Este Dicionário de Política é
destinado ao leitor não-especialista, ao
homem culto, aos estudantes de
segundo grau e nível superior, e a
todos os que lêem revistas e jornais
políticos, aos que ouvem conferências
e discursos, aos que participam de
comícios ou que assistem a debates na
televisão, dirigidos por especialistas
ou por políticos profissionais.
Oferece uma explicação e uma
interpretação simples e possivelmente
exaustiva dos principais conceitos que
fazem parte do universo do discurso
político, expondo sua evolução
histórica, analisando sua utilização
atual e fazendo referência aos
conceitos afins ou contrastivamente
antitéticos, indicando autores e obras
a eles diretamente ligados.
São mais de 1.300 páginas,
agrupadas em dois volumes para
facilitar sua consulta, através de
verbetes, ordenados alfabeticamente e
esquematizados de modo a informar,
conceituar e debater os principais
aspectos de cada problema versado.
Seus autores são cientistas
políticos de conceito acadêmico
reconhecido mundialmente e que
contaram com a colaboração de uma
equipe de especialistas em questões
políticas, sociológicas, históricas,
jurídicas e econômicas, oriundos das
universidades de Turim, Florença,
Bolonha, Pádua, Pavia e Roma. Há
também colaboradores de Bonn,
Massachusetts-Amherst e Ohio.
DICIONÁRIO DE POLÍTICA
VOL. 1
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor
Lauro Morhy
Vice-Reitor
Timothy Martin Mulholland
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Diretor
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CONSELHO EDITORIAL
Presidente
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Alexandre Lima
Álvaro Tamayo
Aryon Dall'Igna Rodrigues
Dourimar Nunes de Moura
Emanuel Araújo
Euridice Carvalho de Sardinha Ferro
Lúcio Benedito Reno Salomon
Mareei Auguste Dardenne
Sylvia Ficher
Vilma de Mendonça Figueiredo
Volnei Garrafa
VOL. I
NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI
E
GIANFRANCO PASQUINO
11ª edição
Tradução
Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira,
Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini
Coordenação da tradução João Ferreira
Revisão geral o Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais
Direitos exclusivos para esta edição:
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
SCS Q.02 Bloco C Ne 78 Ed. OK 2º andar
70300-500 Brasília DF
Tel.: (061) 226-6874 ramal 30 Fax: (061) 225-5611
Título original: Dizionario di política
Copyright © 1983 by UTET (Unione Tipográfico Editrice Torinese)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser
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Editora.
Impresso no Brasil
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Lúcio REINER
WÂNIA ARAGÃO C. RIGUEIRA
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MARIA DEL PUY HELINCER
REGINA COELI A. MARQUES
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CAPA
MARCELO TERRAZA
ÍNDICE
SUPERVISÃO GRÁFICA
ELMANO RODRIGUES PINHEIRO
ISBN: OBRA COMPLETA: 85-230-0308-8
VOLUME 1: 85-230-0309-6
Dados de catalogação na publicação (CIP) internacional Câmara
Brasileira do Livro - SP/Brasil
Bobbio, Norberto, 1909Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev.
geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora
Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998.
Vol. 1: 674 p. (total: 1.330 p.)
Vários Colaboradores. Obra em 2v.
1. Política - Dicionários 1. Matteucci, Nicola II. Pasquino, Gianfranco
III. Título. 91-0636 CDD 320.03
Índice para catálogo sistemático:
1. Dicionários: Política 320.03
2. Política: Dicionários 320.03
ELENCO DE AUTORES
A. Maria Conti Odorisio, Universidade de Roma
A. Maria Gentili, Universidade de Bolonha
Alberto Marradi, Universidade de Bolonha
Aldo Agosti, Universidade de Turim
Aldo Maffey, Roma
Alessandro Cavalli, Universidade de Pavia
Alessandro Passerin D'Entreves, Universidade de Turim
Alfio Mastropaolo, Universidade de Turim
Ângelo Panebianco, Universidade de Bolonha
Anna Anfossi, Universidade de Turim
Anna Oppo, Universidade de Cagliari
Arturo C. Jemolo, outrora da Universidade de Roma
Arturo Colombo, Universidade de Pavia
Bruno Bongiovanni, Universidade de Turim
Camillo Brezzi, Universidade de Arezzo
Cario Baldi, Universidade de Bolonha
Cario Guarnieri, Universidade de Bolonha
Cario Leopoldo Ottino, Turim
Cario Marletti, Universidade de Turim
Carlos Barbé, Universidade de Turim
Cassio Ortegati, Pavia
Cesare Pianciola, Turim
Cláudio Cesa, Universidade de Sena
Cláudio Zanghi, Universidade de Messina
Cristina Marchiaro Cercho, Turim
Danilo Zolo, Universidade de Sassari
Domenico Barillaro, outrora da Universidade de Roma
Domenico Fisichella, Universidade de Roma
Domenico Settembrini, Universidade de Pisa
Edda Saccomani Salvador, Universidade de Turim
Edoardo Grendi, Universidade de Gênova
Emanuele Marotta, Como
Emile Poulat, Centro Nacional de Pesquisa Científica,
Paris
Enrica Collotti Pischel, Universidade de Bolonha
Ernesto Molinari, Universidade de Bolonha
Ettore Rotelli, Universidade'de Bolonha
Fábio Roversi-Monaco, Universidade de Bolonha
Fabrizio Bencini, Florença
Felix E. Oppenheim, Universidade de Massachusetts/
Amherst
Francesco Margiotta Broglio, Universidade de Florença
Francesco Rossolillo, Universidade de Pavia
Franco Garelli, Universidade de Turim
Franco Mosconi, Universidade de Pavia
Fulvio Attinà, Universidade de Catânia
Giacomo Sani, Universidade de Columbia, Ohio
Giampaolo Zucchini, Universidade de Bolonha
Gian Enrico Rusconi, Universidade de Turim
Gian Mario Bravo, Universidade de Turim
Gianfranco Pasquino, Universidade de Bolonha
Gianni Baget Bozzo, Gênova
Gianni Vattimo, Universidade de Turim
Giorgio Bianchi, Turim
Giorgio Freddi, Universidade de Bolonha
Giorgio Pastori, Universidade Católica de Milão
Giovanna Zincone, Universidade de Turim
Giuliano Martignetti, Turim
Giuliano Pontara, Universidade de Estocolmo
Giuliano Urbani, Universidade Bocconi de Milão
Giuseppe Badeschi, Universidade de Roma
Giuseppe De Vergottini, Universidade de Bolonha
Giuseppe Ricuperati, Universidade de Turim
Gladio Gemma, Universidade de Módena
Glória Regonini, Universidade de Milão
Guido Fassò, outrora da Universidade de Bolonha
Guido Verrucci, Universidade de Salerno
Gustavo Gozzi, Universidade de Bolonha
Ida Regalia, Universidade de Milão
ítalo de Sandre, Universidade de Pádua
Jean Gaudemet, Universidade de Paris (II)
Jean-Marie Mayer, Universidade de Sorbonne, Paris
Karl D. Bracher, Universidade de Bonn
Laura Conti, Milão
Leonardo Morlino, Universidade de Florença
Liliana Ferrari, Universidade de Trieste
Lorenzo Bedeschi, Universidade de Turim
Lorenzo Fischer, Universidade de Turim
Lisa Foa, Roma
Luciano Bonet, Universidade de Turim
Lúcio Levi, Universidade de Turim
Ludovico Incisa, Roma
Luigi Bonanate, Universidade de Turim
Luigi Salvatorelli, outrora da Universidade de Turim
Mabel Olivieri Barbé, Universidade de Turim
Marco Cammelli, Universidade de Módena
Marino Regini, Universidade de Milão
Mário Stoppino, Universidade de Pavia
Massimo Follis, Universidade de Turim
Massimo Jasonni, Universidade de Bolonha
Marulio Guasco, Universidade de Verona
Maurizio Cotta, Universidade de Sena
Mauro Ambrosoli, Universidade de Turim
Mirella Larizza, Universidade de Turim
Nicola Matteucci, Universidade de Bolonha
Nicola Tranfaglia, Universidade de Turim
Nino Olivetti Rason, Universidade de Pádua
Norberto Bobbio, Universidade de Turim
Orazio M. Petracca, Universidade de Salerno
Paolo Ceri, Universidade de Turim
Paolo Colliva, Universidade de Bolonha
Paolo Farneti, outrora da Universidade de Turim
Paulo Menzozzi, Universidade de Bolonha
Pier Paolo Giglioli, Universidade de Milão
Pirangelo Schiera, Universidade de Trento
Piero Ostellino, Milão
Roberto Bonini, Universidade de Bolonha
Roberto D'Alimonte, Universidade de Florença
Saffo Testoni Binetti, Universidade de Bolonha
Sandro.Ortona, Turim
Sérgio Bova, Universidade de Turim
Sérgio Pistone, Universidade de Turim
Sérgio Ricossa, Universidade de Turim
Sérgio Scamuzzi, Universidade de Turim
Silvano Belligni, Universidade de Turim
Silvio Ferrari, Universidade de Parma
Siro Lombardini, Universidade de Turim
Stefano Bartolini, Universidade de Florença
Tiziano Bonazzi, Universidade de Bolonha
Tiziano Treu, Universidade de Pavia
Umberto Gori, Universidade de Florença
Valério Zanone, Roma
Vincenzo Cesareo, Universidade Católica de Milão
Vincenzo Lippolis, Universidade de Roma
INTRODUÇÃO
A
política é notoriamente
ambígua. A maior parte dos termos usados no
discurso político tem significados diversos. Esta
variedade depende, tanto do fato de muitos termos
terem passado por longa série de mutações históricas
— alguns termos fundamentais, tais como
"democracia", "aristocracia", "déspota" e "política",
foram-nos legados por escritores gregos —, como da
circunstância de não existir até hoje uma ciência
política tão rigorosa que tenha conseguido determinar
e impor, de modo unívoco e universalmente aceito, o
significado dos termos habitualmente mais utilizados.
A maior parte destes termos é derivada da linguagem
comum e conserva a fluidez e a incerteza dos confins.
Da mesma forma, os termos que adquiriram um
significado técnico através da elaboração daqueles
que usam a linguagem política para fins teóricos
estão entrando continuamente na linguagem da luta
política do dia-a-dia, que por sua vez é combatida,
não o esqueçamos, em grande parte com a arma da
palavra, e sofrem variações e transposições de
sentido, intencionais e não-intencionais, muitas vezes
relevantes. Na linguagem da luta política quotidiana,
palavras que são técnicas desde a origem ou desde
tempos imemoriais, como "oligarquia", "tirania",
"ditadura" e "democracia", são usadas como termos
da linguagem comum e por isso de modo nãounívoco. Palavras com sentido mais propriamente
técnico, como são todos os "ismos" em que é rica a
linguagem política — "socialismo", "comunismo",
"facismo", peronismo", "marxismo", "leninismo",
stalinismo", etc. —, indicam fenômenos históricos
tão complexos e elaborações doutrinais tão
controvertidas que não deixam de ser suscetíveis das
mais diferentes interpretações.
Pois bem: o escopo deste dicionário é o de
oferecer a um leitor não-especialista, ao homem culto
e aos estudantes de segundo grau e nível superior, e a
todos os que lêem revistas e jornais políticos, aos que
ouvem conferências e discursos, aos que participam
de comícios ou que assistem a debates na televisão,
dirigidos por especialistas ou por políticos
LINGUAGEM
profissionais, uma explicação e uma interpretação
simples e possivelmente exaustiva dos principais
conceitos que fazem parte do universo do discurso
político, expondo sua evolução histórica, analisando
sua utilização atual e fazendo referência aos
conceitos afins ou contrastivamente antitéticos,
indicando autores e obras a eles diretamente ligados.
Como o universo da linguagem política não é
um universo fechado e comunica com os universos
contíguos, como são o da economia, da sociologia e
do direito, haverá também neste dicionário palavras
do vocabulário econômico, como "capitalismo", ou
sociológico, como "classe", ou jurídico, como
"codificação". O leitor não deve procurar aqui, para
esses termos, um tratamento completo como o que
acharia em dicionários de economia, de sociologia ou
de direito, pela simples razão de haver apenas o
intuito de as incluir e de as tratar no que tange aos
aspectos políticos mais específicos do conceito. No
mais, diferentemente de outras ciências que têm uma
tradição mais longa e uma autonomia reconhecida e
respeitada, a ciência política, apesar de antiga, não
alcançou ainda uma autonomia completa. Por esse
motivo, tanto os sociólogos, como os juristas, os
economistas e os historiadores sempre ofereceram a
ela importantes contribuições, O leitor não deverá
surpreender-se, por conseguinte, que para a redação
de alguns verbetes deste dicionário tenham sido
convidados, além de cientistas políticos propriamente
ditos, também sociólogos, juristas, economistas e
historiadores. É possível que a diferenciada
proveniência dos autores de cada verbete repercuta
numa certa desigualdade ou diferenciação de estilo e
até de linguagem. Trata-se porém de um
inconveniente inevitável no estado atual do
desenvolvimento dos estudos políticos.
Nenhum termo da linguagem política é
ideologicamente neutro. Cada um deles pode ser
usado como base na orientação política do usuário
para gerar reações emocionais, para obter aprovação
ou desaprovação de um certo comportamento, para
VI
INTRODUÇÃO
provocar, enfim, consenso ou dissenso. Apesar do
esforço em se evitar o uso da linguagem prescritiva, a
presunção do dever ser, e apesar de se haver
preferido a descrição dos diversos significados
ideológicos em que um termo é usado à imposição de
um deles, ou seja, apesar de se ter procurado falar da
maneira mais neutral possível de termos que em si
mesmos nunca são neutros, não se pode excluir que
os autores dos verbetes, sobretudo daqueles em cujo
conteúdo mais se agitam e mais são agitadas as
paixões partidárias, tenham deixado transparecer suas
simpatias ou antipatias. A impassibilidade é uma
virtude difícil. E quando é levada até suas extremas
conseqüências do desapego ou da indiferença não é
nem sequer uma virtude.
Como todos os dicionários, também este, que
teve de enfrentar matéria acidentada e de contornos
confusos, sem ter o respaldo de uma tradição
consolidada de empresas análogas, não pode deixar
de ter suas lacunas. A ausência de palavras da gíria
política quotidiana é intencional. Algumas lacunas
são aparentes, uma vez que, para não multiplicar
inutilmente o número de verbetes, reuniram-se
matérias afins dentro de um verbete idêntico. Para
identificá-las, bastará que o leitor use o índice
analítico. Outras lacunas dependem certamente de
esquecimento: e ao mesmo tempo que pedimos
desculpa disso, desejaríamos ter leitores tão
interessados que tomassem consciência delas e nos
transmitissem suas observações.
Absolutismo.
I.
O
ABSOLUTISMO
COMO
FORMA
ESPECÍFICA DE ORGANIZAÇÃO DO PODER. —
Surgido talvez no século XVIII, mas difundido na
primeira metade do século XIX, para indicar nos
círculos liberais os aspectos negativos do poder
monárquico ilimitado e pleno, o termo-conceito
Absolutismo espalhou-se desde esse tempo em todas as
linguagens técnicas européias para indicar, sob a
aparência de um fenômeno único ou pelo menos
unitário, espécies de fatos ou categorias diversas da
experiência política, ora (e em medida predominante)
com explícita ou implícita condenação dos métodos de
Governo autoritário em defesa dos princípios liberais,
ora, e bem ao contrário (com resultados qualitativa e até
quantitativamente eficazes), com ares de demonstração
da inelutabilidade e da conveniência se não da
necessidade do sistema monocrático e centralizado para
o bom funcionamento de uma unidade política
moderna.
A força polêmica do termo, presente desde sua
aparição e nunca abafado pela sua contraditória
difusão, acelerou e acentuou por uma parte o sucesso,
mas também proporcionou vários equívocos sobre sua
essência, tornando de uma certa maneira problemática
a utilização dentro de margens rigorosamente
suficientes para garantir a cientifícidade requerida
pela própria pesquisa historiográfica.
A primeira generalização a que inevitavelmente se
chegou foi a de identificar o conceito de Absolutismo
com o de "poder ilimitado e arbitrário". Se esta era a
provável origem do significado do termo, é também
evidente que se tratava de uma acepção
indubitavelmente útil no plano do debate político e
ideológico mas inteiramente estéril para fins de
pesquisa histórico-política e constitucional, desde o
momento em que nada acrescentava em termos de
distinção e especificação no seio de um fenômeno
genérico em si e meta-histórico como o do poder.
Daqui veio a dupla tendência em ligar estritamente
o conceito em questão com uma
perspectiva eminentemente tipológica e estrutural,
confundindo-o ou assimilando-o com outro conceito,
bem mais definido no plano lógico e dos conteúdos,
que é o de "tirano"; ou então reduzi-lo a sinônimo da
mais precisa especificação histórica do Governo
arbitrário que é o "despotismo", com seus
insubstituíveis elementos mágico-sagrados e sua
absoluta falta de referências jurídicas, em sentido
ocidental. Em ambos os casos, mas sobretudo no
segundo (no qual mesmo no plano lingüístico foi onde
se criaram os maiores equívocos, com a utilização,
ainda não inteiramente superada, dos dois termos
como sinônimos nas principais línguas européias),
houve uma conseqüência posterior: projetar o
Absolutismo
na
dimensão,
eminentemente
contemporânea, do "totalitarismo".
É evidente que se trata, em todo o caso, de um
conceito artificial. Tanto nos seus significados
polêmicos como nos diferentes significados que lhe
são atribuídos, toda a definição de Absolutismo não
pode deixar de parecer "externa", convencional e
relativa, passível, portanto, de ser avaliada só em
função do grau de clareza que pode introduzir na
compreensão — no plano histórico e, como
conseqüência, também no categorial — de um aspecto
imprescindível da experiência política, que é o poder.
Não se pode prescindir, portanto, se quisermos
aprofundar este aspecto, da séria tentativa de
relacionar o Absolutismo com uma forma específica
de organização do poder, característica em relação a
outras. Tal especificidade podemos verificá-la
particularmente no plano histórico, referida a uma
determinada forma histórica de organização do poder.
A perspectiva que daí resulta é, portanto, em
primeiríssimo lugar, histórico-constitucional. Em sua
essência, os parâmetros classificatórios mais óbvios e
rentáveis parece serem os que estão ligados ao espaço
cultural do Ocidente europeu, no período histórico da
Idade Moderna e na forma institucional do Estado
moderno. A primeira limitação serve, antes de tudo,
para manter as distâncias da experiência oriental e
eslava do despotismo cesaropapista. A segunda
2
ABSOLUTISMO
serve para diferenciar a organização "absolutista" do
poder do sistema político feudal anterior e da antiga
SOCIEDADE POR CAMADAS (V.). A terceira, finalmente,
serve para lembrar os contornos concretos que o
Absolutismo assumiu como "forma" histórica de
poder.
II. A SOBERANIA. — De um ponto de vista
descritivo, podemos partir da definição de
Absolutismo como aquela forma de Governo em que
o detentor do poder exerce este último sem
dependência ou controle de outros poderes, superiores
ou inferiores. Inteiramente diferente seria defini-lo
como "sistema político em que a autoridade soberana
não tem limites constitucionais", ou apenas "sistema
político que se concretiza juridicamente através de
uma forma de Estado em que toda a autoridade (poder
legislativo e executivo) existe, sem limites nem
controles, nas mãos de uma única pessoa". O
problema decisivo é o dos limites: a respeito dele, o
Absolutismo se diferencia de forma clara da tirania,
por uma parte, e do despotismo cesaropapista, por
outra.
Em primeiro lugar, na verdade, a redução, válida,
embora elementar, do princípio de fundo do
Absolutismo à fórmula legibus solutus, referida ao
príncipe, implica autonomia apenas de qualquer
limite legal externo, inclusive das normas postas pela
lei natural ou pela lei divina; e também, a maior parte
das vezes, das "leis fundamentais" do reino. Trata-se,
portanto, mesmo em suas teorizações mais radicais,
de um Absolutismo relativo à gestão do poder, o qual,
por sua vez, gera limites internos, especialmente
constitucionais, em relação aos valores e às crenças
da época. O Absolutismo não é portanto uma tirania.
Secundariamente, aqueles limites, em particular os
dois primeiros, embora sejam de natureza religiosa ou
sacra, são apenas limites: desempenham um papel
negativo, mas não representam a substância do
Absolutismo ou o seu conteúdo. Representam apenas
o imprescindível termo de confronto, o limite que não
é possível ultrapassar em relação à tirania. Assim, o
Absolutismo é totalmente diferente do despotismo, o
qual, ao contrário, acha nos elementos mágicos,
sagrados e religiosos a própria identificação positiva,
a própria legitimação última.
Trata-se então de um regime político constitucional
(no sentido de que seu funcionamento está sujeito a
limites e regras preestabelecidas), não arbitrário
(enquanto a vontade do monarca não é ilimitada) e
sobretudo de tradições seculares e profanas. Com tais
características, a colocação espacial e cultural,
cronológica e institucional do Absolutismo adquire
maior crédito e significado.
Dando convencionalmente por descontado o
término final do Absolutismo na Revolução Francesa
(mesmo ficando de pé o problema da sobrevivência
de elementos absolutistas em diversos países da
Europa continental), as opiniões são necessariamente
contrastantes quanto ao seu início. Presente, em
condições mais ou menos evoluídas após o estádio de
desenvolvimento das diversas monarquias "nacionais"
européias, já na fase de transição do sistema feudal
para o Estado moderno, é concomitante com a
afirmação deste último que o regime absolutista se
afirma plena e conscientemente tanto no plano prático
quanto no plano teórico. A parte, portanto, a
necessidade de investigar as origens e as antecipações
até ao século XIII, podemos talvez razoavelmente
atribuir-lhe como idade peculiar, se não exclusiva, a
que vai do século XVI ao século XVIII. Entretanto,
mais complicado seria tentar fixar, dentro destes
limites, seu desenvolvimento homogêneo nas diversas
experiências políticas européias, onde, ao contrário,
ele se apresentou em tempos e modos diferenciados,
dando lugar a não poucos e importantes problemas de
recepção ou de influências a partir de várias
experiências. Basta pensar nas enormes diferenças
existentes entre o Absolutismo inglês, francês e
alemão.
Falta dizer, enfim, algo sobre o risco conexo com
uma excessiva identificação do Absolutismo com a
forma histórica ocidental moderna do Estado. Em
primeiro lugar, porque sempre existiram ilustres
exemplos de organização estatal moderna no Ocidente
inteiramente distantes da hipótese absolutista. Em
segundo lugar, porque esta é apenas uma hipótese que
foi freqüentemente realizada de uma maneira
completa, mas nunca a ponto de excluir outras
hipóteses e orientações, opostas ou contraditórias, de
cuja dialética derivou boa parte do posterior
desenvolvimento constitucional. Se, portanto, na sua
primeira fase, o Estado ocidental moderno foi, antes
de mais nada, um Estado absoluto, ele não foi só isso
e o Absolutismo foi apenas nele um componente
essencial, juntamente com outros. Foi um elemento
característico mas não exclusivo das constituições
ocidentais, podendo ser reduzido, em sua essência, a
dois princípios fundamentais, o da secularização e o
da racionalização da política e do poder. De tal
processo, o Absolutismo representou certamente, no
plano teórico e prático, uma das contribuições mais
eficazes do espírito europeu e merece ser estudado
debaixo desta luz.
III. ASPECTO JURÍDICO-INSTITUCIONAL. — Se esta
hipótese é verdadeira, o Absolutismo apresenta-senos em sua forma plena como a conclusão de uma
longa evolução, a qual, através da indis-
ABSOLUTISMO
pensável mediação do cristianismo como doutrina e da
Igreja romana como instituição política universal,
conduz, desde as origens mágicas do poder, até a sua
fundação em termos de racionabilidade e eficiência.
Este fato é perfeitamente testemunhado pela evolução
sofrida pelo princípio de legitimação monárquica da
antiga investidura, transmitida à monarquia de direito
divino através da graça divina, e também o princípio
monárquico constitucional do século XIX. Tal
evolução vai de uma justificação perfeitamente
religiosa, embora cada vez menos mágica, do poder,
até o tipo heróico e classista, que podemos
individualizar entre 1460-1470 e 1760-1770,
caracterizada por uma feição ideológica e
propagandística de tipo mitológico em relação à figura
do príncipe, até alcançar uma postura eminentemente
jurídica e racional em relação aos fins.
A amplitude da parábola dentro da qual o
Absolutismo se coloca permite atribuir um significado
menos superficial à sua raiz etimológica. O conceito
de legibus solutus denuncia imediatamente que o
terreno sobre o qual se sediou desde o fim da Idade
Média a obrigação política no Ocidente foi jurídico.
Nesse âmbito, todavia, em que dominava a tradição
romana, tida como viva e interpretada pela Igreja, se
verificou, no início da Idade Moderna, uma brecha
revolucionária, na medida em que a independência das
leis se torna bem depressa o emblema dos novos
princípios territoriais que aspiravam à conquista e à
consolidação de uma posição de autonomia, em
contraste com as pretensões hegemônicas imperiais e
papais de uma parte e com os senhores locais de outra.
No fundo, este desencontro refletia porém uma
mudança cultural importante, tornada possível e
incrementada pela descoberta do direito romano e pela
imensa obra de modernização e interpretação levada a
cabo pelos juristas leigos e eclesiásticos, pelas escolas
e pelas orientações que se sucederam em toda a
Europa até o século XVII. Trata-se da progressiva
contestação do "bom direito antigo", do simples e
indemonstrado apelo a "Deus e ao direito", da
concepção — de natureza evidentemente sacra — do
direito "achado" pelo príncipe-sacerdote na grande
massa das normas, consuetudinárias, naturais e
divinas, existentes desde tempos imemoriais. Em seu
lugar afirma-se a idéia de um direito "criado" pelo
príncipe, segundo as necessidades dos tempos e
baseado em técnicas mais modernas. Um direito
concreto, adequado a seus fins, mas também mutável,
não vinculado, ao qual o príncipe que o criou pode
subtrair-se em qualquer caso. É na base deste direito
que o príncipe proclama, ou faz proclamar por seus
legistas, a independência. Prova evidente de que esta
nova tendência se
3
move já conscientemente no sentido de racionalizar e
intensificar o poder e a relação fundamental em que o
mesmo se desdobra: a relação entre autoridade e
súditos.
A referida fórmula se articula efetivamente, no
plano lógico, em duas reivindicações posteriores,
também elas tomadas, embora em sentido inteiramente
diverso, do antigo direito romano e que correspondem,
em sua substância, às linhas de fundo do processo de
formação do Estado moderno, através da consolidação
da autoridade para fora e também dentro do
"território" no qual surge. Supremacia imperial e
papal, de uma parte, e participação dos poderes locais
(consilium), de outra, são os dois obstáculos que se
entrepõem para definição do poder monocrático do
príncipe. Contra o primeiro obstáculo, o poder
monocrático
se
proclama
"superiorem non
recognoscens" e "imperator in regno suo", negando
qualquer forma de dependência tanto em relação ao
imperador quanto em relação ao Papa. Contra o
segundo, em concomitância com a substituição sempre
mais convincente do direito "criado" pelo direito
"achado" e com a crescente exigência de estabelecer e
manter a paz territorial, se afirma o princípio através
do qual "quod principi placuit legis habet vigorem".
Neste ponto, o Absolutismo do poder monárquico é
alcançado, ao menos em teoria, na medida em que o
príncipe não encontra mais limites para o exercício de
seu poder nem dentro nem fora do Estado nascente.
Ele não é mais súdito de ninguém e reduziu a súditos
todos aqueles que estão debaixo de suas ordens.
Delineou-se, na verdade, em seus traços essenciais, o
novo e indiscutível princípio de legitimidade do
príncipe no Estado: o princípio de soberania, a
"summa legibusque soluta potestas", da qual no último
quartel do século XVI Bodin deu a sistematização
teórica definitiva.
A redução do Absolutismo aos seus referentes
jurídicos, todavia, se esgota o aspecto semântico do
problema e serve para descrever boa parte da sua
história, não basta para delinear completamente a
mudança profunda a que, no âmbito da experiência
política ocidental, o Absolutismo corresponde.
Passando também através do filtro jurídico, mas
investindo problemáticas e convicções bem radicadas
e envolventes, se completou, na verdade, entre os
séculos XIII e XVI, uma das maiores revoluções
culturais que o Ocidente conheceu.
IV. ASPECTO POLÍTICO-RACIONAL. — Se
secularização significa perda progressiva de valores
religiosos (cristãos) da vida humana, em todos os
4
ABSOLUTISMO
seus aspectos, o Absolutismo significa, também e
sobretudo, separação da política da teologia e a
conquista da autonomia daquela, dentro de esquemas
de compreensão e de critérios de juízos
independentemente de qualquer avaliação religiosa ou
moral. Deste ponto de vista, entram certamente na
história do Absolutismo, como doutrina política,
pensadores e movimentos que debaixo de um aspecto
estritamente técnico dele seriam excluídos pela pouca
atenção dada aos elementos jurídico-institucionais,
que fazem do Absolutismo um fenômeno
concretamente constitucional.
Deixando de parte as passagens através das quais se
realizou a "desmoralização" da política e que
contribuíram para o surgimento do "espírito laico",
dentro de um sistema prevalentemente antitomista, um
dos pontos de chegada do processo é representado,
sem a menor sombra de dúvida, pela obra de Niccolò
Machiavelli, apesar da posição equívoca que o mesmo
mantém em relação aos dois extraordinários
fenômenos histórico-políticos que se estavam
preparando e realizando em seu tempo: o surgimento
da Reforma religiosa e a construção do moderno
Estado institucional. Na verdade, a comparação de
Maquiavel com o Absolutismo está ainda ligada
essencialmente aos esquemas tradicionais; a ordem
absoluta, comparada com a civil, é para ele sinônimo
de tirania, de ilimitado e incontrolado poder. Por outra
parte, o seu príncipe corresponde, embora com toda a
cautela e ajustamento das condições necessárias,
àquele modelo, em função da única coisa que no
fundo lhe interessa: elevar o poder até o ponto central
se não único da experiência política e elaborar
critérios e normas de comportamento político
avaliados segundo estes fins, eliminando nele
qualquer elemento que manche a pureza da relação
que deriva da obrigação política rigorosamente
formulada em seus termos terrenos, concretos,
efetivos e reais. Se, na verdade, as fórmulas de
Maquiavel aparecem historicamente muito rígidas e
circunscritas, isso é devido unicamente ao pesado
condicionamento dos meios políticos italianos do qual
ele não pôde libertar-se e, em parte, também, ao
significado que ele, mais ou menos conscientemente,
atribuiu à sua obra principal Il Príncipe, que é
exatamente um tratado sobre o poder e não sobre o
Estado.
Para demonstração da complexidade e da
globalidade assumida pelo fenômeno de absolutização
da política, no qual se inclui o Absolutismo como
realidade histórica, e do qual Maquiavel foi
certamente o expoente mais importante, não se pode
esquecer outro filão através do qual se concretizou a
contribuição estritamente religiosa (cristã) para a
separação entre política e moral, mesmo que isso se
verifique através de uma
recuperação radical da outra dimensão, que 6
precisamente a religiosa e que representa a
contestação ao tomismo dentro da Igreja. Trata-se,
naturalmente, da Reforma Protestante, cuja
contribuição para o reforço do poder monárquico em
sua dimensão institucional é inegável, quer no plano
teórico, quer no plano prático, não apenas nos
territórios germânicos, onde intervieram também
motivos históricos contingentes, mas também nos
principais países europeus, há muito tempo
preparados para a concentração e racionalização
monárquica, como é o caso da Inglaterra e da França.
De tal contribuição vale a pena lembrar não apenas
o assunto da não-positividade da vida terrena para a
vida do além e a conseqüente desvalorização de todo
o esforço inclusive político fora daquele —
eminentemente burocrático, de serviço — do príncipe,
mas também o conseqüente e estreitíssimo vínculo de
obediência do súdito à autoridade e ainda, também,
pela modernidade e repetido sucesso da justificação, a
legitimação do poder absoluto em termos de mero
"bonum commune", entendido este último em sentido
especificamente material, de segurança, paz, bemestar e ordem.
Todos estes motivos, os de Maquiavel e os da
Reforma Protestante, confluíram facilmente para as
doutrinas políticas do Absolutismo que se
desenvolveram entre os séculos XVI e XVIII, tanto
para as de conteúdo imediatamente operacional,
coletadas e misturadas dentro do gênero literário da
chamada "razão de Estado", como para as de fundo
mais abertamente teórico e sistemático dos grandes
autores do Absolutismo, como Jean Bodin ou Thomas
Hobbes.
Os seis livros do Estado do primeiro representam
certamente o projeto mais convincente saído do
movimento dos políticos, no cenário do século XVI,
em resposta a uma situação interna da França
gravemente deteriorada, se pensarmos que a longa
caminhada realizada pela monarquia em direção a
uma gestão centralizada e racional do território
unificado tinha sofrido uma pausa e um regresso
surpreendentes, em nome de uma contraproposta
religiosa atrás da qual se escondia uma estranha
mistura de antigos interesses feudais e de novos
interesses burgueses, talvez ainda não conscientes, em
luta com as prerrogativas preponderantes e as
aspirações da alta nobreza dos Grandes do Reino. Que
a vitória tenha sorrido aos politiques, em nome do
novo princípio, polemicamente atribuído a eles por
seus adversários, de "estat, estat; police, police", é
altamente significativo. Quem venceu, de forma
aberta, foi na verdade o Estado e a política,
encarnados, um e
ABSOLUTISMO
outra, na figura do príncipe, mas levados a uma
unidade teórica, graças a Bodin, no princípio de
legitimação da soberania, "summa legibusque soluta
potestas", desdobrada essencialmente no "não ... estar
de nenhuma forma sujeito às ordens de outro e ... (no
poder) dar leis aos súditos e cancelar ou anular as
palavras inúteis da lei, substituindo-as por outras, coisa
que não pode fazer quem está sujeito às leis ou a
pessoas que exerçam poder sobre ele" (Os seis livros
do Estado, Livro I, capítulo VIII). Fica, certamente, o
limite da "lei natural e divina", mas é um limite, além
de dificilmente sancionável, bastante abstrato para não
atingir os problemas inerentes aos concretos negócios
do Governo. Por outro lado, a sua inderrogabilidade
serve a Bodin para defender a "derrogabilidade" das
"leis ordinárias", apoiando-se numa passagem das "leis
decretais". Permanece ainda a fronteira daquelas "leis
que dizem respeito à própria estrutura do reino e à sua
ordem básica", embora até ela encontre uma
explicação totalmente convincente nos termos do
Absolutismo que está mais dentro da lógica e da força
interna do Estado do que na figura pessoal do
monarca, na medida em que "essas leis estão ligadas à
coroa e a elas inscindivelmente unidas" (ibidem). Na
verdade, haveria ainda uma última fronteira que seria
decisiva e poria em jogo o conceito de soberania se
fosse verdadeiramente vinculante. É aquela que deriva
do juramento do príncipe no que toca ao respeito das
"leis civis" e dos "pactos" estipulados entre ele e seus
súditos (sobretudo, com as assembléias dos grupos
representativos). É um caso que Bodin encara com
uma série ilimitada de distinções e de exemplos
históricos, para em seguida resolvê-lo definitivamente,
recorrendo a um expediente final: a decisão no caso de
exceção diz respeito ao príncipe "conforme as
circunstâncias, os tempos e as pessoas o exigirem".
Fica assim estabelecido definitivamente "que o mais
alto ponto da majestade soberana está em dar a lei aos
súditos, tanto no seu aspecto geral como em seu
aspecto particular, sem necessidade de seu
consentimento" (ibidem). A questão do recurso ao
expediente final foi recentemente retomada por Carl
Schmitt como verdadeiro traço da soberania.
Mais oportuna e clara ainda é a argumentação
apresentada por Hobbes, três séculos mais tarde, em
defesa do poder absoluto. Isso tornou-se mais
inquietante pelo fato de a grande complexidade dos
problemas o ter constrangido a deixar o caminho
sólido de Bodin e dos politiques que tinham
essencialmente em mente a constituição funcional do
poder, em termos de eficiência e de ordem, limitandose a recorrer apenas à lógica
5
abstrata e instrumentalmente neutra do direito. Numa
situação política certamente mais avançada, que já
havia presenciado a afirmação do poder monárquico e
que estava vivendo a áspera contestação por parte de
forças bem mais homogêneas e consolidadas na defesa
dos novos interesses econômicos, bem diferentemente
daquilo que tinha acontecido na França durante o
século anterior, Hobbes foi obrigado a percorrer o
único caminho disponível para restabelecer a ligação
entre soberania (reivindicada de maneira decisiva e
tradicional pela monarquia Stuart) e direito (o direito
dos centros de poder local, do Parlamento que os
congregava, da gentry que começava a exprimi-los em
nível de classe) e para fundar uma legitimidade real: o
engajamento dentro de um sistema jurídico
reconhecido universalmente. Isso existia no direito
natural moderno que, depois de ter sido utilmente
empregado no decurso do século XVI como
instrumento racional para resolver questões
importantes ou muito originais, encontrou aplicação,
graças a Hobbes, na definição teórica do poder, da
soberania e do Estado. As questões específicas a que
foi aplicado esse direito foram aquelas que derivaram
de circunstâncias próprias de novos países
ultramarinos e questões .de direito internacional. Após
o grande quadro traçado por Bodin para o Estado, este
foi reduzido em sua última essência ao "animal
artificial", ao "autômato", ou seja, a "um homem
artificial, ainda que de maior força e estatura do que o
homem natural, concebido para proteção e defesa
deste" (Leviatã, Introdução).
Desta forma, o Absolutismo que caracteriza o
poder do Estado nada mais é do que a projeção do
Absolutismo natural da relação exclusiva existente de
homem para homem e o refúgio natural das
conseqüências mortais do inevitável conflito no qual
os homens vivem em Estado de natureza. A
legitimação que daí resulta é a mais radical jamais
concebível, pois que afunda suas raízes na própria
natureza humana e na "analogia das paixões" próprias
do homem individual. Dessa forma, finalmente,
Hobbes complementa a revolução de Maquiavel,
fundamentando o Absolutismo da política no
Absolutismo do homem e fundando a brutalidade
necessária do poder no Estado na simples
consideração de que este é uma criação artificial do
homem a quem ele recorre para moderar na história a
tragicidade do seu destino de lupus, que não pode ser
senão a morte. O raciocínio é elementar: as paixões
humanas, naturais e prejudiciais, não são pecado senão
a partir do momento em que uma lei as proíbe; mas a
lei deve ser feita e para esse fim deve ser nomeada
uma pessoa dotada de autoridade. Injustiça, lei e
6
ABSOLUTISMO
poder são três anéis da mesma cadeia lógica que
procura permitir a sobrevivência artificial do homem.
Em conclusão, também para Hobbes, a essência da
soberania está no Absolutismo e na unicidade do
poder, de tal forma que as vontades humanas
individuais estejam subordinadas a uma só vontade:
"Isto é mais do que um consenso ou um acordo: é uma
unificação de todas as vontades numa mesma pessoa,
feita por meio de um pacto de cada homem com cada
homem..." (ibidem, capítulo XVII). O Estado, de
homem artificial, se transforma em deus mortal, "...
uma pessoa, de cujos atos cada indivíduo de uma
grande multidão, com pactos recíprocos, se fez autor,
a fim de que possa usar a força e os meios de todos
eles, quando achar oportuno, para a paz e defesa
comum" (ibidem).
O fato de a expressão excelente da soberania
residir no poder legislativo deriva das premissas do
próprio texto de Hobbes. Só o direito positivo sabe
desalojar as paixões humanas e impedi-las
positivamente através de sanções. Nesse sentido, o
direito positivo não é mais do que um mergulho
necessário, artificial e racional, dentro do direito
natural, cujas leis eram continuamente violadas, no
Estado de natureza pelas paixões. O Estado feito à
semelhança do homem, mas quase-deus, exprime
fundamentalmente, para Hobbes, para além do
Absolutismo político, o próprio Absolutismo do
homem, em suas paixões e em seu heroísmo. A sua
grande essência inventiva, que reside na abstração do
poder numa vontade artificialmente unificada, é o
instrumento racional com que o homem salva a
própria concretude: a vida. No Estado, o homem se
salva, não se perde.
V. MODELO BIPOLAR: AUTORIDADE E SÚDITO. —
Paradoxalmente, é este o resultado final a que conduz
o Absolutismo político: a garantia da liberdade
humana — aquele tanto de liberdade que é
compatível com a compreensiva necessidade da
política —, agora definitivamente reduzida à esfera
autônoma de relações humanas, sem justificações ou
apelos de tipo transcendente. A partir de Hobbes, será
dentro da realidade do poder, especificamente dentro
da figura abstrata mas poderosíssima do Estado, que
se desenvolverá o processo de alargamento e de
consolidação desta garantia. Os modelos posteriores,
tanto os de tipo constitucional quanto os de tipo
absolutista e iluminista, como ainda os mais
modernos do Estado de direito e do Estado social, não
serão capazes de sair da rígida relação-separação em
que o Absolutismo, mediante o recurso à soberania,
havia fundado a própria obrigação política: aque-
la que existe entre autoridade e súdito. Só no âmbito
desse dualismo e na delimitação precisa das
respectivas competências é possível, por um lado,
conhecer as fronteiras exatas, por mais amplas e
extensas que sejam para Hobbes, do poder e, portanto,
limitá-lo de alguma forma e, por outro, estabelecer e
defender o âmbito de independência e autonomia
individual, mesmo quando se trata apenas do espaço
interior apolítico de Hobbes.
O Absolutismo político, na realidade, deu respostas
bastante unilaterais a estes problemas no campo
histórico-constitucional.
Com
isso
dilatou
exageradamente um pólo do dualismo — o pólo
autoritário. Por outro lado, ele fixou o princípio da
contraposição e a necessária premissa da sua possível
regulamentação.
Isto permite-nos, finalmente, estabelecer uma
distinção indiscutível de princípio entre Absolutismo e
totalitarismo. Este último consiste precisamente na
identificação total de cada indivíduo com todo o corpo
político organizado e mais ainda com a própria
organização desse corpo. Isso pode naturalmente
acontecer nos dois sentidos implícitos do dualismo
autoridade-súdito. Mediante a desmedida dimensão do
pólo autoritário, que chega a compreender em si todo
o aspecto e momento da vida individual, reduzindo o
aspecto privado a simples elemento constitutivo da
sua própria estrutura organizacional ou, então, através
da absolutização da presença individual, numa
contínua e global participação do homem na política.
Nos dois casos, dar-se-ia a absoluta politização da
vida individual, numa perspectiva dramaticamente
alienante ou fascinosamente liberante, mas chegando,
num ponto, ao mesmo resultado: a liberação dos
limites da política, a sua totalização, e, portanto, a
perda de sua autonomia em nome de uma hegemonia
absoluta em torno de qualquer aspecto da vida
humana, que a subjugaria inevitavelmente de novo,
com escolhas e opções prejudiciais de tipo
transcendente.
Trate-se de um totalitarismo autoritário e
tecnocrático ou então de um totalitarismo democrático
e humanístico, certamente os módulos de organização
e sobretudo os culturais e existenciais em que ele é
concretizado seriam necessariamente diferentes
daqueles a que a experiência constitucional ocidental
moderna nos habituou. Em todo caso e por mais
absurdo que pareça tratar no plano conteudístico das
duas possíveis linhas desse totalitarismo, parece
necessário tomar consciência das implicações e das
conseqüências que as duas comportam, dentro da
convicção, sempre provável, de que a idade do
totalitarismo já começou.
ABSOLUTISMO
BIBLIOGRAFIA. — P. ANDERSON, LO Stato
assoluto. Origini ed evoluzione dell'A. occidertale e
orientale. Mondadori, Milano 1980; F. HARTUNG e R.
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monarchie absolue, in "Relazioni dd X. Congresso
Internazionale di Scienze storiche". IV. Storia
moderna, Sansoni. Firenze 1955; W. HUBATSCH, Das
Zeitalter der Absolutismus 1600-1789, Westermann,
Braunschweig 1965; K. KASER, L'età dell'assolutismo
(1923), Vallecchi, Firenze 1926; R. MANDROU,
L'Europe "absolutiste". Raison et raison d'État, 16491775, Fayard, Paris 1977; F. MEINECKE, L'idea della
ragione di Stato nella storia moderna (1924), Sansoni.
Firenze 1967; A. NEGRI, voe. "A.", in Scienze
Politiche. I. Stato e Política. Feltrinelli, Milano 1970;
G. OESTREICH, Problemi di struttura dell'A. europeo,
in Lo Stato moderno. I. Dal Medioevo all'età moderna,
ao cuidado de E. ROTELLI e P. SCHIERA, Il Mulino,
Bologna 1971; R. SCHNUR, Individualismo e A.,
Giuffrè, Milano 1979; G. TARELLO, Storia della
cultura giuridica moderna. I. A. e codificazione del
diritto, Il Mulino, Bologna 1976; C. VIVANTI, Note per
una discussione sull'A., in "Quaderni di rassegna
soviética", Atti del III Convegno degli storiei italiani e
sovietici, Roma 1969; F. WALTER, Europa in Zeitalter
des Absolutismus 1600-1789, Oldenburg, München
1959.
[PIERANGELO SCHIERA]
Abstencionismo.
Este termo é usado essencialmente para definir a
não participação no ato de votar. Pode, todavia,
compreender a não participação num conjunto de
atividades políticas, conquanto, em suas formas mais
acentuadas, a não participação possa ser definida
como apatia, alienação, e por aí além. Como muitas
das variáveis ligadas à participação eleitoral, o
Abstencionismo é de fácil avaliação quantitativa. É,
com efeito, calculado como percentual daqueles que,
tendo direito, não se apresentam às urnas. É diferente
o caso dos que, apresentando-se, deixam a cédula
eleitoral em branco ou, deliberadamente, a anulam de
diversas maneiras. Embora tanto os que não se
apresentam às urnas como os que se manifestam
mediante voto não válido pretendam expressar
desafeição ou desconfiança, ambos os fenômenos são
considerados como analiticamente distintos.
Em geral, as variáveis que influem na
predisposição à participação política de sentido amplo
influem também positivamente na participação
eleitoral. Pode-se dizer, ao contrário, que os
abstencionistas são, do ponto de vista sociológico,
com poucas diferenças de um país para outro e salvo
algumas exceções (por exemplo, a de abstencionistas
voluntários e "resolutos" como os peronistas
argentinos, sempre que se sentiam discriminados, ou
7
os radicais italianos nas eleições administrativas de
1980 e 1981), um grupo de indivíduos com
características relativamente definidas: antes de tudo,
baixo nível de instrução; em segundo lugar, de sexo
feminino; em terceiro, de idade avançada ou então
muito jovem. De forma análoga à de qualquer outra
variável, a instrução, ou, melhor, a carência de um
adequado nível de instrução, influi negativamente na
participação eleitoral. Contudo, tem sido observado
que, se um indivíduo começou a participar nas
eleições porque "mobilizado", por exemplo, por um
partido ou por circunstâncias excepcionais, a guerra, a
depressão, é provável que continue "participante", não
contando seu nível de instrução.
As
taxas
de
Abstencionismo
variam
consideravelmente de país para país e de uma consulta
eleitoral para outra. As mais elevadas se encontram,
no que toca a regimes democráticos, nos Estados
Unidos: nas eleições presidenciais, o Abstencionismo
ultrapassou, na década de 70, 45%; nas eleições para o
Congresso, vota atualmente menos da metade dos que
teriam direito, embora haja acentuadas diferenças
entre um Estado e outro e entre as diversas eleições.
As taxas mais baixas se encontram, em ordem
gradual, na Austrália, Holanda, Áustria, Itália e
Bélgica, sendo, nas eleições políticas do segundo pósguerra, inferiores a 10%. Em média, as taxas de
Abstencionismo nos regimes democráticos giram em
torno de 20%, mas há sintomas que indicam um
ligeiro crescimento no percentual de eleitores que
desertam voluntária e deliberadamente das urnas.
As causas do Abstencionismo são múltiplas.
Importantes, mas certamente não decisivas para a
explicação das altas taxas que se registram em alguns
países, são as normas que regulam o exercício do
direito ao voto. A facilidade ou não de inscrição nas
listas eleitorais — automática em alguns casos,
deixada em outros ao potencial eleitor — e a
obrigatoriedade ou não de votar (na Austrália, por
exemplo, o voto é obrigatório; na Itália existe uma
sanção de caráter administrativo, a inscrição "não
votou" no certificado de bom comportamento)
influem, como é óbvio, no percentual de eleitores que
se dirigem às urnas. Tem-se observado, aliás, que nem
mesmo a queda dos requisitos mais onerosos fez com
que aumentasse o percentual de eleitores no contexto
norte-americano. Mais: de um modo geral, nota-se
que a expansão do corpo eleitoral, qualquer que seja a
razão (sufrágio universal masculino, extensão do voto
às mulheres, às minorias, diminuição do limite de
idade), provoca uma queda nas taxas de participação,
ao inserir no corpo eleitoral indivíduos ainda não
habituados a votar. Normalmente,
8
ABSTENCIONISMO
porém, superada a fase de "aprendizagem", as taxas de
Abstencionismo tendem a decrescer rapidamente. Mas
tal não aconteceu nos Estados Unidos.
Alguns autores buscaram por isso as causas do
Abstencionismo em dois grupos de variáveis: de um
lado, em variáveis individuais, psicológicas; do outro,
em variáveis de grupo, políticas e sistemáticas. Para
que o Abstencionismo não cresça, é preciso,
atendendo ao primeiro conjunto de variáveis, que os
novos eleitores tenham interesse pela atividade
política, possuam boa informação política e se
mantenham "eficazes", ou seja, capazes de influir no
resultado das competições eleitorais. Como os
indivíduos admitidos à participação eleitoral estão
muitas vezes escassamente interessados na política,
estão pouco informados e são "ineficazes" (homens
antes excluídos por causa do seu analfabetismo,
mulheres sem experiência política anterior, minorias
subalternas — uma exceção, os jovens da década de
70, já "automobilizados", mas talvez em fase de
refluxo, e com alto nível de instrução), a taxa de
Abstencionismo crescerá.
Quem atende às variáveis de grupo, tanto políticas
como sistemáticas, buscará uma explicação do
eventual crescimento do Abstencionismo sobretudo
em três fenômenos: antes de mais, no tipo de consulta
eleitoral; em segundo lugar, na competitividade das
eleições (ou seja, na importância do risco e na
incerteza do êxito); enfim, na natureza do sistema
partidário e das organizações políticas (grau de
presença e de assentamento social).
Os dados são concordes em indicar um
Abstencionismo seletivo do eleitor que vota, em
percentuais mais elevados, nas eleições consideradas
mais importantes, mais nas eleições políticas,
portanto, que nas administrativas (nos Estados
Unidos, é maior a votação nas eleições presidenciais
que nas do Congresso; na França, é maior no segundo
turno, ou seja, no da decisão, que no primeiro). É o
caso da Itália; mas aqui é preciso acrescentar uma
participação em declínio, isto é, um crescente
Abstencionismo nas consultas por referendum (de
11,9%, em 1974, a 18,8%, em 1978, e 20,4%, em
1981, com aumento também de cédulas brancas e
nulas).
A outra causa sistemática do Abstencionismo, a
não competitividade das eleições, é de mais difícil
verificação. Muitas vezes, os eleitores poderão aduzir
a pouca diferença dos programas dos partidos ou das
posições dos candidatos como causa da sua não
participação (o que é mais freqüente nos sistemas
bipartidários). Ou também positivamente: a vitória de
um ou de outro não influirá negativamente nas suas
preferências.
recursos e expectativas. Ao contrário, porém, o
elevado nível do reecontro político e as fortes
diferenças programáticas poderão fazer diminuir o
Abstencionismo, mobilizando eleitores aliás não
disponíveis. Os casos italiano e francês parecem seguir
esta direção; o caso estadunidense, de que possuímos
uma massa de dados sem igual, caminha no outro
sentido.
Enfim, a explicação mais comumente apresentada e
da maneira talvez mais convincente é a de que, onde
os partidos estão bem organizados, capilarmente
presentes e muito ativos, a taxa de Abstencionismo
mantém-se muito moderada; onde eles estão em crise,
sua capacidade de mobilização e conquista do
eleitorado se esvai e o Abstencionismo cresce,
crescendo ainda mais se, como ocorreu nos Estados
Unidos nos anos 60, sua crise for contemporânea à
expansão do eleitorado potencial. Não inserido no
circuito da política organizada, este eleitorado
depressa se acolhe ao Abstencionismo e, se não
recuperado com o andar do tempo, se perpetuará como
um eleitorado abstencionista crônico. Já que, em geral,
parece ter de se contar com uma diminuição da atração
dos partidos de massa e das organizações políticas que
propendem à participação eleitoral, a tendência futura
mais provável é a do crescimento do Abstencionismo.
Que efeitos produz o Abstencionismo no
funcionamento dos regimes democráticos? Em
primeiro lugar, não são poucos os que pensam que
altas taxas de Abstencionismo constituem uma
deslegitimação, atual ou virtual, dos governantes, da
classe política e até mesmo das próprias estruturas
democráticas. Se democracia é participação dos
cidadãos, uma participação insuficiente debilita-a. Em
segundo lugar, quem aceita uma visão mais
desinteressada do problema da legitimidade dos
regimes democráticos acentua, em vez disso, a
necessidade de se levar em conta a "produção" do
regime. Se os abstencionistas constituem um grupo,
não só sociologicamente diverso de quem vota, mas
também diverso em termos de preferências políticas,
sua abstenção tornará difícil (e não essencial) às
autoridades, aos governantes, serem sensíveis às
exigências não expressas. Por isso a produção
legislativa, a distribuição dos recursos, as opções
globais do sistema premiarão os que participam em
prejuízo dos que se abstêm, o que pode assumir
aspectos de particular gravidade, se os abstencionistas
pertencerem
a
grupos
sociologicamente
"subprivilegiados". Em parte é assim, em parte não: os
abstencionistas só em parte são diferentes,
particularmente nos Estados Unidos, daqueles que
votam.
ABSTENCIONISMO
Mantém-se, todavia, em pé o problema dos regimes
democráticos onde um alto percentual de eleitores
resolve não "se incomodar" por influir no resultado
das competições eleitorais. Na realidade, só em
escassa medida se pode pensar que o sistema, em seu
conjunto, não fica com isso "deslegitimado". Além
disso, a grande massa dos abstencionistas e eleitores
flutuantes fica à mercê dos apelos dos demagogos que
prometem limpar a área e criar um regime de
autêntica
participação.
A
mobilização
dos
abstencionistas desde o alto é, em conclusão, um
perigo real em situações onde a taxa de
Abstencionismo cresce sem solução de continuidade.
BIBLIOGRAFIA. - K DITTRICH e L. N. JOHANSEN,
La partecipazione elettorale in Europa (1945-1978):
miti e realtà in "Rivista Italiana di Scienza Política", X
(agosto 1980); A. T. HADLEY, The Empty Polling
Booth, Prentice Hall, Englewood Cliffs 1978; E. C.
LADD JR., Where Have All the Voters Gone?. Norton,
New York 1978; A. LANCELOT, L'abstentionnisme
electoral en France, Colin, Paris 1968; Electoral
Participation, ao cuidado de R. ROSE, Sage
Publications, Beverly Hills-London 1980; R. E.
WOLFINGER e S. J. ROSENSTONE, Who Votes! Yale
University Press, New Haven-London 1980.
(GIANFRANCO PASQUINO]
Ação Católica.
O decreto do Concilio Vaticano Il "Apostolicam
actuositatem" a propósito da Ação católica, isto é, das
"várias formas de atividades e de associações que,
mantendo uma mais estreita ligação com a hierarquia,
se ocuparam e se ocupam com finalidades
propriamente apostólicas", lembra a definição que
mais comumente, no passado, era a elas atribuída:
"colaboração dos leigos com o apostolado
hierárquico" (cap. 20). Trata-se de uma fórmula cujas
origens remontam ao pontificado de Pio XI (19221939). Ela aparece, de fato, pela primeira vez, com
palavras ligeiramente diferentes ("participação dos
leigos na missão própria da Igreja"), numa carta do
então secretário de Estado cardeal Gasparri aos bispos
italianos, de 2 de outubro de 1922. Inserida na sua
forma definitiva nos estatutos de Ação católica italiana
de 1931, será mantida também pelos sucessivos
pontífices. Para captar seu significado é preciso
considerar o contexto doutrinai em que ela amadurece,
focalizando, em primeiro lugar, a acepção que aí tem o
termo "apostolado". Este indica um projeto totalizante
sobre o homem e a
9
sociedade: não somente reconduzir à fé cada indivíduo
que dela se tenha afastado, mas também recriar um
organismo social baseado em todos os níveis,
inclusive no nível da organização civil e econômica,
na doutrina da Igreja católica. Não há distinção, nessa
perspectiva, entre "religioso" e "político": os dois
planos convergem num modelo ideal de sociedade
hierarquicamente estruturada em que a Igreja — o
Papa em primeiro lugar e os bispos dele dependentes
— reveste a função de ordenadora última, como tal
reconhecida pelo Estado que, em conseqüência disso,
recebe dela a sua legitimação. Trata-se de uma
concepção, largamente difundida nos ambientes
católicos europeus desde a primeira metade do século
XIX, que teve origem na polêmica ultra-montana e
intransigente contra o liberalismo. O termo Ação
católica (ou "ação dos católicos") começa a ser usado,
juntamente com o de "movimento católico", a
propósito das organizações de leigos militantes que se
formaram em diversos países da Europa (as primeiras
foram as da França, da Bélgica e as das regiões de
língua alemã), em aberta oposição ao Estado liberal.
Na Itália esse termo é usado para indicar o variado
conjunto de associações e instituições chefiadas, desde
1874, pela Obra dos Congressos. Já no início da
década de 60 a revista dos jesuítas "La Civiltà
Cattolica" elabora uma precisa definição do papel que
o laicato militante tem no Estado moderno: ele deve
assegurar à Igreja a tutela que os Governos liberais lhe
negam, defendê-la de seus ataques e influir, através de
sua ação, para reconduzir a sociedade, em seus vários
níveis, à sua imagem originária de "societas
christiana". A intervenção política é um dos muitos
instrumentos de que a Ação católica tem o direito e o
dever de servir-se, em obediência às indicações da
hierarquia; é um direito que somente na Itália sofre
limitações no que diz respeito à participação dos
católicos nas eleições políticas e isto com o intento de
tornar mais eficaz o protesto contra a anexação dos
Estados pontifícios, que se concluiu com a tomada de
Roma em 1870. O termo de Ação católica foi ,dado
pelo Papa Pio X, na Itália, a uma organização
particular, após a dissolução, por ele decretada, da
"Opera del Congressi" (1903). A Ação católica, que
sucedeu a esta obra, não é mais um movimento que
nasce da iniciativa autônoma do laicado, mas uma
organização promovida pela hierarquia e por ela
diretamente controlada. Inicia com Pio X uma série de
revisões estatutárias que acentuam cada vez mais seu
caráter centralizador, tornando-a um instrumento dócil
que a Igreja pode utilizar no âmbito de sua estratégia
geral de "recristianização" da
10
AÇÃO CATÓLICA
sociedade. A Ação católica italiana adquire com isso
uma fisionomia que a diferencia sensivelmente, sob o
perfil organizativo. das existentes em outros países,
especialmente da francesa, articulada em movimentos
de categoria dotados de ampla autonomia. Deve-se,
também, considerar o caráter de "modelo exemplar"
que o papado atribuirá cada vez mais à organização da
ACI, como aquela que melhor realiza o ideal do
empenho do laicado nos confrontos com a Igreja e a
sociedade. Intervindo diretamente na organização do
laicado militante e dando um reconhecimento especial
a uma associação específica, a Santa Sé intende
também controlar o surgimento, no âmbito católico, de
movimentos que, como a democracia cristã de Murri,
coloquem, embora parcialmente, em discussão o seu
projeto de sociedade e reivindiquem um espaço
autônomo de decisão para o laicado na área política. A
definição que Pio XI deu de Ação católica sublinha a
função subalterna que ela tem em relação à hierarquia,
com cujo apostolado "colabora" em qualidade de mero
executor. No quadro do acordo entre a Igreja e o
fascismo sancionado pelos tratados de Latrão, a Ação
católica ganha o espaço de formação de um pessoal
capaz de influir nos vários níveis do Estado. Com a
reconstituição da ordem democrática, no fim da
Segunda Guerra Mundial, a Ação católica não se
limitará a fornecer quadros ao partido católico e a
assegurar-lhe o seu máximo apoio eleitoral, mas
exercerá sobre este partido a função de instrumento de
pressão. Durante o pontificado de Pio XII. não
obstante se afirme a natureza puramente religiosa das
funções da Ação católica, não muda o quadro
tradicional de referência, isto é, a perspectiva do
retorno da sociedade à imagem unitária da "societas
christiana", para cuja atuação a Igreja privilegia o
instrumento da gestão direta do poder político por
parte dos católicos. O pontificado de João XXIII e o
Concilio Vaticano Il marcam, no que concerne às
linhas do discurso pastoral, um decisivo momento de
mudança. O tema da "opção religiosa", que se tornou
central na Ação católica do após-concílio, representa
um distanciamento da concepção do apostolado acima
mencionada
e
embora
parcialmente,
um
reconhecimento da autonomia da ação política em
relação aos princípios que determinam a experiência
do cristão. Como isto se concretizou, qual a relação
entre a persistência de formas de intervenção e de
presenças típicas do passado e entre o surgimento de
uma nova concepção de Ação católica, fica ainda, em
grande parte, um problema aberto.
BIBLIOGRAFIA. — AUT VAR.. La presenza
sociale del PCI e della DC. Il Mulino. Bologna 1968:
G. CANDILORO, Il movimento cattolico in Italia. Editori
Riuniti. Roma 1972; G. oi ROSA. Storia del movimento
cattolico in Italia dalla restaurazione ali età
giolittiana. Laterza. Bari 1966; F. MAGRI, LA.
Cattolica in Itália. La Fiaccola. Roma 1953, 2 vols.; G.
Micolli, Chiesa e società in Itália dal Concilio
Vaticano I (1870) al Pontificam di Giovanni XXIII. in
Storia d'Italia. vol. V, I documenti. tomo II, Einaudi.
Torino 1973, pp. 1493-1548; G. POGGI. Il clero di
riserva. Feltrinelli, Milano 1963.
[LILIANA FERRARI]
Administração Pública.
I. AS ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS. — Em
seu sentido mais abrangente, a expressão
Administração pública designa o conjunto das
atividades diretamente destinadas à execução
concreta das tarefas ou incumbências consideradas de
interesse público ou comum, numa coletividade ou
numa organização estatal.
Do ponto de vista da atividade, portanto, a noção de
Administração pública corresponde a uma gama
bastante ampla de ações que se reportam à
coletividade estatal, compreendendo, de um lado, as
atividades de Governo, relacionadas com os poderes
de decisão e de comando, e as de auxílio imediato ao
exercício do Governo mesmo e, de outra parte, os
empreendimentos voltados para a consecução dos
objetivos públicos, definidos por leis e por atos de
Governo, seja através de normas jurídicas precisas,
concernentes às atividades econômicas e sociais; seja
por intermédio da intervenção no mundo real
(trabalhos, serviços, etc.) ou de procedimentos
técnico-materiais; ou. finalmente, por meio do
controle da realização de tais finalidades (com
exceção dos controles de caráter político e
jurisdicional).
Na variedade das atividades administrativas
(abstraindo-se o exame daquelas de Governo, que
merecem consideração à parte), dois atributos comuns
devem ser destacados; em primeiro lugar, o fato de
essas atividades serem dependentes ou subordinadas a
outras (e controladas por essas), as quais determinam
ou especificam os fins a atingir (atividades políticas
ou soberanas e de Governo); em segundo lugar, o de
serem executivas, no duplo sentido de que acatam
uma escolha ou norma anterior, e de que dão
continuidade à
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
norma, intervindo para a consecução final de
interesses e objetivos já fixados.
Tais atributos conduziram a que a Administração
pública fosse identificada, • essencialmente, como
uma função, ou como uma atividade-fim
(condicionada a um objetivo), e como organização,
isto é, como uma atividade voltada para assegurar a
distribuição e a coordenação do trabalho dentro de um
escopo coletivo.
II. AS ESTRUTURAS ADMINISTRATIVAS. —
No momento em que a exigência da distribuição e
coordenação do trabalho administrativo assumiu
relevo e dimensões sempre crescentes no decorrer da
experiência dos ordenamentos estatais modernos e
contemporâneos, de tal modo que deu origem ao
aparecimento e ao desenvolvimento de estruturas
específicas, o termo Administração pública, do ângulo
de seus destinatários, passou a indicar o complexo de
estruturas que, conquanto se encontrem em posições
de subordinação diferentes, em relação às estruturas
políticas e de Governo, representam uma realidade
organizativa distinta daquelas.
Para a maioria dos estudiosos, as estruturas
administrativas representam, mais do que tudo, o traço
característico
dos
Estados
modernos
e
contemporâneos, manifestando, quase fisicamente, sua
presença no plano subjetivo. Constitui característica
normal dessas estruturas o fato de se lhe ter destinado
um pessoal escolhido por sua competência técnica,
contratado profissionalmente e em caráter permanente
(corpos burocráticos).
Entretanto, faz-se mister esclarecer que a
Administração pública não pode ser reduzida, como às
vezes ocorre, ao perfil de suas estruturas; de fato, isso
não permite explicar integralmente o fenômeno
administrativo público, tal como ele se delineia, do
ponto de vista histórico e comparado, mormente se se
tem em mente que nem sempre existiram estruturas de
tipo burocrático destinadas à execução de atividades
administrativas e que, muitas vezes, existe
continuidade ou identidade parcial entre as estruturas
governativas e administrativas.
III. O PROBLEMA ADMINISTRATIVO E
TIPOS DE ADMINISTRAÇÃO. — A variedade das
funções a que se pode endereçar a ação administrativa'
e a diversidade das atividades com que ela pode se
manifestar aconselham que se assuma o ponto de vista
mais abrangente de considerar a administração como
atividade ou função necessária, semelhante à da
política e à do Governo, em qualquer ordenamento
geral ou especial.
11
Trata-se, mais propriamente, de considerar como
dado constante de toda a coletividade estatal (como,
aliás, de todo o grupo social organizado) a existência
de um problema administrativo que tem ou pode ter
soluções diversas, mesmo no plano organizativo em
relação à variação dos três componentes principais e
individuantes de cada sistema e tendo em vista,
também, as características diferentes de cada país no
plano social, econômico e cultural: tipo de
instituições políticas e de Governo existentes; a
relação entre estas e a Administração pública; e as
finalidades tidas como metas ou objetivos de interesse
público.
O exame do modo como se tem encarado e
procurado resolver positivamente o problema
administrativo, onde quer que se faça, com base nas
três principais variáveis já lembradas, que escondem,
de certo modo, os elementos fundamentais do
fenômeno administrativo público — o elemento
institucional, o organizativo e o funcional —, permite
individualizar diversos tipos de Administração
pública, tanto no decurso da evolução histórica como
no confronto das diversas experiências nacionais.
Poderá aparecer, em particular, como os negócios
da Administração pública seguem, pari passu, as
formas de Estado e de Governo, tendo como
manifestação específica, e não menos essencial, a
organização e o equilíbrio exigido pelas
circunstâncias. Será igualmente possível constatar,
especialmente na época atual, a co-presença de
diversos tipos de Administração pública dentro da
própria coletividade estatal.
