dadas ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase I (diagnóstica)
Fonte: a autora
Esse quadro aponta para um resultado que reflete o pouco uso de estratégias metacognitivas no processo de leitura do conto por parte dos estudantes. Embora haja um resultado, aparentemente positivo, referente às questões QA1-E e QA1-H, ao cruzarmos com as respostas dadas aos questionários de interpretação, observamos que a maioria dos estudantes incorre em uma suposta ausência de prática metacognitiva (reflexão sobre o que pensam), pois acreditam que conseguiram interpretar o texto e estabelecer relações entre as partes do texto, mas não conseguiram por, no mínimo, duas razões: ou eles não refletiram sobre suas hipóteses, por meio de um automonitoramento da compreensão ou eles não souberam como expressar suas interpretações, por meio da linguagem escrita, e nesse caso, há, no mínimo, outras três causas interligadas: 1. Falta de domínio na estruturação da linguagem escrita, por carência de conhecimento do uso da linguagem ao articular expressões, vocabulário limitado, por exemplo. 2. Por não ter compreendido as questões. 3. Por não estar disposto (motivado) para ler com atenção e, consequentemente, indisposto (desmotivado) para escrever.
A falta do uso de estratégias metacognitivas de leitura pode resultar em uma percepção falsa da compreensão do texto, ou seja, quando os alunos criam suas hipóteses e não as monitoram ao longo da leitura, confrontando com as informações implícitas e explícitas, isso pode resultar na formulação de conclusões não autorizadas pelo texto. Por isso há esse resultado que contrasta com as respostas dadas pelos alunos no QC1, como veremos a seguir:
(QC1-1): Qual o provável motivo de a autora ter caracterizado a personagem principal como professor de matemática?
Dos trinta, apenas onze estudantes expressaram as suas opiniões sobre o provável motivo de a escolha da personagem principal ser um professor de matemática, mas algumas respostas não foram claras, por exemplo, o Aluno 21 responde: “Ela quis causar um certo impacto por ser um certo professor, por ele até causar um crime, isso é o que eu entendi.”
Isso indica que, provavelmente, não houve reflexão sobre a compreensão, ou seja, eles não estariam utilizando estratégias metacognitivas de inferência e leitura global do texto.
(QC1-2): Para a personagem, qual foi o crime que ele cometeu? Explique.
Vinte e oito estudantes responderam, de acordo com as suas opiniões, qual foi o crime cometido do ponto de vista da personagem, porém dentre esses, alguns extrapolaram a leitura do texto, com respostas que não podem ser confirmadas no enredo, exemplos:
Aluno 20: “Enterrar o cachorro vivo.”
Aluno 21: “A morte do cachorro. Ele acha que a morte do cachorro foi culpa dele, por ele ter abandonado o seu outro cachorro.”
Dezessete estudantes demonstraram ter conseguido fazer inferências com base nas informações presentes no texto. Mesmo assim, dentre esses, alguns não conseguiram identificar o que, para a personagem, teria sido o seu crime, exemplo:
Aluno 16: “Enterrar um cachorro inocente. Não sei explicar.”
Um estudante respondeu de forma evasiva, exemplo:
Aluno 25: “Porque mesmo com o cachorro morto ele se sentiu culpado.”
Portanto, onze estudantes demonstraram ter conseguido fazer inferências para perceber qual foi o crime cometido no ponto de vista da personagem, mas nem todos explicaram qual seria o motivo, exemplos:
Aluno 14: “Em ter jogado o cachorro tão bonzinho com desculpas esfarrapadas.”
Aluno 19: “Para ele o crime foi ter abandonado o cachorro, mas também, achava que não podia ser punido por isso.”
Aluno 29: “O abandono do seu cachorro. E por isso, ele sentiu um sentimento de culpa.”
A maioria dos estudantes demonstrou ter conseguido fazer uso das estratégias metacognitivas de leitura para responder à questão. Notamos isso, ao compararmos com as respostas dadas às perguntas do questionário avaliativo de estratégias metacognitivas de leitura (QA1-C e QA1-E), pois podemos perceber que uma parte dos alunos, que não extrapolaram as informações presentes no enredo do texto, refletiram sobre o porquê a personagem estava enterrando um cachorro (QA1-C), mas não conseguiram compreender o motivo dessa ação. Sendo assim, dezessete alunos demonstraram ter utilizado a estratégia de predição para fazer inferência com expectativa criada com base em informações implícitas, mas apenas onze demonstraram ter feito uma autoavaliação das inferências para formular suas conclusões implícitas no texto, com base nas informações explícitas na fala da própria personagem.
Se compararmos o resultado quantitativo das respostas afirmativas nas questões QA1-C e QA1-E com essa segunda pergunta (nove estudantes responderam com base no enredo qual foi o crime), percebemos que há um grupo de estudantes que pensa ter refletido e compreendido o crime cometido pela personagem, mas não conseguiu responder de forma coerente as suas suposições. Portanto, esse grupo, também, faz parte dos que relataram não ter refletido ou compreendido o que para a personagem teria sido seu crime, totalizando, aproximadamente, dezessete alunos (dentre os que responderam) que demonstram não ter utilizado as estratégias metacognitivas de predição e autoavaliação para compreender o conto.
(QC1-3): Qual a relação entre o cachorro enterrado e o cachorro da personagem?
Dezesseis estudantes responderam que não compreenderam a relação entre o cachorro enterrado e o cachorro da personagem. Porém, dentre esses, um estudante respondeu da seguinte forma: Aluno 14 “Nenhuma, ele só enterra o cachorro pra tentar se sentir melhor.”
Quatorze estudantes responderam suas impressões sobre a relação entre os cachorros presentes no conto, no entanto, doze estudantes extrapolaram a leitura do texto ou deram respostas evasivas ou insuficientes para explicar a relação entre os cachorros, exemplos:
Aluno 08: “Os dois eram idênticos.”
Aluno 09: “Os dois cachorros sofreram.”
Aluno 18: “Os dois foram enterrados.”
Aluno 22: “Que todos dois estavam só.”
Portanto, dois estudantes demonstraram ter utilizado estratégias metacognitivas de leitura para fazer inferências e compreender a relação entre os cachorros, exemplos:
Aluno 17: “O cachorro enterrado lembrava o cachorro da personagem, porque ambos estavam na rua e provavelmente o cachorro enterrado também foi abandonado.”
Aluno 19: “Que o cachorro enterrado foi uma forma de compensar o abandono do cachorro da personagem.”
Para responder a essa questão, os estudantes precisariam utilizar estratégias de inferência sobre informações explícitas e implícitas no texto, além de fazer uma autoavaliação da compreensão relacionando a formulação de conclusões sobre informações implícitas e autoavaliação com base na síntese semântica do texto que revela a compreensão do tema central (para cada aluno, de forma individual).
Se relacionarmos o resultado quantitativo das respostas afirmativas das questões QA1-E e QA1-F com essa terceira questão QC1-3, podemos perceber que dos estudantes que consideravam ter compreendido por que a personagem enterrou um cachorro, apenas dois demonstram ter conseguido estabelecer essa relação entre os cachorros de forma mais clara. Portanto, o grupo entre vinte e um e treze estudantes que responderam afirmativamente às questões QA1-E e QA1-F apresentam um subgrupo dos que, apesar de demonstrarem ter feito inferências sobre os fatos narrados, podem não ter monitorado a compreensão desses fatos para inferir sentidos que podem revelar a construção da síntese semântica do conto.
(QC1-4): De que trata o texto?
Três estudantes responderam que não compreenderam de que trata o texto.
Vinte e sete estudantes responderam sobre qual seria o assunto tratado no texto. Dentre esses, 04 estudantes extrapolaram a leitura do texto, exemplo:
Aluno 21: “Trata de um professor de matemática que se senti culpado pela morte de um cachorro. ”
Onze estudantes relataram com aspectos superficiais do texto, ou seja, eles fizeram uma leitura apenas das situações narradas sem abstrair os sentidos imbricados no conto, exemplo:
Aluno 26: “De um homem que abandonou seu cachorro, achou um morto na rua e resolveu enterrá-lo. ”
No entanto, nesse grupo estão cinco estudantes que conseguiram relatar adicionando uma reflexão sobre determinado aspecto, exemplos:
Aluno 01: “De um homem que se sente culpado por ter abandonado um cão e resolve enterrar outro cão como se fosse o verdadeiro para se livrar desse peso, para ele enterrando aquele cão desconhecido foi como enterrar um passado para ele.”
Aluno 19: “De um “crime” cometido pela personagem, do enterro do cão e da relação que a personagem tinha com o seu cão.”
Onze estudantes responderam de forma lacônica e/ou evasiva, sem esclarecer o tema do conto, exemplos:
Aluno 16: “De um enterro de um cachorro.”
Aluno 20: “Se trata de um crime que não é exatamente um crime.”
Portanto, apenas, dois estudantes responderam a essa questão, demonstrando fazer uso de inferências para abstrair os sentidos do enredo, e assim, refletir sobre o comportamento humano, mas não estabeleceram com clareza o tema do conto, um deles, ainda se referiu a uma situação narrada no conto:
Aluno 17: “O texto trata de pessoas que abandonam animais, trata de um texto reflexivo, porque faz refletir sobre as ações humanas. ”
E outro ainda se referiu às ações humanas sem especificar:
Aluno 14: “Acho que é um texto de reflexão e serve para vermos nossas ações.”
A maioria dos estudantes respondeu demonstrando ter utilizado estratégias metacognitivas de leitura para fazer inferências, no entanto, apesar de serem apresentadas nas respostas as reflexões sobre essas inferências para monitorar a compreensão, nenhum expressou, com clareza, sua síntese semântica do conto. Mesmo assim, a maioria das respostas pode ser considerada como aceitáveis, pois elas expressam assuntos explicitamente abordados no enredo.
Não é simples analisar respostas de compreensão dessa natureza. Embora os estudantes tenham dado respostas evasivas ou apoiadas em uma síntese dos aspectos superficiais do enredo, eles são capazes de compreender um tema entrelaçado na narrativa se forem estimulados a pensar sobre o que essas ações revelam sobre o comportamento humano.
Se confrontarmos o resultado quantitativo das respostas afirmativas da questão QA1-F com as respostas da questão QC1-4, perceberemos que 15 estudantes afirmam ter compreendido o tema, mas na verdade não souberam explicitar isso, provavelmente, por terem feito uma leitura superficial ou que extrapola os sentidos do texto, sem elaborar uma síntese semântica do conto.
Com o objetivo de tentar avaliar o uso de estratégias metacognitivas de leitura após a leitura do conto para a percepção do discurso universal, analisaremos as questões QC1-5 e QC1-6 e relacionaremos com o resultado do QA1-H.
Embora as estratégias de construção da síntese semântica do texto, utilização do registro escrito para melhor compreensão, relação de informações para tirar conclusões, avaliação de informações do texto, avaliação crítica do texto, todas essas estratégias sejam classificadas como estratégias feitas após a leitura do conto, elas estão interligadas às estratégias usadas antes e durante a leitura, pois, para que essas ocorram, é necessário que as outras estratégias tenham sido realizadas adequadamente.
De forma concomitante ao uso dessas estratégias após a leitura, é importante o estudante perceber o discurso universal presente no texto. Para isso, ele precisa elucubrar sobre a ficção para perceber, através do efeito que a obra causou nele, a relação com a vida, com o comportamento humano. Por falta de nomenclatura para especificar essa ação, a qual consideramos ser de ordem metacognitiva, pois não é apenas o esforço cognitivo de refletir sobre algo, mas, conscientemente, meditar com esforço, realizar uma reflexão profunda para estabelecer associações entre sua leitura particular do texto e a apreensão da verossimilhança intrínseca, decidimos chamar essa estratégia de transubstanciação da ficção. Consideramos essa estratégia fundamental para a compreensão da função do texto literário, pois essa estratégia permite ao estudante refletir sobre os aspectos do comportamento humano representados na ficção, ou seja, o discurso universal. Os dados do QA1-H revelam que a maioria dos estudantes afirma refletir sobre o comportamento humano a partir da ficção presente no texto, porém esses estudantes não conseguem expressar essa relação ao responderem as questões QC1-5 e QC1-6, conforme analisamos a seguir:
(QC1-5): É possível estabelecer relação entre ficção e a realidade? Explique.
Quinze estudantes responderam que não compreenderam a relação entre ficção e realidade, um deles respondeu da seguinte forma: Aluno 20 “Não. Eu não me identifiquei”.
Quinze estudantes afirmam ter estabelecido algum tipo de relação entre a ficção e a realidade, entre esses, um estudante extrapolou a leitura do texto, com afirmação que não pode ser confirmada no enredo: Aluno 18 “Sim, por humanos terem sentimentos por seus colegas.”
Seis estudantes responderam de forma evasiva ou não explicaram sua resposta, exemplos:
Aluno 14: “Não sei, pode-se dizer que sim, pois eu entendi o que ele quis dizer.”
Aluno 25: “Sim, porque algumas atitudes do texto vão para realidade.”
Três estudantes relataram com aspectos superficiais do texto, ou seja, eles demonstram ter feito apenas uma leitura das situações narradas, sem abstrair os sentidos imbricados no conto, exemplos:
Aluno 11: “Sim. Muitas atitudes que o personagem no texto teve, muitas pessoas têm na vida real.”
Aluno 17: “Sim, porque muitas pessoas adotam um animal e depois o abandona na rua.”
Aluno 29: “Sim, pois no mundo real há várias pessoas como o professor abandonando cachorros.”
Por conseguinte, cinco estudantes responderam demonstrando fazer uso de inferências para abstrair a relação entre a ficção e a realidade com base no conto, mesmo que a linguagem utilizada para expressar suas ideias não esteja articulada com clareza e objetividade, exemplos:
Aluno 01: “Sim, porque muitas vezes as pessoas cometem erros tentando enterrar algo de errado ou culpa que fez no passado, mas devemos reconhecer o que fez de errado.”
Aluno 09: “Sim. O tema traz algumas relações para a realidade como o fato das pessoas fazerem coisas que depois irão se arrepender.”
Ao cotejarmos a questão QA1-H com a questão QC1-5 teremos um grupo de vinte estudantes que demonstram ter feito inferências sobre a ficção, mas podem não ter conseguido refletir sobre elas para reconhecer no texto literário seu discurso universal. Entre esse grupo estão os que demonstraram ter compreendido no texto uma “lição de moral” com base nas ações da personagem, realizando uma substancialização da ficção, ou seja, eles até podem ter compreendido o discurso universal do texto literário, mas não souberam como expressar, pois, enfatizaram uma ação da narração como representação da realidade imbricada de “valores” pessoais. Chamamos de substancialização da ficção a ação de concretizar a ficção ao entender uma ação específica da situação narrada como representante da realidade, sem demonstrar o reconhecimento da universalidade da ação representada no texto ficcional. No caso, devemos salientar que não é certo, nem errado reconhecermos ou apreendermos valores morais ao lermos uma obra literária, pois trata-se de uma ação natural de enxergamos o mundo com um olhar que reflete nossas ideologias, nossos valores arraigados às nossas idiossincrasias. Ademais, como seres humanos, temos a capacidade cognitiva de reconstruirmos nossas ideologias e reavaliarmos constantemente nossos valores. Sendo assim, precisamos fazer um esforço cognitivo de nos questionarmos sobre nossos posicionamentos morais e ideológicos, por isso, defendemos a necessidade de elucubrar sobre a ficção para uma apreensão do discurso universal que, na nossa opinião, seria uma ação de transubstanciar, ou seja, ir além (trans) da substância (substatia), assim o leitor transforma a ficção em uma apreensão do discurso universal presente no texto literário, através das sensações provocadas pelos momentos de fruição e catarse durante a leitura.
(QC1-6): A leitura desse conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano?
Doze estudantes responderam que não conseguiram refletir sobre aspectos do comportamento humano.
Dezoito estudantes responderam que a leitura do conto despertou neles alguma reflexão sobre o comportamento humano. Desses, três responderam sobre suas reflexões, fazendo referências diretas às cenas narradas no conto, exemplos:
Aluno 20: “Sim, arrependimento. Eu acho que ele se arrependeu de ter enterrado o cachorro.”
Aluno 21: “Sim, porque aquele professor fez uma coisa que ninguém naquela cidade fez por esse cachorro.”
Esses estudantes fizeram referência direta ao enredo e isso significa que eles se colocaram no lugar da personagem, mas não conseguiram expressar o efeito que essa ação provoca.
Ainda dentro desse grupo, um estudante respondeu dando ênfase a um dos aspectos marcantes do conto que é a transposição das atitudes humanas e animalescas (o cachorro ganha humanidade e o homem uma atitude animalesca):
Aluno 16: “Sim, porque tem pessoas que parecem bichos, porque não têm amor aos animais inocentes e fazem muita maldade com os animais.”
No caso do Aluno 16, houve uma reflexão explícita sobre as divagações da personagem: “De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem”, “Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa”, esse estudante demonstrou ter conseguido inferir um dos aspectos temáticos do conto, mesmo tendo expressado de forma indireta o efeito que esse aspecto causou nele.
Dois estudantes apresentaram em suas respostas uma reflexão baseada numa conduta moral:
Aluno 17: “Sim. Não devemos abandonar animais inocentes, porque eles não fazem além de amar as pessoas.”
Aluno 29: “Sim, pois eu refleti sobre o fato de abandonar cachorro, isso é errado.”
Esses estudantes fizeram suas reflexões como uma forma de ver “a moral da história”. Essas respostas revelam uma tentativa de entender uma lição admonitória, através da apreensão mimética das ações narradas. Essa forma de interpretação é válida, pois estabelece uma interpretação com um vínculo possível entre a realidade e a ficção, já que para Iser “o texto possui uma estrutura de apelo [appelstruktur]. Por causa desta, o leitor converte-se numa peça essencial da obra, que só pode ser compreendida enquanto uma modalidade de comunicação” (ZILBERMAN, 1989, p.15). No entanto, eles precisam ir além dessa forma de expressão que se limita a encontrar “uma lição de moral” e tentar refletir sobre o que essa “moral da história” provoca neles, colocando em suas respostas suas percepções críticas ao ponderar sobre esses “valores”, pois o texto literário não deve ser entendido como um código de condutas ou valores com pretensão educativa. Como já mencionamos, anteriormente, consideramos que essa ação é uma estratégia metacognitiva, por se tratar de um esforço cognitivo consciente para estabelecer relações entre a ficção e a realidade extratextual, baseando-se em supostos valores éticos e morais presentes na obra que refletem as ideologias e valores do leitor. Como já foi exposto, essa é a ação que nós designamos de substancialização da ficção, porquanto há uma apreensão da ficção traduzida para realidade extratextual como representação da realidade. Os alunos, nesse caso, concretizaram as ações representadas na ficção de forma a entender uma situação específica da narração como representante da realidade, capaz de educar ou ensinar valores éticos e morais, sem perceber ou sem revelar a universalidade das ações humanas representada na ficção (o discurso universal).
Três estudantes responderam de forma lacônica e evasiva, sem deixar claro sua reflexão, exemplo:
Aluno 24: “Sim, mas eu não sei explicar.”
Oito estudantes responderam fazendo referência direta ao efeito da leitura da obra sobre si, exemplos:
Aluno 09: “Sim, às vezes fazemos coisas e não sabemos que depois de um tempo, vamos querer voltar atrás e nos redimir. Mas, nem sempre conseguimos.”
Aluno 27: “Sim, sobre o sentimento de saudades.”
Compondo esse grupo, três estudantes não se colocaram diretamente na resposta, mas fizeram reflexão sobre o ser humano de um modo geral, exemplo:
Aluno 14: “Sim, as pessoas são meio malvadas, deixamos as pessoas depender e precisar de nós e no final traímos a confiança.”
Aluno 19: “Sim, as pessoas fazem coisas boas não por vontade e sim para ganhar algo em troca ou amenizarem algum erro.”
Aluno 28: “Sim, eu compreendi que os humanos ficam com dúvida com o que vai fazer.”