Em relação a cada tipo de administração é também
possível elucidar como as instituições políticas e
governamentais foram fortes e capazes de realizar ou
mandar realizar os próprios objetivos.
Por outro lado, deve destacar-se também quanto a
Administração pública correspondeu, tanto no plano
estrutural quanto no funcional, aos seus objetivos e
como foi eficiente em atingi-los. Dentro desta relação
que
vê,
numa
posição
de
recíproca
complementaridade
e
simultaneamente
de
contraposição, a função política e governamental e a
administrativa, coloca-se uma das problemáticas
vitais mais complexas e, parcialmente, insolúveis do
nosso tempo.
Torna-se particularmente evidente que nela existem
amplas estruturas burocráticas (como regra) ,
enquanto, na realidade efetiva, a relação institucional
de dependência que a caracteriza pode apresentar
valores, se não opostos, pelo menos profundamente
divergentes daqueles que foram previamente
estabelecidos.
12
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
O respectivo papel das estruturas políticas e
administrativas tendem a uma troca recíproca ou a
uma
configuração
baseada
num equilíbrio
substancialmente alterado. Daqui nasce outra
temática, tipicamente sociológica, que caracteriza a
Administração pública de hoje em diversos contextos
institucionais dentro de uma variada tipologia: a do
papel político desenvolvido de fato pelas estruturas
burocráticas.
IV. A ADMINISTRAÇÃO DA SOBERANIA. —
Para esquematizar sumariamente quais os tipos de
administração que adquiriram maior importância nas
formas de Estado e de Governo modernas e
contemporâneas, tendo em vista particularmente as
experiências italiana e brasileira, e sem pretender
ilustrar na sua singularidade histórica as várias
administrações nacionais dos dois países, convirá,
antes de tudo, relembrar a formação das grandes
monarquias da Europa continental.
Com o surgimento e o desenvolvimento de tais
instituições de Governo monocrático e absoluto
realiza-se, como é conhecido, um tipo de
administração que representa, em certo sentido, a
condição necessária para que os nossos poderes
políticos possam afirmar-se, estabilizar-se e manterse.
A ação administrativa é essencialmente orientada,
portanto, para a conquista dos meios indispensáveis à
conservação e reforço do poder régio constituído.
Pode pensar-se, dentro de tal perspectiva, que os
primeiros setores administrativos a desenvolver-se são
o setor militar e o financeiro e que, entretanto, se
assiste ao progressivo monopólio da função
jurisdicional do chefe soberano. A organização do
Governo régio tende, além disso, a articular-se e a
difundir-se de modo uniforme por todo o território,
através da criação de estruturas de administração
periférica, cujos responsáveis estão vinculados, por
delegação ou por representação do Governo central,
enquanto as funções administrativas do Governo
autônomo local, especialmente urbano, se vão
degradando.
No que diz respeito a tais finalidades de base e a
tais modalidades de desenvolvimento, a ação
administrativa se posiciona como com participação no
exercício da autoridade soberana ou como autoridade
soberana delegada. Neste sentido, a Administração
pública se confunde com a atividade e o poder do
Governo. Esta característica explicará notável
influência sobre a sucessiva evolução do fenômeno da
Administração pública.
No contexto, o elemento institucional tem
prevalência sobre o organizativo e o funcional.
Estes se integram na fórmula unitária do serviço
para o rei (ou para a Coroa). Tal fórmula
contradiz só aparentemente a colocação dá
administração como soberania delegada. O duplo
aspecto do comando (para fora) e do serviço (para
dentro) contribui também para lançar luzes sobre a
posição especial do aspecto da organização que a
Administração pública assume em relação ao poder
político do Governo e de toda a coletividade. Faz-se
uma nítida distinção, especialmente, entre as regras do
ordenamento próprio da administração e as do
ordenamento em geral. Isto tem muito que ver com as
experiências estatais da Europa continental. A
experiência anglo-saxônica é caracterizada por uma
restrita área de atividades soberanas em sentido
próprio e por uma subordinação geral das atividades
públicas às normas do direito comum, sendo
caracterizada também pelo respeito e pela utilização
dos poderes políticos locais para as metas da
administração.
A organização administrativa do Estado absolutista
não tem, portanto, características estruturais
autônomas em relação às da autoridade soberana.
Todavia apresenta-se como um esquema de pessoas
ligadas por vínculos de subordinação interna e privada
ao soberano e, como já se disse, como organização ou
administração privada da soberania.
À falta de características estruturais próprias típicas
e autônomas por outra parte, a um período em que
existe uma indistinção subjetiva das funções públicas,
corresponde uma centralização que é avaliada antes de
tudo no plano político. O problema administrativo é
resolvido na homogeneidade institucional e política
entre governantes e pessoal administrativo, com base
na natureza das tarefas a executar, no modesto volume
de recursos, na preparação técnica específica e na
limitada necessidade de recorrer a estruturas
burocráticas.
V. A ADMINISTRAÇÃO EMPRESARIAL. — É
da transformação destas premissas ligadas entre si que
derivam, já antes do advento do Estado de direito
constitucional, importantes modificações que levam
ao progressivo e impetuoso predomínio da
organização, mesmo no âmbito da colocação que lhe
foi dada originariamente.
Com a ampliação das tarefas públicas no campo
das intervenções infra-estruturais, e dos serviços
sociais e ainda no das atividades econômicas de base
— fenômeno típico de uma variante do Estado
absoluto seria o Estado policial —, emergem os traços
de uma administração diversa cujos fins estão
voltados para interesses coletivos, o que requer
estruturas próprias e estáveis e ainda pessoal recrutado
profissionalmente e tecnicamente
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
qualificado. E a partir daqui que nascem formas de
organização autônoma, regidas por normas próprias e
critérios internos de ação (especialmente no campo da
contabilidade e das finanças), predispostas a atingir
determinados objetivos de caráter produtivo: as
empresas.
A administração que participa do Governo e à
emanação da autoridade soberana se justapõe a
administração empresarial, um módulo organizativo
de grande interesse para as perspectivas atuais da
Administração pública, conforme já, oportunamente,
acentuaram muitos estudiosos.
Tal módulo organizativo comportava de fato a
ruptura da continuidade estrutural entre Governo e
administração e dava um relevo, à parte às
responsabilidades decisórias próprias do Governo e
também às de atuação e de gestão organizativa das
mesmas. Isso teria podido assegurar um notável efeito
classificador no momento em que o ato de administrar
entrou, juntamente com outras funções públicas, no
sistema do Estado constitucional de Governo
parlamentar. Bem ao contrário, o modelo da
administração empresarial foi baseado na proclamada
necessidade de submeter todo o funcionamento do
aparelho estatal ao controle do Parlamento através da
responsabilidade das instituições ministeriais.
VI. A ADMINISTRAÇÃO. — AUTORIDADE E
A ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA. — Com o
aparecimento dos regimes constitucionais, a
administração foi subordinada à lei e inserida no
chamado poder executivo estatal. Isto, porém, não fez
senão dar uma roupagem formal mais atualizada ao
que já era uma ordem conceituai e prática preexistente.
Os novos princípios e os novos dispositivos
institucionais agiram não no sentido da transformação
mas no da limitação e controle da ação administrativa
em relação ao público. A ação administrativa foi
regulamentada quanto aos interesses e metas a
perseguir e também quanto ao âmbito das suas
possibilidades de intervenção, particularmente as do
tipo unilateral e autoritário. Todavia, a intervenção foi
configurada igualmente como manifestação de
autoridade (legislativamente circunscrita) para
satisfação de interesses próprios do titular da soberania
(não do príncipe, mas da entidade estatal).
O momento de contato entre os dois campos
separados da administração e da sociedade é traduzido
através do ato administrativo, o qual fixa concreta e
unilateralmente o interesse do Estado-pessoa, dentro
dos limites do tato que a legislação permite e sem o
qual, por outro lado, os remédios jurisdicionais
aplicados não poderiam
13
oferecer corretivos eficazes e exaustivos para tutela
do interesse público a defender.
Desta maneira, o aspecto organizativo da
administração torna-se prevalente. Enquanto assume
seu próprio perfil estrutural, a administração conserva
e reforça seus laços de dependência dos dirigentes
políticos, de tal modo que, pode dizer-se, a
administração não é mais do que o aparelho do
Governo. As estruturas são ordenadas sobre o modelo
ministerial e dentro de cada ministério as mesmas são
articuladas de maneira a favorecer a direção e o
controle quotidiano das atividades administrativas
pelos chefes políticos. E sabido que, dentro das
estruturas centrais e periféricas dos ministérios, a
distribuição das tarefas administrativas se realiza
progressivamente mediante a formação de uma escala
de competência interna. Tal escala vai desde a
competência geral à competência específica e
comporta, no caso de competência de nível inferior (e
dos titulares de cargos), a possibilidade de
participação ou de substituição no exercício da
competência de nível inferior.
Ao mesmo tempo, as diversas competências são
individualizadas de modo que a cada uma delas
corresponda a realização ou a preparação de uma ou
mais atividades de execução normativa. Neste
contexto, há a supressão conseqüente de qualquer
responsabilidade direta por parte do pessoal
administrativo que atua dentro das metas da
organização. Disciplinando de modo uniforme a
atividade ou o segmento de atividade confiado a cada
uma das unidades organizativas, garante-se, por outro
lado, um controle fácil e uma possibilidade de rápida
agilização na transmissão das ordens e das diretrizes
de cúpula, sempre que isso for necessário.
VII.
A
CRISE
DA
ORGANIZAÇÃO
HIERÁRQUICA. — A organização ministerial de
tipo hierárquico voltada para a acentuação da unidade
e regularidade formal da ação administrativa move-se,
na verdade, dentro de uma relação de relativo
equilíbrio com os objetivos de ordem e disciplina
inerentes à administração segundo a concepção
dominante do Estado liberal. Por outro lado, essa
organização representa, também, a negação destas
exigências se se levar em conta a carga política
implícita que ela supõe.
Enquanto se admite que a Administração pública
deve atuar imparcialmente, cumprindo, de
preferência, o mandado na lei, verifica-se, por outro
lado, estar ela organizada de tal maneira que se torna
facilmente permeável à interferência de partes. Esta
profunda contradição não tardará a vir ao de cima,
colocando, em termos
14
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
dramáticos, o problema da separação da esfera
política da esfera administrativa. Entretanto, se se
prescindir do aspecto da tutela jurisdicional, não serão
alcançadas senão soluções parciais e impróprias,
tendo em vista as causas de fundo que originaram o
problema.
Quando se deveria dar um lugar distinto,
respectivamente, às estruturas de Governo (e de seus
órgãos auxiliares) e às estruturas administrativas,
atribuindo a estas últimas uma configuração autônoma
precisa (lembremo-nos dos órgãos e agências
existentes no escalonamento hierárquico da Suécia e
da América do Norte), verifica-se apenas a concessão
de garantias para o corpo burocrático em contraste
com a classe política dirigente, assim como a
concessão de privilégios para a maioria dos servidores
a ela subordinada, sem que as estruturas percam seu
caráter uniforme e hierárquico.
A criação de garantias de Estado para os
empregados, o crescimento numérico do corpo
burocrático e, de um modo geral, o poder alcançado
por este em relação à classe política (mesmo nos
serviços a ela prestados nos partidos e por ocasião de
eleições) representam fatores que contribuem para
agravar as condições de irresponsabilidade prática de
cada um e da organização em seu conjunto. Essa
disparidade concorrerá, por seu turno, para
enfraquecer mais o controle político até reduzi-lo a
termos meramente fictícios, pouco ou nada ajudando
na imparcialidade da ação administrativa.
Acrescente-se a isto a consideração de que nem se
constituíram centros de governo autônomo regional e
local (para uma distribuição vertical do poder
político) nem se realizaram, a nível local, aquelas
formas de autogoverno ou de auto-administração,
próprias do sistema inglês de ordenação onde as
funções estatais periféricas são entregues a órgãos
eletivos. Em um e outro caso poderiam ser retomadas
as condições de um decisivo controle político e de
uma relação de responsabilidade mais direta entre
administradores e administrados.
É sabido, por outro lado, que se assiste a uma
progressiva absorção, por parte da órbita estatal, das
atividades administrativas de interesse local dos
municípios, das províncias e até dos Estados, nos
países federados. Na Itália constata-se a repressão da
autonomia política das províncias existentes no
período fascista.
A mudança sucessiva das tarefas administrativas
— conseqüência da consolidação do Estado social —
pressupõe fundamentalmente os mesmos princípios
que sustentavam a organização hierárquica tradicional
como exigência de reforço
das estruturas e das modalidades de ação relacionadas
com os novos objetivos e com os fins da prestação dos
serviços sociais e da gestão das atividades
econômicas, e relacionadas também com a solução
integrada dos problemas de desenvolvimento da
sociedade e com a consecução efetiva dos resultados
econômico-sociais visados.
Perante tais problemas, as estruturas atuais não
possuem a capacidade de uma flexível e tempestiva
adaptação. Por seu lado, a ação administrativa, se
continuar centrada sobre atos e competências exatas,
irá complicar-se para além do que é desejável no
ponto de vista comportamental e terá efeitos
paralisantes sobre a vida do país. Destarte, aquilo que
deveria ser um tipo de organização realista e de
eficiência administrativa terminará por ser um
mecanismo de funcionamento baseado em regras
ultrapassadas no tempo e apoiado em critérios de
autodefesa e de auto-perpetuação desligados do
contexto vivo da ação e das diretrizes do Governo.
VIII. A ADMINISTRAÇÃO PARA ÓRGÃOS E
EMPRESAS. — A crise da organização
administrativa tradicional não se seguia, até agora, a
criação de um modelo ou de um tipo alternativo de
administração. A tendência atual, já iniciada tempos
atrás, está voltada, de preferência, para a ruptura da
unidade do sistema administrativo e para a
introdução, em seu lugar, de uma pluralidade de tipos
de administração, presentes no interior de uma mesma
organização.
A primeira tendência alternativa a assinalar,
enriquecida por vasta gama de manifestações
concretas, estaria em evitar a organização ministerial.
Respeitando a unidade do poder políticogovernamental, dentro da área da administração,
verifica-se, desde o início do século, o recurso, cada
vez mais generalizado, a órgãos e a empresas
autônomas, ao mesmo tempo que, o Governo, pouco a
pouco, mediante intervenção, anexa novos campos de
ação e coloca novas exigências de promoção
operacional nos diversos setores econômico-sociais. A
organização interna de tais estruturas não se diferencia
substancialmente da ministerial, da qual reproduz as
principais disfunções sem assegurar as vantagens
desejadas, seja em ordem a uma maior
correspondência política, seja em ordem a uma maior
eficiência administrativa.
O recurso a estruturas alternativas se amplia, pois
(tornando-se com isto particularmente significativo).
No emprego de formas organizativas próprias do
mundo econômico e empresarial privado (em
particular, as sociedades acionárias de
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
participação ou de direito público), primeiro para os
grandes setores de economia de base e, depois, como
aconteceu em tempos recentíssimos, para as atividades
tecnologicamente sofisticadas ou complexas do ponto
de vista organizativo (informática, técnicas e
participação de programação organizativa, territorial e
econômica, etc.). Tudo isto vem determinar, num
quadro dominado por uma organização ministerial em
ação, na forma acima descrita, juntamente com uma
maior amplicidade e oportunidade da participação,
ulteriores e não menos graves problemas sobre a
organicidade da ação pública em seu complexo, assim
como no que diz respeito às possibilidades de real
direção e controle da mesma, seja por parte do
Governo, seja por parte do Parlamento, seja ainda por
parte da coletividade em geral.
IX. A ADMINISTRAÇÃO POLÍTICA E A
PROGRAMAÇÃO.
—
O
processo
de
desenvolvimento da tendência acima referida foi
paulatinamente revelando a necessidade de enfrentar o
problema administrativo dentro de uma perspectiva de
caráter global mais ampla. Uma perspectiva que
levasse em conta não apenas o modo de ser das
estruturas burocráticas, mas buscasse também as
soluções através da revisão do papel e da
configuração de um lado, num confronto direto com
as instituições políticas e governamentais, e; do outro,
numa avaliação das instituições e das estruturas
sociais como tais. Dada a variedade das atividades
administrativas, que compreendem momentos
funcionais diversos desde aqueles que são
propriamente governamentais ou de órgãos auxiliares
do Governo até os que são de prestação de serviços
utilitários ou específicos, ambos configuráveis dentro
de uma relação de complementaridade específica,
existe a perspectiva de que os novos tempos exigirão
que seja dada uma expressão adequada aos diversos
momentos funcionais, incluindo o plano organizativo
que deve olhar as características e os requisitos
peculiares de cada servidor num ordenamento
democrático.
Isto comporta uma mudança radical no modo de
conceber e de colocar a ação administrativa. A
verdade é que valorizando-se os diversos aspectos ou
momentos funcionais, a ação administrativa deverá
ser colocada numa relação imediata com os objetivos
a atingir e com as instituições políticas e sociais, num
quadro constante de interdependência entre escolhas e
resultados.
É por este motivo que se assiste hoje a um
processo de fragmentação que atinge a Administração
pública. De uma parte, procura-se reconstruir as
estruturas de Governo (tanto do centro
15
como da periferia) no âmbito direto de
responsabilidade das instituições políticas; de outra
parte, procura-se vitalizar estruturas de gestão no
âmbito direto de responsabilidade das instituições e
dos grupos sociais. Segundo essa tendência, o
conjunto das atividades administrativas deveria
distribuir-se por todo o arco da organização políticosocial. O problema administrativo parece que poderia
resolver-se superando as estruturas burocráticas, na
prefiguração de dois tipos distintos de administração:
a administração política, inserida nas novas estruturas
de Governo, e a administração social, correspondente
às estruturas de gestão, expressão do autogoverno das
coletividades territoriais e pessoais que agem no seio
da comunidade nacional.
A fim de que tal coisa possa realizar-se, parece que
o primeiro problema funcional a ser reavaliado e
reestruturado é o do Governo. Em dois sentidos:
rompendo com o caráter unitário e centralizador que
tradicionalmente arrasta consigo, e dotá-lo de
adequadas modalidades de desdobramento. No
primeiro ponto de vista é colocada em relevo a
regionalização como processo comum em voga, tanto
na Itália como na Europa. Tal regionalização pode
fazer-se através da distribuição dos poderes do Estado
e também através da coordenação dos poderes locais
(é um modo de se retomar, atualizada, a fórmula dos
Estados federados que tendem a assumir
características afins aos Estados regionais). O
segundo ponto de vista coloca em destaque o método
da programação.
Já que as leis tendem cada vez mais a fixar os
objetivos últimos e a deixar necessariamente amplo
espaço para a ação executiva, compete a esta
substancialmente determinar as próprias modalidades
de participação no espaço e no tempo, fixando, ou
melhor, projetando concretamente o programa a
desenvolver. O ponto alto da ação do Governo está,
portanto, na programação e no planejamento, os
quais, embora não garantam mais, como acontecia na
administração tradicional, a discriminação entre
autoridade e liberdade, na medida em que primazia
aos interesses das pessoas e dos órgãos públicos em
relação aos interesses privados, estabelecem,
entretanto, critérios e instrumentos para o
cumprimento de objetivos comuns de relevância
social, arbitrando e mediando entre uma pluralidade
de interesses coletivos.
Daqui nasce particularmente a exigência
(repetidamente presente na legislação) de dar amplo
relevo ao processamento na fase de formação dos
programas, na mira de favorecer a participação desses
interesses e de obter uma ponderação conveniente por
parte da administração política.
16
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
Os programas representam também o parâmetro de
comparação e de colocação dos vários centros de
Governo, respeitada a autonomia e a execução de
cada um nos vários níveis e dimensões e as diversas
responsabilidades políticas, como é o caso dos
Estados com autonomia regional.
X. A ADMINISTRAÇÃO SOCIAL E A GESTÃO
DA PROGRAMAÇÃO. — Dentro de um sistema de
programas e de planos de atividades, públicas ou
privadas, tomam posição particularmente importante
outros momentos da ação administrativa, de tal modo
que terminam por perder seu caráter de atuação
imperativa de normas (estritamente públicas) para se
tornar atividades de execução de tarefas programadas,
quer se destinem à prestação de serviços a assessorias,
quer se destinem à promoção, ao reequilíbrio ou à
regulação exata de atividades econômicas e sociais.
Isso deveria postular um emprego mais amplo de
instrumentos privados e uma maior simplicidade no
plano de processamento (salvo quando se tornar
necessário garantir as exigências do contraditório) e no
dos controles (podendo estes ser dirigidos não a cada
ato singular, mas à atividade ou à gestão em seu todo).
Tudo isto tem implicações organizativas
importantes: desenha-se, em especial, a necessidade
de vitalizar estruturas gerenciais dotadas de
importância especial em contraste com as estruturas
de programação, dotadas de centros próprios de
direção e de chefia. Além disso, essas estruturas
gerenciais, reorganizando-se paralelamente às do
Governo, segundo critérios de articulação territorial,
podem ser obrigadas a reentrar facilmente na órbita
dos poderes locais (mais precisamente na órbita do
autogoverno local) e poderão adotar o controle
sistemático ou mesmo a própria administração social
das atividades e dos serviços prestados por parte dos
diversos grupos sociais interessados. Neste sentido se
coloca o processo em curso de transformação da
administração escolar, sanitária, assistencial e
previdenciária que vai dos modelos de organização
setorial e vertical até os modelos de organização
territorial e horizontal (distritos escolares, unidades
sanitárias locais, unidades locais de serviços sociais).
Análogas tendências podem destacar-se também nos
campos da participação econômica (a agricultura, por
exemplo).
A formação das duas figuras da administração
política e da administração social não leva somente à
superação da unidade e da uniformidade do sistema
administrativo, com a conseqüente possibilidade de
utilizar esquemas organizativos diferenciados e
múltiplos centros de participação política e social,
especialmente de caráter local. Ela comporta, também,
uma transformação, em termos notáveis, do papel do
corpo' burocrático, o qual, como detentor de
autoridade e como guardião da lei, assume diversas
conotações variáveis segundo as estruturas em que se
insere. Na administração política se realiza um
equilíbrio diferente entre direção política e pessoal
profissional, na medida em que a ação programática
postula um intercâmbio entre a assessoria dos técnicos
para a formulação das deliberações políticas e a
direção e a participação dos políticos na orientação da
ação dos técnicos. Este intercâmbio leva-nos a afirmar
que o pessoal profissional se torna mais do que tudo
um participante das decisões político-administrativas.
Tratando-se, porém, das estruturas gerenciais, o
pessoal profissional atua como responsável pelas
atividades programadas e também da gerência destas
numa relação direta entre estrutura administrativa e
uso social, com base num constante controle e
estímulo da parte de grupos e classes sociais para a
consecução eficaz e objetiva dos resultados
prefixados. Em ambos os casos, o burocrata aparece
como um especialista em condições de utilizar as
contribuições de outras áreas e das técnicas de
organização ou de contribuir para a formação das
decisões programáticas próprias das estruturas
políticas do Governo e de prover a condução integrada
das atividades de gestão, segundo as atuais tendências
de desenvolvimento da Administração pública.
BIBLIOGRAFIA. - F. BENVENUTI, Pubblica
amministrazione e diritto amministrativo, in '"Jus",
1957; Id., La scienza dell'amministrazione come
sistema, in Problemi della pubblica Amministrazioae,
1, Bologna 19S8; B. CHAPMAN, The Profession of
Government, The Public Service in Europe. ALLEN &
UNWIN, LONDON 1959; Theory and Practice of Public
Administration: Scope, Objectives and Methods. a
cuidado de J. C. CHARLESWORTH, American Academy
of Political and Social Science, Philadelphia 1968; P.
GASPARRi,
La
scienza
dell’amministrazione.
Considerazioni introduttive. CEDAM, Padova 1959; M.
S. GIANNINI, Diritto amministrativo, Giuffrè, Milano
1970, vol. I; F. HEADY, Pubblica amministrazione:
prospettive di analisi comparata (1966), Il Mulino,
Bologna 1968; Id., L'administration publique. Recueil
de Textes, a cuidado dos Instituis Belge et Français des
Sciences Administratives, Paris 1971; Evolution de la
Fonction publique et Exigences de Formation, a
cuidado do Institut Admimstration-Université de
Bruxelles, 1968; Traité de Science administrative, a
cuidado de G. LANGROD, Paris 1966; Verwaltung. Eine
einführende Darstellung, a cuidado de F. MORSTEIN
MARX. Duncker and Humblot, Berlin 1965; "Revue
AGRESSÃO
internationale des sciences administratives", 1-2, 1971
(número dedicado à administração italiana); P. SELF,
Administrative Theories and Politics. An Inquiry into
the Structure and Process of Modem Government,
Allen & Unwin, London 1971; V. A. THOMPSON,
Bureaucracy and innovation, University of Alabama
Press, Tuscaloosa 1969.
[GIORGIO PASTORI]
Agressão.
O termo Agressão, criado para indicar atos de
violência armada de um Estado contra o outro, é, hoje,
usado em sentido mais amplo, com referência não
somente a um ataque militar mas também a qualquer
intervenção "imprópria" de um Estado com prejuízo
de outro. O termo está, contudo, associado a uma
conotação negativa, tanto que é usado para indicar
atividade de um Estado inimigo, nunca do próprio
Estado. Ao tipo de Agressão clássica, isto é, a
penetração das fronteiras de um Estado por parte das
forças armadas de um outro Estado, se acrescentaram
outras formas de Agressão, indicadas, às vezes, com o
termo de Agressão indireta, tal como o apoio aos
rebeldes de uma guerra civil num Estado estrangeiro,
a subversão, a propaganda (exemplo: o incitamento à
revolta via rádio), a espionagem, a inspeção aérea e
por meio de satélites, a penetração econômica.
17
temporária das relações entre dois Estados: uma fase
de um processo um pouco mais amplo de relações
conflituais que não merece, de per si, particular
atenção. Somente J. Galtung abordou explicitamente o
problema apresentando uma explicação com base na
teoria estruturalista e nos processos conflituais
decorrentes de desequilíbrios entre os Estados em
diversas dimensões.
BIBLIOGRAFIA - J. GALTUNG, A Structural
Theory of Aggression, in "Journal of Peace Research",
2, 1964; HERZ, International Politics in the Atomic
Age. Columbia University Press, New York 1965;
QUINCY WRIGHT, The Nature of Conflict, in "The
Western Political Quarterly", 2, 1951.
[FULVIO ATTINÀ]
Aliança.
I. DEFINIÇÃO E TIPOS DE ALIANÇA. — As Alianças
constituem a forma mais íntima de cooperação
entre Estados. Elas vinculam a ação dos Estados
nas circunstâncias e nos modos previstos pelo
acordo ou tratado que as institui. A palavra
Aliança é utilizada, igualmente, para indicar as
relações entre Estados, caracterizadas por uma
colaboração prolongada no tempo, ainda quando
não formalizada por acordo escrito. Neste caso,
entretanto, seria mais correto falar-se de alinha
mento (alignment). Uma Aliança se caracteriza,
pelo contrário, pelo compromisso, em questões
políticas ou militares, que diferentes Estados assumem
para a proteção e a obtenção de seus interesses; o
compromisso formaliza-se pela assinatura
de um acordo ou tratado e pode-se até instituir
uma organização temporária para a realização dos
compromissos assumidos.
As Alianças podem ser bi ou multilaterais, secretas
ou abertas, temporárias ou permanentes, gerais ou
limitadas; podem servir interesses idênticos ou
complementares ou fundar-se em interesses
puramente ideológicos.
No direito internacional se encontram muitíssimas
tentativas de definir a Agressão internacional a fim de
distingui-la dos atos legítimos de autodefesa. Alguns
estudiosos tentaram compor listas de atos de
Agressão, mas tais listas se revelaram incompletas;
outros, como Quiney Wright, acham mais útil o
estudo de algumas crises contemporâneas que
configuram os caracteres da Agressão, a fim de
formular generalizações com base em características
comuns. Muitos estudiosos chegaram, porém, à
conclusão de que uma definição da Agressão é técnica
e politicamente impossível: Herz afirma que é
possível reconhecer a Agressão somente quando o
Estado que sofreu a Agressão se declara vítima da
II. ORIGEM DAS ALIANÇAS. — A comunhão de
mesma.
interesses é considerada por muitos como condição
para a existência de uma Aliança. Estes podem ser
Na realidade, se se exclui o problema da definição
idênticos ou suscetíveis de tornar-se
jurídica da Agressão internacional — à qual está
idênticos durante a Aliança. Os interesses, inicial
conexa a averiguação da violação dos direitos de um
mente não idênticos, devem permitir uma
Estado —, a análise da Agressão não tem assumido convergência de ação; tal convergência possui maior
uma relevância autônoma no estudo das relações probabilidade de materializar-se quando a base
políticas entre os Estados. Na análise política da Aliança for constituída por um grupo de
internacional, de fato, a Agressão é considerada
somente como uma modalidade
18
ALIANÇA
interesses e não apenas por um, interesses que podem
ser idênticos, diferentes ou, inicialmente, até
contrastantes.
A comunhão de interesses, entretanto, não explica
por si só por que os Estados, em certo momento,
escolhem uma forma particular de cooperação que
constitui uma Aliança e não outro tipo de colaboração
ou associação. Segundo Morgenthau, um tratado de
Aliança é assinado quando os interesses comuns de
vários Estados não poderiam ser atingidos senão pela
estipulação do mesmo.
São dignas de menção mais pormenorizada as
hipóteses de G. Liska e D. Edwards. Para o primeiro,
mais do que criadas para algo, as Alianças nascem
contra alguma coisa. Pelo exame de casos históricos e
contemporâneos ele conclui que as Alianças são a
conseqüência de conflitos com adversários comuns, as
quais podem, inclusive, fazer desaparecer, por algum
tempo, os conflitos existentes entre os aliados. O
sistema dos Estados se subdivide em tantas Alianças
quanto os diversos tipos de conflitos existentes a
níveis global, regional e interno. O conflito entre o
Leste e o Ocidente, no sistema global atual, e o
conflito entre Bourbons e Habsburgos, no sistema
global europeu de antanho, polarizaram, por exemplo,
em ambos os casos, o sistema internacional em torno
de duas grandes Alianças. Quando um conflito global
divide duas potências ou dois grupos de potências, as
Alianças ratificam uma polarização já existente;
quando dois grandes conflitos, ao contrário, dividem
três ou mais potências, as Alianças exercem papel
mais importante. Até mesmo os conflitos menores
exercem, freqüentemente, influência de grande
importância na definição do quadro de Alianças.
Entretanto, nos sistemas regionais, a distribuição
natural das Alianças pode ser influenciada pela
distribuição resultante do conflito global. A adesão de
um Estado a uma Aliança, contudo, depende, em
grande parte, dos conflitos internos; o equilíbrio
interno das forças, segundo Liska, significa mais do
que as ameaças e as pressões externas.
A hipótese de D. Edwards sobre a origem das
Alianças aplica-se às grandes Alianças que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial. O estudioso
norte-americano parte do exame do Pacto de
Varsóvia. Tal Pacto foi originado por três fatores
concorrentes: a modificação do status quo militar
(remilitarização da Alemanha ocidental), o desejo 03
potência dominante de assegurar posições de força cm
relação ao adversário comum diante de um declínio
dos aliados tradicionais (fraqueza dos Estados
europeus vizinhos da URSS) e a vontade
dessa potência dominante de reforçar sua própria
influencia sobre seus aliados (diminuição do controle
soviético sobre as repúblicas populares européias após
a morte de Stalin). Edwards detecta estes fatores até
na origem da OTAN, da SEATO, da Aliança (hoje
ultrapassada) entre a China e a União Soviética, e nas
"relações especiais" entre os Estados Unidos da
América e a Grã-Bretanha. A partir da observação da
presença de determinados fatores na origem de
diferentes Alianças e da constatação do papel
representado por uma única potência "dominante",
Edwards conclui que as teorias convencionais
supervalorizam a função dos interesses na origem das
Alianças e nota que elas exercem notável influência
sobre a liberdade e a política dos Estados-membros.
Na realidade, a quase totalidade dos estudiosos, muito
mais do que observar quais são os fatores
determinantes que se encontram na origem de
quaisquer Alianças, examinaram, antes, os motivos
que mais comumente levam os Estados a participarem
de uma Aliança, isto é, as vantagens que um Estado
pretende garantir. Estes estudiosos fundam suas
posições no pressuposto de que o aparecimento das
Alianças não pode ser explicado (e, portanto, previsto)
na base de algumas regras ou princípios, mas que esse
surgimento
depende
exclusivamente
da
discricionariedade dos Estados: um Estado decide
entrar
em
uma
Aliança
após
avaliar
discricionariamente a situação presente e ter-se
assegurado de que participar da Aliança permitir-lhe-á
atingir determinados objetivos que, de outro modo,
não poderia conseguir.
III. OBJETIVOS DOS ESTADOS-MEMBROS. — Os
objetivos ou interesses que um Estado-membro
entende perseguir em uma Aliança são, na prática,
três, correlatos e interdependentes de várias maneiras:
a segurança, a estabilidade e a influência. Uma
Aliança oferece, dentro destes objetivos, vantagens
políticas e militares. Um Estado se sente mais forte
com o apoio diplomático de seus aliados; com isso
pode provocar ou impedir uma revisão "pacífica" da
situação existente. Uma Aliança é, também, fator de
poder militar; o Estado sente poder contar com outras
forças além das suas, como instrumento de dissuasão
e de defesa.
O aumento da força própria por meio de uma
Aliança é objetivado, seja por Estados poderosos, seja
pelos Estados mais fracos. O Estado fraco vê
acrescido seu poder, aliando-se a um Estado mais
forte; este, por sua vez, aproveita a ocasião para
estender sua esfera de influência e aumentar seus
recursos potenciais. Isto é válido, contudo, quando
existe ameaça de um terceiro Estado, pois, de outra
maneira, o mais fraco pode temer a perda
ALIANÇA
de sua própria identidade ao entrar para uma Aliança,
enquanto
o
mais
forte
receia
aumentai
demasiadamente seus compromissos.
IV. EXTENSÃO DAS ALIANÇAS. A TEORIA DE
W. RIKER. — O reforço das posições políticas e
militares de um Estado depende, segundo muitos,
da amplitude da Aliança: quanto maior for o
número dos Estados-membros, maior'o incremento de
poder de cada Estado. A política de Aliança
seguida pelos Estados Unidos sob Eisenhower
constitui exemplo concreto dessa concepção. W.
Riker, partindo do modelo do jogo em ponto zero
(que retém como o único válido para que se
entenda a política), afirma, ao contrário, que as
Alianças deveriam tender a ser as mais reduzidas
possíveis. Sua teoria das coligações se funda em
três princípios, deduzidos do modelo do citado
jogo: o princípio da medida, segundo o qual os
Estados, quando estão de posse de uma informação
perfeita, tendem a formar a menor coligação
vencedora para dividir entre o menor número possível
de aliados o espólio da vitória; o princípio estratégico,
segundo o qual, nos sistemas em que o princípio da
medida é operante, os participantes na última fase das
negociações, em que se manifeste mais de uma
coligação mínima vencedora, deverão escolher uma
única coligação; e o princípio de desequilíbrio, pelo
qual os sistemas em que operam os dois princípios
anteriores são inevitavelmente instáveis por causa da
tendência dos atores maiores em recompensar, de
modo crescente, os atores menores, mas essenciais à
coligação mínima vencedora. Tal tendência, aos
poucos, conduz ao declínio os atores principais.
V. FATORES DE COESÃO. TÉRMINO DAS ALIANÇAS.
— Uma vez constituída, o sucesso de uma
Aliança depende da coesão e integração que seus
membros desenvolvem entre si. Os fatores de
coesão de uma Aliança são vários e, muito embora se
acredite que uma generalização a respeito
seja inútil, pelo fato de tais fatores não se
encontrarem, necessariamente, presentes em todas as
Alianças e de se combinarem, onde existem, de
maneiras diferentes, pode-se formular, correta
mente, algumas proposições gerais.
O fator ideológico é de grande importância nas
Alianças; onde não estiver presente, ele será colocado
pelos líderes da coligação sempre que for útil, em
tempo de paz e em tempo de guerra. Com relação aos
países não-membros, a ideologia tem a função de
desmoralizar o adversário e insere-se no âmbito da
guerra psicológica; com relação a seus membros,
reforça as relações entre os aliados, criando a
convicção da utilidade da união
19
de seus próprios recursos e da superação de eventuais
divergências.
O sucesso de uma Aliança depende, ainda, do tipo
de consultas realizadas entre os membros. Em
Alianças que se caracterizam pela igualdade e
solidariedade entre seus componentes, as consultas se
revelam eficazes; caso contrário, o dever de se
recorrer a consultas gerais, a todo o instante, reduz a
eficácia militar da Aliança e a influência que os
membros mais importantes possam exercer sobre os
Estados não-membros.
As possibilidades materiais (capabilities) dos
diferentes Estados-membros influenciam, de várias
maneiras, a vida de uma Aliança. Dá-se atenção
especial à capacidade dos Estados-líderes, a qual
deverá tender a aumentar sempre para assegurar o
sucesso da coligação. O crescimento preponderante do
poderio de um Estado, entretanto, não favorece a
coesão da Aliança porque, normalmente, não
corresponde aos interesses dos outros aliados; o
mesmo se pode dizer no que respeita ao declínio de
poder de um aliado. A coesão, por outro lado, é
incrementada quando ocorre um equilibrado
crescimento do poder dos diferentes aliados,
permitindo a realização dos objetivos da Aliança.
É por si mesmo evidente o fato de que a vida de
uma Aliança é condicionada pela política interna de
cada membro. A instabilidade interna, com freqüentes
trocas de Governo, constitui fator de desintegração,
tendo em vista que a oposição se inclina a modificar a
política de Aliança do Governo anterior. O
relacionamento entre Governo e oposição influencia,
determinantemente, a coesão da Aliança de que
participam Estados politicamente ainda não
amadurecidos; estes, de fato, têm-se demonstrado
menos predispostos a aceitar as limitações que surgem
dentro de uma Aliança. Uma Aliança, na verdade,
quase sempre, é fonte de limitações para os Estados
participantes, os quais as aceitam, apenas, como preço
inevitável de resistência ao adversário; tal preço é
sentido ainda mais quando o adversário busca, através
de táticas particulares (oferta secreta de vantagens a
alguns membros, por exemplo) corroer a coesão entre
os aliados. Não apenas uma Aliança, mas até a
estabilidade do sistema internacional, pode ser
comprometida quando um Estado considera excessivo
o peso das limitações que uma Aliança impõe a seus
interesses.
Finalmente, uma Aliança deveria cessar no
momento em que seus objetivos fossem alcançados,
mas são numerosos os motivos que provocam
rompimentos antes do tempo previsto. Normalmente,
a causa desses rompimentos encontra-se na
insatisfação de um ou vários aliados, provocada pela
compreensão de uma disparidade entre os
20
ALIENAÇÃO
compromissos assumidos e as limitações sofridas, de
um lado, e os próprios fins e ambições, do outro.
VI. ALIANÇA E PROLIFERAÇÃO NUCLEAR. — Um
tema muito discutido em obras mais recentes é o do
relacionamento entre a proliferação nuclear e a
sobrevivência das Alianças. É assunto sobremaneira
complexo para elucidação do qual não são suficientes
as experiências feitas até agora por algumas potências
médias, no campo do desenvolvimento de arsenais
nucleares, assunto sobre o qual é possível emitir,
apenas, algumas hipóteses. Prevê-se, por exemplo,
que a difusão das armas nucleares provocará, não
exatamente uma desaceleração das Alianças, mas uma
sua revisão. Antes de renunciar aos compromissos
frente a um aliado que conseguiu obter um potencial
militar nuclear (renúncia que implicaria na perda de
um aliado), a potência-líder da Aliança, já possuidora
de armas nucleares, há de preferir ir ao encontro dos
interesses do aliado, adaptando aos mesmos o próprio
compromisso. Fazer-se ouvir, aumentar o próprio
prestígio e o potencial político-militar seria,
provavelmente, o que objetivaria uma potência média
que obteve a posse do armamento nuclear.
A proliferação nuclear, portanto, não deveria
marcar, como alguns sustentam, o fim da era das
Alianças, como não o foram o surgimento das duas
organizações internacionais: o da Sociedade das
Nações e o das Nações Unidas, as quais deveriam
oferecer garantias aos Estados, por meio de um
sistema de segurança coletiva, que tornaria inútil as
Alianças. A falência de tal sistema, devido à lógica
bipolar imposta pelas duas superpotências, levou os
Estados a verem nas Alianças um instrumento ainda
válido de segurança.
BIBLIOGRAFIA. - D. EDWARDS, International
political analysis, Holt, New York 1969; O. HOLSTI,
P. HOPMANN e J. SULLIVAN, Unity and disintegration
in international alliances: comparative studies, Wiley,
New York 1973; G. LISKA, Nations in alliance,
Hopkins Press, Baltimore 1968; W. RIKER, The theory
of political coalitions, Yale University Press, New
Haven 1967.
[FULVIO ATTINÀ]
Alienação.
I. DEFINIÇÃO. — "Ao nível de máxima
generalização, a Alienação pode ser definida como o
processo pelo qual alguém ou alguma coisa
(segundo Marx, a própria natureza pode ficar
envolvida no processo de Alienação humana) é
obrigado a se tornar outra coisa diferente daquilo que
existe propriamente no seu ser" (P. Chiodi). O uso
corrente do termo designa, freqüentemente em forma
genérica, uma situação psicossociológica de perda da
própria identidade individual ou coletiva, relacionada
com uma situação negativa de dependência e de falta
de autonomia. A Alienação, portanto, faz referência a
uma dimensão subjetiva e juntamente a uma dimensão
objetiva histórico-social. Neste sentido se fala: de
Alienação mental como estado psicológico conexo
com a doença mental; de Alienação dos colonizados
enquanto sofrem e interiorizam a cultura e os valores
dos colonizadores; de Alienação dos trabalhadores
enquanto são integrados, através de tarefas puramente
executivas e despersonalizadas, na estrutura técnicohierárquica da empresa individual, sem ter nenhum
poder nas decisões fundamentais; de Alienação das
massas enquanto objeto de heterodireção e de
manipulação através do uso dos mass media, da
publicidade, da organização mercificada do tempo
livre; de Alienação da técnica como instrumentação
dos aparelhos para que funcionem segundo uma lógica
de eficácia e de produtividade independente do
problema dos fins e do significado humano de seu
uso. A definição do termo em relação aos diferentes
estados de despersonalização e de perda de autonomia
por parte dos sujeitos envolvidos nos processos em
questão corresponde a uma banalização do conceito,
mas também à complexidade de semântica que ele
tem na cultura filosófico-política moderna dentro da
qual ele foi elaborado.
II. DE ROUSSEAU A MARX. — A doutrina
contratualista transfere o conceito de Alienação do
âmbito originariamente jurídico (alienatio como
cessão de uma propriedade) para o âmbito filosóficopolítico a fim de explicar o fundamento do Estado e da
sociedade política. Hobbes fala de "cessão" (to give
up) do direito de o soberano se governar a si mesmo,
através do pacto que marca a saída do Estado de
natureza. Rousseau introduz o termo de Alienação
para indicar a cláusula fundamental do contrato social
que consiste na "Alienação total de cada associado
com todos os seus direitos a toda comunidade", de
modo que "cada um, unindo-se a todos, não obedeça,
todavia, senão a si mesmo e fique tão livre quanto o
era antes" (Contrato Social, I, 6). A Alienação se
apresenta, portanto, como o ato de cessão positiva que
institui a vontade geral.
Hegel rejeita a teoria contratualista de formação do
Estado e da Alienação como relação recíproca de
cessão e troca. O argumento mais substancial
ALIENAÇÃO
é o fato de que para ele o sujeito da história não são os
indivíduos mas é o espírito absoluto ou
autoconsciência; a multiplicidade e a alteridade (alter)
aparecem como momentos derivados e negativos em
relação à unidade do espírito (e de seus titulares: o
espírito do povo, o Estado). Praticamente Hegel aplica
no campo histórico-social o núcleo conceituai próprio
da teologia neoplatônica, isto é, o Uno que se divide e
se multiplica num processo necessário de Alienaçãoestranhamento
(respectivamente:
Entäusserung/Veräusserung e Entfremdung). A
fenomenologia do espírito é inteiramente construída
sobre a demonstração do necessário processo da
Alienação-estranhamento do espírito, através do
encadear-se das figuras históricas, e da necessária
superação do ser-outro e do estranhamento na
totalidade do devir e na unidade do absoluto. O termo
final é o saber absoluto como consciência de que o
objeto é produzido pela autoconsciência e nela se
resolve. Por isto, diz Hegel, a Alienação da
autoconsciência "tem sentido não somente negativo
mas também positivo" enquanto necessário processo
de auto-afirmação pela cisão e pela produção das
formas da alteridade histórico-objetiva. Na perspectiva
desta elaboração lógico-ontológica, Hegel desenvolve,
também, uma análise de grande eficácia do mundo
moderno vendo-o como "espírito que se estranhou". O
termo de referência é a idealização (presente também
em Rousseau) da unidade de indivíduo e comunidade
na .
O mundo moderno é o rompimento desta unidade,
por causa especialmente da riqueza que destrói a
universalidade do Estado e faz com que a realidade
social, ao invés de ser realização, apareça à
consciência como "inversão" e "perda da essência".
São estas evoluções analíticas que Marx tem em
consideração nos Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844 para afirmar que .na Fenomenologia de Hegel
estão contidos, embora numa forma idealística e
mistificada, "todos os elementos de crítica". "O
importante na Fenomenologia hegeliana e no seu
resultado final — a dialética da negatividade como
princípio motor e gerador — é, portanto, que Hegel
entende o autoproduzir-se do homem como um
processo, o objetivar-se como um opor-se, como
Alienação e supressão dessa Alienação; ele capta,
então, a essência do trabalho..." (Terceiro manuscrito,
XXIII). Na história do trabalho, como objetividade
alienada do ser do homem (enquanto estranhamento
das forças essenciais da humanidade, estranhamento
que se realizou sob o signo da propriedade privada), o
jovem Marx encontra a chave interpretativa para
reformular os resultados da economia política clássica
em sentido antropológico. Hegel entendeu que a
história é a
21
auto-produção alienada que o homem faz de si no
trabalho, mas entende o trabalho como atividade
espiritual de um sujeito absoluto. A crítica
antiespeculativa de Feuerbach denunciou a negação
idealista do sujeito e do predicado e repropôs
vigorosamente o sujeito como ser natural, sensível e,
portanto, a objetividade e a alteridade como dimensões
positivas em linha de direito, rejeitando a confusão
hegeliana entre objetivação e Alienação. Ele, porém,
não entendeu a produtividade histórica de Alienação
enquanto premissa necessária do seu superamento
histórico no comunismo. O superamento da Alienação
gira em torno do eixo que é a abolição da propriedade
privada e do trabalho estranhado. A Alienação do
trabalho nos Manuscritos é analisada como: a)
estranhamento do operário do produto do trabalho; b)
estranhamento da atividade produtiva, que de primeira
necessidade se tornou atividade coata; c)
estranhamento da essência humana enquanto a
objetivação do gênero humano está degradada em
atividade instrumental em vista da mera existência
particular; d) estranhamento dos homens entre si em
relações de antagonismo e concorrência.
A partir da Ideologia alemã (1845-46), Marx,
enquanto aprofunda a análise do estranhamento
através de uma história da propriedade privada como
divisão do trabalho, começa a caracterizar o
comunismo filosófico e o seu conceito-chave: a
Alienação da essência humana. De fato, Marx e Engels
estão elaborando os conceitos fundamentais do
materialismo histórico e aquela crítica da essência da
economia política que se tornará teoria do mundo de
produção capitalista, como estrutura baseada na
produção da mais-valia. Daí a tese de alguns
intérpretes que expõem a teoria da Alienação do jovem
Marx como "pré-marxista" (L. Althusser). A questão é
muito controvertida, porque: a) se é verdade que no
Capital não se encontra mais uma referência
consistente à Alienação é também verdade que partes
inteiras, como a IV secção do primeiro livro,
percorrem a história da indústria como crescente
estranhamento dos trabalhadores em relação à
concentração dos instrumentos de trabalho, saber e
força combinada do trabalho num aparelho objetivo, a
eles estranho e contraposto enquanto capital. Existe,
em particular, continuidade entre o conceito juvenil de
trabalho estranhado e o maduro de trabalho abstrato;
b) é inegável a estreita correlação entre a análise do
trabalho alienado e a análise do fetichismo e da
reificação (cap. I do livro I e cap. 48 do livro III), isto
é, do "caráter mistificatório que transforma as relações
sociais, para as quais os elementos materiais servem de
depositários na produção, em propriedade destas
mesmas coisas (mercadoria) e, ainda, em forma
22
ALIENAÇÃO
mais acentuada, a própria relação de produção em
uma coisa (dinheiro)"; c) são especialmente o termo e
o conceito de Alienação que ocorrem muito
freqüentemente e em trechos decisivos dos cadernos
dos Grundrisse, trabalhos preparatórios para a crítica
da economia política elaborados por Marx nos anos de
1857-58; d) mas é também verdade que, nas
passagens de mais estreita correlação com a teoria
juvenil, o Marx maduro só raramente retorna à
elaboração conceituai de um sujeito (o trabalho ou o
homem) que se aliena ou reifica, enquanto
habitualmente fala de uma estrutura (o modo
capitalista de produção) no interior da qual as
relações sociais assumem necessariamente a
aparência fetichista de coisas. Não deve ser, portanto,
minimizada a deslocação epistemológica efetuada; de
modo especial é de assinalar o fato de que a
desalienação ou a reapropriação aparecem como
efeitos de mudanças estruturais no processo de
transição para um modo diferente (comunista) de
produção.
III. O CONCEITO DE ALIENAÇÃO NA
FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA. — O
marxismo da Segunda Internacional, embora
conhecendo em parte os escritos inéditos de Marx (o
Nachlass foi publicado em pequena parte por F.
Mehring), não atribui nenhuma importância ao
conceito de Alienação, como também, não obstante a
escrupulosa publicação dos Manuscritos em 1932 e
dos Grundrisse em 1939-41, a Alienação
substancialmente é um conceito estranho ao
marxismo-leninismo da Terceira Internacional, porque
ambos estão interessados nas tendências objetivas, na
crise geral do capitalismo e na transferência das forças
produtivas amadurecidas dentro da sociedade burguesa
do socialismo entendido como estatização dos meios
de produção. A retomada da problemática conceituai
referente ao nexo entre Alienação-fetichismoreificação acontece especialmente à margem das
correntes
principais
da
tradição
marxista,
freqüentemente por obra dos críticos desta tradição.
De modo particular o conceito de Alienação foi o
centro da filosofia política que pretendeu reformular
as categorias fundamentais hegeliano-marxistas
referentes à crítica do neocapitalismo, de um lado, e
do socialismo burocrático, do outro. A difusão da
problemática da Alienação se situa entre os anos de
1950-60 quando foram descobertos os primeiros
escritos de Lukács e de Korsch, e na altura em que os
estudos de Marcuse e de Sartre já tinham muitos
seguidores. Lukács (História e consciência de classe,
1923) vê o fenômeno da Alienação-reificação se
estender da fábrica taylorista a todos os setores da
sociedade — ao direito, à administração, à
indústria cultural, etc. — constituindo setores
autônomos,
fragmentários,
dirigidos
pela
racionalização baseada no cálculo e por uma
eficiência que tinha a si mesma como fim. A
Alienação, agora, não diz respeito somente ao.
trabalho nas condições capitalistas, mas também ao
mundo da ciência e da técnica formado no interior das
relações burguesas de produção. Encontramos em
Marcuse análoga extensão do conceito de Alienação
para o mundo do trabalho e, especialmente para a
civilização como um todo enquanto produto do
princípio de prestação e da racionalidade instrumental.
Para esse autor, "racionalmente o sistema de trabalho
deveria ser organizado mais com o objetivo de
economizar tempo e espaço para o desenvolvimento
individual
além
do
mundo
do
trabalho,
inevitavelmente repressivo" (Eros e civilização, 1955,
IX). O conceito de Alienação desempenha também
uma função essencial no existencialismo marxista de
Sartre (Crítica da razão dialética, 1960) que insiste na
necessária recaída — no quadro da penúria — da
praxe individual e de grupo no mundo dos anônimos
aparelhos reificados, o mundo da serialidade e do
prático-inerte, no qual os fins se mudam
necessariamente em anônima contrafinalidade e os
homens se tornam objeto de processos que não
controlam.
Foi frisado (G. Bedeschi) o fato de que estes
autores privilegiam a conexão entre Hegel e Marx e
acabam por confundir Alienação e objetivação,
recaindo naquela posição idealista que o jovem Marx
critica em Hegel. É oportuno, porém, ter em
consideração o âmbito referencial específico, a
respeito do qual eles usam os conceitos de Alienação
e de reificação: a problematicidade das condições de
emergência da consciência revolucionária no
capitalismo desenvolvido (Lukács); o capitalismo
maduro como "sistema" que tudo compreende e
administra (Marcuse); a gênese, dentro do próprio
processo revolucionário, de aparelhos burocráticos e
repressivos (Sartre). Mais do que em Hegel, ficaria,
desse modo, distinta a estrutura lógico-ontológica do
conceito de Alienação e o seu uso parcialmente
heurístico na revelação de aspectos histórico-sociais
que constituem um problema para a filosofia política
de origem mais ou menos marxista.
BIBLIOGRAFIA. - L. ASTÚCIA, Per Marx (1965),
Editori Riuniti, Roma 1967;G. BEDESCHI. A. e
feticismo nel pensiero di Marx. Laterza. Bari 1968;
Id., "A.", Enciclopédia Einaudi. Turim 1977, vol. I,
pp. 309-43; C. CAMPORESI, Il conceito di A. da
Rousseau a Sartre, Sansoni. Firenze 1974; P. CHIODI,
Sartre e il marxismo, Feltrinelli, Milão 1965; I.
mesários, La teoria Della. m Marx (1970),
ANARQUISMO
Editori Riuniti, Roma 1976; C. NAPOLEONI, Lezioni
sul Capitolo sesto inédito di Marx. Boringhieri, Turim
1972.
[CESARE PIANCIOLA]
Anarquismo.
I. DEFINIÇÃO GERAL. — Não é possível dar uma
definição totalmente precisa de Anarquismo. O ideal
designado por este termo, embora tenha sofrido
notável evolução no tempo, sempre se manifestou e
manifesta como coisa realizada e elaborada, como
aspiração ou como objetivo último e referencial, cheio
de significados e de conteúdos, dentro da perspectiva
em que é analisado.
O termo Anarquismo, ao qual freqüentemente é
associado o de "anarquia", tem uma origem precisa do
grego anarcia, sem Governo: através deste vocábulo se
indicou sempre uma sociedade, livre de todo o
domínio político autoritário, na qual o homem se
afirmaria apenas através da própria ação exercida
livremente num contexto sócío-político em que todos
deverão ser livres. Anarquismo significou, portanto, a
libertação de todo o poder superior, fosse ele de ordem
ideológica (religião, doutrinas, políticas, etc.), fosse de
ordem
política
(estrutura
administrativa
hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos
meios de produção), de ordem social (integração numa
classe ou num grupo determinado), ou até de ordem
jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso
geral para a liberdade. Daí provém o rótulo de
libertarismo, atribuído ao movimento, e de libertário,
empregado para designar o que adere ao libertarismo.
Precisados os termos, por Anarquismo se entende o
movimento que atribui, ao homem como indivíduo e à
coletividade, o direito de usufruir toda a liberdade,
sem limitação de normas, de espaço e de tempo, fora
dos limites existenciais do próprio indivíduo:
liberdade de agir sem ser oprimido por qualquer tipo
de autoridade, admitindo unicamente os obstáculos da
natureza, da "opinião", do "senso comum" e da
vontade da comunidade geral — aos quais o indivíduo
se adapta sem constrangimento, por um ato livre de
vontade. Tal definição genérica, avaliada de diversas
maneiras por pensadores e movimentos rotulados de
anárquicos, pode ser sintetizada através das palavras
retomadas em nosso século, por volta dos anos 20,
pelo anárquico Sebastien Faure na Encyclopédie
anarchiste: "A doutrina anárquica resume-se numa
única palavra: liberdade".
23
II. NASCIMENTO E PRIMEIRO DESENVOLVIMENTO DO
ANARQUISMO. — O espírito libertário ou, por outras
palavras, o anseio pela liberdade absoluta, é próprio de
todas as épocas históricas. Pode-se até afirmar que o
Anarquismo se apresentou com semblantes
heterogêneos desde
a antigüidade
clássica,
acompanhando, de vários modos, o desenvolvimento
sócio-cultural. A história dá-nos três formas
diferenciadas da manifestação do fenômeno: a) em
primeiro lugar existe a manifestação de um
Anarquismo a nível puramente intelectual, em autores
de excepcional ou insignificante relevo que se
tornaram críticos da autoridade política do seu tempo
e que discutiram a eventualidade de construir uma
sociedade antiautoritária ou, pelo menos, a-autoritária.
Muitas vezes, mas não sempre, a apresentação de
concepções libertárias coincidiu com propostas
genericamente definidas como utopistas; b) em
segundo lugar, a aspiração anárquica está ligada a
afirmações de tom mais ou menos vagamente
religioso. Entram, neste âmbito, todos os apelos
milenarísticos de uma sociedade perfeita, onde a
meditação entre o humano e o divino não precisaria de
particulares supra-estruturas autoritárias e onde,
mediante a eliminação destas, a sociedade perfeita
poderia verificar-se imediatamente; c) finalmente, as
duas manifestações apontadas, intelectualística uma e
fideística outra, foram colocadas freqüentemente em
confronto em movimentos efetivos de tipo social,
geralmente rebeldes, os quais, em ocasiões históricas
específicas, congregavam numerosas forças sociais,
particularmente do setor agrícola, sob a forma de
protesto coletivo e contestador das autoridades
políticas e das estruturas sociais existentes. Basta
pensar nas freqüentes revoltas medievais dos
camponeses da Grã-Bretanha para chegarem às
posições libertárias, do movimento dos cavadores
(diggers) na revolução do século XVII ou nas revoltas
dos camponeses alemães liderados por Thomas
Munzer rebelados contra os príncipes ou, finalmente,
em numerosas expressões extremas de movimentos
anabatistas.
As concepções libertárias só tiveram um desfecho
irrevogável no mundo político do século XVIII, como
primeira forma de reação e de união simultânea em
relação ao racionalismo iluminista, provocando e
aprofundando a discussão sobre o conceito de
autoridade. Esta — e o exemplo iluminista é
exatamente o de Rousseau — é acolhida no campo
político, mas posteriormente limitada e rejeitada no
plano individual. A contradição ideal presente nessa
relação mantém-se intacta se bem que levada a um
plano de luta política efetiva, no curso da Revolução
Francesa. Nesta, o grupo jacobino, partidário maior
dos princípios da autoridade e da centralização,
24
ANARQUISMO
produziu, em seu seio, forças contestadoras e
libertárias, tais como, por exemplo, os enragés (os
enraivecidos) assim como, no final do ciclo
revolucionário, alguns expoentes de primeiro plano da
conspiração babuvista pela igualdade.
III.
A
EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
DO
ANARQUISMO. — Com a Revolução Francesa e
com o desenvolvimento industrial, nasce e se afirma
um tipo de Anarquismo a que pode ser dado o nome
de "moderno" e que permanece ainda no debate
político de nossa época.
O primeiro índice desta mudança é a consagração
do termo anarquia em sentido positivo, contraposto ao
uso e até então quase que exclusivo, no sentido de
caos e de desordem. Com essa característica, sempre
acompanhada de uma negação absoluta do presente
social, apontando para uma ruptura revolucionária (a
negação pura será talvez o único componente a ser
colocado em evidência), a anarquia recebe formas
novas de elaboração teórica e de aplicação prática que
se vão acentuando, cada vez mais, com o decorrer dos
anos. No campo do debate doutrinai, o momento do
desenvolvimento de um verdadeiro e próprio
"pensamento anárquico" pode ser fixado nos fins do
século XVIII, numa obra famosa e popular e ao
mesmo tempo grandiosa e abstrusa: a Enquiry
concerning political justice de William Godwin.
Nessa obra, os temas, que se tornarão mais tarde
típicos do Anarquismo, a recusa de autoridades
governantes e da lei são inseridos numa dinâmica
dominada pela razão e por um justo equilíbrio entre
necessidade e vontade, terminando na demanda de
uma liberdade total no campo ético-político, realizável
apenas num regime comunitário que desaprova a
propriedade privada. Estes princípios, diversamente
interpretados e ulteriormente elaborados, fornecem o
ponto de partida para o desenvolvimento posterior de
toda a corrente ideal que, no decorrer do tempo, se
identifica com o Anarquismo comunista, ao qual
vários pensadores ou simples propagandistas juntarão,
continuamente, novos elementos. Se em Godwin o
Anarquismo ainda não se apresenta como concepção
completa, no decorrer do século XIX adquire uma
organicidade como expressão e ponto de encontro de
um debate ideal que encontra, na realidade social, uma
correspondência imediata. De quando em quando, o
Anarquismo apresenta-se com cores políticas e sociais
e só raramente mantém integralmente a caracterização
de prevalência ética, que era notória na sua primeira
existência histórica.
Nesta luta evolutiva, participada por pensadores
políticos e "organizadores" dessemelhantes entre si —
como Proudhon e Bakunin, Stirner e
Malatesta, Kropotkin e Tolstoi, e outros — vão-se
configurando algumas divisões fundamentais e
dissensões as quais, apesar de múltiplas tentativas, não
foram nunca sanadas. A cisão de base situa-se entre o
Anarquismo individualista e o Anarquismo comunista.
O primeiro, que tem como autor principal a Max
Stirner, apóia tudo sobre o indivíduo. Este, através do
próprio "egoísmo" e da força que dele deriva, afirmase a si mesmo e à sua própria liberdade mas apenas na
condição existencial totalmente privada de
componente autoritário, em contraposição e também
em equilíbrio com todas as outras forças e egoísmos
dos outros indivíduos, únicos na arrancada da ação
para alcançar o fim último, que é a realização
completa do EU, numa sociedade não organizada e
independente de todo o vínculo superior. O
Anarquismo comunista, que representa historicamente
um passo à frente em relação ao Anarquismo
individualista, vê a realização plena do EU numa
sociedade onde cada um for induzido a sacrificar uma
parte da liberdade pessoal, mais precisamente a
econômica, pela vantagem da liberdade social. Esta
pode ser alcançada através de uma organização
comunitária dos meios de produção e do trabalho e
numa distribuição comum dos produtos, na proporção
das necessidades de cada um, desde que nela sejam
salvaguardados os princípios fundamentais do
Anarquismo, a saber, o exercício das mais amplas
liberdades para o indivíduo e para a sociedade. Como
subcategoria do Anarquismo comunista, ou como
estádio mais atrasado do mesmo, encontramos o
Anarquismo coletivista, teorizado por Bakunin e
aplicado em Espanha, que propõe o comunitarismo do
trabalho e da produção, colocando em comum todos
os meios a ela necessários, mas deixando a cada um
usufruir individualmente os resultados do trabalho
pessoal. No quadro das correntes descritas, interpõemse outras subdivisões que acentuam os aspectos sociais
— de claras ligações com o mundo do trabalho e em
particular com o proletariado — ou que fazem
ressaltar os módulos político-ideais, ou seja, a
temática relativa ao Estado, ao Governo e, mais
genericamente, à autoridade. Todas estas correntes
que são mais para examinar em suas relações
recíprocas e em seu devir histórico do que para aceitar
— dada a sua rigidez esquemática — plasmaram o
substrato dentro do qual se moveu o mundo que até
hoje se voltou para o Anarquismo.
IV. OBJETIVOS, MEIOS E TÁTICAS. — Se
examinarmos os momentos mais importantes e
participantes do Anarquismo, desligando-os de seu
contexto histórico ou de sua colocação frente
ANARQUISMO
aos problemas modernos, poderemos descobrir três
subcategorias que se referem respectivamente a) aos
objetivos — negativos (I) ou construtivos (II); b) aos
meios; c) às táticas.
1. Objetivos negativos. São estes certamente os frutos
criticamente
mais
elaborados
encarados
permanentemente pelo Anarquismo e que podem ser
colocados na negação sustentada pelo Anarquismo
frente: a) à autoridade; b) ao Estado; c) à lei.
a) O Anarquismo rejeita toda a autoridade na medida
em que vê nela a fonte exclusiva dos males humanos.
A autoridade rejeitada pode ser tanto de ordem sobrehumana como de ordem humana. À frente de todas,
está a autoridade divina e, conseqüentemente, o poder
sobrenatural do qual deriva toda a faculdade de
comando, que é negado não tanto como conseqüência
de um raciocínio filosófico mas simplesmente como
um poder. Nessa condição, ele é um condicionador
das escolhas e das ações voluntárias do homem. Como
corolário, nasce daí a repulsa por qualquer religião,
enquanto ideologia, "nobre mentira", capaz de
justificar o arbítrio usado com intuitos repressivos e de
efeitos encontráveis no campo moral para encarnar
estruturas terrenas e coercitivas na vida individual e
coletiva. Historicamente dependente da autoridade
divina, mas plenamente autônomas nas épocas
moderna e contemporânea, a autoridade política foi
identificada com aqueles que têm na mão a gestão do
poder político desde a cúpula do Governo até os níveis
mais baixos da ossatura do Estado, nas várias
manifestações do poder em escala nacional. A
autoridade política, expressão da autoridade ou do
poder econômico segundo as interpretações do
Anarquismo ligadas, de certa maneira, à análise
marxista, é a causa primeira da opressão do homem no
Estado social e como tal deve ser combatida, tanto no
plano ideal como no plano real. Nasce disto a firme
oposição do Anarquismo a todo o poder político
organizado institucional-mente ou voluntariamente.
Como associação política por excelência está o partido
ou os partidos visados pelo Anarquismo sendo que
algumas correntes ainda toleram a organização
sindical num plano horizontal. Neste contexto, dentro
da organização política, o indivíduo, por limites
impostos ou por vontade, cede uma parte da sua
liberdade à coletividade e, como num nível superior é
rejeitada toda a concepção contratual, assim, em nível
mais baixo, não são admitidas as teses de associação,
com a única exceção das mutuárias, onde o indivíduo
não é privado do que lhe pertence, e onde, como numa
espécie de doação, ele concede
25
à comunidade algo que tende a exaltar-lhe a liberdade
de indivíduo.
b) A recusa do Estado por parte do Anarquismo está
intimamente ligada à sua concepção de autoridade. O
Estado, em toda a sua organização de pirâmide
burocrática, é o órgão repressivo por excelência.