Esses estudantes responderam fazendo referência direta ao efeito do conto neles, numa ação de alteridade, pois nesses casos, segundo Iser
(...) the text gives him the illusion that he can judge the proceedings in accordance with his own point of view. To do this, he has only to be placed in a position that will provoke him to pass judgments, and the less loaded in advance these judgments are by the text, the greater will be the esthetic effect (1987, p.118)
(...) o texto dá [ao leitor] a ilusão que ele pode julgar os processos em conformidade com seu próprio ponto de vista. Para fazer isso, ele tem que se colocar numa situação que vai provocá-lo a transpor julgamentos, e quanto menor a quantidade de julgamentos postos com antecedência [pré-julgamentos] no texto, maior será o efeito estético (ISER, 1987, p.118, grifos nossos)..
Pois, para Iser,
The reader is constantly forced to think in terms of alternatives, as the only way in which he can avoid the unambiguous and suspect position of the characters is to visualize the possibilities which they have not thought of. While he is working out these alternatives the scope of his own judgments expands, and he is constantly invited to test and weigh the insights he has arrived at as a result of the profusion of situations offered him. The esthetic appeal of such a technique consists in the fact that it allows a certain latitude for the individual character of the reader, but also compels specific reactions – often unobtrusively – without expressly formulating them (1987, p.118)
O leitor é constantemente forçado a pensar em alternativas, como a única forma de evitar a posição inequívoca e suspeita das personagens é visualizar as possibilidades que ele não tenha pensado. Enquanto o leitor desenvolve essas alternativas, o escopo do seu próprio julgamento se expande, e ele é constantemente convidado a testar e avaliar as percepções a que ele chegou como resultado da profusão de situações oferecidas a ele. O apelo estético dessa técnica consiste no fato que permite certa manobra para o caráter individual do leitor, mas também compele reações específicas – muitas vezes – de forma discreta – sem as formular expressamente (ISER, 1987, p.118)..
Sendo assim, espera-se que ao fazer o estudante refletir sobre os valores que ele percebeu como mais expressivos no texto literário, ele possa ir além de tentar encontrar uma “lição de moral” que teria um caráter doutrinador, portanto, fazê-lo relativizar esses “valores”, questioná-los e, então, ponderar sobre o comportamento humano, a partir disso, é de fato, estimulá-lo a sentir o efeito estético da obra. Por exemplo, quando um aluno diz “eu entendi, a partir da leitura do texto, que não devemos maltratar os animais”, ele está estabelecendo relações entre a ficção e a realidade extratextual, mas não transpôs essa relação para a apreensão do discurso universal que seria, por exemplo, se ele dissesse “eu entendi, através da leitura do texto, que maltratar os animais pode causar um sentimento de culpa e que cada um pode reagir de uma determinada maneira ao sentir isso”. Elucubrar sobre a compreensão dos aspectos de verossimilhança no texto ficcional faz o leitor descobrir o discurso universal a ele inerente. Isso acontece por um processo de transposição de uma vivência particular representada pela ficção para outra vivência que faz nos sentirmos iguais nas diferenças ao dialogarmos com a humanidade de forma metafórica.
Ao relacionarmos a questão QA1-H com a questão QC1-6, podemos concluir que sete estudantes que afirmaram ter refletido sobre o comportamento humano não souberam responder à questão. Isso indica que esses estudantes não conseguiram expressar suas reflexões. Dessa forma, temos um grupo de doze alunos que não utilizaram estratégias metacognitivas para realizar uma transubstanciação da ficção (ação de elucubrar para chegar a uma percepção do discurso universal no texto). Entre os dezoito que usaram estratégias inferenciais, nove fizeram referência direta ao sentimento provocado pela leitura em si ou refletiram sobre o comportamento humano. No entanto, para diagnosticar que determinado estudante conseguiu chegar a uma percepção do discurso universal, seria necessário que ele soubesse expressar o aspecto do comportamento humano que chamou mais a atenção dele e com base nisso (a recepção da obra), expressar o sentimento provocado por essa percepção (o efeito estético).
É complexa a análise do efeito que uma obra provoca no leitor, pois o efeito pode tanto estar relacionado a uma leitura superficial da obra, como pode estar relacionado a uma leitura mais profunda, por isso, só podemos analisar se ele conseguiu perceber o aspecto universal presente no texto, se o estudante relatar os dois aspectos que compõem a pergunta ou se a resposta referente à reflexão sobre o comportamento humano apresentar de forma direta ou indireta o sentimento provocado por essa percepção. Sendo assim, com base nessa premissa, consideramos que o estudante Aluno 09 expõe a recepção de forma indireta na resposta, mas deixa clara a sua reflexão sobre o comportamento humano e Aluno 22, por exemplo, apresenta em sua resposta, tanto a forma de recepção da obra, como o efeito dela sobre ele, com mais evidência do que os demais estudantes:
Aluno 09: “Sim, às vezes fazemos coisas e não sabemos que depois de um tempo, vamos querer voltar atrás e nos redimir. Mas, nem sempre conseguimos.”
Aluno 22: “Sim, a consciência de um cidadão, arrependimento.”
A partir da análise de todos esses dados, podemos chegar a algumas conclusões, na tentativa de interpretar os prováveis motivos que levaram a maioria dos estudantes a não conseguirem relatar suas opiniões acerca da compreensão do conto, por não terem participado ativamente no processo de construção de sentido do texto e consequentemente, não puderam expressar com clareza a percepção do discurso universal presente no conto. Portanto, procuramos identificar algumas possíveis razões pelas quais a maioria deles não interagiram com o texto em busca de pistas para formular, testar e avaliar as hipóteses antes, durante e após a leitura, além de outras razões interligadas à dificuldade durante o processo de leitura que se refletem (na escrita) nas respostas referentes aos questionários utilizados.
A construção dos questionários foi pensada, justamente, para seguir um padrão de estratégias de leitura com progressão da compreensão desde ações feitas antes, passando por ações que são realizadas durante a leitura e concluindo com questões referentes à compreensão geral do texto. Essa estratégia de construção dos questionários é importante, porque facilita a percepção de como os estudantes agiram nas três etapas de leitura de forma sequencial. Dessa forma, podemos perceber que, inconscientemente, muitos deles criam expectativas sobre o que o texto vai tratar, mas ao longo da leitura, as hipóteses, quando são feitas, não são testadas e reavaliadas através das pistas textuais. Na maioria dos casos, a leitura foi feita de forma linear e com o objetivo de saber o que aconteceu no final da história, sem grandes reflexões sobre as ações apresentadas no conto.
Um dos motivos para esse tipo de leitura, podemos dizer que é a falta de sistematização da leitura. Provavelmente, se o estudante fosse levado a se questionar sobre suas expectativas e estimulado a criar, testar e avaliar suas hipóteses ao longo do texto, assim como, refletir sobre elas, a compreensão geral poderia ser relatada por eles de uma forma mais clara e com explicações mais coerentes com base nas pistas fornecidas pelo texto.
Outro fator possível é a ausência de um olhar questionador para o texto. Muitos ainda leem acreditando que tudo o que é relatado (pelo narrador ou pela personagem) é a verdade e não questionam sobre a possibilidade de haver outra perspectiva na versão apresentada, também, fundamentando, essa outra percepção, nas pistas textuais.
Uma outra razão que podemos comprovar a falta de aprofundamento da leitura do texto, pelo fato de termos a escrita como fonte de indícios, é a dificuldade de se expressar através da linguagem escrita. Nesses casos, a resposta é vaga, evasiva, cheia de lacunas e não expõe ou não representa o que o estudante pensou. Por exemplo, as respostas dos estudantes: Aluno 02, Aluno 07, Aluno 13, Aluno 14, Aluno 23 e Aluno 25 à questão do QCC1-5:
Aluno 02: “Sim.”
Aluno 07: “Sim.”
Aluno 13: “mais ou menos”
Aluno 23: “Sim.”
Aluno 25: “sim, porque algumas atitudes do texto vão para realidade”
Tendo em vista que a pergunta (QC1-5) pede para que eles expliquem se é possível estabelecer relação entre ficção e a realidade, podemos verificar que todas essas respostas citadas não apresentam uma justificativa. Sendo assim, isso pode indicar que a leitura foi superficial, pois se eles tivessem reconhecido a relação entre realidade e ficção, a resposta traria uma justificativa. Além disso, essa compreensão contribui para a formulação da resposta dada na pergunta seguinte (QC1-6: A leitura do conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano? Explique.), e os alunos 02, 13, 23 e 25 não responderam. Apenas o Aluno 07 respondeu a essa questão:
Aluno 07: “Sim sentimento de tristeza”
A resposta desse aluno refletiu apenas o efeito da leitura sobre ele e esse efeito pode tanto estar relacionado a uma leitura superficial, quanto a uma leitura mais profunda do texto, já que não temos como comprovar pela falta de explicação. Por outro lado, a ausência de articulação com a reflexão sobre o comportamento humano, que, também, está ausente na resposta dada por ele indicam que ele, de fato, não conseguiu fazer as inferências necessárias para responder à questão (QC1-5).
Outrossim, há fatores que não estão ligados diretamente ao esforço de compreensão durante a leitura, mas ao fato de alguns estudantes não demonstrarem interesse em ler (não se sentirem motivados) e isso pode provocar, pelo menos, dois resultados: ele não responde ou extrapola a interpretação com informações não apresentadas ou não justificadas, explícita ou implicitamente, no texto. Por exemplo, na maioria das perguntas do QC1, o número de estudantes que não respondeu varia entre 12 e 15. Isso representa quase a metade dos estudantes da turma.
Os resultados dessas análises indicam que é necessário criar recursos para fazer os estudantes participarem ativamente no processo de leitura, pois quanto mais estudantes conseguirem interagir ativamente, maiores serão as possibilidades de interpretação para tornar a discussão um momento mais rico de trocas de leituras.
Após a aplicação dos questionários, houve um momento de interação, no qual os estudantes puderam relatar suas respostas e trocar ideias sobre as hipóteses construídas antes, durante e após a leitura, com base nos questionários. No entanto, poucos estudantes participaram desse momento de forma espontânea, a maioria, só interagiu, porque foi questionada diretamente por mim, como professora, e a partir das colocações desses alunos, outras perguntas forma feitas para que houvesse um olhar holístico diante do texto.
FASE II – ENSINO DE LEITURA: Leitura e interpretação do conto O Conto se Apresenta, de Moacyr Scliar. Participaram desta etapa, os mesmos, 30 estudantes.
Nesta fase, não só verificamos como os estudantes utilizaram o guia de leitura, comparando os resultados quantitativos e qualitativos desta fase com a anterior e analisando a interação do estudante leitor com o conto nesta nova metodologia, por meio do questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QA2), como também, avaliamos de que forma este método influenciou no desempenho dos estudantes ao responderem ao questionário de compreensão (QC2).
É importante ressaltar que, nesta fase, como professora, ensinei a usar o guia de leitura, explicando o preenchimento da tabela e quais seriam os aspectos analisados. Esta fase foi um ensino de procedimentos de leitura moldáveis, por cada aluno, durante sua interação, pois eles poderiam decidir responder ou deixar em branco qualquer um dos espaços. Há vários modelos de guia de leitura, mas foi selecionado um modelo para o uso nos dois contos, apenas, por uma questão metodológica prática de coleta de dados.
O guia de leitura
Ver Apêndice, nas páginas 140 e 145. apresenta-se da seguinte forma: na primeira coluna, estão os aspectos do texto ficcional que serão analisados; na segunda coluna, estão os espaços referentes a cada aspecto para a formulação de hipóteses ou expectativas, mas pode ser deixado em branco, quando não houver hipótese formulada; na terceira coluna, estão os espaços para assinalar (C) quando as hipóteses/expectativas forem confirmadas, (R) quando forem refutadas e (N) quando não houver hipótese/expectativas formuladas e na quarta coluna estão os espaços para observações após a leitura. O guia serve como um apoio para sistematizar as ideias formuladas durante o processo de leitura, por isso, são moldáveis pelos alunos às necessidades surgidas nesse processo.
Todos os estudantes utilizaram o guia de leitura e a maioria preencheu a maior parte dos espaços com suas anotações. Na segunda coluna, referente às expectativas, os alunos não formularam perguntas, mas escreveram palavras que representavam as expectativas (questões, hipótese ou dúvidas sobre o texto), a maioria deixou em branco a parte que se refere aos aspectos ficcionais em relação com a realidade extratextual, porém, após a leitura, a maior parte deles fez observações sobre esse aspecto. Dessa forma, podemos concluir que houve uma reflexão maior sobre diversos aspectos do texto ficcional.
Com o objetivo de tentar avaliar o uso de estratégias metacognitivas de leitura para interação do leitor ativo antes, durante e após a leitura do conto, apresentamos, a seguir, na tabela 2, o resultado geral do Questionário Avaliativo de uso de Estratégias Metacognitivas de Leitura (QA2) e o analisamos, comparando os resultados com a fase anterior, bem como relacionamos a algumas respostas dadas pelos alunos ao Questionário de Compreensão do Conto (QC2) nos seis primeiros quesitos, pois as respostas referentes a essas perguntas nos permite tentar diagnosticar se houve interação ativa do leitor durante o processo de leitura, enquanto a última questão é analisada separadamente, pois busca verificar se o uso das estratégias metacognitivas direcionadas a leitura do conto contribuiu para que o estudante perceba, além dos aspectos estruturais e temáticos do texto, o discurso universal.
A seguir, apresentamos o questionário avaliativo do uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase II (QA2), seguido da tabela com os resultados quantitativos referentes às respostas objetivas para facilitar a compreensão da compilação dos dados.
Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QA2)
Com base na leitura do conto responda:
Você fez alguma associação entre o título do texto e o que você já sabia sobre o que é um conto?
( ) sim ( ) não
Ao ler a primeira parte do conto, você imaginou que a personagem principal seria o próprio conto?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você refletiu sobre o porquê a personagem se dirigia diretamente ao leitor?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você compreendeu por que a personagem estava contando sua história?
( ) sim ( ) não
Quando o narrador-personagem apresentou alguns escritores, você criou expectativas sobre como seriam as histórias narradas por eles?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você se questionou por que o Conto (personagem) acha as histórias sobre pessoas comuns mais interessantes do que as histórias sobre seres mitológicos ou fantásticos?
( ) sim ( ) não
Você conseguiu entender o tema abordado no conto?
( ) sim ( ) não
A leitura do conto fez você refletir sobre a representação da realidade no texto ficcional?
( ) sim ( ) não
Tabela com base no questionário QA2
Questão
SIM
NÃO
Resultado
A
26
04
86,6% afirmam ter feito alguma associação entre o título do texto e o que já sabia sobre o que é um conto.
B
21
09
70% afirmam que ao ler a primeira parte do conto, imaginou que a personagem principal seria o próprio conto.
C
25
05
83,3% afirmam ter refletido sobre o porquê a personagem se dirigia diretamente ao leitor.
D
30
00
100% afirmam ter compreendido por que a personagem estava contando sua história.
E
10
20
33,3% afirmam não ter criado expectativas sobre como seriam as histórias narradas por eles.
F
17
13
56,6% afirmam não ter se questionado por que o Conto acha as histórias sobre pessoas comuns mais interessantes do que as histórias sobre seres mitológicos ou fantásticos.
G
25
05
83,3% afirmam ter conseguido entender o tema abordado no texto.
H
22
08
73,3% afirmam que a leitura do conto fez refletir sobre a representação da realidade no texto ficcional.
Tabela 2 – Resultado quantitativo das respostas dadas ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase II (ensino de leitura)
Fonte: a autora
As questões do QA1-A e QA2-A buscam verificar se os estudantes ativaram conhecimentos prévios antes da leitura e ao compararmos os resultados apresentados nas tabelas, referentes a essas questões, verificamos um aumento do número de estudantes que provavelmente ativaram conhecimento prévio.
As questões do QA1-B e QA2-B buscam averiguar o uso da estratégia de predição para verificar se os estudantes criaram hipóteses com base em inferências e ativação de conhecimentos prévios. Quando comparamos os resultados referentes a essas questões, percebemos que houve também um aumento no número de estudantes que, provavelmente, utilizaram essa estratégia de leitura, pois o resultado na fase diagnóstica foi de 46,6% e depois, na fase de ensino de leitura, aumentou para 70%.
As questões QA2-C e QA2-D buscam avaliar estratégias de automonitoramento e em ambos os casos houve um resultado superior com relação a fase diagnóstica na questão QA1-D. O resultado antes foi de 56,6% e depois varia entre 83,3% e 100%.
O resultado da questão QA2-E demonstra que poucos estudantes utilizaram estratégias de predição durante a leitura do texto, por meio de inferências com base em informações explícitas no texto. No entanto, a análise das respostas dadas ao QC2-5, indicam que um número maior de alunos criou expectativas sobre como seriam as histórias dos autores. Sendo assim, podemos deduzir que eles podem ter refletido, mas de forma inconsciente. Se a pergunta do QA2-E fosse aberta, por exemplo: Quais são os possíveis assuntos que os escritores apresentados pelo Conto (personagem) abordam? A resposta dos alunos poderia fornecer dados mais claros sobre o uso dessa estratégia, como foi possível comprovar durante o debate. O Aluno 09, Aluno 14, Aluno 15, Aluno 23, Aluno 30, todos eles marcaram “não” na questão QA2-E e, no entanto, responderam ao QC2-5, respectivamente: “Mostrar ao leitor as pessoas que marcaram a história e o tipo de conto que eles escreveram e mostrar a importância dos escritores no conto”; “para que quando viemos a vê os nomes dos escritores tivecemos vontade de lê as histórias deles”; “imagine como são as histórias desses escritores”; “Trazer expectativas sobre os contos deles”; “mostrar que se existe vários tipos de contos”. Vale salientar que dos trinta estudantes, apenas, três deles não responderam ao QC2-5.
A questão QA2-F busca averiguar o uso de estratégia de autoquestionamento. Essa estratégia segundo Heloísa Feltes (2008, p.260), “pode ser uma estratégia metacognitivas para avaliar o processo de compreensão de um texto ou como uma estratégia para obter maior conhecimento ao longo de uma leitura”. Na questão proposta (QA2-F), essa estratégia aparece com a função de fazer o estudante ter um pensamento crítico diante do texto, no caso, através do processo de compreensão do exposto no texto, o estudante precisaria avaliar, de acordo com seu conhecimento de mundo, a proposição para tomar posicionamento diante dela. O resultado aponta que um pouco mais da metade da turma demonstrou ter utilizado essa estratégia. Ao compararmos com a resposta dada ao QC2-6, verificamos que houve um número maior de alunos que pensou criticamente sobre o posicionamento do narrador-personagem, mas sem a consciência de estar fazendo essa ação. Alguns estudantes marcaram “não” na questão referente ao QA2-F e responderam à questão do QC2-6, dessa forma, eles revelaram um posicionamento crítico ao responder à questão aberta, embora não tenham consciência de que esse posicionamento seria uma leitura crítica. Temos como exemplificar essa situação, de forma mais clara, por meio das respostas dadas pelos estudantes que se posicionaram contra a opinião do narrador-personagem:
(QC2-6): Sabemos que o conto pode apresentar como personagem seres mitológicos ou criaturas fantásticas, mas o Conto (personagem) diz que histórias sobre gente comum são mais interessantes. Por que ele diz isso? Você concorda?
Aluno 15: “Porque os personagens dele são sobre pessoas comuns mas eu discordo porque eu gosto de personagens de histórias fantásticas também”
Aluno 16: “O Conto personagem prefere histórias sobre gente comum porque os autores que ele apresentou contam esse tipo de história. Mas eu não concordo porque eu gosto sobre histórias sobre vampiros, zumbis e etc. Eles me fazem viver um mundo diferente do meu”
Aluno 17: “Porque ajuda as pessoas a refletirem sobre sua própria vida e entenderem que não são as únicas a se sentirem de tal forma. Em parte não, porque fugir um pouco da realidade é sempre bom”
Aluno 26: “Por que na opinião dele histórias reais são melhores. Não concordo.”
Aluno 29: “Porque ele prefere um tipo de literatura que talvez nós leitores discordamos. Não muito, porque eu gosto dos dois tipos de literatura.”
É interessante destacar que todos os estudantes responderam à questão QC2-6 e isso pode revelar que alguns dos que marcaram “não” para o QA2-F podem ter compreendido que se questionar sobre o posicionamento do narrador-personagem seria discordar dele (totalmente ou em parte). No entanto, a maioria dos estudantes que respondeu “sim” ao QA2-F pensou criticamente sobre o posicionamento do narrador-personagem, não por discordar dele, mas por tentar justificar a escolha da modalidade de conto defendida pelo narrador-personagem.