Como tal, priva o indivíduo de toda a liberdade,
chamando unicamente para si a capacidade de agir e a
possibilidade de definir a liberdade, impondo uma
série de obrigações e de comportamentos a que o
indivíduo não pode fugir. É isto que o Anarquismo
pretende combater. Enquanto órgão de repressão, o
Estado é visto pelo Anarquismo com capacidade de
intervenção global na vida do indivíduo, na sua vida
econômica, na sua existência social como também na
sua capacidade de desenvolvimento ético e
independente. O Estado não está apenas na raiz de
todo o mal social. É também o criador da ordem
econômica existente e do capitalismo moderno. Este
só consegue sobreviver porque se apóia numa base
político-organizacional que lhe é fornecida por
estruturas estatais. Deste modo, o Anarquismo, na
interpretação de Bakunin e de seus epígonos, por
exemplo, vira completamente de baixo para cima a
análise marxista da relação existente entre estruturas
econômicas e superestruturas políticas.
c) Finalmente, como conseqüência de sua atitude
para com o Estado, o Anarquismo condena a lei, ou
seja, toda a forma de legislação que, na prática, seja
expressão de repressão por parte da máquina de
Estado. A lei é o instrumento de opressão de que se
vale a organização política do presente para coarctar
especificamente as liberdades geralmente reprimidas
pela autoridade. A legislação é rejeitada, por isso, seja
como forma de contenção de uma condição social de
liberdade seja como meio de ilusão levado a cabo
pelos fortes em prejuízo dos fracos. Para o
Anarquismo social, esta ilusão da legislação é
praticada pelos ricos em prejuízo dos pobres e pelos
capitalistas em prejuízo dos proletários. Isto não
impede que o Anarquismo não recuse toda a defesa do
organismo social existente. Na verdade admite formas
livres e espontâneas de jurisdição que surjam das
mesmas exigências de situações concretas e que
devem ser
interpretadas
como
verdadeiras
intervenções terapêuticas por ocasião de males sociais
e que têm por fim a cura desses males e não a sua
perseguição ou condenação.
2. Objetivos positivos e construtivos. Há dois
pressupostos que dinamizam estes objetivos: em
primeiro lugar, o de toda a crítica negativa a respeito
do mundo existente, tal como sugerimos acima; em
segundo lugar, o pressuposto de que,
26
ANARQUISMO
conforme constatação, se o homem deve viver sem
Estado, e pode viver sem Governo, deve também
desenvolver a própria existência em qualquer
sociedade, onde exista a aceitação conceptual desta, e,
conseqüentemente, a possibilidade da fazer reverência
a uma "futura sociedade anárquica". Esta nova
sociedade tem como fundamento próprio e como
condição essencial e única a liberação do indivíduo, a
nível individual e social, de toda a imposição externa.
O único vínculo a que ainda está vinculado o
comportamento individual é a "opinião", ou seja, a
atitude — também livre e autônoma — de todas as
outras mônadas que constituem precisamente a
sociedade. Num quadro deste tipo podem surgir todas
as formas de vida social organizada, as quais, por uma
contradição meramente aparente, foram definidas
como organizações anárquicas que dizem respeito ao
(a) campo econômico e ao (b) campo social.
a) Organizações anárquicas de tipo econômico. Foram
propostas algumas organizações anárquicas com base
numa nova estruturação econômica. Em geral, essas
organizações dizem respeito a uma gestão comunitária
ou comunística da sociedade. Pode se afirmar que
todas são fundadas sobre o elemento cooperativo, isto
é, sobre a livre associação de indivíduos com fins de
produção e de distribuição de bens produzidos e tendo
em vista a eliminação de toda a tendência autoritária
através da criação da autogestão, a partir de baixo. Esta
determina os objetivos comuns e indica os meios
técnicos (necessariamente "autoritários") para alcançar
fins concretos. Da forma cooperativa originária de
base se passa a construções mais amplas através de
figuras sucessivas e mais articuladas de federação, b)
Organizações anárquicas de tipo social. A base social
da organização anárquica, paralela à econômica, é
constituída segundo as correntes ou pelo próprio
indivíduo ou pelo núcleo familiar. Estes, unidos num
certo território geográfico e tendo interesses e
atividades coletivas afins, constituem a comuna
(commune) dentro da qual todos são iguais e as
decisões são tomadas por iniciativa de todos, numa
espécie de democracia direta que, porém, é
incompleta, enquanto está privada de representação
institucional (até em suas formas não delegadas). A
união das comunas dá lugar à federação no âmbito da
qual as relações intercorrentes são análogas, havendo'
assim, sempre em escala geográfica mais vasta, a
federação das federações, até alcançar o ponto alto e
ideal da pirâmide que seria a federação anárquica
universal, uma espécie de objetivo final como
aspiração de uma meta de desejável realização. Se
estes são os aspectos positivos gerais do Anarquismo,
entendidos como projetos de
solução global dos problemas da humanidade, é
oportuno observar também que o Anarquismo propõe
toda uma série de objetivos intermediários que só
impropriamente podem ser chamados, mais do que de
transformação, de ação social e sempre de realização
imediata, exeqüíveis a curto prazo. Estes últimos,
porém, coincidem mais com os meios, através dos
quais o próprio Anarquismo entende realizar-se.
3. Os meios. São bastante diversos, apesar de
historicamente
ter
havido
uma
notável
interdependência entre eles. Embora se apóie em
pressupostos antiorganizativos, uma expressiva parte
do Anarquismo (com o auspício de Eurico Mala-testa)
admitiu a possibilidade da organização como
fundamento do progresso e da difusão das próprias
doutrinas anárquicas apoiando-se na propaganda
tradicional — ou até na propaganda específica embora
rejeitada por muitos, chamada propaganda "dos fatos"
— e usando, desde que se respeitem determinados
vínculos libertários como é o caso, já referido, da
autogestão a partir de baixo para cima ou o da
substituição dos órgãos centrais de direção — comitês
centrais ou conselhos diretores — por simples comitês
de correspondência. O dado organizativo teve sempre
no Anarquismo uma referência social explícita, bem
diversa, por exemplo, da que é proposta pelo
marxismo. Na verdade, o Anarquismo está ligado às
massas e nunca às classes. De modo particular, não
evoca a classe operária, considerada como verdadeira
aristocracia incapaz de querer obter a própria
liberdade enquanto integrada no "sistema" e
beneficiadora de inúmeros privilégios. O Anarquismo
liga-se mais ao sub-proletariado das cidades e ao
campo em especial, que vive marginalizado pela
sociedade burguesa e em condições de miséria
material e moral e, por isso, o levantar-se contra as
estruturas do poder. Organização e propaganda, unidas
ou separadas, segundo as interpretações, são as bases
necessárias para as três formas de organização
anárquica que até agora caracterizaram o movimento e
que suscitaram a atenção teórica dos estudiosos: a) a
educação: b) a rebelião; c) a revolução.
a) A educação na sociedade autoritária representa a
primeira forma de intervenção repressiva sobre o
homem. É lógico, por conseguinte, que o Anarquismo
tenha procurado colher, de um lado, todos aqueles
elementos libertários aplicáveis à criança e ao adulto,
como formas de estruturação ética e cultural do
homem sem constrangimento da inteligência e do
espírito na base de esquemas fixos estabelecidos a
priori. A educação e mais genericamente toda a
pedagogia libertária
ANARQUISMO
tentaram construir uma escola livre de vínculos com a
sociedade repressiva, que fosse capaz de contribuir
para criar um homem sem inibições para consigo
mesmo, e apto a agir fora de todo o esquema imposto
em seu relacionamento com a sociedade.
Mas a educação, entendida não mais como
elemento de formação individual e sim como
verdadeiro processo de difusão de idéias anárquicas
na sociedade, representou também um dos maiores
momentos da presença do Anarquismo, o qual,
especialmente em suas expressões pacifistas, baseadas
no conceito de amor e de não-violência — foi o caso
de Leão Tolstoi — atribuiu amplo espaço a todas as
motivações que implicavam a possibilidade ou a
necessidade de dar uma formação livre à criança ou,
mais amplamente, ao homem que vive em sociedade.
Daí provieram concepções que recebiam a
denominação
de
"educacionismo",
enquanto
buscavam no fator educacional o fim e o princípio da
própria ação.
b) Característico do Anarquismo é o fenômeno da
rebeldia, por seu lado exterior violento ou, pelo
menos, não pacífico — vizinho, mas não
necessariamente conexo com o fenômeno paralelo do
insurrecionismo. A rebeldia ou rebeldismo é a
exteriorização violenta e de improviso, a maior parte
das vezes manifestando-se irracionalmente, de uma
ação eversiva contra a ordem constituída. Tal tipo de
ação,
precisamente
pela
desorganização
e
impulsividade com que se manifesta, pode ter, até, um
sucesso imediato, como acontece no caso de uma
insurreição — precedida de uma teorização aplicada
— assim como pode dar lugar à verdadeira revolução.
A maior parte das vezes, porém, tem um fim
destrutivo imediato e a própria manifestação coincide
já com o seu desaparecimento na medida em que
tende a eliminar, em tempo igual, a si própria e à
autoridade contra a qual se rebela. As rebeliões
libertárias, freqüentes em todas as épocas históricas,
só em raros casos foram "produtivas" para o
movimento, tendo suscitado, muitas vezes, reações
contrárias em detrimento de todo o Anarquismo.
c) A forma mais orgânica com expressão antiautoritária é seguramente a revolução pregada e
propagandiada por numerosos pensadores e múltiplos
movimentos e grupos anárquicos que viram nela a
possibilidade de redenção da opressão autoritária.
Trata-se de uma contradição íntima de todo o
antiautoritarismo, na medida em que a revolução é, de
per si, inteiramente autoritária, já que pretende obter,
pela força, tudo o que a razão, a opinião e o consenso
não conseguiram diligenciar. Com efeito, o
Anarquismo conscientizou-se de tal contradição e o
conceito de
27
revolução enunciado — derrubamento da autoridade para instauração da nova condição ideal — coincide
com o de rebelião, mantendo, de fato, as características
do imediatismo e da impaciência revolucionária. Para
ela, os fins devem ser alcançados imediatamente e os
objetivos da transformação social são realizáveis no
brevíssimo arco da revolução-revolta. Aparece claro o
elemento utopístico de tal concepção revolucionária.
Nesta concepção, a revolução mais do que efetiva é
puramente ideal e, mais do que política, sua natureza
manifesta-se mais intelectual e abstrata, imaginável em
qualquer momento, sempre pronta a explodir, mas
nunca manifestada senão na configuração reduzida da
rebelião e da insurreição.
4. As táticas. Historicamente, o Anarquismo lançou
mão de alguns momentos táticos de manifestação que
deram lugar a autênticas teorizações que podemos
sintetizar assim: a) voluntarismo; b) espontaneísmo;
c) extremismo; d) assembleísmo e movimentismo.
Observa-se que estes componentes quase sempre se
manifestaram unitariamente, ou, pelo menos, em
conjunto e interseccionados entre si, enquanto
contribuíram para formar, em grupo, o fenômeno a
que se pode dar o nome de "ação libertária".
a) O Anarquismo, recusando a consciência marxista
de classe, apóia a sua tese de intervenção política
unicamente na escolha livre do indivíduo e, portanto,
sobre a vontade de cada um. As várias vontades são
unificadas por uma espécie de "espírito vital", de
paixão coletiva, emotiva e racional ao mesmo tempo,
e agregam as oportunidades de ação dos indivíduos,
gerando um comportamento coletivo ou uma
perspectiva de atos comuns.
b) As vontades individuais, unificadas na medida
acima referida, se comportam espontaneamente de um
modo social e revolucionariamente anti-autoritário. O
impulso para a destruição — ou "alegria" da
destruição, segundo Bakunin —, que é próprio do
indivíduo, comporta espontaneamente o intuito de
destruição e de revolução, que não requer longa e
particular predisposição, mas nasce espontaneamente
e sem esforço só pelo fato de que, no presente, existe
a autoridade. O espontaneísmo, para o Anarquismo,
está na base, portanto, de todo o movimento e de
qualquer eventualidade de ação. Esta só tem razão de
ser quando promana de exigências sociais, políticas
ou simplesmente intelectuais, exigências que
terminam por exteriorizar-se sem necessidade de uma
estrutura que determine os fins ou de uma direção que
indique a elas o caminho. A organização admitida por
alguns antiautoritários tem a exclusiva finalidade de
facilitar o desenvolvimento das
28
ANARQUISMO
opções espontâneas ou, quando muito, a de coordenálas para o objetivo libertário final.
c) As propostas rebeldísticas e espontaneísticas
fazem com que o movimento anárquico deva proporse sempre objetivos para além do tempo presente,
tanto no terreno político como no social. Ultrapassam,
portanto a realidade. Não para uma construção futura
a partir da própria realidade, mas para uma subversão
futurística que alcance a abolição do que já existe,
para entrar, em seu lugar, um nada antiautoritário que
se torne o tudo da racionalidade anárquica. São
próprias do Anarquismo as múltiplas opções
extremísticas e aniquiladoras das condições presentes,
independentemente da efetiva gestão delas e da
possibilidade de cumprir, no plano prático, o que é
reafirmado "extremisticamente", no plano teórico.
Valem, para exemplo, as teses sustentadas pelos
irmãos Cohn-Bendit na obra Extremismo, remédio da
doença senil do comunismo (1968).
d) Para o Anarquismo é o próprio "movimento"
espontâneo que cria as condições do progresso ulterior
do ideal que se quer afirmar. O movimentismo
constitui o privilegiamento da ação em si mesma,
analisando a realidade concreta, não com mira de um
escopo concreto imediato, mas sim com o objetivo de
realizar subitamente um fim abstrato. Não obstante a
ligação existente com a realidade e o propósito ultrarevolucionário,
o
movimentismo
esconde,
efetivamente, intuitos meramente insurrecionistas,
através do contínuo envolvimento em novas ações
locais, espontâneas, voluntárias e assim por diante. O
movimento se rege e se organiza através do uso do
instrumento de assembléia. O assembleísmo é,
teoricamente, a forma democrática perfeita. Concede
ao indivíduo e à sociedade o modo completo de
expressão das capacidades próprias sem imposição de
opiniões e de valores alheios. Na realidade históricosociológica é um instrumento capaz de funcionar por
si só, Existe um grupo restrito de dirigentes, uma elite
(quiçá oculta), capaz de organizar e de programar os
trabalhos da assembléia, e de forçar as opiniões dos
outros, induzindo a "base" a aceitar o que foi
preordenado pela referida elite. É esta, certamente,
uma outra contradição interna do movimento
antiautoritário, comprovada histórica e teoricamente
pelo próprio Bakunin e seus epígonos até nossa época.
Bakunin, agindo embora nas organizações oficiais do
proletariado (Primeira Internacional), procurou inserir
nelas seus próprios núcleos de "fidelíssimos" de elite
caracterizados pelo sectarismo e pelo caráter de
segredo, com o escopo de definir a linha de ação das
próprias organizações e, em sentido mais geral, de
todo o movimento antiautoritário..
V. O ANARQUISMO MODERNO. — O Anarquismo,
depois da válida elaboração dos anos do final do
século XIX e princípios do século XX e do sucessivo
impulso para a ação do período da guerra civil
espanhola (1936-1939), teve uma reviviscência nos
anos 60. Frente às doutrinas prevalente-mente sociais
do passado, o novo Anarquismo renovou, em parte, a
própria temática de contestação e antiautoritária,
assumindo tons mais moderados no que diz respeito à
rejeição de entidades hierárquicas organizadas
(Estado, lei e Governo) e tornando mais precisos
certos objetivos da própria polêmica antiautoritária
(ideologias sociais, burocracia, sociedade de
consumo). Juntou à luta habitual contra toda a forma
de repressão violenta a luta contra a repressão psicoideológica das sociedades de massa nas quais o
homem se aliena, não mais no campo do trabalho e do
capital, mas sim conforme interpretações do novo
libertarismo, no campo da própria personalidade,
privando-se da própria consciência e da própria
capacidade de escolher livremente os objetos de seu
próprio interesse. O Anarquismo individuou, nestes
fatos, os novos vínculos de opressão do homem e, não
levando mais a fundo a introspecção, simplesmente os
refutou com os mesmos instrumentos com que no
passado negara Estado e Governo. Na sua rejeição, o
Anarquismo não teve sucesso até hoje, provando com
isto que sua verdadeira essência, identificada por
Marx e por Engels a partir de 1871-1872 e reforçada,
mais tarde, por Lenin por volta dos anos 1917-1920, é
a de um movimento de rebeldia de perspectiva
imediata, e, também, de uma parte, expressão de
exigências utópicas e, de outra, expressão das
condições de alienação do mundo intelectual pequenoburguês das sociedades mais evoluídas, estranho aos
grandes conflitos sociais do neocapitalismo mas ao
mesmo tempo participante deles. Sua essência seria
ainda a de um grupo disponível para qualquer ação
emancipadora e extremisticamente revolucionária,
oposta a qualquer tentativa de restauração e voltada
para o retorno a um passado místico, coincidente,
aliás, com o futuro utópico do antiautoritarismo total,
na perspectiva do que foi apresentado por Herbert
Marcuse. Perdendo sua caracterização social, o
Anarquismo fez uma opção qualitativamente
importante: de uma teoria típica de países atrasados e
de grupos explorados passou a ser, genericamente, a
expressão dos "rejeitados", dos desclassificados
intelectuais e de todas as outras classes da sociedade
altamente industrializada. Esses rejeitados estão
unidos por contingência da luta contra as novas
formas autoritárias do mundo moderno, identificadas
mais com o poder político
ANCIEN RÉGIME
que rege os Estados e os Governos ou até cora as
instituições destes e não com as instituições,
entidades e pessoas que detêm o poder econômico.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., Anarchismo e
socialismo in Itália. 1872-1892, Editori Riuniti, Roma
1973; Id., Bakunin cent'anni dopo, Edizioni Antistato,
Milano 1977; P, ANSART, Marx et l'anarchisme.
Presses Universitaires de France, Paris 1969; H.
ARVON, L'anarchisme, Presses Universitaires de
France, Paris 1971; L. BETTINI, Bibliografia
deli'Anarchismo, C. P. Editrice, Firenze 1972;
Anarchici e anarchia nel mondo contemporâneo,
Fondazione L. Einaudi, Torino 1971; Gli anarchici, ao
cuidado de G. M. BRAVO, L Anarchismo, in Storia
delle idee politiche, economiche e sociali, ao cuidado
de L. FIRPO, UTET, TORINO 1972, VOL. V; M. BUBER,
Der utopische Sozialismus. Verlag Jakob Hegner,
Köln
1967;
G.
CERRITO,
Sull'Anarchismo
contemporâneo, in E. MALATESTA, Scritti scelti.
Savelli, Roma 1970; J. DUCLOS, Anarchistes d'hier et
d'aujourd'hui, Éditions Sociales, Paris 1968; D.
GUÉRIN, L'Anarchismo dalla dottrina all'azione
(1965), Savelli, Roma 1974; Id., Gli Dieu ni maitre.
Anthologie de l'anarchisme, Maspero, Paris 1970, 4
vols.; G. GUILLEMINAULT e A. MAHÉ. Storia
dell'anarchia. Vallecchi, Firenze 1974; J. JOLL, Gli
Anarchici (1964), Il Saggiatore, Milano 1976; J.
MAITRON, Le mouvement anarchiste en France.
Maspero, Paris 1975, 2 vols.; Der Anarchismus, ao
cuidado de E. OBERLÄNDER, Walter-Verlag, OltenFreiburg/B. 1972; Anarchismus. Gruntdtexte zur
Theorie und Praxis der Gewalt, Westdeutscher Verlag,
ao cuidado de O. RAMMSTEDT, Köln-Opladen 1969; E.
SANTARELLI, IL socialismo anarchico in Italia,
Feltrinelli, Milano 1959; G. WOODCOCK,
L’Anarchia (1963), Feltrinelli, Milano 1973.
[GIAN MAJUO BRAVO]
Ancien Régime.
I. A DESCOBERTA DO ANCIEN RÉGIME. —
Por ANCIEN RÉGIME se entende um certo modo de
ser que caracterizou o Estado e a sociedade francesa
num período de tempo, bastante definido em seu termo
final, e menos definido em seu termo inicial.
Os anos de 1789-1791 marcariam esse período
final. Para estabelecimento do começo do ANCIEN
RÉGIME, os autores recorrem a diversas
interpretações, não excluída uma, muito recente, que
adota precisamente a data de 1648 (Behrens, 1969).
Todavia, a opinião clássica que, definitivamente, é
também a mais útil para compreender o ANCIEN
RÉGIME coloca-o no final da Idade Média, entre a
Guerra dos Cem Anos e a Guerra das Religiões.
29
O aparecimento da definição do ANCIEN RÉGIME
como identificação do modo de ser da sociedade e do
Estado na França dentro do período indicado é coisa
póstuma. Pelo menos, é coeva do tempo em que
aquele modo de ser da sociedade e do Estado, a saber,
o ANCIEN RÉGIME, apareceu mesmo. No momento
em que o novo regime se afirmou por oposição ao
ANCIEN RÉGIME e o superou, este último ficou
definido pelo confronto.
A verificação de tal fenômeno, que de resto não é
singular, por se ter apresentado em outras
circunstâncias, sugere que, para definir o ANCIEN
RÉGIME, devemos partir da "descoberta" que no seu
momento final fizeram os contemporâneos.
II. A DEFINIÇÃO DO ANCIEN RÉGIME DATA DAS
CONSTITUINTES DE 1789 E DE 1791. — Os
constituintes de 1789 e de 1791 que procederam à
obra jurídica de demolição do velho regime e à
constituição do novo são os contemporâneos e os
protagonistas desta história.
A definição de ANCIEN RÉGIME, dada
implicitamente pelos constituintes, colhe-se através
de três momentos da Revolução que se refletem em
outros tantos documentos ou grupos de documentos:
os de junho de 1789, os de agosto-setembro de 1789 e
a Constituição de 1791.
O primeiro momento surge seis semanas depois da
reunião dos Estados gerais de Versalhes (5 de maio).
Os deputados do Terceiro Estado declaram
representar pelo menos 96% da nação e afirmam que
a denominação de Assembléia Nacional é a única que
se aplica a eles (17 de junho). No mesmo dia, a
declaração com que a Assembléia define como ilegais
os impostos reais, consentindo embora, por razões de
Estado, que continuem a ser cobrados, começa
invocando o poder que a nação exerce "sob os
auspícios de um monarca". Três dias depois, no
juramento de "leu de Psau-me", a Assembléia
Nacional afirma ser chamada a "fixar a Constituição
do reino, a regenerar a ordem pública e a manter os
verdadeiros princípios da monarquia".
Destes textos emergem alguns elementos.
Primeiramente, conforme testemunhas e os cahiers de
doléances, o princípio monárquico, a pessoa e a
instituição do rei não estão em discussão e, portanto, a
noção do ANCIEN RÉGIME não está estritamente
ligada ao caráter monárquico do Governo (de resto,
no século XIX haverá, ainda, reis). Em segundo lugar,
a nação, idéia estranha ao ANCIEN RÉGIME ou pelo
menos confusa e identificada com a pessoa e as
funções reais, se afirma como distinta e separada do
monarca. Se Luís XIV tinha proclamado: "A nação
não se corpori-fica na França, ela reside inteiramente
na pessoa do rei"; se Luís XV reafirmara, cem anos
mais
30
ANCIEN RÉGIME
tarde (3 de março de 1766): "Os direitos e os
interesses da nação, de que se ousa fazer um corpo
separado do monarca, estão necessariamente unidos
aos meus e não repousam senão em minhas mãos"; a
Declaração dos direitos humanos e do cidadão (26 de
agosto de 1789) afirma, ao contrário, que o princípio
de toda a soberania reside essencialmente na nação e
que nenhum corpo nem nenhum indivíduo pode
exercer autoridade se não emanar expressamente dela
(art. 3.°). Finalmente, o fato de que. a Assembléia
Nacional tenha como escopo fixar a Constituição do
reino, crie um comitê de Constituição, se proclame a
Assembléia Nacional como Constituinte e se dedique
àquela que será a Constituição de 1791 implica que o
ANCIEN RÉGIME não .tinha Constituição,
entendendo-se por tal não a Constituição
consuetudinária e as leis fundamentais do reino, mas
um claro, sólido e incontestável texto legislativo,
ditado pela nação ou por seus mandatários com base
em certos princípios, como a soberania nacional, os
direitos naturais, a igualdade de nascimento dos
cidadãos e a separação dos poderes.
A segunda fase é representada pelos decretos
emanados entre 4 e 11 de agosto de 1789, com os
quais
a
Assembléia
Constituinte
"destruiu
inteiramente" o que constituía um dos fundamentos do
ANCIEN RÉGIME e que os constituintes definiam
correntemente como "regime feudal". O conteúdo de
tais decretos mostra o que, a seus olhos, parecia
regime feudal ou ANCIEN RÉGIME, a saber: toda a
espécie de escravidão pessoal, todos os direitos
feudais ou senhoriais, décimas de toda a espécie,
venalidade e hereditariedade dos cargos, privilégios
pecuniários em matéria de impostos fiscais,
desigualdade de nascimento e de capacidade jurídica
para os empregados. Por outro lado, não são
contestados nem o rei — definido "restaurador da
liberdade francesa" — nem o caráter católico e cristão
do regime.
Dois anos depois, o preâmbulo da Constituição
jurada pelo rei, em 14 de setembro de 1791, retomará,
de forma solene, as características do regime
destruído: um regime feudal, do qual se conservava,
pelo menos, o respeito da propriedade e da
monarquia; um regime eclesiástico ou ligado à Igreja,
do qual se conservava o respeito à religião; um regime
de venalidade e hereditariedade nos cargos, do qual
não se conservava nada; um regime de desigualdade
de nascimento e de privilégios, do qual também não
se conservava nada. A estes elementos, já adquiridos,
como se viu em 1789, se integravam três novas
condenações: a das corporações profissionais, das
artes e dos mestres, que ultrapassavam a esfera do
direito comum, da liberdade individual e da liberdade
de trabalho; a dos votos religiosos, julgados
contrários ao direito natural; e sobretudo a da
nobreza, duramente contestada e colocada entre os
componentes essenciais do velho regime.
III. ORIGEM DO TERMO ANCIEN RÉGIME. —
Contemporaneamente aos episódios descritos se
verifica também o aparecimento, póstumo, do termo
ANCIEN RÉGIME. Mas em que data, precisamente?
Tocqueville oferece indiretamente uma solução,
pondo o termo na boca de Mirabeau no ano de 1790:
"Menos de um ano após ter começado a Revolução,
Mirabeau escrevia ao rei: 'Comparai o novo estado de
coisas com o Antigo Regime'...!" (UAntico Regime e
la Rivoluzione, libro I, cap. 2).
Na realidade, para uma resposta exata, seria
necessária uma análise minuciosa da imensa produção
legislativa da Assembléia Constituinte a que seria
necessário acrescentar uma análise do vocabulário
jornalístico, epistolar, quotidiano, etc. Entretanto,
pode-se dizer que, embora se fale de ANCIEN
RÉGIME numa brochure beaujolaise de origem
nobre, datada de 1788, é contudo a partir de 1790 que
a expressão começa a sua difusão para ser depois
rapidamente adotada, utilizada e transferida,
literalmente, para as línguas estrangeiras. Assim,
Ferdinand Brunot, no tomo IX da sua Hisloire de la
langue française, pondo a si mesmo o problema do
aparecimento do termo que tivera tão enorme
expansão, escreverá: "Um regime era uma ordem,
uma regra, até uma regra de salvação, um modo de
administração... Que o nome se aplicasse ao sistema
secular do Governo da França, nada mais natural. A
coragem estava em aplicar-lhe o epíteto de ancien.
Era uma tentativa. Os decretos da Constituinte dizem
freqüentemente 'le regime précédent'. Encontra-se
também 'regime ancien', 'vieux regime', mas
'ANCIEN RÉGIME' prevaleceu rapidamente sobre os
outros e tornou-se uma expressão feita".
O que parece não deixar dúvidas é o significado do
termo no momento em que surgiu e se difundiu. É
ainda Tocqueville quem nos dá a resposta: "A
Revolução Francesa não teve apenas o propósito de
mudar um Governo 'ancien' mas o de abolir a forma
'ancienne' da sociedade" (I, 2). O ANCIEN RÉGIME,
portanto, era uma forma do Estado (v. ABSOLUTISMO),
mas era também uma forma da sociedade, uma
sociedade com os seus poderes, as suas tradições, os
seus usos, os seus costumes, as suas mentalidades e as
suas instituições.
IV. AS CONDIÇÕES DO SUPERAMENTO DO
ANCIEN RÉGIME. — A definição de Ancien
Régime, dada até agora com base em textos dos
ANCIEN RÉGIME
constituintes, é insuficiente e inadequada, por uma
dupla ordem de razões. De um lado, porque pressupõe
que uma sociedade e um Estado, como a sociedade e o
Estado sucintamente delineados acima, podem,
efetivamente, ser subvertidos e anulados e, por
conseqüência, definidos apenas através de alguns atos
normativos compreendidos no pequeno espaço de
alguns meses: o que não pode nunca acontecer, nem
acontece. Por outra parte, porque pressupõe que na
visão e na atividade dos constituintes não houve
confusões nem anacronismos: o que não é menos
inexato.
Quanto ao primeiro aspecto, devemos mencionar
uma série de processos, ou seja, uma série de lentas
mas decisivas novidades, cronologicamente referíveis
aos anos do período que vai de 1750 a 1850, que são o
oposto do ANCIEN RÉGIME e que contribuem para
determinar inexoravelmente o fim e para defini-lo.
Sem pretender estabelecer uma ordem de prioridade,
essas novidades podem sintetizar-se como: a) a
aceleração dos transportes, que proporciona facilidade
nos intercâmbios, diminuição do custo dos próprios
transportes e uma certa unificação econômica das
regiões; b) a industrialização iniciada nos fins do
século XVIII e triunfante nos meados do século XIX.
ou talvez um pouco mais tarde, e que subtrai à
produção agrícola, aos produtores do campo e aos
titulares da renda fundiária a pre-eminência até então
desfrutada; c) a instituição e a difusão de uma sólida
rede bancária; d) a unificação lingüística do país; e) a
instauração e a aceitação do serviço militar; f) a
unificação jurídica do país, a obra verdadeira da
Revolução, que culminou no código Napoleão; g) a
unificação administrativa do reino, já tentada desde a
monarquia, com a instituição dos intendentes (é a
conhecida lição de Tocqueville) e completada depois
pela Constituinte, pelo Consulado e pelo Império e
simbolizada pelos prefeitos; h) a chama da revolução
demográfica, devida à lenta diminuição da
mortalidade e ao crescimento rápido da fecundidade;
i) o surgimento, se não do ateísmo, pelo menos de
uma certa indiferença religiosa.
V. A INTERPRETAÇÃO HISTORIOGRAFICA
DO
ANCIEN RÉGIME, — Quanto ao segundo aspecto,
ocorre observar que na origem das "confusões", em
que puderam cair os constituintes, não distinguindo,
por exemplo, entre nobreza, questão de sangue e
"senhorio", questão essencialmente territorial, ou entre
esta última, entendida como modo de aproveitamento
da terra e a "feudalidade" entendida como um
conjunto de ligações de homem para homem no
âmbito de uma sociedade militar (M. Bloch), existe o
fato de que o ANCIEN RÉGIME, se aparece definido e
claro em relação
31
à sua "morte legal", em relação ao que se lhe seguiu
não parece tão claro. A "confusão" que caracterizava
o antigo regime e contra a qual os constituintes
reagiram em nome da Razão e das Luzes derivava de
sua própria natureza. O ANCIEN RÉGIME, na
verdade, não era senão o resultado de um conjunto de
elementos, geralmente seculares e até milenares, do
qual jamais algum foi suprimido.
Daqui deriva a importância que na definição do
ANCIEN RÉGIME se reveste a pesquisa historiográfica, seja pelo fato de esta tocar aspectos peculiares
da sociedade e do Estado, seja pelo fato de tentar
abranger o fenômeno numa visão de conjunto. Mas
mesmo que queiramos limitar-nos às reconstruções
gerais, como é inevitável aqui, nos encontramos frente
a uma historiografia já notável que lança suas raízes
na segunda metade de oitocentos. Remonta a 1856, na
verdade, a primeira edição da famosa obra de Alexis
Tocqueville, VANCIEN RÉGIME et la Revolution,
toda voltada para a demonstração da continuidade
entre o antigo regime e a Revolução, e remonta a
1876 a primeira edição da obra antitocquevillia-na,
sem dúvida discutível, mas importante, de Hyppolite
Taine, Les origines de la France con-lemporaine, t. I.,
L’ANCIEN RÉGIME.
Citaremos agora brevissimamente as teses mais
recentes e significativas, a começar pela de Pegés, que
tem do ANCIEN RÉGIME uma concepção dua-lista,
resultante da contraposição do Estado à sociedade.
Para Pagés, a monarquia do ANCIEN RÉGIME nasceu
das guerras civis que atingiram a França durante a
segunda metade do século XVI e desenvolveu obra
considerável com Henrique IV, Luís XIII e Richelieu
e com Luís XIV, de tal forma que corresponde a um
dos períodos mais brilhantes da história francesa.
Todavia, embora tenha desenvolvido uma função
nacional, não soube dar uma base nacional à sua
autoridade. Ficou prisioneira do passado. Conservou o
velho caráter de uma monarquia pessoal e não se
desenvolveu senão através do esvaziamento das
instituições que poderiam ter-lhe servido de
sustentação. Cometeu o erro de crer que a um
Governo basta ser forte. As instituições
administrativas criadas por Luís XIV e Colbert
aumentaram ainda mais a força do poder, mas não
associaram a nação a ela. Assim, frente à sociedade
que se transformou, a monarquia do ANCIEN
RÉGIME isolada tornou-se incapaz de transformar-se
com ela e foi condenada.
Dualista, mas em sentido oposto, no sentido da
contraposição da sociedade ao Estado, está também a
concepção de Sagnac, segundo a qual a importância
da forma do regime político foi exagerada. Dos dois
principais motores da evolução
32
ANTICLERICALISMO
com os vários motivos e direções da crítica racionalista, que investiram contra a própria religião
católica. Mas é com a Revolução Francesa e nos
decênios sucessivos (durante o século XIX) que o
Anticlericalismo de origem cristã e católica e o
Anticlericalismo racionalista de personalidades
particulares e de grupos deixam, em grande parte, seu
lugar e são absorvidos por um Anticlericalismo que se
manifesta como fenômeno relativamente de massa,
essencialmente nos países de predominância católica,
na França, Bélgica, Itália, Espanha e Portugal, além
de muitos países latino-americanos, e através de
formas especificamente anti-romanas e antipapistas na
Inglaterra e na Alemanha; Anticlericalismo que
justifica e sustenta uma tendência à laicização do
Estado e da sociedade, dos costumes e da
mentalidade. As principais fontes culturais que
alimentam o Anticlericalismo são o iluminismo e o
filantropismo racionalista, o hegelianismo, o
positivismo evolu-cionista e o positivismo
materialista.
Se os termos anticlerical e Anticlericalismo, quase
contextualmente opostos aos termos cleri-cal e
BIBLIOGRAFIA. - C B A BEHRENS. LANCIEN clericalismo, inicialmente aparecem na forma de
RÉGIME. Flammarion, Paris 1969; P. GOUBERT, L adjetivo,
dentro
da
linguagem
política,
ANCIEN RÉGIME (1969), Jaca Book, Milano 1976; aproximadamente entre 1850 e 1870, em
R. MANDROU, La France aux XVIP et XVllF siècles, P. correspondência ao agravamento da oposição ao
U. F., Paris 1967; H. ME-THIVIER, L ANCIEN catolicismo ultramontano, infalibilista e temporalista,
RÉGIME. P. U. F., Paris 1961; G. PAGÉS, La o fenômeno na época contemporânea nasce alguns
monarchie d'ANCIEN RÉGIME en France, de Henri decênios antes, como rejeição de toda a interferência
IV à Louis XIV. Colin, Paris 1928.
da Igreja e da religião na vida pública; como
afirmação de uma necessária separação entre política e
[ETTORE ROTELLI] religião, entre Estado e Igreja, reduzindo a Igreja ao
direito comum e a religião a um fato privado, segundo
a inspiração do individualismo liberal; como defesa
dos valores de liberdade de consciência e de
Anticlericalismo.
autonomia moral, que se sentem ter nascido fora de
um álveo religioso. Sobre estes temas e outros destes
Através deste termo se designa geralmente um derivados, o Anticlericalismo mobiliza, nos países e
conjunto de idéias e de comportamentos polêmicos a no período acima mencionados, vastas correntes de
respeito do clero católico, do CLERJCALISMO (v.) e do opinião pública liberal e democrática, suscita
CONFESSIONALISMO (v.), isto é, daquela que é tendências radicais, que se inspiram nos princípios do
considerada a tendência do poder eclesiástico a fazer livre-pensa-mento, encontra um centro ativo de
sair a religião do seu âmbito para invadir e dominar o iniciativas na maçonaria, se expressa numa ideologia
âmbito da sociedade civil e do Estado; posição positiva, se torna uma paixão e uma autêntica fé que
polêmica, que se estende também a grupos, partidos, atingem momentos de fanatismo e de intolerância. O
Anticlericalismo invade grande parte da imprensa
Governos e indivíduos que apoiam esta tendência.
Como atitude de crítica contra a corrupção e os diária e periódica, ocasiona uma forte literatura crítica
vícios, a hipocrisia e a ganância, a prepotência e a e uma literatura de divulgação popular, se manifesta
intolerância da ordem sacerdotal acusada de trair e de nas poesias, nas canções e no teatro, no romance
se
afastar
dos
princípios
evangélicos,
o popular e na literatura de cordel, anima inúmeros
Anticlericalismo afunda suas raízes na Idade Média, debates parlamentares. Em certos países, como na
percorre os séculos sucessivos e se manifesta França e na Alemanha, o Anticlericalismo, em muitas
particularmente na Renascença, na Reforma, no livre- ocasiões, acusou os clericais e a Igreja, como
organismo internacional, de perseguir interesses
arbítrio e no iluminismo, misturando-se
contrários aos
histórica, a sociedade e o Estado, os historiadores
privilegiaram o segundo, porque, em seu tempo, se
apresentava muito forte. Ao contrário, na França do
ANCIEN RÉGIME, a sociedade foi sempre muito
viva. Por isso, é sobre sua evojução durante dois
séculos, etapa por etapa, que se deve insistir para
constatar em que medida, no regime da monarquia
absolutista, a sociedade conseguiu agir sobre o Estado
mais do que o Estado sobre a sociedade.
Mas, para além das diversas interpretações
historiográficas que se dão do ANCIEN RÉGIME, é
lícito perguntar também o que ele representa ainda
hoje para nós. À pergunta respondeu o historiador
francês Robert Mandrou, que acentuou os efeitos
enganosos de certas conotações da sociedade
moderna, como a melhoria do teor de vida e o
regresso dos sinais externos da desigualdade social.
Estes, na verdade, dissimularam o dado essencial, que
é representado pela permanência das condições
sociais, hierárquicas, hoje presentes, para as quais o
ANCIEN RÉGIME forneceu os modelos.
ANTICLERICALISMO
nacionais e, até, de atentar contra a independência do
país. Em todos os países, o Anticlericalismo
identificou uma área de choque extremamente áspera,
que é o clericalismo na escola, e conduziu uma
batalha para subtrair o ensino da influência do clero e
inspirá-lo nos princípios racionais e científicos. Ele
dirigiu a sua polêmica particularmente contra o clero
regular, especialmente os jesuítas, que constitui, mais
do que o clero secular, um corpo separado dentro do
Estado e, ao mesmo tempo, capilarmente presente na
sociedade; por isto, exigiu a abolição das ordens e
congregações religiosas e a confiscação de suas
propriedades.
Numa primeira fase, especialmente, as posições
anticlericais não se identificam com a irreligião e o
ATEÍSMO (V.), mas seguem prevalentemente uma
orientação deísta; progressivamente, também na
medida em que o Anticlericalismo liberal entra em
competição com o democrático e o radical emergem
cada vez mais posições implícita ou explicitamente
ateístas. A polêmica contra a religião e a Igreja
católica faz, contudo, freqüente referência, por uma
autêntica simpatia e pela necessidade de ter em conta
as convicções das massas populares, ao cristianismo
primitivo, democrático e igualitário. Se no plano das
idéias acaba investindo contra o próprio âmbito da
religião e de seus princípios morais e sobrenaturais, no
plano político o Anticlericalismo se configura como
LAICISMO (v.), isto é, visa pelo menos, na maior parte
de suas tendências, a um Estado plenamente laico,
perante o qual sejam absolutamente livres e iguais
todos os cultos e todas as profissões de idéias; em
alguns momentos e em alguns países, a consecução
deste objetivo importou formas duras de luta e de
intervenção do Estado em relação à Igreja, como
aconteceu com os ministérios Waldeck-Rousseau e
Combes, na França da Terceira República, e, em
parte, como aconteceu também no tempo do
Kulturkampf, na Alemanha bismarckiana. Dessa
forma, o Anticlericalismo levou a formas de controle
da organização eclesiástica e a perseguições
antiliberais.
Durante o século XIX, do Anticlericalismo deísta
dos liberais se passou para o Anticlericalismo
agnóstico ou ateu dos democratas e dos radicais, para
o Anticlericalismo aberta e combativamente ateu dos
anarquistas e dos socialistas. Formou-se também um
Anticlericalismo de origem protestante, relacionado
com as lutas pela laici-dade do Estado, e um
Anticlericalismo católico de esquerda e de direita. O
Anticlericalismo foi também característica da
aristocracia no ANCIEN RÉGIME e se difundiu
largamente no meio da burguesia, após a Revolução
Francesa e as revoluções do século XIX, e depois no
meio da classe
33
operária, enquanto, entre o fim do século XX, uma
parte da burguesia se reaproximava da Igreja e da
religião. O Anticlericalismo atingiu, em parte, seus
objetivos de laicização do Estado e da sociedade, em
medidas diferentes, de acordo com as características
de cada país. O seu declínio, que começou
aproximadamente após a Primeira Guerra Mundial, é
conseqüência
dessa
própria
guerra,
das
transformações que se verificaram no mundo católico
e na Igreja, transformações provocadas pelo próprio
Anticlericalismo e pela clara função de purificação
que este desempenhou indiretamente nas relações com
o fato religioso, e conseqüência também da
diminuição de conflitos entre Igreja e alguns Estados
europeus em função anti-socialista e, em seguida,
anticomunista e da emergência dos problemas sociais
e nacionais que acabaram colocando o problema do
Anticlericalismo em segundo plano.
Na Itália, o Anticlericalismo se ligou estritamente à
luta para a unificação nacional e, portanto, para a
destruição do poder temporal dos papas. Ele
acompanha, antes de tudo, a batalha das correntes
liberais e democráticas para a criação de um Estado
laico no Piemonte. Após a unificação, alimenta, em
particular, algumas correntes progressistas da classe
política e iniciativas de educação popular, o
movimento do livre-pensa-mento e a maçonaria e, em
seguida, as diversas correntes políticas da oposição, de
republicanos e radicais, de internacionalistas
anárquicos e socialistas. Juntamente com as
inspirações culturais vindas de além-dos-Alpes, está
presente e forte o movimento positivista lombardo
chefiado por Ro-magnosi-Cattaneo-Ferrari. No
período da direita histórica, o Anticlericalismo atingiu
alguns de seus objetivos com a introdução do
matrimônio civil, a liquidação do patrimônio
eclesiástico, a abolição da isenção dos clérigos do
serviço militar e a supressão das faculdades de
teologia. Após o advento da esquerda, outras suas
realizações são a introdução do juramento civil, a
introdução parcial de uma instrução laica obrigatória,
a repressão dos abusos do clero e a possibilidade de
cremação dos cadáveres. Não foram, porém,
satisfeitas, na Itália liberal, outras reivindicações
fundamentais do Anticlericalismo mais avançado, tais
como a confiscação total dos bens eclesiásticos, a
supressão das despesas de culto do orçamento do
Estado, a prioridade do matrimônio civil sobre o
religioso, o divórcio, a ab-rogação do primeiro artigo
da Constituição e a plena liberdade de consciência. A
mobilização, as iniciativas e as irritações anticlericais
atingem seu cume no período da esquerda; enquanto,
entre o final do século XIX e o início do século XX,
mais se manifesta o abandono do Anticlericalismo e
do
34
ANTICOMUNISMO
laicismo por parte da classe dirigente e da burguesia
conservadora, estes se tornam bandeira de luta dos
movimentos da oposição e, no período de Giolitti,
elemento de agregação dos "blocos populares" de
republicanos,
radicais
e
socialistas.
O
Anticlericalismo italiano consegue resultados menos
incisivos do que em outros países e, no período que
precedeu a Primeira Guerra Mundial, já se orienta
para um compromisso entre o Estado e a Igreja, para
ampliar as bases conservadoras do próprio Estado (v.,
também, LAICISMO, SEPARATISMO).
BIBLIOGRAFIA — A. ERBA, Lesprit laique en
Belgique sous le gouvememem liberal doctrinaire
(1857-1870) d'apres les brochures politiques, Louvain
1967; Vanticlericalismo nel Risorgimento (18301870), Antologia elaborada por G. PEPE e M.
THEMELY, Lacaita. Manduna 1966; R. REMOND,
Lanticlericalismo en France de 1815 à nos jours,
Fayard. Paris 1976; T. TOMASJ, Videa laica neliltalia
contemporânea. La Nuova Itália 1971; G. VERUCCI,
LItalia laica prima e dopo limita, 1848-1976.
Anticlericalismo. libero pensiero e ateismo nella
società italiana, Laterza, Bari 1981.
[GuiDO VERUCCI]
Anticomunismo.
Se se quisesse oferecer uma definição vocabular, o
Anticomunismo deveria ser obviamente entendido
como oposição à ideologia e aos objetivos comunistas;
assim como existem forças sociais e posições políticas
antifascistas, anticapi-talistas, anticlericais, etc.,
também as há anticomunistas. Na realidade, após a
Revolução de Outubro, o comunismo entrou na cena
mundial, não só como um movimento organizado e
difuso, senão também como uma alternativa política
real em relação aos regimes tradicionais. Por isso, o
Anticomunismo assumiu necessariamente valores bem
mais profundos que o de uma simples oposição de
princípios, contida, não obstante, na dialética política
normal, tanto interna como internacional.
Do lado comunista, o Anticomunismo foi definido
por alguns como uma "ideologia negativa" (chamado,
em termos polêmicos. Anticomunismo visceral, ou
seja, baseado numa oposição global ao comunismo e
não na adesão positiva a valores autonomamente
escolhidos); foi definido por outros como "ideologia
da burguesia em crise" (isto é, como fórmula política
de saída, quando as fórmulas tradicionais se revelaram
ineficazes no controle das tensões sociais). Mas
Togliatti é ainda
mais explícito quando escreve que ser anticomunista
"significa.. . dividir categoricamente a humanidade
em dois campos e considerar.. . o dos comunistas. . .
como o campo daqueles que já não são homens, por
haverem renegado e postergado os valores
fundamentais da civilização humana". Trata-se, no
entanto, de definições genéricas e li-mitativas, sendo o
Anticomunismo um fenômeno complexo, ideológico e
político ao mesmo tempo, explicável, além disso, à
luz do momento histórico, das condições de cada um
dos países, e das diversas origens ideais e políticas em
que se inspira. Quanto ao mais, no número de
"Rinascita" citado na bibliografia, se distingue entre o
Anticomunismo de tipo clerical, fascista, nazistahitleriano, e "o americano, que é o mais recente. Há
depois as variantes de tipo social e de tipo
democrático".
Na tradição da III Internacional, dado que os
interesses orgânicos do proletariado e das classes
progressivas se identificam estreitamente com a linha
dos
partidos
comunistas,
a
oposição
é
automaticamente definida como oposição àqueles
interesses, assumindo, como tal, aos olhos dos
comunistas, um inequívoco valor "de direita". Na
realidade, o Anticomunismo não é necessariamente de
direita: se existe o Anticomunismo de cunho clerical,
reacionário, fascista, etc., também pode haver o que se
inspira nos princípios liberais ou, sendo de esquerda,
nos princípios da social-demo-cracia. Nestes últimos
anos tem-se dado até a retomada de um certo
Anticomunismo radical libertário, que muitas vezes
ocupa posições de extrema esquerda.
Se o Anticomunismo é, pois, difícil de definir no
plano ideológico, no plano mais especificamente
político é entendido como convicção de que não é
possível a aliança estratégica, para além de possíveis
momentos táticos, com os partidos e os Estados
comunistas. Isto não se dá necessariamente em
atitudes repressivas internas e agressivas externas:
mas tanto a estratégia do confronto quanto a da
coexistência pacífica partem uma e outra da
constatação da incompatibilidade radical com o campo
oposto, da inconciliabilidade dos respectivos valores e
interesses, mesmo que isso se mantenha dentro das
regras da democracia pluralista e das relações normais
entre Estados.
Como se vê, o Anticomunismo interno e o que se dá
nas relações entre os Estados estão profundamente
ligados. Convém, no entanto, manter distintas as duas
esferas, para melhor compreendermos sua explicação.
a) No plano interno, o Anticomunismo extremo é,
como é óbvio, o de tipo fascista e reacionário em
geral, que se traduz na sistemática repressão da
oposição comunista, e tem por norma
ANTIFASCISMO
tachar de comunismo qualquer oposição de base
popular.
Nos regimes democráticos, é preciso distinguir os
países onde não existe uma oposição comunista
relevante daqueles onde a há. No primeiro caso, o
Anticomunismo constitui, o mais das vezes,
componente fundamental da cultura política
difundida, tendo, por isso, uma função importante na
integração sócio-política e na legitimação do sistema
(mediante, por exemplo, a incondicional aceitação do
próprio way of life). Revela-se por isso,
extraordinariamente eficaz na prevenção ou
isolamento de possíveis movimentos de oposição que
se refiram, mesmo que genericamente, ao marxismo e
às tradições comunistas.
Ao contrário, nos países onde a presença comunista
é forte e constitui uma alternativa potencial, ou, em
todo caso, um elemento de constante dialética e de
controle da gestão do poder, as possibilidades de
encontrar na sociedade civil assen-timento a uma
política de choque são evidentemente muito reduzidas,
a não ser à custa de fortes dilaceramentos sociais. O
respeito pelas regras da democracia obriga então ao
confronto com a oposição comunista assente em
programas e realizações concretas, buscando-se assim
privar de coa-teúdo os motivos que seriam a base
principal da adesão e do voto aos partidos comunistas.
O Anticomunismo converte-se então em critério
discri-minante na formação das coalizões: de um lado,
as forças não dispostas à colaboração com os
comunistas (a chamada prejudicial anticomunista), do
outro, os comunistas e as eventuais oposições da
extrema esquerda.
Embora muitos politólogos sustentem que um
sistema político de tipo ocidental é incapaz de
funcionar em confronto com uma forte formação
comunista (sistemas "polarizados" ou "centrífugos"),
está-se atuando, no entanto, um real processo de
integração dos partidos comunistas ocidentais (v.
EUROCOMUNISMO) nos sistemas pluralistas, ficando
assim superado o Anticomunismo tradicional que, de
resto, nem sequer contaria já com o consenso dos
setores da sociedade civil não comunistas.
b) No plano internacional, o Anticomunismo é o
critério inspirador de uma política de alcance
planetário, cujos objetivos são simultaneamente:
1) contenção do influxo dos Estados socialistas;
2) interferência nos negócios internos de cada um dos
países, a fim de prevenir e/ou reprimir os movimentos
de inspiração comunista (ou tida como tal).
Ambas as diretrizes de ação se interligam e
definem o Anticomunismo com relação ao antisovietismo. Por outras palavras, uma política externa
anti-soviética não será necessariamente
35
inspirada pelo Anticomunismo, ao mesmo tempo que
um
regime
substancial
e
propensamente
anticomunista não praticará necessariamente o
Anticomunismo nas relações internacionais. A China
Popular, por exemplo, é indiscutivelmente antisoviética, não decerto por via do Anticomunismo, mas
dos próprios princípios comunistas; ao contrário,
muitos Estados árabes e africanos, embora possuam
muitas vezes culturas políticas nacionais dificilmente
conciliáveis com o comunismo, são filo-soviéticos em
política externa.
A partir dos anos 60, a frente anticomunista tem
revelado uma progressiva diminuição em sua
agressividade, tendendo às relações de coexistência
pacífica. A vitalidade anticomunista é, contudo,
inversamente proporcional à estabilidade das relações
hegemônicas a nível mundial. Visto que tais relações
são cada vez mais insidia-das pelos processos de
emancipação política dos países subdesenvolvidos,
pela progressiva escassez das matérias-primas e dos
recursos energéticos, e pela existência de fortes
tensões sociais nos próprios países ocidentais, não se
pode excluir a permanente tendência da leadership
ocidental (USA) ao Anticomunismo agressivo
abertamente praticado nos anos 50 e 60 (Coréia,
América Latina, Vietnã, papel da NATO na Europa,
etc.). Já que, por seu lado, também a União Soviética
atua, entre as tensões internacionais, com uma
estratégia essencialmente imperialista, o antisovietismo e, conseqüentemente, o Anticomunismo
encontram, aí, real sustento.
BIBLIOGRAFIA.
ALT.
VÁR.,
American
conservative thought in the twentieth century. ao
cuidado de W. F. BuCKLEY, JR.. Bobbs-Merril,
Indianopolis e New York 1970; Id., In-chiesta
sul/anticomunismo, em "Rinascita", Anno XI, n.™ 89, 1954; M. MARGHTCCO, Stati Uniti e PCI, Laterza.
Ban 1981
[LUCIANO BONET]
Antifascismo.
I. COMPONENTES E FASES DO ANTIFACISMO. — Ao
termo Antifascismo se dá, de preferência, um
significado que abrange todas as tendências ideais, os
movimentos espontâneos e organizados e os regimes
políticos que historicamente exerceram ou exercem
uma oposição a tendências, movimentos e regimes
caracterizados como fascistas. Uma interpretação do
Antifascismo como fenômeno relativamente unitário
pressupõe, portanto, uma interpretação generalizante
do fascismo;
36
ANTI FASCISMO
pressupõe que fascismo se tornou uma categoria que
abrange movimentos e regimes com características
distintivas comuns, dentro de um âmbito europeu ou
mundial, e difundidos através de parâmetro
cronológico que vai dos fins da Primeira Guerra
Mundial até nossos dias.
Não falta, por outra parte, quem atribua fascismo,
nazismo, franquismo, salazarismo, peronismo, etc. a
estádios diversos do desenvolvimento econômico e
político, partindo de uma compreensível reação
contra o uso genérico e indiscriminado do termo
fascismo, e, contemporaneamente, quem procure uma
explicação para as semelhanças entre o fascismo
europeu e alguns movimentos e regimes iberoamericanos e do Terceiro Mundo.
Houve até quem quisesse ver, sobretudo antes da
difusão dos regimes fascistas dos anos 30, o
fenômeno fascista circunscrito à Itália: é fácil concluir
que, neste caso, o Antifascismo se tornou uma
categoria referível unicamente à oposição a um ou a
alguns movimentos específicos ou a regimes
históricos,
geográfica
e
cronologicamente
delimitados.
Se existe, todavia, um relativo acordo sobre
movimento e regimes políticos caracterizados como
fascistas, não se pode dizer o mesmo sobre o que os
individualiza como tais. Até a interpretação daquilo
que é orgânico no fascismo, para além dos seus
aspectos contingentes e das suas manifestações
externas, é exatamente o que diferenciou o
Antifascismo nos seus diversos componentes e o
tornou um movimento complexo, articulado e
contraditório, sobretudo no plano da ação política.
Das três interpretações tradicionais do fascismo se
originam, na verdade, comportamentos ideais e
práticas diversas. Para os marxistas do movimento
comunista, o fascismo é a forma necessária que a
ditadura da burguesia assume na fase imperialista do
capitalismo. O objetivo do fascismo, segundo cie, é
destruir as organizações do movimento operário e o
próprio Estado dos soviéticos. Da identificação entre
o fascismo e o capitalismo, nasce como único objetivo
possível o da ditadura do proletariado. O abatimento
do fascismo é visto como necessariamente contextual
ao do capitalismo. Só o desenvolvimento da análise
marxista e da linha política correspondente voltada
para uma menor rigidez, que reconhece que o
fascismo é apenas uma das formas possíveis da
ditadura burguesa, durante muito tempo a mais
reacionária e tiranizante, diversíssima da democracia
parlamentar e sobretudo não inevitável, permitirá
dissolver a contradição principal do Antifascismo, que
existe entre o Antifascismo comunista e as restantes
formas antifascistas, e
efetivar uma unificação operacional gradativa
baseada em conteúdos políticos democráticos.
A ala liberal do Antifascismo se apoia sobre uma
interpretação superestrutural do fascismo, ao qual vê
como ditadura política e doença moral. O fascismo é
a explosão que de improviso e irracionalmente surge
de forças demoníacas que encarnam em regimes
despóticos.
Uma síntese entre estas duas posições foi tentada
por uma terceira corrente interpretativa, que podemos
definir, grosso modo, como radical. Essa corrente vê o
fascismo como a explosão violenta de germes latentes
de algumas sociedades nacionais, mais ou menos
deterministicamente imputá-veis às estruturas
tradicionalmente
autoritárias,
às
formas
antidemocráticas em que se atuou a unificação
nacional, à crônica fragilidade das instituições
representativas, etc. Esta última interpretação, por não
ser insensível aos problemas estruturais e à matriz de
classe do fascismo, inclina-se a considerá-lo como um
fenômeno patológico (como a posição liberal), mais
do que fisiológico (comunistas). Daí nasce que as
soluções dadas por liberais e radicais antifascistas
diferem substancialmente das- soluções dos
comunistas. Segundo eles, a sociedade capitalista é
mantida, mas suas estruturas políticas no quadro de
um retorno às liberdades políticas e à democracia
representativa sofrerão uma reforma de profundidade.
Além disso, através da intervenção racio-nalizadora
do Estado na economia, é possível eliminar as
desvantagens estruturais e os conflitos que originaram
o fascismo.
A fase de maior variação estratégica e tática entre o
bloco liberal-radical e o bloco comunista reflete um
período em que o perigo fascista não se tinha revelado
ainda em todo o seu alcance mundial. De
Antifascismo pode-se falar essencialmente só para a
Itália. A contradição entre fascismo e Antifascismo a
nível internacional é de somenos importância, tendo
em vista que foi há muito ultrapassada pela oposição
entre comunismo e anticomunismo. Esta oposição se
reflete exatamente nos vários setores do Antifascismo.
Para os comunistas, o derrube do fascismo deve
envolver grupos e movimentos, incluindo os
socialistas rotulados de social-fascistas, que parecem
constituir um sustentáculo e uma reserva dos regimes
fascistas. Por parte dos liberais e radicais, ao
contrário, comunismo e fascismo não são mais do que
species diversas de um mesmo genus: a ditadura
totalitária. Por isso, os dois são combatidos,
proporcionalmen'e, à sua incidência.
A chegada de Hitler ao poder traz para primeiro
plano, também a nível internacional, a contradição
fascismo-Antifascísmo. As novas dimensões do
perigo fascista determinam uma
ANTIFASCISMO
virada na tática da Internacional Comunista: o
fascismo é isolado como inimigo principal, no quadro
da busca de formas de aproximação do poder por
parte da classe operária. A palavra de ordem da frente
única e das frentes populares, da unidade de ação
popular contra o fascismo e a guerra, pela defesa das
liberdades democráticas, põe em andamento um
processo de agregação prática do Antifascismo tanto
na permanência da individualidade política como
ideal de cada um dos componentes que têm suas
primeiras manifestações na frente popular francesa e
na espanhola de 1936. A guerra da Espanha, de um
modo particular, é a prova geral da nova fase do
Antifascismo
internacional.
Nas
Brigadas
Internacionais, que ocorreram para combater em favor
da república espanhola, se realiza pela primeira vez a
ação unitária do Antifascismo democrático,
comunista, socialista anárquico, mesmo com
dolorosas divisões.
Se a chegada de Hitler ao poder e a virada
comunista permitem um salto qualitativo do
Antifascismo, a Segunda Guerra Mundial permite-lhe
atingir uma dimensão internacional e, nos paises
ocupados pelos exércitos hitlerianos, talvez uma
dimensão de massa. Entram no campo do
Antifascismo as democracias ocidentais, cujo
comportamento ambíguo e débil tinha de fato
favorecido a ascensão fascista. O Antifascismo
tradicional age dentro delas, para impedir novos
compromissos e capitulações, e determina a
intransigência final. Num nível diferente, em sintonia
ideal se não político-organizativa, o Antifascismo
organiza a mobilização popular e a luta de resistência
de cada um dos países ocupados. A resistência
européia, nas suas diversas formas nacionais,
representa a continuação e a extensão do Antifascismo
militante através da luta armada. Através desta, o
Antifascismo se tornou uma fórmula política operante
a nível mundial e a nível nacional, um cleavage, que
sobrepujou completamente, mesmo se de forma
provisória, o do comunismo-anticomunismo.
II. O ANTIFACISMO ITALIANO. — O aparecimento de
uma oposição espontânea ao fascismo na Itália é do
tempo das primeiras violências de grupos: as massas
trabalhadoras se organizam em defesa dos próprios
interesses econômicos e políticos e só a ação
combinada entre o squadrismo e o aparelho
repressivo do Estado e certas carências de liderança
política consegue dominá-las.
É exemplar, a propósito, a tentativa de organização
de uma oposição popular contra o squadrismo através
do Movimento degli arditi del popolo, uma oposição
popular armada para o par-
37
tidarismo, que vai à falência por causa da
desconfiança de todos os partidos políticos.
No campo das instituições partidárias e sindicais, o
Antifascismo italiano começa a conquistar um
mínimo de unidade, só muito tarde, depois da marcha
sobre Roma, e exatamente no momento da definição
de várias unidades políticas. É o delito Matteotti que
liquida as últimas ilusões normalizadoras que tinham
alimentado até então todos os setores políticos
adversos ao fascismo. O Aventino marca o momento
da plena e irrevogável ruptura entre o fascismo e os
partidos democráticos, ainda no âmbito da legalidade.
Mas já nesta fase há uma diferença marcante do
partido comunista, que vê no fascismo um
instrumento dócil da burguesia de tendência
antioperária, destinado a ceder lugar para uma
coligação contra-revolucionária baseada na socialdemocracia. É por isso que os comunistas contrapõem
ao Aventino legatário a proposta de greve geral, do
anti-parlamento e da mobilização das massas.
Com as leis de exceção (1926) se abre uma fase
nova do Antifascismo italiano. Há nele dois
componentes: um componente clandestino, da
conspiração nacional, pelo menos até 1929, de teor
meramente comunista e só depois apoiada pela
organização socialista-liberal "Giustizia e Liberta", e
um componente da emigração, ou, como já se disse,
de imigrantes políticos. Em ondas sucessivas,
abandona a Itália um grande número de quadros
políticos socialistas, comunistas, populares, liberais,
democráticos, anárquicos e republicanos, além de
uma enorme massa de trabalhadores, protagonistas da
resistência
espontânea
à
violência
armada
(squadrismo) e intolerantes da tirania fascista.
Na União Soviética, na França, Suíça e Estados
Unidos da América do Norte, são reconstituídos os
partidos políticos e formados grupos e organizações
antifascistas, cuja atividade política consiste
essencialmente numa campanha propagan-dística
permanente contra o regime de Mussolini. Esta
campanha foi realizada através de material impresso,
publicações, convenções e demonstrações. Na Itália, a
ação clandestina começou através de núcleos
antifascistas, a partir das prisões e das ilhas de
deportação. Começou, sobretudo, nas organizações
comunistas, com algumas ações de tipo anárquico e
gielista.
O Antifascismo militante continua, no entanto,
profundamente dividido, não só sobre questões
doutrinais, de análise e de estratégia, mas também
sobre o tipo de ação a pôr em prática: deve-se lutar no
exterior ou, de preferência, na Itália, deve-se
empregar uma ação de massa ou de grupos capazes e
ativos? A esta ação pluralista e caótica, o fascismo
responde com prisões e
38
ANTIFASCISMO
condenações do Tribunale Speciale, com a atividade
da polícia secreta — a OVRA —, com a provocação e
o assassinato político, como documentam os casos de
Amendola, Gobetti, Gramsci, Rosselli e de centenares
de antifascistas.
A esta oposição diretamente política se junta, na
Itália, uma oposição cultural, que tem seu pólo de
atração na figura de Benedetto Croce,. em cuja escola
se forma toda uma geração de intelectuais
antifascistas que acabaria, em parte, no An-tifascismo
militante. Centros de resistência moral e de oposição
cultural são igualmente as universidades, onde, nos
GUF, irá fermentando uma oposição que se
transformará em oposição aberta de grande parte da
intelectualidade. E não esqueçamos que também o
movimento católico tende amiúde a afirmar, com a
Ação Católica e com a FUCI, uma autonomia ideal
própria, se bem que atenuada e prudente.
As diretrizes do Comintern exigem dos comunistas
italianos que não participem daquele que foi o
primeiro organismo unitário do Antifascis-mo fora da
Itália: a Concentração Antifascista (1927), que reunia,
na França, o partido socialista (ainda dividido nas
facções maximalista e unitária, mas já perto da
reunificação), os republicanos e os membros da "Liga
dos Direitos do Homem" (organização decalcada na
sua congênere francesa). Foi necessário esperar a
virada do VII Congresso da Internacional Comunista,
de resto antecipada pelas pressões de massa em busca
da unidade e pelo pacto de unidade de ação entre
comunistas e socialistas, várias vezes renovado a
partir de 1934, para se registrar novo curso nas
relações entre os comunistas e os demais antifascistas.
O Antifascismo italiano se apresenta unido na frente
espanhola, onde obtém, em Guadalajara, a primeira
vitória militar.
A unidade de ação antifascista se amplia durante a
Segunda Guerra Mundial, estendendo-se a todos os
partidos antifascistas que se reconstituíram na Itália.
Surge o Comitê de Libertação Nacional (C.L.N.),
organismo que conduz a luta de libertação e tem seu
braço militar no Corpo de Voluntários da Liberdade.
A insurreição das cidades mais importantes do Norte
é o momento culminante: assinala o triunfo do
Antifascismo e marca o ponto final de uma época
histórica.
III. O ANTIFASCISMO DO PÓS-GUERRA AOS
NOSSOS DIAS. — A derrota do nazifascismo tira da
frente antifascista todas aquelas forças políticas, cujo
objetivo havia sido a eliminação da ditadura
mussoliniana e a restauração do parlamentarismo e
das liberdades políticas no quadro das antigas relações
sociais. Isso é favorecido pelo surgimento da guerra
fria entre os
blocos, situação que apresenta de novo como
fundamental a antítese comunismo-anticomunismo.
Daí se segue, no plano interno, o insucesso da
tentativa social-comunista de continuar a utilizar o
Antifascismo como fórmula política, que serviria de
base na construção de um regime de democracia
progressiva. Entretanto, o Antifascismo continua
sendo, nos anos seguintes, um dos fundamentos da
estratégia dos comunistas italianos: se o fascismo é o
fruto do enxerto das novas formas da exploração
capitalista e monopólica no terreno tradicional do
domínio e da opressão feudal, a revolução antifascista
coincide com a transformação democrática das
estruturas que geraram o fascismo e que tendem a
reproduzi-lo constantemente.
Nas décadas de 50 e 60, a opção antifascista
reveste, no entanto, um papel politicamente marginal,
mesmo que o Antifascismo italiano pareça recobrar
uma função e uma capacidade autônoma de
mobilização por ocasião da tentativa de Tambroni de
formar um Governo clérico-fascista. Nas sangrentas
demonstrações de julho de 1960, surge uma nova
geração antifascista (os "jovens das camisetas
listradas"), ao lado dos veteranos do Antifascismo e
da resistência.
A "negra intriga" que representou o fascismo não
parece, contudo, ter sido totalmente extirpada da
sociedade italiana. Por volta dos anos 70, torna a
apresentar-se em resposta às pressões mo-dernizantes
e democratizantes dos operários e estudantes, levadas
a efeito no fim da década. O regurgitamento fascista
apresenta então uma tríplice face: uma face legalista e
honesta que obtém sólido consenso eleitoral nas
eleições administrativas parciais de 1971; uma face
eversiva e populista, alimentadora, principalmente no
Sul, de tentativas de insurreição que adquirem, como
em Reggio Calábria, um caráter de massa; e, enfim, a
face terrorista dos atentados e da matança de massa,
que constitui a forma predominante do neofascismo
na década de 70 e que faz os seus ensaios na Piazza
Fontana, em Bréscia, com o Ita-licus, e em Bolonha.
A esta articulação da ação neofascista consegue o
Antifascismo italiano opor uma mobilização constante
na defesa das instituições e uma ação sutil e tenaz
tendente a isolar e conter o movimento eversivo.
Aparece nestas circunstâncias uma terceira geração
antifascista, de origem operária e estudantil, também
ela, aliás, dividida entre duas hipóteses estratégicas: o
elemento ligado aos partidos da esquerda histórica
visa à desagregação do bloco reacionário que nutre o
neofascismo e reivindica um conjunto de reformas
econômicas e políticas capaz de lhe minar as bases
sociais; a parte mais radical do novo Antifascismo
contrapõe a necessidade da
ANTI-SEMITISMO
autodefesa e da criação de uma alternativa
revolucionária no país que se aprimore nas lutas
sociais e anti-institucionais.
39
hostilidade para com um mesmo povo, deve haver
qualquer fator unificante, ligado à condição hebraica,
que explique a convergência de ódios e perseguições,
de origens variadas, sobre esse povo. Colocando de
lado as explicações de ordem religiosa ou
BIBLIOGRAFIA. – L’antijascismo italiano, a genericamente sociológicas, tal fator é hoje
cuidado de P. ALATRI. Editori Riuniti, Roma 1961; G. identificado com a colocação econômica — e por
AMENDOLA, Comunismo, anlifascismo. resisienza. conseqüência social — dos hebreus através da história.
Editori Riuniti, Roma 1967; Id., Inlervisia Como observa A. León, num ensaio sobre a questão
suWantifascismo, Laterza, Bari 1976; N. BOBBIO, hebraica, juntamente com a tradicional dicotomia da
Democrazia e ditlaiura. in Política e cultura. Einaudi, condição hebraica — povo e religião — deve ser
Torino 1955; L'Itália antifascista dal 1922 al 1940. ao considerado um terceiro fator: terem sido os hebreus,
cuidado de S. COLARIZZI. Laterza. Bari 1976; durante muitos séculos, também uma classe social,
Lantijascismo in Itália e in Europa. 1922-1939. ao primeiro de comerciantes, e de comerciantes e
cuidado de E. GoLLOTTi, Loescher, Torino 1975; R. usurários depois. Este fenômeno caracteriza um povo,
DE FEIJCT. Le interpretazioni del fascismo. Laterza. que é ao mesmo tempo uma classe social. Não é um
Bari 1953; Fascismo e antijascismo neWItália caso único na história da humanidade. Basta pensar,
repubblicana. ao cuidado de G. QUAZZA. Stampatori, por exemplo, no papel da burguesia urbana
Torino 1976.
desenvolvido pelos alemães nos países eslavos e
bálticos, ou na colocação atual dos parses da índia, ou,
[SlLVANO BELLIGNI] para citar casos mais próximos do hebreu, na função
comercial dos chineses do Sudeste asiático ou dos
sírios e libaneses em diversas regiões da África e da
América meridional. A colocação histórica dos
Anti-semitismo.
hebreus como povo-classe explica, de uma parte, a
freqüência
de
conflitos
e
perseguições
I. CONCEITO E DEFINIÇÃO. — O conceito de Anti- superficialmente atribuídas a fatores religiosos ou
semitismo pode parecer suficientemente claro de ocasionais, mas na realidade derivada de efetivos
modo a tornar supérflua uma definição. Na realidade, contrastes de interesses no campo econômico e, de
se em sentido puramente lingüístico não pode haver outra parte, como na Europa dos séculos XIX-XX,
dúvida sobre o significado da palavra — "hostilidade, embora já menos importante os motivos de real
em relação aos hebreus" —, no campo histórico, o conflito econômico, a posição dos hebreus como
termo foi e é aplicado a fenômenos inteiramente componente ainda não "assimilado" pela sociedade foi
diferentes. Na verdade, não se pode considerar, de utilizada para desviar a atenção de tensões sociais
modo unitário, o Anti-semitismo antigo e medieval e o derivadas de outros fatores bem complexos e muito
Anti-semitismo moderno, que se desenvolve a partir diferentes. O Anti-semitismo não pode, portanto, ser
da segunda metade do século XIX, em relação com o considerado como um fenômeno histórico unitário, a
nascimento do nacionalismo. Ainda, à parte, devem menos que não se limite a validade do termo ao Antiser colocadas as correntes anti-semitas que surgiram semitismo em sentido próprio, isto é, aquele
em alguns países após a Segunda Guerra Mundial, movimento particular surgido na segunda metade do
como é o caso da URSS, Estados árabes, conhecidos século XIX, que culminou depois com as perseguições
por suas manifestações de hostilidade para com Israel. hitlerianas, e que apresenta conotações precisas e
Trata-se, de fato, de fenômenos bem diversos, que ligações claras com outros fenômenos históricos
partem de causas econômicas e sociais bem distantes contemporâneos (nacionalismo, imperialismo, etc.).
entre si. Neste contexto, mais do que Anti-semitismo, Uma extensão arbitrária do conceito não pode levar
seria mais correto falar dos Anti-semitismos através da senão a erros de interpretação e a distorções da
história. A tentativa de considerar o Anti-semitismo perspectiva. Ainda hoje, é pouco claro o significado
como um fenômeno unitário ou como uma categoria preciso do termo Anti-semitismo. Nos últimos anos,
universal só pode levar-nos a conclusões a-históricas e depois da guerra árabe-israelense de 1967, em muitas
aberrantes deste tipo: quase que entre as características fontes de informações, mesmo hebraicas, pôde-se
dos hebreus estariam inseridos fatores que determinam assistir a freqüentes casos de confusão — algumas
a perseguição a eles; pesa sobre eles uma "maldição", vezes interessada — entre conceitos substancialmente
e coisas do gênero.
diversos, como o Anti-semitismo, o
Dito isto, não pode fugir à observação do
historiador o fato de que, se diversas comunidades,
em diversos países, épocas e circunstâncias sócioeconômicas, desenvolveram movimentos de
40
ANTI-SEMITISMO
anti-sionismo e a oposição à linha política do
Governo judeu.
Ocorre esclarecer aqui, para desfazer esta
confusão, que se deve entender por Anti-semitismo
apenas a hostilidade direta contra os hebreus
considerados como comunidade complexa, nas suas
conotações étnicas de povo e de religião. De outro
lado, não podem ser consideradas como
manifestações de Anti-semitismo, por exemplo, a luta
econômica levada a cabo, na Idade Média, por um
banqueiro cristão contra um banqueiro hebreu, ou a
tentativa de dissuadir alguém de aderir à religião
hebraica verificada na União Soviética pósrevolucionária, no quadro da campanha geral contra a
religião que foi dirigida também contra outras
confissões. Do mesmo modo, não podem ser
consideradas como anti-semitas aquelas posições —
como a oposição à política israelense ou ao
movimento sionista — que, mantendo-se no terreno
da crítica política, são dotadas daquela "legitimidade"
moral — prescindindo de qualquer juízo sobre sua
validade — que falta aos fenômenos aberrantes e
repugnantes do Anti-semitismo e do racismo.
II. O ANTI-SEMITISMO ATÉ O SÉCULO XIX.
— Se quisermos definir uma periodização da história
do Anti-semitismo, devemos, antes de tudo,
subdividir esta em duas grandes fases principais. A
primeira, que vai da Idade Antiga até o século XIX, é
caracterizada pelo fato de que o Anti-semitismo
afunda suas raízes na posição sócio-econômica
particular dos hebreus, que são conhecidos na
sociedade como dotados de uma particular função
econômica ou, pelo menos, de uma colocação
bastante precisa. A segunda, que compreende, grosso
modo, o período de 1850-1950, desenvolve-se nos
países ocidentais no período da rápida assimilação
econômica e social dos hebreus, e toca seu ápice
quando estes se transformaram num dos componentes
perfeitamente integrados da sociedade. Se estas são as
características de fundo da posição hebraica, nas duas
grandes fases da história do Anti-semitismo, uma
outra diferença entre as duas épocas é dada pela
superestrutura ideológica (ou "cultural", se de cultura
se pode falar a propósito) que reveste o Antisemitismo nos dois períodos: no primeiro, a partir do
século IX d.C, o Anti-semitismo se recobre
geralmente de motivações religiosas; no segundo, é o
aspecto étnico e racional que sobressai.
Contrariamente à opinião durante certo tempo
difundida, a dispersão dos hebreus teve início muito
antes da queda de Jerusalém (ano 70 d.C); alguns
séculos antes da era vulgar, núcleos de comerciantes
hebreus se fixaram nos maiores
centros urbanos do império persa. No século I d.C, na
época da destruição do Templo, comunidades
florescentes se acham já em numerosas cidades,
sobretudo em Roma e Alexandria. Dedicadas
provavelmente ao comércio, estas comunidades
cumprem importante função econômica. São, por isso,
não somente toleradas, mas até freqüentemente
protegidas pelas autoridades imperiais. Em Roma e
nas principais cidades do Ocidente, o Anti-semitismo
está, por isso, pouco difundido. Até porque a natureza
tolerante do paganismo e a estrutura multinacional do
império impedem o surgimento de hostilidades de tipo
religioso e racial. Pouco freqüentes, a nível de massa,
as atitudes de antipatia ou de desprezo para com os
hebreus aparecem, todavia, uma vez ou outra, entre as
classes superiores ou nas camadas intelectuais. Tratase de um Anti-semitismo que se enraíza nas antigas
tradições agrícolas da sociedade romana e no
conseqüente desprezo pelas atividades mercantis;
desprezo que nasce, por sua vez, de um profundo
antagonismo econômico entre produtores de bens e
comerciantes, que se apropriam de uma parte destes
bens, mas que são também necessários à sociedade e
por isso mesmo inelimináveis. Também a atitude
nacionalista dos hebreus e o seu proselitismo, diferenciando-os do tradicional comportamento dos outros
povos assimilados no império, que se reconhecem
súditos do mesmo e mantêm a própria religião sem
porém procurarem estendê-la a outros, choca a
mentalidade cosmopolita dos romanos, suscitando
reações de hostilidade. Parcialmente diversa é a
situação nas regiões heleni-zadas do Oriente e
sobretudo em Alexandria, onde a proteção concedida
pelo Governo imperial à comunidade hebraica
determina, em várias circunstâncias, movimentos antisemitas de mais vastas proporções.
No século IV d.C, o cristianismo torna-se religião
oficial do império. A atitude tolerante do paganismo
cede lugar a uma política asperamente confessional,
voltada para a afirmação forçada da religião de
Estado; multiplicam-se as leis e as disposições
tendentes a discriminar aqueles que professam outras
confissões. Os hebreus são postos em condições de
absoluta inferioridade jurídica e privados de todo o
direito civil; e em tal status permanecerão durante
toda a Idade Média e a Idade Moderna até a
emancipação. O Anti-semitismo assume, nesta época,
um dos seus componentes ideológicos fundamentais:
o componente religioso, fundado sobre a aversão à
"obstinação" hebraica de não reconhecer o advento do
Messias e sobre a acusação de "deicídio", que começa
a ser dirigida aos hebreus. Também o antigo desprezo
das classes superiores romanas
ANTI-SEMITISMO
pelas profissões mercantis é recebido pelo
cristianismo. Todavia, apesar do absoluto predomínio
ideológico da Igreja, os séculos da decadência do
império romano e da alta Idade Média são, para os
hebreus, uma época de desenvolvimento e de
prosperidade. As comunidades hebraicas são
discriminadas, mas ao mesmo tempo toleradas, e —
dentro de certos limites — protegidas de abusos
mediante uma precisa regulamentação jurídica.
Diferentemente dos pagãos — aos quais se exige uma
rápida assimilação —, aos hebreus é consentido
conservar os próprios costumes e a própria religião,
enquanto a freqüente repetição das mais ásperas
medidas vexatórias deixa supor que a sua aplicação
fosse geralmente mais branda. Com efeito, o quase
total desaparecimento da economia de mercado e a
virada para o autoconsumo durante a época feudal
tornam a função comercial dos hebreus de
grandíssima importância. Nos tempos de Carlos
Magno, o comércio entre Ocidente e Oriente é
monopolizado de uma forma quase absoluta pelos
hebreus. Nesta época, na verdade, se verifica, para
eles, a máxima prosperidade. Únicos a disporem de
reservas monetárias, podem também começar a
associar à atividade de troca a atividade de
empréstimo: tanto que, bem rapidamente, a sua
presença é considerada, em toda a Europa ocidental,
como indispensável. O Anti-semitismo é por isso,
durante toda a alta Idade Média, pouco difuso: algum
episódio é gerado pelo desejo dos nobres se
apoderarem das riquezas dos hebreus e de algumas
outras circunstâncias ocasionais.
Com o século XII, a situação começa a mudar.
Primeiro, na Flandres e na Itália, e depois noutros
países, as atividades comerciais refloresceram. Os
hebreus perdem o monopólio do comércio europeu e
são relegados para posições secundárias. Não são mais
indispensáveis à sociedade como em séculos
anteriores; a sua posição sofre um brusco
deterioramento; a antiga hostilidade latente na
nobreza, que vê nos hebreus aqueles que se apropriam
de uma parte de seus bens, pode agora ser
desencadeada completamente; multiplicam-se, por
isso, nesta época, os atos de saque e de espoliação de
senhores. Contemporaneamente, desenvolvem-se
novos antagonismos: a burguesia nascente pressiona
no sentido de uma total eliminação dos hebreus do
comércio; as Cruzadas, que marcam para esta classe
uma importante etapa de desenvolvimento,
constituem, ao mesmo tempo, a primeira grande
manifestação de Anti-semitismo medieval.
Afastados progressivamente dos grandes tráficos
internacionais, os hebreus devem voltar ao pequeno
comércio e sobretudo à usura. Aquela que
inicialmente era apenas uma atividade
4!
complementar tornou-se agora uma das principais
fontes de sustentação; e enquanto nos séculos da alta
Idade Média os empréstimos hebreus eram
destinados, em grande parte, ao financiamento do rei
e da nobreza, agora se desenvolve o pequeno
empréstimo, concedido ao camponês e à arraia miúda
das cidades. Este fato leva ao rápido deterioramento
das relações entre hebreus e o povo, que vê,
erroneamente, neles, a causa da própria miséria;
especialmente na Alemanha se radica, nesta época, na
mentalidade popular, um tenaz Anti-semitismo, que
explica como em 1348-1350, durante a epidemia da
peste negra, os hebreus. acusados de envenenar os
poços, foram vítimas de massacres e ferozes
perseguições. Em conflito com todas as classes
sociais, os hebreus vivem nos últimos séculos da
Idade Média um dos momentos piores da sua história;
na Itália, a situação parece menos má do que em
outros países, mas também aí se multiplicam as
restrições e medidas discriminatórias. A obrigação de
um distintivo, já ordenado pelos países islâmicos para
todos os "infiéis", é decretado pelo IV Concilio de
Latrão, em 1215, para os hebreus, e mais tarde
adotado pelos Estados italianos, no século XV.
Depois de terem sido afastados do grande
comércio, os hebreus vêem piorar, ulteriormente, a
própria situação com o desenvolvimento das
atividades
bancárias
(séculos
XIV-XV).
Marginalizados
também
das
atividades
de
empréstimos, perdem de fato, toda a função
econômica específica. Sua presença não parece
justificada aos olhos dos governantes, que decretam
sua expulsão em muitos países da Europa: Inglaterra
em 1290, França em 1306, e 1394, Espanha em 1492,
etc. Na Itália, os hebreus são expulsos da Sicília e da
Sardenha em 1492, do reino de Nápoles no período de
1510-1541, dos Estados Pontifícios, à exceção de
Roma e Ancona, em 1569 e 1593. Apenas na
Alemanha e na Itália do Norte podem permanecer
núcleos conspícuos de hebreus.
A sua situação econômica e jurídica é
notavelmente piorada. Relegados agora, com poucas
exceções, para o pequeno comércio e para o
empréstimo penhorado junto dos estratos mais pobres
da população, segregados nos guetos que são
instituídos neste tempo, os hebreus, que permanecem
no Ocidente, ficarão, até no século XVIII, em
condições de miséria e degradação, enquanto a
forçada separação da comunidade cristã, a restauração
religiosa desejada pela contra-reforma e a ação de
numerosos frades pregadores contribuem para
enriquecer de novos temas o repertório dos lugarescomuns anti-semitas.
A maior parte dos hebreus, como se viu, é obrigada
a abandonar a Europa ocidental depois das expulsões.
As principais metas de emigração
42
ANTI-SEMITISMO
são aqueles países onde o feudalismo ainda se
conserva ou o desenvolvimento comercial não entrou
ainda: Turquia, Rússia e a Polônia, sobretudo. Aqui,
os hebreus podem retomar suas antigas funções
mercantis e financeiras e alcançar um discreto grau de
segurança e prosperidade. As camadas burguesas, que
ensaiam os primeiros passos, não estão em condições
de se tornar um grupo antagonista; as tentativas da
nobreza de, pela violência, fugir aos pesados encargos
financeiros que a ligam aos emprestadores de dinheiro
são contidas pela Coroa, que protege os hebreus,
vendo neles uma importante fonte de renda; as
relações econômicas entre o povo e os hebreus são
ainda escassas. O Anti-semitismo na Polônia dos
séculos XV-XVI tem, por isso, um caráter meramente
ocasional e episódico.
A situação começa a piorar no século XVII,
quando o capitalismo inicia sua penetração na Europa
oriental, ao mesmo tempo que o poder régio
enfraquece, deixando os hebreus expostos aos
vexames da nobreza. Nesta época, muitos hebreus
abandonam a atividade independente e se tornam
administradores dos bens dos nobres. Mas entram
assim em choque com os camponeses, que vêem neles
o instrumento de sua exploração por parte dos
proprietários de terras. O Anti-semitismo adquire
então uma nova força e virulência; enquanto isso, as
condições econômicas dos hebreus se tornam sempre
mais precárias, após a crise geral polonesa e a
expulsão das atividades comerciais e de empréstimo,
que, à semelhança do que havia acontecido na Europa
ocidental alguns séculos antes, começa a verificar-se,
em concomitância com a decadência do feudalismo.
No século XIX, abandonando uma Polônia em
esfacelamento, numerosos hebreus retornam ao
Ocidente; para ali os seguirá uma outra maciça
corrente de emigração proveniente da Rússia cza-rista.
As comunidades da Áustria, França, Alemanha e
Estados Unidos adquirem rapidamente uma nova
dimensão e importância, criando as condições para o
nascimento do Anti-semitismo moderno.
III. O ANTI-SEMITISMO MODERNO. — Na segunda
metade do século XIX, os hebreus da Europa
ocidental se acham em condições profundamente
diversas das dos séculos precedentes. Emancipados no
plano jurídico, gozam agora dos mesmos direitos dos
outros cidadãos e têm a possibilidade de exercer
qualquer profissão. De fato, uma grande percentagem
de hebreus se dedica a atividades comerciais, onde sua
presença na área ainda é maciça, especialmente na
Áustria e na Alemanha, ou intelectuais. Nenhuma
profissão, porém, é monopolizada por eles. Os
hebreus não exercem mais
uma função específica e exclusiva; não são mais um
povo-classe; não se pode falar mais, a propósito desta
época, de reais contradições econômicas entre
hebreus, entendidos como corpo complexo, e outra
classe ou setor da sociedade. Mas, paradoxalmente,
exatamente no momento em que todo o antagonismo
real caiu, a falta de uma função específica na
economia torna os hebreus não absolutamente
necessários à sociedade: a sua eliminação, que na
Idade Média ou na Polônia feudal teria sido
indispensável, pode agora ser discutida e proposta de
forma concreta. O Anti-semitismo moderno nasce e se
desenvolve como fenômeno pequeno-burguês. O
crescimento da grande indústria e as crises
econômicas interdecorrentes colocaram a pequena
burguesia num estado de perene insegurança; entre os
estratos inferiores (artesãos, pequenos comerciantes),
numerosos são os casos de proletarização e de
desqualificação econômica e social. Nestas
circunstâncias, a entrada no mercado de trabalho dos
hebreus — tradicionalmente dedicados a profissões de
tipo pequeno-burguês —, que se realiza através da
assimilação das comunidades hebraicas do Ocidente e
da contemporânea emigração maciça da Europa
oriental, é sentida pela pequena burguesia como um
novo e perigoso ataque ao próprio status; cria-se
assim um terreno fértil para o desenvolvimento do
Anti-semitismo, graças ao fato de que as novas teorias
do NACIONALISMO (v.) e do racismo, afirmando a
natureza ética e não territorial da comunidade
nacional, consentem em considerar os hebreus como
um corpo estranho e potencialmente eliminável. Na
realidade, as posições anti-semíticas da pequena
burguesia não nascem de uma clara visão da situação
econômica real: ao temor imediato da concorrência
profissional se juntam considerações irracionais,
ilusórias esperanças de identificar num inimigo fraco e
facilmente suprimível as causas da própria situação
precária e de conseguir, assim, de modo relativamente
simples,
um
impossível
resgate.
Disposta
potencialmente ao Anti-semitismo, a pequena
burguesia, porém, não estava em condições, pelas
próprias características de classe, de organizar
autonomamente ações maciças neste sentido. Mas,
neste ponto, entram em jogo outras forças sociais: os
grupos dirigentes, tanto políticos como industriais,
além de grupos de extrema, compreendem a
importância que pode ter o Anti-semitismo como
objetivo capaz de desviar a atenção para as tensões da
classe pequeno-burguesa e potencialmente do próprio
proletariado; esforçam-se, por isso, em apoiá-lo e
generalizá-lo. Em seu flanco, cabe toda uma multidão
de intelectuais qu';, condicionados também por essa
situação de irse-gurança e precariedade, e pelo temor
da
ANTI-SEMITISMO
concorrência hebraica, se prestam a dar uma cobertura
"cultural" ao movimento anti-semita.
Na idade do progresso técnico e do positivismo,
por outra parte, tal cobertura não pode ser mais de tipo
religioso ou irracionalista. O Anti-semitismo se cobre,
por isso, de vestes "científicas": as teorias do RACISMO
(V.), elaboradas por von Treitschke, Gobineau,
Chamberlain e numerosos epígonos, prestam-se
perfeitamente para ser utilizadas como sustentação
teórica. Com estes fundamentos sócio-econômicos e
"culturais", o Anti-semitismo se desenvolve na
Alemanha depois da crise econômica de 1873, para
atingir seu ápice por volta de 1880-1881; após isso,
porém, a sua importância foi diminuindo, pouco a
pouco, embora ficasse como sentimento latente no
espírito de muitos alemães. Também na Áustria, onde
as idéias anti-semíticas foram levantadas como parte
integrante do programa do partido social-cristão,
depois da subida ao poder (1895), se assiste a uma
moderação do Anti-semitismo. E assim, na própria
França, após as tensões suscitadas no final do século
pelo caso Dreyfus, o Anti-semitismo volta a assumir
uma posição inteiramente marginal. Nos anos que
precederam a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o
Anti-semitismo perdeu muito da sua importância no
cenário político da Europa ocidental e pareceu não
poder constituir uma ameaça real. Diversa é, porém, a
situação nos países da Europa oriental (Rússia,
Polônia, Romênia), onde as novas teorias do novo
"racismo científico" podem inserir-se num fundo de
Anti-semitismo popular ainda largamente difun dido.
A incompleta penetração do capitalismo naquelas
regiões e o forte espírito nacional, em sentido étnico,
das populações eslavas e balcânicas mantêm, na
verdade, os hebreus em posição separada, permitindo
a sobrevivência de formas de Anti-semitismo
herdadas, sem solução de continuidade, dos séculos
precedentes. Na Rússia, além disso, o Anti-semitismo
é conscientemente encorajado pelo Governo czarista
como instrumento para apartar as massas populares
dos seus reais problemas.
Depois de 1918, uma gravíssima crise, que não é
apenas econômica, se abate sobre a Alemanha. O
rancor das camadas médias arruinadas e dos
ambientes militares desocupados e humilhados
procura, de qualquer jeito, uma via de escape. Milhões
de pessoas, durante tantos anos confiantes na
invencibilidade das armas alemãs, não podem
convencer-se, agora, da derrota. Começa a divulgarse, pouco a pouco, a absurda suspeita de que a guerra
foi perdida, não por demérito do exército nacional,
mas por obscuras conjuras internas e internacionais:
as latentes tradições anti-semitas do povo alemão
refloresceram para
43
acreditar na idéia de que foi o capitalismo
internacional hebreu o verdadeiro artífice da derrota.
Nestas circunstâncias, o partido nacional-socia-lista,
que acabava de nascer e que era dirigido por Hitler
desde 1921, compreendeu a importância de ligar seu
sucesso à incrementação do movimento anti-semita.
Com o ecletismo demagógico que distingue todos os
movimentos fascistas, Hitler encoraja os sentimentos
anti-semitas das massas germânicas, dirigindo-se tanto
às camadas superiores (em que cria lampejos de
equivalência
entre
hebraísmo,
marxismo
e
materialismo, lembrando a própria presença de
numerosos hebreus entre os principais teóricos e
ativistas do movimento comunista) como ao
proletariado (aproveitando a tendência anticapitalista
desta classe social, para movê-la contra a "plutocracia
hebraica", favorecido que ficava pela persistência da
antiga imagem dos hebreus como detentores do poder
do dinheiro entre o povo) e à pequena burguesia, que
procurava um ideal em que novamente acreditasse. O
nazismo obtém, assim, uma ampla credibilidade, que
explica sua rápida ascensão; e o Anti-semitismo tornase, após a tomada do poder, norma de lei, na
Alemanha. As condições dos hebreus se agravam
sempre mais; com o início da Segunda Guerra
Mundial e o avanço do exército nazista, teve início o
extermínio sistemático das comunidades hebraicas da
Europa.
Fora da Alemanha, o Anti-semitismo não atinge,
em nenhum país europeu, no período entre as duas
guerras, dimensões de massa. Somente na Polônia, na
Hungria e na Romênia, o peso das tradições antigas,
revigoradas com a penetração das idéias do racismo
alemão, explica uma certa divulgação dele. Mesmo na
Itália, o Anti-semitismo adquire importância com as
leis racistas de 1938, como conseqüência das estreitas
relações com a Alemanha hitleriana, mas não
consegue, apesar dos esforços da propaganda fascista,
difundir-se entre a população, que permanece
inteiramente estranha, quando não abertamente hostil,
às teorias racistas.
É diferente a situação nos Estados Unidos, onde
uma maciça imigração cria, nos anos que antecederam
a Primeira Guerra Mundial, a maior comunidade
hebraica do mundo. Como reação a tal imigração,
difundem-se sentimentos anti-semitas, com certa
amplitude, entre a população; à semelhança, de resto,
do que aconteceu em outras comunidades nacionais,
que encontram as mesmas dificuldades de integração
na sociedade americana. Embora sem atingir o nível
de dramatici-dade da situação alemã, o Antisemitismo exerce uma certa influência no mercado de
trabalho, onde os hebreus são freqüentemente
discriminados; os períodos de maior virulência são os
anos
44
ANTI-SEMITISMO
de 1920-1924, quando a própria Ku Klux Klan inclui
a luta anti-hebraica nos seus programas e Henry Ford
desencadeia, em seus órgãos de imprensa, uma
violenta campanha anti-semita, e os que se seguiram à
grande crise de 1929, como conseqüência do pânico
difundido nas camadas médias da população e de uma
certa penetração de idéias propaladas por pequenos
grupos nazi-fascistas. Um duro golpe contra o Antisemitismo foi dado ao acentuarem-se as perseguições
na Alemanha, as quais desviaram, para os hebreus, a
simpatia de larga parte da opinião pública americana.
Fenômeno diverso no que respeita ao Antisemitismo europeu e americano é a supressão da
cultura yiddish na União Soviética nos anos 40, após
o viçoso desenvolvimento do qüindênio precedente.
Na raiz dos decretos da desnacionalização lançados
contra os hebreus e contra outros povos (os calmucos,
os tártaros da Criméia e os alemães do Volga) não
estão, na verdade, contradições de natureza
econômica, mas considerações de "segurança
política", que revelam entretanto — na visão da
responsabilidade coletiva dos povos — estreitas
ligações com a mentalidade do nacionalismo europeu.
A inclusão dos hebreus na lista dos povos
"potencialmente subversivos" foi explicada com a
suspeita suscitada na roda de Governo de Stalin pelas
"tendências cosmopolitas" dos hebreus e por suas
pretensas ligações com os meios ocidentais.
IV. O ANTI-SEMITISMO HOJE. — O Anti-semi-tismo
é hoje um fenômeno socialmente pouco relevante na
Itália. O escasso número de hebreus, a sua perfeita
assimilação à estrutura econômica nacional e a
conseqüente e total ausência de grupos sociais ou
profissionais especificamente hebraicos, e ainda a
lembrança das perseguições hitlerianas, faz com que
nas regiões onde estão difundidos preconceitos
racistas, como em algumas cidades do Norte, em
relação às regiões do Sul, o Anti-semitismo seja quase
ausente e os hebreus e o Estado de Israel gozem de
uma certa simpatia. O aparecimento ocasional de
escritos e de publicações anti-semitas, por parte da
extrema direita, é condenado pela imensa maioria da
opinião pública.
Entre os países da Europa ocidental, as maiores
comunidades hebraicas se acham na França e na GrãBretanha. Aqui, a exposição sobre o Anti-semitismo
se coloca em dois planos: a nível de-massa,
preconceitos anti-hebraicos não desapareceram de
todo ainda, mas não constituem um problema
importante; por outro lado, o Anti-semitismo ativo é
sustentado por pequenos grupos de extrema direita,
como acontece na Itália, que
têm apoio mínimo, encontrando, de uma forma geral,
o repúdio da população. As tendências racistas, ainda
bem presentes na sociedade européia, acham
efetivamente maior desafogo quando voltadas para os
imigrantes estrangeiros, especialmente árabes (na
França) e africanos, indianos ou do Caribe (na
Inglaterra); os mesmos grupos de extrema direita
julgam agora mais "rentável" voltar as próprias
campanhas nacionalistas e racistas contra estes
últimos do que contra os hebreus. Mesmo até nos
Estados Unidos, as tendências racistas se dirigem, de
preferência, não contra os hebreus, mas contra os
negros e porto-riquenhos, muito mais expostos, por
sua posição social, à hostilidade da população. A
larga difusão da mentalidade racista faz todavia com
que o Anti-semitismo, mesmo sem alcançar
habitualmente
proporções
de
verdadeira
dramaticidade,
esteja
bastante
enraizado,
especialmente em Nova York, onde tem sede a mais
numerosa comunidade hebraica do mundo.
Na União Soviética, os órgãos de imprensa
desenvolvem uma ativa e por vezes violenta
campanha contra o sionismo e a linha política do
Governo de Israel, preocupando-se constantemente
em distinguir a própria posição do Anti-semitismo
que é decididamente condenado. Ao nível de massa,
todavia, tal distinção não é fácil e evidente, até porque
os hebreus nos Estados multinacionais do Leste
europeu sempre foram considerados como uma nação
(em sentido étnico). A mentalidade anti-semita
tradicional, além disso, não foi completamente
extirpada. E isto, não só pelas profundas raízes
históricas que o Anti-semitismo tem em toda a Europa
oriental, mas também como conseqüência da
permanência na sociedade soviética de tensões e de
desequilíbrios sociais ainda não inteiramente
resolvidos, e por causa de uma incompleta realização
da democracia socialista, a nível geral. Verificam-se
por isso, hoje, na União Soviética, episódios
ocasionais de Anti-semitismo, reprimidos de maneira
tépida pelas autoridades, especialmente locais, talvez
ainda influenciadas por suspeitas de "internacionalismo" hebraico.
Nos países árabes, e, por extensão, em alguns
países africanos, o conflito com Israel fez com que
surgissem atitudes anti-semitas, de tipo geralmente
não racial, seja a nível oficial, seja a nível popular. A
situação de extrema tensão política e a escassa
informação das massas faz com que a distinção entre
hebreus (como povo) e Israel (como Estado) seja
imperfeitamente entendida, ainda porque parece
evidente a solidariedade com Israel por parte das
comunidades hebraicas da diáspora. O recurso a
argumentos anti-semitas como instrumento de
propaganda, por parte de organizações
ANTROPOLOGIA POLÍTICA
árabes e palestinas, se explica também pela
imaturidade política e pela falta de uma visão clara de
classe de algumas organizações, fato que de resto se
traduz em outros métodos "retrógrados" de luta (como
o terrorismo).
Na África do Sul, país racista por excelência, onde
vivem mais de cem mil (100.000) hebreus, a situação
destes últimos é bastante satisfatória, malgrado as
simpatias filogermânicas de muitos afrikaners durante
a última guerra mundial e a posição declaradamente
anti-semita assumida pelo partido racionalista do
mesmo período. Depois da ascensão dos nacionalistas
ao poder, na verdade, razões de política interna
(aversão pelo Anti-semitismo de boa parte da opinião
pública, penetração dos hebreus na burguesia urbana
de raça branca) sugeriram o abandono de toda a
tentativa de discriminação anti-semita. Também na
América Latina, malgrado a atividade de alguns
grupos marginais de nazistas no período imediato à
Segunda Guerra Mundial, o Anti-semitismo não
vingou entre a população.
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marxismo e la questione ebraica. antologia ao cuidado
de M MASSARA. Teti, Milano 1972; G. MAYDA. Ebrei
sotto So/§. La persecuzione antisemita 1943-1945,
Feltrinelli. Milano 1978; L. POLIAKOV, Storia
deli'antisemitismo: I. Da Cristo agli ebrei di corte
(1955), La Nuova Itália, Firenze 1975; II. Da
Maomelto al Marrani (1969), U Nuova Itália, Firenze
1975; III. Da Voltaire a Wagner (1968). La Nuova
Itália, Firenze 1976; E. SARACINI. Breve storia degli
ebrei e deli antisemitismo, Mondadori, Milano 1977.
[SANDRO ORTONA]
Antropologia Política.
I. DEFINIÇÃO F. OBJETIVOS DA DISCIPLINA. — A
Antropologia política é uma especialização recente da
antropologia social. A pesquisa antropológica sempre
tinha considerado o fato político
45
como um sistema de relações derivado e, por esse
motivo,
tomara-o
em consideração
apenas
marginalmente. Foi do exame das estruturas sociais
que nasceu, recentemente, o interesse que privilegia o
estudo dos sistemas políticos primitivos. Como
disciplina, a Antropologia política quer reconhecer e
examinar empiricamente a natureza dos sistemas e das
combinações políticas, a fim de descobrir quais sejam,
na realidade, os princípios que regulam as relações
internas e externas dos membros das comunidades
políticas diversas daquelas que nos são familiares. A
Antropologia política rejeita tanto a filosofia política
quanto a ciência política tradicionais, confinadas
dentro da perspectiva "eurocêntrica". A Antropologia
política não deseja elaborar abstrações, mas estudar as
instituições políticas com método científico que seja,
ao mesmo tempo, indutivo e comparativo e tenda, em
primeiro lugar, a explicar a uniformidade e a diferença
entre as instituições e a sua interdependência em
relação às outras formas de organização social.
A Antropologia política se coloca em polêmica
contra a maior parte das teorias políticas centradas
sobre o conceito de Estado e fundadas sobre uma
noção unilateral de Governo das sociedades humanas.
O primeiro objetivo da Antropologia política é a
definição de politicidade, não mais vinculada às
chamadas sociedades históricas ou à presença de um
aparelho estatal, mas de modo a poder dar conta da
grande diversidade de formas políticas no mundo. As
obras relativas à Antropologia política propõem
classificações das diversas formas de organização
política que permitem a racionalização e a
comparação dos diversos sistemas. Finalmente, a
Antropologia política tentou redefinir noções
fundamentais, como: poder, autoridade, ação política,
ação administrativa, legitimidade, legalidade, sistema
político, Governo, para torná-las universalmente
aplicáveis. Isto responde à ambição última da
Antropologia política, de propor-se como verdadeira
ciência comparativa de Governo, que utilizando
categorias adequadas a todas as formas de
organização política de todas as épocas e dispondo de
um esquema analítico possa chegar a comparar
sistematicamente sociedades diferentes.
II. HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA POLÍTICA. — Os
primeiros estudos de Antropologia política que se
ocuparam do fato político foram feitos de um modo
indireto; Sir Henry Maine (Ancienl law, 1861) e L. H.
Morgan (Ancient society, 1887) elaboram teorias
sobre a evolução política da humanidade. Eles
propõem uma primeira distinção que ainda é atual: as
sociedades fundadas sobre a organização de parentela
se diferenciam
46
ANTROPOLOGIA POLÍTICA
daquelas que são fundadas sobre a territorialidade. Tal
distinção é especulativa, na medida em que se funda
mais sobre uma concepção da evolução histórica do
que sobre uma informação precisa concernente à
estrutura geral das chamadas sociedades "primitivas".
Um dos primeiros a abordar, de forma explícita, um
tema de Antropologia política foi o americano R. H.
Lowie (The origin of the State, 1927). A pesquisa
sobre as origens do Estado, a utilização de categorias
ocidentais mantêm, para esta disciplina em embrião, o
seu caráter etnocêntrico. Lowie emprega o termo
político com o fim de designar o conjunto das funções
legislativas, executivas e judiciárias, o que o conduz a
privilegiar a existência e o caráter do Governo central.
Todavia, Lowie dá um passo à frente em relação a
Maine e a Morgan enquanto demonstra a possibilidade
de formas de passagem da organização de parentela à
organização territorial: estes dois tipos não são
exclusivos nem de um nem de outro. Mas a verdadeira
origem da moderna Antropologia política se deve
atribuir aos anos 30 e às pesquisas conduzidas no
quadro da antropologia aplicada. Tais pesquisas foram
impulsionadas, seja pelas exigências de conhecimento
da política colonial britânica de administração
"indireta", seja pela descoberta de que no continente
africano continuavam a existir e a funcionar sistemas
políticos "tradicionais", quando, no resto do mundo,
sistemas desse tipo estavam desaparecendo
rapidamente. A série de pesquisas que se ocuparam,
pela primeira vez, do estudo dos sistemas políticos
tradicionais na África combinam os métodos de
trabalho sistemático de campo' de Malinowski com a
perspectiva sociológica funcional de Durkheim,
retomada por Radcliffe-Brown. Eles destacam a
análise do sistema político, sublinhando as diferenças
estruturais e a extrema variedade de formas.
O texto que confere estatuto científico à
Antropologia política se intitula African political systems. É uma série de ensaios de vários autores,
publicada em 1940 por M. Fortes e E. E. EvansPritchard, com uma introdução dos editores e uma
outra de Radcliffe-Brown. Nesta obra se distingue
entre "sociedades estatais" e "sociedades sem Estado".
Ainda que sistemática e freqüentemente criticada, esta
classificação é um progresso, já que o fato político
não é mais excluído daquelas sociedades que não
possuem instituições específicas e especializadas. Esta
série de estudos abriu caminho para muitas pesquisas
monográficas e para obras de análise comparativa, e
também para um articulado debate teórico e
metodológico. As pesquisas de Antropologia política,
sobretudo as dos antropólogos africanistas, analisaram
os sistemas estatais não
ocidentais e a natureza do Governo e da política nos
tipos de sociedade ditos "sem Estado", nas quais não
existem, ou existem apenas em número mínimo,
instituições e funções especializadas de tipo político, e
aprofundaram o exame das estruturas de parentela e
dos modelos de relação que os regem, permitindo uma
nova e mais funcional delimitação do âmbito político
e uma indi-viduação mais exata dos seus aspectos.
A Antropologia política dos anos 30 e 40 era, por
definição, funcionalista. A política, neste quadro
teórico, era definida de modo unilateral: a manutenção
da ordem e da coesão social. A política estava a
serviço do conjunto da organização, nunca na
perspectiva de uma estratificação não igualitária dos
grupos. Neste sentido, a primeira Antropologia
política é muito formal e apresenta descrição de
normas políticas de funcionamento e não de
comportamento real. É só a partir dos anos 50 que ao
formalismo desta Antropologia política se juntam
novas correntes teóricas.
Não foi por acaso que os antropólogos do apósguerra se dedicaram sobretudo ao estudo dos conflitos
sociais e políticos: o fim do sistema colonial impõe a
própria dinâmica histórica à teoria (M. Gluckmann e
G. Balandier). Enquanto nos Estados Unidos a reação
antifuncionalística e anticul-turalística toma a forma
de um neo-evolucionismo que analisa as sociedades
antigas e as sociedades contemporâneas (M. Sahlins,
M. Fried, L. Krader, E. Service, E. Wolf). A segunda
corrente corresponde à mudança estruturalista do
antigo funcionalismo (E. Leach, T. Pouillon) e à
análise de um sistema político como sistema de ação
política, como processo. Neste caso, a Antropologia
política privilegia a análise dos casos, a interação no
seio das microcomunidades e constrói modelos que
têm em conta a dimensão individual. Aplica-se a
teoria dos jogos ou da decisão para formalizar
comportamentos reais. As duas correntes se
contrapõem segundo o nível de análise escolhido. Os
antropólogos da primeira corrente defendem uma
visão global da sociedade e comparam a definição
oficial dos sistemas com as contradições reveladas em
seu funcionamento, mas sem construir um modelo. Os
antropólogos da segunda corrente, por sua vez,
preferindo examinar os microcosmos políticos, se
ocupam, antes de tudo, dos atores e dos
comportamentos, como prova de uma formalização
implícita. Os primeiros partem da totalidade e da
teoria do sistema, enquanto que os segundos a
reconstruem a partir das práticas e das interações
individuais e coletivas. A segunda corrente é tanto
uma reação contra o funcionalismo quanto uma reação
contra a visão historicizante e global dos sistemas
sociais (F. G.
ANTROPOLOGIA POLÍTICA
Bailley, M. Swartz, R. Nicholas). Alguns temas
permitem ligar as duas correntes. São aquelas que
consideram o sistema político como o lugar de
relações assimétricas de competição e de cooperação
e que analisam as relações entre os grupos em termos
de estratégia, de manipulação e de contestação.
III. DEFINIÇÃO DE POLITICIDADE E
TIPOLOGIA DAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO
POLÍTICA. — O primeiro problema da Antropologia
política é o de definir o âmbito da politicidade. Maine
e Morgan deram importância particular ao critério
territorial. Radcliffe-Brown e Schapera (Government
and politics in tribal societies, 1956) reformularam o
problema, demonstrando que também as sociedades
mais simples têm uma base territorial. Não existe
portanto incompatibilidade entre o princípio de
parentela e o princípio territorial, como aliás já o tinha
destacado Lowie. As diferenças estão no tipo de
conceptualização das relações políticas que podem, em
alguns casos, ser expressas em termos de parentela ou
segundo outros modelos, que obscurecem as relações
territoriais, que apesar de tudo sempre existem.
Radcliffe-Brown, na introdução a African political
systems, propõe definir sistema político como: "aquela
parte da organização global de uma sociedade que se
ocupa da conservação ou da criação de uma origem
social, numa estrutura territorial, através do exercício
organizado de uma autoridade coercitiva, que passa
através do uso ou da possibilidade de uso da força" (p.
XIV).
Tal definição destaca a manutenção da ordem dos
valores comuns de integração, equilíbrio e
continuidade. Ação política é tudo aquilo que tende à
manutenção desta ordem e o sistema político é visto,
não como parte distinta e concreta do sistema social,
mas mais como um aspecto funcional de todo o
sistema social: funções de conservação, de decisão e
de direção dos negócios políticos. O sistema político
funciona por meio de grupos e de relações sociais,
mas não é necessário que elas sejam organizações de
Governo ou estatais. Assim como os cientistas
políticos defendem que não podem ser entendidos
adequadamente os sistemas políticos das cidades
ocidentais ou modernas se nos limitarmos ao estudo
das organizações formais de Governo, do mesmo
modo os antropólogos funcionalistas concluem que a
ausência de tais organizações não pode ser
interpretada como ausência de instituições e de
processos políticos. A tendência dominante tinha sido,
como diz L. A. Fallers (Bantu bureaucracy, 1956, p.
45), pensar que "a coisa política" dizia respeito não a
instituições particulares (e por instituições se entende
aqui um modelo de
47
comportamento que um grupo considera justo e
correto; uma norma de conduta), mas também a
instituições especiais e unidades concretas, em geral,
aquelas a quem competia o uso legítimo da força ou
de sanções com o fim de manter a ordem social — o
"Governo" ou o "Estado". As sociedades primitivas,
muitas vezes, não possuem unidades sociais
especializadas para as quais é difícil distinguir entre
os aspectos e os papéis políticos-econômicos e
religiosos. Daqui, a utilidade de definir "instituições
políticas" simplesmente como normas que governam o
uso legítimo do poder e não como unidades sociais a
que tais normas se aplicam. Fallers, inspirando-se nos
tipos ideais de Max Weber, examina a natureza da
autoridade nos sistemas africanos tradicionais e põe
em destaque os conflitos produzidos pela passagem de
um sistema de autoridade "patrimonial" para um
sistema "burocrático", produzido pela introdução das
instituições administrativas coloniais. Outros, e
Gluckmann em primeiro lugar (Politics law and ritual
in tribal societies, 1965), se ocuparam da
conflitualidade. Gluckmann, inspirando-se na teoria
do conflito social de Simmel, elaborou a teoria dos
"equilíbrios oscilantes", na qual os conflitos e certas
formas de rebelião não são veículos de desintegração
do sistema, e sim veículos que concorrem para manter
a ordem social.
Colocando-se dentro da análise funcionalista,
Fortes e Evans-Pritchard sustentam que só os Estados
têm um sistema de Governo, mas toda a sociedade,
sem exclusão, tem um sistema político que opera no
interior de um tecido territorial. E distinguem três
tipos de sistema político: em primeiro lugar vêm de
sociedades de pequenas dimensões, nas quais a
unidade política de mais vastas dimensões abrange um
grupo de pessoas unidas entre si por laços de
parentela, de tal modo que nas relações políticas
coincidem com as relações de parentela; em segundo
lugar, existem as sociedades em que a estrutura de
descendência é o quadro do sistema político. Embora
haja entre os dois um ordenamento preciso, cada um é
distinto e autônomo em sua esfera. Em terceiro lugar,
vêm as sociedades em que a organização
administrativa é o quadro da estrutura política. Os
tipos de sociedade são finalmente redutíveis a dois:
Estados centralizados com instituições administrativas
e judiciárias especializadas (state societies) e
sociedades sem Estado (stateless societies), estas
últimas baseadas sobre a linhagem e privadas das
sobreditas instituições. Tal dicotomia foi objeto de
inúmeras críticas. Foi posto em relevo que nem em
todas as sociedades chamadas "sem Estado" a
linhagem segmentaria representava a base exclusiva
da organização política. Em muitas dessas, a base era
representada
48
ANTROPOLOGIA POLÍTICA
por grupos de idade ou por outras associações de
vários tipos. Nem a linhagem é privada de
importância nas sociedades estatais. A. Southall no
seu livro sobre os alures (Alur society: a study in
processes and types of domination, 1954) definiu
Estados segmentados aqueles sistemas em que a
soberania territorial do centro é reconhecida, se bem
que possa ser muitas vezes apenas de tipo ritual e os
centros periféricos possam ser, na realidade, pouco ou
nada controlados. Lucy Mair usa como critério de
diferenciação o grau de concentração do poder e por
isso distingue entre "Governo difuso" e "Governo
estatal" (Primitive Government, 1962). S. N.
Eisenstadt dá talvez a classificação mais exaustiva,
embora mantendo a dicotomia de base. Classifica as
sociedades sem Estado segundo as formas de estrutura
politicamente importantes — linhagem segmentaria,
grupos de idade, associações, conselhos de aldeia. Os
Estados centralizados estão divididos em três
categorias: aqueles em que os grupos de descendência
são importantes unidades de ação política; aqueles em
que existem grupos de idade; e aqueles em que têm
importância outros grupos de associação.
M. C. Smith tentou reformular noções e conceitos,
desviando o destaque das funções para os aspectos da
ação política. A ação política é definida como um
aspecto da ação cuja outra face é a ação
administrativa. As ações administrativas são aquelas
que são dirigidas para a organização e para a execução
de políticas ou programas de ação. As ações políticas
colocam-se ao nível deci-sional, ou são ações do
processo governativo voltadas para modelar e
influenciar as decisões nos negócios públicos e para
exercer poder sobre eles. A ação política é, portanto,
por sua natureza, "segmentaria", pois se exprime
através da mediação de grupos e de pessoas em
competição, ao contrário da ação administrativa-, que
é hierárquica, na medida em que organiza os diversos
graus de regras rígidas. A autoridade é hierárquica
mas não o poder, que, ao contrário, é por essência
"segmentário", sendo composto de centros
diferenciados de poder, composto de indivíduos e de
grupos em competição pelo controle dos negócios
públicos. No processo governativo estão presentes
tanto o aspecto político como o aspecto administrativo
da ação. Segue-se daí que os sistemas políticos se
distinguem, na medida em que variam em seu grau de
diferenciação e em seu modo de associação destas
duas ordens de ação. Poder-se-ia, portanto, constituir
uma série tipoló-gica das combinações entre ação
administrativa e ação política.
Para os antropólogos estruturalistas, a politici-dade
é considerada sob o aspecto de relações
formais que dão conta das relações de poder
realmente constituídas entre os indivíduos e os
grupos. As estruturas políticas, como toda a estrutura
social, são sistemas abstratos que manifestam os
princípios que unem os elementos constitutivos das
sociedades políticas concretas.
E. R. Leach (Political systems in Highland Burma,
1954) elabora um método estruturalista dinâmico,
pondo em evidência a instabilidade relativa dos
equilíbrios sócio-políticos, os ajustamentos variáveis
da cultura e do ambiente. Leach põe-nos de aviso
contra a estaticidade dos sistemas estruturais, os quais
não se dão conta de uma realidade que nem sempre
tem caráter coerente. O estudo de Leach contribuiu
para uma reviravolta nos estudos de Antropologia
política. O quase monopólio funcionalista que
dominou por influência de Durkheim tinha, até então,
acentuado os equilíbrios estruturais, as uniformidades
culturais e as formas de coesão. A nova tendência da
Antropologia política toma em consideração os
conflitos, as contradições internas e externas ao
sistema, e quer também ser uma superação da
tendência a traçar uma dicotomia simplista entre
supostos sistemas "primitivos" e a situação
contemporânea, tal qual se apresenta, completado o
processo de descolonização, depois de vários anos de
experiência política autônoma. A Antropologia
política pode, neste sentido, dar uma contribuição
notável à ciência política, precisamente no estudo dos
processos de mudança social, de modernização e de
integração nacional. A estrutura global dos novos
Estados independentes, retomada e adaptada de
modelos ocidentais, torna-se progressivamente menos
significativa, em seu interior, e, para entender seu
funcionamento e a transformação, deverão ser
estudadas as reais interações de grupos etnicamente e
culturalmente diversos que neles coexistem, em graus
diferentes de cooperação e/ou conflito.
Uma primeira contribuição para tais problemas se
deve ao livro Political power and the distri-bution of
power, publicado em 1965, e a uma série de obras
muito
recentes
que
podem
considerar-se
interdisciplinares, porque combinam ?. pesquisa de
campo da antropologia com a metodologia da ciência
política americana.
IV. CONCLUSÕES. — Num artigo que remonta ao
ano de 1959, Easton defendia que aos estudiosos de
Antropologia política faltava uma orientação teórica
clara para a política e que isto era devido, em grande
parte, ao fato de os antropólogos terem a tendência a
ver as instituições políticas e o seu funcionamento
como variáveis independentes, que interessam
sobretudo para a influência que exercem sobre outras
instituições e
APARELHO
funções da sociedade de que fazem parte. Easton
chega, por fim, a negar que exista a Antropologia
política como disciplina, precisamente porque falta,
na sua base, a conceptualização dos principais
atributos do sistema político e, em segundo lugar,
porque lhe falta uma contribuição mais dinâmica que
estabeleça uma tipologia baseada em estruturas de
apoio, sobre a diferenciação dos papéis e sobre o
processo de decision-making e a resolução dos
conflitos. Na linha das críticas de Easton se move
grande parte da pesquisa da Antropologia política
atual (Aidan Southall). Todavia, as críticas de Easton
são fundadas na medida em que a Antropologia
política se apresenta mais como um projeto em curso
de realização do que como um âmbito já constituído.
Balandier (Antropologia política, 1969) põe em
relevo que, não obstante o longo caminho de sistematização metodológica e conceptual ainda a
percorrer, a Antropologia política "ocupa uma posição
central, na medida em que lhe é permitido
compreender a política na sua diversidade e pôr as
condições para um estudo comparado mais amplo.
Além disso, a Antropologia política levou à
descentralização, por ter universalizado a reflexão,
estendendo-a até os pigmeus e ameríndios de poder
mínimo, derrotando a fascinação longamente exercida
pelo Estado sobre os teóricos da politicidade". A
Antropologia política exerceu, pois, uma função
crítica que contribuiu para modificar as imagens
comuns que caracterizam as sociedades tomadas em
consideração pelos antropólogos, incluindo as
ideologias mediante as quais as sociedades
tradicionais explicam a si próprias. E, em última
análise, o debate metodológico e teórico a que deu
origem a Antropologia política trouxe à luz os limites,
tanto da análise funcional, quanto da análise
estrutural, e induziu à pesquisa de teorias e modelos
que levam em conta as mudanças e o
desenvolvimento e também as inversões de
desenvolvimento e os processos de desintegração.
BIBLIOGRAFIA.
—
G.
BALANDIER,
Anthropologie politique (1969), Elas Kompass,
Milano 1969; D. EASTON, Political aniropology, in
"Biennial Review of Anlhropology", ao cuidado de B.
SIEGEL, 1959; Africal political systems, ao cuidado de
M. FORTES e E. E. EVANS-PRITCHARD, London 1940;
M. GLUCKMANN, Politics law and ritual in tribal
society, Chicago 1965; L. P. MA IR, Primitive
government, Baltimore 1962; I. SCHAPERA,
Government and politics in tribal societies, London
1956; M. G. SMITH, Government in Zazzau. London
1960.
[ANNA MARIA GENTILI]
49
Aparelho.
I. APARELHO PARTIDÁRIO E PROFISSIONALISMO
POLÍTICO. — O Aparelho de um partido é o conjunto
das pessoas, distribuídas por funções diretivas e
executivas, que nele desenvolvem uma atividade
profissional e lhe garantem o funcionamento
continuado.
A formação do Aparelho dos partidos políticos é,
segundo o clássico ensinamento weberiano, produto
da democratização do sufrágio e da conseqüente
profissionalização da atividade política; assinala a
extensão às associações privadas e voluntárias da
tendência à organização burocrática revelada a nível
estatal com o advento do absolutismo.
Quando, com o consolidar-se do poder da
burguesia, surgem os partidos políticos, só se pode
falar ainda de Aparelho em sentido impróprio, em
relação às funções eleitorais desempenhadas pelas
comissões de notáveis que constituem a delicada
estrutura do partido pré-moderno. Pessoas dotadas de
prestígio e de honorabilidade social, portanto
influentes, e atuando fora da arena parlamentar,
assumem a tarefa da escolha e apoio dos candidatos às
eleições, pondo-se à disposição dos partidos como
agentes eleitorais: são proprietários de terras e
fidalgos no campo, burgomes-tres, juizes, tabeliães,
advogados, professores e párocos na cidade. A sua
ação apresenta um caráter ocasional e diletante e não é
diretamente remunerada pelo partido; são assaz débeis
a coesão horizontal entre os diversos círculos de
notáveis e os contatos verticais com o centro,
estreitados apenas por ocasião das campanhas
eleitorais. O exercício continuado e especializado da
atividade política só existe no Parlamento e no
jornalismo.
Esta "fraca" versão do Aparelho partidário declina
à medida que se estendem às classes inferiores os
direitos eleitorais e os partidos políticos se vêem na
necessidade de conquistar sua adesão com programas
nacionais orgânicos e coerentes. As novas
necessidades de coesão, de controle e de disciplina,
criadas pelo alargamento do sufrágio, fazem com que
o Aparelho partidário evolua das associações
pioneiras de notáveis até as modernas "máquinas
políticas". É a crescente racionalização das técnicas
eleitorais que exige, na estrutura interna dos partidos,
principalmente dos partidos de "base proletária, o
recurso à organização burocrática, levando à
substituição do político diletante pelo político de
profissão, político que vive não só para a política,
mas também da política, no sentido de que se dedica a
ela cotidiana-mente, fazendo dela a fonte do próprio
sustento
50
APARELHO
e a principal chance de promoção social. Funcionários
remunerados substituem parcial ou integralmente os
homens representativos, os notáveis a quem eram
antes confiadas as funções eleitorais, e os fiduciários
que prestavam seus serviços ocasionalmente como
voluntários.
Torna-se além disso indispensável, sobretudo nos
partidos de classe, poder contar com a contribuição de
todos os membros para financiar as campanhas
eleitorais e sustentar as candidaturas operárias.
Necessidades administrativas e oportunidades
político-organizacionais concorrem, pois, para
aumentar o número daqueles para quem a atividade
partidária constitui a profissão principal ou única: aos
deputados e jornalistas se juntam funcionários,
contadores e escrivães. É a qualidade de tais
Aparelhos burocráticos que determina cada vez mais o
sucesso dos partidos. Os partidos tendem a
transformar-se em empresas, onde o poder está em
mãos daqueles que neles trabalham com continuidade.
Trata-se do modelo do Partei-apparat cujo exemplo
mais célebre é o da social-democracia alemã da época
guilhermina,
clássica
organização
operáriofuncionalista, aparelhada para atuar eficazmente no
campo político-eleitoral.
A consolidação do fenômeno dos Aparelhos
partidários conta entre os seus efeitos o de modificar a
estrutura do parlamentarismo, deslocando o baricentro
do poder das assembléias parlamentares para o
sistema partidário. A democracia parlamentar evolve
assim quer para formas plebis-citárias, onde a
leadership pertence àqueles que são apoiados pelas
"máquinas" dos partidos, quer para formas
burocráticas de democracia sem chefes, dominada por
Aparelhos de políticos de profissão, sem carisma e
sem qualidades.
II.
FlSIOLOGIA
E
PATOLOGIA
DOS
APARELHOS: MICHELS, LENIN, GRAMSCI. — Na
esteira da análise weberiana, Roberto Michels, em seu
estudo sobre os partidos operários de massa no
princípio do século, apresenta uma interpretação da
etiologia e funcionamento do Aparelho das
organizações operárias que se tornou clássica.
A crescente complexidade das funções que o
partido moderno é chamado a desenvolver provoca
bem depressa a substituição do homem de confiança
dos tempos heróicos da organização, ou do
funcionário ocasional que não trabalha a tempo pleno,
pelo funcionário de profissão, que consagra ao partido
toda a sua atividade, especializando-se num dos ramos
que compõem o trabalho político. No seio desta
burocracia profissional, selecionada através da prática
cotidiana ou formada nas escolas criadas de antemão
pelo partido e dotada de capacidade política,
competência técnica, devoção e lealdade à causa, os
papéis se
estruturam segundo uma complexa hierarquia que
termina num centro capaz de organizar os croncgramas da luta política. Forma-se um grupo de chefes
dotados de qualidades "demagógicas", bem como de
capacidade técnico-administrativa. Sua experiência e
especialização acaba por torná-los indispensáveis e,
por isso, praticamente inainovíveis dos cargos
alcançados; a confiança e devoção das massas
reforçam de tal modo seu poder que até os Congressos
que deveriam reelegê-los assumem a fisionomia de
meros ritos cele-brativos. A leadership concentra em
suas mãos o poder organizativo e financeiro,
assenhorean-do-se dos canais de comunicação dentro
do partido; desenvolve, além disso, uma psicologia
conseqüente, que se funda na consciência da própria
indispensabilidade e a leva a identificar a vontade
coletiva do partido com a sua própria vontade. Chegase assim à formação de uma verdadeira e autêntica
casta oligárquica, que não se identifica com o
Aparelho em seu conjunto, mas constitui o seu estrato
superior, a camada dirigente. A verdadeira e autêntica
burocracia do partido, os setores médio-baixos do
Aparelho acomodam-se às decisões desse grupo e
apoiam suas opções.
O Aparelho partidário assim entendido é visto, a
partir de Michels, como o locus do processo de
distorção dos fins, comum a toda a organização
política complexa. Superada a fase da consolidação
orgânica, a finalidade latente de todo o Aparelho vem
a ser, com efeito, a sobrevivência e o fortalecimento
da organização, bem como a perpetuação das elites
que a dirigem. É evidente que o domínio dos políticos
de profissão não se limita a exercer seus efeitos
deletérios no campo da democracia partidária, mas
condiciona também as decisões políticas em sentido
estático e conservador: o Aparelho desconfia de toda
inovação estratégica, de toda mudança que possa
ameaçar a posição consolidada dos seus membros a
qualquer nível; é favorável à pequena cabotagem
política, identifica-se sempre com as decisões do
establishment interno contra toda crítica ou heresia e
condiciona a sua inteligência política a razões de
defesa corporativa e de solidariedade com a classe.
A conjugação michelsiana entre a formação dos
Aparelhos partidários e o predomínio de tendências
burocráticas e oligárquicas, mesmo e principalmente
no que respeita aos partidos democrá-tico-socialistas
organizados com base em princípios de solidariedade
e igualdade, inspira a maior parte das análises
posteriormente dedicadas ao fenômeno pela
sociologia política. Todas elas repetem seu juízo
fundamental: o Aparelho constitui um diafragma, uma
válvula que torna as comunicações internas da
organização
APARELHO
monodirecionais, obrigando o fluxo do poder a
mover-se de cima para baixo e não vice-versa.
A esta maneira de conceber o Aparelho como
instrumento da oligarquia, do conformismo e de
estrangulamento das instâncias democráticas se
contrapõe claramente a teoria leninista do partido e da
organização, que constitui o princípio em que se
inspiram os partidos comunistas que aderiram à
Terceira Internacional. Para Lenin, o Aparelho é o
instrumento de estímulo e impulso da ação de massa,
o Irait d'union entre centro e periferia, entre a classe e
o seu estado-maior organizado. Este modo de entender
a organização profissional funda-se numa visão
peculiar da relação entre partido e classe gardée, entre
direção e espontaneidade. A política é práxis
cientificamente fundada e, como tal, requer
especialização. A espontaneidade não carece de
profissionalização, mas o partido, consciente das leis
da marcha da história, se quiser agir eficazmente,
dentro da crescente complexidade social, com vistas
ao fim revolucionário que se propõe, há de confiar em
quadros de base, intermédios e superiores, conscientes
e disciplinados, habilitados para atuar nos vários
setores onde se articula a luta política. O operário
revolucionário de vanguarda tem de se tornar um
revolucionário
profissional,
que recebe da
organização os meios necessários à sua subsistência,
estar preparado para viver uma dupla existência, legal
e clandestina, estar dotado de uma vocação heróica e
não ser levado à militância política por motivos de
carreira, ser insensível aos valores e atrações do
sistema. É sobre uma rede de revolucionários
profissionais assim que se há de estruturar, "antes de
tudo e acima de tudo", a organização revolucionária.
Pouco importa a sua origem social, desde que aceitem
e executem o programa do partido, decidido pelos
organismos dirigentes que representam a autoridade
da maioria, a subordinação das partes ao todo.
Caracterizam o tipo de Aparelho idealizado e posto
em prática por Lenin, e aceito pelos partidos
comunistas de todo o mundo, a rígida centralização
das instâncias e a férrea disciplina que se acham
formalizadas no sistema do centralismo democrático.
Este "burocratismo", oposto ao "de-mocratismo" dos
partidos burgueses, é, para Lenin, "o princípio
orgânico da social-democracia revolucionária, oposto
ao princípio orgânico dos oportunistas".
No modelo leninista, em boa parte determinado
pelas condições da luta política sob o Governo
autocrático do czar, o Aparelho coincide em larga
medida com o partido, até o ponto de quase se lhe
sobrepor. Dentro dele, o estado-maior distingue-se do
quadro intermédio e do quadro de base, em virtude do
seu maior conhecimento teórico,
51
da sua superior capacidade política, confiabilidade e
habilidade organizativa. A hierarquia que nele se
estabelece é emanação orgânica da democracia de
partido e árdua seleção através da luta. Gramsci
retoma esta mesma concepção, aceitando tanto o
princípio da organização como o sistema que dela
deriva, mas dentro de uma modalidade onde variam,
em relação ao modelo bol-chevique, as dimensões e o
peso do elemento profissional, adaptados à realidade
da guerra de posições que se trava no Ocidente. O
partido gramsciano está disposto em três estratos: na
base da pirâmide está a massa dos homens comuns,
disciplinados e fiéis, militantes não profissionais que
precisam de organização e diretrizes por não estarem
dotados de capacidade criativa autônoma. No vértice,
os chefes servem de principal instrumento de coesão,
disciplinando e centralizando forças, aliás inertes e
dispersas, tornando-as politicamente eficazes, em
virtude da sua habilidade e do seu carisma. Entre esses
dois estratos atua um elemento intermédio que põe em
comunicação a base e o vértice, pondo em movimento
todo o mecanismo. Grupo dirigente e quadro
intermediário formam o Aparelho em sentido lato; o
estrato intermédio, a oficialidade subalterna, constitui
o Aparelho em sentido estrito, atuando como elemento
disciplinador da base, em cotidiano contato com ela e
com a classe, mas impedindo igualmente que os
chefes se afastem da luta política nas fases críticas.
Desempenha, pois, um papel essencial no
funcionamento fisiológico do partido, embora não se
ignore que é o estrato mais exposto a degenerações
patológicas, por ser o elemento mais alicerçado no
costume e menos inovador; pode enrijecer como grupo
solidário, "emancipando-se" das funções de que foi
incumbido; pode, em suma, burocratizar-se. Isto não
quer dizer que o Aparelho nutra necessariamente,
segundo uma lei férrea, uma vocação burocrática e
oligárquica. Não é, pois, questão de lhe negar função
em nome de um igualitarismo amaneirado, como faz
Michels, mas de fazer com que os seus membros,
chefes
e
funcionários
sejam
selecionados
democraticamente e realizem constante interação com
a base, evitando que a divisão técnica do trabalho, de
que o Aparelho é produto, cristalize em divisão social.
III. TIPOLOGIA DOS APARELHOS: O
EMPRESÁRIO DA POLÍTICA E O FUNCIONÁRIO.
— No âmbito do fenômeno dos Aparelhos, a
sociologia clássica distingue dois tipos principais: a
political m-chine, em várias versões, terminando na
figura empresarial, segundo a fórmula weberiana, e os
Aparelhos funcionalistas dos partidos europeus, em
primeiro lugar dos partidos operários, que
52
APARELHO
se distinguem por sua vez segundo os subtipos socialdemocrático e comunista.