A questão QA2-G busca aferir se o estudante utilizou estratégia de síntese semântica do texto ao responder se conseguiu entender o tema abordado no conto. Nesse caso, 83,3% afirmam ter conseguido e o QC2-4 ajuda a comprovar que esses alunos formularam hipóteses sobre o tema, mas a maioria se prendeu a informações pontuais explícitas no texto e não fizeram uma leitura holística. Para a maioria dos estudantes, o tema era a apresentação do próprio conto, com o objetivo de fazer o leitor conhecer sua história. Sendo assim, eles se basearam no título para sugerir o tema e se prenderam a informações explícitas pontuais no intuito de construir uma síntese semântica. Porém, o título de um texto literário nem sempre pode ser entendido como representação do(s) tema(s) abordado(s) no enredo, ele é apenas mais uma pista textual que pode ajudar a perceber o(s) tema(s) que pode(m) estar presente(s). Apesar disso, alguns estudantes conseguiram chegar a uma visão particular e holística do tema tratado no conto, conforme exposto na parte de análise da questão QC2-4.
Para complementarmos a análise do uso de estratégias metacognitivas, vamos analisar o desempenho dos estudantes ao responderem às seis primeiras questões do QC2, verificando se houve diferença no desempenho deles ao usarem o guia de leitura:
(QC2-1): Por que no texto a palavra Conto é escrita com letra maiúscula?
Todos os trinta estudantes responderam a essa pergunta, dentre esses, 23 estudantes realizaram a estratégia de inferência de informação explícita no texto, e reconheceram que o Conto era o nome da personagem. Exemplo:
Aluno 29: “Porque é o nome do personagem principal e nome próprio se escreve com letra maiúscula.”
O fato de termos a maioria dos estudantes realizando essa estratégia, através da pergunta, indica que essa ação possibilitou a compreensão do foco narrativo do conto. Essa percepção é muito importante para os questionamentos seguintes, pois o ponto de vista da narração será problematizado.
(QC2-2): Você consegue perceber com quem o texto dialoga? Explique.
Todos os trinta estudantes responderam a essa pergunta, dentre esses, vinte e nove estudantes responderam, realizando inferência de informação explícita no texto, e afirmaram que o conto dialoga com o leitor, ou seja, com eles. Exemplos:
Aluno 01: “Comigo pelo fato de ele querer se apresentar para eu entender quem é ele.”
Aluno 05: “Ele dialoga com o leitor, porque o conto é um narrador personagem.”
A estratégia realizada através dessa pergunta estimula o leitor a perceber a intencionalidade do texto ao dialogar diretamente com ele.
(QC2-3): Qual é a provável intenção do autor ao escrever esse conto com narrador-personagem?
Vinte nove estudantes conseguiram fazer inferência de informação implícita no texto para criar uma hipótese sobre o porquê o autor fez o conto com narrador-personagem. A maioria das hipóteses aponta que o narrador queria que o próprio conto se apresentasse, alguns explicam o motivo, mas outros não, exemplos:
Aluno 06: Porque o conto se apresenta atravez de várias outras histórias, e realmente agora, ele fala sobre ele.
Aluno 09: “Pra gente entender realmente como é o próprio conto, então, ele se apresenta.”
Outras hipóteses recorrentes estão representadas pelos exemplos abaixo:
Aluno 04: “Pra dar vida ao conto, pra você entender de uma forma melhor.”
Aluno 07: “Ele queria que a gente soubesse como surgiu o conto.”
Aluno 13: “Para explicar sobre o conto ao passar dos anos.”
Aluno 15: “de fazer com que eu tenha uma inspiração.”
Aluno 17: “Inspirar as pessoas a lerem o conto.”
Aluno 22: “Dá inspiração a outras pessoas para criar suas próprias histórias.”
(QC2-4): Qual é o assunto tratado no conto?
Todos os trinta estudantes responderam a essa questão. Alguns colocaram o título como representando o assunto do conto e outros não repetiram o título, mas tiveram a mesma ideia de demonstrar que o assunto se tratava de relatar como era o conto, sua função, como surgiu (sua história). A maioria utilizou estratégias de inferência de duas formas: os que definiram o assunto com base na própria apresentação do conto, fizeram inferência de informações explícitas no texto, enquanto outros que responderam além disso, fizeram inferências de informações implícitas no texto. Como exemplos desse último tipo, temos:
Aluno 01: “Ele fala da sua função quando ele incentivar as pessoas escrever e inventar histórias e colocar no papel suas ideias.”
Aluno 14: “O assunto é um conto que fala sobre como surge os contos. Ele fala que nós inspira, motiva e etc... Esse conto foi feito no sentido de inspirar e da motivação a quem sente vontade de escrever.”
Aluno 17: “Falar sobre o conto e fazer com que as pessoas se interessem pela leitura.”
Aluno 19: “Fala sobre o Conto, sobre a importância de ler.”
O Aluno 17 e o Aluno 19, apesar de realizarem uma síntese da leitura de forma lacônica ou evasiva, apresentaram uma compreensão com base em informações implícitas no texto, com uma compreensão válida e particular sobre o tema abordado.
(QC2-5): Qual é a provável intenção do Conto (personagem) ao apresentar alguns escritores? Explique.
Vinte e sete estudantes responderam a esta questão se posicionando em relação à opinião do narrador-personagem, utilizando estratégias de inferência sobre informações implícitas e explícitas no texto para formular hipóteses. A maioria das hipóteses apontam que a intenção é estimular a leitura de contos e conhecer outros autores de contos. Exemplos:
Aluno 14: “Para que quando viemos a vê os nomes dos escritores tevermos vontade de lê as histórias deles.”
Aluno 17: “Sua provável intenção é fazer as pessoas criarem um amor pela leitura.”
Aluno 29: “para que os leitores se interessassem pelos outros contos dos outros autores e também mostra como eles se tornaram escritores.”
(QC2-6): Sabemos que o conto pode apresentar como personagem seres mitológicos ou criaturas fantásticas, mas o Conto (personagem) diz que histórias sobre gente comum são mais interessantes. Por que ele diz isso? Você concorda?
Todos os trinta estudantes responderam a esta questão e a maioria realizou inferência de informações implícitas e explícitas no texto para formular hipóteses, além de se posicionarem criticamente sobre a afirmação, tanto contra como a favor, pois tentaram justificar a escolha do narrador-personagem. Exemplos:
Aluno 05: “Porque com humanos tem sentimentos e seres mitológicos não, e não concordo com isso.”
Aluno 08: “Ele acha mais interessante falar sobre pessoas comuns, porque parece ser mais real e a gente se identifica melhor. E eu concordo com ele.”
Aluno 09: “Ele diz isso porque às vezes, nós nos identificamos melhor nas histórias de gente comum. Porque muitas vezes estamos passando pela mesma situação. Eu concordo!”
Aluno 13: “Para o conto falar sobre gente comum e mais interessante por que as pessoas se identificar melhor com as personagens, mas eu discordo eu gosto de histórias com seres mitológicos, com criaturas fantásticas por que eu imagino aventuras que gostaria de viver fora da realidade.”
Aluno 14: “O conto fala que histórias com gente comum é mais interessante acho que desperta mais sentimentos no fato que a história podia acontecer com ele ou alguém que conheça . não, não concordo é interessante sim mas o fato de ler histórias de deuses ou seres fantásticos é mais interessante pois motiva ao nosso cérebro a imaginar coisas que sabemos que não vão acontecer ou até mesmo que possamos ter a dúvida de que é real ou não.”
Notamos um amadurecimento relativo à leitura crítica do texto literário. Os estudantes não só tomaram posicionamento diante da informação implícita, como justificaram suas opiniões, tanto a favor, como contra o posicionamento do narrador-personagem. Essa postura nas respostas indica que houve uso de estratégias metacognitivas de autoquestionamento, ou seja, houve um comportamento de leitor ativo e isso resultou numa percepção de que é possível se reconhecer no texto ou confrontar sua percepção de forma analítica. O leitor perscrutador possui liberdade de análise para tomar posições diante da leitura, e é essa uma das características do tipo de aluno que queremos formar.
Com o objetivo de avaliar o uso de estratégias metacognitivas de leitura após a leitura do conto para a percepção do discurso universal, analisamos a questão QA2-H que procura avaliar a estratégia metacognitiva capaz de fazê-lo reconhecer o discurso universal no texto, complementando com a análise do QC2-7.
A questão QA2-H (A leitura do conto fez você refletir sobre a representação da realidade no texto ficcional?) busca aferir se o estudante realizou uma estratégia metacognitiva capaz de fazer o leitor reconhecer o discurso universal inerente ao texto literário. O resultado quantitativo aponta que mais da metade dos estudantes podem ter realizado essa estratégia. Outrossim, a questão QC2-H (A leitura desse conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano?) busca aferir se o estudante percebeu o discurso universal presente no texto. A diferença está na forma como as perguntas foram feitas, no QA2-H a pergunta precisava ser mais objetiva para tentar averiguar se o estudante realizou a ação de refletir sobre como os aspectos do comportamento humano são representados na ficção, por outro lado, a questão do QC2-H foi subjetiva, mas poderia ser respondida de forma objetiva, com um simples sim ou não. Mesmo assim, a maioria dos estudantes, além de responder sim ou não, justificou as respostas de forma espontânea, pois, na questão não foi pedido para justificar ou explicar o posicionamento e a minoria não conseguiu responder. Portanto, as respostas negativas apontam para, pelo menos, duas prováveis hipóteses: ou o estudante não compreendeu a questão QA2-H ou fez a ação de reflexão de forma inconsciente, pois oito estudantes responderam que após a leitura não refletiram sobre a representação da realidade no texto ficcional. Os alunos que, provavelmente, refletiram de forma inconsciente, responderam ao QC2-H sem saber explicar com clareza essa percepção do discurso universal presente no texto literário. Essa dificuldade pode se dar por, no mínimo, três razões: pela dificuldade de organizar as ideias e ordená-las no texto escrito, ou por não conseguir expressar com palavras o que sentiu (talvez, um caso de alexitimia), ou por estar desmotivado para responder.
(QC2-7): A leitura desse conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano?
Vinte sete estudantes responderam à pergunta e apenas três não responderam, sendo assim, precisamos analisar o porquê oito alunos marcaram negativamente à QA2-H. O resultado das respostas dadas ao QC2-7 indica que houve uma ação de reflexão sobre a representação da realidade no texto ficcional, embora tenha sido de forma inconsciente, por cinco dos oito alunos que assinalaram negativamente o QA2-H, conforme podemos observar ao lermos essas respostas:
Aluno 03: “ele me fez refletir a ler muito mais.”
Aluno 13: “despertar minha curiosidade de ler outros contos, eu percebi, com o esforço e dedicação, inspiração posso escrever um conto.”
Aluno 15: “espiração de escrever histórias.”
Aluno 21: “de interessada em querer saber mais sobre o assunto é como se agente ser humanos diversse medo de fazer alguma coisa e não dar certo.”
Aluno 24: “de refletir como um conto surge, as pessoas tem que ter inspiração, criatividade, e esforço pra escrever.”
Portanto, podemos deduzir que se esses estudantes tivessem realizado uma transubstanciação da ficção, a reflexão passaria a ser feita conscientemente, assim, eles iriam elucubrar sobre o caráter ficcional na sua relação com a realidade extratextual, tornando possível o estabelecimento de ligações para perceber o discurso universal presente no texto.
A maioria dos outros estudantes que assinalou o QA2-H, responde ao QC2-7 apresentando os dois aspectos da pergunta, sendo assim, podemos perceber com mais clareza que eles identificaram o discurso universal presente no conto. Exemplos:
Aluno 01: “Sim. Sentimento de alegria por saber que todos nós sendo pobre, rico, negro, branco todos nós temos liberdade de colocar nossa ideias no papel, todos nós podemos ser um escritor.”
Aluno 05: “Eu senti que a história do conto pode representar a minha realidade e que uma pessoa como eu pode se tornar um escritor.”
Aluno 06: “Sim, me causou um sentimento de que o conto realmente me ajuda, ele transmite através das personagens sentimentos com os quais eu me identifico.”
Aluno 09: “Sim, muitas vezes, achamos que não somos capazes de fazer certas coisas, como escrever histórias, por exemplo. Mas sempre tem alguém ou algo que nos faz refletir e seguir em frente com os nossos objetivos. Me causou um sentimento de coragem e superação.”
Aluno 22: “Sim, curiosidade. Me fez sentir uma vontade imensa de ler, pesquisa coisas novas, ler mais, que sabe até escrever uma história. O mundo dos escritores é muito legal e quanto mais leio, mais aprendo e mais sinto vontade de ler.”
Aluno 26: “sim, me fez refletir sobre as todas as histórias que li e ouvi, e as origens das histórias.”
Aluno 27: “Sim o sentimento de curiosidade. Porque eu não sabia que existia tanta formas de se espressar.”
Ao analisarmos paralelamente os dois resultados, percebemos que é necessário elucubrar sobre a ficção estabelecendo relação com a realidade extratextual, pois a transubstanciação da ficção representa esse esforço cognitivo que leva o leitor a perceber o discurso universal do texto ficcional.
Ao comparamos os resultados da fase I com os da fase II, de modo geral, houve uma atuação mais ativa do aluno durante todo o processo de leitura (antes, durante e após). Percebemos que proporcionar recursos para ativar a reflexão sobre o texto ajuda o leitor a criar mais expectativas, formular, testar e avaliar hipóteses, por meio de um automonitoramento e elaborar sua síntese semântica do texto com base nas pistas textuais.
O uso das estratégias metacognitivas de leitura contribuiu para aguçar a percepção do discurso universal inerente ao texto literário em muitos estudantes, mas isso só ficou mais evidente no momento do debate, quando houve a interação entre os alunos, eles se expressaram melhor e a troca de ideias fez ampliar o horizonte de expectativas de cada um deles. Essa troca foi enriquecedora, porque um maior número de estudantes sistematizou as ideias acerca da compreensão do texto por meio do guia de leitura.
FASE III – TESTE/ AVALIAÇÃO DA METODOLOGIA:
Leitura e interpretação do conto O Gato Preto de Edgar Allan Poe. Participaram desta etapa, os mesmos, 28 estudantes
O Aluno 02 e Aluno 06 não participaram desta etapa. Aluno 02 por causa da licença maternidade e Aluno 06 faltou, por motivos pessoais, durante a aplicação das atividades desta fase..
Nesta fase, verificamos como os estudantes utilizaram o guia de leitura de forma autônoma, sem a necessidade de explicação do professor. Outrossim, comparamos os resultados quantitativos e qualitativos desta fase com as anteriores e analisamos a interação do estudante leitor com o conto nesta nova metodologia, por meio do questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QA3), além de, avaliarmos de que forma este método influenciou no desempenho das respostas referentes ao questionário de compreensão (QC3).
Com relação ao uso do guia de leitura nesta fase, pudemos verificar que todos os vinte oito estudantes o utilizaram. Porém, nesta fase, como não houve explicação de como preencher o guia, pois essa ação já havia sido realizada na fase anterior, percebemos algumas ações diferentes na forma de sistematizar as ideias, por exemplo: os estudantes Aluno 16, Aluno 24 e Aluno 28, possivelmente, confundiram o código, utilizando, no preenchimento da terceira coluna, (N) no lugar de (R). Esses estudantes haviam criado expectativas antes de ler e não fazia sentido responderem na terceira coluna que não haviam formulado expectativas. Alguns estudantes utilizaram as informações registradas no guia de leitura para responderem ao questionário de compreensão do conto (QC3). Outra situação inusitada, foi o fato de quatro estudantes não preencherem as observações após a leitura quando suas expectativas referentes aos aspectos analisados eram confirmadas. De modo geral, a maioria utilizou o guia de leitura de forma adequada de acordo com suas necessidades de sistematização da leitura.
Com o objetivo de tentar avaliar o uso de estratégias metacognitivas de leitura para interação do leitor ativo antes, durante e após a leitura do conto, apresentaremos a seguir, na tabela 3, o resultado geral do Questionário Avaliativo de uso de Estratégias Metacognitivas de Leitura (QA3) e analisaremos comparando os resultados com a fase anterior, bem como relacionaremos a algumas respostas dadas pelos alunos no Questionário de Compreensão do Conto (QC2), pois as respostas referentes a essas perguntas, tanto nos permitem tentar diagnosticar se o uso do guia de leitura auxiliou o estudante a se reconhecer como parte do processo de interação para construção de significação do texto, como as duas últimas, nos ajuda na tentativa de avaliar se o uso das estratégias metacognitivas de leitura direcionadas a leitura do conto contribui para que o estudante perceba, especificamente, o discurso universal inerente ao texto literário.
A seguir, apresentamos o questionário avaliativo do uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase III (QA3), seguido da tabela com os resultados quantitativos referentes às respostas objetivas para facilitar a compreensão da compilação dos dados.
Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QA3)
Com base na leitura do conto responda:
O título do conto fez você lembrar de outras histórias ou situações que envolvessem um gato preto?
( ) sim ( ) não
Ao ler a primeira parte do conto, você notou algo de semelhante com a estrutura do conto de Moacyr Scliar?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você notou algo de semelhante com a temática do conto de Clarice Lispector?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você releu alguma parte para tentar entender melhor?
( ) sim ( ) não
Você compreendeu o tema abordado no conto?
( ) sim ( ) não
Você compreendeu a relação entre o título do texto e o tema do conto?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você se questionou sobre a sinceridade do narrador-personagem ao relatar sua história?
( ) sim ( ) não
A leitura do conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre o comportamento humano?
( ) sim ( ) não
Tabela com base no questionário QA3
Questão
SIM
NÃO
Resultado
A
19
09
67,8% afirmam ter lembrado de outras histórias que envolvem gato preto ao ler o título do conto.
B
24
04
85,7% afirmam que ao ler a primeira parte do conto notaram algo de semelhante com a estrutura do conto de Moacyr Scliar.
C
27
01
96,4% afirmam que durante a leitura do conto notaram algo de semelhante com a temática do conto de Clarice Lispector.
D
18
10
64,2% afirmam que durante a leitura do conto, releram alguma parte para tentar entender melhor.
E
25
03
89,2% afirmam ter identificado alguma temática no conto.
F
28
00
100% afirmam ter compreendido a relação entre o título do texto e os fatos narrados.
G
19
09
67,8% afirmam ter se questionado sobre a sinceridade do narrador-personagem ao relatar sua história.
H
28
00
100% afirmam que a leitura do conto despertou algum sentimento ou fez refletir sobre o comportamento humano.
Tabela 3 – Resultado quantitativo das respostas dadas ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura da fase III (teste/avaliação da metodologia)
Fonte: a autora
A questão QA3-A busca verificar se os estudantes ativaram conhecimentos prévios. A maioria fez relações com situações vivenciadas para estabelecer relação com o título. No entanto, devemos considerar, também, que os estudantes que marcaram de forma negativa a questão, podem ter feito a ativação de conhecimento prévio, mas como não tinham experiência com situações que envolvessem um gato preto, ou se tiveram, não se lembravam, responderam à questão de forma negativa. Sendo assim, podem ter feito, pelo menos, o esforço de tentar relacionar.
A questão QA3-B se propõe a verificar através do estabelecimento de relações interdiscursivas, a ativação de conhecimentos prévios acerca da expectativa em relação a estrutura do conto. É importante reconhecer a estrutura de um conto para compará-lo aos já lidos, pois essa ação ativa a formulação de hipótese com base no horizonte de expectativa do estudante e ao longo da leitura esse horizonte tende a se ampliar cada vez mais. Nos três contos lidos há uma trama que induz o leitor a acreditar nas palavras do narrador, já que no primeiro conto ele se confunde com a própria personagem e nos outros dois, o narrador é a personagem. Esse fato exige do leitor um esforço de buscar pistas no próprio enredo sobre o que é tido como a verdade narrada ao contrapor descrições dos pensamentos e ações da personagem. Dessa forma, refletir sobre o ponto de vista da narração é fundamental para interagir ativamente com formulação de hipóteses no intuito de chegar a uma interpretação do texto, levando em consideração as características estruturais dele.