Ambos os tipos estão nas mãos de especialistas e
de profissionais, mas, no primeiro caso, se trata de
"empresários da política", como o election agent
inglês ou o boss americano, e, no segundo, de
empregados remunerados pela organização. Um e
outro, mesmo que apresentem características
diferenciais assaz claras em razão das finalidades para
que se constituíram historicamente — a competição
eleitoral e o açambarcamento dos empregos num
caso, a mobilização das massas com fins
revolucionários no outro —, acabam por desenvolver
"funções latentes" que apresentam uma certa
convergência, funções de integração social e política
das classes subalternas, de redução dos conflitos, de
seleção da classe política nacional e local e,
sobretudo, como já vimos, de auto-reprodução.
A "máquina", na sua típica versão americana
descrita pelos pioneiros da sociologia do partido
político, vê prevalecer em seu seio, pelo menos até
antes da guerra, a figura do boss, um empresário
político, como o define Max Weber no seu célebre
ensaio sobre "A política como profissão", depois
continuado por todos os estudiosos do do fenômeno
do partido-Aparelho. A "máquina" é um organismo de
base local, preparado para a conquista, manutenção e
gestão do poder na época da política de massa. É seu
animador e organizador o boss, figura peculiar de
profissio-nal-empresário político que atua no mercado
eleitoral, combinando os fatores da produção de
poder, votos, recursos, organização. Apresenta-se
como agente de compra-venda do voto, usando
favores e proteção como mercancia de troca: fornece
ao candidato os votos que controla mediante um
ramificado sistema de relações pessoais; procura os
meios financeiros por diversos métodos, muitas vezes
nos limites da legalidade; detém o controle e
patronato dos empregos em seu setor distríbuindo-os
em razão dos serviços prestados ao partido ou de
compensações em dinheiro, no que se vale do rico
butim de sinecuras e de empregos públicos, que o
spoils system põe à disposição do candidato vitorioso
nas eleições. Embora seja um político de profissão e
exerça indiscutivelmente funções públicas na
sociedade americana, o boss não é um funcionário e
raramente é um homem público: age habitualmente
entre os bastidores, não é reconhecido pela
organização, não o move qualquer idealismo político,
é indiferente ao bem público e é unicamente motivado
pelo poder e pelo lucro.
Outra versão da "máquina" é a inglesa. Antes de
1868, na Inglaterra, a organização partidária era
composta, em partes iguais, por uma
associação de notáveis e por profissionais
remunerados e empresários políticos. Com o leader
do partido opera o whip, que está incumbido da
salvaguarda da disciplina parlamentar e dispõe do
controle dos empregos. A ele se agregam,
perifericamente, em primeiro lugar, os que
desempenham cargos de confiança, prestando
gratuitamente seus serviços, depois o election agent,
que desempenha funções de organização eleitoral.
A democratização do sistema eleitoral conduz, após
1868, ao desenvolvimento do sistema do caucus, que
se estendeu de Birmingham a todo o país. O caucus é
um Aparelho sutilmente ramificado na base. com
tarefas de interferência junto aos eleitores, cujo
funcionamento exige um considerável número de
funcionários a tempo pleno. Este organismo apresenta
facilmente vantagens com relação à organização
antecedente, estabelecendo uma rígida centralização
do poder nas mãos do chefe do partido, conforme
documenta exemplarmente o caso de Gladstone.
O Aparelho dos partidos europeus de massa do tipo
continental apóia-se, como já vimos, na figura do
funcionário, político ou técnico, remunerado pela
organização graças às cotas pagas pelos aderentes. Ao
tipo social-democrático se contrapõe o tipo comunista,
construído segundo o modelo do partido bolchevique.
Enquanto o Aparelho socialista e ainda com maior
razão o dos partidos burgueses são concebidos e
funcionam tendo em vista a luta parlamentar e a
mobilização cultural e eleitoral das classes populares,
o Aparelho comunista é constituído em função da
agitação do proletariado e da conquista do poder. É
isto que explica a sua maior rigidez e disciplina, o
controle férreo a que submete as articulações
parlamentares do partido, a relação autoritária que
mantém com a base e os mecanismos de cooptação
que lhe regulam a formação e as transformações.
Quando o partido está no poder, são os apparatcniki
que se convertem em sua estrutura, com a ocupação
dos papéis fundamentais do sistema político-administrativo e o férreo controle dos cargos de
administração da economia e da sociedade, a ponto de
se apresentarem, segundo alguns estudiosos, como
uma nova classe privilegiada.
O modelo do partido de fiéis ou do partido de luta
delineados por Selznick e por Duverger não parecem
hoje, aliás, descrever adequadamente a realidade atual
dos partidos comunistas de massa da Europa
ocidental. Se os Aparelhos de políticos de profissão
continuam a manter uma posição essencial na
economia da organização, seu papel parece, contudo,
em fase de redefinição. É bem verdade que a parte
essencial da gestão político-administrativa do partido
está em
APARTHEID
suas mãos, mas não existe uma absoluta coincidência
entre Aparelho e instâncias diretivas, onde têm posto
numerosos
quadros
não-profissionais
ou
semiprofissionais. Crescem, além disso, de um lado, o
peso da base e, do outro, a autonomia e o poder de
veto dos grupos parlamentares, dos administradores
locais, dos sindicalistas e dos membros do "sistema
externo" das organizações de massa.
Em conclusão, parece ser realista pensar que até
mesmo nos partidos comunistas de massa está
operando um policentrismo, que tende a redimensionar o poder autocrático dos Aparelhos e que estes
começam a tornar-se componentes importantes, mas
não preponderantes, nos novos sistemas poliárquicos
para onde convergem até mesmo as organizações
comunistas.
BIBLIOGRAFIA. - M. DUVEUGE», I panai politici
(1955), Comuniti, Milano 1961; L. FABNZA, PartUo e
apparato. Cappelli, Bologna 1965; M. GILAS, La
nuova classe (1957), Il Mulino, Bologna 1957; A.
GRAMSCI, Note sul Machio-velli. la política e Io Stato
moderno, Einaudi, Torino 1952; V. 1. LENIN,
Chefare?( 1902), Editori Riuniti, Roma 1970; R.
MICHELS, La sociologia del partito político nella
demo-crazia moderna (1912), U Mulino, Bologna
1966; M. OSTROGORSKI, La démocratíe et
lorganisalion des partis politiques. Calman-Lcvy,
Paris 1904; G. ROTH, La social-democrazia nella
Germania imperiale, Laterza, Barí 1971; P. SELZNICK,
Vie traverse. Strategia e tattica del comunismo.
Cappelli, Bologna 1954; J. L. SEURIN, La struclure
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1953; M. WEBER, Il lavoro inlelleltuale come
professione (1921), Einaudi, Torino 1971; Id.,
Economia e società (1922), Comunità, Milano 1961;
Id., Scritti politici. Niccolò Gian-nottt Ed., Catama
1970.
[SlLVANO BELL1GNI]
Apartheid.
I. O APARTHEID COMO SISTEMA SOCIAL. —
Em língua afrikaans, Apartheid significa "separação".
Na sua acepção mais comum, pode traduzir-se por
"identidade separada" e designa a política oficial do
Governo sul-africano no que respeita aos direitos
sociais e políticos e às relações entre os diversos
grupos raciais dentro da União. O Apartheid não pode,
pois, ser traduzido simplesmente como "racismo" ou
"discriminação racial"; constitui um sistema social,
econômico e políticc-constitucional que se baseia em
princípios teóricos e numa legislação ad hoc. Neste
sistema, a diferenciação corresponde à definição de
grupos raciais diversos e ao seu desenvolvimento
53
separado; é, pois, o oposto de assimilação e de
integração. Em termos políticos, Apartheid significa
manutenção da supremacia de uma aristocracia
branca, baseada numa rígida hierarquia de castas
raciais, para as quais existe uma correlação direta
entre a cor da pele e as possibilidades de acesso aos
direitos e ao poder social e político.
II. RAÍZES HISTÓRICAS DO APARTHEID. — O
Apartheid converte-se em política oficial do Governo
sul-africano a partir de 1948, quando ascende ao
poder o partido dos nacionalistas boêres (afrikaner), o
Nationalist Party (N.P.), chefiado por Malan, que se
opõe às tendências integracionistas atribuídas ao
partido do primeiro-ministro Smuts.
As raízes do Apartheid encontram-se, contudo, no
próprio desenvolvimento histórico da sociedade sulafricana. A chegada (1692) e a expansão dos
europeus, a partir da península do Cabo da Boa
Esperança, vieram a significar a quase total
eliminação das populações autóctones, enquanto que
as populações de agricultores bantu tiveram de
suportar, após o grande trek (êxodo da colônia do
Cabo em direção ao Nordeste, iniciado em 1837), a
alienação das terras tribais e uma série de restrições
que significavam o fim da sua autonomia.
A instituição da escravidão, introduzida na África
do Sul para suprir as crescentes necessidades de força
de trabalho, foi um dos elementos essenciais que
determinaram a criação de uma estrutura sócioeconômica de classes, baseada na cor e nas
características raciais. Os próprios asiáticos,
emigrados em sua maior parte como força de trabalho
do subcontinente indiano desde meados do século
XIX, conquanto não fossem escravos, também
sofreram medidas discriminatórias que lhes limitaram
os direitos de cidadania, residência e movimento.
Nas origens do Apartheid estão, tanto as
concepções em que se inspira a população afrikaner
(que constitui dois terços da população branca), como
a necessidade de apropriar recursos econômicos e,
antes de tudo, de controlar a força de trabalho
indígena. Os afrikaner se consideram uma verdadeira
e autêntica nação (volk), onde é fundamental a
doutrina da desigualdade e separação entre as raças,
pregada pela Igreja reformada holandesa, a que
pertencem em sua grande maioria. O • grande trek foi
fundamentalmente causado pelas diferenças entre os
afrikaner e a administração inglesa, particularmente
no respei-tante à legislação que abolia a escravidão e
parecia encaminhada a favorecer uma lenta integração
das faixas mais evoluídas da população de cor. A
expansão rumo a novas terras, que teve lugar
54
APARTHEID
não sem guerras e duras repressões, levou à criação de
Natal (que será anexado pela colônia do Cabo em
1845) e, em 1852 e 1854, de duas repúblicas
independentes, a South Afrikan Republic (Transvaal)
e o Orange Free State, respectivamente. Nas
repúblicas boêres adotou-se uma política racial rígida:
o princípio orientador fundamental era o de que, nas
relações entre europeus e africanos (designados com o
termo de "nativos" ou bantus), não podia haver
igualdade, nem no Estado nem na Igreja. A posição
dos grupos raciais não-brancos era regida pela
estrutura básica da economia das repúblicas: a posse
da terra, pilar do direito de cidadania, estava reservada
aos brancos; os africanos eram considerados como
estrangeiros, só tolerados como força de trabalho
subordinada. Os grupos tribais autóctones foram
assim privados das próprias terras e escravizados.
Em última análise, as etapas fundamentais da
formação do nacionalismo bôer, em relativo contraste
com a posição da população branca de descendência
inglesa, foram determinadas pela luta pelo controle da
terra e da força de trabalho: dizimação e sujeição dos
hotentotes do Cabo, dissídio com as autoridades
inglesas sobre o tratamento dos servos, guerras com as
populações xhosa, zulu e sotho pela posse das terras
mais produtivas, aliança entre os extremistas
nacionalistas boêres e os sindical-populistas para a
eliminação da concorrência dos trabalhadores
africanos no mercado do trabalho durante a grande
depressão dos anos 30. É desta aliança que nasceu o
partido .nacionalista que, desde 1948, mantém o
monopólio do Governo.
A descoberta e exploração de enormes riquezas
minerais (diamantes e ouro), a conseqüente passagem
de uma economia predominantemente agrícola a uma
economia minerário-industrial, a rápida expansão das
áreas urbanas com a imigração da força de trabalho c
a aceleração do processo de destribalização e de
proletarização foram, na realidade, acompanhadas de
uma rápida e fundamental mudança na estrutura social
do país e de um paralelo e contínuo controle da
população africana, para não ser posta em perigo a
supremacia branca (baaskap). Os africanos, mais do
que nunca indispensáveis à expansão econômica,
continuam, mesmo depois da constituição da União
Sul-africana (1910), a ser tratados como súditos
coloniais, com poucos e limitados direitos.
O sistema dos Baniu homeland, comumente
chamado bantustan ou das "reservas", foi
definitivamente bloqueado com uma lei de 1913
(Nati-ve Land Act), que proibia aos africanos comprar
terras ou imóveis no território reservado aos brancos.
Os bantustan constituíam apenas 7% do
território nacional, percentual elevado para 13,7% em
1936; verdadeiras e autênticas reservas de mão-deobra destinada às áreas mineiras e industriais,
superpovoadas e subdesenvolvidas, os bantustan
serão transformados mais tarde, sob o Governo de
Verwoerd, em oito homeland (territórios nacionais).
III. RAÍZES TEÓRICAS DO APARTHEID. — o
Apartheid se desenvolve segundo duas diretrizes: uma
legislação de discriminação racial que aperfeiçoa e
sistematiza, a partir de 1948, uma situação já
preexistente, constituindo-se numa verdadeira e
autêntica engenharia institucional e num planejamento
autoritário, tanto dos comportamentos, como da
instalação, e um desenvolvimento territorial e/ou
político separado (sistema dos homeland).
A discriminação, tal como a segregação, havia sido
praticada desde o século XVII. Com a Constituição da
União da África do Sul, o South África Act (31 de
maio de 1910), se afirmava que só a população de
descendência européia podia ser eleita e eleger
membros para o Parlamento.
O princípio da segregação tinha origem ainda mais
antiga, remontando às instituições hotentotes queridas
pelo Dr. Philips, missionário da Lon-don Missionary
Society em 1819. A segregação era então entendida no
sentido cristão da necessidade de preservar os
autóctones da influência dos brancos; foi daqui que
nasceu a política das reservas na colônia do Cabo.
Com a criação da União, baseada no princípio da
manutenção da supremacia branca, a política das
reservas muda de significado, tornando-se sobretudo
um meio de institucionalização da separação das raças
e de garantia do controle econômico e social sobre os
trabalhadores negros, obrigados a viver nelas só
enquanto a economia branca precisa deles.
A classe dirigente sul-africana se divide, grosso
modo, entre os defensores da segregação total, tanto
territorial como política, e aqueles que, a partir dos
anos 30, em conseqüência da industrialização do país,
vêm sustentando cada vez mais que o Apartheid, com
a manutenção dos bantustant, não pode manter a
reprodução da força de trabalho, pois as indústrias
exigem operários do mais elevado nível de
qualificação, e que, por isso, é preciso trabalhar pela
liberalização, conquanto parcial, do sistema.
IV. POLÍTICA DO APARTHEID — Depois de 1948, a
situação de subordinação jurídica e social dos nãobrancos fica definitivamente institucionalizada: são
abolidos os direitos políticos e civis que ainda
subsistiam na província do Cabo; as
APARTHEID
barreiras raciais que até agora eram determinadas mais
pelos costumes do que pelas leis, e que, portanto,
admitiam exceções, são codificadas; introduz-se a
classificação de todos os elementos da população de
acordo com o grupo racial, registrado no documento
de identidade; proíbem-se os matrimônios ou uniões
mistos; é introduzida a segregação na gestão pública,
nos meios de transporte, etc.; em todas as cidades se
destinam aos grupos étnicos bairros residenciais ou
guetos (group áreas) próprios. O Apartheid, ao
consolidar-se como sistema, se reformula também
como ideologia, rejeitando as antigas identificações
inspiradas no conceito de "desigualdade", para se
definir como sistema de "desenvolvimento separado",
fundado no conceito de "diferença"; cria o slogan
"separados, mas iguais". Com esta nova roupagem
ideológica, a supremacia branca pretende tornar-se
aceitável, tendo por base uma complexa teoria
formulada pelo South African Bureau for Racial
Affairs (SABRA) e as recomendações expressas pela
Tomlinson Commission. O Apartheid assentaria, pois,
a sua estrutura nas relações efetivamente existentes
entre os diversos grupos raciais da União,
caracterizadas pela integração geográfica e sobretudo
econômica, pela diversidade da solidez numérica dos
vários grupos étnicos, pelas diferenças de raça, de
cultura e de civilização. A diferença pressuporia a
existência de áreas separadas, a que os vários grupos
étnicos estão historicamente ligados, e essas áreas
deveriam desenvolver-se como unidades sócioeconômicas diversas e separadas.
Sob o Governo de Verwoerd, os bantustan,
definidos como homeland, a par da sua função
econômica de reservas e lugar de descarga, da mãode-obra, adquirem a função política de álibi para a
privação, imposta aos africanos divididos em
"nações", de todos os direitos políticos e civis na zona
reservada aos brancos, ou em 87% do país, onde se
encontram todas as riquezas naturais, as minas, as
indústrias, os lugares de trabalho e as cidades. Os
bantu são obrigados a tornar-se cidadãos dos próprios
homeland, único lugar onde gozam de direitos
políticos e onde podem, segundo o Governo,
desenvolver as próprias tradições culturais da tribo.
Na década de 70, esta política aperfeiçoa-se ainda
mais: os homeland adquirem o direito de se tornar
independentes.
É
assim
que
chegam
à
"independência" o Transkei, em 1976, o BophutaTswana, em 1977, e logo a seguir o Venda. A
independência de territórios paupérrimos, divididos
em parcelas territoriais dispersas (o Bophuta-Tswana
é composto nada menos que por umas 19 frações
espalhadas por três das quatro províncias sulafricanas), não tem outro significado senão o de
55
aperfeiçoar o plano de afastar totalmente os africanos
do Sul branco da África, mantendo-os como força de
trabalho inteiramente dependente. Os africanos,
constrangidos a aceitar a cidadania dos homeland
conforme a etnia a que pertencem e segundo critérios
de difícil aplicação por causa do nível e profundidade
da destribalização de uma sociedade como a sulafricana, já profundamente industrializada, são assim
desnacionalizados, convertem-se em cidadãos
estrangeiros, privados definitivamente de todo o
direito (residência, por exemplo, serviços sociais,
escolas).
A comunidade internacional tem condenado toda a
tentativa de romper a unidade territorial da África do
Sul e de privar os seus cidadãos, a maioria, de todos
os direitos que lhes restavam. Tanto as Nações Unidas
como a Organização da Unidade Africana têm votado
resoluções de condenação e todos os Estadosmembros têm negado qualquer reconhecimento aos
pretensos novos Estados.
V, EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO DO APARTHEID. — A
partir de 1974, na busca de um apoio internacional que
lhe tem sido sempre negado por causa da
institucionalização, caso único da discriminação
racial, que priva a maioria dos mais elementares
direitos políticos e sociais, o Governo sul-africano tem
procurado encontrar novas fórmulas que permitam ao
regime apagar a imagem de uma ditadura da raça
branca sobre as demais. Os projetos se inserem,
contudo,
sem
exceção,
na
tradição
do
"desenvolvimento separado". Surgiu um projeto de
reforma constitucional em 1977, mas ainda não foi
discutido. Os africanos, é dito ali, podem exercer o seu
direito legislativo e a sua autonomia administrativa no
âmbito dos homeland; no restante do país, 87%, não
são senão "trabalhadores hóspedes"; os mestiços e os
asiáticos, que não podem ter um homeland por não
possuírem úm território tribal próprio, terão uma certa
participação na administração dos negócios comuns. A
elaboração deste novo modelo constitucional,
extremamente complexo, requer a revisão e
modernização de todo o aparelho de plani-ficação do
Apartheid. A manutenção de instituições racialmente
separadas, a desnacionalização dos africanos, a
transferência do poder do Parlamento para o
executivo, com a conseqüente redução do papel das
oposições, não fazem entrever qualquer real
possibilidade de que se possa impor uma solução
gradual e pacífica que venha pôr fim à discriminação e
ao conflito inter-racial, que explodiu com mais
violência a partir das revoltas dos guetos em 1976.
Os protestos dos estudantes e dos operários
africanos não tiveram outra resposta senão a
56
APATIA
de uma mais dura e intransigente repressão, que
atingiu até mesmo organizações moderadas, enquanto
que as reformas legislativas e os projetos de
reestruturação constitucional indicam, não um
relaxamento do Apartheid, mas sim sua
modernização, no sentido de que se põem em ação
mecanismos mais em consonância com as exigências
da economia e da sociedade contemporâneas, sempre
na linha da manutenção da supremacia branca.
BIBLIOGRAFIA. — R. Fmsr, Regimini coloniali
dell’Africa ausirale, in AUT. VÁR., Storia deli A/rica,
La Nuova Itália, Firenze 1979; M. LECASSICK,
Legislation. ideology and economy in posi-1948 South
A/rica, in "Journal of Southern African Studies", I,
1974; L. KUPER, Race. class and power, Duckworth,
London 1974; N. J. RHOODIE, H. J. VENTER, e OUTROS:
A socio-economic exposilion of the origin and
development of the apartheid idea, De Bussy,
Amsterdam 1960; P. L. VAN DEN BERGHE, South
África: A study in conflicl. University of Califórnia
Press, Berkeley 1967; Oxford hislory of South África,
ao cuidado de M. WILSON e L. THOMPSON, Oxford
University Press, London 1969-1971.
[ANNA MARIA GENTILI]
Apatia.
O termo Apatia significa um estado de indiferença,
estranhamento, passividade e falta de interesse pelos
fenômenos políticos. É um comportamento ditado
muitas vezes pelo sentimento de ALIENAÇÃO (V.) As
instituições políticas e as demais manifestações da
vida política ocupam, no horizonte psicológico do
apático, uma posição bastante periférica. Ele não é
nunca ativo protagonista de acontecimentos políticos,
mas acompanha-os como espectador passivo e, mais
freqüentemente, ignora-os inteiramente. A Apatia
política é acompanhada do que se poderia chamar de
uma baixa receptividade em relação aos estímulos
políticos de todo o tipo, e, freqüentemente, embora
nem sempre, de um baixíssimo nível de informação
sobre os fenômenos políticos.
Pesquisas sobre o comportamento político
demonstraram que o fenômeno está bastante
difundido até nas modernas sociedades industriais de
tipo avançado, que também são caracterizadas por
altos níveis de instrução e de difusão capilar das
comunicações de massa. O fenômeno se dá em regime
de tipo democrático e nos regimes autoritários e
totalitários e, não obstante isso, a existência de
mecanismos competitivos que direta ou
indiretamente solicitam a participação do público nos
primeiros e a existência de mecanismo de mobilização
e de enquadramento das massas, a partir de cima, nos
segundos. Tudo faz pensar que as taxas de Apatia são
maiores na sociedade tradicional em vias de
modernização; certamente era assim nos sistemas
autocráticos do passado, antes da integração de
grandes estratos de público na vida política.
Os fatores ligados à Apatia são múltiplos:
juntamente com certas propriedades estruturais do
sistema político (visibilidade, acesso, etc.), são
consideradas certas características da cultura política a
presença ou a ausência de traços culturais ou
subculturais que premiam ou desencorajam o
interesse pelos fenômenos políticos. Outros fatores de
ordem sociológica, que todavia parecem variar
bastante de sistema para sistema, parecem também
relevantes.
Num sistema político caracterizado por uma larga
Apatia, as margens de manobra das elites são bastante
maiores. Todavia, deve-se lembrar que exatamente
esta larga indiferença representa um obstáculo
bastante sério quando o alcance de metas sócioeconômicas pressupõe o envolvimento e a motivação
de largos estratos da população. Do ponto de vista da
dinâmica interna do sistema e do equilíbrio das forças
políticas, deve-se notar enfim que a existência de
amplos estratos de apáticos constitui um reservatório
não indiferente de potenciais participantes, que as
elites governamentais e de oposição podem tentar
atrair e mobilizar, na tentativa, respectivamente, de
reforçar suas posições ou de subverter as relações de
forças existentes.
[GIACOMO SANI]
Appeasement.
Termo de difícil tradução em português. Poderia ser
vertido pela palavra "aquiescência". Uma aquiescência
que comporta algumas concessões aos objetivos de
um antagonista. Um exemplo de Appeasement
lembrado por muitos estudiosos é o acordo da
Conferência de Munique, em 1938, em que
Chamberlain e Daladier aceitaram a ocupação de uma
parte da Tchecoslováquia pela Alemanha nazista, em
troca de uma simples promessa de paz por parte de
Hitler.
Segundo Morgenthau, a Appeasement sempre deve
ser condenada porque representa uma aquiescência a
uma política imperialista. O compromisso, na verdade,
como tática diplomática, só tem sentido entre
adversários que aceitam a distribuição do poder
existente. De outra sorte, ela volta-se a favor de uma
potência imperialista.
ARISTOCRACIA
Uma política de Appeasement de uma parte pressupõe
uma política imperialista da outra.
A acusação de Appeasement foi dirigida várias
vezes aos Governos das grandes potências no período
da guerra fria. Qualquer concessão para chegar a um
acordo durante as conversações diplomáticas pode ser,
na verdade, considerada negativamente e classificada
como Appeasement por parte da oposição
governamental interna, por aliados descontentes ou
pelos próprios adversários.
Contrária à política de Appeasement é a política de
contenção, isto é, a resistência sem compromissos,
frente a uma política imperialista, disposta a descer ao
compromisso, apenas em direção ao status quo.
BIBLIOGRAFIA. - H. MORGENTHAU, Politics
among na-lions, Knopf 1968; A. L. ROWSE,
Appeasement. A study in política! decline. Norton
1961; A. J. P. TAYLOR, Le origini della seconda
guerra mondiale (1961), Laterza 1961.
[FULVIO ATTINA]
Aristocracia.
Aristokratia, literalmente "Governo dos melhores",
é uma das três formas clássicas de Governo e
precisamente aquela em que o poder (krátos =
domínio, comando) está nas mãos dos áristoi, os
melhores, que não eqüivalem, necessariamente, à
casta dos nobres, mesmo se, normalmente, os
segundos são identificados com os primeiros.
As mais clássicas definições de Aristocracia,
entendida como forma de Governo, achamo-las em
Platão e em Aristóteles. Mas já no século V a.C.
podemos encontrar em Heródoto, no lógos tripolitikós
ou agonia das políticas (As histórias, III, 80-3), a
primeira classificação historicamente documentada da
teoria da tripartição das formas de Governo (de um, de
poucos, de muitos), que tanto sucesso terá no
pensamento antigo e não só nele. Destaquemos,
entretanto, que juntamente com a monarquia e a
democracia (mas Heródoto usa ainda o termo
isonomia, igualdade de todos os cidadãos diante da
lei) no lógos tripolitikós mais que de Aristocracia se
fala de oligarquia, ou seja, daquela forma de Governo
que será considerada por Aristóteles como um desvio
da Aristocracia, na medida em que, na oligarquia, os
poucos governam no interesse dos ricos e não da
comunidade, ao contrário do que acontece na
Aristocracia, uma das três formas de Governo
(Política, III, 8, 1979b). Na república ideal delineada
por Platão, o termo Aristocracia vem
57
carregado dos valores primigênios do mundo grego,
como exaltação da aretè, entendida não tanto como o
arcaico e originário "valor" na guerra (um dos
elementos em que se formava e fundava a classe
antiga da nobreza grega) mas mais como virtude de
sabedoria e conhecimento. Compete, na verdade, aos
melhores, aos sapientes, aos sábios, enquanto
perfeitos, conhecedores e possuidores da verdade,
guiar o Estado, que é Estado ético, para alcançar o
verdadeiro bem (República, II-V). Mas tanto para
Platão como para Aristóteles, todavia — e é uma
constante de todo o pensamento político grego —, os
áristoi, precisamente porque são moral e
intelectualmente os melhores, não podem ser senão
aqueles que pertencem às classes mais elevadas da
sociedade, enquanto agathói, bem nascidos, nobres, e
por educação propriamente os bons, contrapostos aos
kakói, os mal-nascidos, os maus, a plebe. Em
conclusão, podemos ver, sobretudo em Aristóteles,
uma oposição entre ricos e pobres: classe aristocrática
e classe popular. Assim, o valor ético-pedagógico vem
a se identificar com uma precisa situação econômicosocial e daqui precisamente podemos passar para
outro significado, hoje mais comum, de Aristocracia
entendida como grupo privilegiado por direito de
sangue (v. NOBREZA).
[GlAMPAOLO ZUCCHINl]
Armamentos. — V. Estratégia e Política dos
Armamentos.
Asilo, Direito de.
I. ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO DIREITO DE
— A instituição do Asilo tem origens muito
remotas, achando-se já traços dele nas civilizações
mais antigas. Desde sua origem até o século XVIII, ele
achou quase uma aplicação constante como instituição
fundamentalmente religiosa, ligada ao princípio da
inviolabilidade dos lugares sagrados. Durante o século
passado, o Asilo se laicizou para tornar-se mais
decididamente objeto de normas jurídicas, que têm
uma função precisa de tutela a perseguidos políticos. É
sobretudo em conexão com esse desenvolvimento que
se pode falar hoje de um direito de Asilo. O Asilo se
distingue em territorial e extraterritorial, conforme é
concedido por um Estado em seu próprio território ou
na sede de uma legação ou num barco ancorado no
mar costeiro. Neste caso, o Asilo é garantido no
mesmo território do Estado a cuja jurisdição o
indivíduo pretende subtrair-se. Fala-se também de
Asilo "neutral" quando este, em tempo de guerra, é
concedido no território de um Estado neutro, mediante
o respeito
ASILO.
58
ASILO, DIREITO DE
de determinadas condições, a tropas ou a navios de
Estados beligerantes. O Asilo extraterritorial ou
diplomático está largamente em uso nos países da
América Latina, onde se tornou objeto de costumes
particulares.
O termo Asilo indica, portanto, a proteção que um
Estado concede a um indivíduo que busca refúgio em
seu território ou num lugar fora de seu território. O
direito de Asilo, por conseqüência, deve ser entendido
como direito de um Estado de conceder tal proteção.
Direito que começa, portanto, não no indivíduo mas
no Estado, em virtude do exercício da própria
soberania e com a única reserva de eventuais limites
derivados de convenções de que faça parte
(convenções em matéria de extradição, por exemplo).
Isto não impede que, em algumas recentes
Constituições, depois da Primeira e da Segunda
Guerra
Mundial,
tenha
sido
sancionado
expressamente um direito constitucional de Asilo
político. É o caso por exemplo da Constituição
mexicana de 1917, art. 15; Constituição brasileira de
1946, art. 141; Constituição cubana de 1940, art. 31;
Constituição italiana de 1947, art. 10; Constituição da
República Federal Alemã de 1949, art. 16, etc.
Depois da Segunda Guerra Mundial desenvolveu-se
uma ação em torno da afirmação do direito de Asilo
como direito fundamental da pessoa humana. Tal
movimento deu lugar tanto à conclusão de convenções
como à adoção de outros atos não diretamente
obrigatórios.
No plano dos pactos foram adotados: a Convenção
de Genebra, de 28 de julho de 1951; o Estatuto da
IRO (Organização Internacional para os Refugiados);
outros atos internacionais relativos ao Alto
Comissariado da ONU para os Refugiados e as duas
convenções de Caracas entre os Estados americanos,
de 28 de março de 1954.
No plano não convencional, a Assembléia Geral da
Organização das Nações Unidas adotou, em 10 de
dezembro de 1948, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, onde se afirma no art. 14, § 1.°,
que "todo o indivíduo tem o direito de buscar e gozar,
noutros países. Asilo nas perseguições". Tal afirmação
lembra a "Declaração sobre o Asilo Territorial",
adotada pela mesma Assembléia Geral, em 16 de
dezembro de 1967, a qual, entre outras coisas, afirma
(art. 1.°) que as pessoas que têm razão para Asilo não
poderão ser rejeitadas nem, uma vez entradas, podem
ser expulsas para os Estados onde estão arriscadas a
ser vítimas de perseguição política. A Declaração
contém, além disso (art. 2.°), a recomendação a todos
os Estados-membros de prestarem assistência
diretamente ou através da ação das Nações Unidas
àquele Estado que se ache em dificuldade pelo fato de
ter concedido Asilo político. Tais
declarações têm valor programático (de modo
especial, no plano de codificação, para a Comissão
para o direito internacional, que tem a missão de
estudar uma convenção universal sobre o Asilo
territorial). Essas declarações não obrigam em si,
diretamente, os Estados-membros das Nações Unidas.
Têm, porém, uma notável influência, pelo menos
psicológica, sobre o comportamento dos seus órgãos
de Governo e dos seus juizes.
II. LIMITAÇÕES DO DIREITO DE ASILO. EXTRADIÇÃO.
TERRORISMO. — O direito de Asilo, como foi dito,
pode ser limitado, no plano convencional, por tratados
relativos à extradição. Trata-se de acordos
internacionais, geralmente bilaterais, mas às vezes
também multilaterais (por exemplo, a Convenção
Européia de Extradição, de 13 de dezembro de 1957,
estipulada entre os Estados-membros do Conselho da
Europa), com os quais os Estados se comprometem
reciprocamente a entregar uns aos outros os indivíduos
procurados, em outro Estado, por delitos previstos nos
mesmos acordos.
Em conformidade com o próprio instituto do Asilo,
e muitas vezes também com os princípios expressos
nos ordenamentos internos, mesmo a nível
constitucional, é característica nestes tratados a
tendência a excluir os delitos políticos do número dos
reatos para os quais está prevista a extradição. Trata-se
de uma tendência, não de uma regra constante e
rigorosamente aplicada. Uma tendência que tem até
sofrido um progressivo e amplo enfraquecimento, em
conseqüência do funcionamento de um mecanismo de
autodefesa da sociedade em face dos fenômenos do
terrorismo, que causou seus efeitos primeiro no plano
interno e depois também no plano internacional.
A primeira exceção à não extraditabilidade do
responsável por delito político foi prevista, no plano
da ordenação interna, pela lei belga de 22 de março de
1856, que "despolitizou" os as-sassínios e atentados
contra os chefes de Estado estrangeiros. Esta exceção
foi bem depressa acolhida em numerosos tratados de
extradição (entre outros, nos que os Estados Unidos da
América estabeleceram em 1888 com a Bélgica, em
1895 com a Rússia, em 1898 com o Brasil e em 1902
com a Dinamarca), até se tomar quase geral sua
aplicação, sob a denominação de "cláusula belga".
Igual influência teve depois o previsto no código
romeno de 1927, segundo o qual os atos de terrorismo
não são em caso algum considerados delitos políticos;
também esta disposição foi aceita em não poucos
tratados de extradição (por exemplo, nos acordos
celebrados entre a Romênia e Portugal e a Espanha).
ASILO, DIREITO DE
A par desta evolução operada no âmbito estatal e no
das relações bilaterais, são de registrar, desde o século
passado, algumas iniciativas de organizações
internacionais, governamentais ou não, tendentes a
impedir a impunibilidade do terrorista expatriado.
Assim, o Instituto de Direito Internacional, na sessão
de Genebra em 1892, excluiu que possam ser
considerados como políticos "os delitos destinados a
minar as bases de qualquer organização social", e a
Conferência Internacional para a Unificação do
Direito Penal, realizada em Varsóvia em 1935,
afirmou, numa das resoluções, que os atos terroristas
não devem ser considerados delitos políticos. Diversas
tentativas têm sido feitas, desde os tempos da
Sociedade das Nações, para converter tais princípios
em normas obrigatórias. Os primeiros êxitos neste
sentido foram, no entanto, esperados até o segundo
pós-guerra, quando, posta positivamente de lado a
idéia de uma convenção que afrontasse, de maneira
global, o problema do terrorismo em âmbito mun dial,
manifestou-se uma firme tendência a buscar soluções
parciais, perseguindo, por um lado, certos tipos de atos
e, por outro, enfrentando o problema num plano mais
integrado e homogêneo. Exemplos do primeiro tipo de
abordagem são as numerosas iniciativas tendentes à
repressão da pirataria aérea (Convenções de Tóquio
em 1963, de Haia em 1970 e de Montreal em 1971) e à
proteção dos agentes diplomáticos e consulares
(Convenção das Nações Unidas em 1973 sobre a
prevenção e repressão dos crimes contra pessoas
internacionalmente protegidas). No plano regional, a
cujo nível recordamos a Convenção de Washington,
adotada em 1971 no âmbito da Organização dos
Estados Americanos (mas sem entrar ainda em vigor),
merece especial atenção a Convenção Européia para a
Repressão do Terrorismo, elaborada e adotada em 27
de janeiro de 1977 no âmbito do Conselho da Europa.
Esta Convenção prescreve que, para fins de
extradição, não podem ser considerados delitos
políticos, além dos crimes de pirataria aérea (faz-se
uma clara referência às Convenções de Haia e de
Montreal) e dos cometidos contra pessoas
internacionalmente protegidas, o rapto, o seqüestro de
pessoas, a tomada de reféns, os crimes que envolvem a
utilização de bombas, granadas, armas de fogo
automáticas, etc., a tentativa de cometer os delitos
acima mencionados e a cumplicidade neles (art. 1.°);
deixa-se, além disso, aos Estados-membros a liberdade
de aplicar o mesmo regime a uma série bem mais
ampla de crimes análogos (art. 2.°).
A Convenção européia, como as demais
convenções relativas ao terrorismo, é, em substância,
um tratado de extradição, mesmo que a sua aplicação
continue subordinada às disposições técni-
59
cas vigentes sobre a matéria. O fundamento jurídico
da extradição continua sendo o tratado ou qualquer
outro instrumento jurídico próprio para regulamentar
tal matéria; a Convenção européia não faz senão
alargar o campo dos delitos para os quais está prevista
a extradição.
Todos os instrumentos citados, dos que contêm a
"cláusula belga" à Convenção européia, constituem,
como já referimos, uma limitação, variavel-mente
profunda, do direito de Asilo; sob este aspecto
peculiar, eles estão sujeitos às críticas dos defensores
mais estrênuos desse instituto. Não obstante as
cláusulas de salvaguarda nela contidas, a Convenção
européia, em particular, tem suscitado reações
firmemente negativas, tanto que se tem chegado a
falar do fim do direito de Asilo e da tendência a
questionar princípios de direito humanitário já
universalmente consolidados. Ao lado de tais reações,
há que registrar os comentários dos que, partindo do
pressuposto de que a Convenção constitui um
instrumento necessário, conquanto decerto não
suficiente, de luta contra o terrorismo num âmbito
espacial particular (o da Europa ocidental), chamam a
atenção para o fato de que os direitos que hão de ser
tutelados não são só os das pessoas acusadas ou
condenadas por atos de violência, mas também, se não
principalmente, os de todas as vítimas, mesmo
potenciais, desses atos; o Asilo, instituto fundamental
para a defesa dos direitos do homem, não pode
transformar-se em garantia de impunidade para quem,
posto que em nome de ideais políticos, conculca os
direitos fundamentais dos outros, entre eles o direito à
vida.
Qualquer que seja a tese que se queira aceitar, é
inegável que o direito de Asilo tende a sofrer,
sobretudo
nos
últimos
anos,
profundas
transformações, reflexo da mudança nas exigências e
características de uma sociedade profundamente
modificada em sua estrutura, se comparada com a
época histórica em que o instituto em questão
começou a firmar-se.
BIBLIOGRAFIA - C. BASSIOUNI, International
extradilion and world public order, Siythoff, Leyden,
Oceana, New York 1974; S. D. BEDI, Extradilion in
inlemalional law and practice, Bronder Offset,
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1976, pp. 743 ss.; F. FRANCIONI, Asilo diplomático.
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ss.; 2. Inlernationales asyl-Colloquium, GarmischPartenkirchen. 1964,
60
ASSEMBLÉIA
Carl Heymanns, Verlag K. G., Kõln, Berlin, Boon,
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19771. in "Annuaire Français de Droil International",
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303 ss.; N. C. RONNINO, Diplomatic asylum. Legal
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1969; Asytrecht ais Menschenrecht, ao cuidado de T.
VEITER e W. BRALMÜLLER, Wien 1969.
[CARLO BALDI]
Assembléia.
O termo Assembléia é geralmente usado para
indicar qualquer tipo de reunião de várias pessoas
para discutir ou deliberar sobre questões comuns.
Enquanto no direito privado indica a reunião de
todas as pessoas diretamente interessadas na solução
de problemas comuns (Assembléia de sócios, de
acionistas, de condôminos), no direito público indica
o corpo representativo de toda a entidade coletiva.
Portanto,, usa-se este termo para indicar o corpo
legislativo, os conselhos comunais, provinciais,
regionais e estaduais, ou seja, para o passado, o
Arengo, o Comício, o Parlamento, a Dieta, mas se
trata sempre de um uso translato. A França usou por
várias vezes este termo, para indicar o órgão
representativo da nação (a Assembléia nacional, 1789;
Assembléia legislativa, 1791; Assembléia nacional,
1875, para indicar a reunião das duas Câmaras).
Também na história colonial inglesa se usou o termo
Assembléia para indicar os órgãos representativos das
colônias americanas. Achamos de novo a expressão
no direito internacional, para indicar o órgão em que
estão representados os Governos de quase todos os
países (a Assembléia Geral das Nações Unidas); e no
direito eclesiástico quando, segundo a nova liturgia, se
destaca o papel dos fiéis, junto ao sacerdote, na
celebração da missa.
No vocabulário político, o termo ocorre
tecnicamente com três significados: Assembléia
constituinte, para distingui-la da Assembléia
legislativa ou Parlamento; regime de Assembléia, para
distingui-lo do regime parlamentar em sentido estrito;
e Assembléia, para contrapô-la à representação.
A noção de Assembléia constituinte emerge nos
fins do século XVIII com a Revolução Americana e
Revolução Francesa, embora haja precedentes nos
Parlamentos, tipo convenção da história inglesa. A
Assembléia constituinte é eleita com fins precisos e
limitados no tempo. É investida do mandato de fazer
uma Constituição escrita, que contenha uma série de
normas jurídicas, coligadas organicamente entre si,
para regular o funcionamento dos principais órgãos de
Estado e consagrar os direitos dos cidadãos. Portanto,
o poder constituinte é um poder superior ao poder
legislativo, sendo precisamente a Constituição o ato
que, instaurando o Governo, o regula e o limita. Mas é
um poder excepcional, que se dá somente no momento
da fundação do Estado, ao qual são subtraídas todas as
funções mais especificamente políticas, como a
atividade legislativa e o controle do executivo. Muito
freqüentemente e precisamente para destacar que a
Constituição é um ato que emana diretamente do
povo, ela é submetida a um referendum, para controlar
se a ação dos constituintes corresponde ou não ao
mandato recebido, (v. também ASSEMBLÉIA
CONSTITUINTE).
Por regime de Assembléia se entende um sistema
político no qual todos os poderes estão concentrados
numa só Assembléia, expressão direta da vontade
popular, com a implícita desaprovação do princípio da
separação dos poderes. De fato, enquanto o regime
parlamentar, com seu sistema de pesos e contrapesos,
dá uma relativa autonomia ao poder executivo,
responsável em relação à Assembléia mas dotado de
uma unidade própria para indicar o direcionamento
político do Governo, no regime de Assembléia o
momento executivo é realizado através de uma
pluralidade de comitês, instituídos pela Assembléia
sem iniciativa por parte do Governo. A Assembléia
age com base no critério majoritário dentro dos limites
postos pela Constituição.
Com o tempo tende-se a limitar a autonomia do
poder judiciário, enquanto corpo separado que age em
vista de interesses particulares, para submetê-lo a um
maior
controle
democrático
e
popular.
Tipologicamente, esta forma de organização do poder
é a expressão de uma democracia po-pulística.
Enquanto os defensores do regime de Assembléia
vêem nisso a realização de uma maior democracia, os
adversários mostram que isso leva, de um lado, à
abolição da distinção entre uma maioria (que governa)
e uma minoria (que controla) e ao perigo da
instauração de uma tirania da maioria, que não acha
nenhum limite nem nenhum freio para satisfação de
sua vontade, e leva, por outro lado, a decisões
apressadas, contraditórias e confusas em contraste
com a paralisia dos órgãos executivos.
ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE
Finalmente, o termo Assembléia é usado também
para valorizar uma instituição baseada na democracia
direta (a Assembléia dos operários, dos estudantes,
etc.), única sede do verdadeiro poder de decisão que é
contraposta tanto às representações eleitas como às
burocracias que administram as forças sociais. O
recurso à Assembléia, ao menos como instância de
controle sobre o processo de decisões ou como modo
de realização de uma maior participação, é útil para
impedir degenerações de tipo parlamentar ou
burocrático e processos de tipo oligárquico, que
terminam por desconhecer ou não entender as reais
necessidades da base. Mas, se levado às extremas
conseqüências, com a negação de toda a forma de
organização e de direção política, leva ao
esvaziamento do movimento, condenando-o à
nulidade política. De outra sorte, premiaria apenas as
minorias ativas e dinâmicas, com inteira desvantagem
da maioria apática.
[NICOLA MATTEUCI]
Assembléia Constituinte.
I. A ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE E O PODER
— Com a expressão Assembléia
constituinte se designa um órgão colegial,
representativo, extraordinário e temporário, que é
investido da função de elaborar a Constituição do
Estado, de pôr — em outros termos — as regras
fundamentais do ordenamento jurídico estatal.
Trata-se do poder constituinte, cuja essência está
numa "vontade absolutamente primária"; primária no
sentido de que ela "tira apenas de si mesma e não de
outra fonte o seu limite e a norma da sua ação". Tal
vontade, enquanto capaz de ordenar e reconduzir a
uma unidade toda a série de relações sociais, dá vida à
organização jurídica estatal, nos casos de formação
original, quando num certo território se forma, pela
primeira vez, um Estado, e também quando um
ordenamento soberano passa a fazer parte de outro (a
chamada formação derivada). Pode-se, portanto,
afirmar que toda nova formação estatal passa
necessariamente à existência através da explicação de
um poder constituinte. Tal poder é catalogado entre as
fontes de produção do direito objetivo. Ele é fonte de
produção das normas constitucionais, as últimas das
quais, neste caso, serão criadas por "fatos
normativos", que têm em si mesmos, e não derivada
de outros ordenamentos, a razão da própria validade e
da própria juridicidade.
O poder constituinte é pois, absolutamente, livre no
fim e nas formas através das quais ele se explica.
CONSTITUINTE.
61
A Assembléia constituinte é precisamente uma das
formas de manifestação do poder constituinte. Da
natureza da função constituinte, cujo exercício
representa a atividade específica, embora nem sempre
única, da assembléia, derivam para ela as duas
características
da
extraordinariedade
e
da
temporaneidade. A Assembléia constituinte é, na
verdade, órgão extraordinário enquanto o exercício da
função constituinte pode verificar-se uma só vez na
vida de um Estado. O renovado exercício dessa função
faz surgir um novo ordenamento. A Assembléia
constituinte é também órgão temporário: ela será
dissolvida com a entrada em vigor da nova
Constituição,
ficando
eventualmente
em
funcionamento, depois de verificar-se tal evento, só
para o desenvolvimento de funções particulares
necessárias à concreta atuação do novo ordenamento.
II. ORIGENS HISTÓRICAS. — O pressuposto
ideológico da Constituinte foi identificado na doutrina
do CONSTITUCIONALISMO (v.) e em particular no
desenvolvimento democrático por ela dado às teorias
jusnaturalísticas do século XVIII. Tal doutrina,
partindo da hipótese da origem con-tratualística do
Estado, via no próprio Estado um organismo criado
pelo consenso voluntário dos homens livres e iguais
por sua natureza. Identificada a fonte dos poderes do
Estado na vontade de todos os componentes da
comunidade, importantes conseqüências eram tiradas.
O povo devia participar na determinação das regras
fundamentais da organização estatal; tais normas
deviam, pois, ser fixadas num documento, que
constituísse, por assim dizer, a realização histórica do
mítico "contrato social". A idéia da participação de
todo o povo na elaboração de tal ato parecia,
entretanto, nos Estados modernos, irrealizável sob
muitos aspectos. De tal objetiva impossibilidade se
fazia derivar — neste sentido é orientado o
pensamento de Sieyès e de Rousseau — a necessidade
de investir da função constituinte um órgão
representativo, cuja ação poderia ser submetida à
avaliação de uma sucessiva consulta popular.
As primeiras figuras de Assembléia constituinte se
encontram na história das colônias inglesas da
América do Norte, no tempo de sua luta e separação
definitiva da Grã-Bretanha. Com a resolução de 10-51776, que precede, não só cronologicamente, mas
também logicamente, a Declaração da Independência,
o Congresso convidou as colônias desprovidas de
Governos eficientes a darem-se autonomamente uma
estável organização política. O documento não falava
de constituições escritas, mas foi interpretado em tal
sentido. Baseando-se nisso, cada Estado criou as
próprias cartas constitucionais. Destes textos, alguns
foram
62
ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE
elaborados por assembléias que desenvolviam
também uma função legislativa ordinária. Outros, por
sua vez, por assembléias especialmente eleitas para tal
fim, isto é, para exercerem a função constituinte.
Nesta diferenciação de órgãos pode-se ver afirmada,
pela primeira vez, ainda que implicitamente, a
distinção, mais tarde enunciada por Sieyès, entre
poder constituinte, que cria a Constituição, e poderes
constituídos, que têm no primeiro a sua origem e que
devem ser exercidos dentro do respeito das regras
constitucionais.
Sucessivamente, a mesma Constituição federal dos
Estados Unidos da América foi obra de uma
convenção
extraordinária,
composta
por
representantes dos Estados da Confederação.
A experiência americana teve, à distância de
poucos anos, seguidores também na Europa. A
primeira Assembléia constituinte européia foi, na
verdade, a Assembléia nacional francesa de 1789.
Numerosíssimas foram pois as Constituintes
convocadas no decurso dos séculos XIX e XX. Em
geral, pode-se afirmar que através da Assembléia
constituinte foram criadas as cartas constitucionais
dos modernos Estados democráticos.
A este propósito, merece uma referência particular
o papel que tiveram na história russa o pedido de
convocação de uma Assembléia constituinte,
apresentado pelas forças anticzaristas, antes de
outubro de 1917, e a sua conseqüente convocação,
bem como sua dissolução, no período imediatamente
seguinte.
A idéia de que o nascimento da democracia na
Rússia após a derrocada do czarismo devia passar pela
ação de uma Assembléia constituinte havia-se tornado
comum aos movimentos e partidos russos, desde os
liberais à corrente bolchevique da social-democracia.
Lenin foi intransigente fautor da convocação da
assembléia, mesmo no período entre fevereiro e
outubro de 1917. Tanto foi assim que os primeiros
decretos do poder bolchevique sobre a paz e sobre a
terra foram emitidos em forma provisória, na
expectativa da ratificação da Assembléia constituinte.
Esta reuniu-se em 18 de janeiro de 1918, depois de
eleições que, efetuadas com base nas listas formadas
durante o Governo de Kerenski, puseram em
evidência o surgir dos social-revolucionários como
primeira força política do país. Tendo a assembléia
recusado ratificar a ação do poder bolchevique, Lenin
decidiu dissolvê-la, aduzindo a razão de que as listas
eleitorais já não refletiam as relações reais de força e,
sobretudo, de que o proletariado industrial, a classe
mais progressiva da sociedade, cujo voto tinha sido
dado majoritariamente aos bolcheviques, não podia
submeter-se à vontade de classes e grupos sociais
menos progressistas, ou até mesmo contrarevolucionários. Nessa altu-
ra, os bolcheviques sustentavam que o poder
revolucionário, destinado a consolidar um sistema de
"democracia proletária", não podia conviver com um
sistema democrático-parlamentar, de que a assembléia
constituía uma instituição típica.
III. TIPOLOGIA DA INSTITUIÇÃO. — Embora
cumprindo a mesma função, as Assembléias
constituintes podem apresentar notável variedade de
características particulares.
A iniciativa, que marca a abertura do processo
constituinte, é sempre, fundamentalmente, obra dos
grupos políticos dominantes nesse particular momento
histórico. Sob o aspecto formal, ao invés, a decisão
constituinte pode ser tomada por um órgão do
ordenamento antecedente, (como quando da
convocação da Convenção por parte da Assembléia
legislativa francesa em 1792, enquanto se discute a
avaliação da Convenção de Filadélfia pelo Congresso
americano em 1787, a qual, na opinião de abalizados
autores, foi uma convenção convocada apenas para
revisar a Constituição preexistente e depois se autoelevou a convenção constituinte), ou então por um
órgão revolucionário que, geralmente, se denomina
"Governo provisório" (o Governo provisório espanhol
de 1931, os Governos provisórios franceses de 1848,
1870, e do período 1944-45), ou ainda por um sujeito
extrínseco ao Estado, isto é, um Estado estrangeiro (a
iniciativa do Estado inglês de convocar uma
Convenção nacional irlandesa em 1917).
Na grande maioria dos casos, a Assembléia
constituinte é um órgão eleito especialmente para
elaborar a nova carta constitucional (as Assembléias
nacionais francesas de 1945 e de 1946 e a Constituinte
italiana de 1946), mas ela pode também ser formada
por um órgão colegial já existente. Precisamente pode
se dar que seja o próprio órgão que teve a iniciativa
aquele que venha a assumir a função constituinte. Os
exemplos nos vêm da história constitucional francesa:
os Estados gerais proclamaram-se Assembléia
nacional em 17 de junho de 1789 e o senado
conservador, embora fosse órgão regulado pela
Constituição naDoleônica do ano VIII, preparou, no
tempo da revolução bourbônica, a Constituição de 6
de abril de 1814, que não entrou em função. Em tais
casos, a assembléia, embora fosse constituída por um
órgão "ordinário" previsto pelo precedente
ordenamento, mantém sempre o caráter da
extraordinariedade, derivando-o diretamente da
titularidade da função constituinte.
Em relação à atividade da Assembléia constituinte,
à parte as atividades preliminares ou de autoorganização (nomeação do presidente, adoção de um
regulamento interno, decisão sobre a
ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE
publicidade a ser dada aos trabalhos), é possível fazer
uma distinção segundo ela desenvolve unicamente um
trabalho de elaboração da nova Constituição ou exerce
outras funções. A Assembléia constituinte pode, de
fato, no ordenamento provisório do Estado, ser titular
da função legislativa ordinária e da função de direção
política. O exercício da atividade legislativa, por
vezes, é inteiramente entregue à assembléia (por ex., a
Assembléia nacional francesa de 1789); outras vezes
fica circunscrita a algumas matérias particulares (v.,
na Itália, o D.Lg.Lt. de 16 de março de 1946, n.° 98, à
base do qual "o poder legislativo ficava delegado,
salvo a matéria constitucional, ao Governo, com
exceção das leis eleitorais e das leis de aprovação dos
tratados internacionais, que seriam deliberados pela
assembléia"). A função executiva, ao contrário,
sempre foi entregue a um órgão mais restrito,
normalmente qualificado de "Governo provisório",
responsável politicamente frente à assembléia, à qual
pode ainda competir eleger o presidente (por ex., a
Assembléia constituinte francesa de 1945, que era
chamada a eleger o presidente e a aprovar a
composição e o programa do Governo provisório).
Passando agora ao exame da atividade relativa à
formação da nova Constituição, a primeira função da
assembléia é a de chegar à formulação de um projeto
preliminar que constitua a base sobre a qual se deverá
desenvolver a discussão. Tal função pode ser
cumprida com a simples adoção de um projeto
preparado por várias pessoas que possam agir por
iniciativa própria (o projeto apresentado pelos
delegados da Virgínia à Convenção de Filadélfia) ou
por encargo (o projeto preparado pelo jurista Preuss
para a Assembléia de Weimar, por encargo do
Governo provisório, o conselho de comissários do
povo). A maior parte das vezes, porém, o projeto é
obra de órgãos internos da mesma Constituinte
(comitês ou comissões), formados de tal maneira que
espelhem as orientações políticas da assembléia. Tal
sistema foi seguido pela Assembléia constituinte
italiana de 1946.
A nova Constituição, uma vez discutida e aprovada
pela assembléia, pode entrar em vigor em virtude da
exclusiva deliberação desta ou depois de uma
sucessiva consulta popular (referendum ou plebiscito).
No que toca a estes dois sistemas diversos, pode-se
notar que para o princípio da soberania popular, à
base da qual todos os cidadãos são titulares do poder
soberano e têm o direito de participar em seu
exercício, parece lógica conseqüência achar necessária
a intervenção do povo. Nestes termos se exprimiu
Rousseau. Pelo contrário, a aplicação exclusiva por
parte do órgão representativo bastaria para esgotar
todo
63
o campo de atividade constituinte, desde que se mova
a partir do princípio da soberania nacional, com base
no qual o poder reside inteiramente numa entidade
impessoal que ultrapassa os cidadãos. Sieyès,
referindo-se à função constituinte, afirma que os
representantes atuam no lugar da nação e que sua
vontade comum é a da própria nação. Todavia, a
experiência histórica parece ter-se inspirado em
motivos de contingente oportunidade política, mais do
que em rigoroso desenvolvimento de princípios
doutrinais.
Nos casos, pois, da formação de um Estado federal
através da união de vários Estados soberanos, surge o
problema se é necessária uma manifestação de
vontade destes últimos para aceitação da nova
Constituição. A praxe é discordante a este respeito.
Em certos casos houve uma aceitação prévia, como no
caso do acordo entre a Rússia e Ucrânia, Rússia
Branca e Transcaucásia em 1922; em outros, houve
uma ratificação sucessiva. Nesta segunda hipótese
pode incluir-se a ratificação da Constituição federal
americana por parte de convenções especialmente
eleitas em cada um dos Estados da Confederação, se
bem que a natureza de tal ato seja discutida doutrinalmente.
Finalmente, no que respeita ao poder de revisão,
pode-se notar que, de uma maneira geral, esse poder é
exercido pelos órgãos de legislação ordinária, seja em
regime de constituição flexível, em que se segue o
normal procedimento legislativo, seja em regime de
constituição rígida, caracterizado pela previsão de um
procedimento particular. O exercício do poder de
revisão, porém, pode entrar também na competência
de assembléias especiais. Assim o art. 5." da
Constituição americana prevê que as emendas ao texto
constitucional podem ser propostas, ou pelas duas
Câmaras de maioria de dois terços, ou por uma
Convenção convocada a pedido de dois terços das
legislaturas dos Estados-membros.
As assembléias de revisão, sejam elas órgãos
ordinários de revisão, sejam órgãos especiais, não
podem entrar no conceito de Assembléia constituinte
pela própria natureza da atividade que desenvolvem.
O poder de revisão, na verdade, é, em todo o caso, um
poder constituído, previsto e regulado pela
Constituição. Se porém através do seu exercício
emanam atos de natureza constitucional, com a
mesma eficácia dos que criaram a Constituição, tais
atos não podem instaurar um novo ordenamento. Eles
devem limitar-se a modificações nos detalhes e a dar
apêndices ao texto constitucional vigente, para
adequá-lo às exigências que historicamente se
manifestaram. Parece portanto exato definir o poder
de revisão como
64
ASSIMILAÇÃO
um poder constituinte em sentido impróprio, devendo
explicar-se num sentido circunscrito.
Todavia, a atividade de revisão pode ultrapassar os
limites explícitos e implícitos que lhe foram impostos,
modificando os princípios fundamentais que estão na
base do ordenamento e que o caracterizam. Neste
caso, temos o verdadeiro exercício do poder
constituinte e as assembléias de revisão devem ser
qualificadas de "órgãos constituintes".
BIBLIOGRAFIA. - P. BARILE, palavra Poiere
Costituente, Novíssimo Digesio. XIII, UTET, Torino
1966; J. A. JAMESON, ConsliiuiionaJ conventions
Callaghan, Chicago 1887; C. MORTATI, La
Costituente. Darsena, Roma 1945, agora em Raccòlta
di scritti. Giuflrè, Milano 1972; F. PIERANDREI,
palavra Costituente (A.) in Novíssimo Digesto, IV,
UTET, Torino 1959.
[VICENZO LIPPOLIS]
africanos administrados pela França, por exemplo, só
nas Quatre Communes do Senegal foi aplicada uma
política de Assimilação total. Em outras regiões, para
se poder gozar do privilégio da cidadania francesa, era
necessário
demonstrar
possuir
qualidades:
conhecimento profundo da língua francesa, religião
cristã, bom nível de instrução e boa conduta.
O mecanismo da Assimilação era semelhante nas
colônias portuguesas. Até o início da guerrilha de
Angola (1961), se conseguia o status de assimilado
por meio de um complexo procedimento legal. Para
que tal status fosse concedido, era exigido um
profundo conhecimento da língua portuguesa, devia
possuir-se uma renda de determinado nível e dar
provas de ser católico e de ter um "bom caráter". A
grande maioria dos africanos não podia, portanto,
conseguir o status de assimilado. Em 1961, todavia,
Portugal aboliu as diferenças entre assimilados e
indígenas e concedeu a todos a cidadania portuguesa.
[ANNA MARIA GENTILI]
Associacionismo Voluntário.
Assimilação.
Em termos políticos. Assimilação designa a teoria
posta na base dos sistemas coloniais francês e
português.
A política colonial da Assimilação invocava a
identidade entre a colônia e a pátria-mãe. Tirava seus
princípios informadores da contribuição universal para
a sociedade humana precisamente da cultura européia
e da doutrina da igualdade de todos os homens
defendida pela Revolução Francesa. Na teoria da
Assimilação
distinguem-se
duas
linhas
de
pensamento: a primeira sustentava a Assimilação total
e pessoal dos povos submetidos à dominação colonial.
A Assimilação total, baseando-se sobre o princípio da
igualdade de todos os homens, defendia que não
existiam diferenças que não pudessem ser superadas
pela instrução e pela ação da "missão civilizadora" da
cultura européia e cristã, considerada superior. A
Assimilação total requeria para o súdito colonial o
mesmo tratamento reservado para o cidadão da pátriamãe, com todos os direitos e deveres inerentes a tal
estado. A segunda linha de pensamento julgava
impossível a Assimilação total e era a favor de uma
Assimilação parcial, de tipo administrativo, político e
econômico, entre a colônia e a pátria-mãe.
A política da Assimilação adotada pelas potências
coloniais — França e Portugal — aderiu, de uma
forma geral, a esta segunda acepção do termo." Tal
política de Assimilação é definida como gradualista
e/ou seletiva. Nos territórios
I. NATUREZA E FUNÇÕES. — As associações
voluntárias consistem em grupos formais livremente
constituídos, aos quais se tem acesso por própria
escolha e que perseguem interesses mútuos e pessoais
ou então escopos coletivos. O fundamento desta
particular configuração de grupo social é sempre
normativo, no sentido de que se trata de uma entidade
organizada de indivíduos coligados entre si por um
conjunto de regras reconhecidas e repartidas, que
definem os fins, os poderes e os procedimentos dos
participantes, com base em determinados modelos de
comportamento oficialmente aprovados.
Todo o associacionismo dispõe de uma estrutura
formal centrada em relações de tipo secundário, junto
da qual existe também uma informal, que procede da
interação espontânea de personalidades e de
subgrupos existentes dentro dela, e que está centrada
sobre relações de tipo primário.
As associações diferem amplamente umas das
outras pelo que diz respeito ao grau de organização,
aos critérios mais ou menos seletivos de recrutamento
dos membros, ao nível mais ou menos elevado de
envolvimento pessoal, que requerem dos participantes
a especificidade ou a difusivi-dade das metas a atingir.
Geralmente as associações voluntárias são
classificadas com base nas principais funções que elas
desempenham ou nos interesses prevalentes que as
originam. Existem, por esse motivo, associações
ASSOCIACIONISMO VOLUNTÁRIO
culturais, recreativas, religiosas, profissionais,
econômicas, políticas, etc.
Nem sempre porém as metas efetivas
correspondem aos fins oficiais. Pode de fato acontecer
que uma associação surja em seu princípio para
realizar metas diversas das que foram anunciadas ou,
então, que sucessivamente os sócios criem finalidades
secundárias que, com o tempo, terminam por alterar
significativamente ou por mudar totalmente tudo o
que a associação se propunha alcançar na data da
constituição. Daqui a necessidade de identificar,
através de um efetivo conhecimento destas
agremiações, tanto suas funções manifestas quanto as
funções latentes.
Para alcançar as próprias metas, qualquer
associação voluntária deve garantir, através de uma
série de incentivos e de gratificações, a participação e
a lealdade dos próprios sócios. Deve, além disso,
possuir um sistema eficiente de comunicação interna e
exercer um controle sobre as atividades
desenvolvidas.
Muitas associações, à medida que se tornam
amplas e complexas, na consecução de suas metas,
tendem a dar maior relevo ao próprio aparelho
organizativo do que à participação de cada
participante.
Ainda que algumas associações estejam
particularmente difundidas e sejam plurifuncionais,
não esgotam nunca a totalidade de relações que
constituem a vida inteira das comunidades. Na própria
setorialidade interna de cada associação, até na mais
envolvente, se encontra a sua diferenciação da
comunidade, segundo conhecida teo-rização de
Tõnnies.
Em termos de relação indivíduo-Estado, as
associações voluntárias são consideradas essenciais
para a manutenção de uma democracia substancial,
enquanto se posicionam como entidades de equilíbrio
do poder central e como instrumento para a
compreensão dos processos sociais e políticos.
A função mediadora das associações voluntárias,
estabelecendo uma ligação concreta entre sociedade e
indivíduo, dá aos membros uma série de satisfações
psicológicas, que pode permitir a cada pessoa um
maior conhecimento do papel que desempenha no
âmbito da sociedade. Uma tal interpretação é
sustentada por Mannheim e outros, que especificam
nos grupos livremente escolhidos um dos meios
principais para o progresso do desenvolvimento
individual.
II. A DIFUSÃO DO ASSOCIACIONISMO
VOLUNTÁRIO. — A difusão do Associacionismo
voluntário constitui uma das manifestações de relevo
da sociedade moderna, sempre mais complexa e
sempre mais caracterizada pela multiplicação de
65
relações de interdependência entre seus membros, que
são levados a ocupar, ao mesmo tempo, várias
posições sociais (fenômeno da pluricolocação).
As causas mais destacadas que determinaram o
desenvolvimento do fenômeno associativo devem ser
procuradas no processo de industrialização e de
urbanização e na instauração dos regimes
democráticos.
Outrora, tanto a comunidade como a Igreja e a
família patriarcal estavam em grau de satisfazer
exigências fundamentais de segurança pessoal, de
controle da realidade circundante, da auto-expres-são
e de ação coletiva, para alcançar determinadas metas.
As transformações sociais, e em particular a
Revolução Industrial, reduziram notavelmente a
capacidade destas estruturas tradicionais para fazer
frente a esta série de exigências, e portanto surgiram
novas estruturas, e em particular as associativas, em
condições de satisfazer as necessidades tanto de tipo
instrumental como de tipo expressivo.
Associações de todo o gênero satisfazem as
necessidades de companhia humana: associações
econômico-sindicais, associações comerciais, asso
ciações de socorro mútuo, cooperativas de produtores
e de consumidores permitem alcançar a segurança
pessoal. Numerosos tipos de associações sociais,
políticas e econômicas não só ajudam a compreender
as dinâmicas sociais, como asseguram aos próprios
membros a intervenção no controle destas últimas.
A instauração de regimes democráticos foi o
segundo acontecimento decisivo para o aparecimento
e o desenvolvimento das associações voluntárias e
representa uma condição indispensável para que estas
possam existir. Dumazedier afirma que as associações
voluntárias nasceram da demo cracia e Tocqueville
defende que a democracia se desenvolveu em grande
parte através delas. As associações voluntárias
existem de fato em todas as sociedades democráticas,
ainda que seu papel possa ser diverso e mais ou
menos importante. Elas atingem todos os setores da
vida social, tanto os econômicos, como os políticos,
os espirituais e os intelectuais, os recreativos e os
culturais.
Se é verdade que uma diferença entre a época
medieval e a época moderna está precisamente no
aumento de grupos com interesses especializados e
atividades diversificadas, é também verdade que nem
em todas as sociedades contemporâneas se lhes
reconhece notável ou até decisiva relevância. É o caso
evidente da sociedade totalitária, na qual os
agrupamentos voluntários, mesmo existindo, não
possuem praticamente nenhum poder, o qual, via de
regra, fica concentrado no Estado ou
66
ASSOCIACIONISMO VOLUNTÁRIO
num partido ou num grupo muito restrito de pessoas
que controlam o Estado. A supressão da liberdade de
associação é de fato uma das primeiras iniciativas dos
regimes autoritários.
Nos Estados Unidos da América e na Suíça, por
exemplo, o associacionismo não encontrou os
obstáculos de ordem legislativa que encontrou na
França e na Itália, onde o direito de associação foi
suprimido durante o fascismo.
Se já Tocqueville tinha percebido o nexo entre
expansão do Associacionismo voluntário e regime
político,
numerosos
estudiosos aprofundaram
posteriormente e com maior sistematização esta
relação. Entre estes lembramos, por exemplo, Rose, o
qual, do confronto do contexto francês com o norteamericano, chega à conclusão de que as causas do
menor desenvolvimento e da menor relevância do
associacionismo na França, com respeito aos Estados
Unidos da América, estão na deliberada repressão das
formas associativas por parte do Governo, preocupado
e receoso da existência de forças que lhe poderiam ser
hostis, na tradição liberal estritamente ancorada na
liberdade individual, na tradição católica, no forte
Governo central, que desenvolve muitas funções que
nos Estados Unidos são deixadas aos Governos locais
e aos cidadãos.
III. A PARTICIPAÇÃO. — Uma das temáticas mais
pesquisadas a fundo que se relacionam com o
Associacionismo voluntário é a das características
quantitativas e qualitativas da participação.
Passaremos a considerar alguns dos aspectos mais
freqüentes e significativos.
Em primeiro lugar, a participação de associações
voluntárias formalmente organizadas, conforme já se
acentuou, varia muito de país para país, e a partir de
uma análise comparativa se percebe claramente que os
países nórdicos, tanto da América quanto da Europa,
apresentam a mais alta pefcentagem de participação.
Segundo estimativas dos anos 60, nos Estados Unidos,
a participação gira em torno de 35-55% (excluídos os
sindicatos), e na Suécia atinge os 51%, excluídos os
sindicatos, em contraste com apenas 4% de habitantes
de uma cidade indiana, por exemplo.
Em segundo lugar, a participação nas associações
voluntárias formalmente organizadas varia no âmbito
de uma mesma comunidade, conforme os diversos
estratos sociais a que pertencem os habitantes, e
precisamente aqueles que ocupam posições sociais
mais elevadas dela fazem parte em medida maior do
que aqueles que ocupam posições sociais menos
elevadas. Deve-se acrescentar ainda que a importância
relativamente escassa das associações voluntárias
formais como
fonte de contato social para a maior parte dos
trabalhadores se torna ainda mais evidente quando se
considera, não só a condição de sócio, mas ainda a
efetiva participação nas atividades associativas. Estas
afirmações acham confirmação nos resultados de
numerosas pesquisas específicas e de comunidade.
Parece existir também uma tendência na base da
qual a participação em associações voluntárias
depende ainda da posição social, no sentido de que
aqueles que fazem parte dos estratos sociais
superiores, com o passar dos anos, tendem a aumentar
a participação, enquanto que aqueles que pertencem
aos estratos inferiores, com o aumento da idade, são
orientados no sentido de diminuir a sua participação
em associações voluntárias.
Com respeito a uma última relação particularmente
significativa — aquela que existe entre participação
em associações voluntárias e atividades políticas —,
pode-se, enfim, salientar os três aspectos essenciais e
de alguma maneira razoavelmente generalizáveis:
a) Aqueles que pertencem a associações políticas,
mesmo apolíticas, em que os inscritos têm o direito de
voto, participam das consultas eleitorais em medida
maior do que aqueles que não fazem parte de grupos
formais voluntários.
b) Os inscritos em partidos e círculos políticos são
contemporaneamente membros de outras organizações
em proporção maior do que a dos inscritos em outros
tipos de associação.
c) A participação numa associação política exerce um
"efeito catalisador" na participação em outras
atividades organizadas; os resultados de algumas
pesquisas, na verdade, colocam em evidência que as
pessoas que aderiram num primeiro momento a uma
associação não política se inscreveram, num segundo
momento, em outras associações em medida menor do
que aquelas que aderiram, pela primeira vez, a uma
organização política.
BIBLIOGRAFIA. - J. DUMAZFDIER e C. GUINCHAT,
ASSOciations volontaires et de loisir. Essai
bibliographique, em "Centro Sociale". VII, 10, 1962;
M. HAUSKNECHT, The joiners: a sociológica!
description of voluniary associatión membership in the
United States. Bedminster Press, New York 1962; A.
MEISTER, Vers une sociologie des associa-tions. em
"Archives Internationales de Sociologie de la
Coopération", 4, 1958; A. M. ROSE, Theory and
method in the social sciences, University of Minnesota
Press, Mmneapohs 1954.
[VICENZO CESAREO]
ASSOCIAÇÕES PATRONAIS
Associações Patronais.
I. LIMITES DO ASSOCIACIONISMO PATRONAL. — De
um ponto de vista formal e jurídico, as associações
sindicais dos empregadores se apresentam análogas às
associações sindicais dos trabalhadores dependentes
(v. ORGANIZAÇÕES SINDICAIS): no sistema italiano de
relações industriais, por exemplo, umas e outras são
associações de direito privado e gozam igualmente da
liberdade de organização sindical. Em ambos os casos
se trata de "sindicatos".
De fato, porém, se se considera a amplitude das
funções efetivamente desempenhadas em relação aos
associados, a relevância das Associações patronais
aparece muito mais restrita se comparada com a dos
sindicatos dos trabalhadores. Isto depende, em
primeiro lugar, da diversa necessidade estrutural de
organizar-se para tutelar os próprios interesses
coletivos que têm os trabalhadores dependentes, de
um lado, e as empresas, do outro, num sistema social
em que estas últimas detêm o direito da iniciativa
econômica e em que elas constituem, de per si, cada
uma, um sujeito organizado, uma coalizão, perante os
próprios dependentes.
Um outro fator determinante é a elevada heterogeneidade dos interesses também sindicais das
várias empresas, conforme se trate de empresas
multinacionais ou não, de grandes monopólios ou de
pequenas e médias empresas que operam num
mercado concorrencial, e assim por diante. Os
acontecimentos e as polêmicas que marcaram a
história recente das associações do patronato
industrial italiano (por ex., separação das empresas de
participação estatal, conflitos entre as posições
sustentadas pelas empresas dos setores em expansão e
expostas ã concorrência internacional e as posições
das empresas que produzem para o mercado interno,
etc.) explicam-se a partir da diversidade e, às vezes,
do conflito dos interesses de referência.
Por todos estes motivos, os estudos e as pesquisas,
como o já clássico Relatório Donovan, sobre o sistema
de
relações
industriais
britânico,
puseram
especialmente em claro a fraqueza das Associações
patronais, mensurada como capacidade de impor
linhas comuns de comportamento às empresas
filiadas: dada também a exigüidade de possíveis
sanções, elas podem, de fato, agir fora das diretrizes
estabelecidas pelas próprias associações, quando isto
parecer mais conveniente a cada empresa.
II. ORIGENS
PATRONAIS. —
E
ESTRUTURAS
DAS
ASSOCIAÇÕES
Historicamente, para as empresas.
67
a exigência de associar-se surge, ou para se tutelarem
perante a intervenção dos Governos em matéria de
legislação social e econômica, ou para se defenderem
perante a ação organizada dos sindicatos dos
trabalhadores (Baglioni, 1974). Em ambos os casos,
trata-se de reações defensivas perante possíveis
ameaças às liberdades empresariais: o primeiro
objetivo facilitará o surgimento de organizações de
dimensão nacional (para manter relações com os
Governos e para exercer pressões sobre eles); o
segundo solicitará soluções organizativas paralelas às
dos sindicatos dos trabalhadores (a congruência dos
níveis organizativos respectivos é exigida pela
evolução dos contratos coletivos) (Clegg, 1976).
Na Itália, por exemplo, as associações empresariais
são articuladas em estruturas territoriais e de
categoria, assim como acontece para os sindicatos dos
trabalhadores (v. ORGANIZAÇÕES SINDICAIS). Existem,
porém, diferenças fundamentais: no caso das
empresas, elas podem filiar-se somente a uma ou a
outra das articulações existentes, de acordo com os
próprios interesses; enquanto os trabalhadores
inscritos nas organizações confederais pertencem
necessariamente a ambas as linhas organizacionais. A
nível nacional, portanto, as associações dos
empresários não dependem de uma confederação
unitária, mas de várias confederações, divididas de
acordo com os setores econômicos em que atuam as
empresas
(Confindústria,
Confecomércio,
Confagricultu-ra), ou segundo outros critérios, tais
como a dimensão, o pertencer ao setor público da
economia ou às empresas municipalizadas, etc. Estes
aspectos mostram como o associacionismo patronal se
desenvolveu multiformemente, de acordo com os
diversos interesses que foram surgindo.
III. FUNÇÕES DAS ASSOCIAÇÕES SINDICAIS DOS
EMPRESÁRIOS. — As funções que as Associações
patronais desempenham podem ser subdivididas em
funções de assistência e consultoria (técnica, sindical,
legal) às empresas filiadas, de representação dos
membros nas contratações coletivas e nas
controvérsias, que não são resolvidas no âmbito da
empresa, de tutela dos interesses dos associados nos
contatos e nas negociações com o Governo e com os
poderes públicos.
A predominância de uma ou outra função depende
das condições do conjunto de relações industriais no
momento em questão. Naturalmente, porém, é sempre
possível para cada empresa agir de forma autônoma
(assessorada pelos próprios consultores, contratando o
mais possível dentro da empresa e procurando exercer
pressões diretas e através de outros canais sobre os
poderes públicos).
68
ATEÍSMO
A experiência italiana após a Segunda Guerra
parece indicar que nos períodos de expansão (milagre
econômico, recuperação entre os anos 70) aumenta a
propensão das empresas mais dinâmicas para a
autonomia perante as próprias associações; enquanto,
do outro lado, o fortalecimento dos sindicatos dos
trabalhadores, que daí pode decorrer, volta a dar
impulso às exigências de coordenar as decisões de
cada empresa, reativando, através de inovações
organizacionais e mudança de diretrizes, o momento
associativo. É provável que, então, se intensifiquem
os esforços por parte das associações para tornar
estável o aumento das adesões (por exemplo,
proporcionando novos espaços para a discussão e o
confronto entre empresas em matéria sindical, ou
multiplicando os serviços de consultoria e de
assistência aos membros).
BIBLIOGRAFIA. - G. BAGLIONI, Videoiogia della
borghe-sia industriale neWItalia liberale. Einaudi.
Torino 1974; A COLLIDA, L. DE CARLINI G.
MoSStTTO, R. SlR -FANELLI, La política del
patronato italiano, De Donato, Bari 1972; H. CLEGG,
Sindicato e conlraltazione colletliva (1976) F. ANGELI,
Milano 1980; ROYAL COMISSION ON TRADE UNIONS
AND EMPLOYERS ASSOCIATIONS, Research Papers. 110, (Donovan Report), Her Majesty's Stationery
Office, Londres 1968; P. RUGAFLORI, Confindustria, in
Storia d'Itália, La Nuova Itália, Firenze 1978, I, pp.
137-53.
[IDA REGALIA]
Ateísmo.
Através deste termo se designa uma atitude teórica
e/ou prática de negação da existência não somente de
um Deus transcendental e pessoal, mas também de
qualquer caráter religioso e sagrado da vida e da
realidade. Essa negação pode manifestar-se explícita
e, às vezes, polemicamente, e se expressa com mais
freqüência na elaboração de idéias e doutrinas, na
constituição de tendências e movimentos, na produção
de um costume e de uma mentalidade que não dão
nenhuma importância à divindade e não revelam a
influência determinante de elementos religiosos. Isto,
não obstante, no decorrer dos séculos, motivos teístas
e religiosos e motivos ateístas muitas vezes se
misturaram e se cruzaram e a fé religiosa sobreviveu
ou ressurgiu no interior de tendências de pensamento
ou de comportamentos práticos que por diversos
aspectos não davam coerente justificativa dessa fé.
Com essas características, o Ateísmo se afirmou
especialmente na Europa, no mundo antigo,
esporadicamente na Idade Média e largamente no
mundo moderno e contemporâneo, quer no plano
cultural e filosófico quer no plano político e social.
Identificou-se e se afirmou junto com o racionalismo,
com o subjetivismo, com a exaltação de uma ciência
autônoma de qualquer condicionamento metafísico,
com uma economia ligada às exigências e aos ideais
das emergentes classes burguesas, com um processo
de lenta mas progressiva laicização da sociedade e do
Estado. Ele, portanto, foi se difundindo e adquirindo
considerável relevância social a partir do declínio da
Idade Média e do surgimento da civilização humanístico-renascentista e, em forma cada vez mais ampla,
multiforme, explícita e combativa, com o iluminismo.
No século XVI, o jesuíta Mersenne afirmava que
durante as guerras de religião, somente em Paris, havia
cerca de cinqüenta mil ateus; no fim do século XVII,
Pierre Bayle sustentava que podia existir uma
sociedade formada de ateus e no fim do século XVIII
Condorcet auspi-ciava o advento de uma época em
que todos os homens fossem livres e não
reconhecessem outro dono a não ser a própria razão.
Na época contemporânea, o Ateísmo atingiu
dimensões imponentes: desenvolveram-se correntes
culturais e filosóficas que levaram a extremas
conseqüências as tendências racionalistas, imanentistas e antropocêntricas; constituíram-se durante o
século XIX movimentos político-sociais capazes de
arrastar atrás de si grandes massas, como o
liberalismo, a democracia, o anarquismo, o socialismo
de caráter irreligioso ou anti-religioso. A Revolução
Industrial e a expansão do capitalismo e o surgimento
da "questão social" criaram atitudes, esperanças,
objetivos de bem-estar individual e coletivo,
despojado, em geral, de qualquer conotação religiosa e
produziram a descristianização prática de largas
camadas da população burguesa e operária. Os Estados
laicos que se afirmaram após a Revolução Francesa,
não admitindo como seu fundamento nenhuma
concepção teológica e proclamando a plena autonomia
em relação à Igreja, atribuindo-se novas prerrogativas
e funções tradicionalmente reservadas à Igreja, como a
escola, a assistência, etc., contribuíram para reduzir
enormemente a área de influência da religião. O
liberalismo, nas suas várias tendências, combateu a
Igreja e o catolicismo porque estes apareciam
estruturalmente ligados à velha sociedade aristocrática
do ANCIEN RÉGIME. O movimento democrático e
radical atacou, em geral, a religião na sua luta pela
soberania popular e por uma sociedade baseada na
igualdade e na justiça. O anarquismo conduziu uma
luta aberta e direta
AUTOCRÍTICA
contra a religião e contra a Igreja, considerada o apoio
e a consagração do autoritarismo do Estado. O
socialismo de inspiração marxista, embora
sustentando a prioridade da luta pela emancipação
econômica do proletariado, base de qualquer outra
emancipação, e embora preocupado em não dividir
em questões religiosas o próprio proletariado, de fato
se configurou como um movimento destinado a
libertar a humanidade também da "alienação"
religiosa. Todos estes movimentos freqüentemente se
apresentaram como portadores de valores alternativos
no que diz respeito à religião, de uma nova concepção
do mundo e da vida, de uma nova moral.
E verdade, porém, que a "laicização do Estado e da
sociedade política aparece larga e constantemente
retardada em relação à laicização da cultura"
(Galasso). De fato surgiram e se afirmaram, entre os
séculos XIX e XX, tendências e forças político-sociais
de inspiração cristã e católica, que tentaram conciliar
os valores religiosos com os do liberalismo, da
democracia e do socialismo. O peso exercido por estas
tendências e forças, a persistente influência da ética
religiosa e cristã nos países católicos e protestantes, as
preocupações conservadoras das classes dirigentes de
alguns Estados europeus, que as levaram a reaproximar-se da Igreja e da religião, provocaram uma
limitação ou uma atenuação do caráter laico destes
Estados, em alguns dos quais, como, por exemplo, na
Itália liberal, geralmente o Ateísmo foi, no plano
institucional e jurídico, mais tolerado do que
efetivamente reconhecido (Cardia). O declínio do
ANTICLERICALISMO (V.) de certas formas de Ateísmo
militantes, todavia, não reduziu, no século XX, as
dimensões do Ateísmo, do caráter irreligioso de tão
grande parte da cultura, da vida privada e pública, dos
movimentos político-sociais. O nacionalismo, o
fascismo e o nazismo exaltaram princípios diferentes
e contrastantes com os princípios da religião e'das
Igrejas cristãs; o fascismo e o nazismo (o primeiro
especialmente) tentaram utilizar a religião como instrumentum regni, no âmbito de ideologias e de
regimes totalitários que destinavam para a Igreja e a
religião um papel prático e subordinado. Também o
comunismo surgiu com características ateis-tas,
embora tentando subordinar a questão religiosa às
exigências da luta de classe. Estas características se
refletiram, em boa parte, na forma estatal que o
comunismo assumiu na Rússia, onde a concreta praxe
política anti-religiosa do partido bolchevique
condicionou fortemente a organização do Estado
soviético: no âmbito de um regime separatista e de
uma laicização institucional, formalmente análogos, e
em alguns aspectos, aos dos Estados liberais do século
XIX, a
69
liberdade religiosa foi submetida a limitações e
reduzida, de fato, ao exercício do culto.
O processo -de laicização da sociedade e do Estado,
que atingiu, especialmente nos últimos tempos,
também, os movimentos político-sociais, pela sua
tendência em reconhecer o pluralismo no seu interior
e pela sua autonomia diante de rígidas premissas
ideológicas, levou, cada vez mais, a considerar a
profissão religiosa uma questão privada e a reafirmar
a sua sempre menor incidência na vida pública.
Enquanto a sociedade contemporânea aparece cada
vez mais se-cularizada em suas estruturas, em suas
diretrizes e em seus comportamentos, persistem ou
ressurgem, todavia, também à margem ou fora das
Igrejas, formas novas, minoritárias mas significativas,
de expressão religiosa.
BIBLIOGRAFIA. - S. ACQUAVIVA, Leclissi del sacro
nella società industria/e. Comunità, Milano 1971; C.
CARDIA, A. e liberlà religiosa neW ordinqmenlo
giuridico. nella scuola. neliinformazione daliUnilà al
nostri giomi. De Donato, Bari 1973; A. DEL NOCE,
IIprobtem deli'. IV A. Mulino, Bologna 1964; G.
GALASSO, Aleo, in "Enciclopédia", II, Einaudi,
Torino'1977, pp. 3-31.
[GUIDO VERUCCI]
Autocracia. —V. Ditadura.
Autocrítica.
Embora o termo hoje tenha já entrado na linguagem
corrente e certas expressões como "fazer a
Autocrítica" sejam de uso quase proverbial, vamos
ocupar-nos especificamente da prática da Autocrítica
em sentido próprio. Trataremos, em síntese, da praxe
em uso nas organizações históricas dos movimentos
operários e que se tornou mais tarde, pelas suas
características mais evidentes, patrimônio exclusivo
dos partidos de tipo marxista-leninista. É por outro
lado bastante sintomático o fato de que, quanto mais
uma organização de classe tende para o reformismo,
tanto mais se afasta da prática da Autocrítica.
A
definição
deste
conceito
pressupõe
preliminarmente uma distinção entre um uso mais
geral do termo e um uso mais específico. 1) Segundo
o uso mais geral do termo, por Autocrítica deve
entender-se: "Reconhecer abertamente um erro,
descobrir suas causas, analisar a situação que o gerou
e estudar atentamente os meios de o corrigir" (Lenin.
O extremismo).
70
AUTODETERMINAÇÃO
Substancialmente, trata-se, portanto, da aplicação
constante do método dialético e crítico de tipo
marxista ao estilo de trabalho do partido, tirando
vantagem didática dos erros e compreendendo
cientificamente as causas e os remédios dos mesmos.
Trata-se de prática considerada importante na
concepção marxista-leninista do partido e necessária
sobretudo para a "educação e instrução (dos partidos
marxistas-leninistas), partindo da experiência dos
próprios erros, uma vez que só assim se podem
formar verdadeiros quadros e verdadeiros dirigentes
do partido" (Stalin, Princípios do leninismo).
Poderíamos pensar que, nesta acepção, a prática da
Autocrítica, para além das denominações, é
característica de todas as organizações políticas.
Porém, o que faz da Autocrítica uma prática típica das
organizações marxistas-leninistas é, de um lado, o
recurso insistente, metódico, constante e, em todos os
níveis, à Autocrítica, e, de outro, a publicidade desta
prática, desenvolvida à luz do sol, incluindo a
individuação e a denúncia das responsabilidades. É
típico, neste sentido, a experiência do partido
comunista chinês, onde a prática da Autocrítica, na
realidade, sempre está conexa à prática da crítica,
como se fossem dois momentos de um mesmo
processo de contínua redefinição de princípios
teóricos e diretrizes políticas. Crítica e Autocrítica
representam realmente um dos instrumentos
principais destinados a garantir a ação eficiente do
partido. 2) No sentido mais específico do termo,
Autocrítica é aquele ato preciso (escrito, discurso,
etc.), através do qual um membro do partido ou um
órgão coletivo reconhece, dentro da própria instância
(célula, comitês do partido em vários níveis,
repartição política, etc.), os próprios erros ou culpas.
Trata-se portanto de um ato formal, relativamente
institucionalizado, usado em foro competente, e que
tanto pode ser espontâneo como solicitado.
Num plano conceituai, este tipo de Autocrítica é
conseqüência de um princípio básico para a
concepção marxista-leninista do partido: aquele para
quem a minoria é subordinada à maioria e o indivíduo
ao partido. Uma vez que o conflito permanente e
organizado não é admitido, a aceitação das posições
de maioria é o único critério de solução para o
mesmo. Mas esta aceitação, por outro lado, não pode
ser fruto de mera imposição e sim fruto de convicção.
Neste aspecto, a Autocrítica representa o testemunho
oficial e público do reconhecimento dos próprios
erros ou culpas e é um caminho para reencontrar a
unidade do partido, em qualquer nível. A Autocrítica
neste segundo sentido deve ser sincera e convicta
e não ditada por simples razões de oportunismo
individual.
Foi exatamente em torno deste ponto que
historicamente se acenderam as discussões mais
contundentes. Certas Autocríticas do período stalinista, na URSS ou nos países do Leste europeu, estão
voltadas para a reafirmação formal do mo-nolitismo
do partido, mais do que para a procura de unidade
autêntica fundada sobre a discussão e a persuasão.
Ainda que se trate de casos-limites e por isso mesmo
mais notórios, deve-se acentuar entretanto que
Autocrítica de que nos ocupamos, em seu sentido
formal, tem também e sobretudo uma função em
relação ao partido, mais do que aquela que a liga ao
indivíduo que a faz. Deste ponto de vista, quando o
indivíduo faz Autocrítica com pouca convicção
baseado em argumentos próprios, mas plenamente
convencido da necessidade de preservar diante do
partido e frente à opinião pública uma imagem de
unidade, a Autocrítica não pode ser definida tout court
como uma degeneração da própria práxis.
[LUCIANO BONET]
Autodeterminação.
I. SIGNIFICADO DO TERMO. — Geralmente entendese por Autodeterminação ou autodecisão a capacidade
que populações suficientemente definidas étnica e
culturalmente têm para dispor de si próprias e o
direito que um povo dentro de um Estado tem para
escolher a forma de Governo. Pode portanto
distinguir-se um aspecto de ordem internacional que
consiste no direito de um povo não ser submetido à
soberania de outro Estado contra sua vontade e de se
separar de um Estado ao qual não quer estar sujeito
(direito à independência política) e um aspecto de
ordem interna, que consiste no direito de cada povo
escolher a forma de Governo de sua preferência.
Embora não faltem referências a um senso de
soberania nacional mesmo em épocas precedentes,
costumam ser individuadas as origens doutrinárias do
princípio de Autodeterminação na teoria da soberania
popular de Rousseau e na sua concepção da nação
como ato voluntário. Os primeiros enunciados do
princípio de Autodeterminação foram feitos com a
Revolução Francesa. No relato preparado por Merlin
de Douai, encarregado pela Constituinte de estudar a
questão da Alsácia (31 de outubro de 1790), dizia-se:
"O povo alsaciano uniu-se ao povo francês por sua
própria vontade. Apenas sua vontade e não 0 tratado
de Münster
AUTODETERMINAÇÃO
legitimou a união". A "Déclaration du droit des gens",
submetida à Convenção (embora não aprovada por
esta) a 23 de abril de 1795 e redigida pelo padre
Gregório (l'Abbé Grégoire) com a finalidade de expor
os "princípios de justiça eterna que devem guiar as
nações nas suas relações recíprocas", afirmava entre
outras coisas a inviolabilidade da soberania
internacional e declarava que o atentado contra a
liberdade de uma nação constitui atentado contra a
liberdade de todas as nações e proclamava o direito de
cada povo organizar e mudar livremente sua forma de
Governo.
Uma contribuição para
a doutrina da
Autodeterminação foi dada pela revolução americana.
"Consideramos como evidentes estas verdades —
afirmavam os colonos americanos — que todos os
homens são criados iguais e dotados pelo Criador de
certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a
liberdade e a consecução da felicidade; que, para
alcançar tais direitos são instituídos, entre os homens,
Governos, os quais conseguem seus justos poderes
através do consenso dos governados; que toda a vez
que uma forma de Governo destrói estes fins, o povo
tem direito de mudá-la ou de aboli-la, instituindo
outro Governo baseado em princípios e organização
do poder que lhe permitam maiores probabilidades de
lhe garantir a segurança e a felicidade."
II. PRINCÍPIO DE AUTODETERMINAÇÃO E PRINCÍPIO DE
AUTORIDADE. — Com a Revolução Francesa, o
conceito de Estado patrimonial é substituído pelo de
soberania da nação. O cidadão e não o súdito adquire
sempre mais a consciência de pertencer a um
determinado grupo social; consciência que, tornada
coletiva, encontra sua expressão no conceito de
nacionalidade.
Mancini tentou precisamente atribuir valor jurídico
à nacionalidade defendendo que os verdadeiros temas
do direito internacional são as nações, obra de Deus, e
entidades naturais, e não os Estados que são entidades
arbitrárias e artificiais. Tal doutrina teve um valor
político notável, sobretudo na época histórica em que
foi
formulada
(1851),
enquanto
afirmava
precisamente como princípio ideal de justiça a
exigência da formação de Estados que tivessem como
base a unidade nacional e não fragmentos ou partes de
nações.
As doutrinas filosóficas deram também uma boa
contribuição para a afirmação do princípio de
Autodeterminação como princípio de ação política.
Um argumento importante foi fornecido pelo conceito
kantiano da autonomia do indivíduo e da liberdade
como condição de autonomia. Outros argumentos
foram oferecidos pela visão
71
fichteana do Estado como condição da liberdade do
homem e pela idéia de Herder de que o gênero
humano foi dividido por Deus em vários
agrupamentos nacionais, cada um dos quais tem uma
missão particular a cumprir. Schleiermacher, tal como
Herder, fundava na língua, no caráter, na história e na
cultura, a distinção entre as várias nações. As nações
deveriam constituir-se em Estados soberanos para
conservar a própria individualidade e para dar a
própria contribuição, pré-ordenada por Deus, ao
gênero humano.
Inspirados em idéias nacionalistas, verificaram-se
na Europa, durante o século XIX, movimentos
insurrecionistas que levaram à independência a
Grécia, a Romênia, a Bulgária e a Sérbia, gerando
também a unificação da Itália e da Alemanha. Para
um maior aprofundamento do controvertido conceito
de nação, convém consultar os verbetes NAÇÃO e
NACIONALISMO.
III. O PLEBISCITO COMO INSTRUMENTO DE
AUTODETERMINAÇÃO. — Um dos instrumentos
através do qual se pode realizar a vontade de pertencer
à nação é o plebiscito que pode ser estabelecido entre
os habitantes de um território. Do resultado de um
plebiscito pode depender a transferência ou não do
território para outro Estado. A praxe dos plebiscitos
ascende, em sua essência, à Revolução Francesa,
época em que se realizaram o plebiscito do Condado
de Venassin e de Avinhão em 1791; o de Sabóia, o de
Mulhouse, de Hainaut e da Renânia em 1792. Isto em
termos modernos, pois existem já exemplos anteriores
e sua utilização está amplamente documen» tada no
Risorgimento italiano como forma de consagração
popular das anexações da monarquia de Sabóia.
Em
tempos
passados
houve
plebiscitos
independentemente de algum tratado internacional
que os previsse. Lembramos os plebiscitos da Emília,
da Toscana, das Marcas e da Ümbria em 1860 e o de
Roma em 1870. Segundo praxes mais recentes, o
plebiscito foi freqüentemente previsto em acordos
internacionais que muitas vezes disciplinam até as
modalidades em que deverão desenvolver-se.
Numerosos plebiscitos se fizeram nos últimos anos
sob os auspícios, e, às vezes, sob o controle das
Nações Unidas, especialmente em relação ao processo
de descolonização.
Não obstante a sua freqüente utilização, o
plebiscito levantou muitas críticas, particularmente no
passado, pelas confusões a que por vezes deu ocasião.
Muitos escritores liberais negaram que ele fosse o
instrumento mais idôneo para expressar e realizar o
princípio de Autodeterminação dos povos, na medida
em que se trataria de um
72
AUTODETERMINAÇÃO
ato instantâneo e isolado, sugerido freqüentemente
pelas paixões ou imposto por forças externas.
IV. DA SOCIEDADE DAS NAÇÕES À ONU. — O
princípio da livre determinação dos povos constituiu
um dos temas ideológicos mais vigorosos e
eficazmente proclamados por acordo durante a
Primeira Guerra Mundial, graças sobretudo à
influência do presidente americano Wilson. Ele foi
incluído nos dois primeiros projetos de Estatuto da
Sociedade das Nações, mas não teve lugar no texto
final, limitando-se, neste, a inspirar o sistema dos
mandatos. A aplicação do princípio tão enfaticamente
enunciado foi comprometida por considerações de
caráter estratégico e econômico. Deu-se conta de que
a fórmula de Wilson dos "remanejamentos territoriais"
comprometeria a segurança e o equilíbrio
internacionais. Contrariamente às expectativas,
portanto, o princípio da livre determinação dos povos
mostrou-se não oportuno para servir de base de uma
paz duradoura. Bem pelo contrário, o mesmo
princípio tornou-se, na política de Hitler, o principal
instrumento para a satisfação de desejos imoderados
territoriais que levaram depois à Segunda Guerra
Mundial.
Não obstante isto, no decurso do conflito, foi ainda
invocado o princípio de Autodeterminação. Na Carta
Atlântica (14 de agosto de 1941), na Declaração das
Nações Unidas (1.° de janeiro de 1942) e na
Conferência de Yalta (10 de fevereiro de 1945) foi
confirmado que nenhuma modificação territorial
deveria acontecer sem o consenso das populações
interessadas. O princípio de Auto determinação foi
expressamente reafirmado na Carta das Nações
Unidas que o tomou como um dos principais fins da
Organização e o incluiu entre os critérios inspiradores
das disposições que ela dedica à promoção dos
direitos humanos, aos territórios não autônomos e aos
territórios de administração fiduciária.
Diversas resoluções da Assembléia Geral foram
sucessivamente recalcando esse princípio: entre
outras, a Declaração sobre a concessão da
independência aos países e povos coloniais (Res.
1514-XV de 14 de dezembro de 1960) e a Declaração
relativa aos princípios de direito internacional
respeitantes às relações amigáveis e à cooperação
entre os Estados, em conformidade com o Estatuto
das Nações Unidas (Res. 2625-XXV de 24 de outubro
de 1970).
V. UNIVERSALIDADE
AUTODETERMINAÇÃO.
DESCOLONIZAÇÃO. — De
DO
PRINCÍPIO
DE
SUA
APLICAÇÃO
À
um modo geral, a doutrina
internacionalista, levando essencialmente em conta o
aspecto internacional da Autodeterminação, afirma
que esta é um direito que tem de ser reconhecido aos
povos submetidos à dominação colonial, a regimes
raciais, ou ao domínio estrangeiro. No máximo,
chega-se a reconhecer tal direito aos povos que se
encontram sujeitos a um governo não representativo,
entendendo-se como tal "não só um Governo racista,
mas também um Governo que lenha de fato um dos
povos que componham a comunidade submetida
numa posição de dependência".
Esta acepção do conceito de representatividade não
pode ser compartilhada. Na esteira dos documentos
acima citados e de outros, é possível dar-lhe um
significado bem mais amplo, vindo-se, pois, a ampliar
a faixa dos titulares do direito de Autodeterminação.
Trata-se, na realidade, de um direito universal: a
Autodeterminação, em sua dupla acepção de direito
interno e internacional, deve assegurar a qualquer
povo a própria soberania interna e as liberdades
constitucionais fundamentais, sem as quais a
soberania internacional do Estado é bem pouca coisa.
É um direito que não se esgota com a aquisição da
independência, mas que acompanha a vida de todos os
povos. Nenhum Governo, seja qual for a cor com que
se cobre ou a ideologia em que se inspira, tenha ele
nascido de umtprocesso revolucionário ou da
descolonização, ou então afunde suas raízes em
tradições democráticas e constitucionais antigas ou
recentes, pode, apoiado em seus méritos passados,
pretender manter-se livre de um cotidiano "controle de
idoneidade" e excluir o povo que governa do número
dos titulares do direito de Autodeterminação. É neste
sentido que se expressa, de forma extremamente clara,
entre outras, a Declaração universal dos direitos dos
povos de Argel, que afirma que todos os povos (sem
distinção) têm direito a um regime democrático,
representativo da totalidade dos cidadãos, capaz de
garantir a todos o respeito efetivo dos direitos do
homem e das liberdades fundamentais (art. 7.°).
Tudo isto não impede que, de fato, o princípio da
Autodeterminação tenha sido invocado sobretudo em
apoio à independência de povos sujeitos à dominação
colonial, a regimes raciais ou ao domínio estrangeiro.
Quanto à descolonização, em particular, as Nações
Unidas têm tomado iniciativas de vários tipos,
destinadas a obter a aplicação do princípio em
questão: a Assembléia Geral instituiu uma comissão
para a descolonização (Comissão dos 17, tornada
depois dos 24) e recomendou repetidas vezes aos
Estados-membros da Organização e às instituições
especializadas que se abstivessem de prestar
assistência aos Estados que praticam uma política
colonial; a mesma Assembléia Geral, na Declaração
sobre as relações amigáveis, afirmou:
AUTODETERMINAÇÃO
"todo o Estado tem o dever de se abster do recurso a
qualquer medida coerciva capaz de privar os povos
sob dominação colonial do seu direito à
Autodeterminação, da sua liberdade e da sua
independência. Ao reagirem ou resistirem a medidas
coercivas desse gênero, esses povos têm direito a
buscar e receber apoio, de acordo com os objetivos e
princípios da Carta das Nações Unidas".
VI. AUTODETERMINAÇÃO E DIREITO À RESISTÊNCIA.
— Todos os instrumentos internacionais relativos à
matéria, e entre eles, em primeiro lugar, as
declarações da Assembléia Geral das Nações Unidas,
reconhecem, tal como o documento agora mesmo
citado, aos povos que lutam pela própria
Autodeterminação um direito de resistência que.se
pode traduzir, em última instância, em recurso ao uso
da força como aplicação do direito de legítima defesa.
Na interpretação dos atos em questão, se faz
comumente valer sua vinculação com o art. 51 da
Carta da ONU, para se vir a reconhecer, com base em
tal disposição, um direito, se não um dever, de intervir
ao lado dos povos oprimidos, imposto a todos os
membros das Nações Unidas.
Na realidade, longe de fazerem expressa referência
à disposição em causa, as diversas declarações se
limitam a reconhecer a esses povos o direito "de
buscarem e receberem ajuda, de acordo com os
objetivos e princípios da Carta" (assim a Declaração
sobre as relações amigáveis e o art. 7.° da Res. 3314XXIX de 14 de dezembro de 1974, relativa à definição
de agressão), ou a afirmar, ainda mais genericamente,
que "a restauração dos direitos fundamentais de um
povo, quando forem gravemente conculcados, é um
dever que incumbe a todos os membros da
comunidade internacional (art. 30, Declaração de
Argel), a cuja solidariedade os mesmos povos têm
também direito (ponto 3 da Declaração sobre a
eliminação do apartheid, adotada em 1976 pelo
seminário internacional que organizou a Comissão
Especial da ONU contra o apartheid).
Seria, aliás, muito grave alargar o campo de
aplicação do art. 51, da hipótese de um ataque
armado, a que esteve sempre rigorosamente ligado, à
geral e genérica hipótese de uma agressão ou do uso
da força, ou até de um comportamento contrário aos
fins e aos princípios da Carta. Estender a aplicação
dessa disposição à luta pela Autodeterminação dos
povos seria abrir caminho à esca-lation do recurso ao
uso da força e ao processo de esvaziamento de todo o
sistema de segurança coletiva criado pela Carta. A
legitimação da intervenção armada de um Estado não
diretamente interessado na luta de libertação seria,
além do
73
mais, perigosa, porquanto poderia levar a uma pesada
ingerência da potência estrangeira na vida do novo
Estado ou na condução do novo Governo, em caso de
resultado positivo das hostilidades, e, sobretudo,
poderia constituir base de justificação para a
interferência de uma potência estrangeira nos assuntos
internos de um Estado, em defesa de grupos rebeldes
(verdadeiros ou imaginários, espontâneos ou
oportunamente organizados), cujo direito à
Autodeterminação fosse inexistente ou, quando muito,
discutível. A história mais recente serve de lição.
O direito de usar a força só deve, portanto, ser
reconhecido aos povos que lutam em nome próprio
pela sua Autodeterminação. Este direito, porém, é de
certo modo limitado, no sentido de que não se pode
considerar lícito o recurso a qualquer ato de violência,
mormente se dirigido contra vítimas inocentes. Não se
pode por isso compartilhar a tese de que as atividades
terroristas, levadas a termo por indivíduos ou grupos
que lutam pela Autodeterminação, hajam de ser
consideradas atos contra o terror, atos de legítima
defesa, resistência ativa ao opressor, que justificariam
e legitimariam os meios empregados. Mesmo que o
terrorismo seja amiúde o único meio eficaz contra um
inimigo muito mais forte e organizado — como
acontece nas lutas de libertação — e constitua, por
conseguinte, um meio de luta difícil de condenar,
desde que reconhecida a legitimidade do recurso ao
uso da força no exercício do direito à
Autodeterminação, existem meios de ação que devem
ser banidos, seja qual for o escopo qiie se tenha em
vista.
O limite entre atividades lícitas e atividades ilícitas
pode ser traçado em função dos meios empregados e
da personalidade das vítimas dos atos terroristas. É
nesta perspectiva que se enquadra também o estudo
sobre o terrorismo preparado pelo secretário das
Nações Unidas, no qual se observa que, embora o
emprego da força seja jurídica e moralmente
justificado, há certos meios que — como em toda a
forma de conflito humano — não devem ser
utilizados; a legitimidade de uma causa não justifica o
recurso a certas formas de violência, especialmente
contra os inocentes: "existem limites para aquilo que a
comunidade internacional pode tolerar e aceitar".
É, pois, legítimo o uso da força, tolera-se o recurso
às atividades terroristas, desde que não se dirijam
contra vítimas inocentes e não se usem meios
particularmente
violentos e desumanos ou
desproporcionados aos resultados esperados ou
plausivelmente expectáveis.
O direito à Autodeterminação dos povos está
intimamente ligado aos direitos dos indivíduos,
74
AUTOGESTAO
de que constitui um corolário; seria clara contradição
lutar pela Autodeterminação, atropelando os direitos
fundamentais da pessoa humana.
BIBLIOGRAFIA — G. ARANGIO-RUIZ, United
Nations Declaration of Friendly Reíations and the
System of the Sources of International Law. Sijthoff &
Noordhoff, The Hague 1979; P. BERGMANN, Selfdetermination. The case of Czekhoslovakia 19681969, Grassi, Lugano-Bel-linzona 1972; S.
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The Hague 1971.
[CARLO BALDI]
Autogestão.
I. DEFINIÇÃO ESSENCIAL. — Por Autogestão. em
sentido lato, se deve entender um sistema de
organização das atividades sociais, desenvolvidas
mediante a cooperação de várias pessoas (atividades
produtivas, serviços, atividades administrativas), onde
as decisões relativas à gerência são diretamente
tomadas por quantos aí participam, com base na
atribuição do poder decisório às coletividades
definidas por cada uma das estruturas específicas de
atividade (empresa, escola, bairro, etc.). São, portanto,
identificáveis duas
determinações essenciais do conceito de Autogestão.
A primeira é a superação da distinção entre quem
toma as decisões e quem as executa, no que respeita
ao destino dos papéis em cada atividade coletiva
organizada com base na divisão do trabalho. A
segunda é a autonomia decisória de cada unidade de
atividade, ou seja, a superação da interferência de
vontades alheias às coletividades concretas na
definição do processo decisório.
Referidas à vida associada cotidiana, estas duas
determinações qualificam a Autogestão como
princípio elementar de modificação das relações
sociais e pessoais, no sentido da reapropriação do
poder decisório relativo a uma dada esfera de
atividade contra qualquer autoridade, embora
legitimada por anterior delegação, como se torna
evidente em expressões como: "Autogestão dos
conflitos", "seminário, passeata, greve autogeri-dos",
etc. Referidas ao funcionamento de um sistema social
global, especificam a Autogestão como um modelo de
sociedade socialista alternativo do modelo estatista
burocrático: de um lado, como superação da lógica
autoritária da planificação centralizada e da
conseqüente apropriação do poder por parte do
aparelho burocrático, mediante a atribuição de uma
plena autonomia gerencial às diversas unidades
econômicas; do outro, como redefinição do caráter
coletivista da organização social, quer mediante a
atribuição das responsabilidades e do poder gerencial
a cada uma das coletividades de trabalho, quer
mediante a deses-truturação do ordenamento estatal e
sua transformação num sistema de autonomias locais
que permita a tais coletividades o controle direto das
condições da reprodução social.
II. ORIGENS DO CONCEITO. — A individualiza-ção
da matriz ideológica da noção de Autogestão
constitui, como veremos, um aspecto da interpretação
do seu significado. Contudo, é possível evidenciar
alguns dos seus elementos prefigurati-vos no
pensamento anárquico (particularmente no conceito
de democracia industrial de Proudhon), nas
concepções do sindicalismo revolucionário europeu e
norte-americano e, mais ainda, na idéia do
Autogoverno industrial aventada pelos socialistas
ghildistas. A origem da problemática da Autogestão
pode, em vez disso, ser atribuída, com maior certeza,
ao encontro do movimento dos CONSELHOS OPERÁRIOS
(V.), difundidos por vários países da Europa no
primeiro pós-guerra, com as posições dos grupos
"extremistas" ou "operaris-tas", no seio dos partidos
socialistas e, depois, da Terceira Internacional, sobre
o problema da "socialização" da economia. De modo
particular, o conceito do "sistema de conselhos"
segundo os
AUTOGESTÂO
escritos de K. Korsch e A. Pannekoek e o grams-ciano
da "ordem nova" são propostas de organização de uma
sociedade pós-revolucionária segundo esquemas de
todo semelhantes aos da Autoges-tão, mesmo que não
sejam definidas com este termo, que aparece só
ocasionalmente em publicações alemãs. Nas décadas
de 20 e 30, com a diminuição do espaço para a
proposta dos conselhos, é possível identificar
importantes elementos da problemática da Autogestão
na crítica trotskista do papel da burocracia no sistema
soviético.
A difusão do termo Autogestão na cultura e na
linguagem política data só dos anos 50, em
conseqüência da introdução na Iugoslávia de um
sistema de organização econômica e estatal assim
denominado. Esta experiência levou, por um lado, a
uma maior especificação do conceito de Autogestão,
quando referido a um conjunto de mecanismos e
procedimentos articulados a nível de empresa e de
estruturas político-administrativas, e, por outro, à sua
conotação não já como proposta "extremista", mas
como solução prática do problema da eficiência e da
democracia de um sistema socialista. Contudo, não se
estabeleceu no uso do termo uma significação precisa
no sentido institucional (a não ser com referência ao
sistema de organização e representação por conselhos
de delegados) e o seu sucesso coincide antes com a
difusão de uma acepção de Autogestão muito
genérica, da Autogestão como algo cujos pressupostos
e condições de realização não se acham definidos de
forma unívoca; daí a dificuldade de lhe demarcar uma
problemática coerente.
III. A AUTOGESTÃO COMO SISTEMA DE
ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA. — Essa dificuldade
refere-se em particular ao significado da Autogestão
como princípio de organização econômica, antes de
tudo por algumas incertezas sobre a sua
especificidade. Há uma orientação sociológica
bastante difusa que tende, com efeito, a abranger a
Autogestão e a co-geslão numa mesma problemática,
a da participação operária e da democracia industrial,
baseando-se na consideração de que ambos os
princípios objetivam restituir aos trabalhadores o
controle da situação de trabalho, propondo, com esse
fim, análogas formas de organização de tipo não
voluntário (conselhos e representações de delegados
eleitos com base na empresa), opostas, portanto, ao
associonismo sindical. Contudo, se esta maneira de
abordar o problema põe em evidência a função de
integração dos trabalhadores no sistema empresarial,
comum aos dois princípios, transcura a diferença
fundamental que existe entre uma proposta de
integração "passiva" e uma integração "ativa", Com
efeito, enquanto
75
a co-gestão tem por objetivo a simples modificação
do processo decisório das empresas, mediante a
inclusão de consultas aos dependentes ou de formas
de co-decisão com seus representantes, podendo até
atribuir-se-lhes um poder autônomo restrito a alguns
aspectos das condições de trabalho (serviços sociais,
ambiente, segurança, etc.), a Autogestão deseja tornar
realidade a socialização do poder gerencial,
atribuindo aos trabalhadores, através de seus
delegados, poder deliberativo em todas as decisões
que lhes dizem respeito — antes de tudo, nas que
concernem à distribuição entre investimentos e
remunerações —, ou seja, tem precisamente por
objetivo a integração "ativa" dos trabalhadores em
suas empresas, o que envolve, em todo caso, a
superação da propriedade empresarial capitalista.
Mais perto da idéia da Autogestão está o associonismo
cooperativo, tanto em termos estruturais, como no
respeitante à matriz ideológica dos dois princípios,
identificável, pelo menos em parte, com a tendência
libertária do movimento socialista. Contudo, enquanto
o associonismo cooperativo põe a alternativa do
trabalho assalariado na redistribuição paritária da
propriedade dos meios de produção entre todos os
membros de uma unidade econômica, a Autogestão
considera, ao invés, como necessária a redefinição do
papel e do poder dos trabalhadores no processo
econômico, pondo como condição de tal processo não
já a aquisição generalizada do status de proprietário
privado, mas sim a supressão de tal status e a
conquista igualitária do poder de gestão, mediante o
direito indivisível do usufruto dos meios "sociais" de
produção. Por conseguinte, enquanto o princípio
cooperativo aceita, de fato, a lógica dos sistemas
capitalistas, em cujo âmbito pode encontrar espaço de
realização, o princípio da Autogestão, conquanto se
possa imaginar atuando em escala limitada e seja
comumente associado ao projeto de uma
transformação gradual das estruturas sociais, implica
sempre uma modificação mais ou menos ampla de
toda a ordem econô-mico-política como condição da
sua realização. Em substância, o princípio da
Autogestão se refere simultaneamente a uma particular
modalidade de organização do processo gerencial
dentro das empresas e, no plano social mais global, a
uma forma particular de organização coletivista, dando
lugar a uma configuração econômica original, cujo
traço principal está em sua referência a princípios
próprios de diversas filosofias econômicas,
aparentemente inconciliáveis: a superação, de um lado,
da
apropriação
privada
da
mais-valia
e,
conseqüentemente, da relação do sistema com o
parâmetro do lucro; do outro, a manutenção da livre
iniciativa nas unidades econômicas.
7b
AUTOGESTAO
Isto resulta de um claro propósito ideológico,
resumível, muito esquematicamente, nesta seqüência
de considerações de princípio: a) a superação da
alienação dos trabalhadores com respeito aos fins da
sua atividade — que constitui o fim último do projeto
socialista — só é possível com a condição de que: b)
eles mantenham o controle direto sobre o destino da
mais-vaiia por eles produzida; isto exige: c) não só a
superação da propriedade capitalista, mas também: d)
a possibilidade de uma plena autonomia gerencial de
cada uma das coletividades de trabalho. A base da
proposta da Autogestão está, pois, numa teoria da
alienação que, embora freqüentemente identificada
com uma interpretação "humanística" do pensamento
de Marx, dificilmente se poderá confundir com a
perspectiva do materialismo histórico, que concebe a
condição salarial como efeito de uma relação social
de produção, isto é dentro da unidade contraditória
entre trabalho e capital. Será mais coerente relacionála com as doutrinas sociais (particularmente com o
pensamento de Proudhon) que, partindo do suposto de
uma entidade natural do trabalho, vão buscar sua raiz
à cisão entre tarefas de gestão e de produção, como
conseqüência da apropriação das tarefas de gestão
pela propriedade privada ou estatal, que violaria
externamente a intrínseca unidade do trabalho,
reduzindo os trabalhadores à condição salarial como
seus simples executores "materiais". O sentido do
projeto da Autogestão corresponderia, pois, à
necessidade de restituir aos trabalhadores o controle
global da sua.própria atividade, considerado como
característica essencial do sistema artesanal, mas no
âmbito de estruturas produtivas de tipo industrial, isto
é, baseadas na cooperação e na divisão do trabalho.
Nesta perspectiva, o mesmo princípio da autonomia
dos produtores que havia sido a condição de
existência do sistema artesanal continuaria sendo
fundamental, com o novo significado de
disponibilidade "comum" dos meios de produção, mas
de poder "individual" sobre a gestão da atividade
coletiva. Na realidade, a atualidade da proposta da
Autogestão é, em geral, reivindicada dentro de uma
perspectiva de análise, presente no pensamento social
contemporâneo, segundo a qual a contradição
fundamental das sociedades industriais não estaria
tanto na estrutura das relações de propriedade, quanto
na das relações de autoridade que o processo de
racionalização tecnológica e organizacional teria
consolidado cada vez mais, condenando a maior parte
dos trabalhadores à alienação do seu trabalho e dando
lugar, a um nível social mais geral, à constituição de
um poder burocrático que impediria toda a efetiva
participação democrática.
Contudo, a tradução de tais princípios num sistema
concreto de organização econômica constitui um
problema ainda sem solução para a teoria da
Autogestão e objeto de um debate que, neste último
decênio, tem levado à explícita formulação de pontos
de vista essencialmente divergentes. Núcleo central do
problema é a concepção da autonomia gerencial de
cada uma das unidades produtivas, em suas
implicações no funcionamento global do sistema
econômico. Alguns acham por bem subtrair tal
autonomia a uma direta relação com os mecanismos
do mercado, definin-do-a no âmbito de sistemas de
planificação capazes de operar por meio de fluxos de
informação, não só em linha hierárquica, mas também
horizontal, simulando o funcionamento do mercado,
ou então, em termos mais liberalistas, no âmbito de
esquemas de programação "policêntrica", capaz de
regular o mercado por meio de uma matriz de
conexão entre vários centros autônomos de decisão.
Outros, ao invés, admitem que só o mercado autoregulado e a completa liberdade de iniciativa das
empresas (corrigida por instrumentos tradicionais de
política creditícia) podem garantir a efetiva realização
de um sistema econômico gerido pelos trabalhadores;
reconhecem até que a maximização da renda de cada
um dos seus membros há de ser considerada como
escopo essencial das empresas autogeridas (J. Vanek).
É evidente que tais divergências comprometem, em
última instância, o próprio significado da Autogestão
como forma específica de organização econômica e
social e, neste sentido, põem em questão seus próprios
pressupostos e fins. De um lado se observa, de fato,
que, na medida em que se põem como condições de
um sistema de Autogestão critérios de racionalidade
independentes dos expressos nas decisões autônomas
das coletividades de trabalho, torna-se teoricamente
injustificada e praticamente impossível a aceitação de
tal princípio como solução da condição de alienação
dos trabalhadores. Mas, de outro lado, se objeta que a
aceitação do livre mercado como meio regulador das
relações entre as empresas autogeridas implica, na
realidade, a aceitação do lucro como força motriz do
sistema social, que, por isso, continuaria vinculado
aos esquemas próprios do capitalismo.
IV. A AUTOGESTÃO COMO PRINCÍPIO
POLÍTICO. — A incerta definição dos pressupostos
da Autogestão é compensada por uma mais clara
eviden-ciação do seu significado como princípio
político. Partindo da necessidade de estabelecer uma
alternativa, tanto para o formalismo abstrato da
democracia burguesa, como para o esquema autocrático das chamadas "democracias populares",
AUTOGESTÃO
os teóricos da Autogestão acabaram por se integrar na
corrente do pensamento democrático radical (de
Rousseau à atual sociologia crítica), chegando a
apresentar, de forma coerente, este princípio de
organização como solução do problema da
democracia substancial. A significação essencial desta
elaboração pode sintetizar-se em termos formais
como: a) "deslocação" do fulcro do problema da
autoridade do momento do seu exercício, ou seja, da
emanação das ordens vin-culantes, ao logicamente
precedente da formação das decisões e: b) solução do
mesmo problema mediante proposta de "socialização"
dos processos decisórios, que se torna possível pela
atribuição a cada indivíduo de um diverso poder de
decisão nos vários âmbitos concretos da sua vida
associada.
Para definir tal conceito, é preciso distinguir a
Autogestão de outros princípios políticos —
particularmente o autogoverno e a democracia direta
— com que se confunde amiúde. Em primeiro lugar,
enquanto
a
abrangência
de
significação
convencionalmente atribuída a esses últimos se refere
à organização político-territorial, ou seja, ao Estado, o
conceito de Autogestão concerne ao conjunto das
atividades sociais que comportam uma organização
coletiva, em primeiro lugar as econômicas. Pode-se
mais facilmente dizer que o princípio do autogoverno
entra por implicação na problemática da Autogestão,
na medida em que a sua realização requer uma
reestruturação do sistema político, tendente à
descentralização administrativa e, sobretudo, à
absorção de muitas das suas funções por comunidades
territoriais locais dotadas de uma forte autonomia
decisória. Contudo, é importante sublinhar que o
sistema institucional pressuposto pela idéia de
Autogestão tem, em princípio, características quase
opostas às da hierarquia funcional e da
intencionalidade subjeti va implícitas na noção de
"Governo",
características
que
se
acham
conotativamente bem claras na própria noção de
"gestão" em sentido figurado, que, na linguagem
econômica, significa a atividade da condução diária de
uma empresa. Ou seja, como sugere a fórmula da
"extinção do Estado", comumente associada pelos
seus teóricos a este princípio, a Autogestão quer
reabsorver
o
poder
decisório-pcslítico
na
"administração das coisas": em outros termos, ela
implica não só a descentralização, mas também a
despolitização do sistema.
Em segundo lugar, a Autogestão não pode
imediatamente ser identificada com a noção de
democracia direta, porque o mecanismo institucional
previsto para a sua atuação, mesmo compreendendo
instâncias de decisão direta (assembléias e formas
diversas de consulta à base), se refere ao sistema de
representação por delegação
77
(conselhos de repartição, de empresa, de bairro,
conselhos comunais, etc.), embora a concepção mais
radical sustente que este sistema tem de ser
completado com o princípio da natureza imperativa e
revogável do mandato. A analogia substancial entre a
idéia de democracia direta e a de Autogestão
encontra-se, de preferência, nas implicações da
relação particular que este princípio entende
estabelecer entre a coletividade e o objeto das suas
decisões, baseado na comunidade de competências e
interesses criada pela participação na mesma atividade
social, que permitiria a cada um tomar parte efetiva na
formação de tais decisões, ser eventualmente delegado
para a sua execução e controlar, de algum modo, sua
aplicação diária (realizando, portanto, a fusão do
momento "legislativo" com o "executivo"),
independentemente da existência de formas de
representação e da atribuição de responsabilidades
definidas.
Em síntese, a Autogestão, enquanto princípio
político, pode ser definida como um mecanismo
representativo transposto para o âmbito das estruturas
concretas das várias atividades econômico-sociais,
com o fim de lhes assegurar o funcionamento; tem seu
momento-síntese a nível das comunidades locais. Por
um lado, outra coisa não é senão a aplicação à esfera
econômico-social de princípios democráticos já postos
em prática na esfera política; por outro, se define
como uma nova forma de organização de todo o
complexo social, na medida em que assume as várias
atividades sociais e principalmente econômicas — e
não a fixação territorial — como estrutura
fundamental da participação na vida associada, ou
seja, envolve os indivíduos como produtores nas
unidades econômicas e como consumidores nas
unidades locais; por outro ainda, ela implica, em suas
extremas conseqüências, a dissolução do poder
econômico e político e o funcionamento das estruturas
sociais só mediante uma autoridade socializada. Com
estas bases, a manutenção de um poder e de uma
organização estatais — contraditória em si com o
princípio da Autogestão — é aceita pelos teóricos
dentro do esquema de um processo de transição e
tornada compatível com tal princípio em virtude da
concepção de sistemas de representação "funcional",
isto é, estruturados com relação às diversas funções
sociais desempenhadas na sociedade (produtivas,
militares, de serviços, etc.).
V. O CASO IUGOSLAVO. — Segundo a definição
precedente, que toma como pressuposto da
Autogestão a superação da propriedade privada dos
meios de produção, os exemplos de atuação deste
princípio — contra a opinião de alguns
78
AUTOGESTAO
autores que aí incluem numerosas experiências de
cooperativas de produção, particularmente a dos
kibutzim israelenses — se reduzem a pouquíssimos
casos, relativos precisamente a regimes coletivistas
(na Argélia em 1963, mas restrita e unicamente em
empresas agrícolas; na Polônia, de 1956 a 1958 e
novamente em 1981; na Tche-coslováquia, em 1968),
dos quais só o iugoslavo assume o caráter de uma
experiência completa e duradoura, aceita, por isso,
como modelo paradigmático de um sistema de
Autogestão.
A instituição da Autogestão na República
Federativa Socialista Iugoslava e o processo contextual de revisão ideológica e política (critica do
"socialismo
burocrático",
posição
de
"não
alinhamento" no campo internacional) hão de ser
relacionados com o problema de uma economia
fortemente atrasada, agravado pelas desvantajosas
condições de troca impostas pelos países do bloco
socialista. Neste sentido, o modelo da Autogestão,
inventado na realidade pelos dirigentes iugoslavos,
justificou-se como meio de conseguir um mais rápido
desenvolvimento do sistema econômico e, ao mesmo
tempo, uma imediata emancipação da condição
salarial: como meio, em substância, de superar,
segundo a tese oficial marxista-leninista, os próprios
termos da contradição (atribuída à experiência
soviética) entre pressupostos materiais do socialismo
("desenvolvimento das forças produtivas") e
modificação, nesse sentido, das relações de produção.
Desde meados dos anos 50, a realização deste modelo
(a chamada "via iugoslava para o socialismo") levou,
através de uma série de reformas institucionais, à
desagregação do anterior sistema monolítico de molde
soviético e à estruturação de três subsistemas —
convencionalmente: economia, autonomias locais e
partido — cujas intrincadas interações definem o
caráter particular de democracia "participativa" que
assumiu este ordenamento, submetido, de resto, a
freqüentes
reformas
institucionais:
quatro
constituições federais de 1946 a 1974, além de muitas
outras leis fundamentais.
A organização do sistema econômico que,
especialmente a partir dos anos 60, visou claramente à
completa autonomia das empresas, deixando apenas à
planificação central os instrumentos de política fiscal e
creditícia, assenta, a nível das unidades produtivas, no
princípio da separação dos poderes de gestão —
confiados a uma escala ascendente de órgãos colegiais
de decisão — dos poderes de direção técnica e
administrativa, definidos segundo uma estrutura
hierárquica convencional — do diretor de empresa aos
quadros inferiores. A definição do slatus do diretor em
relação ao poder coletivo dos órgãos de gestão
e sobretudo a atribuição de tal poder às várias
instâncias colegiais sofreram com o tempo profundas
modificações, ligadas, na primeira fase, ao processo
de liberalização das empresas, destinadas depois a
corrigir-lhes as respectivas disfunções. Segundo a Lei
de 1976, às organizações de base do trabalho
associado (Oour) — grupos de trabalhadores
articulados a nível de seção de fabricação e de
serviços técnicos e administrativos — se atribui,
mediante um sistema progressivo de delegação, o
poder de opção em todas as questões relacionadas
com a direção da empresa, enquanto que o poder
decisório direto é conferido, conforme a importância
das decisões, a três níveis de conselhos delegados
(conselhos das diversas Oour, de estabelecimento, de
empresa); os dois primeiros escolhem em seu seio os
delegados que compõem o órgão imediatamente
superior, obrigados por mandato imperativo a
representar ali os interesses dos respectivos eleitores.
O conselho de empresa define as políticas gerais,
nomeia e destitui o diretor, aceito mediante concurso,
e decide qual a cota de renda que há de ser destinada
às remunerações, cuja distribuição individual tem de
ser ainda estabelecida a nível inferior, onde se decide
também sobre admissões e dispensas.
A conveniência de conciliar a necessidade de uma
recomposição dos interesses individuais e locais
(aumentada pelas disparidades econômicas das
diversas regiões do país) com a possibilidade da sua
direta articulação (intrínseca ao próprio funcionamento
da Autogestão) levou precisamente ao progressivo
abandono das decisões hierárquicas de plano e à
simultânea elaboração do modelo da Autogestão
social, que caracteriza a experiência iugoslava, ou
seja, à extensão dos princípios essenciais da
Autogestão (autonomia derisória e representação
delegada) à esfera administrativa. Com isso, o
ordenamento da R.F.S.J. foi assumindo a configuração
de um sistema articulado, segundo âmbitos de
competências funcionais, determinadas tanto pela
dimensão territorial (comunas, repúblicas, federação)
como pela dimensão téc-nico-produtiva, em
numerosos centros de decisão e ligado, horizontal e
verticalmente, pelo mesmo princípio da delegação
progressiva com mandato imperativo, operante nas
empresas. A comuna. cuja extensão territorial
corresponde à de uma província italiana, constitui a
estrutura basilar deste sistema, tanto pela amplitude
dos poderes econômicos sobre as empresas que
operam no seu território e pela consistência das
funções de Governo local a ela atribuídas, como por
ser ela a intermediária essencial na formação do
sistema da representação funcional dos interesses
sobre que se rege toda a ordem jurídica institucional.
AUTOGESTAO
Com efeito, o sistema iugoslavo prevê, a cada um dos
três níveis territoriais, uma dupla estrutura, órgãos
deliberativos e de Governo, com competências
funcionalmente diferenciadas (econômicas e políticoadministrativas) e baseadas num duplo sistema de
representação, que integra o princípio da
representação geral dos cidadãos com a dos
trabalhadores como tais. Assim, a Constituição de
1974 prevê, a nível dá comuna, um conselho do
trabalho associado, composto por delegados das
diversas Oour e de unidades similares de trabalho
noutros setores, e um conselho das comunidades
locais, com delegados eleitos, tendo por base o
território, nos vários bairros. Estes conselhos
nomeiam, por sua vez, os delegados chamados a
representá-los nas respectivas câmaras das
assembléias das diferentes repúblicas e assim
sucessivamente no que respeita ao Parlamento federal.
Esta descentralização do sistema econômico e
administrativo (teorizada como processo de "deteriorização" do Estado) trouxe consigo também uma
progressiva modificação do status do partido único e
das demais organizações compreendidas na Aliança
Socialista (sindicato, associações de guerrilheiros),
tanto no plano institucional, onde lhes foi reconhecido
um poder menos disperso e melhor definido, a par do
dos conselhos de empresa e conselhos territoriais
(existe, por isso, a nível das comunas e das repúblicas,
um terceiro conselho, o conselho sócio-político, eleito
tendo por base as listas apresentadas pela Aliança
Socialista), quanto no plano organizacional, mediante
a estruturação das diversas organizações políticas
segundo o princípio comum da delegação progressiva.
No entanto, vários observadores têm notado que a
própria articulação e crescente complexidade dos
mecanismos formais da "democracia participativa"
permitiram que o partido e seu grupo dirigente
mantivessem de fato o papel de variável independente
do sistema, sob pretexto da necessidade funcional de
que o ajustamento entre os diversos interesses tivesse
um ponto de referência mais geral.
VI. EXPERIÊNCIAS SUCESSIVAS. — Ulteriores
tentativas inspiradas no princípio da Autogestão
(particularmente a polonesa e a tchecoslovaca)
permitem precisar os termos mais genéricos da
problemática da forma histórica segundo a qual se
tornou realidade este sistema de organização
econômica, incluído o caso iugoslavo.
Por um lado, torna-se cada vez mais evidente que
tal problemática é atribuível, mais que a motivos
ideológicos, à necessidade prática de consentir numa
substancial autonomia gerencial das empresas, como
reação a situações de crise
79
econômica e social, imputadas a experiências
anteriores de planificação centralizada. Neste sentido,
ela se insere na problemática mais geral da
descentralização das decisões econômicas, reclamada
em quase todos os regimes coletivistas pelas
insuficiências do sistema, especialmente evidentes no
concernente ao consumo; aqui a outra característica
da Autogestão, de ligar a autonomia das empresas ao
poder decisório dos conselhos operários, tem sua
explicação na particular gravidade das situações de
crise, como meio de incentivar a produtividade do
trabalho e de legitimar a nova dependência da renda
dos operários do lucro efetivo das empresas.
Por outro lado, porém, a problemática destas
experiências é indivisível das implicações políticas
derivadas do nexo que uma tal reforma das empresas
estabelece entre descentralização e re-distribuição do
poder econômico. Com efeito, na medida em que tal
poder é atribuído aos CONSELHOS OPERÁRIOS (v.) —,
ou seja, a organismos não voluntários e,
conseqüentemente, não diretamente controláveis pelas
organizações políticas dominantes (partido e
sindicato) — é também posta em questão a estrutura
que, no âmbito dos regimes de partido único, sustenta
o monopólio do poder, desenvolvendo-se uma
dinâmica que implica, de qualquer modo, a
modificação de tais sistemas políticos. Isto explica
não só porque do confronto entre as várias
experiências de Autogestão resulta, coeteris paribus,
uma relação inversa entre a autonomia gerencial
atribuída às empresas e os poderes reconhecidos aos
conselhos, como também porque a definição da
estrutura destes organismos (modos de eleição,
composição, dimensões, articulação, etc.) e dos seus
poderes em face dos do diretor das empresas constitui
o nó crucial de tais experiências e o princípio da sua
distinção formal, bem assim como porque, mais
indiretamente, sua dinâmica tem sido marcada, pelo
menos até agora, pela drástica alternativa entre o
brutal e progressivo esvaziamento das funções
autônomas dos conselhos (Polônia em 1958,
Tchecoslováquia e, em parte, Argélia), ou então, onde
o partido único logrou redefinir sua própria função, o
explícito reconhecimento de tais organismos a nível
do sistema político-administrativo (Iugoslávia).