A questão QA3-C busca verificar através do estabelecimento de relações interdiscursivas, a ativação de conhecimentos prévios relativos à temática interdiscursiva presente no conto. Mais uma vez, o processo de identificar essas relações ajuda a confrontar o horizonte de expectativa do estudante com uma nova forma de abordagem, nesse caso, referente a temática. Quase todos os alunos reconheceram uma temática em comum entre o primeiro conto lido “O Crime do Professor de Matemática”, de Clarice Lispector e o último conto “O Gato Preto” de Edgar Allan Poe. Durante o debate, após a realização das atividades escritas, os estudantes trocaram ideias relacionando os dois contos e como todos puderam sistematizar essas ideias, por meio dos questionários, o debate foi rico em perspectivas diferentes, dessa forma, houve uma ampliação, não só, da leitura pessoal dos contos por parte dos estudantes, como também, uma ampliação dos sentidos dos textos ao cruzarem suas expectativas com as dos colegas.
A questão QA3-D busca avaliar a estratégia de automonitoramento, na qual o leitor volta para reler um trecho na busca de confirmação, rejeição ou retificação das hipóteses ou expectativas formuladas, com o objetivo de entender melhor alguma parte. Para Feltes, “monitorar-se metacognitivamente em uma atividade é um processo que permite ao indivíduo observar e refletir sobre seus processos cognitivos com base em seus objetivos de compreensão e monitoramento” (2008, p.260). Essa estratégia ajuda o leitor a reconstruir novas expectativas em função das pistas textuais apresentadas ao longo da narração. Ao compararmos a quantidade de estudantes que afirmaram ter realizado essa estratégia, teremos na fase I (QA1-D) 56,6% e na fase III (QA3-D) 64,2%, portanto houve uma maior interação do leitor.
A questão QA3-E pretende avaliar a estratégia de síntese semântica do texto, nesse caso, o leitor faz uma leitura global para identificar um tema. Dentre os vinte oito estudantes, três assinalaram “não” para essa questão, entretanto todos três tentaram responder à questão do QC3-5, a qual para ser respondida, eles teriam que estabelecer relação entre o título e o tema. Para tentar entendermos o ocorrido, analisamos as respostas desses estudantes ao (QC3-5):
Aluno 03: “o titulo e o Gato Preto o tema e sobre a morte do gato.”
Aluno 05: “O titulo é o “Gato Preto” e o tema abordado é surpertição.”
Aluno 15: “O gato preto Edgar Allan Poe.”
O estudante Aluno 15 apenas escreveu o título do conto, sem estabelecer relação, contudo os outros dois explicitaram o que para eles seria o tema. Sendo assim, apenas um estudante não conseguiu realizar a estratégia de síntese semântica do texto. Iremos analisar, posteriormente, com mais detalhes a forma como os estudantes responderam ao QC3-5.
A questão QA3-F visa avaliar a estratégia de predição e ao longo da leitura, realizar inferências para estabelecer relações com base em informações explícitas e implícitas no texto. Todos os estudantes afirmaram ter realizado essa estratégia, todavia quando analisamos a questão QC3-5, percebemos que alguns estudantes tiveram dificuldade para explicar a relação entre o título e o tema, conforme analisamos posteriormente. Podemos, no entanto, desde já, refletir sobre a relação entre pragmática e literatura com Marcelo Dascal (2006, p. 296-297) que apresenta um capítulo do seu livro Interpretação e Compreensão dedicado ao assunto.
Dascal comenta que alguns autores como Molière, por exemplo, acreditavam na capacidade de raciocinar e nas habilidades pragmáticas do ser humano, as quais eram exigidas de sua plateia para a compreensão da ironia que ele utilizou, por exemplo, na peça Escola de maridos, exigindo um esforço inferencial do público para entender a ambiguidade do título. Geralmente, alguns leitores supõem que o título de um livro forneça alguma pista sobre o seu conteúdo, a distância entre as expectativas do leitor, baseadas no significado semântico do título, e o conteúdo ou tema abordado no livro, podem levar o leitor a perguntar qual é a intenção do autor. Dessa forma, o estudante necessita olhar o título como uma pista e usá-la no processo interpretativo em busca de ligações na trama narrativa. No entanto, é muito comum o leitor tomar o título como representação da temática, conforme analisamos anteriormente nas respostas dadas por alguns alunos aos questionários QC1-4, QC2-4 e com maior evidência, apresentaremos ao analisar o resultado do QA3-f ao QC3-5.
A questão QA3-G busca verificar se o estudante realizou a estratégia de autoquestionamento. Essa ação estimula a reflexão crítica sobre as informações explicitas no texto. Ao comparamos com a questão QA2-F que buscou avaliar essa mesma estratégia na leitura do conto na fase II, verificamos um aumento no número de estudantes que realizaram essa ação, pois no QA2-F foi de 56,6% e no QA3-G passou para 67,8%. É importante estabelecer essa leitura crítica de se questionar sobre a sinceridade do narrador, para distinguir a fantasia/ a ilusão/ o fingimento/ a dissimulação da realidade (dos fatos) narrada. O narrador-personagem é o foco pelo qual sabemos de forma parcial, os fatos relatados, sendo assim, é necessário, juntar o quebra-cabeça da obra, com as pistas fornecidas através das descrições das ações, além dos relatos dele. Mesmo quando o narrador é observador, ele pode lançar opiniões sobre os fatos narrados e deixar o leitor em dúvida. Toda a construção tem um propósito criado pelo autor, no intuito de causar determinados efeitos no leitor. Dessa forma, olhar a estrutura do foco narrativo, tentando prever as intenções do autor não é uma ação que deva definir o tema do texto ou a interpretação por si só, mas ela é uma peça que deve ser combinada com outras para a formulação de uma interpretação textual. Cabe ao leitor fazer uso de estratégias de leitura para desenvolver a habilidade de combinação das pistas textuais na montagem da sua interpretação.
A questão QA3-H visa avaliar o uso de estratégia metacognitiva (transubstanciação da ficção) para a percepção do discurso universal no texto. Ao constatarmos que todos os estudantes afirmam ter refletido sobre o comportamento humano ou ter algum sentimento despertado a partir da leitura do conto, podemos entender que, de alguma forma, houve um envolvimento passional capaz de proporcionar ao estudante prazer e fruição durante a leitura. Sabemos, no entanto, que o uso dessa estratégia de leitura só será melhor avaliado ao compararmos esse resultado com as respostas dadas ao QC3-8.
Para complementarmos a análise do uso de estratégias metacognitivas de leitura, vamos analisar o desempenho dos estudantes ao responderem às questões do QC3, verificando se os resultados apresentados na tabela referente ao questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura são compatíveis ou não. Por conseguinte, poderemos avaliar se o uso dessas estratégias contribuiu para tornar o leitor mais ativo e com maior habilidade para perceber no texto literário o discurso universal.
(QC3-1): Qual a provável intenção do autor ao construir o conto com narrador-personagem?
A questão busca fazer o leitor pensar sobre uma das peças para montar a compreensão do conto. Entendemos, de acordo com Iser (1987, p.102), que o autor, texto e o leitor atuam como parceiros na descoberta da experiência humana presente no texto ficcional. Por isso, não só identificar o foco narrativo, mas se questionar sobre a escolha desse foco para narração é mister na compreensão de que o narrador não é para ser sempre identificado com o autor implícito
Lígia Chiappini Moraes Leite em seu livro O foco narrativo (ou a polêmica em torno da ilusão), define autor implícito como sendo “(…) uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram diretamente as personagens envolvidas na história” (1987, p. 19)..
Iser explica,
The reader is offered a host of different perspectives, and so is almost continually confronted with the problem of how to make them consistent
(...). (...) There can be no doubt that the author wants to induce his reader to assume a critical attitude toward the reality portrayed, but at the same time he gives him the alternative of adopting one of the views offered him, or developing one of his own (1987, p.118).
Ao leitor é dado uma série de diferentes perspectivas, e assim é quase continuamente confrontado com o problema de como torná-las consistentes (...). (...) Não há dúvidas de que o autor quer induzir o seu leitor a assumir uma atitude crítica com relação a realidade representada, mas ao mesmo tempo ele dá alternativas de adotar um dos pontos de vista oferecidos a ele, ou de desenvolver um ele mesmo (ISER, 1987, p.118).
Sendo assim, o aluno necessita utilizar estratégias para formular hipóteses sobre esse aspecto estrutural do texto e relacioná-lo a outros que situam o contexto das ações.
Os dados apresentaram que vinte e sete estudantes responderam à questão e alguns deles afirmaram que o autor queria causar algum tipo de efeito no leitor, exemplos:
Aluno 01: “Pra causar mais temor no conto.”
Aluno 12: “O autor contou a história como o personagem para causar mais emoção e curiosidade ao leitor, porque ele conta os fatos do ponto de vista dele.”
Aluno 13: “porque dá mais emoção no texto.”
Aluno 30: “O autor contou a história como o personagem para causar mais curiosidade e emoção na história.”
Alguns estudantes, sem perceber, se referiram ao autor e ao narrador como se fossem indissociáveis, mas a intenção era de justificar a escolha do autor, no entanto, isso só ficou claro quando eles verbalizaram suas opiniões durante o debate, exemplos:
Aluno 05: “A provável intensão do autor é prender a atenção do leitor e assim continuar lendo, e também ele viveu a história e quer contar.”
Aluno 14: “para chamar a nossa atenção e dar mais vontade de ler ao saber que o próprio personagem esta contando o que aconteceu com ele.”
Aluno 16: “que ele quis contar um história que fez parte da vida dele e o que ele se tornou quando o gato entrou na vida dele também e que ele matou o gato e a mulher dele.”
Aluno 22: “contar um acontecimento na vida dele, com o objetivo de ser “perdoado”, está arrependido.”
Alguns alunos tomam a narração como se fosse a verdade ou o único ponto de vista dos fatos narrados, sem observar outras pistas textuais, as quais podem fornecer indícios de que pode haver outra(s) versão(ões) implícita(s) na narração das ações descritas das outras personagens ou do próprio narrador, quando se trata de narrador-personagem, através de suas próprias vozes no texto. Exemplos:
Aluno 11: “deixar a história mas real.”
Aluno 19: “Caso outra pessoa contasse, ela poderia “aumentar” os fatos. Acho que o autor quis passar mais realidade e sinceridade, o narrador-personagem poderia explicar exatamente como agiu.”
Aluno 25: “deixar a história mais real, e com mais emoção.”
Aluno 26: “Transmitir mais realidade.”
Outros estudantes se questionaram sobre o foco narrativo, lendo o conto com uma perspectiva holística:
Aluno 04: “para quem está lendo se sentir que está fazendo parte da história.”
Aluno 17: “Contar o ponto de vista da personagem e nos fazer duvidar sobre os fatos narrados.”
Aluno 29: “Eu acho, que ele quis mostra o outro lado da história, a versão do criminoso do ponto de vista do causador do crime.”
(QC3-2): O que as ações do narrador-personagem revelam sobre sua personalidade?
Todos os estudantes responderam a essa questão. Ao respondê-la, o estudante teve de se colocar no texto para inferir, construir hipóteses e realizar essas ações dentro do contexto narrado, fazendo gerar mais uma peça para construção da interpretação. Exemplos:
Aluno 04: “ele é bom faz coisas bouas, cuida de animais mas o gato preto fez ele ser ruim.”
Aluno 09: “Ele era um homem bom. Mas, com o passar do tempo, o álcool tomou conta da sua vida e ele foi se tornando uma pessoa má e sem escrúpulos.”
Aluno 12: “Que ele é muito bipolar e muito agrecivo. Porque um estante ele é calmo e depois agressivo.”
Aluno 14: “Antes de começar com o vício do álcool ele era uma boa pessoa, porém, depois se tornou uma pessoa cruel, arrogante... com os mal tratos a esposa com as crueldades aos bixos podemos nota que ele não é uma pessoa que sente remoço ou algum sentimento de culpa porém no final ele sente vergonha de suas ações.”
Aluno 19: “Uma pessoa sem escrúpulos, muito agressivo e frio em suas ações.”
A maioria concluiu que a personagem só se tornou agressiva por conta do álcool, poucos alunos acharam que o gato e a bebida eram apenas desculpas (subterfúgios) para ele agir de forma violenta. Durante o debate foi mais interessante observar as justificativas dos estudantes para validar suas opiniões. A troca de leituras foi um momento de perceber que a estrutura do conto permite as várias interpretações. Diante disso, concordamos com Dascal que não toma a interpretação literária de forma pragmática, ele diz:
Uma das características do texto literário é que ele cria o seu próprio contexto. Em outras palavras, ele “internaliza” o contexto extralinguístico, transformando-o em co-texto linguístico, isto é, parte do texto em si. É verdade que permanece ligado aos eventos, lugares, figuras históricas e aos leitores do mundo externo (2006, p.298).
Dessa forma, o professor não pode fechar a questão com uma única alternativa interpretativa, mas possibilitar a multiplicidade de perspectivas geradas a partir do texto literário.
(QC3-3): O que os gatos representam no conto? Explique.
Todos os estudantes responderam a essa questão. Essa pergunta, também, ativa processos inferenciais e formulações de hipóteses para estimular a geração de mais um indício para a interpretação. Embora muitos tenham dado respostas parecidas ao afirmar que os gatos representam superstição ou bruxa disfarçada, se baseando em informações explícitas no texto, alguns alunos formularam outras hipóteses e essa era a intenção. Quanto mais diversas as relações estabelecidas, melhor seria o debate sobre as hipóteses levantadas. Vejamos alguns exemplos:
Aluno 04: “Os gatos representam maudição bruxaria, algo ruim.”
Aluno 08: “medo, porque os dois são pretos.”
Aluno 09: “Superstições. Porque depois que ele enforca o gato, uma coisa sobrenatural aconteceu.”
Aluno 15: “feiticeiras des farçadas.”
Aluno 17: “Os gatos representam superstição e nos faz duvidar sobre o verdadeiro culpado.”
Aluno 21: “todos os animais, que sofre maltratos que os humanos fazem com os animais.”
(QC3-4): Qual a relação entre o enforcamento do gato e a morte da mulher?
Essa questão, também, envolve a articulação de pistas textuais através de inferências e formulação de hipóteses na construção da interpretação. Apenas um aluno não respondeu, mas todos os outros tentaram construir relação. Alguns estabeleceram relação, pensando na causa, no motivo do enforcamento, por isso a maioria das respostas foram tentativas de identificar o culpado: o gato, a bebida, o homem. Exemplos:
Aluno 04: “A intenção dele matar os dois foi o próprio gato que fez ele sentir a vontade.”
Aluno 07: “por ele estava embriagado mais ele não queria fazer isso com a mulher.”
Aluno 20: “A relação é que as duas mortes foram causadas pelo mesmo homem.”
Aluno 18: “O mesmo assasino.”
Houve alguns alunos que estabeleceram relação apontando as circunstâncias. Exemplos:
Aluno 01: “A morte cruel, simplesmente por maudade da circunstancia.”
Aluno 03: “porque os dois morreram por uma raiva que deu no homem.”
Aluno 09: “Ele matou os dois porque fizeram algo que ele não gostou. O gato ficava fugindo dele toda hora. E a mulher impediu que ele matasse o segundo gato.”
Aluno 10: “A relação é que o gato que ele arrumou era parecido com seu primeiro gato então também eria mata o gato mas acabou atingindo sua esposa.”
Aluno 11: “Porque o primeiro gato foi morto por seu dono e o segundo que apareceu, lembrava muito ele levando o homem a mata-lo também mas ao tentar matar o gato ele atinge sua esposa mas sem intensão.”
Aluno 14: “Se for pensar no ponto supersticioso a morte da mulher foi como umas das tragedias causadas pelo o gato; ou seja como ele morreu á morte dela é uma das coisas ruins que sua morte trouxe. Porem ele mata a morte da mulher é tem relação pois aconteceu pela ira do homem.”
(QC3-5): Qual a relação entre o título e o tema abordado no conto?
Essa pergunta aciona a estratégia de síntese semântica do texto e faz o leitor estabelecer uma ligação entre suas expectativas e antecipações a respeito do título com sua leitura interpretativa do conto. A intenção é fazer com que o aluno expresse sua experiência leitora ao confrontar as expectativas criadas desde o início da leitura com a sua síntese semântica do conto.
É importante ressaltar que o conto “O Gato Preto” é maior que os anteriores e isso exigiu mais tempo de leitura antes de responder aos questionários. A primeira leitura foi feita de forma individual, por cada aluno, depois eles ouviram um áudio do conto, as leituras foram realizadas em um dia (com o guia de leitura), em seguida responderam ao QA3 e no outro dia eles puderam reler o conto antes de responderem ao QC3. Todos os contos (da fase I, II e III) foram lidos mais de uma vez, antes de serem respondidos os questionários de compreensão, pois consideramos importante para uma melhor interpretação do conto, não só porque alguns alunos estão em fase de desenvolvimento da fluência leitora, mas também, porque acreditamos que uma segunda leitura trará uma ampliação de sentidos para o conto, podendo ajudar no desenvolvimento desse olhar múltiplo para o texto literário.
De acordo com Iser,
(...) when we have finished the text, and read it again, clearly our extra knowledge will result in a different time sequence; we shall tend to establish connections by referring to our awareness of what is to come, and so certain aspects of the text will assume a significance we did not attach to them on a first reading, while others will recede into the back-ground (1987, p. 281)
quando nós finalizamos o texto, e o lemos novamente, claramente nosso conhecimento extra irá resultar em uma sequência de tempo diferente; nós tenderemos a estabelecer conexões acerca da nossa ciência do que está por vir, e assim certos aspectos do texto irão assumir uma significância que nós não lhe atribuímos na primeira leitura, enquanto outras irão para o segundo plano (ISER, 1987, p. 281)..
Para Iser todas as vezes que relemos um texto, uma nova perspectiva é ativada, mas isso não significa que a primeira leitura é mais verdadeira que a segunda, elas são apenas diferentes, assim ele explica que
In whatever way, and under whatever circumstances the reader may link the different phases of the text together, it will always be the process of anticipation and retrospection that leads to the formation of the virtual dimension, which in turn transforms the text into an experience for the reader. The way in which this experience comes about through a process of continual modification is closely akin to the way in which we gather experience in life. And thus the ‘reality’ of the reading experience can illuminate basic patterns of real experience (ISER, 1987, p.281, grifo do autor).
De qualquer maneira, e sob quaisquer circunstâncias o leitor pode ligar diferentes fases do texto em conjunto, será sempre o processo de antecipação e retrospecção que leva à formação da dimensão virtual, que por sua vez transforma o texto em uma experiência para o leitor. A forma na qual essa experiência vem através de um processo de modificação contínua está muito próxima à maneira em que podemos adquirir experiência na vida. E, assim, a ‘realidade’ da experiência de leitura pode iluminar padrões básicos de experiência real (ISER, 1987, p.281, grifo do autor).
Consideramos Virginia Woolf como uma precursora na elaboração de estratégias de leitura do texto literário, pois no seu ensaio Como se deve ler um livro? ela apresenta onze propostas de como fazer a leitura, no entanto, antes de relatá-las, ela alerta para o leitor não aceitar nenhum conselho, pois é necessário “seguir os próprios instintos, usar seu próprio bom senso e tirar suas próprias conclusões” (WOOLF, 2014, p. 164). Dentre as propostas dela, uma é: “deixe que a poeira da leitura se assente; que o conflito e o questionamento se aquietem; caminhe, converse, tire as pétalas secas de uma rosa, ou então durma. (...) o livro irá retornar, mas de outro modo, flutuando até o topo da mente como um todo” (WOOLF, 2014, p.178). Woolf fala da importância de dar um tempo para o amadurecimento da leitura e essa estratégia, de fato, comprova que digerir um texto literário pode levar tempo e isso é necessário para uma percepção de detalhes que na primeira leitura podem passar despercebidos.
Analisando as respostas dadas a essa questão, percebemos que muitos estudantes explicaram essa relação, levando em consideração as pistas textuais implícitas no texto. Exemplos:
Aluno 12: “Os dois fala sobre o gato preto. E o gato serve como desculpa para tudo o que o que ele faz.”
Aluno 14: “O gato preto e as superstições que ocorre no texto; as tragédias que acontece é referente ao gato.”
Aluno 17: “A relação é que muitas pessoas não acreditam que gatos pretos trazem azar e as ações do homem em relação ao gato e as coisas que aconteceram ao homem após seus atos cruéis nós faz pensar sobre superstição.”
Aluno 19: “Dizem que o gato preto dá azar, e as ações do homem podem ter tido alguma relação com o gato. Ele também tenta trazer suspense com o título.”
Entretanto, percebemos que alguns estudantes que não quiseram reler o texto, pois confiaram na leitura que haviam feito na aula anterior, usaram o título como sinônimo do tema, ou seja, levaram em consideração apenas a informação explícita, sem relacioná-la às outras pistas textuais. Exemplos:
Aluno 09: “A relação é que o texto gira ao redor do gato preto, a história é praticamente toda falando sobre ele. Por isso o título.”
Aluno 11: “Porque o titulo é – O Gato Preto – e o tema é sobre um gato que o dono mato que também era preto.”
Aluno 20: “O título é “O Gato Preto”, o tema fala sobre o gato, as suas superstições.”
Essa questão exige um esforço maior do leitor para criar relações a partir de inferências do título e de uma síntese semântica do conto. Embora todos tenham tentado responder a essa pergunta, a maioria das respostas foram aquém do solicitado, insuficientes para contemplar, principalmente, a compreensão particular que cada um teve do tema. Além disso, poucos conseguiram deixar claro nas respostas a relação que estabeleceram. Mesmo assim, a tentativa de responder mostra que todos eles realizaram o esforço metacognitivo para estabelecer conexões entre as pistas textuais. Portanto, foi importante a tentativa de sistematização das ideias no guia de leitura e a reflexão para responder a essa questão, pois durante o debate, essas lacunas puderam ser preenchidas.
(QC3-6): Qual a passagem do conto que lhe chamou mais atenção? Por quê?
Essa questão faz o estudante pensar sobre a parte do texto que lhe causou algum efeito, não necessariamente é o que mais gostou, mas o que lhe causou um estranhamento, uma percepção nova das coisas. Podemos tentar perceber por meio das explicações dos alunos o efeito que determinada cena lhes causou.
É necessário que o estudante tenha passado pelo processo de fruição e catarse para escolher a passagem que mais lhe chamou atenção. Mesmo que alguns estudantes não consigam relatar o porquê da escolha, o simples fato de decidir já revela que esse momento foi vivenciado.
Para Iser, ao ler qualquer texto, o leitor pode ficar confuso, ou seja, experienciar momentos de contradições sobre sentimentos referentes ao que é lido, mas quando se trata de um texto literário, nós temos a estranha situação de não sabermos o que nossa participação como parte da construção de sentidos do texto pode ocasionar:
We know that we share in certain experiences, but we do not know what happens to us in the course of this process. This is why, when we have been particularly impressed by a book, we feel the need to talk about it; we do not want to get away from it by talking about it – we simply want to understand more clearly what it is in which we have been entangled (ISER, 1987, p.290).
Nós sabemos que compartilhamos em certas experiências, mas nós não sabemos o que acontece conosco no curso desse processo. Isso é motivo pelo qual, quando ficamos particularmente impressionados por um livro, nós sentimos a necessidade de falar sobre ele; por falar sobre ele, nós não queremos o abandonar – nós simplesmente queremos entender mais claramente o que isso é na forma como nós fomos enredados (ISER, 1987, p.290)
Essa experiência leitora é o ponto de partida para o interesse dos estudantes em compartilhar suas impressões sobre o texto, enriquecendo o debate. Mesmo que nem todos soubessem como expressar o porquê das suas escolhas, todos eles selecionaram uma situação da narração. Vejamos alguns exemplos:
Aluno 01: “A parte em que ele debocha falando da parede e acabam descobrindo e acham o gato e a mulher porque ele mesmo revela sua maudade.”
Aluno 04: “A parte em que a casa pegou fogo, fiquei imprecionado.”
Aluno 07: “na hora da morte da mulher por que mim deu raiva.”
Aluno 09: “A parte em que a casa fica em chamas e depois a imagem do gato enforcado aparece na parede. Porque me causou emoção e mistério.”
Aluno 12: “A parte que ele matou a mulher. Porque ele concegue esconde-la com maior calma na alma.”
Aluno 13: “na hora que os policiais chegam para revistar a casa do homem. Porque me deixou nervoso.”
Aluno 17: “A parte onde ele mata a esposa, porque foi algo totalmente inesperado.”
Aluno 19: “O final, quando os policiais encontram o corpo, pois “mentira tem perna curta”, e o homem estava muito seguro do seu ato. Também gosto da mensagem que o autor quis passar.”
Aluno 22: “Quando logo depois que o homem enforca o gato a casa dele começou a pegar fogo, foi quando mais me interessei pela história, me senti na curiosidade de saber o porque de tudo aquilo.”
Aluno 23: “me chamou atenção na parte em que ele diz “queima-me a vergonha e todo eu estremeço ao escrever esta abominável atrocidade”, como se ele tivesse arrependido e se senti-se vergonha do seu ato.”
Analisando, especificamente, uma das respostas, notamos o Aluno 19 identificou uma “lição de moral” implícita no ditado popular “mentira tem perna curta”, mas não explicou o que isso provocou nele. Sua resposta não apresenta uma percepção crítica ao ponderar sobre esse “valor”. Conforme já relatamos anteriormente, consideramos que essa ação é uma estratégia metacognitiva, por se tratar de um esforço cognitivo consciente para estabelecer relações entre a ficção e a realidade extratextual, baseando-se em supostos valores éticos e morais presentes na obra, como uma forma de substancialização da ficção.
(QC3-7): É possível estabelecer relação entre ficção e a realidade extratextual? Explique.
Essa questão tenta avaliar se o estudante conseguiu utilizar estratégia metacognitiva para estabelecer ligações entre ficção e realidade como uma das formas de juntar as pistas textuais e perceber o discurso universal intrínseco. Ao responder a essa pergunta o aluno precisa estabelecer múltiplas conexões entre as pistas textuais implícitas e explícitas para a construção de uma síntese semântica do conto e relacioná-la ao comportamento humano, não obstante as respostas dadas sejam insuficientes para tentar analisar se houve uso dessa estratégia, ainda assim, é possível analisar a forma como essa ligação foi estabelecida e ao comparamos com as repostas dadas ao QC3-8 poderemos chegar mais próximos a verificação dessa estratégia. Portanto, essa questão funciona como mais uma tentativa de analisarmos, também, a recepção da obra pelo leitor. De acordo com Jauss,
Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais do que si mesmo: experimenta-se na apropriação de uma experiência do sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua atividade produtora, quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é passível de ser confirmado pela audiência de terceiros (1979, p.77, grifo nosso).
O aluno quando consegue se apropriar dos sentidos do mundo por meio da ficção chega a estabelecer uma estratégia de transubstanciação da ficção, ou seja, ir além do reconhecimento da verossimilhança no texto, ele transforma a ficção em uma apreensão do discurso universal inerente ao texto literário, através das sensações provocadas pelos momentos de fruição e catarse durante a leitura.
Percebemos a partir das respostas de alguns estudantes que eles associaram a ficção com a representação da realidade, ao entenderem que algumas ações praticadas pela personagem acontecem na vida real. Há uma forte tendência dos alunos a se prenderem aos aspectos que representam maior grau de verossimilhança para estabelecer relação com a realidade, isso faz passar despercebido o aspecto fantástico do conto que representa não apenas a superstição, mas cria a ambiguidade na tentativa de definição do que poderia ser a verdadeira causa das ações da personagem. Assim, o aspecto fantástico, poderia ser apreendido como mais uma forma de representação da realidade. Essa outra perspectiva só pôde ser melhor compreendida durante o debate, quando alguns alunos entraram em divergência sobre seus posicionamentos acerca da causa das ações (o gato [como elemento de superstição], o homem [intencionalmente], a bebida/efeito do álcool). O aluno 26 entendeu de forma ainda mais extrema essa verossimilhança ao afirmar que os fatos são reais. Para ele, a história foi escrita baseada em fatos que o autor ou vivenciou ou viu acontecer.
Exemplos de algumas das respostas:
Aluno 05: “Sim é possível. Porque toda ficção tem um pouco de realidade naquilo que diz.”
Aluno 17: “Sim, porque nos faz refletir sobre o comportamento humano.”
Aluno 18: “sim por humanos que maltratam seus maltratam seus proprio animais por causa da bebida.”
Aluno 19: “Sim, porque essa brutalidade e agressividade, que na minha opinião estão relacionados ao álcool, já que não acredito em superstições, são muito comuns na vida real.”
Aluno 21: “Sim, porque os seres humanos são improvável que nem o do conto.”
Aluno 22: “Sim, as supertições e violência, alcoolismo, bipolaridade.”
Aluno 27: “sim porque na vida real tem pessoas que agem da mesma forma.”
Vamos retomar uma das propostas de leitura de Virginia Woolf em Como se deve ler um livro? para reflexão aqui, pois a primeira proposta dela diz que “é preciso parar para pensar em nossas expectativas” (2014, p.165), ou seja, é importante fazer uma autoavaliação ou automonitoramento das expectativas e hipóteses que fazemos não só antes, como durante a leitura. Para Woolf,
Poucas porém são as pessoas que aos livros pedem o que os livros são capazes de dar. É mais comum que os abordemos com a mente toldada e dividida, pedindo à ficção que seja verídica. Se pudéssemos banir, quando lemos, todas as ideias preconcebidas, isso seria um admirável começo (2014, p.165, grifos nossos).
Podemos banir as ideias preconcebidas quando a avaliamos, com base nas pistas textuais fornecidas pelo texto, se nossas hipóteses e expectativas estão sendo confirmadas ou refutadas. Mais uma vez, notamos a necessidade de uma leitura ativa, por meio de uso de estratégias metacognitivas de leitura para uma interação na qual o leitor possa participar da construção de sentidos do texto, explorando não só as pistas explícitas, como as implícitas. Dessa forma, o leitor poderá lidar com a verossimilhança presente na narração, ao entender que a ficção não é representação fiel da realidade.
Muitos alunos ao responderem à questão estabeleceram a relação entre ficção e realidade e essa ação foi muito importante para tornar o debate mais rico, pois como a maioria percebeu a relação, observando os aspectos de maior verossimilhança, quando os outros que estabeleceram relação, observando o aspecto fantástico do conto se colocaram, houve uma ampliação dos horizontes de expectativas deles.
Dois alunos (Aluno 03 e Aluno 08) não souberam responder a essa questão, mas eles responderam a outra questão que analisaremos em seguida e por meio da resposta que eles deram, percebemos que eles, também, estabeleceram relações entre ficção e realidade.
(QC3-8): A leitura desse conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano?
Essa questão é uma tentativa de avaliar se o estudante realizou a estratégia metacognitiva para perceber o discurso universal no conto. Acreditamos que ela é resultado de uma série de outras estratégias metacognitivas realizadas durante todo o processo de leitura. Assim como uma síntese semântica, só é feita a partir de uma série de levantamentos de expectativas, formulações de hipóteses, com processos inferenciais sendo avaliados e reformulados ao longo do processo de leitura, essa estratégia metacognitiva que visa a apreensão do discurso universal no texto literário, como uma forma de transubstanciação da ficção só é realizada se o leitor conseguir relacionar a ficção com a realidade e perceber através das sensações de prazer, fruição e catarse o discurso universal presente no texto.
Iser trata da importância das interconexões que o leitor faz ao relacionar as memórias de leitura iniciais com as finais e criar novas expectativas. Para ele,
(...) the reader, in establishing these interrelations between past, present and future, actually causes the text to reveal its potential multiplicity of connections (…) This is why the reader often feels involved in events which, at the time of reading, seem real to him, even though in fact they are very far from his own reality. The fact that completely different readers can be differently affected by the ‘reality’ of a particular text is ample evidence of the degree to which literary texts transform reading into a creative process that is far above mere perception of what is written. The literary text activates our own faculties, enabling us to recreate the world it presents (1987, p.278-279, grifos do autor).
(...) o leitor ao estabelecer essas interconexões entre passado, presente e futuro, na verdade propicia que o texto revele seu potencial de multiplicidade de conexões (...) é por isso que o leitor muitas vezes se sente envolvido em eventos nos quais, no momento da leitura, parecem reais para ele, mesmo que na verdade eles estejam muito longe de sua própria realidade. O fato de que leitores completamente diferentes podem ser afetados pela “realidade” de um texto em particular é uma ampla evidência do grau em que os textos literários transformam a leitura em um processo criativo que está muito acima da mera percepção do que foi escrito. O texto literário ativa nossas próprias capacidades, nos possibilitando criar o mundo que ele representa (1987, p.278-279, grifos do autor)
Podemos perceber nessa citação a estreita relação que é possível estabelecer entre o processo de leitura na percepção de Iser e a abordagem com as estratégias metacognitivas de leitura antes, durante e após o processo. Na realidade, a leitura ativa favorece uma melhor compreensão para a leitura de qualquer gênero textual, a peculiaridade que faz o texto literário ser diferente dos outros reside, especificamente, na capacidade de transubstanciar a ficção em realidade para compreender o discurso universal inerente a ele. Para Iser (1987, p.279) essa leitura ativa é caracterizada por ser constituída de uma perspectiva caleidoscópica, com pré-intenções e lembranças. Tudo isso é justamente o que se propõe ao leitor, quando são ativadas suas capacidades cognitivas de forma consciente.
Quando o estudante fala sobre como o texto literário lhe afetou, ele está deixando revelar um pouco do processo que leva a percepção de uma compreensão caleidoscópica da obra. Então, o estímulo para que a capacidade de transubstanciação da ficção seja ativada é fazer o leitor pensar conscientemente sobre as relações da ficção com o mundo e o efeito que ela teve sobre ele. Alguns leitores conseguem atingir essa percepção através de sua própria leitura, enquanto outros precisam trocar ideias durante o debate para chegar a esse mesmo nível de compreensão. No entanto, o debate faz com que tanto os que chegaram a percepção por conta própria, quanto os outros, ampliem ainda mais sua leitura, resultando numa troca de ideias culturalmente e humanamente mais rica.
Vejamos algumas respostas dadas a essa pergunta:
Aluno 01: “Eu sentir raiva pelas maldades, mais, ao mesmo tempo gostei pois ouvi justiça e vigança da humanidade na vida dele pelo que ele cometeu.”
Aluno 05: “sim me fez refletir. Porque todo ser humano tem sentimentos, e nós não podemos mudar o que fizemos mais sim o que faremos...”
Aluno 08: “Que pessoas como eu pode simplesmente ter medo de um gato.”
Aluno 09: “Sim. A mudança de caráter faz muita diferença na vida das pessoas. O álcool é a pior doença que pode existir na vida de alguém. Eu senti muita dó da mulher e dos animais e também raiva e repugnação pelos atos do homem.”
Aluno 15: “Sentimento de resolver esse mistério ou ansioso porque e um mistério interessante.”
Aluno 16: “Eu achei que no comportamento humano, nós não somos assim, somos mais carinhosos com os gatos.”
Aluno 17: “Me fez refletir como as pessoas podem ficar cada vez mais violentas e em como a bebida e a raiva podem destruir as pessoas.”
Aluno 19: “Sim, fiquei interessada para saber o final, querendo descobrir os motivos dos atos dele. Também refleti sobre o comportamento humano, realmente existem muitas pessoas sem escrúpulos como ele. E também fiquei curiosa para saber como as pessoas descobririam a verdade sobre ele, e que fim o gato levaria.”
Aluno 20: “Sim, sentimento de raiva... E me fez refletir. Pelo o que eu acho ele matou a mulher por causa do álcoolismo e gato por causa de raiva também. E me fez refletir que nunca podemos mudar o passado, mas podemos m udar o futuro.”
Aluno 22: “Sim, um desprezo por tudo que o homem fez, triste por tudo que aconteceu com a mulher e o gato.”
Aluno 29: “sim. Eu vi que o ser humano ás vezes pode ser muito cruel. E eu senti vontade de descobri o por que dele matar a sua mulher.”
Notamos que muitos alunos ainda se prendem ao enredo para justificar seus valores morais em relação às ações da personagem. Dessa forma, a leitura ainda está sendo feita como uma substancialização da ficção. Por outro lado, outros já possuem uma visão mais ampla e percebem o discurso universal da representação da ficção, como exemplos, temos o Aluno 05, Aluno 17, Aluno 19 e Aluno 29.
Com base nos dados computados, pudemos avaliar que é possível oferecer um ensino de leitura do texto literário voltado para conceder ao estudante um momento de fruição da obra, propiciando a interação efetiva e mais íntima entre leitor e texto. Constatamos, com base na teoria do efeito estético de Iser que ler um texto literário é como contemplar uma obra de arte por meio do processo de recriação. Para ele,
the act of recreation is not a smooth or continuous process, but one which, in its essence, relies on interruptions of the flow to render it efficacious. We look forward, we look back, we decide, we change our decisions, we form expectations, we are shocked by their nonfulfillment, we question, we muse, we accept, we reject; this is the dynamic process of recreation (ISER, 1987, p.288, grifo do autor).
A ação de recriação não é um processo regular e contínuo, mas um que, em sua essência, baseia-se em interrupções do fluxo para torná-lo eficaz. Nós olhamos para frente, nós olhamos para trás, nós decidimos, nós mudamos nossas decisões, nós formulamos expectativas, nós ficamos afetados com a não realização, nós questionamos, nós meditamos, nós aceitamos, nós rejeitamos, este é um processo dinâmico de recriação (ISER, 1987, p.288, grifo do autor)
Dessa forma procuramos contemplar, de modo explícito, estratégias metacognitivas de leitura na abordagem de ensino, no intuito de oferecer ao estudante recursos para interação ativa na leitura do texto literário, pois acreditamos que essa seja uma das formas de fazê-lo perceber o discurso universal inerente aos gêneros desse domínio discursivo.
Ao estimular o uso das estratégias metacognitivas de leitura na abordagem do texto literário, percebemos uma maior participação dos estudantes ao criarem expectativas, formularem hipótese, avaliá-las, testá-las e reconstruí-las, durante o processo de leitura. Assim, elas funcionaram como estímulo para a formação mais consciente do papel fundamental do leitor para a construção de significações que o texto literário pode oferecer. Ativar essas estratégias possibilitou uma ampliação do prazer da leitura, um aspecto imprescindível para a recepção da obra literária, como nos adverte Jauss ao dizer que
A atitude de prazer, que arte provoca e possibilita, é a experiência estética primordial. Ela não pode ser suprimida; pelo contrário, deve voltar a ser objeto de reflexão teórica, quando se trata hoje de defender a função social da arte e da ciência que a serve contra os que – letrados ou não – suspeitam dela (JAUSS apud ZILBERMAN, 1989, p. 49).
Podemos concluir que não basta apenas debater sobre o texto com os alunos, sem antes, aprofundar a compreensão acerca dele. Muitas vezes, o professor direciona a leitura sem ativar, de modo consciente e planejado, estratégias para uma interação reflexiva antes, durante e após a leitura do texto e, consequentemente, o aluno a faz de forma linear, com o propósito de cumprir uma atividade, na qual a interpretação é única, baseada em um gabarito pré-determinado pelo livro didático ou pelo professor. Nessa situação, ele não se coloca como parte fundamental do processo de significação do texto, pois sua interpretação nem sempre condiz com o gabarito proposto. O processo crítico e criativo da leitura não é valorizado, quando o aluno é impedido de formular suas ideias e monitorá-las. Por isso, acreditamos que é mister o leitor ter um momento de intimidade com o texto: ler e reler, formular e reformular suas concepções, amadurecer suas ideias e ampliar seus horizontes de expectativas num processo de interação ativa. Só depois, ele terá condições de se expressar a respeito de suas conclusões e estar aberto a trocar suas leituras com outros, resultando numa ampliação dos sentidos do mundo, na descoberta do discurso universal inerente ao texto literário.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Che non men che saper dubbiar m’aggrada.
(Dante, Inferno, xi, 93)
Essa epígrafe pode ser encontrada como citação no ensaio de Montaigne Sobre a educação das crianças, no qual ele alerta: “Obest plerumque iis, qui discere volunt, auctoritas eorum, qui docente (A autoridade dos que querem ensinar é, no mais das vezes, nociva para os que querem aprender)” (2010, p.65). Essa ideia nos permite retomar as primeiras reflexões feitas nesta dissertação sobre a prática do ensino de literatura na escola.