A experiência polonesa mais recente, terminada
com o golpe militar de dezembro de 1981, ilustra com
extraordinária evidência as implicações políticas da
Autogestão, precisamente em relação ao particular
significado de afirmação da autonomia política da
classe operária que esse princípio assumiu naquele
contexto social e cultural. A própria excepcionalidade
do surgimento de tal proposta como reivindicação
espontânea
80
AUTOGESTAO
da base operária no âmbito de um processo de
insubordinação,
que
já
tinha
levado
ao
reconhecimento oficial do sindicato independente
Solidarnosc, e a sucessiva indicação de tal
reivindicação como objetivo estratégico do novo
sindicato indicam que o sistema de Autogestão
industrial instituído no outono de 1981, conquanto
constituísse em sua estrutura formal uma inovação
institucional sem precedentes para um regime de
"socialismo real" (eram, com efeito, atribuídos aos
conselhos operários poderes muito amplos na gestão
das empresas, mesmo em matéria de nomeação e
destituição dos diretores), representava, de fato, um
compromisso, destinado a criar uma nova dialética
política que envolveria, de qualquer modo, a
distribuição do poder real. Quando tal reforma se
mantivesse restrita ao sistema das empresas, ela se
traduziria seguramente em processo conflituoso de
"controle operário", organizado pelo sindicato
independente. Quando, pelo contrário, os conselhos
operários obtivessem reconhecimento a nível de
organização estatal conforme o esquema da
Autogestão social iugoslava, em que se inspiravam
alguns
dirigentes
sindicais,
propondo
a
descentralização administrativa e a instituição a todos
os níveis, mesmo a nível do Parlamento nacional, de
uma segunda câmara com competência em matéria de
economia, daí derivaria — diversamente do que
ocorreu no caso iugoslavo — mais que uma
"despolitização" da dialética social, uma forma
particular de pluralismo político, com o poder
dividido entre o partido e a organização Solidarnosc.
VII. CRÍTICAS. — Dada a forte densidade ideológica
do conceito de Autogestão, será conveniente examinar
as críticas que lhe têm sido dirigidas, distinguindo,
enquanto possível, as que foram feitas a experiências
concretas, particularmente à iugoslava, das que visam
o princípio como tal. As primeiras tendem em geral a
pôr em evidência, com intenções políticas diversas, a
incongruência de alguns dos resultados desta
experiência já trintenária com seus pressupostos
socialistas. Qs fenômenos em que se concentram
fundamentalmente tais análises críticas são quer a
existência na sociedade iugoslava de fortes
desigualdades nos rendimentos pessoais, quer
sobretudo a diferença entre os diversos setores
produtivos e entre as regiões do país, que, com o
tempo, foram constantemente aumentando (em 1978,
na Eslovênia, a renda per capita era mais de seis
vezes mais alta que no Kossovo), desequilíbrios que
são atribuídos à clara tendência das empresas
autogeridas a reproduzir os esquemas de
comportamento das capitalistas (busca do lucro,
práticas monopólicas, sonegação fiscal, etc.). Mais
significativa é a observação de que o sistema
iugoslavo de Autogestão se foi desenvolvendo dentro
de um círculo vicioso, entre a necessidade por parte
dos trabalhadores de um comportamento orientado ao
interesse coletivo (consciência socialista), como
requisito para uma distribuição não egoísta das
vantagens, e a função de incentivo à produtividade
assumida pelas retribuições; isto repercutiria no
malogro da busca, a nível da engenharia social, de um
ponto de equilíbrio entre a necessidade de controlar o
comportamento das empresas, para fins de um
desenvolvimento equilibrado do sistema, e a
necessidade da sua autonomia como condição da
participação dos trabalhadores na gestão.
Estas considerações têm sido expostas dentro de
uma perspectiva de tipo liberal, como crítica de fundo
ao próprio princípio da Autogestão, cujo limite
estrutural é posto em sua impossibilidade de permitir a
formação de um sistema coerente de responsabilidade,
pois, como demonstra a experiência, toda a
diminuição da propriedade privada aumenta a
preferência pelo consumo corrente em prejuízo da
acumulação para investimentos inovadores; um limite
que, por outro lado, não seria compensado pela
possibilidade de tal princípio modificar a estrutura das
relações de trabalho, já que o funcionamento das
empresas requer necessariamente e de qualquer modo,
como parece resultar da mesma experiência iugoslava,
uma hierarquia social baseada na competência. Enfim,
muitas objeções se têm concentrado no próprio
significado socialista do princípio da Autogestão, isto
é, na sua pretensão de constituir uma via para a efetiva
transformação neste sentido das relações sociais. As
mais fortes partem da consideração de que, se a
autonomia das unidades produtivas, ou seja, a
categoria da empresa, é um requisito indispensável
para o princípio da Autogestão, essa mesma categoria,
longe de ser a forma "natural" da produção social, é o
resultado específico do modo de produção capitalista,
no sentido de que a separação dos trabalhadores do
controle dos meios de produção não é senão o efeito
da separação das empresas entre si. Por isso, o limite
fundamental do princípio de Autogestão não estaria
tanto no fato de que a sua realização envolve um
sistema de relações econô-mico-sociais definidas pela
lei do valor do trabalho, quanto no fato de que, pela
própria lógica do princípio, ela impede toda a
possibilidade de transição do sistema para outras
relações de produção; por este motivo, a Autogestão
não seria senão uma tentativa fictícia de restituir aos
trabalhadores a propriedade do seu trabalho,
sancionando com isso, de modo definitivo, a
AUTOGOVERNO
permanência de relações sociais que ligam a posição
social dos indivíduos ao trabalho que desenvolvem.
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[MASSIMO FOI.LIS)
Autogoverno.
I. MULTIPLICIDADE DOS SIGNIFICADOS
AUTOGOVERNO. — O termo Autogoverno, que
DE
é a
tradução do inglês self-government, tem um
significado impreciso não só nos países continentais
mas até na própria Inglaterra, onde hoje é usado como
equivalente a cummunal autonomy. Procuraremos por
isso examinar as causas que levaram ao uso impróprio
do vocábulo. Para isso percorreremos a história anglosaxônica e continental do problema em causa, tratando
finalmente das atuais perspectivas e linhas de
tendência.
81
Na Inglaterra, o Autogoverno representava a
fórmula organizativa em que se inspiravam as relações
entre o aparelho central e os poderes locais. A medida
em que isso poderá ser válido ainda hoje será
examinada depois. Num plano descritivo, o local
government se inspirou no sistema do Autogoverno
enquanto se realiza através de uma série de entidades
que exercem as próprias funções com um largo grau
de independência do Governo central e que são
regidos por sujeitos diretamente indicados pelas bases
interessadas. As competências exercidas eram, além
disso, de grande amplitude tanto que, até alguns
decênios atrás, o aparelho central tinha apenas
algumas atribuições particulares, tais como as relações
diplomáticas, as colônias, a moeda, a defesa, a
plataforma marítima e alguns tributos indiretos,
enquanto que o resto, como a polícia, a instrução, a
saúde, a indústria, o comércio, a agricultura e a
assistência, eram atribuições dos órgãos do Governo
local. Esta realidade, simples em seu conjunto, tornase complexa quando se passa a um exame analítico de
cada elemento que a compõe. Num plano de
organização, por exemplo, a administração estatal
periférica era constituída por entidades a quem era
atribuída ou a personalidade jurídica (corpocfitions)
ou uma mais limitada autonomia (quasicorporalions). Estas entidades, embora não cessando
de ser parte da administração estatal (não cessando,
portanto, neste aspecto, de ser órgãos), desenvolviam,
como já se disse, um largo número de funções sob a
orientação de pessoas designadas através de eleições,
pela comunidade dos administrados e caracterizados,
no exercício de suas atribuições, por larga
independência em relação ao aparelho central.
II. DADOS SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO
AUTOGOVERNO INGLÊS. — É oportuno determo-nos,
embora rapidamente, sobre o processo histórico que
conduziu na Inglaterra à atual configuração do
Governo local. As unidades tradicionais em que se
subdivide este último são os condados, os burgos e as
paróquias. Só no século XIX, as respectivas
atribuições e as relações inter-decorrentes entre estas e
o poder central assumem uma certa sistematicidade.
Antes da grande reforma do século XIX, as unidades
de maior relevo foram os burgos e as paróquias aos
quais foram particularmente confiadas tarefas de
assistência e manutenção de matérias viáveis. Para
estas tarefas foram designados funcionários eleitos
pela assembléia dos cidadãos composta por todos os
chefes de família ou somente pela elite constituída
pelos maiores contribuintes (por este motivo há a
distinção entre sacristias abertas e fechadas). Este
82
AUTOGOVERNO
sistema apresenta deficiências de vários tipos como a
absoluta falta de uniformidade e de coordenação entre
as unidades de Governo local, a variedade dos modos
de taxação, a dificuldade de achar pessoas dispostas a
desempenhar os cargos administrativos, que são
completamente gratuitos.
Mas estes inconvenientes tornaram-se verdadeiros
motivos de crise quando, com a Revolução Industrial,
os problemas técnicos e sociais assumiram um tal
relevo que os levou além das possibilidades das
paróquias e dos burgos. O fenômeno se manifesta em
relação ao Governo local inglês em dois sentidos: de
um lado se manifesta a tendência das menores
unidades a colocar em comum, sobretudo em matéria
de assistência, os serviços; de outro lado aparecem
novos tipos de organização como entidades para as
estradas e pedágio (turnpikes Irusls) que nasceram
como conseqüência do desenvolvimento do tráfego
rodoviário e hoje a já conhecida inaptidão da paróquia
para fazer frente aos novos problemas, instituições
para tomar providências (Improvement commissions)
voltadas para setores como a iluminação, o asfalto, o
esgoto e dotadas de uma força embrionária de polícia.
Mas a reforma mais importante, por ter enfrentado
pela primeira vez de uma forma diferente as relações
entre as autoridades centrais e locais, é a que foi
introduzida em 1834 pelo Poor Law Amendment Act.
O problema da assistência dada pelas paróquias tinhase agravado pela insuficiência de meios e pela
absoluta confusão gerada pela diversidade de
organizações e disciplina entre as paróquias. Uma
comissão sediada pelo Governo central em 1832
examinou as condições, em matéria de assistência, em
300 paróquias e descreveu na relação final o estado de
extrema confusão existente. Baseando-se nestas
observações, foi instituída em Londres uma comissão
para a lei dos pobres que superintendesse ao serviço
feito pelas paróquias. É um acontecimento importante
porque representa o primeiro caso de ingerência
formal do poder central sobre os serviços locais e
também porque introduz um tipo de autoridade central
funcional, ad hoc, num setor preciso e delimitado. O
esquema traçado por esta ocasião torna-se
rapidamente um modelo para a ação do poder central
em oufros setores como no dos po-deres municipais
(Municipal Corporations Act, em 1835) ou no da
saúde (Public Health Act, em 1848). Quando
posteriormente o primeiro Governo liberal de
Gladstone impôs às paróquias que dessem escola
obrigatória à população (1876) e gratuita também
(1891), resultou clara a necessidade de especificar um
nível de unidade local mais adequado no que diz
respeito aos meios e
idôneo em assegurar standards satisfatórios de
uniformidade. A unidade utilizada para tal fim é o
condado. Até esta data, o condado apenas se ocupara
de estradas, direção de polícia (desde 1850),
concessão de licenças, mas a partir do século XX
tornou-se na primeira e mais importante entidade
local. A nova sistemática foi definida pelo Local
Government Act em 1888 e pode considerar-se a base
do atual sistema de Governo local.
III. A REFORMA DE 1972 NA INGLATERRA.
— O que vimos até agora podemos, em geral,
considerá-lo como relativo à realidade do
Autogoverno inglês até à Segunda Guerra Mundial.
Depois surgem, com efeito, problemas novos (ou de
novo e maior relevo) que acentuam a necessidade de
uma incisiva obra de reforma de todo o Governo local.
Além da corajosa entrada do Estado no campo da
segurança social e das novas funções introduzidas no
tocante à organização dos poderes públicos, do
desenvolvimento
tecnológico
bastará
evocar,
resumidamente, dois elementos que abrem e encerram
o período considerado, a saber, a organização
administrativa especial adotada na Inglaterra durante o
período bélico (com a alteração da distribuição das
funções que daí se originou, se evidenciou, ao mesmo
tempo, a conveniência das soluções introduzidas
mesmo em período de paz) e as conseqüências que
advieram, a nível local, dos ritmos de inflação
sofridos durante a década de 70.
Num sistema que, como o que analisamos, baseia
predominantemente a autonomia imposi-tiva local nos
impostos sobre a propriedade imobiliária, a contínua e
visível elevação do valor desta por via do ritmo
inflacionário não podia deixar de provocar o aumento
da base tributável e, conseqüentemente, a agravação
dos impostos devido à progressividade das alíquotas.
O esforço dos níveis locais por evitar, pelo menos
em parte, a impopularidade decorrente de uma
pressão tão acentuada, realizado, em primeiro lugar,
com o afrouxamento, tanto em termos de tempo como
de cálculo, da reavaliação do valor dos imóveis,
atenuou, de alguma maneira, o impacto negativo na
população, mas trouxe consigo profunda alteração na
composição da receita financeira dos níveis locais,
aumentando a importância do centro e dos meios por
este distribuídos.
Estes são, pois, apenas alguns dos fatores que
provocaram a abertura de um longo debate sobre a
reforma do Governo local.
A elaboração cultural, política e institucional desta
reforma foi, com efeito, assaz longa, se. se
AUTOGOVERNO
considera que seu início foi decidido já em 1945
(constituição da comissão para o reordenamento dos
limites do Governo local) e a sua conclusão só se deu
em 1972 (lei de reforma apresentada pelo Governo
conservador então em função), entrando em fase de
execução dois anos mais tarde.
Antes de explicar os termos desta reforma, é bom
lembrar as linhas principais pelas quais se regulou
este debate, até porque, no ordenamento italiano,
também se apresentaram de novo algumas das mais
relevantes e significativas questões enfrentadas pelos
ingleses.
A primeira refere-se à relação entre as funções
desempenhadas ou a desempenhar pelos diversos
níveis e a dimensão territorial dos respectivos níveis
de Governo.
Enquanto na Itália, ainda em boa parte em nossos
dias, estes dois aspectos têm sido freqüentemente
considerados como independentes entre si — tanto é
assim que a Constituição prevê um complicado
processo para a modificação das cir-cunscrições
territoriais das entidades locais, mas nada diz sobre a
relação entre as novas dimensões assim adquiridas e
as novas funções daí derivadas —, na Inglaterra, a
primeira comissão criada (a comissão de limites,
como já foi lembrado) abandonou os trabalhos,
declarando que, sem enfrentar simultaneamente
também a questão das obrigações e funções atribuídas
ao Governo local, não tinha qualquer possibilidade de
cumprir o encargo. Era assim reconhecida uma
primeira e necessária ligação que tem de ser tida como
elemento orientador em toda a intervenção nesta
matéria.
A segunda diretriz, não menos importante, põe em
evidência uma outra conexão necessária, a que existe
entre reordenação do Governo local e nível
intermediário.
O aumento quantitativo dos serviços prestados à
coletividade e, mais ainda, sua transformação (tanto
em termos de estruturas aparelhadas para a sua
distribuição como pelo próprio conteúdo dos serviços
oferecidos) impuseram, nestes últimos trinta anos, a
real necessidade de prover ao seu reordenamento,
colocando a sua gestão (até por razões econômicas de
vulto) a um nível territorial mais amplo que o
anteriormente aceito.
Esta dinâmica, comum à totalidade dos países
ocidentais, provocou na Inglaterra problemas
totalmente específicos, por ser ali tradicional a falta de
um nível intermediário entre o Governo local e o
conjunto dos poderes centrais.
Efetivamente, enquanto nos sistemas federais se
verificou a potencialização das estruturas estaduais ou
regionais e nos Estados de administração de tipo
francês a atribuição de encargos ao prefeito ou a
articulações estatais descentralizadas
83
do mesmo nível, na Inglaterra, as exigências de
renovação e evolução para unidades mais vastas, tanto
em termos de população como de superfície, não
podiam ser sustentadas desde um nível mais amplo e
reclamavam, em conseqüência, a reorganização do
próprio Governo local.
Tudo isso, ao mesmo tempo que nos permite
compreender com mais precisão o sentido do debate
que teve lugar na Inglaterra e o significado das opções
aceitas com a reforma de 72, faz ressaltar a íntima
correlação e o condicionamento recíproco que o
reordenamento das entidades locais de base
(comunas), bem como dos papéis e funções da
província, e o reordenamento da administração
periférica do Estado manifestam, inclusive nos outros
sistemas, particularmente, como veremos, no italiano.
É bom acrescentar que, segundo dados recentes, os
financiamentos destinados pelo centro atingem
atualmente 45% da receita global dos Autogo-vernos
ingleses e não faltam pareceres favoráveis à
transformação da totalidade das finanças locais em
finanças "derivadas", diríamos nós, ou seja, baseadas
em transferências dispostas pelo Governo e
restringidas, por isso, à mera autonomia da despesa. É
a este resultado que levarão as propostas favoráveis,
pelos motivos já indicados, à total abolição dos
impostos locais sobre a propriedade e à sua
substituição pelo produto da arrecadação (ou quotas
desse produto) dos impostos governamentais.
O aumento dos encargos confiados aos níveis locais
fica, pois, de alguma maneira "dobrado" com a
tendência à centralização da imposição e da
arrecadação fiscal, conforme dinâmicas, que é
possível encontrar em muitos outros países e que, pela
divergência introduzida entre a arrecadação dos
recursos e a sua utilização, particularmente no tocante
aos serviços, mostram, de modo inequívoco, o fim das
bases sobre as quais se fora consolidando
historicamente o modelo clássico do Autogoverno.
Venhamos agora às características da reforma
introduzida em 1972.
O novo sistema inglês compreende dois níveis de
poderes, um superior (condados) e outro inferior
(distritos), estendidos por todo o território nacional
(Inglaterra e Gales precisamente). Constituem exceção
a Escócia, com regime autônomo, e Londres, com um
sistema institucional próprio. Os condados (47) têm
funções preponderantes no setor dos serviços, tanto de
tipo pessoal como real: instrução, saúde, assistência,
polícia, bibliotecas, por um lado, rede de estradas
principais, administração do tráfico, transportes
públicos e planificação das estruturas, por outro.
84
AUTOGOVERNO
Os distritos (333) intervém sobretudo numa faixa
de atribuições atinentes à política urbana e do
território, uma política que poderíamos chamar
"básica" por dizer respeito à gestão do patrimônio
imobiliário (é bom precisar que, na Inglaterra, um
terço de toda a propriedade de construção nacional e
cerca de 40% das atuais construções habitacionais
pertencem às entidades locais e são por elas
administrados), à planifica-ção local e respectiva
fiscalização, à rede de estradas locais, ao serviço de
limpeza urbana, ao esporte e tempos livres.
Nas áreas de alta concentração urbana, este
esquema sofre notáveis modificações, tanto que se
fala de condados e distritos "metropolitanos" (o que se
verifica em seis áreas: Birmingham, Liverpool,
Manchester, Leeds, Sheffield e New-castle),
caracterizados por uma distribuição de funções que
privilegia, com relação ao sistema ordinário, mais os
distritos que os condados (em contraste, portanto, com
as tendências verificáveis, por exemplo, na Itália,
sobre este tema específico, onde a existência de uma
área metropolitana traz consigo — pelo menos no que
respeita aos projetos de reforma atualmente em
discussão no Senado — a tendência a transferir para o
alto, isto é, para a província metropolitana, encargos
habitualmente atribuídos à comuna).
Como é evidente, é cedo para fazer um balanço de
uma reforma de tal envergadura. Quanto ao já
observado, se pode acrescentar que a mencionada
necessidade de definir âmbitos mais amplos para a
gestão das funções se traduziu, no que respeita à
Inglaterra, numa drástica simplificação dos anteriores
níveis de Governo, reduzidos, com exclusão das
paróquias, a cerca de um terço dos que existiam antes.
IV. CONTEÚDO DO AUTOGOVERNO. — O sistema de
Autogoverno inglês, portanto, resultado de uma longa
evolução histórica, realizava ao mesmo tempo uma
série de elementos que examinaremos distintamente,
sublinhando, a partir de agora, que a falta de
aprofundamento da complexidade da experiência
inglesa constitui o motivo principal de um uso do
termo sempre mais parcial e impreciso. Se
consideramos com atenção o esquema do
Autogoverno que delineamos sumariamente até aqui,
verificamos a presença de elementos de
descentralização administrativa, de auto-administração e de democracia:
1. Descentralização administrativa: no sistema inglês
é reservada aos órgãos periféricos uma esfera de
competência tirada de outros controles que não sejam
de caráter contábil. Se a isto ajun-tarmos a falta de
uma relação hierárquica com o aparelho central e a
observância limitada das
leis (com exclusão de outros atos normativos),
constatamos a presença de todos esses índices
próprios, como atestam recentes estudos sobre a
matéria de descentralização administrativa.
Devemos esclarecer porém — e isto é um elemento
largamente
esquecido
pelos
estudiosos
do
Autogoverno — que se trata de uma descentralização
dentro da administração estatal sem algum contato
com a descentralização autárquica.
2. Auto-administração: os cargos diretivos da
entidade são confiados a pessoas diretamente
escolhidas pelos administrados, de tal maneira que
através delas seja assumida a chefia do órgão e a
representação da coletividade de que são expressão.
3. Democracia: na Inglaterra a exigência de permitir
a participação do povo na determinação dos objetivos
políticos foi obtida não com a criação ou o
reconhecimento de entidades separadas do Estado,
como as comunas ou as províncias mas com a
participação dos cidadãos segundo o sistema do
Autogoverno nos órgãos da administração estatal
periférica. Deve observar-se por outro lado que o
problema que examinamos não é, dentro deste ângulo,
senão uma das expressões do princípio geral no
taxation without representation. Baseada neste
princípio, a pretensão das autoridades públicas à
contribuição patrimonial do cidadão não pode ser
separada da participação deste último no exercício do
poder. Do que acima foi exposto torna-se claro que os
burgos e condados, os distritos urbanos, os burgos
municipais, os distritos rurais, etc, nos quais se
articulou o sistema do Autogoverno inglês, mesmo na
variedade de seus elementos, não são apresentados
como entidades locais distintas do Estado, mas como
"articulações autogovernativas do Estado" nas
matérias que lhes foram confiadas.
V. A AFIRMAÇÃO DO AUTOGOVERNO NOS
ORDENAMENTOS
CONTINENTAIS.
—
É
precisamente este último elemento que é inteiramente
esquecido desde o início do século XIX quando o
sistema do Autogoverno se propõe como um modelo
para os ordenamentos continentais e se insere na
corrente de reação contra o centralismo napoleônico.
A experiência continental em termos de relações entre
centro e periferia era aliás bastante diversa uma vez
que se cingia, quanto à participação dos cidadãos, ao
problema da autonomia local e à reação entre esta e o
aparelho central estatal. Dado o sistema binário
comum à maior parte destes países, caracterizado pela
oposição às entidades locais territoriais de órgãos
estatais locais em função de controle e coordenação,
as exigências de democracia, de participação e de
descentralização, de que o Autogoverno é expressão,
não
AUTOGOVERNO
poderiam ser referidas senão às entidades locais
territoriais. Para estas últimas se reivindica o
Autogoverno sem se atentar que, dessa maneira, se faz
referência aos conteúdos do mesmo Autogoverno mas
se perde seu caráter de fórmula organizatória interna
ao aparelho estatal. O uso do termo que é feito nos
países continentais perde, com o andar do tempo,
precisão, enquanto é referido de vez em quando
apenas a um ou outro elemento a que se ligava
originariamente, in modo unitário. Por vezes, na
verdade, foi usado com o significado de autonomia
local, quer dizer, era referido àquelas entidades que,
ligadas necessariamente a um território e população
determinados, são caracterizadas pela amplitude e pela
generalidade dos fins para cuja consecução são
exigidas determinações políticas autônomas que
podem até contrastar dentro de certos limites com as
do aparelho estatal. Outras vezes, o termo pretende
exprimir hipóteses de descentralização administrativa
e então põe em destaque as modalidades com que são
exercidas as funções compreendidas na esfera de
determinados órgãos e entidades. Finalmente, o termo
pode significar autarquia, entendida esta como o poder
reconhecido a certas entidades para exercer atividades
administrativas com as mesmas características e
efeitos das atividades estatais.
Pelo que acabamos de expor torna-se evidente a
necessidade de dar ao termo a acepção específica, já
que de Autogoverno foram dadas as linhas de
evolução histórica e política. No plano jurídico, o
fenômeno do Autogoverno não é "uma posição
jurídica, como a autonomia, a autocefalia e a
autarquia, mas uma figura organizativa como a autoadministração". Figura organizativa é, digamos assim,
a noção que representa o modo (ou os modos) através
do qual são reguladas as relações organizativas entre
sujeitos jurídicos (a hierarquia e a subordinação, por
exemplo). O Autogoverno, portanto, tal como a autoadministração é um dos modos de ser desse tipo de
relações, das relações entre sujeitos, com esta
precisão: que enquanto o primeiro é característico dos
órgãos locais e das entidades territoriais, a segunda se
situa prevalentemente dentro dos próprios órgãos de
base associativa. Para além da qualificação jurídica
torna-se claro de qualquer maneira que o Autogoverno
em sentido próprio se refere aos órgãos locais situados
no âmbito da administração estatal, caracterizados
pela sua personalidade jurídica ou pelo menos por
uma autonomia de gestão, não ligados por relação de
hierarquia ao aparelho central e dirigidos por
funcionários de origem eletiva designados diretamente
pela comunidade administrativa.
85
VI. O PRINCÍPIO DO AUTOGOVERNO E A
SUA ATUAL EVOLUÇÃO. — Passemos agora a
examinar em que medida o Autogoverno pode ainda
hoje considerar-se fórmula válida de organização.
Deste ponto de vista pode dizer-se que o declínio do
Autogoverno acompanha o declínio do Estado liberal.
Como se sabe, a este último eram confiadas apenas as
funções que não podiam ser exercidas senão por um
aparelho central, quer dizer, estatal. Fora deste
complexo funcional (defesa, relações internacionais,
jurisdição superior), as funções restantes eram
confiadas principalmente às entidades e órgãos locais
(as assim chamadas funções de polícia, em sentido
lato), tendo-se em conta que em alguns campos, que
depois adquiriram fundamental importância como a
economia, os poderes públicos estavam inteiramente
ausentes.
Convenhamos entretanto que o sistema fosse
inspirado no princípio do Autogoverno, como nos
países anglo-saxônicos ou que se ativesse ao sistema
binário, como nos países continentais. Neste caso, é
certo que deste estado de coisas derivava um
particular relevo para os poderes locais, aos quais,
conforme já se assinalou, competia naturalmente a
maior parte das atividades administrativas, ao menos
no plano quantitativo. O declínio do Estado liberal, a
tomada sempre crescente de mais e mais funções por
parte do aparelho central, a entrada do poder público
em áreas abandonadas, modificou profundamente o
quadro de relações de organização entre órgãos e
entidades locais de um lado e o aparelho do Estado de
outro. Se a isto forem acrescentadas as enormes
transformações trazidas pela técnica, que impôs, pela
própria natureza de determinados serviços, a
necessidade de uma coordenação rígida, fica
expHcado como os órgãos de Autogoverno foram
submetidos a controles relevantes e como em seu
flanco foram criados órgãos ligados ao aparelho
central através de uma relação de hierarquia.
Mudanças de tal relevo não podiam deixar de
introduzir tendências completamente novas e às vezes
até opostas, se considerarmos as situações referidas
acima. Na Inglaterra, as funções inicialmente
desenvolvidas pelas corporations ou pelas quasicorporations foram transferidas de uma maneira
notável para órgãos estatais locais dependentes do
aparelho central e dirigidas por funcionários
estavelmente adscritos à administração enquanto que
os órgãos estatais do Autogoverno sofreram uma
evolução que os aproxima mais da figura das
entidades locais, não sendo mais portadores de
interesses estatais mas com tendência a realizar
objetivos próprios. Isto explica por que selfgovernment é um termo de significado
86
AUTOGOVERNO
ambivalente, mesmo nos países anglo-saxônicos,
podendo referir-se, atualmente, tanto a fenômenos de
autonomia
local
quanto
a
exemplos
de
descentralização estatal. Nos países continentais
acontece precisamente o contrário, onde o aparelho
central tende a entregar serviços estatais a entidades
locais, em medida sempre crescente. De tal modo que,
para além de qualquer outra consideração, termina por
realizar formas muito próximas do Autogoverno
porque as entidades locais, embora permanecendo as
mesmas e sem assumir a natureza de órgãos,
desempenham poderes e funções estatais através de
sujeitos eleitos pelos próprios administrados.
Por estes motivos, como já autorizadamente foi
observado, "As duas grandes experiências do passado,
do Autogoverno e do sistema binário, acham-se hoje
em linhas convergentes, cada uma tomando elementos
da outra", podendo observar-se "como nos países
anglo-saxônicos os organismos locais, tomando a
aparência dos órgãos autogovernados, se convertem
em organismos de autonomia; como nos países
continentais, na medida em que são introduzidos
elementos de Autogoverno, a autonomia passou a ser
mais reduzida" (Giannini, 1948).
VII. O AUTOGOVERNO NO ORDENAMENTO
ITALIANO DEPOIS DA CRIAÇÃO DAS REGIÕES
DE
ESTATUTO
ORDINÁRIO:
NOVAS
REFORMAS E VELHOS PROBLEMAS. — Uma
vez que o sistema institucional italiano pertence,
especialmente no que respeita à administração e aos
aparelhos públicos, à tradição continental (mais,
representa uma singular mistura de características
próprias da experiência francesa e alemã), nossa
análise sobre o Autogoverno deveria, pelo que se viu
até agora, ficar por aqui.
Com efeito, desde os tempos da unificação,
estendeu-se a todo o território nacional o sistema
"binário", fundado na distinção entre articulações
periféricas do Estado (prefeito, em primeiro lugar, e
órgãos periféricos das administrações de setor:
inspetorias, provedorias, intendências, etc.) e
administração local, e na fundamental submissão
desta àquelas.
Não obstante isto e o dado nada irrelevante de que
tal ordenamento se manteve, em geral, inalterado até
os anos 70, é possível mostrar como se estão
consolidando na realidade institucional italiana alguns
aspectos inovadores de grande importância,
perfeitamente referíveis ao conceito de Autogoverno
enunciado no começo destas considerações. Falamos
do sistema adotado desde o início do nosso
ordenamento administrativo unitário: podemos
acrescentar que tais características, pelo menos no
plano institucional, se
mantiveram imutáveis ou, quando modificadas,
assumiram uma fisionomia perfeitamente oposta à do
Autogoverno.
Durante o regime fascista, por exemplo, ocorre
algo similar, porque foi mantida a diversidade dos
sujeitos institucionais, mas a nomeação das
autoridades máximas da administração local era do
Governo: justamente o contrário, portanto, dos
sistemas de Autogoverno onde a autoridade
institucional é única, mas a designação dos
responsáveis pela chefia a nível de Governo local é
deixada à livre escolha das populações interessadas.
O critério da separação entre as diversas
autoridades operantes a nível local foi, enfim,
repisado pela própria Carta Constitucional de 1948.
Embora mais de uma voz tivesse solicitado a adoção
de um sistema inspirado no princípio do Autogoverno,
o título V da Constituição, na introdução ao novo
ordenamento regional, confirma a separação entre este
e as entidades locais (comunas e províncias) e entre o
seu conjunto e as articulações periféricas da
administração estatal, satisfazendo deste modo as
exigências de fiança que todo o nível institucional
reivindicava (e em boa medida ainda hoje reivindica)
em relação ao imediatamente superior.
Contudo, foi justamente a entrada em vigor do
ordenamento regional (1970) que pós às claras a
existência de um número considerável de elementos
contraditórios respeitantes a um delinea-mento tão
pacífico como o do nosso sistema de Governo local.
A fragmentação que caracterizou a transferência
das funções administrativas para as regiões (só
parcialmente corrigida pelo D.P.R. n.° 616 de 1977) e
a conseqüente "co-gestão" anômala que se criou entre
os poderes centrais e as autoridades locais sobre a
mesma matéria, os vínculos de despesa cada vez mais
estritamente atribuídos às regiões e às entidades locais
pelas autoridades financeiras, a gestão dos poderes de
controle por parte do Estado, os limites bastante
amplos impostos ao exercício do poder legislativo
regional, a total centralização de toda a intervenção
referente à receita e a reserva exclusiva ao âmbito
nacional, através de períodos de contratação, da
definição do tratamento jurídico e econômico tanto
dos agentes de serviços tipicamente locais (escola,
assistência sanitária municipalizadas), como dos
dependentes das próprias entidades também locais,
obrigam forçosamente à revisão das bases antes
referidas.
A imagem da ordem institucional que surge do
concurso recíproco de tais fenômenos parece antes
contradizer as separações estabelecidas pelas
disposições, mesmo constitucionais, que regulam a
AUTOGOVERNO
matéria e que delineiam, ao contrário, um sistema
propensamente homogêneo e unitário no plano
administrativo, cuja condução está confiada, nos
diversos níveis e articulações, a grupos dirigentes
cada vez mais escolhidos pelas várias coletividades
interessadas.
Se as coisas são como acabamos de referir, então a
conclusão a tirar é que, no nosso ordenamento,
embora exista um sistema normativo baseado na
distinção entre diversos sujeitos institucionais, estatais
e locais, se foi gradualmente consolidando um sistema
de Autogoverno, por assim dizer "alterado", isto é,
fundado na unicidade da organização administrativa e
na origem eletiva das diversas autoridades destinadas
à chefia dos vários segmentos (centrais, regionais e
locais) em que se articula a administração pública.
Trata-se, é inútil acrescentar, de processos assaz
recentes e de modo algum isentos de contradições
mesmo recíprocas.
Não obstante, a qualificação proposta parece captar
o sentido mais profundo do desenvolvimento em ação,
já estendido também aos níveis comunais. Sempre que
se objete que os fenômenos acima citados podem
talvez representar o que ocorre a nível regional, mas
mantêm-se de qualquer modo extrínsecos ao próprio
coração do Governo local (a comuna), ainda
caracterizado não só pela subjetividade, como também
pela autodeterminação e auto-organização, se poderia
opor que os acontecimentos mais recentes,
particularmente as reformas de setor em matéria de
serviços, parecem confirmar o que foi dito.
Modelos muito semelhantes ao Autogoverno
parecem, de fato, surgir com as recentes ações de
reforma respeitantes tanto aos encargos da
administração periférica do Estado, como às funções
tradicionalmente próprias das entidades locais, o que
se afigura sobremodo significativo.
Quanto ao primeiro aspecto, podemos recordar a
reforma dos órgãos de gestão da administração escolar
(1974), com base na qual se transferiu uma parte
notável das decisões relativas ao serviço (que, não
obstante, continua sendo estatal desde qualquer ponto
de vista) para os representantes das coletividades
locais ou dos grupos sociais interessados. Quanto ao
segundo, basta pensar na sistematização esboçada pela
lei da reforma sanitária (1978) que, embora com
incertezas e obscuridades, estrutura, de forma unitária,
toda a organização administrativa do setor (serviço de
saúde nacional), reservando a direção das suas várias
articulações ao Estado, regiões e entidades locais.
A qualificação que se atribui a tais formas de
Autogoverno,
acentuando-lhe
justamente
as
alterações, não é só devida ao contraste objetivo e,
87
de qualquer forma, danoso que assim se veio a criar
entre ordem essencial e disciplina normativa e é fonte
de não poucas disfunções e incertezas, mas pretende
também atingir até algumas das razões que,
presumivelmente, constituem a base do fenômeno
agora assinalado.
Ambas as formas pertencem à configuração do
nosso sistema político, mas uma parte diz respeito ao
funcionamento dos partidos, enquanto a outra se
refere mais estritamente à administração e ao papel
que esta desempenha.
O regime de separação institucional, muitas vezes
mencionado, é, de fato, amiúde, fortemente mitigado
pelas estreitas vinculações que os níveis centrais de
cada partido político mantêm (com óbvias diferenças,
conforme o caráter de cada um) com os níveis
regionais e locais da própria organização e,
conseqüentemente, com as decisões e orientações
destes.
Devemos, contudo, precisar que esta obra de
homogeneização das tendências demonstradas por
centros institucionalmente de todo autônomos uns dos
outros não se distribui com igual intensidade por todos
os objetos sujeitos à avaliação discri-cional das
autoridades competentes, parecendo antes condensarse de preferência em torno da faixa de determinações
de caráter mais estritamente político (como, por
exemplo, a formação das maiorias), enquanto é
normalmente bastante mais tênue no que respeita às
decisões de caráter administrativo.
Na outra vertente, a que se refere ao caráter do
nosso sistema administrativo, outro elemento de
unificação é o representado pelos vínculos funcionais
naturalmente surgidos no seio de aparelhos que,
embora pertencentes a autoridades distintas, se tornam
comuns ao intervir no mesmo setor. Nasce daí uma
intrincada rede de relações, normalmente de caráter
vertical (ministério da agricultura, por exemplo,
assessorias regionais da agricultura, entidades locais
que operam no setor, como os consórcios de
beneficiamento ou as entidades de desenvolvimento),
que atinge perpendicularmente numerosos níveis
institucionais diversos e que é comumente observável
em cada um dos setores de intervenção do Governo
local.
Sendo assim, é inevitável que, através desses
canais, se articulem dinâmicas tão fortemente
integradas que só parcialmente respondam às
solicitações ou ao comando dos respectivos níveis de
Governo. Compreende-se, sob este ponto de vista, por
que é que os aparelhos de diversas regiões, operantes
no mesmo âmbito, estão entre si mais próximos que
os diversos aparelhos de setor pertencentes à mesma
região.
Por muitas e variadas que sejam as razões de tudo
isto (igual formação do pessoal burocrático,
88
AUTORIDADE
forte interação entre os vários níveis em virtude de
uma sistematização assaz centralizada, temáticas
comuns mesmo no plano técnico, diária interação com
interesses de setor externos, necessariamente iguais),
é inegável que deriva daí uma acentuada pressão
tendente à homogeneidade e, por vezes, à própria
uniformidade.
Este rápido esboço é suficiente para justificar o uso
que se fez da qualificação de Autogoverno "alterado",
já que são manifestas as conseqüências negativas em
termos de conflito entre o sistema normativo e a
ordem real, de rigidez administrativa de escassa
influência dos vários níveis de Governo sobre a ação
dos aparelhos, de grave confusão no plano das
responsabilidades, provocada pela clara divergência
entre centros formalmente competentes para o
exercício do poder deci-sório (não raro portadores de
responsabilidade por fato alheio) e centros capazes de
desempenhar, de fato, um papel determinante, de que
não resulta, no entanto, pelas mesmas razões, qualquer
parcela de responsabilidade. Não são estes,
evidentemente, os únicos elementos de diferença com
relação à experiência inglesa de Autogoverno: bastaria
recordar como esta soube evitar normalmente (mesmo
na recente e ampla reforma apresentada nos anos 70) a
permanência de velhas estruturas junto às novas,
introduzidas em épocas sucessivas, ou evocar a
constante ligação ali mantida entre reordenação dos
níveis de • Governo local e mudança das
circunscrições eleitorais (dado, este último, decisivo
para a compreensão da razão de tantos insucessos e do
êxito final dos projetos de reforma que tiveram lugar
no último pós-guerra).
Entretanto, o que foi lembrado talvez já nos
permita compreender, em seus termos essenciais, a
complexidade das questões agora chegadas ao
Parlamento italiano, com o início dos trabalhos que
visam à aprovação de uma nova lei sobre a
administração local, complexidade devida, entre
outros numerosos aspectos, à proposta de optar por
um sistema inspirado na separação das autoridades
institucionais ou por um modelo semelhante ao do
Autogoverno que, apesar das das aparências, por
muito tempo se manteve em discussão e aguarda ainda
uma decisão.
BIBLIOGRAFIA. - A. BARBERA, Le istituzioni del
pluralismo. De Donato, Bari 1977; F. BASSANINI, Le
regioni fra stato e comunità. Bologna 1976; B. DENTE,
Il governo locale in Itália, in ALT. VÁR., Il governo
locale in Europa, "Quaderni di studi regionali", VIU,
1977; M. S. GIANNINI, Autonomia locale e
autogoverno, in "II corriere amministrativo", 1948; F.
LEVI, Studi sullamministrazione regionale e locale,
Giappichelli, Torino 1978; P. G. RICHARDS,
The new local government system. G. Allen-Unwin,
London 1975; F. A. ROVERSI MÔNACO, Profili
giuridici del decen-tramento nella organizzazione
amminislraliva, CEDAM, Padova 1970; L. J. SHARPE,
Il decentramento in Gran Bretagna, in AUT. VÁR., H
governo locale in Europa, "Quaderni di studi
regionali", cit.
[MARCO CAMMELLI]
Autonomia. — V. Autogoverno; Descentralização e
Centralização.
Autoridade.
I. A AUTORIDADE COMO PODER
ESTABILIZADO.
— Na tradição cultural do Ocidente, desde que os
romanos cunharam a palavra auctoritas, a noção de
Autoridade constitui um dos termos cruciais da teoria
política, por ter sido usada em estreita conexão com a
noção de poder.
A situação atual dos usos deste termo é muito
complexa e intrincada. Enquanto, de um modo geral.
Sua estreita ligação com o conceito de poder
permaneceu, a palavra Autoridade passou a ser
reinterpretada de vários modos e empregada com
significados notavelmente diversos. Por vezes se
negou, explícita ou implicitamente, que exista o
problema de identificar o que seja Autoridade e o de
descrever as relações entre Autoridade e poder: em
particular por parte daqueles que usaram poder e
Autoridade como sinônimos. Mas existe a tendência,
de há muito tempo generalizada, de distinguir entre
poder e Autoridade, considerando esta última como
uma espécie do gênero "poder" ou até, mas mais
raramente, como uma simples fonte de poder.
Um primeiro modo de entender a Autoridade como
uma espécie de poder seria o de defini-la como uma
relação de poder estabilizado e institucionalizado em
que os súditos prestam uma obediência incondicional.
Esta concepção se manifesta sobretudo no âmbito da
ciência da administração. Dentro dessa concepção,
temos Autoridade quando o sujeito passivo da relação
do poder adota como critério de comportamento as
ordens ou diretrizes do sujeito ativo sem avaliar
propriamente o conteúdo das mesmas.
A obediência baseia-se unicamente no critério
fundamental da recepção de uma ordem ou sinal
emitido por alguém. A esta atitude do sujeito passivo
pode corresponder uma atitude particular até em quem
exerce Autoridade. Este transmite a mensagem sem
dar as razões e espera que seja aceito
incondicionalmente. Assim entendida, a
AUTORIDADE
Autoridade se opõe à relação de poder baseado na
persuasão. Nesta última relação, C utiliza argumentos
em favor do dever ou da oportunidade de um certo
comportamento na relação de autoridade; ao contrário,
C transmite uma mensagem que contém a indicação
de um certo comportamento, sem, entretanto, usar de
nenhum argumento de justificação. Na relação de
persuasão, R adota o comportamento sugerido por C
porque aceita os argumentos apresentados por C, em
seu favor; na relação de autoridade, ao contrário, R
adota
o
comportamento
indicado
por
C
independentemente de qualquer razão que possa
eventualmente aconselhá-lo ou desaconselhá-lo.
Atendo-nos a esta primeira definição de
Autoridade, o que conta é que R obedeça de modo
incondicional às diretrizes de C; para uma
identificação da Autoridade não importa saber qual o
fundamento em que se baseia R para aceitar
incondicionalmente a indicação de C e este para exigir
obediência incondicional. Esse fundamento tanto pode
consistir na legitimidade do poder de C como num
condicionamento fundado na violência. David Easton
estabeleceu precisamente uma distinção entre
"Autoridade legítima" e "Autoridade coercitiva". Foi
dentro de uma perspectiva análoga que Amitai Etzioni
apresentou uma articulada classificação das formas de
Autoridade e organização, embora ele não use a
palavra "Autoridade" como termo-chave. Distingue
três tipos de poder: "coercitivo", baseado na aplicação
ou ameaça de sanções físicas; "rerhunerativo",
baseado no controle dos recursos e das retribuições
materiais; "normativo", baseado na alocação dos
prêmios e das privações simbólicas. São três os tipos
de orientação dos subalternos em face do poder:
"alienado", intensamente negativo; "cal-culador",
negativo ou positivo de intensidade moderada;
"moral",
intensamente
positivo.
Combinando
juntamente os três tipos de poder e os três tipos de
orientação dos subalternos, Etzioni descobre três casos
"congruentes" de Autoridade e organização e diversos
outros casos "incongruen-tes" ou mistos. Os
congruentes são: a Autoridade e as correspondentes
organizações "coercitivas" (poder coercitivo e
orientação alienada); a Autoridade e as organizações
"utilitárias" (poder remu-nerativo e orientação
calculadora); a Autoridade e as organizações
"normativas" (poder normativo e orientação moral). A
estes diversos tipos de Autoridade e de organização
são depois ligados numerosos aspectos da estrutura e
do funcionamento das organizações. )ames S.
Coleman, por sua vez, fez recentemente uma distinção
entre sistemas de Autoridade "disjuntos", em que os
subalternos aceitam a Autoridade para obter vantagens
extrínsecas, por exemplo, um salário, e
89
sistemas de Autoridade "conjuntos", em que os
subalternos esperam benefícios (intrínsecos) do seu
exercício; e entre sistemas de Autoridade "simples",
onde a Autoridade é exercida pelo seu detentor, e
sistemas de Autoridade "complexos", onde a
Autoridade é exercida por lugar-tenentes ou agentes
delegados pelo detentor da Autoridade; baseado em
tais distinções, propôs algumas hipóteses interessantes
sobre a estática e a dinâmica das relações de
Autoridade.
A Autoridade, tal como a temos entendido até aqui,
como poder estável, continuativo no tempo, a que os
subordinados prestam, pelo menos dentro de certos
limites, uma obediência incondicional, constitui um
dos fenômenos sociais mais difusos e relevantes que
pode encontrar o cientista social. Praticamente todas
as relações de poder mais duráveis e importantes são,
em maior ou menor grau, relações de Autoridade: o
poder dos pais sobre os filhos na família, o do mestre
sobre os alunos na escola, o poder do chefe de uma
igreja sobre os fiéis, o poder de um empresário sobre
os trabalhadores, o de um chefe militar sobre os
soldados, o poder do Governo sobre os cidadãos de
um Estado. A estrutura de base de qualquer tipo de
organização, desde a de um campo de concentração à
organização de uma associação cultural, é formada,
em grande parte, à semelhança da estrutura
fundamental de um sistema político tomado como um
todo, por relações de Autoridade. Não há, pois, por
que admirar-se se o conceito de Autoridade ocupa um
lugar de primeiro plano na teoria da organização; nem
é de admirar que tão freqüentemente se faça uso do
conceito de Autoridade para definir o Estado ou a
sociedade política. Ainda recentemente o politólogo
H. Eckstein propôs que se identificasse a política
pelas "estruturas de Autoridade"; e definiu a estrutura
de Autoridade como "um conjunto de relações
assimétricas, entre membros de uma unidade social
ordenados de um modo hierárquico, que têm por
objeto a condução da própria unidade social". Na
realidade, a estratificação da Autoridade política na
sociedade é um fenômeno tão persistente que se
afigura a vários autores como parte da hereditariedade
biológica da espécie (veja-se a resenha de estudos de
Fred H. Willhoite Ir. Primates and political authority:
A biobehavioral perspective, em "American political
science re-view", vol. LXX-1976, pp. 1110-26).
Até agora ressaltamos, de forma acentuada, por um
lado, o caráter hierárquico, por outro, a estabilidade da
Autoridade. Mas observe-se, no tocante ao primeiro
ponto, que a Autoridade, tal como a definimos até
aqui, se é particularmente característica das estruturas
hierárquicas, não pressupõe, contudo, necessariamente
a existência de tal
90
AUTORIDADE
estrutura, nem mesmo de uma organização formal.
Pode verificar-se também em relações de poder
informal. Por exemplo, C pode estar disposto a aceitar
incondicionalmente as opiniões de R (um escritor ou
jornalista) no âmbito de uma certa matéria. Quanto ao
segundo ponto, não se há de esquecer o fato de que
toda a Autoridade "estabelecida" se formou num
determinado lapso de tempo, surgindo inicialmente
como uma Autoridade "emergente" e acumulando
pouco a pouco crédito ou uma aquiescência cada vez
mais sólida e mais vasta no ambiente social
circunstante, até se transformar exatamente em
Autoridade estabelecida, ou seja, em poder
continuativo e cristalizado. De fato, entre Autoridade
estabelecida e Autoridade emergente, se manifestam
freqüentemente duros conflitos que constituem uma
dimensão muito importante da dinâmica de um
sistema político (veja-se a propósito B. de Jouvenel,
De la poliüque purê, Paris 1963).
II. A AUTORIDADE COMO PODER LEGÍTIMO.
— A definição de Autoridade como simples poder
estabilizado a que se presta uma obediência
incondicional, prescindindo do fundamento específico
de tal obediência, parece, no entanto, demasiado lata a
muitos politólogos e sociólogos. Tem-se afirmado que
tal definição contrasta muitas vezes com os usos da
linguagem ordinária, onde uma expressão como
"Autoridade coercitiva" parece contraditória e é
claramente incompatível com a concepção tradicional
dos governantes privados de Autoridade: usurpadores,
conquistadores e "tiranos" em geral. Daí a segunda e
mais comum definição de Autoridade, segundo a qual
nem todo o poder estabilizado é Autoridade, mas
somente aquele em que a disposição de obedecer de
forma incondicionada se baseia na crença da
legitimidade do poder. A Autoridade, neste segundo
sentido, o único de que nos ocuparemos daqui para a
frente, é aquele tipo particular de poder estabilizado
que chamamos "poder legítimo".
Como poder legítimo, a Autoridade pressupõe um
juízo de valor positivo em sua relação com o poder. A
este propósito, deve notar-se, em primeiro lugar, que o
juízo de valor pode ser formulado pelo próprio
estudioso no âmbito da filosofia ou da doutrina
política; mas pode também set destacada pelo
pesquisador como juízo de pessoas implicadas na
relação de Autoridade no âmbito dos estudos políticos
ou sociológicos de orientação empírica. Todas essas
concepções de Autoridade como poder legítimo que
comportam um juízo de valor, por parte do
pesquisador, não podem ser aceitas no discurso da
ciência, que se mantém no campo da descrição.
Portanto, a expressão "poder legítimo" deve ser
entendida aqui
no sentido de poder considerado como legítimo por
parte de indivíduos ou grupos que participam da
mesma relação de poder. Em segundo lugar, devemos
ter presente que uma avaliação positiva do poder pode
dizer respeito a diversos aspectos do próprio poder:
conteúdo das ordens, o modo ou o processo como as
ordens são transmitidas ou a própria fonte de onde
provêm as ordens (comando). O juízo de valor que
funda a crença na legitimidade é mencionado em
último lugar: ele diz respeito à fonte do poder. A fonte
do poder pode ser identificada em vários níveis (v.
LEGITIMIDADE) e estabelece por isso a titularidade da
Autoridade. No âmbito social onde se situam as
relações de Autoridade, tende a tornar-se crença que
quem possui Autoridade tem o direito de mandar ou
de exercer, pelo menos, o poder e que os que estão
sujeitos à Autoridade têm o dever de obedecer-lhe ou
de seguir suas diretrizes. É fácil concluir que este
"direito" e este "dever" podem ser mais ou menos
formalizados e podem apoiar-se na obrigação de dever
típica da esfera ética, como acontece para os três tipos
de legitimidade especificados por Max Weber (v.
PODER) ou numa simples Autoridade, como pode
acontecer no caso de Autoridade fundada em
específica competência.
Combinando esta segunda definição com a que foi
mencionada acima, pode-se dizer que na Autoridade é
a aceitação do poder como legítimo que produz a
atitude mais ou menos estável no tempo para a
obediência incondicional às ordens ou às diretrizes
que provêm de uma determinada fonte. Naturalmente,
isto se verifica dentro da esfera de atividade à qual a
Autoridade está ligada ou dentro da esfera de
aceitação de Autoridade. É evidente, na verdade, que
uma relação de Autoridade como toda e qualquer
outra relação de poder diz respeito a uma esfera que
pode ser mais ou menos ampla ou mais ou menos
explícita e claramente delimitada. Acrescente-se que a
disposição para a obediência incondicional, embora
durável, não é permanente. A fim de que a relação de
Autoridade possa prosseguir, ocorre que, de tempos a
tempos, seja reafirmada ostensivamente a qualidade da
fonte do poder à qual é atribuído o valor que funda a
legitimidade.
Por exemplo, a continuidade de uma relação de
Autoridade fundada sobre a legitimidade democrática
comporta a renovação periódica do procedimento
eleitoral; e a continuidade de uma Autoridade
carismática de um chefe religioso requer, de vez em
quando, a realização de ações extraordinárias ou
milagrosas que possam confirmar a crença de que o
chefe possui a "graça divina".
Como veremos mais adiante, para a concepção de
Autoridade como poder legítimo pode
AUTORIDADE
convergir, parcialmente, uma terceira definição de
Autoridade como espécie de poder: aquela que a
identifica com o poder "formal" (o poder que deveria
ser exercido num certo espaço social). E o mesmo se
pode dizer também para a concepção da Autoridade
como fonte de poder, desde que a mesma seja
oportunamente corrigida. Esta última concepção foi
defendida sobretudo por Carl J. Friedrich, segundo o
qual a Autoridade não é uma relação entre seres
humanos mas uma qualidade particular das
comunicações — que tanto podem ser ordens como
conselhos ou opiniões que um indivíduo transmite a
outro. Essa qualidade consiste no fato de a
comunicação ser susceptível de uma elaboração
racional, não em termos de demonstração científica ou
matemática, mas nos termos dos valores aceitos por
aqueles entre os quais tramita a mensagem. Tal
qualidade torna as comunicações merecedoras de
aceitação aos olhos daqueles a quem são dirigidas.
Portanto, a Autoridade não é uma espécie de relação
de poder se ela pode ser uma fonte de poder: a
capacidade que um homem tem de transmitir
comunicações susceptíveis de uma elaboração racional
— no sentido exposto — constitui para ele uma fonte
de poder
O limite desta concepção de Autoridade é que, a
menos que se hipostasie a razão, a possibilidade de
uma elaboração racional não pode partir de uma
comunicação considerada em si mesma, mas deve
centrar-se sobre a capacidade ,de fornecer uma tal
elaboração da parte de quem transmite a comunicação
e sobre o reconhecimento que de tal capacidade fazem
os destinatários da comunicação. Convém lembrar,
entretanto, que uma comunicação tem Autoridade, não
em virtude de uma qualidade intrínseca, mas pela
relação com a fonte de que provém, da maneira como
tal fonte é destinada por aqueles a quem a
comunicação é dirigida. Tanto é verdade que uma
mesma opinião pode ser considerada autorizada
quando é proclamada por Tício e não ser considerada
tal quando formulada por Caio. Interpretado desta
forma, o fenômeno explicado por Friedrich pode ser
expresso destas duas maneiras: num sentido mais
simples, é a crença de R na capacidade de C em
elaborar, de modo racional, as suas comunicações nos
termos dos valores aceitos por R; num sentido mais
complexo, é uma relação na qual R aceita a mensagem
de C, não porque R conhece e acha positivas as razões
que justificam a mensagem — e normalmente sem que
C formule tais razões — mas porque R crê que C seria
capaz de dar razões convincentes nos termos dos
valores por ele aceitos, como apoio da comunicação.
Trata-se, neste segundo sentido, de um tipo particular
de relação de Autoridade, entendida
91
como poder legítimo; e no primeiro, trata-se da crença
da legitimidade que a fundamenta.
III. EFICÁCIA E ESTABILIDADE DA AUTORIDADE. — A
Autoridade comporta, portanto, de um lado, a
aceitação do dever da obediência incondicional e, de
outro, a pretensão a tal dever, ou — o que é a mesma
coisa — ao direito de ser incondicionalmente
obedecido. Neste sentido, pode construir-se um tipo
puro de Autoridade: uma relação de poder fundada
exclusivamente na crença da legitimidade. C funda a
própria pretensão de achar obediência unicamente na
crença na legitimidade do próprio poder; e R é
motivado a prestar obediência unicamente pela crença
na legitimidade do poder de C. Trata-se de um tipo
"ideal" difícil de encontrar na realidade; normalmente,
a crença na legitimidade não é fundamento exclusivo
do poder, mas somente uma de suas bases. O detentor
do poder pretende obediência não só por força da
legitimidade de seu poder, mas ainda com base na
possibilidade de obrigar ou punir, aliciar ou premiar.
De outra parte, a crença na legitimidade do poder,
como motivação de quem se conforma com as
diretrizes de outrem, é muitas vezes acompanhada de
outras motivações como podem ser coisas de interesse
próprio ou medo de um mal por ameaça. Tra-tar-se-á
de relações de poder que só parcialmente e em certa
medida assumem a forma de relações de Autoridade.
Além disso, pode acontecer que o poder seja
reconhecido como legítimo somente por um dos lados
da relação. Em tal caso, pode falar-se ainda de
Autoridade quando a crença na legitimidade do poder
motiva apenas a obediência, mas não se pode dizer o
mesmo quando ela motiva apenas o comando. Nesta
última hipótese, na verdade, ao comando não sucede a
obediência, ou melhor, sucede a obediência, mas
noutras bases (temor da força, interesse, etc), enquanto
que se quem obedece o faz porque crê legítimo o
poder, a relação pode dizer-se fundada sobre a crença
na legitimidade, quer o autor das ordens condivida de
tal crença ou não.
A importância peculiar da crença na legitimidade,
que transforma o poder em autoridade, consiste no
fato de que esta tende a conferir ao poder eficácia e
estabilidade. E ísto tanto do lado do comando como
do lado da obediência. No primeiro ponto de vista,
deve destacar-se o efeito psicológico que a fé na
legitimidade do poder tende a exercer em quem o
detém. É por isso que se afirma que a diminuição
dessa fé conduz ao descalabro do poder. Sem sermos
levados a afirmações tão gerais e peremptórias,
podemos afirmar com razões que a crença na
legitimidade do poder tende a conferir ao comando
certas
92
AUTORIDADE
características, como as de convicção, de
determinação e de energia, que contribuem para sua
eficácia. Em segundo lugar, a crença na legitimidade
tem um efeito relevante sobre a coesão entre os
indivíduos e os grupos que detêm o poder. O fato de
que todos os indivíduos ou grupos que participam do
poder numa organização condivi-dam a crença na
legitimidade do poder da organização põe limites aos
conflitos internos e dá muitas vezes o princípio de sua
solução. Nasce daí uma maior coesão entre os
detentores do poder e, por conseqüência, uma maior
estabilidade e eficácia do poder. Uma classe política
articulada numa pluralidade de grupos, que
reconhecem toda a legitimidade do regime político, dá
origem, em igualdade com outras condições a
Governos mais estáveis e eficazes do que aqueles que
foram originados por uma classe política em que uma
parte importante não reconhece o regime como
legítimo.
Pelo lado da obediência, a crença na legitimidade
faz corresponder o comportamento de obediência a
um dever e tende a criar uma disposição à obediência
incondicional. Na medida em que a obediência se
converte num dever, a relação de poder adquire maior
eficácia: as ordens são cumpridas prontamente, sem
que os detentores do poder tenham de recorrer a
outros meios para exercer o poder, como a coação, a
satisfação de interesses dos súditos ou até a persuasão
que comportam maiores custos. De outra parte, na
medida em que se gera uma disposição para obedecer,
o poder se estabiliza; e esta estabilidade é tanto mais
sólida quanto a disposição para obedecer é, dentro da
esfera de aceitação da Autoridade, incondicional. E é
necessário acrescentar que existe também um nexo
indireto entre crença na legitimidade do poder e
disposição para obedecer: num âmbito social no qual
um certo poder é larga e intensamente tido como
legítimo, quem não o reconhece como tal pode ser
sujeito a notáveis pressões laterais — provenientes de
outros indivíduos ou grupos sujeitos ao mesmo poder
— que tendem a induzi-lo a obedecer por razões de
oportunidade prática: para não ver perturbada a sua
vida de afetos e de relação na família, nas relações de
amizade, de trabalho, etc.
IV. AMBIGÜIDADE DA AUTORIDADE. — Já dissemos
que a crença na legitimidade constitui normalmente
uma entre as muitas bases de uma relação de poder. É
necessário, portanto, acrescentar que, entre crença na
legitimidade e outras bases do poder, pode haver
relações significativas que alteram de forma
substancial o aspecto autônomo de tal crença e
conferem à Autoridade um caráter particular de
ambigüidade. Por um lado,
a crença na legitimidade pode originar parcialmente o
emprego de outros meios para exercer o poder: o uso
da violência, por exemplo. Por outro lado, a crença na
legitimidade pode constituir, por sua vez, uma simples
conseqüência psicológica da existência de um poder
fundado, de fato, sobre outras bases.
A violência pode derivar, em qualquer grau da
crença na legitimidade do poder: a crença de R na
legitimidade do poder de C legitima, aos olhos de R, e
facilita, portanto, o emprego da força em relação a Ri,
ou em relação ao próprio R. No primeiro caso: uma
forte crença na legitimidade do poder político da parte
de uma minoria da sociedade legitima e facilita o
emprego de outros instrumentos de poder, incluindo a
violência, em relação à maioria; ou então uma crença
bastante divulgada na legitimidade do poder político
legitima e facilita o emprego da violência em relação
aos poucos recalcitrantes. No segundo caso: os
sequazes de um chefe religioso, que é tido como
representante da divindidade, aceita como legítima a
violência empregada contra ele ou então a provoca ele
mesmo, como punição para um comportamento
próprio de dissidência. Em todas estas hipóteses, a
legitimidade do poder se traduz na legitimidade da
violência. Daí se segue que esta última perde, para
quem a considera legítima, o seu caráter alienante; e
segue-se, também, a possível tendência, também para
quem a considera legítima, à colaboração ativa ou
passiva para seu emprego. Por outras palavras, o
emprego da violência torna-se possível, em grau maior
ou menor, a partir da crença na legitimidade que
transforma o poder em Autoridade.
Convém recordar que esta relação entre crença na
legitimidade e violência não é uma curiosidade
teórica. O grau e a intensidade com que a fé cega no
princípio da legitimidade do poder pode desencadear a
violência estão indelevelmente inscritos na história do
homem. Testemunham-no a caça às bruxas e os
linchamentos dos desviados e rejeitados, gerados, em
apoio a uma determinada Autoridade, pelos
fanatismos políticos e religiosos de todos os tempos.
Testemunha-o a imensa violência que por vezes tem
sido desencadeada em nosso século pela crença
fanática num chefe ou numa ideologia totalitária.
Por outra parte, como paradigma de relação do
poder em que a crença na legitimidade pode constituir
uma simples conseqüência psicológica, podemos
tomar o exemplo de pai e filho, no qual se encontra
geralmente, dentro de certos limites de tempo, quer
uma preponderância de força quer uma dependência
econômica. Neste caso, o emprego da força e o
condicionamento econômico, mais do que uma
derivação, podem ser a fonte
AUTORIDADE
da crença na legitimidade do poder do pai. Pode
acontecer, certamente, que o respeito e o afeto
legitimem, aos olhos do filho, o poder do pai,
incluindo o poder de punir; mas pode acontecer,
também, que o poder efetivo de punir do pai cause no
filho um respeito e um afeto e portanto uma crença na
legitimidade que não são genuínos. Falando de crença
não genuína, me refiro não apenas ao engano
deliberado que também pode estar presente nas
relações de poder mas, e sobretudo, ao mais
importante fenômeno do auto-enga-no; não à falsidade
consciente mas à falsa consciência, que é o conceito
central da IDEOLOGIA (v.) no seu significado de origem
marxista. Neste sentido, convém averiguar-se em que
grau a crença na legitimidade tem caráter ideológico.
Se o grau for muito elevado, não teremos mais uma
relação de Autoridade, mas uma falsa Autoridade,
enquanto a crença na legitimidade da Autoridade não
constitui um fundamento real do poder. Isto explica
por que uma situação real de poder à qual antes
correspondia uma crença na legitimidade pode perder
mais ou menos repentinamente tal legitimidade. Tratase de uma situação de poder fundada principalmente
sobre outras bases, por ex., sobre a força, mas à qual,
até que pareça imodificável, convém, de qualquer
modo, adaptar-se. Daqui, o aparecimento de uma
crença na legitimidade com caráter prevalentemente
ideológico. Mas esta legitimidade tende, bem depressa,
a cair logo que a preponderância da força diminuir ou
a situação do poder começar a aparecer concretamente
modificável.
Outros aspectos da ambigüidade da Autoridade
provêm do fato que o titular da Autoridade pode não
dispor, em medida maior ou menor, do poder efetivo;
e ainda do fato que os destinatários das ordens podem
perder a crença no princípio de legitimidade sobre o
qual o detentor do poder funda a sua pretensão de
mando. Para o primeiro deste fenômeno chamou a
atenção, sobretudo, Lasswell, o qual, ao definir
Autoridade como "poder formal" afirmou que "dizer
que uma pessoa tem Autoridade não é dizer que
efetivamente tem poder, mas que a fórmula política
(isto é os símbolos políticos que dão a legitimidade do
poder) lhe atribui poder e que aqueles que aderem à
fórmula esperam que aquela pessoa tenha poder e
consideram justo e correto o exercício que ela faz
dele". Por um lado, esta afirmação encerra uma
confusão entre duas noções distintas: a da Autoridade
e a da crença na legitimidade do poder. Uma coisa é
meu juízo de valor, na base do qual reputo legítimo o
comando que provém de uma certa fonte: a tal crença
podem corresponder ou não efetivas relações de
poder; e outra coisa é o meu comportamento, através
do
93
qual me adapto incondicionalmente a certas diretrizes
porque as tenho como legítimas em virtude da fonte
de onde provêm: trata-se, neste caso, de uma
verdadeira relação de poder, um poder de tipo "A".
De outro lado, porém, a afirmação de Lasswell pode
ser entendida no sentido de que aquele que possui
certa Autoridade pode não ter todo o poder que na
aparência exerce na relação de Autoridade. As
relações de Autoridade podem ser acompanhadas de
outras relações de poder ainda mais relevantes; e o
titular de Autoridade, ao dar suas ordens, pode ser
condicionado de forma substancial por outras relações
de poder não legítimas e talvez largamente
desconhecidas. E na medida em que isto acontece,
podemos dizer que a Autoridade é apenas "aparente";
uma vez que C, enquanto acha que deve obedecer ao
poder político de A, obedece, ao contrário, em maior
ou menor grau, ao poder não legítimo de D.
Lembraríamos a este propósito todos os
conselheiros secretos e todos os centros de poder que
às vezes dirigiram, desde os bastidores, a
representação da Autoridade iluminada pelas luzes da
ribalta, bem como as transformações dos regimes
políticos onde as mudanças na distribuição do poder
efetivo precederam as da crença na legitimidade,
vindo assim os regimes a tornarem-se mais ou menos
formal i st as: o rei aparece ainda como titular
exclusivo da Autoridade, quando o poder já passou
definitivamente às mãos do Parlamento.
Consideremos agora o ponto em que existe, nos
destinatários, das ordens, menor crença na
legitimidade do poder. Tal queda de crença na
legitimidade pode verificar-se seja porque os súditos
não crêem mais que a fonte de poder tenha a
qualidade que antes lhe atribuíam (por ex., a
legitimidade não foi "provada" ou foi considerada
"ideológica"), seja porque os subordinados
terminaram por abandonar o velho princípio da
legitimidade para abraçar um novo. Em ambos os
casos, a situação é normalmente de profundo conflito.