Pudemos discorrer sobre as ações dos professores ao direcionar uma leitura do texto literário pré-determinando valores e interpretações, os quais podem interferir na construção de significação do texto pelo aluno. Percebemos que para possibilitar uma interação mais efetiva entre estudante e a obra literária é necessária uma abordagem na qual o leitor se sinta parte essencial do processo de construção de significação do texto. Para isso, o professor deve ter cuidado ao direcionar as atividades, não deixando transparecer suas leituras do texto antes de propor a leitura, pois como ele é visto como autoridade e formador de opinião, o estudante, com senso crítico em desenvolvimento, pode tomar sua interpretação como a verdadeira ou a única, e, consequentemente, vai tentar esforçar-se para enxergar no texto o que o professor sugestiona.
Devemos levar em consideração as reflexões de Montaigne no ensaio acima citado, pois uma das suas sábias frases retrata bem o papel que um professor, na função de mediador, deve exercer ao dizer: “que o preceptor faça o menino tudo passar pelo próprio crivo e que nada aloje em sua cabeça por simples autoridade ou confiança (...) que lhe proponham essa diversidade de julgamentos e ele escolherá, se puder, do contrário permanecerá na dúvida” (MONTAIGNE, 2010, p.66). O estudante deve exercitar sua capacidade de analisar várias proposições, tirar conclusões e por que (não) duvidar? Duvidar é um ótimo exercício durante a leitura de qualquer texto, especialmente, o literário, pois como sabemos ele não é um sistema de interpretação fechada, embora as formulações estejam sempre ligadas ao jogo do texto.
Compreendemos a necessidade de o professor ter consciência de que “a literatura não pode simplesmente ser vista como uma unidade definida de sentido referencial que pode ser decodificado sem deixar resíduo” (MAN, 1996, p. 18). Por isso, mais uma vez, enfatizamos a importância de utilizar recursos para propiciar ao estudante um momento de intimidade com o texto literário. Observamos que por meio do uso de estratégias metacognitivas de leitura podemos estimular o estudante a criar expectativas, formular questões, gerar hipóteses, as quais serão testadas, depois, avaliadas e passarão por um contínuo processo de (re)construção. Dessa forma, estaremos viabilizando um ensino mais significativo que proporcione ao aluno vivenciar momentos de fruição e de forma catártica, intensificar o prazer da leitura, com o propósito de fazer o aluno perceber a função da literatura através do reconhecimento do discurso universal a ela intrínseca.
Através da aplicação de uma abordagem de ensino que contribuiu para formação do leitor literário a partir de atividades com estratégias metacognitivas de leitura, o estudante pôde se colocar como parte fundamental no processo de significação. Com isso, esta pesquisa nos fez refletir sobre a importância da percepção do discurso universal da obra literária no trabalho com o texto literário na sala de aula. Pudemos perceber que o reconhecimento dessa característica no texto provoca uma transformação no mundo do leitor, o faz ampliar seu horizonte de expectativas e, consequentemente, sua percepção do mundo. Quanto mais plural for a percepção sobre as temáticas representadas no texto ficcional, melhor será o processo humanizador de reconstrução contínua de valores e ideologias. Assim, o leitor adquire a capacidade de ser mais tolerante com o(s) outro(s), podendo trocar ideias ao estabelecer pontes entre seu ponto de vista e o(s) do(s) outro(s), agregando, sempre, mais conhecimento, por fim, tornando-se culturalmente e humanamente mais rico.
A participação dos alunos durante as atividades comprova que quanto mais o estudante se coloca no texto, interage ativamente na construção de sentidos, maior é a facilidade de expressar sua compreensão com relação ao texto. A formação de leitores literariamente letrados é desenvolvida quando o estudante passa a ler, não apenas com o propósito de desvendar as tramas da narração, mas quando ele passa a refletir sobre os sentidos das ações narradas, relacionando-as às suas vivencias de mundo, sentindo prazer ao descobrir o discurso universal do texto literário.
Outrossim, apresentamos a possível relação entre a Teoria da Recepção e do Efeito Estético na prática pedagógica do ensino de literatura, ao abordarmos o ensino de leitura do conto com estratégias metacognitivas de leitura. Observamos que é possível estabelecer uma relação entre teoria e prática com o objetivo de utilizar o conhecimento acadêmico para aperfeiçoar a metodologia de ensino.
Entendemos que a articulação entre conceitos de áreas diferentes pode ser válida e coerente ao se complementarem de forma harmônica e resultar em uma abordagem capaz de fornecer meios para enfrentar os entraves referentes a prática de leitura de textos literários na sala de aula. Literatura e Linguística são áreas que compõem os estudos da linguagem e devem caminhar juntas, pois não há como separá-las quando objetivamos uma compreensão global do texto literário. É necessário conectar os aspectos estruturais, por meio de uma análise do uso da linguagem com a ajuda de conhecimentos linguísticos e associá-los aos aspectos literários, compreendendo o jogo do texto elaborado pelo autor para causar determinados efeitos de sentido com a ajuda de conhecimentos de teorias literárias, é claro que não devemos esquecer o papel ativo do leitor para participar na construção das interligações entre esses dois aspectos.
Outro ponto importante que expusemos foi como o uso de estratégias metacognitivas de leitura podem funcionar como caminhos para interconexão entre o leitor e a obra literária. Através das análises, percebemos que alguns estudantes ao lerem, sem monitorar a compreensão, elaboram hipóteses, sem testá-las e acabam gerando conclusões não autorizadas pelo texto. Portanto, foi necessário ensinar estratégias metacognitivas de leitura para que houvesse um automonitoramento ao testar e reconstruir as hipóteses geradas, além de desenvolver a habilidade de inferir através das pistas textuais explícitas e implícitas no texto.
Verificamos que é possível estimular o estudante a reconhecer o discurso universal no texto literário através do ensino de leitura com o uso de estratégias metacognitivas. Percebemos através das análises feitas, com base nas respostas dos estudantes aos questionários avaliativos de uso de estratégias metacognitivas de leitura e aos questionários de compreensão do conto que o ensino das estratégias metacognitivas de leitura aliado a uma abordagem que favoreça a troca de ideias sobre o texto literário contribuem para a formação de um leitor mais crítico e criativo, capaz de desenvolver sua autonomia leitora e interagir com as múltiplas possibilidades de leitura do texto literário.
Dentre as muitas estratégias metacognitivas de leitura, uma delas foi de fundamental importância para a percepção do discurso universal, pois possibilitou um esforço cognitivo consciente para estabelecer relação entre a ficção e a realidade extratextual que vai além da concretização das ações presentes na narração ficcional, pois possibilita uma visão holística para reconhecer no texto a representação de suas vivências humanas. Por isso, concluímos que a descoberta do discurso universal acontece quando há um momento de fruição, o qual desencadeia o prazer catártico de se reconhecer no texto ou reconhecer a outro(s) e ao mesmo tempo elucubrar sobre a sensação de vivenciar os sentimentos e ações humanas representados pela ficção, ou seja, um processo de transubstanciação da ficção, o qual acreditamos se tratar de uma estratégia metacognitiva.
Com base nos dados coletados nesta pesquisa, verificamos que embora houvesse uma melhora significativa com relação às habilidades leitoras dos estudantes, não podemos esquecer que há quatro eixos no ensino de língua portuguesa e esta pesquisa só pôde contemplar, de forma mais específica, um deles – a leitura. Portanto, nossa missão não termina aqui. Ainda é necessário investigar o processo de escrita (com produção textual), oralidade e conhecimentos linguísticos, como um eixo inerente aos outros (o entendemos como um aspecto essencial no estudo da linguagem, que apesar de poder ser estudado de forma analítica, não pode se desvincular para um estudo isolado que desconsidere sua condição de estrutura constitutiva nos processos de escrita, oralidade e leitura, por estar entrelaçado a esses outros três eixos), portanto, precisamos dedicar atenção investigativa na abordagem desse aspecto fulcral, também.
Podemos concluir nos perguntando: Será que essa abordagem é a ideal para a formação do leitor literário? Essa é uma questão contingencial e tentar encontrar uma justificativa para persuadir a favor não provaria nada. Digamos, então, que esta abordagem aqui defendida é mais uma modalidade de ensino que pode ser levada em consideração e adaptada para qualquer grau de escolaridade, observando o gênero literário trabalhado e o nível instrucional dos alunos. Portanto, podemos apenas advertir que, se o professor souber utilizar os conceitos chaves aqui apresentados (fazendo as adaptações necessárias), será possível uma formação capaz de proporcionar estratégias metacognitivas no intuito de estimular a percepção do discurso universal no texto literário.
REFERÊNCIAS
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APÊNDICE – Roteiro de atividades e materiais utilizados
1ª etapa
Atividade com o conto O Crime do Professor de Matemática (Clarisse Lispector)
Módulo 1:
Atividade diagnóstica. O professor explicará aos estudantes que eles lerão um conto, em seguida responderão dois questionários, sendo um de verificação de estratégias de leitura e outro de compreensão do conto. Depois poderão expor livremente suas impressões sobre o conto e debater sobre os aspectos literários do texto.
O questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura apresenta questões para verificar se o estudante utilizou estratégias de leitura antes, durante e após a leitura do conto:
Questão (a) ativação de conhecimentos prévios;
Questão (b) (predição) inferência com ativação de conhecimentos prévios;
Questão (c) (predição) inferência com expectativa criada com base em informações implícitas;
Questão (d) (automonitoramento e autocorreção) confirmação, rejeição ou retificação das antecipações ou expectativas;
Questão (e) (autoavaliação) formulação de conclusões sobre informações implícitas no texto;
Questão (f) (autoavaliação) construção de síntese semântica do texto;
Questão (g) (síntese) leitura global do texto;
Questão (h) (transubstanciação da ficção
Usamos esse termo até descobrir se existe alguma outra expressão para essa estratégia ou se não houver, até pensar em uma nomenclatura que represente melhor essa categoria.) inferência da leitura literária (percepção do discurso universal) do texto;
O questionário de compreensão do conto tem como objetivo verificar se o estudante interpreta o conto fazendo inferências para perceber os sentidos implícitos no enredo.
Questionário de compreensão do conto (QCC1)
Qual o provável motivo de a autora ter caracterizado a personagem principal como professor de matemática?
Para a personagem, qual foi o crime que ele cometeu? Explique.
Qual a relação entre o cachorro enterrado e o cachorro da personagem?
De que trata o texto?
É possível estabelecer relação entre ficção e a realidade? Explique.
A leitura desse conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano? Explique.
Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QAEM1)
Com base na leitura do conto responda:
Ao ler o título, você criou expectativas sobre qual tipo de crime a personagem teria cometido?
( ) sim ( ) não
Ao ler a primeira parte do conto, você imaginou o que a personagem estaria enterrando?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você refletiu sobre o porquê a personagem estava enterrando um cachorro?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você parou para reler alguma parte?
( ) sim ( ) não
Você compreendeu por que a personagem estava enterrando o cachorro?
( ) sim ( ) não
Você conseguiu entender o tema abordado no conto?
( ) sim ( ) não
Você conseguiu estabelecer relação entre o título do conto e o enredo:
( ) sim ( ) não
A leitura do conto fez você refletir sobre o comportamento humano?
( ) sim ( ) não
2ª etapa
Atividades com o conto O Conto se Apresenta (Moacyr Scliar)
Módulo 1:
Reflexão sobre o texto literário. O que torna um texto literário?
Quais são as características comuns dos textos narrativos?
Leitura passiva x leitura ativa
Questões para levantamento do conhecimento prévio sobre o gênero e sua estrutura: O que é o conto? Como surgiu? Quais textos narrativos são semelhantes ao conto? Por quê?
Módulo 2:
Organizar os estudantes em círculo, apresentar os objetivos da aula. Leitura do texto: O conto se apresenta (Moacyr Scliar)
Leitura da biografia do autor e apresentação do suporte (livro em que foi publicado o conto).
Distribuir o guia de leitura, explicar como preencher e cada afirmação. O guia serve para que os estudantes ativem estratégias metacognitivas de leitura antes e durante a leitura do conto.
Distribuir o conto e orientar a leitura silenciosa. O conto será lido em dois momentos:
Os alunos preenchem a 1ª parte do guia de leitura (expectativas antes de ler) e iniciam a leitura silenciosa. Durante a leitura, preenchem a 2ª parte do guia de leitura. Após a leitura, os estudantes preenchem a 3ª parte do guia de leitura.
O professor lê o texto para os alunos ou faz leitura comparilhada.
Aplicação do questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura com questões para verificar se o estudante utilizou estratégias:
Questão (a) ativação de conhecimentos prévios;
Questão (b) (predição) por meio inferência com ativação de conhecimentos prévios;
Questão (c) (automonitoramento) através de inferência com expectativa criada com base em informações implícitas;
Questão (d) (automonitoramento e autocorreção) confirmação, rejeição ou retificação das antecipações ou expectativas;
Questão (e) (predição) por meio de inferência com base em informações explícitas no texto;
Questão (f) (autoquestionamento) posicionamento crítico diante do texto;
Questão (g) (síntese) leitura global do texto;
Questão (h) (transubstanciação da ficção) inferência da leitura literária (percepção do discurso universal) do texto;
Aplicação do questionário de compreensão/ interpretação do texto.
Exposição sobre as impressões do texto, os estudantes expõem livremente sobre suas leituras com a mediação do professor. (Para este projeto, esta etapa ficou após os questionários para não influenciar nas respostas e falsear os resultados, já que se pretende investigar a leitura individual de cada aluno. A troca de ideias sobre o texto contribui para uma melhor compreensão, mas pode forjar os dados sobre a compreensão individual, já que alguns alunos podem achar que a ideia do colega é melhor do que a dele ou até mesmo devido ao confronto de ideias ele amplia sua compreensão, mas acaba omitindo sua percepção inicial).
Guia de leitura
Texto lido: O Conto se Apresenta
Autor: Moacyr Scliar
Origem: Publicado no livro Era uma vez um conto em 2002 pela editora Companhia das letrinhas.
Escreva suas expectativas em relação a cada aspecto a ser analisado. Pense no porquê você (C)onfirma ou (R)efuta as expectativas iniciais. Se você não conseguir formular expectativas sobre determinado aspecto, coloque (N)ão formulei expectativas e após as atividades de leitura, prepare-se para compartilhar suas respostas com os colegas.
Aspectos analisados
EXPECTATIVAS
Antes de ler
Durante a leitura (C)onfirma, (R)efuta ou
(N)ão formulei expectativas
OBSERVAÇÕES
Após a leitura
Foco narrativo
O espaço
O tempo
Personagens
Tema
Aspecto(s) ficcional(is) em relação com a realidade extra textual
Guia de leitura do conto 2 (O Conto se Apresenta, de Moacyr Scliar)
Fonte: a autora
Questionário de compreensão do conto (QCC2)
Por que no texto a palavra Conto é escrita com letra maiúscula?
Vocês conseguem perceber com quem o texto dialoga? Explique.
Qual é a provável intenção do autor ao escrever esse conto com narrador-personagem?
Qual é o assunto tratado no conto?
Qual é a provável intenção do Conto (personagem) ao apresentar alguns escritores? Explique.
Sabemos que o conto pode apresentar como personagem seres mitológicos ou criaturas fantásticas, mas o Conto (personagem) diz que histórias sobre gente comum são mais interessantes. Por que ele diz isso? Você concorda?
A leitura desse conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano?
Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QAEM2)
Com base na leitura do conto responda:
Você fez alguma associação entre o título do texto e o que você já sabia sobre o que é um conto?
( ) sim ( ) não
Ao ler a primeira parte do conto, você imaginou que a personagem principal seria o próprio conto?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você refletiu sobre o porquê a personagem se dirigia diretamente ao leitor?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você compreendeu por que a personagem estava contando sua história?
( ) sim ( ) não
Quando o narrador-personagem apresentou alguns escritores, você criou expectativas sobre como seriam as histórias narradas por eles?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você se questionou por que o Conto (personagem) acha as histórias sobre pessoas comuns mais interessantes do que as histórias sobre seres mitológicos ou fantásticos?
( ) sim ( ) não
Você conseguiu entender o tema abordado no conto?
( ) sim ( ) não
A leitura do conto fez você refletir sobre a representação da realidade no texto ficcional?
( ) sim ( ) não
3ª etapa
Atividade com o conto O Gato Preto (Edgar Alan Poe)
Módulo 1:
Motivação para leitura do Conto. (O professor projeta a imagem de várias capas de livros que apresentam o conto que será lido e pede para os estudantes pensarem sobre qual a provável temática do conto e explicar suas conclusões com base nas imagens. Depois os estudantes anotam no caderno o que o gato preto representa para eles, essas anotações serão transcritas depois no guia de leitura na parte de Horizonte de Expectativa.)
Breve apresentação da biografia do autor.
Leitura do conto. O conto será lido em dois momentos:
Os alunos preenchem a 1ª parte do guia de leitura (expectativas antes de ler) e iniciam a leitura silenciosa. Durante a leitura, preenchem a 2ª parte do guia de leitura. Após a leitura, os estudantes preenchem a 3ª parte do guia de leitura.
O professor coloca o áudio do texto ou faz leitura comparilhada com os alunos.
Preenchimento do questionário de avaliação do uso de estratégias metacognitivas deleitura.
Questão (a) ativação de conhecimentos prévios;
Questão (b) (expectativa em relação a estrutura do enredo) ativação de conhecimentos prévios com estabelecimento de intertextualidade;
Questão (c) (expectativa em relação a temática) ativação de conhecimentos prévios com estabelecimento de intertextualidade;
Questão (d) (automonitoramento) confirmação, rejeição ou retificação das antecipações ou expectativas;
Questão (e) (síntese) leitura global do texto;
Questão (f) (predição) por meio de inferência com base em informações explícitas e implícitas no texto;
Questão (g) (autoquestionamento) posicionamento crítico diante do texto;
Questão (h) (transubstanciação da ficção) inferência da leitura literária (percepção do discurso universal) do texto;
Preenchimento do questionário de interpretação do texto.
Os estudantes expõem suas impressões sobre o conto com a mediação do professor.
Pesquisa sobre a biografia do autor. Jogo de perguntas e respostas sobre o autor.
Atividade dinâmica/ lúdica (Delegado, Vítima, Assassino). (O professor forma um círculo com os alunos e cada um recebe uma plaquinha com uma das funções, cada aluno terá um turno de fala seguindo a ordem Assassino Vítima Delegado. Os alunos irão supor que são personagens no conto e nesse caso a vítima (a mulher) conseguiu sobreviver. Quem representar o assassino terá que justificar sua tentativa de assassinato com base no que é dito na própria narração do conto lido tentando convencer o delegado de que não houve intenção de matar, a vítima terá que contar uma versão que convença o delegado de que houve intenção de matar, o delegado irá questionar o assassino e segue nessa ordem até todos terem falado. No final, será feita uma votação secreta, na qual quem representou o delegado vai decidir se houve ou não intenção de matar a vítima.)
Guia de Leitura
Texto lido: O Gato Preto
Autor: Edgar Allan Poe
Origem: Foi publicado em uma edição do Saturday Evening Post de 19 de agosto de 1843.
Escreva suas expectativas em relação a cada aspecto a ser analisado. Pense no porquê você (C)onfirma ou (R)efuta as expectativas iniciais. Se você não conseguir formular expectativas sobre determinado aspecto, coloque (N)ão formulei expectativas e após as atividades de leitura, prepare-se para compartilhar suas respostas com os colegas.
Aspectos analisados
EXPECTATIVAS
Antes de ler
Durante a leitura (C)onfirma, (R)efuta ou
(N)ão formulei expectativas
OBSERVAÇÕES
Após a leitura
Foco narrativo
O espaço
O tempo
Personagens
Tema
Aspecto(s) ficcional(is) em relação com a realidade extra textual
Guia de leitura do conto 3 (O Gato Preto, de Edgar Allan Poe)
Fonte: a autora
Questionário de compreensão do conto (QCC3)
Qual a provável intenção do autor ao construir o conto com narrador-personagem?
O que as ações do narrador-personagem revelam sobre sua personalidade?
O que os gatos representam no conto? Explique.
Qual a relação entre o enforcamento do gato e a morte da mulher?
Qual a relação entre o título e o tema abordado no conto?
Qual a passagem do conto que lhe chamou mais atenção? Por quê?
É possível estabelecer relação entre ficção e a realidade extratextual? Explique.
A leitura desse conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre algum aspecto do comportamento humano? Explique.
Questionário avaliativo de uso de estratégias metacognitivas de leitura (QAEM3)
Com base na leitura do conto responda:
O título do conto fez você lembrar de outras histórias ou situações que envolvessem um gato preto?
( ) sim ( ) não
Ao ler a primeira parte do conto, você notou algo de semelhante com a estrutura do conto de Moacyr Scliar?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você notou algo de semelhante com a temática do conto de Clarice Lispector?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura, você releu alguma parte para tentar entender melhor?
( ) sim ( ) não
Você compreendeu o tema abordado no conto?
( ) sim ( ) não
Você compreendeu a relação entre o título do texto e o tema do conto?
( ) sim ( ) não
Durante a leitura do conto, você se questionou sobre a sinceridade do narrador-personagem ao relatar sua história?
( ) sim ( ) não
A leitura do conto despertou em você algum sentimento ou fez você refletir sobre o comportamento humano?
( ) sim ( ) não
ANEXO A – Resultado do SAEPE 2014
Fonte: <http://www.saepe.caedufjf.net/resultados/resultados-2013/resultados-por-escola/> (acessado em 04/09/2015).
ANEXO B – Resultado do SAEB 2015 (Prova Brasil)
Fonte: <http://sistemasprovabrasil.inep.gov.br/provaBrasilResultados/view/boletimDesempenho/boletimDesempenho.seam> (acessado em 04/09/2015)
Fonte: <http://devolutivas.inep.gov.br/login (acessado em 04/09/2015)>
ANEXO C – Contos utilizados nas atividades
CONTO 1: O Crime do Professor de Matemática (Clarice Lispector)
Quando o homem atingiu a colina mais alto, os sinos tocavam na cidade embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava a única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na mão.
Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura — sim, ele estava bem só. O ar fresco era inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia porque esperar mais.
E no entanto aguardava. Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou, respirou fundo e guardou-os no bolso.
Abriu então o saco, espiou um pouco. Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. Todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava. Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os sinos alegre tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.
O cachorro desconhecido estava à luz.
Então ele se pôs metodicamente a trabalhar. Pegou no cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se já tivesse feito muito, pôs os óculos, sentouse ao lado do cão e começou a observar a paisagem.
Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a chapada deserta. Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo. Respirou de novo. Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar que escolheria. Talvez embaixo da árvore. Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido substituía o “outro”, quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia. Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem. Ele se entendia a si próprio com frieza, sem nenhum fio solto.
Em breve, por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e, tendo-se como falso centro, dividia assimetricamente o planalto. Diante da dificuldade o homem concedeu: “não era necessário enterrar no centro, eu também enterraria o outro, digamos, bem onde eu estivesse neste mesmo momento em pé”. Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso, a marca de uma ocorrência exterior e evidente — no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja — tratava-se de tornar o faro ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu. Tratava-se de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um pensamento.
À idéia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé — o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão.
Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica. Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos. Suava penosamente. Não cavou muito mas não porque quisesse poupar seu cansaço. Não cavou muito porque pensou lúcido: “se fosse para o verdadeiro cão, eu cavaria pouco, enterrá-lo-ia bem à tona”. Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade.
Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova. Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a idéia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e objetivo.
O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes. O cão agora era apenas uma aparência do terreno.
Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre.
E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.
Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato do cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança.
“Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua”, pensou então com auxílio da saudade. “Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu — como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei”, refletiu curioso.
“Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente”, pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à vontade.
“Lembro-me de ti quando eras pequeno”, pensou divertido, “tão pequeno, bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma. Mas desde então, já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão”, lembrou-se o homem satisfeito, “tu terminavas me mordendo e rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar.”
“E como cheiravas as ruas!”, pensou o homem rindo um pouco, “na verdade não deixaste pedra por cheirar... Este era o teu lado infantil. Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão? e o resto apenas brincadeira de ser meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranqüilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. Ah, sim, eras irredutível: eu não queria que comesses carne para que não ficasses feroz, mas pulaste um dia sobre a mesa e, com uma ferocidade que não vem do que se come, me olhaste mudo e irredutível com a carne na boca. Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar. Era no ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que nos entendêssemos: Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso o que pouco a pouco me ensinavas, e era isto também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada, me pedias demais. De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem. E eu, eu disfarçava como podia. Às vezes, sentado sobre as patas diante de mim, como me espiavas! Eu então olhava o teto, tossia, dissimulava, olhava as unhas. Mas nada te comovia: tu me espiavas. A quem irias contar? Finge — dizia-me eu —, finge depressa que és outro, dá a falsa entrevista, faz-lhe um afago, joga-lhe um osso — mas nada te distraía: tu me espiavas. Tolo que eu era. Eu fremia de horror, quando eras tu o inocente: que eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro, e eriçado, atingido, erguer-te-ias até a porta ferido para sempre. Oh, eras todos os dias um cão que se podia abandonar. Podia-se escolher. Mas tu, confiante, abanavas o rabo.”
“Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa.”
“Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio sim, pois exigias — com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heroico — que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade, e ainda mais um cão? ‘Que não cabe em parte alguma’, disse Marta prática. ‘Que incomodará os passageiros’, explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer”, pensou o homem cada vez mais lúcido.
“Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão”, pensou o homem. “Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.”
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.
Um homem ainda conseguia ser mais esperto que o Juízo Final. Este crime ninguém lhe condenava. Nem a Igreja. “Todos são meu cúmplices, José.” Eu teria que bater de porta e porta e mendigar que me acusassem e me punissem: todos me bateriam a porta com uma cara de repente endurecida. Este crime ninguém me condena. Nem tu, José, me condenarias. Pois bastaria, esta pessoa poderosa que sou, escolher de te chamar — e, do teu abandono nas ruas, num pulo me lamberias a face com alegria e perdão. Eu te daria a outra face a beijar.” O homem tirou os óculos, respirou, botou-os de novo.
Olhou a cova coberta. Onde ele enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado, procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se com um ato de bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém dá uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.
Mas como se José, o cão abandonado, exigisse dele muito mais que a mentira: como se exigisse que ele, num último arranco, fosse um homem — e como homem assumisse o seu crime — ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição.
E agora, mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido. Ele não devia ser consolado. Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se então, e, solene, calmo, com movimentos simples — desenterrou o cão. O cão escuro apareceu afinal inteiro, infamiliar com a terra nos cílios, os olhos abertos e cristalizados. E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera. E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família.
LISPECTOR, CLARICE. O Crime do Professor de Matemática.
In Laços de Família. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.
Um pouco sobre a autora do conto:
“Antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês, como se chamam? Digam baixinho o nome de vocês e meu coração vai ouvir.”
Clarice Lispector nasce, a 10 de dezembro de 1920, em Tchetchelnik, uma aldeia da Ucrânia, então pertencente à Rússia, filha do comerciante Pinkouss e de Mania Lispector. O nascimento ocorre durante viagem de emigração da família em direção à América – os pais, judeus, decidem emigrar, devido a sucessivas guerras internas e constante perseguição antissemita, gerando fome e miséria no país onde viviam. A família chega ao Brasil em março de 1922 e se estabelecem primeiro em Alagoas, em 1925 mudam-se para Pernambuco. Os Lispectors viveram no bairro da Boa Vista, habitado pela comunidade judaica, que incluía tios e primos do lado materno. Moram em um casarão na praça Maciel Pinheiro (antiga Conde d’Eu), numa esquina da travessa do Veras com a rua do Aragão.
Em 1932 Clarice ingressa no tradicional Ginásio Pernambucano. Nessa época, ela se muda para rua da Imperatriz, lá ela costumava frequentar a livraria Imperatriz, cujo dono era Jacó Berenstein, divulgador de cultura e dono também de uma biblioteca particular. Entre as leituras de Clarice, então, encontram-se Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que pedia emprestado a Reveca, sua colega de escola e filha de Jacó — não sem antes ter de insistir muito para obter a obra, episódio que será narrado no conto “Felicidade clandestina”. Em 1935, ela vai para o Rio de Janeiro, lá termina o ginasial e 1939 ingressa na faculdade de direito. Em 25 de maio de 1940, sai no semanário Pan, o conto “Triunfo”. A narrativa traz temas que serão recorrentes na ficção de Clarice: as dificuldades do relacionamento amoroso, relatadas a partir das sensações de uma mulher que, abandonada pelo marido, em sua solidão descobre a força interior. Pelo que se tem registro, é a primeira vez que um texto ficcional de Clarice Lispector ganha lugar na imprensa.
O casarão onde Clarice morou, na praça Maciel Pinheiro, em Recife.
Você encontrará esse e outros contos no livro: Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Você pode ter a versão on-line disponível para download:
http://lelivros.website/book/baixar-livro-lacos-de-familia-clarice-lispector-em-pdf-epub-e-mobi/
Capa da primeira edição do livro de contos Laços de família (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960).
Insatisfeita com o tipo de trabalho de escritório que vinha realizando, Clarice busca empregar-se no Departamento de Imprensa e Propaganda DIP, órgão do governo Getúlio Vargas. Clarice Lispector acaba ganhando o lugar de redatora e repórter da Agência Nacional. Começava aí uma carreira paralela: o jornalismo. Seu reconhecimento como romancista começou em 1944 com a obra Perto do Coração Selvagem que lhe rendeu vários prêmios. Ela foi reconhecida não só nacionalmente, mas internacionalmente e quando publicou Laços de Família, já era uma autora consagrada.
Em 1977 Clarice escreve um livro para crianças, que seria publicado no ano seguinte, sob o título Quase de verdade. Adaptando lendas brasileiras, por encomenda da fábrica de brinquedos Estrela, produz outras 12 histórias infantis, para um calendário de 1978, intitulado Como nasceram as estrelas. Nesse mesmo ano, ela morre de câncer no dia 9 de dezembro véspera de seu aniversário.
“Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas." Clarice lutou pelos sonhos dela, conseguiu ser uma escritora famosa e tornou-se imortal através de suas obras!
"Meus livros felizmente para mim não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos nos indivíduos. Eu me refugiei em escrever. Acho que consegui devido a uma vocação bastante forte e uma falta de medo ao ser considerada diferente no ambiente em que vivia."
Essas e outras informações, você pode encontrar no site: http://claricelispectorims.com.br/Facts
CONTO 2: O Conto se Apresenta (Moacyr Scliar)
Olá!
Não, não adianta olhar ao redor: você não vai me enxergar. Não sou uma pessoa como você. Sou, vamos dizer assim, uma voz. Uma voz que fala com você ao vivo, como estou fazendo agora. Ou então que lhe fala dos livros que você lê.
Não fique tão surpreso assim: você me conhece. Na verdade, somos até velhos amigos. Você já me ouviu falando de Chapeuzinho Vermelho e do Príncipe Encantado, de reis, de bruxas, do Saci-Pererê. Falo de muitas coisas, conto muitas histórias, mas nunca falei de mim próprio. É o que eu vou fazer agora, em homenagem a você. E começo me apresentando: eu sou o Conto. Sabe o conto de fadas, o conto de mistério? Sou eu. O Conto.
Vejo que você ficou curioso. Quer saber coisas sobre mim. Por exemplo, qual a minha idade.
Devo lhe dizer que sou muito antigo. Porque contar histórias é uma coisa que as pessoas fazem há muito, muito tempo. É uma coisa natural, que brota de dentro da gente. Faça o seguinte: feche os olhos e imagine uma cena, uma cena que se passou há muitos milhares de anos. É de noite e uma tribo dos nossos antepassados, aqueles que viviam nas cavernas, está sentada em redor da fogueira. Eles têm medo do escuro, porque no escuro estão as feras que os ameaçam, aqueles enormes tigres, e outras mais. Então alguém olha para a lua e pergunta: por que é que às vezes a lua desaparece? Todos se voltam para um homem velho, que é uma espécie de guru para eles. Esperam que o homem dê a resposta. Mas ele não sabe o que responder. E então eu apareço. Eu, o Conto. Surjo lá da escuridão e, sem que ninguém note, falo baixinho ao ouvido do velho:
– Conte uma história para eles.
E ele conta. É uma história sobre um grande tigre que anda pelo céu e que de vez em quando come a lua. E a lua some. Mas a lua não é uma coisa muito boa para comer, de modo que lá pelas tantas o grande tigre bota a lua para fora de novo. E ela aparece no céu, brilhante.
Todos escutam o conto. Todo mundo: homens, mulheres, crianças. Todos estão encantados. E felizes: antes, havia um mistério: por que a lua some? Agora, aquele mistério não existe mais. Existe uma história que fala de coisas que eles conhecem: tigre, lua, comer – mas fala como essas coisas poderiam ser, não como elas são. Existe um conto. As pessoas vão lembrar esse conto por toda a vida. E quando as crianças da tribo crescerem e tiverem seus próprios filhos, vão contar a história para explicar a eles por que a lua some de vez em quando. Aquele conto.
No começo, portanto, é assim que eu existo: quando as pessoas falam em mim, quando as pessoas narram histórias – sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fantásticas. Histórias que atravessam os tempos, que duram séculos. Como eu.
Aí surge a escrita. Uma grande invenção, a escrita, você não concorda? Com a escrita, eu não existo mais somente como uma voz. Agora estou ali, naqueles sinais chamados letras, que permitem que pessoas se comuniquem, mesmo à distância. E aquelas histórias – sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fantásticas – vão aparecer em forma de palavra escrita.
E é neste momento que eu tenho uma grande ideia. Uma inspiração, vamos dizer assim. Você sabe o que é inspiração? Inspiração é aquela descoberta que a gente faz de repente, de repente tem uma ideia muito boa. A inspiração não vem de fora, não; não é uma coisa misteriosa que entra na nossa cabeça. A boa ideia já estava dentro de nós; só que a gente não sabia. A gente tem muitas boas ideias, pode crer.
E então, com aquela boa ideia, chego perto de um homem ainda jovem. Ele não me vê. Como você não me vê. Eu me apresento, como me apresentei a você, digo-lhe que estou ali com uma missão especial – com um pedido:
– Escreva uma história.
Num primeiro momento, ele fica surpreso, assim como você ficou. Na verdade, ele já havia pensado nisso, em escrever uma história. Mas tinha dúvidas: ele, escrever uma história? Como aquelas histórias que todas as pessoas contavam e que vinham de um passado? Ele, escrever uma história? E assinar seu próprio nome? Será que pode fazer isso? Dou força:
– Vá em frente, cara. Escreva uma história. Você vai gostar de escrever. E as pessoas vão gostar de ler.
Então ele senta, e escreve uma história. É uma história sobre uma criança, uma história muito bonita. Ele lê o que escreveu. Nota que algumas coisas não ficaram muito bem. Então escreve de novo. E de novo. E mais uma vez. E aí, sim, ele gosta do que escreveu. Mostra para outras pessoas, para os amigos, para a namorada. Todos gostam, todos se emocionam com a história.
E eu vou em frente. Procuro uma moça muito delicada, muito sensível. Mesma coisa:
– Escreva uma história.
Ela escreve. E assim vão surgindo escritores. Os contos deles aparecem em jornais, em revistas, em livros.
Já não são histórias sobre deuses, sobre criaturas fantásticas. Não, são histórias sobre gente comum – porque as histórias sobre as pessoas comuns muitas vezes são mais interessantes do que histórias sobre deuses e criaturas fantásticas: até porque deuses e criaturas fantásticas podem ser inventados por qualquer pessoa. O mundo da nossa imaginação é muito grande. Mas a nossa vida, a vida de cada dia, está cheia de emoções. E onde há emoção, pode haver conto. Onde há gente que sabe usar as palavras para emocionar pessoas, para transmitir idéias, existem escritores.
Alguns deles – grandes escritores – você vai conhecer agora. O José Paulo Paes, que já morreu, escrevia poemas, escrevia artigos, escrevia contos… Ele adorava crianças e adorava palavras: e, por causa disso, escreveu “A Revolta das Palavras”. Você já imaginou isso, as palavras se revoltando? Pois é. Se o Conto pode falar, as palavras podem se revoltar, não é verdade? Isso é o que José Paulo Paes diz. E depois tem o Milton Hatoum. Ele é do Norte, de Manaus. E escreve uma linda história que se passa em Xapuri, no Acre. E o Marcelo Coelho, que é jornalista, fala sobre o primeiro dia na escola. Lembram disso? Lembram do primeiro dia na escola? O Marcelo vai ajudar vocês a lembrar. Já o Drauzio Varella é médico, um grande médico que é também escritor. Mas os médicos, e os escritores, também tiveram infância, também fizeram travessuras, e é disso que o Drauzio vai falar para vocês.
E, já que eles estão aqui, posso ir embora, porque agora vocês estão em muito boa companhia. Vou em busca de outros garotos e outras garotas. Para quem vou me apresentar:
– Eu sou o Conto.
Você encontrará esse e outros contos no livro:
Era uma vez um conto. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002.
Moacyr Scliar; José Paulo Paes; Milton Hatoum; Marcelo Coelho; Drauzio Varella
Um pouco sobre o autor do Conto:
“Infância é fundamental e sempre um bom começo para qualquer escritor contar sua história.” (Moacyr Scliar)
Moacyr Jaime Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), em 23 de março de 1937. Seus pais, José e Sara, eram europeus que migraram para a América em busca de melhor sorte. Judeus, haviam sido vítimas de perseguições em sua terra natal, e o Brasil se apresentava como nação acolhedora, que de modo amistoso e promissor recebia os que a procuravam.
Ele passou a maior parte da infância no Bom Fim, o bairro porto-alegrense onde se instalou a maioria dos judeus que escolheu a capital do Estado para morar. Foi alfabetizado pela mãe, que era professora primária.
A partir de 1943, cursa a Escola de Educação e Cultura, conhecida como Colégio Iídiche. Em 1948, transfere-se para o Colégio Rosário, concluindo o ensino médio.
Datam deste tempo as primeiras experiências com a literatura. Também por essa época recebe um prêmio literário, o primeiro de muitos que se sucederiam ao longo de sua vida. Mas, profissionalmente, decide-se pela medicina, ingressando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1955. A medicina constitui igualmente a matéria de seu livro inaugural, Histórias de um médico em formação, de 1962, ano em que concluiu o curso universitário. Doravante, as duas carreiras – a de escritor e a de médico – são percorridas juntas, complementando-se mutuamente.
Como contista, o autor emerge como crítico da sociedade capitalista, cujas perversidades se materializam no comportamento ou na aparência extravagante dos heróis. Para Scliar, “o conto fala direto à natureza humana e ao desejo de perfeição literária.”
Sobre a importância que a leitura teve na sua vida: “Penso no leitor que eu fui em minha juventude e que procurava nos livros prazer, encanto e respostas para os problemas da vida. Espero que os leitores encontrem a mesma coisa em meus livros.”
A literatura infanto-juvenil consta igualmente dos gêneros literários a que Scliar se dedicou. Na maioria de seus livros, os protagonistas vivenciam situações existenciais decisivas para sua formação: as crianças almejam alcançar o afeto de pais e irmãos; os adolescentes buscam autoafirmação e fortalecimento da identidade. Porque deseja que o leitor se identifique com a personagem, com quem aprende a entender as próprias aspirações, Moacyr Scliar cria figuras ficcionais que compartilham a faixa etária dos destinatários. Além disso, a personalidade deles mostra-se bem definida, o que não impede de expressarem problemas, de que nem sempre estão muito conscientes, até esses se evidenciarem e serem solucionados, em parte por iniciativa do herói, em parte graças a generosidade de algum adulto solidário (pai, tio, amigo da família, professor).
“Usamos a imaginação para completar as lacunas da vida, prover explicações para coisas que não entendemos, traçar caminhos e entender o passado.” (Moacyr Scliar)
Essas e outras informações, você pode encontrar no site: http://www.scliar.org/moacyr/sobre/o-escritor/
CONTO3: O Gato Preto (Edgar Allan Poe)
Não espero nem solicito o crédito do leitor para a tão extraordinária e no entanto tão familiar história que vou contar. Louco seria esperá-lo, num caso cuja evidência até os meus próprios sentidos se recusam a aceitar. No entanto não estou louco, e com toda a certeza que não estou a sonhar. Mas porque posso morrer amanhã, quero aliviar hoje o meu espírito. O meu fim imediato é mostrar ao mundo, simples, sucintamente e sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos.
Nas suas consequências, estes acontecimentos aterrorizaram-me, torturaram-me, destruíram-me. No entanto, não procurarei esclarecê-los. O sentimento que em mim despertou foi quase exclusivamente o de terror; a muitos outros parecerão menos terríveis do que extravagantes. Mais tarde, será possível que se encontre uma inteligência qualquer que reduza a minha fantasia a uma banalidade. Qualquer inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha encontrará tão somente nas circunstâncias que relato com terror uma sequência bastante normal de causas e efeitos. Já na minha infância era notado pela docilidade e humanidade do meu carácter. Tão nobre era a ternura do meu coração, que eu acabava por tornar-me num joguete dos meus companheiros. Tinha uma especial afeição pelos animais e os meus pais permitiam-me possuir uma grande variedade deles. Com eles passava a maior parte do meu tempo e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer e os acariciava. Esta faceta do meu carácter acentuou-se com os anos, e, quando homem, aí achava uma das minhas principais fontes de prazer. Quanto àqueles que já tiveram uma afeição por um cão fiel e sagaz, escusado será preocupar-me com explicar-lhes a natureza ou a intensidade da compensação que daí se pode tirar. No amor desinteressado de um animal, no sacrifício de si mesmo, alguma coisa há que vai direito ao coração de quem tão frequentemente pôde comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade do homem.
Casei jovem e tive a felicidade de achar na minha mulher uma disposição de espírito que não era contrária à minha. Vendo o meu gosto por animais domésticos, nunca perdia a oportunidade de me proporcionar alguns exemplares das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um lindo cão, coelhos, um macaquinho, e um gato. Este último era um animal notavelmente forte e belo, completamente preto e excepcionalmente esperto. Quando falávamos da sua inteligência, a minha mulher, que não era de todo impermeável à superstição, fazia frequentes alusões à crença popular que considera todos os gatos pretos como feiticeiras disfarçadas. Não quero dizer que falasse deste assunto sempre a sério, e se me refiro agora a isto não é por qualquer motivo especial, mas apenas porque me veio à ideia.
Plutão, assim se chamava o gato, era o meu amigo predileto e companheiro de brincadeiras. Só eu lhe dava de comer e seguia-me por toda a parte, dentro de casa. Era até com dificuldade que conseguia impedir que me seguisse na rua. A nossa amizade durou assim vários anos, durante os quais o meu temperamento e o meu carácter sofreram uma alteração radical - envergonho-me de o confessar - para pior, devido ao demónio da intemperança. De dia para dia me tornava mais taciturno, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Permitia-me usar de uma linguagem brutal com minha mulher. Com o tempo, cheguei até a usar de violência. Evidentemente que os meus pobres animaizinhos sentiram a transformação do meu carácter. Não só os desprezava como os tratava mal. Por Plutão, porém, ainda nutria uma certa consideração que me não deixava maltratá-lo.
Quanto aos outros, não tinha escrúpulos em maltratar os coelhos, o macaco e até o cão, quando por acaso ou por afeição se atravessavam no meu caminho. Mas a doença tomava conta de mim - pois que doença se assemelha à do álcool? - e, por fim, até o próprio Plutão, que estava a ficar velho e, por consequência, um tanto impertinente, até o próprio Plutão começou a sentir os efeitos do meu carácter perverso. Certa noite, ao regressar a casa, completamente embriagado, de volta de um dos tugúrios da cidade, pareceu-me que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, horrorizado com a violência do meu gesto, feriu-me ligeiramente na mão com os dentes. Uma fúria dos demónios imediatamente se apossou de mim. Não me reconhecia. Dir-se-ia que a minha alma original se evolara do meu corpo num instante e uma ruindade mais do que demoníaca, saturada de Genebra, fazia estremecer cada uma das fibras do meu corpo. Tirei do bolso do colete um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pelo pescoço e, deliberadamente, arranquei-lhe um olho da órbita!
Queima-me a vergonha e todo eu estremeço ao escrever esta abominável atrocidade. Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se dissiparam os vapores da minha noite de estúrdia, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que tinha cometido. Mas era um sentimento frágil e equívoco e o meu espírito continuava insensível. Voltei a mergulhar nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do ato. Entretanto, o gato curou-se lentamente. A órbita agora vazia apresentava, na verdade, um aspecto horroroso, mas o animal não aparentava qualquer sofrimento. Vagueava pela casa como de costume, mas, como seria de esperar, fugia aterrorizado quando eu me aproximava. Porém, restava-me ainda o suficiente do meu velho coração para me sentir agravado por esta evidente antipatia da parte de um animal que outrora tanto gostara de mim. Em breve este sentimento deu lugar à irritação. E para minha queda final e irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE fez de seguida a sua aparição. Deste espírito não cura a filosofia. No entanto, não estou mais certo da existência da minha alma do que do facto que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano; uma dessas indivisas faculdades primárias, ou sentimentos, que deu uma direção ao carácter do homem.
Quem se não surpreendeu já uma centena de vezes cometendo uma ação néscia ou vil, pela única razão de saber que a não devia cometer? Não temos nós uma inclinação perpétua, pese ao melhor do nosso juízo, para violar aquilo que constitui a Lei, só porque sabemos que o é? E digo que este espírito de perversidade surgiu para minha perda final. Foi este anseio insondável da alma por se atormentar, por oferecer violência à sua própria natureza, por fazer o mal só pelo mal, que me forçou a continuar e, finalmente, a consumar a maldade que infligi ao inofensivo animal. Certa manhã, a sangue-frio, passei-lhe um nó corredio ao pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore; enforquei-o com as lágrimas a saltarem-me dos olhos e com o mais amargo remorso no coração; enforquei-o porque sabia que me tinha tido afeição e porque sabia que não me tinha dado razão para a torpeza; enforquei-o porque sabia que ao fazê-lo estava cometendo um pecado, um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal a ponto de a colocar, se tal fosse possível, mesmo para além do alcance da infinita misericórdia do Deus Mais Piedoso e Mais Severo. Na noite do próprio dia em que este ato cruel foi perpetrado, fui acordado do sono aos gritos de «Fogo!».
As cortinas da minha cama estavam em chamas; toda a casa era um braseiro. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens materiais foram destruídos, e daí em diante mergulhei no desespero. Sou superior à fraqueza de procurar estabelecer uma sequência de causa e efeito entre a atrocidade e o desastre. Limito-me, porém, a narrar uma cadeia de acontecimentos e não quero deixar nem um elo sequer incompleto. Nos dias que se sucederam ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, à exceção de uma, tinham abatido por completo. Esta exceção era constituída por um tabique interior, não muito espesso, que estava sensivelmente a meio da casa, e de encontro ao qual antes ficava a cabeceira da minha cama. O reboco resistira em grande parte à ação do fogo, fato que atribuo a ter sido pouco antes restaurado. Próximo desta parede juntara-se uma densa multidão e muitas pessoas pareciam estar a examinar certa zona em particular, com minúcia e grande atenção.
A minha curiosidade foi despertada pelas palavras «estranho», «singular» e outras expressões semelhantes. Aproximei-me e vi, como se fora gravado em baixo revelo, sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem estava desenhada com uma precisão realmente espantosa. Em volta do pescoço do animal estava uma corda. Mal vi a aparição, pois nem podia pensar que doutra coisa se tratasse, o meu assombro e o meu terror foram imensos. Por fim, a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o gato fora enforcado num jardim junto à casa. Após o alarme de incêndio, o dito jardim fora imediatamente invadido pela multidão e por alguém que deve ter cortado a corda do gato e o deve ter lançado para dentro do meu quarto, por uma janela aberta. Isto deve ter sido feito, provavelmente, com a intenção de me acordar. A queda das outras paredes tinha comprimido a vítima da minha crueldade na substância do reboco recentemente aplicado e cuja cal, combinada com as chamas e o amoníaco do cadáver, tinha produzido a imagem tal como eu a via. Tendo assim satisfeito prontamente a minha razão - que não totalmente a minha consciência - sobre o fato extraordinário atrás descrito, não deixou este, no entanto, de causar profunda impressão na minha imaginação.
Durante meses não consegui libertar-me do fantasma do gato, e, durante este período, voltou-me ao espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, mas que o não era. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do animal e a procurar à minha volta, nos sórdidos tugúrios que agora frequentava com assiduidade, um outro animal da mesma espécie e bastante parecido que preenchesse o seu lugar. Uma noite, estava eu sentado meio aturdido num antro mais do que infamante, a minha atenção foi despertada por um objeto preto que repousava no topo de um dos enormes toneis de gin ou de rum que constituíam o principal mobiliário do compartimento.
Havia minutos que olhava para a parte superior do tonel, e o que agora me causava surpresa era o fato de não me ter apercebido mais cedo do objeto que estava em cima. Aproximei-me e toquei-lhe com a mão. Era um gato preto, um gato enorme, tão grande como Plutão e semelhante a ele em todos os aspetos menos num. Plutão não tinha sequer um único pêlo branco no corpo, enquanto este gato tinha uma mancha branca, grande mas indefinida, que lhe cobria toda a região do peito. Quando lhe toquei, imediatamente se levantou e ronronou com força, roçou-se pela minha mão, e parecia contente por o ter notado. Era este, pois, o animal que eu procurava. Imediatamente propus a compra ao dono, mas este nada tinha a reclamar pelo animal, nada sabia a seu respeito, nunca o tinha visto até então. Continuei a acariciá-lo, e quando me preparava para ir para casa, o animal mostrou-se disposto a acompanhar-me. Permiti que o fizesse, inclinando-me de vez em quando para o acariciar enquanto caminhava.
Quando chegou a casa, adaptou-se logo e logo se tornou muito amigo da minha mulher. Pela minha parte, não tardou em surgir em mim uma antipatia por ele. Era exatamente o reverso do que eu esperava, mas, não sei como nem porquê, a sua evidente ternura por mim desgostava-me e aborrecia-me. Lentamente, a pouco e pouco, esses sentimentos de desgosto e de aborrecimento transformaram-se na amargura do ódio. Evitava o animal; um certo sentimento de vergonha e a lembrança do meu anterior ato de crueldade impediram-me de o maltratar fisicamente. Abstive-me, durante semanas, de o maltratar ou exercer sobre ele qualquer violência, mas, gradualmente, muito gradualmente, cheguei a nutrir por ele um horror indizível e a fugir silenciosamente da sua odiosa presença como do bafo da peste. O que aumentou, sem dúvida, o meu ódio pelo animal foi descobrir, na manhã do dia seguinte a tê-lo trazido para casa, que, tal como Plutão, tinha também sido privado de um dos seus olhos.
Esta circunstância, contudo, mais afeição despertou na minha mulher, que, como já disse, possuía em alto grau aquele sentimento de humanidade que fora em tempos característica minha e a fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e mais puros. Com a minha aversão pelo gato parecia crescer nele a sua preferência por mim. Seguia os meus passos com uma pertinácia que seria difícil fazer compreender ao leitor. Sempre que me sentava, enroscava-se debaixo da minha cadeira ou saltava-me para os joelhos, cobrindo-me com as suas repugnantes carícias. Se me levantava para caminhar, metia-se-me entre os pés e quase me fazia cair ou, fincando as suas garras compridas e aguçadas no meu roupão, trepava-me até ao peito. Em tais momentos, embora a minha vontade fosse matá-lo com uma pancada, era impedido de o fazer, em parte pela lembrança do meu crime anterior mas, principalmente, devo desde já confessá-lo, por um verdadeiro medo do animal. Este medo não era exatamente o receio de um mal físico; no entanto, é me difícil defini-lo de outro modo.
Quase me envergonhava admitir - sim, mesmo aqui, nesta cela de malfeitor, eu me envergonho de admitir - que o terror e o horror que o animal me infundia se viam acrescidos de uma das fantasias mais perfeitas que é possível conceber. Minha mulher tinha-me chamado várias vezes a atenção para o aspecto da mancha de pêlo branco de que já falei, e que era a única diferença aparente entre o estranho animal e aquele que eu tinha eliminado. O leitor lembrar-se-á que esta marca, embora grande, era, originariamente, bastante indefinida, mas, gradualmente, por fases quase imperceptíveis e que durante muito tempo a minha razão lutou por rejeitar como fantasiosas, assumira, finalmente, uma rigorosa nitidez de contornos. Era agora a imagem de um objeto que me repugna mencionar, e por isso eu o odiava e temia acima de tudo, e ter-me-ia visto livre do monstro se o ousasse.
Era agora a imagem de uma coisa abominável e sinistra: a imagem da forca!, oh!, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte. Por essa altura, eu era, na verdade, um miserável maior do que toda a miséria humana. E um bruto animal cujo semelhante eu destruíra com desprezo, um bruto animal a comandar-me, a mim, um homem, feito à imagem do Altíssimo - oh!, desventura insuportável. Ah, nem de dia nem de noite, nunca, oh!, nunca mais, conheci a bênção do repouso! Durante o dia o animal não me deixava um só momento. De noite, a cada hora, quando despertava dos meus sonhos cheios de indefinível angústia, era para sentir o bafo quente daquela coisa sobre o meu rosto e o seu peso enorme, encarnação de um pesadelo que eu não tinha forças para afastar, pesando-me eternamente sobre o coração. Sob a pressão de tormentos como estes, os fracos resquícios do bem que havia em mim desapareceram. Só os pensamentos pecaminosos me eram familiares - os mais sombrios e os mais infames dos pensamentos. A tristeza do meu temperamento aumentou até se tornar em ódio a tudo e à humanidade inteira. Entretanto, a minha dedicada mulher era a vítima mais usual e paciente das súbitas, frequentes e incontroláveis explosões de fúria a que então me abandonava cegamente.
Um dia acompanhou-me, por qualquer afazer doméstico, à cave do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar. O gato seguiu-me nas escadas íngremes e quase me derrubou, o que me exasperou até à loucura. Apoderei-me de um machado, e desvanecendo-se na minha fúria o receio infantil que até então tinha detido a minha mão, desferi um golpe sobre o animal, que seria fatal se o tivesse atingido como eu queria. Mas o golpe foi sustido diabólicamente pela mão da minha mulher. Enraivecido pela sua intromissão, libertei o braço da sua mão e enterrei-lhe o machado no crânio. Caiu morta, ali mesmo, sem um queixume. Consumado este horrível crime, entreguei-me de seguida, com toda a determinação, à tarefa de esconder o corpo. Sabia que não o podia retirar de casa, quer de dia quer de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Muitos projetos se atropelaram no meu cérebro. Em dado momento, cheguei a pensar em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los um a um pelo fogo. Noutro, decidi abrir uma cova no chão da cave. Depois pensei deitá-lo ao poço do jardim, ou metê-lo numa caixa como qualquer vulgar mercadoria e arranjar um carregador para o tirar de casa. Por fim, detive-me sobre o que considerei a melhor solução de todas. Decidi emparedá-lo na cave como, segundo as narrativas, faziam os monges da Idade Média às suas vítimas. A cave parecia convir perfeitamente aos meus intentos. As paredes não tinham sido feitas com os acabamentos do costume e, recentemente, tinham sido todas rebocadas com uma argamassa grossa que a humidade ambiente não deixara endurecer. Além do mais, numa das paredes havia uma saliência causada por uma chaminé falsa ou por uma lareira que tinha sido entaipada para se assemelhar ao resto da cave. Não duvidei que me seria fácil retirar os tijolos neste ponto, meter lá dentro o cadáver e tornar a pôr a taipa como antes, de modo que ninguém pudesse lobrigar qualquer sinal suspeito.
Não me enganei nos meus cálculos. Com o auxílio de um pé-de-cabra retirei facilmente os tijolos, e depois de colocar cuidadosamente o corpo de encontro à parede interior, mantive-o naquela posição ao mesmo tempo que, com um certo trabalho, devolvia a toda a estrutura o seu aspecto primitivo. Usando de toda a precaução, procurei argamassa, areia e fibras com que preparei um reboco que se não distinguia do antigo e, com o maior cuidado, cobri os tijolos. Quando terminei, vi com satisfação que tudo estava certo. A parede não denunciava o menor sinal de ter sido mexida. Com o maior escrúpulo, apanhei do chão os resíduos. Olhei em volta, triunfante, e disse para comigo: «Aqui, pelo menos, não foi infrutífero o meu trabalho.» A seguir procurei o animal que tinha sido a causa de tanta desgraça, pois que, finalmente, tinha resolvido matá-lo. Se o tivesse encontrado naquele momento, era fatal o seu destino. Mas parecia que o astuto animal se alarmara com a violência da minha cólera anterior e evitou aparecer-me na frente, dado o meu estado de espírito.
É impossível descrever ou imaginar a intensa e aprazível sensação de alívio que a ausência do detestável animal me trouxe. Não me apareceu durante toda a noite, e deste modo, pelo menos por uma noite, desde que o trouxera para casa, dormi bem e tranquilamente; sim, dormi, mesmo com o crime a pesar-me na consciência. Passaram-se o segundo e terceiro dias e o meu verdugo não aparecia. Mais uma vez respirei como um homem livre. O monstro, aterrorizado, tinha abandonado a casa para sempre! Nunca mais voltaria a vê-lo! Suprema felicidade a minha! A culpa da ação tenebrosa inquietava-me pouco. Fizeram-se alguns interrogatórios que colheram respostas satisfatórias. Fez-se inclusivamente uma busca, mas, naturalmente, nada se descobriu. Dava como certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o crime, surgiu inesperadamente em minha casa um grupo de agentes da Polícia que procederam a uma rigorosa busca. Eu, porém, confiado na impenetrabilidade do esconderijo, não sentia qualquer embaraço. Os agentes quiseram que os acompanhasse na sua busca. Não deixaram o mínimo escaninho por investigar. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram à cave. Nem um músculo me tremeu. O meu coração batia calmamente como o coração de quem vive na inocência. Percorri a cave de ponta a ponta. De braços cruzados no peito, andava descontraído de um lado para o outro. Os agentes estavam completamente satisfeitos e prontos para partir.
O júbilo do meu coração era demasiado intenso para que o pudesse suster. Ansiava por dizer pelo menos uma palavra à guisa de triunfo e para tornar duplamente evidente a sua convicção da minha inocência. - Senhores - disse por fim, quando iam a subir os degraus. - Estou satisfeito por ter dissipado as vossas suspeitas. Desejo muita saúde para todos, e um pouco mais de cortesia. A propósito, esta casa está muito bem construída (e no meu furioso desejo de dizer qualquer coisa com à-vontade, mal sabia o que estava a dizer). Direi, até, que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes... vão-se já embora, meus senhores?... Estas paredes estão solidamente ligadas. - E neste momento, por uma frenética fanfarronice, bati com força, com uma bengala que tinha na mão, na parede atrás da qual se encontrava o cadáver da minha querida esposa. Ah!, que Deus me livre das garras do arquidemónio!
Mal tinha o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma voz lhes respondeu de dentro do túmulo: um gemido, a princípio abafado e entrecortado como o choro de urna criança, que depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo, extremamente anormal e inumano. Um bramido, um uivo, misto de horror e de triunfo, tal como só do inferno poderia vir, provindo das gargantas conjuntas dos condenados na sua agonia e dos demónios no gozo da condenação. Seria insensato falar dos meus pensamentos. Senti-me desfalecer e encostei-me à parede da frente. Tolhidos pelo terror e pela surpresa, os agentes que subiam a escada detiveram-se por instantes. Logo a seguir, doze braços vigorosos atacavam a parede. Esta caiu de um só golpe.
O cadáver, já bastante decomposto e coberto de pastas de sangue, apareceu ereto frente aos circunstantes. Sobre a cabeça, com as vermelhas fauces dilatadas e o olho solitário chispando, estava o odioso gato cuja astúcia me compelira ao crime e cuja voz delatora me entregava ao carrasco. Eu tinha emparedado o monstro no túmulo!
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ANEXO D – Parecer consubstanciado do CEP
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