Tanto os superiores quanto os subordinados tendem a
considerar-se traídos nas suas expectativas e nos seus
valores. A relação de Autoridade, então, diminui e, se
a pretensão de mando permanece, se instaura uma
situação de AUTORITARISMO (V.). Num dos seus
possíveis significados, o termo "autoritarismo"
designa, na verdade, uma situação na qual as decisões
são tomadas de cima, sem a participação ou o
consenso dos subordinados. Neste sentido, é uma
manifestação de autoritarismo alegar um direito em
favor de um comando que não se apoia na crença dos
subordinados; e é uma manifestação de autoritarismo
pretender uma obediência incondicional quando os
súditos entendem colocar em discussão
94
AUTORITARISMO
os conteúdos das ordens recebidas. Portanto, uma
situação de autoritarismo tende a instaurar-se todas as
vezes que o poder é tido como legítimo por quem o
detém, mas não é mais reconhecido como tal por
quem a ele está sujeito. E esta situação se acentua se o
detentor do poder recorre à força, ou a outros
instrumentos de poder para obter aquela obediência
incondicional que não consegue mais na base da
crença na legitimidade.
Observe-se que este fenômeno da transformação da
Autoridade em autoritarismo, com a simples mudança
dos princípios de legitimidade aceitos pelos
subordinados, pode referir-se a todas as estruturas da
Autoridade, incluída a do Estado. Lembrarei apenas a
este propósito os processos profundos de
emancipação que se acham às vezes presentes nos
movimentos nacionalistas de independência, mediante
os quais grupos de homens mais ou menos numerosos
rompem as barreiras de suas consciências, que os
ligavam às velhas Autoridades.
Portanto, ainda que como tipo puro constitua a
forma mais plena de poder socialmente reconhecido e
aceito como legítimo, na realidade da vida social e
política, a Autoridade é muitas vezes contaminada e
apresenta, sob vários aspectos, uma característica de
ambigüidade. Ela pode ser geradora de violência, na
medida em que a crença na legitimidade de alguns
consente o emprego da força em relação a outros;
pode ser "falsa" na medida em que a crença na
legitimidade não é uma fonte mas uma conseqüência
psicológica, que tende a esconder ou a deformar; pode
ser apenas "aparente", na medida em que o titular
legítimo do poder não detém o poder efetivo; e pode
transformar-se em autoritarismo, na medida em que a
legitimidade é contestada e a pretensão do governante
em mandar se torna, aos olhos dos subordinados, uma
pretensão arbitrária de mando.
BIBLIOGRAFIA. - J. S. COLEMAN, Authority
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XLIV(1980), pp. 143-63; H. ECKSTEIN, Authority
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Mass. 1958; R. SENNETT, Autorità (1980), Bompiani,
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amministrativo (1957), Il Mulino, Bologna 1958; M.
STOPPINO, Le forme del potere, Guida, Napoli 1974.
[MARIO STOPPINO]
Autoritarismo.
I. PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO. — O adjetivo
"autoritário" e o substantivo Autoritarismo, que dele
deriva, empregam-se especificamente em três
contextos: a estrutura dos sistemas políticos, as
disposições psicológicas a respeito do poder e as
ideologias políticas. Na tipologia dos sistemas
políticos, são chamados de autoritários os regimes que
privilegiam a autoridade governamental e diminuem
de forma mais ou menos radical o consenso,
concentrando o poder político nas mãos de uma só
pessoa ou de um só órgão e colocando em posição
secundária as instituições representativas. Nesse
contexto, a oposição e a autonomia dos subsistemas
políticos são reduzidas à expressão mínima e as
instituições destinadas a representar a autoridade de
baixo para cima ou são aniquiladas ou
substancialmente esvaziadas. Em sentido psicológico,
fala-se de personalidade autoritária quando se quer
denotar um tipo de personalidade formada por
diversos traços característicos centrados no
acoplamento de duas atitudes estreitamente ligadas
entre si: de uma parte, a disposição à obediência
preocupada com os superiores, incluindo por vezes o
obséquio e a adulação para com todos aqueles que
detêm a força e o poder; de outra parte, a disposição
em tratar com arrogância e desprezo os inferiores
hierárquicos e em geral todos aqueles que não têm
poder e autoridade. As ideologias autoritárias, enfim,
são ideologias que negam de uma maneira mais ou
menos decisiva a igualdade dos homens e colocam em
destaque o princípio hierárquico, além de
propugnarem formas de regimes autoritários e
exaltarem amiudadas vezes como virtudes alguns dos
componentes da personalidade autoritária.
A centralidade do princípio de AUTORIDADE (V.) é
um caráter comum do Autoritarismo em qualquer dos
três níveis indicados. Como conseqüência, também a
relação entre comando apodítico e obediência
incondicional caracterizam o Autoritarismo. A
autoridade, no caso, é entendida em sentido particular
reduzido, na medida em que é condicionada por uma
estrutura política profundamente hierárquica, por sua
vez escorada numa visão de desigualdade entre os
homens e exclui ou reduz ao mínimo a participação do
povo no poder e comporta normalmente um notável
emprego de meios coercitivos. É claro, por
conseguinte, que do ponto de vista dos valores
democráticos, o Autoritarismo é uma manifestação
degenerativa da autoridade. Ela é uma imposição da
obediência e prescinde em grande parte do consenso
dos súditos, oprimindo sua liberdade.
AUTORITARISMO
Por outro lado, do ponto de vista de uma orientação
autoritária, é 0 igualitarismo democrático que não está
em condições de produzir a "verdadeira" autoridade.
Neste último sentido, diversos autores, especialmente
alemães dos anos 30, pro-pugnaram a doutrina do
"Estado autoritário". Do mesmo modo, a
"personalidade autoritária" foi em parte antecipada
pelo psicólogo nazista E. R. laensch, o qual descreveu,
em 1938, um tipo psicológico notavelmente
semelhante avaliando-o tanto de forma positiva como
de forma negativa. Existe portanto um denominador
comum no significado que o termo Autoritarismo
assume nos três contextos indicados, embora neste
campo haja conveniência de não se ir além dos limites.
Um fundo de significado comum não quer dizer
identidade, nem tão pouco plena coerência de
significado. É um fato que o Autoritarismo é um dos
conceitos que, tal como "ditadura" e "totalitarismo",
surgiram e foram usados em contraposição a
"democracia", pretendendo-se acentuar num caso ou
noutro parâmetros antidemocráticos. Na verdade, as
fronteiras entre estes conceitos são pouco claras e
muitas vezes até instáveis em relação aos diferentes
contextos. No nosso caso são relevantes sobretudo as
relações entre Autoritarismo e TOTALITARISMO (V.) e
estas relações tendem a ser diferentes nos três níveis
de Autoritarismo acima indicados. A mais ampla
extensão de significado de Autoritarismo acha-se nos
estudos sobre a personalidade e sobre atitudes
autoritárias. Apesar do conceito de "personalidade
autoritária" ter sido criado originariamente para
descrever uma síndrome psicológica dos indivíduos
"potencialmente fascistas", investigações posteriores
estenderam o conceito ao próprio Autoritarismo de
esquerda e indagaram os comportamentos autoritários
das classes baixas da mesma forma com que
analisaram os comportamentos das classes médias ou
altas. Em geral, neste setor de pesquisa não se faz
nenhuma distinção entre Autoritarismo e totalitarismo.
No campo das ideologias políticas, a área de
significado do Autoritarismo é incerta. Mas existe uma
tendência significativa para limitar o uso do termo
para as ideologias nas quais a acentuação da
importância da autoridade e da estrutura hierárquica da
sociedade tem uma função conservadora. Neste
sentido, as ideologias autoritárias são ideologias da
ordem e distinguem-se daquelas que tendem à
transformação mais ou menos integral da sociedade,
devendo entre elas ser incluídas as ideologias
totalitárias. Em relação aos regimes políticos, enfim, o
termo Autoritarismo é empregado em dois sentidos:
um deles, muito generalizado, compreende todos os
sistemas não democráticos caracterizados por um
baixo grau de
95
mobilização e de penetração da sociedade. Este
último significado coincide em parte com a noção de
ideologia autoritária. Mas só em parte, pois que
existem tanto os regimes autoritários de ordem como
os regimes autoritários voltados para uma
transformação, embora limitada, da sociedade.
Em vista de tudo o que acabamos de expor, um
fundo de significado comum não quer dizer plena
coerência de significado. Mais importante do que isso
é sublinhar que a existência de um fundo de
significado comum não inclui a necessidade da copresença fatual dos três níveis de Autoritarismo.
Razoavelmente pode supor-se que exista uma certa
congruência entre eles. Uma personalidade autoritária,
por exemplo, sentir-se-á provavelmente à vontade
numa estrutura de poder autoritária e achará
provavelmente genial uma ideologia autoritária. Mas
isto não significa que os três aspectos do
Autoritarismo estejam sempre e necessariamente
presentes ao mesmo tempo. Em que grau e com que
freqüência os três níveis de Autoritarismo se acham
juntos ou separados nas diversas situações sociais é
um quesito cuja resposta não pode ser prejudicada, na
partida, pelas definições, mas deve ser pacientemente
determinada através da investigação empírica. Em
linha de princípio, nada exclui que crenças
democráticas sejam impostas através de métodos
autoritários. Ou que entre chefes de um Estado
autoritário haja indivíduos não marcados por uma
personalidade autoritária; ou que um regime
autoritário de fato se acoberte por fora de uma
ideologia democrática ou de uma ideologia totalitária
que perdeu sua carga propulsiva e se transformou
numa simples veste simbólica.
II. AS IDEOLOGIAS AUTORITÁRIAS. — Já dissemos que não existe coerência plena de significado
entre o Autoritarismo a nível de ideologia e o
Autoritarismo a nível de regime político. A estrutura
mais íntima do pensamento autoritário acha
correspondência não em qualquer sistema autoritário e
sim no tipo puro de regime autoritário conservador ou
de ordem. Neste sentido, o pensamento autoritário não
se limita a defender uma organização hierárquica da
sociedade política, mas faz desta organização o
princípio político exclusivo para alcançar a ordem,
que considera como bem supremo. Sem um
ordenamento rigidamente hierárquico, a sociedade vai
fatalmente ao encontro do caos e da desagregação.
Toda a filosofia política de Hobbes, por exemplo,
pode ser interpretada como uma filosofia autoritária
da ordem. Mas é uma teoria autoritária singular e de
certo modo anômala, porque toma a iniciativa-da
igualdade entre os homens e deduz a
96
AUTORITARISMO
necessidade da obediência incondicional ao soberano
através de um processo rigorosamente racional.
Geralmente, as doutrinas autoritárias, ao contrário,
pelo menos as modernas, são doutrinas antiracionalistas e antiigualitárias. Para elas, o
ordenamento desejado pela sociedade não é uma
organização hierárquica de funções criadas pela razão
humana, mas uma organização de hierarquias
naturais, sancionadas pela vontade de Deus e
consolidadas pelo tempo e pela tradição ou impostas
inequivocamente pela sua própria força e energia
interna. De costume, a ordem hierárquica a preservar
é a do passado; ela se fundamenta na desigualdade
natural entre os homens.
É evidente que o problema da ordem é um
problema geral de todo o sistema político; e, como tal,
não pode ser um monopólio do pensamento
autoritário. Também em muitas exposições da
ideologia liberal e da ideologia democrática se acha,
entre outros princípios, uma valorização da
importância da autoridade como agente da ordem
social. Mas o que caracteriza a ideologia autoritária,
além da visão da desigualdade entre os homens, é que
a ordem ocupa todo o espectro dos valores políticos, e
o ordenamento hierárquico que daí resulta esgota toda
a técnica da organização política. Esta preocupação
obsessiva pela ordem explica também por que o
pensamento autoritário não pode admitir que o
ordenamento hierárquico seja um simples instrumento
temporário para levar a uma transformação parcial ou
integral da sociedade, tal como acontece, pelo menos
na interpretação ideológica, em muitos sistemas
autoritários em vias de modernização e nos sistemas
comunistas. Para a doutrina autoritária, a organização
hierárquica da sociedade acha a própria justificação
em si mesma e a sua validade é perene. Além do mais,
o Autoritarismo, como ideologia da ordem, se
distingue de forma clara do próprio totalitarismo
fascista, já que ele apenas impõe a obediência
incondicional e circunscrita do súdito e não a
dedicação total e entusiástica do membro da nação ou
da raça eleita. A ordenação hierárquica do
Autoritarismo apóia-se essencialmente no modelo que
precedeu a época da Revolução Industrial.
O pensamento autoritário moderno é uma formação
de reação contra a ideologia liberal e democrática. A
doutrina contra-revolucionária de I. de Maistre e de
Bonald constitui sua primeira e mais coerente
formulação. Mais tarde, com o inexorável avanço da
sociedade industrial e urbana, o Autoritarismo
compactuará com o liberalismo, colorir-se-á de um
nacionalismo sempre mais vistoso e procurará
respostas para o próprio socialismo. Logo depois da
Revolução Francesa, a Sociedade poderá ainda
aparecer frente a um
bívio: de um lado, a continuação das correntes
inovadoras; do outro, a plena restauração da ordem
pré-burguesa. Assim, Joseph de Maistre (1753-1821)
pode contrapor ao iluminismo revolucionário uma
doutrina que é uma reviravolta quase completa dele.
Ao racionalismo iluminista ele opõe um radical
irracionalismo. Segundo ele, as coisas humanas são o
resultado do encadea-mento imprevisível de
numerosas circunstâncias, por detrás das quais está a
Providência divina. É por isso que o homem deve ser
educado nos dogmas e na fé e não no exercício
ilusório da razão. À idéia de progresso, ele contrapõe
a da tradição; a ordem social é uma herança da
história passada que a consolidou e experienciou
através do curso do tempo. Toda a pretensão do
homem em transformar-se em legislador é
perturbadora e desagregadora. À visão da igualdade
dos homens contrapõe a da sua insuprimível
desigualdade. À tese da soberania popular opõe a de
que todo o poder vem de Deus. Aos direitos do
cidadão o absoluto dever da obediência do súdito. A
ordem do pensamento contra-revolucionário é
rigorosamente hierárquica. Como escreve o visconde
de Bonald (1754-1840), o poder do rei, absoluto e
independente dos homens, é a causa; os seus ministros
(a nobreza), que executam a vontade dele, são os
meios; a sociedade dos súditos, que obedece, é o
efeito.
Bonald e Maistre iniciam um dos principais filões
do pensamento autoritário — o católico —, o qual,
com o passar do tempo, será enriquecido de novos
componentes e assumirá tons inéditos. Por exemplo,
pelos meados do século XIX, )uan Donoso Cortês
(1809-1853), frente ao desenvolvimento decisivo do
liberalismo e da democracia c ao crescimento
incipiente do socialismo, vê na raiz de todas estas
correntes um pecado contra Deus e uma nostalgia
satânica pelo caos. Pronuncia profecias apocalípticas
prevendo que a monarquia não será mais suficiente
para restaurar a ordem e que poderá dar vida a uma
ditadura política. E entre os fins do século XIX e o
início do século XX, o marquês René de la Tour du
Pin (1834-1924) contrapõe aos sindicatos socialistas
uma reativação das corporações da Idade Média
cristã, que deveriam abranger os proprietários, os
dirigentes e os trabalhadores de todos os setores da
indústria, esconjurando assim a luta de classes e que
teriam, de outra parte, uma função consultiva, de
modo a não atacar a autoridade absoluta da monarquia
hereditária.
O Autoritarismo foi uma característica importante e
corrente do pensamento político alemão do século
XIX. Inicialmente, ele representou uma resistência
contra a unificação nacional e contra a
industrialização, embora depois tenha
AUTORITARISMO
acompanhado e guiado estas. Citarei apenas alguns
autores, cujas idéias tiveram um peso mais
significativo até na política prática: Carl Ludwig
Haller (1768-1854), de Berna, que construiu uma
teoria contra-revolucionária fundada sobre a
idealização do estado patrimonial da Idade Média e
exerceu grande influência no círculo político de
Frederico Guilherme IV; Friedrich lulius Stahl (18011861), que teorizou sobre a monarquia hereditária
legítima de direito divino, contribuindo para dar forma
ao programa conservador da monarquia prussiana que
terminou na obra unificadora de Bismarck; e Heinrich
Treitschke (1834-1896), cujas doutrinas se tornaram
parte integrante da ideologia do império alemão até a
Primeira Guerra Mundial.
O pensamento de Treitschke é muito interessante
porque nele se reflete a situação de um Estado
autoritário colocado diante do problema de operar
uma forte mobilização social para consolidar a
unidade nacional e para dirigir a modernização a
contar de cima. De uma parte se acha nele um nítido
nacionalismo
com
marcantes
tendências
imperialísticas e um moderado acolhimento das teses
liberais para levar a burguesia à colaboração. De outra
parte, o cerne da doutrina permanece autoritário,
mesmo se a autoridade não se baseia na vontade de
Deus e sobre a história e sim na história e na potência
da mesma. O Estado é força, tanto para dentro como
para fora, e o primeiro dever dos súditos é a
obediência. A melhor forma de Governo é a
monarquia hereditária, que se adapta às desigualdades
naturais da sociedade, ao passo que a democracia
contraria os dados naturais. O rei detém o poder,
dirige o exército e a burocracia e escolhe autonomamente seu Governo. É o modelo da monarquia
constitucional prussiana, na qual a função do
Parlamento e dos partidos — que Treitschke admite
— é pouco mais do que consultiva. Esta estrutura
hierárquica do sistema político espelha e preserva as
hierarquias naturais da sociedade civil, que têm no
vértice a nobreza hereditária, a "camada
eminentemente política", que tem em mãos a direção
do Estado; no meio, a burguesia, que tem um papel
importante na vida da cultura e na vida material, mas
que degenera quando quer ocupar-se excessivamente
dos negócios públicos; e, na base, a grande massa dos
trabalhadores braçais. Entre estes, Treitschke prefere
significativamente os camponeses, conservadores e
ligados à tradição, e olha com suspeição os operários
urbanos, irrequietos e "singularmente sensíveis às
idéias de subversão".
Prosseguindo nesta breve resenha exemplifica-tiva,
pode lembrar-se como característica da primeira
metade do século XX a doutrina de
97
Charles Maurras (1868-1952) que encabeçou o
movimento de extrema direita da Action Fran-çaise na
França da III República e procurou depois do próprio
pensamento a ideologia oficial do regime de Pétain.
No contexto social em que Maurras teorizava, a
industrialização tinha já avançado, a penetração do
Estado na sociedade era notável e a eficácia da ação
política exigia um alto grau de mobilização. Tudo isto
repercute em traços do pensamento maurrasiano, que
não fazem parte do Autoritarismo tradicional, do tipo
do nacionalismo "integral", do anti-semitismo e do
estilo de ação política por ele propugna-do. Mas,
simultaneamente, sua doutrina é fundamentalmente
autoritária. Maurras odeia os "bárbaros" internos,
armados com palavras de ordem sobre a igualdade e a
liberdade; e odeia a democracia como força anárquica
e destruidora. A salvação da França está na
restauração de uma ordem que dê novo sangue vital às
"belas desigualdades". A ordem de Maurras é
necessariamente hierárquica e encarna uma
"monarquia tradicional, hereditária, antiparlamentar e
descentralizada", que tem o direito à obediência
incondicional dos franceses. A descentralização do
Estado tornou-se possível graças ao fato de a
autoridade da monarquia ser indestrutível. Ela
comporta a autonomia das comunidades locais e
sobretudo um ordenamento corporativo do tipo do de
la Tour du Pin. Uma das pilastras fundamentais da
ordem maurrasiana é o exército pelo qual ele nutria
um verdadeiro culto e também a Igreja católica,
endendida não em sua mensagem cristã, mas como
instituição de ordem e de hierarquia, e tudo, portanto,
dentro de uma perspectiva de renovação da aliança do
trono e do altar.
Certos aspectos do pensamento de Maurras, como
o nacionalismo radical e o anti-semitismo, antecipam
claramente o fascismo. Mas o Autoritarismo não é o
totalitarismo fascista; e quando para ele conflui ou
dele se torna um simples componente, perde sua
natureza mais íntima. Na ideologia fascista, o
princípio hierárquico já não é instrumento de ordem
mas instrumento de mobilização total da nação para
desenvolver uma luta sem limite contra as outras
nações. Neste sentido, no fascismo a ideologia
autoritária cessa e torna-se outra coisa.
Depois da Segunda Guerra Mundial e das
conseqüências que dela derivaram, a ideologia
autoritária acha-se frente a um mundo hoje muito
estranho para poder lançar raízes profundas. Não
faltam regimes autoritários de tipo conservador; mas é
difícil que eles encontrem sua justificação numa
ideologia autoritária explícita e decisiva. Como
veremos abaixo, Juan Linz afirma que os atuais
regimes autoritários, incluindo os
98
AUTORITARISMO
conservadores, são caracterizados não pela ideologia,
mas por simples "mentalidade". Esta diferenciação é
talvez muito explícita e poderia ser formulada de
maneira diferente, distinguindo entre ideologias de
alto e de baixo grau de articulação simbólica e
conceptual. Entretanto, fica sempre a verdade de que
as ideologias autoritárias de hoje têm um modesto
nível de elaboração. E isto, por sua vez, depende do
fato crucial da perspectiva da conservação de uma
ordem hierárquica estabelecida definitivamente e
essencialmente ligada ao passado pré-burguês que foi
inexoravelmente marginalizada como uma antiqualha
inútil, por um mundo que é dominado, de fato e pelas
expectativas dos homens, pela industrialização, pelo
urbanismo e pela idéia de progresso e de mudança
contínua da sociedade.
Parece portanto que a ideologia autoritária não tem
futuro. Parece ainda que para ressurgir deverá adaptarse aos novos tempos e corrigir de forma substancial
sua filosofia. Na base de conjecturas, poderá
imaginar-se que num mundo industrializado ela não
poderá deixar de juntar à preservação da ordem um
tipo de administração da mudança social; e que nesta
alteração de rota poderá fazer reviver parcialmente o
Autoritarismo comtiano e um certo filão elitístico que
pro-pugnou ou fantasiou uma elite dos intelectuais e
dos competentes. A forma mais provável é talvez a de
uma tecnocracia coerente levada até às últimas
conseqüências.
III. PERSONALIDADES E ATITUDES AUTORITÁRIAS. —
Muitos aspectos da personalidade autoritária foram já
enucleados na descrição do "caráter autoritário" feita
por Eric Fromm em Fuga da liberdade (1941). O
texto fundamental neste campo é, todavia, a pesquisa
monumental de Theodor W. Adorno e dos seus
colaboradores, A personalidade autoritária, publicada
em 1950. Esta pesquisa tem em mira descrever o
indivíduo potencialmente fascista cuja estrutura da
personalidade é tal que o torna particularmente
sensível à propaganda antidemocrática. Os autores
procuram na verdade demonstrar que o antisemitismo, que constituía o tema inicial da pesquisa, é
um aspecto de uma ideologia mais complexa
caracterizada,
entre
outras
coisas,
pelo
conservadorismo político-econômico, por uma visão
etno-cêntrica e, mais em geral, por uma estrutura
autoritária da personalidade. Neste quadro, a
personalidade autoritária é descrita como um conjunto
de traços característicos inter-relacionados. Cruciais
são as assim chamadas "submissão" e "agressão"
autoritárias: de uma parte, a crença cega na autoridade
e a obediência voltada para os superiores e, de outra, o
desprezo pelos inferiores
e a disposição em atacar as pessoas débeis e que
socialmente são aceitáveis como vítimas. Outros
traços relevantes são a aguda sensibilidade pelo
poder, a rigidez e o conformismo. A personalidade
autoritária tende a pensar em termos de poder, a reagir
com grande intensidade a todos os aspectos da
realidade que tocam, efetivamente ou na imaginação,
as relações de domínio. É intolerante para com a
ambigüidade, refugia-se numa ordem estruturada de
modo elementar e inflexível e faz um uso marcado de
estereótipos tanto no pensamento quanto no
comportamento. É particularmente sensível em
relação à influência de forças externas e tende a
aceitar supina-mente todos os valores convencionais
do grupo social a que pertence. A estas características.
Adorno e seus colaboradores juntaram outras que
podemos passar adiante nesta exposição.
A interpretação que Adorno e seus colaboradores
deram da personalidade autoritária é profundamente
psicanalítica. Uma relação hierárquica e opressiva
entre pais e filhos cria no filho um comportamento
muito intenso e profundamente ambivalente em
relação à autoridade. De um lado, existe uma forte
disposição para a submissão; por outro lado,
poderosos impulsos hostis e agressivos. Estes últimos
impulsos são porém drasticamente eliminados pelo
superego. E a extraordinária energia dos impulsos
contidos, enquanto contribui para tornar mais cega e
absoluta a obediência à autoridade, é, em sua maior
parte, dirigida para a agressão contra os débeis e
inferiores. É portanto um mecanismo através do qual o
indivíduo procura inconscientemente superar seus
conflitos interiores, o que desencadeia o dinamismo
da personalidade autoritária. O indivíduo, para salvar
o próprio equilíbrio ameaçado em sua raiz pelos
impulsos em conflito, se agarra a tudo quanto é força e
energia e ataca tudo quanto é fraqueza. A este
dinamismo fundamental estão ligados todos os outros
traços da personalidade autoritária: desde a tendência
a depender de forças externas até à preocupação
obsessiva pelo poder e desde a rigidez até ao
conformismo.
O estudo de 1950 foi sujeito de várias críticas
relativas tanto ao método usado quanto aos resultados
obtidos. Entre as críticas de método lembraremos
aquela segundo a qual a tendência dos sujeitos
examinados a dar respostas "altas", isto é, a declararse de acordo com as proposições do questionário,
pode depender mais do que de uma escolha de valores
a respeito do conteúdo da proposição, da propensão a
não discordar de uma afirmação já formulada. Essa
propensão pode estar ligada principalmente a pessoas
de baixa renda e com um baixo nível de instrução.
Esta crítica é importante porque as diversas escalas
AUTORITARISMO
empregadas na pesquisa (escalas do anti-semitismo,
do etnocentrismo, do conservadorismo políticoeconômico e das tendências antidemocráticas) foram
todas construídas de modo que as respostas "altas", ou
seja, do consenso mais ou menos destacado a respeito
das proposições-teste constituíssem uma medida direta
dos parâmetros politicamente "negativos": o antisemitismo, o etnocentrismo, o conservadorismo
político-econômico e as tendências antidemocráticas.
Foi observado também que as proposições-teste
refletem de maneira acentuada a posição de esquerda
moderada dos autores, de tal maneira que o que se
conclui não é o Autoritarismo tout court, mas apenas
o Autoritarismo de tipo fascista. Segundo esta crítica,
Adorno e seus colaboradores trocaram a dicotomia
preconceito-tolerância pela de direita-esquerda, com a
conseqüência de ignorar totalmente os preconceitos
associados às ideologias de esquerda e mais em geral
o Autoritarismo de esquerda. Na verdade, pode
afirmar-se que com base nas respostas aos
questionários preparados por Adorno e pelos seus
colaboradores, uma pessoa autoritária de esquerda
teria verossimilmente totalizado um total de pontos
muito baixo e teria sido considerada não autoritária.
Pesquisas posteriores, levadas a cabo inclusive por
alguns colaboradores de Adorno, procuraram corrigir
este "tendenciosismo" da personalidade autoritária.
Mas a crítica mais comum e mais importante é
talvez aquela que diz respeito à base exclusivamente
psicanalítica- da interpretação da personalidade
autoritária. Observou-se que uma interpretação mais
completa deste tipo de personalidade requereria uma
consideração exaustiva do ambiente social, das
diversas situações e dos diversos grupos que podem
influenciar a personalidade. Isto porque muitos
fenômenos que à primeira vista aparecem como
fatores de personalidade, depois de uma análise mais
cuidada, podem revelar-se apenas como efeito de
específicas condições sociais. Nesta linha se foi
constituindo, por parte de vários autores, uma segunda
explicação da formação da personalidade autoritária: a
do chamado "Autoritarismo cognitivo". Segundo esta
colocação, os traços da personalidade autoritária
baseiam-se simplesmente em certas concepções da
realidade existentes numa determinada cultura ou
subcultura. Essas concepções são apreendidas pelo
indivíduo através do processo de socialização e
correspondem de forma mais ou menos rea-lística às
efetivas condições de vida de seu ambiente social. Na
realidade, estas duas interpretações da personalidade
autoritária não se excluem necessariamente entre si.
Numerosas pesquisas empíricas feitas recentemente
parecem mostrar
99
que em certas situações ou em certas classes sociais se
encontram muitos dos fatos mencionados pela teoria
do "Autoritarismo cognitivo", enquanto que em outras
situações e em outras classes sociais a interpretação
psicanalítica mantém uma maior eficácia explicativa.
Indubitavelmente inclinada para uma interpretação
sociológica mais do que psicológica dos
comportamentos autoritários é a tese do
"Autoritarismo da classe trabalhadora", destacada
principalmente por Seymour M. Lipset. Esta tese não
nega a existência de tendências autoritárias nas classes
elevadas e médias, mas defende que na sociedade
moderna as classes mais baixas se tornaram pouco a
pouco a maior reserva de comportamentos
autoritários. Por Autoritarismo não se entende aqui á
síndrome da personalidade autoritária em toda a sua
complexidade, mas de preferência uma série de
atitudes individuais condizentes com uma disposição
psicológica autoritária: uma baixa sensibilidade em
relação às liberdades civis, a intolerância, baixa
inclinação para sustentar um sistema pluripartidário,
intolerância frente aos desvios dos códigos morais
convencionais, propensão para participar de
campanhas contra os estrangeiros ou minorias étnicas
ou religiosas, tendência para apoiar partidos
extremistas, etc. Numerosas pesquisas mostraram que
estes comportamentos estão presentes mais
acentuadamente nas classes baixas. Lipset imputa esta
correlação à situação social da classe trabalhadora,
caracterizada por um baixo nível de instrução, por
uma baixa participação na vida de organismos
políticos e de associações voluntárias, por pouca
leitura e escassa informação, pelo isolamento derivado
do tipo de atividade desenvolvida (um fator que age
em grau máximo no caso dos camponeses e de outros
trabalhadores, como os mineiros), pela insegurança
econômica e psicológica e pelo caráter autoritário da
vida familiar. Todos estes fatores contribuem para a
formação de uma perspectiva mental pobre e indefesa,
feita de grande sugestionabilidade, de falta de um
senso do passado e do futuro, de incapacidade de ter
uma visão complexa das coisas, de dificuldade de
elevar-se acima da experiência concreta e de falta de
imaginação. É exatamente dentro desta perspectiva
mental que deve ser procurada, segundo Lipset, a
complexa base psicológica do Autoritarismo.
Também à tese de Lipset foram dirigidas diversas
críticas quer quanto ao método quer quanto à
interpretação. No plano do método foi observado, por
exemplo, que, em algumas pesquisas utilizadas por
Lipset, o modo de calcular os percentuais, que em
certos casos equiparava as respostas "não sei" àquelas
que eram abertamente
100
AUTORITARISMO
intolerantes, era desfavorável às classes baixas, onde
existe maior quantidade de respostas incertas ou
ausência de opinião. Além disso, o tipo de perguntas
dirigidas aos entrevistados favorecia a classe média,
já que tais perguntas se referiam a argumentos que
poderiam ser interessantes e compreensíveis para as
pessoas de classe média mas não da mesma maneira
para os trabalhadores. No plano da interpretação, e
com referência especial à classe operária, objetou-se
que deveria ser levada em conta não apenas a
condição de operário, mas a proveniência social do
operário. E uma tentativa de reelaborar os dados neste
sentido parece mostrar que o Autoritarismo deveria
ser atribuído sobretudo aos operários de imediata
proveniência campesina. Foi notado ainda que os
estudos sobre o Autoritarismo da classe operária
deveria ter em conta a mobilidade vertical uma vez
que há razões para defender que são sobretudo
autoritários os elementos que descem da classe média
para a classe operária e que, ao contrário, são
tolerantes, aqueles que vão da classe operária para a
classe média.
IV. REGIMES E INSTITUIÇÕES AUTORITÁRIAS. — Em
sentido generalíssimo, fala-se de regimes autoritários
quando se quer designar toda a classe de regimes
antidemocráticos. A oposição entre Autoritarismo e
democracia está na direção em que é transmitida a
autoridade, e no grau de autonomia dos subsistemas
políticos (os partidos, os sindicatos e todos os grupos
de pressão em geral). Debaixo do primeiro perfil, os
regimes autoritários se caracterizam pela ausência de
Parlamento e de eleições populares, ou, quando tais
instituições existem, pelo seu caráter meramente
cerimonial, e ainda pelo indiscutível predomínio do
poder executivo. No segundo aspecto, os regimes
autoritários se distinguem pela ausência da liberdade
dos subsistemas, tanto no aspecto real como no
aspecto formal, típica da democracia. A oposição
política é suprimida ou obstruída. O pluralismo
partidário é proibido ou reduzido a um simulacro sem
incidência real. A autonomia dos outros grupos
politicamente relevantes é destruída ou tolerada
enquanto não perturba a posição do poder do chefe ou
da elite governante. Neste sentido, o Autoritarismo é
uma categoria muito geral que compreende grande
parte dos regimes políticos conhecidos, desde o
despotismo oriental até ao império romano, desde as
tiranias gregas até às senhorias italianas, desde a
moderna monarquia absoluta até à constitucional de
tipo prussiano, desde os sistemas totalitários até às
oligarquias modernizantes ou tradicionais dos países
em desenvolvimento. Se tivermos presentes apenas os
sistemas políticos atualmente existentes e
concentrarmos a atenção sobre o papel que neles têm
os partidos, podemos distinguir três formas de
regimes autoritários, segundo observações de Samuel
P. Huntington e de Clemente H. Moore: os regimes
sem partidos, que correspondem habitualmente a
níveis bastante baixos de mobilização social e de
desenvolvimento político (Etiópia de Hailé Selassié,
por exemplo); os regimes de partido único — no
sentido real e não formal da expressão — que são os
mais numerosos (a União Soviética, por exemplo); e,
mais raramente, os regimes pluripartidários em que
diversos partidos convencionam em não competir
entre si, produzindo resultados funcionais muito
semelhantes
àqueles
que
encontramos
no
monopartidarismo (caso da Colômbia).
Todavia, na classificação dos regimes políticos
contemporâneos, o conceito de Autoritarismo é
empregado muitas vezes para designar, não todos os
sistemas antidemocráticos, mas apenas uma sua
subclasse. Neste sentido, distingue-se entre
Autoritarismo e totalitarismo. A propósito desta
distinção devemos dizer, em termos preliminares, que
enquanto o uso estrito que se faz de Autoritarismo é
útil e legítimo, o uso amplo de "totalitarismo" traz
consigo inconvenientes sérios, sendo vivamente
criticado. Na verdade o que se contrapõe aos regimes
autoritários são todos os regimes monopartidários com
índices de alta mobilização política. No verbete
TOTALITARISMO
encontraremos uma discussão
explícita deste ponto. Na exposição presente, para
simplificar, continuaremos falando, embora com a
devida cautela, de regimes "totalitários". Para isso,
deveremos voltar à nossa distinção: ela poderá ser
levada ao grau da penetração e da mobilização política
da sociedade e aos instrumentos a que a elite
governante especificamente recorre. Nos regimes
autoritários a penetração-mobilização da sociedade é
limitada: entre Estado e sociedade permanece uma
linha de fronteira muito precisa. Enquanto o
pluralismo partidário é suprimido de direito ou de fato,
muitos grupos importantes de pressão mantêm grande
parte da sua autonomia e por conseqüência o Governo
desenvolve ao menos em parte uma função de árbitro
a seu respeito e encontra neles um limite para o
próprio poder. Também o controle da educação e dos
meios de comunicação não vai além de certos limites.
Muitas vezes é tolerada até a oposição, se esta não for
aberta e pública. Para alcançar seus objetivos, os
Governos autoritários podem recorrer apenas aos
instrumentos tradicionais do poder político: exército,
polícia, magistratura e burocracia. Quando existe um
partido único, também acontece que ele não assume o
papel crucial tanto no que diz respeito ao exercício do
poder como no que
AUTORITARISMO
diz respeito à ideologia, tal como acontece nos
regimes "totalitários". Nestes últimos regimes, a
penetração-mobilização da sociedade, ao contrário, é
muito alta: o Estado, ou melhor, o aparelho do poder,
tende a absorver a sociedade inteira. Neles, é
suprimido não apenas o pluralismo partidário, mas a
própria autonomia dos grupos de pressão que são
absorvidos na estrutura totalitária do poder e a ela
subordinados. O poder político governa diretamente
as atividades econômicas ou as dirige para seus
próprios fins, monopoliza os meios de comunicação
de massa e as instituições escolares, suprime até
manifestações críticas de pequeno porte ou de
oposição, procura aniquilar ou subordinar a si as
instituições religiosas, penetra em todos os grupos
sociais e até na vida familiar. Este grande esforço de
penetração e de mobilização da sociedade comporta
uma intensificação muito destacada da propaganda e
de arregimentação. Daqui nasce a importância central
do partido único de massa, portador de uma ideologia
fortemente dinâmica; e, em certos casos extremos,
comporta também uma intensificação muito forte da
violência; e daí nasce a importância, em casos
extremos, da polícia secreta e dos outros instrumentos
de terror.
O sociólogo político luan Linz, que é dos autores
que mais contribuíram para precisar a distinção entre
"Autoritarismo" e "totalitarismo" na tipologia dos
sistemas políticos contemporâneos, propõe esta
definição: "Os regimes autoritários são sistemas
políticos com um pluralismo político limitado e não
responsável; sem uma ideologia elaborada e
propulsiva, mas com mentalidade característica; sem
uma mobilização política intensa ou vasta, exceção
feita em alguns momentos de seu desenvolvimento; e
onde um chefe, ou até um pequeno grupo, exerce o
poder dentro dos limites que são formalmente mal
definidos mas de fato habilidosamente previsíveis". O
primeiro ponto diz respeito ao pluralismo político: um
pluralismo limitado de direito e de fato, mais tolerado
do que reconhecido e não responsável, no sentido de
que o recrutamento político de indivíduos
provenientes das diversas forças sociais não se baseia
sobre um princípio operante de represen-tatividade
dessas forças sociais, mas sobre escolha e preferência
do alto. O segundo ponto destaca o baixo grau de
organização e de elaboração con-ceptual das teorias
que justificam o poder dos regimes autoritários e, por
conseqüência, a sua modesta dinâmica propulsiva. O
terceiro ponto acentua a escassa participação da
população nos organismos políticos e parapolíticos,
que caracteriza os regimes autoritários estabilizados,
mesmo quando em certas fases de sua história,
especialmente em fases iniciais, a mobilização pode
ser
101
muito maior. Finalmente, o quarto aspecto torna claro
o fato de que o poder do chefe ou da elite governante
se exerce dentro de limites bastante definidos, mesmo
quando não estão estabelecidos formalmente. Estes
limites estão evidentemente ligados a outros aspectos
dos regimes autoritários: o pluralismo moderado, a
falta de uma ideologia propulsiva, escassa
mobilização e ausência de um eficiente partido de
massa.
O grau relativamente moderado da penetração no
tecido social dos regimes autoritários depende sempre
do atraso mais ou menos marcante da estrutura
econômica e social. Mas neste contexto, a elite
governante pode ter dois papéis diversos: pode
reforçar o modesto grau de penetração do sistema
político, escolhendo deliberadamente uma política de
mobilização limitada, ou escolher uma política de
mobilização acentuada cujos limites serão definidos
pelas condições do ambiente. Com base no
comportamento desses fatores, G. A. Almond e G. B.
Powel distinguem, no âmbito dos regimes autoritários,
entre regimes autoritários de tipo conservador e
regimes autoritários em vias de modernização. Os
regimes autoritários conservadores, como os de
Franco e de Salazar, surgem dos sistemas políticos
tradicionais
dinamizados
por
uma
parcial
modernização econômica, social e política, e têm em
vista limitar a destruição da ordem social tradicional
usando algumas técnicas modernas de organização, de
propaganda e de poder. O poder de mobilização,
porém, é muito limitado. O regime não procura
entusiasmo e sustentação, contenta-se com a aceitação
passiva e tende a desencorajar a doutrinação
ideológica e o ativismo político. Os regimes
autoritários em vias de modernização que podem ser
encontrados em vários países do terceiro mundo
surgem em sociedades caracterizadas por uma
modernização ainda muito débil e obstaculada por
vários estrangulamentos sociais. Eles pretendem
reforçar e tornar incisivo o poder político para superar
os impasses no caminho do desenvolvimento. A
caminhada para a mobilização é por isso muito mais
forte do que nos regimes de tipo conservador; mas a
força de penetração do regime é limitada pela
consistência das forças sociais conservadoras e
tradicionais e pelo atraso geral da estrutura social e da
cultura política. Nesta situação, a elite governante se
esforça por introduzir os instrumentos modernos de
mobilização social mas não está em condições de
organizar um partido de massa verdadeiramente
eficiente.
Estas dificuldades que a elite governante enfrenta
são ainda maiores nos regimes autoritários prémobilizadosr já que o ambiente que os caracteriza é
uma sociedade ainda quase inteiramente
102
AUTORITARISMO
tradicional, tanto na estrutura social como na cultura
política. Num certo sentido, tais regimes não são
senão "meros acidentes históricos, isto é, sistemas
onde, em conseqüência do influxo do colonialismo e
da difusão das idéias e das atividades existentes em
países mais desenvolvidos, se criou uma elite
modernizante e uma estrutura política diferenciada,
muito antes que se tenha sentido a necessidade ou o
impulso de desenvolver tais estruturas e culturas por
própria conta". Os enormes obstáculos que se opõem à
mobilização política e à modernização, em casos
como estes, ficaram bem ilustrados com os
acontecimentos de Gana na época de Nkrumah.
Uma
tipologia
dos
regimes
autoritários
contemporâneos, mais minuciosa e articulada, é a
proposta por J. Linz. Prevê cinco formas principais e
duas secundárias, sete tipos ao todo. 1) Os regimes
autoritários burocrático-militares são caracterizados
por uma coalizão chefiada por oficiais e burocratas e
por um baixo grau de participação política. Falta uma
ideologia e um partido de massa; existe
freqüentemente um partido único, que tende a
restringir a participação; às vezes existe pluralismo
político, mas sem disputa eleitoral livre. É o tipo de
Autoritarismo mais difundido no século XX: são disso
exemplo o Brasil e a Argentina em alguns períodos da
sua história, a Espanha de Primo de Rivera e os
primeiros anos de Salazar em Portugal. 2) Os regimes
autoritários
de
estatalismo
orgânico
são
caracterizados pelo ordenamento hierárquico de uma
pluralidade não competitiva de grupos que
representam diversos interesses e categorias
econômicas e sociais, bem como por um certo grau de
mobilização controlada da população em formas
"orgânicas". Existe também amiúde um partido único,
com um papel mais ou menos relevante, ao mesmo
tempo que a perspectiva ideológica do regime assenta
numa certa versão do corporativismo. Exemplo típico
do estatalismo orgânico encontramo-lo no Estado
Novo português; mas também há tendências
corporativas na Itália fascista, na Espanha franquista e
em alguns países da América Latina. 3) Os regimes
autoritários de mobilização em países pósdemocráticos se distinguem pelo grau relativamente
mais elevado de mobilização política, a que
corresponde o papel mais incisivo do partido único e
da ideologia dominante, e por um grau relativamente
mais baixo de pluralismo político permitido. São os
regimes usualmente chamados "fascistas" ou, pelo
menos, a maior parte deles. O caso mais
representativo é o do fascismo italiano. 4) Os regimes
autoritários de mobilização pós-independência são os
resultantes da luta anti-colonial e da conquista da
independência nacional, especialmente espalhados
pelo continente
africano. Caracterizam-se pelo surgimento de um
partido único ainda débil e não apoiado pelas
formações paramilitares típicas dos regimes fascistas,
por uma leadership nacional muitas vezes de caráter
carismático, por um incerto componente ideológico e
por um baixo grau de participação política. 5) Os
regimes autoritários pós-totalitários são representados
pelos sistemas comunistas após o processo de
destalinização. São o resultado combinado de diversas
tendências: formação de interesses em conflito —
portanto de um pluralismo limitado —, despolitização
parcial das massas, atenuação do papel do partido
único e da ideologia, acentuada burocratização. São
tendências que provocam uma transformação
considerável e sólida do anterior modelo totalitário. A
estes cinco tipos principais de regimes autoritários,
Linz acrescentou ainda o 6) totalitarismo imperfeito,
que constitui geralmente uma fase transitória de um
sistema cuja evolução para o totalitarismo é sustada e
tende depois a transformar-se em qualquer outro tipo
de regime autoritário, e 7) a chamada democracia
racial, domínio autoritário de um grupo racial sobre
outro grupo racial que representa a maioria da
população (África do Sul), embora internamente ele se
reja pelo sistema democrático.
Em analogia com os regimes políticos, pode-se
atribuir o caráter do Autoritarismo também a outras
instituições sociais familiares, escolares, religiosas,
econômicas e outras. Neste campo, o conceito de
Autoritarismo torna-se muito genérico e pouco
preciso, ainda que seja claro que, para as outras
instituições sociais, tal como acontece com os regimes
políticos, ele se refere à estrutura das relações de
poder. Seria lícito dizer que uma instituição é tanto
mais autoritária quanto mais as relações de poder que
a distinguem são confiadas a comandos apodíticos e
ameaças de punição e tendem a excluir ou a reduzir ao
mínimo a participação de baixo na tomada de
decisões. Mas se pode ser relativamente fácil
concordar em gera! sobre os parâmetros do
Autoritarismo das instituições, é muito mais difícil
concordar sobre sua aplicação concreta a esta ou
àquela instituição. Neste campo tornam-se claramente
relevantes, mais do que em qualquer outra
circunstância, as orientações de valor das diversas
correntes. Isso pode ser facilmente observado
considerando as respostas que de costume são dadas
aos dois principais problemas que emergem no setor.
O primeiro problema pode ser formulado da
maneira seguinte: até que ponto é legítima a analogia
entre os conceitos de democracia e de Autoritarismo
ao nível dos regimes políticos e os mesmos conceitos
ao nível das diversas instituições sociais? De uma
parte, alguns tendem a levar
AUTORITARISMO
a analogia muito à frente, querem democratizar as
várias instituições sociais, introduzindo parlamentos e
assembléias com o máximo poder de decisão, na
escola, na fábrica, na igreja, etc. e chamam de
autoritárias todas as instituições que não se
conformam com tais critérios. O alvo do ataque desta
tendência radical é, em particular, a estrutura
hierárquica das grandes unidades econômicas
contemporâneas, para as quais a analogia com os
regimes políticos não poderia ser negada desde o
momento em que apenas as instituições sociais estão
em condições de tomar decisões do mesmo alcance
que o Governo. De outra parte, há aqueles que refutam
esta extensão do significado de Autoritarismo e que
defendem o princípio da pluralidade das estruturas de
poder nas diferentes instituições, afirmando que uma
excessiva difusão dos processos democráticos de
derivação política só leva a desnaturar a fisionomia
específica e a minar o bom funcionamento dos
diversos setores institucionais. Afirma-se, por
exemplo, que nas instituições que dizem respeito às
relações entre adultos e jovens, como a família e a
escola, existe uma desigualdade de base que não
permite uma total analogia com o sistema político; ou
que a democratização dos problemas econômicos as
privaria da sua eficiência.
Conexo com a resposta radical ou moderada que se
dá ao primeiro problema é o tipo de solução do
segundo problema que diz respeito à conexão entre a
democracia e o Autoritarismo das instituições sociais
e a democracia e o Autoritarismo do sistema político.
Para os moderados, a conexão não existe ou então é
mínima. Não só a organização hierárquica da família e
da unidade econômica mas também a estrutura
oligárquica dos próprios partidos não atinge a
democracia. Por um lado, a oligarquia a nível de
partido político se converte na democracia a nível de
sistema em seu conjunto, se existe uma pluralidade de
partidos .que periodicamente e livremente lutam pelo
poder de Governo através do voto popular. Neste
quadro, um certo grau de apatia política das massas é
compatível com a democracia e pode até ser útil para
a sua estabilidade. Para a posição radical, ao contrário,
a democracia de um sistema político é avaliada com
base na real participação dos cidadãos na formação
das decisões; e nas atuais democracias liberais, a
participação política é realmente insuficiente, porque
os homens não são educados para uma tal
participação, que muitas vezes diz respeito a
problemas longínquos e abstratos, através da
oportunidade de participar nas decisões que os tocam
de perto na sua experiência concreta. Nesta
perspectiva, a conexão entre o Autoritarismo ou a
democracia das outras instituições sociais e o
Autoritarismo ou a democracia do sistema político
toma-se bastante estreita. Um sistema político
democrático pressupõe uma sociedade democrática; e
por isso as atuais democracias liberais devem sujeitarse a uma profunda transformação, no sentido de uma
103
nítida democratização das instituições sociais que, tal
como acontece com as instituições econômicas,
envolvem mais diretamente os interesses dos homens
que nelas trabalham dia-a-dia.
Uma posição intermediária a respeito do problema
da conexão está implícita na teoria da estabilidade dos
sistemas políticos de Harry Ecks-tein. Segundo este
cientista político, a estabilidade se apoia na
"congruência" entre o modelo de autoridade do
regime político e os modelos de autoridade vigentes
nas instituições sociais. Neste sentido, a estabilidade
da democracia inglesa e da norueguesa depende do
fato que uma análoga dosagem de democracia e de
autoridade caracteriza tanto o Governo quanto as
instituições sociais; enquanto que a derrubada da
República de Weimar se atribui ao contraste claro
entre a organização democrática do Governo e a
estrutura marcadamente autoritária das instituições
sociais. Aqui, todavia, "congruência" nem sempre
quer dizer um pleno "isomorfismo", mas muitas vezes
indica uma semelhança "gradativa", mais relevante
nas instituições mais próximas do Governo (partidos,
grupos de pressão, associações voluntárias entre
adultos) e muito menos significativa nas instituições
mais distantes, como a família, a escola e forças de
produção. Segundo Eckstein, o insuprimível
componente autoritário de diversas instituições sociais
torna mais estáveis os sistemas políticos nos quais a
democracia do Governo é atenuada por uma certa
"impureza"
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[MARIO STOPPINO]
Balcanização.
Balcanização é uma expressão política que
significa a divisão de uma entidade continental, subcontinental ou regional em unidades politicamente
separadas ou hostis entre si. O termo Balcanização
tem suas origens na fragmentação, em unidades
políticas distintas, da região dos Bálcãs e, em
particular, nas condições que acabaram prevalecendo
no processo de relacionamento entre estes Estados no
período das guerras balcânicas (1912-13).
No vocabulário político contemporâneo, o termo
Balcanização tem sido usado com relação ao processo
de descolonização e de independência vivido pelos
territórios africanos, anteriormente unidos debaixo da
mesma administração colonial. Referimo-nos a este
processo como à Balcanização da África. A
Balcanização seria conseqüência de uma opção
política das potências coloniais que viam na
fragmentação, e na conseqüente fraqueza econômica
dos novos Estados independentes, o meio para
perpetuar sua dominação neocolonia-lista. De acordo
com os líderes nacionalistas africanos, a Balcanização
é o principal instrumento do neocoloniálismo, sendo
por isso identificada com um novo tipo de
imperialismo. A Balcanização acabaria favorecendo o
neocoloniálismo uma vez que os novos Estados
independentes, demasiado fracos política e
economicamente para sobreviverem e progredirem
unicamente com suas próprias forças, transformar-seiam em Estados satélites, formalmente independentes,
na realidade presos financeira e diplomaticamente,
também, à ex-potência colonial, até depender dela
totalmente. A Balcanização da África teria como
conseqüência uma independência ilusória.
O termo Balcanização, com estas conotações
negativas, foi usado nos anos 60 principalmente com
referência ao desmembramento da África ocidental
francesa em oito Estados (além de Camarões e Togo)
e da África equatorial francesa em quatro Estados.
Outros territórios, anteriormente unidos, obtiveram a
independência como unidades territoriais separadas, p.
ex. o Ruanda
Urundi, hoje dividido em dois Estados: Ruanda e
Urundi. Da mesma forma, as guerras civis de
Katanga, no Congo, e de Biafra, na Nigéria, foram
denunciadas pelos mais significativos líderes
africanos como novas tentativas de Balcanização da
África.
[ANNA MARIA GENTILI]
Banditismo.
Entre os diversos significados que a palavra
brigantaggio (relacionada com brigante, salteador,
bandoleiro, malfeitor) adquiriu no italiano mais
recente, penetrando muitas vezes na área semântica de
bandido-Banditismo, predomina o que se refere mais
estritamente a um contexto histórico. A ação de
bandos armados que agem contra a autoridade
constituída, cometendo crimes contra a propriedade e
contra as pessoas, é geralmente estimulada por
movimentos políticos ligados a uma situação de malestar social profundo. A debilidade do poder central e
a excessiva exploração do campo e das classes rurais
por parte do Estado e da nobreza foram as condições
particulares em que tal fenômeno encontrou terreno
favorável para se desenvolver na Europa, nos séculos
anteriores à consolidação do Estado burguês moderno
e do sistema econômico em que ele se funda. Nomes
como Flandrin, Cartouche, os mesnadeiros
imortalizados por Schiller, Passa-tore, não são senão
os mais conhecidos a meio caminho entre a história e a
literatura. Diga-se ainda que o salteador-bandido, em
certos casos, como o caso típico da Córsega, era
apenas aquele que vivia a monte para se subtrair à
justiça do Estado, enquanto que a comunidade de
origem não o considerava como tal, mas tão-só como
vítima de uma injustiça sofrida.
Na Itália, o Banditismo teve dois momentos de
grande importância: durante as guerras napoleô-nicas
(principalmente na reação contra a república
partenopéia de 1799) e depois da união do
106
BEM COMUM
reino das Duas Sicílias à monarquia saboiana. Se na
Itália central e setentrional estava preponderantemente
ligado às intrigas legitimistas dos soberanos depostos
por Napoleão, na Itália meridional apresentava um
aspecto mais claramente classista. Liberais e fidalgos,
defensores primeiro da república partenopéia e depois
da monarquia saboiana e da nova ordem unitária,
eram também os usurpadores dos bens comunais e dos
antigos direitos comuns, lançando assim seu ataque
contra a parte mais pobre da população rural. O
ressentimento de classe foi. então convenientemente
explorado pelos agentes' borbônicos, mais ligados à
situação local que a nova classe filo-saboiana e
liberal; foram eles que, mediante promessas eficazes
de novas cotizações dos bens, mobilizaram a
população rural contra as .novas instituições do reino
da Itália. A dura repressão que se seguiu (1860-1865)
revela os limites da política saboiana de unificação da
península e da nova e pesada carga fiscal imposta às
províncias meridionais. A luta contra o Banditismo
tornou-se fator de agregação social e de divisão da
sociedade meridional em grupos, uns defensores,
outros inimigos da nova ordem política e econômica.
Desta divisão podem depender as posteriores cisões
entre fascistas e antifascistas locais, bem como as
atuais clientelas políticas.
A linguagem política mais recente esqueceu o
brigantaggio como palavra de uso comum, preferindo
bandido-Banditismo para caracterizar a ação de
grupos clandestinos que atuavam contra um poder
político sem legitimação popular (a república social
italiana), a que se contrapunha a imagem do salteador
execrável. Atualmente se fala de criminalidade
política para identificar a ação de grupos que tentam
desencadear a revolta popular contra instituições que
gozam de forte consenso. As formas de delinqüência
mais modernas, organizadas segundo os princípios do
lucro capitalista, tornaram rapidamente obsoleto o uso
de Banditismo na definição de atividades criminais
em que muitas vezes se vai além das formas
tradicionais (por exemplo, o seqüestro para fins de
extorsão e o roubo de gado).
BIBLIOGRAFIA. — F. DE FELICE, Società
meridionale e brigantaggio nellltalia pn.st unitária.
"Rivista storica del socialismo", VIII, 1965; Il
brigantaggio meridionale. Cronaca inedita del’lunità
d'ltalia. ao cuidado de A. DE JACO, Editori Riuniti,
Roma 1969; E. I. HOBSBAWM, I banditi (1969),
Einaudi, Torino 1971; Id., I ribellii 1959), Einaudi.
Torino 1966; F. MOLFESE, Storia del brigantaggio
dopo l’unità, Feltrinelli. Milano 1964; P. Soccio,
Unità e brigantaggio, ESI, Napoli 1969.
[MAURO AMBROSOLI]
Bem Comum.
O conceito de Bem comum é próprio do
pensamento político católico, e, em particular, da
esco-lástica nas suas diversas manifestações desde S.
Tomás a J. Maritain, e está na base da doutrina social
da Igreja, baseada no solidarismo.
O Bem comum é, ao mesmo tempo, o princípio
edificador da sociedade humana e o fim para o qual
ela deve se orientar do ponto de vista natural e
temporal. O Bem comum busca a felicidade natural,
sendo portanto o valor político por excelência,
sempre, porém, subordinado à moral. O Bem comum
se distingue do bem individual e do bem público.
Enquanto o bem público é um bem de todos por
estarem unidos, o Bem comum é dos indivíduos por
serem membros de um Estado; trata-se de um valor
comum que os indivíduos podem perseguir somente
em conjunto, na concórdia. Além disso, com relação
ao bem ihdi-vidual, o Bem comum não é um simples
somatório destes bens; não é tampouco a negação
deles; ele coloca-se unicamente como sua própria
verdade ou síntese harmoniosa, tendo como ponto de
partida a distinção entre indivíduo, subordinado à
comunidade, e a pessoa que permanece o verdadeiro e
último fimt Toda atividade do Estado, quer política
quer econômica, deve ter como objetivo criar uma
situação que possibilite aos cidadãos desenvolverem
suas qualidades como pessoas; cabe aos indivíduos,
singularmente impotentes, buscar solidariamente em
conjunto este fim comum.
O conceito de Bem comum apresenta analogias
com o de vontade geral, embora seja um conceito
objetivo, enquanto este último é subjetivo, justamente
pela mesma postura que ambos assumem com relação
aos bens individuais ou às vontades particulares: tanto
o Bem comum como a vontade geral exprimem a
vontade moral dos indivíduos.
Estes dois conceitos encontram as mesmas
dificuldades no plano da prática: como é impossível
definir empiricamente quem seria o portador da
vontade geral, podendo aceitar apenas a vontade da
maioria como sendo a vontade de todos, assim é
difícil saber quem seria o intérprete do Bem comum:
pode ser o magistério da Igreja, isto é, uma estrutura
burocrática portadora do carisma, ou podem ser os
cidadãos que, ao contrário, na prática, lutam e entram
em contraste entre si justamente pelas diferentes
interpretações do que venha a ser Bem comum ou de
qual seja o fim para onde encaminhar a sociedade
humana.
O conceito de Bem comum voltou recentemente à
cena com a análise econômica dós bens coletivos ou
públicos e com as concepções do
BICAMERALISMO
neocontratualismo. São bens públicos os que geram
vantagens indivisíveis em benefício de todos, nada
subtraindo o gozo de um indivíduo ao gozo dos
demais. O bem público não transcende, na verdade, o
bem privado, porque é igualmente um bem do
indivíduo e se alcança através do mercado ou, mais
freqüentemente, através das finanças públicas (v.
TEORIA DAS DECISÕES COLETIVAS). Por seu lado, o
neocontratualismo mostra como se deve deduzir do
contrato social um conceito universal de justiça, um
Bem comum, que consiste na maximização das
condições mínimas dos indivíduos, ou como se devem
reformular as regras do jogo para obter uma ação não
competitiva, mas cooperativa, que maximize, além do
interesse individual, o bem coletivo, que é coisa bem
diferente da simples soma dos interesses individuais
(v. CONTRATUALISMO).
Finalmente, este conceito manifesta uma exigência
que é própria de toda sociedade organizada,
claramente evidenciada pela ciência política: sem um
mínimo de cultura homogênea e comum, sem um
mínimo de consenso acerca dos valores últimos da
comunidade e das regras de coexistência, a sociedade
corre o risco de se desintegrar e de encontrar sua
integração unicamente mediante o uso da força. O
Bem comum representa, pois, a tentativa maior para
realizar uma integração social baseada no consenso,
embora este conceito, elaborado por sociedades
agrícolas e sacralizadas, não consiga se adaptar
satisfatoriamente às sociedades industrializadas e
dessacra-lizadas.
[NICOLA MATTEUCCI]
Bicameralismo.
I. NOÇÃO. — Na linguagem corrente, se costuma
ligar o conceito de Bicameralismo à existência de
parlamentos constituídos por duas assembléias ou
câmaras (chamados, por isso, "bi-camerais"),
distinguindo-o, por um lado, do mo-nocamerismo e,
por
outro,
do
pluricameralismò,
referentes
respectivamente a parlamentos formados por uma
única assembléia (monocamerais) e por mais de duas
(pluricamerais). Desta maneira, a expressão
Bicameralismo reflete o modo de ser de um certo tipo
de parlamento num dado momento histórico, sem, no
entanto, esclarecer as "razões" pelas quais os
parlamentos em questão -são de um tipo e não de
outro. A este propósito é bom observar que, nos
ordenamentos positivos, a preferência por um
parlamento monocameral, bicameral ou pluricameral
obedece ou tem
107
obedecido à satisfação de necessidades concretas. Em
particular, para que certas exigências sejam
plenamente satisfeitas e o Bicameralismo se revele
como um fenômeno dinâmico, não basta a existência
de duas câmaras; é necessário que as suas vontades
confluam para uma única vontade. Por outro lado, a
confluência das vontades de duas câmaras pode ser
suficiente para aprovar alguns dos atos de parlamentos
pluricamerais, fazendo nascer, substancialmente, uma
forma anômala de Bicameralismo. É assim que, no
parlamento penta-cameral iugoslavo, ordenado pela
Constituição de 1963 (Constituição que se manteve
em vigor com várias emendas, mesmo referentes ao
tema em exame, até 1974), havia uma câmara federal
que servia de elemento fundamental na produção das
leis, enquanto que as outras quatro se alternavam (art.
173 da Constituição) de modo que as leis fossem
aprovadas por duas assembléias com iguais poderes: a
já mencionada (a mais amplamente representativa) e
outra assembléia designada em cada caso, por sua
competência na matéria (Câmara dos Assuntos
Econômicos, art. 174 da Constituição; Câmara da
Instrução e da Cultura, art. 175; Câmara dos Assuntos
Sociais e da Saúde, art. 176; Câmara dos Assuntos
Políticos e Organizacionais, art. 177).
Em contraposição, o Bicameralismo não tem modo
de se manifestar nos parlamentos bicame-rais: 1) nem
quando as duas câmaras atuam numa mesma sessão;
2) nem quando determinadas funções são conferidas a
uma assembléia e não a outra; 3) nem quando um
órgão
intercameral
limitado
a)
substitui
temporariamente as câmaras ou b) se adota para
dirimir as divergências entre elas.
Quanto ao ponto 1) é de considerar que o
ordenamento italiano — cuja opção bicameral é
sancionada pelo art. 55, I, da Constituição, segundo o
qual: "o Parlamento é composto pela Câmara dos
Deputados e pelo Senado da República" — se serve
do "parlamento em sessão comum" para o
desempenho das seguintes atribuições constitucionais:
eleição e juramento do Presidente da República (art.
83, 91); eleição de um terço dos membros do
Conselho Superior da Magistratura (art. 104) e de um
terço dos membros da Corte Constitucional (art. 135,
I); moção de acusação contra o Presidente da
República (art. 90), contra o Presidente do Conselho e
contra os ministros (art. 96); compilação do elenco de
cidadãos dentre os quais são tirados à sorte 16 juizes
adjuntos da Corte Constitucional que intervém apenas
quando o órgão se reúne para julgar as acusações
apresentadas pelo Parlamento (art. 135, VII). Quanto
ao ponto 2) vale a pena recordar que, na GrãBretanha, é a Câmara dos
108
BICAMERALISMO
Comuns e não a dos Lordes que confere ou tira a
confiança ao Governo; nos Estados Unidos da
América, é o Senado que emite, sem o concurso da
outra Câmara, advices e consents que obrigam o
executivo na ratificação dos tratados internacionais e
na nomeação dos juizes da Corte Suprema e de outros
funcionários federais; na Alemanha ocidental, é o
Bundeslag e não o Bundesral que elege o chanceler
federal (art. 63, I, II, da Crundgeseiz) e pode
expressar-lhe o voto de desconfiança, elegendo por
maioria dos seus membros o sucessor (art. 67). Quanto
ao último ponto, alguns exemplos significativos da
hipótese a) são-nos oferecidos pelo Presidium do
Soviete Supremo da URSS, no intervalo entre as
sessões do mesmo Soviele, de acordo com o art. 119
da Constituição de 1977, atualmente em vigor, e pela
Comissão comum que, na Alemanha Ocidental, pode
ocupar o lugar das câmaras parlamentares, mas só em
conseqüência da proclamação do "Estado de defesa" e
"se a situação exige uma ação não adiável" (art. 115-a,
II; 115-e, I). No tocante à hipótese b), limitar-nosemos a chamar a atenção para o conference committee.
formado por membros das duas câmaras do Congresso
dos USA para a busca de uma fórmula de
compromisso, quando ditas assembléias não chegam a
um acordo sobre um determinado texto legislativo, e
para a comissão mista paritária que, na França,
intervém em ocasiões análogas, conforme o art. 45 da
Constituição.
Podemos, pois, concluir que o Bicameralismo se
baseia no pressuposto da existência de duas câmaras
parlamentares, quando menos, constitutivas, em
sentido lato, de um parlamento ao menos bicameral.
Não obstante, tal parlamento, ao desempenhar suas
funções, nem sempre se ajusta com o Bicameralismo.
Aliás parece difícil conceber um parlamento
bicameral cujos ramos não operem nunca de acordo: a
experiência concreta demonstra que, onde existe um
parlamento bicameral, o Bicameralismo se afirma
numa forma ou noutra. O problema se concentra,
portanto, na escolha do Bicameralismo a aplicar.
II.
BICAMERALISMO
PERFEITO
OU
INTEGRAL, BICAMERALISMO IMPERFEITO OU
LIMITADO. — O Bicameralismo se desenvolve em
sua plenitude, tanto quando as duas câmaras têm iguais
poderes no exercício de determinadas funções, como
quando os poderes, embora diversos, são complementares (o que ocorre, por exemplo, quando, em certos
países, ambas as câmaras participam no processo de
impeachment: uma — a câmara baixa — apresentando
a moção de acusação, e a outra — a alta —
constituindo-se em Alta Corte de justiça para os atos
contrários aos interesses
gerais do Estado, cometidos por personalidades
políticas no exercício das suas funções). É este o
Bicameralismo perfeito ou integral, que alguns
consideram como o único Bicameralismo autêntico e
verdadeiro.
O princípio bicameral se manifesta, ao invés, de
forma atenuada, quando as duas câmaras possuem
atribuições
parcialmente
diferentes.
É
o
Bicameralismo imperfeito ou limitado, que parte do
pressuposto de que pelo menos algumas das funções
do parlamento, nomeadamente a legislativa, se
baseiam na convergência das vontades de ambas as
assembléias, mesmo que depois uma delas acabe por
prevalecer. Neste último caso, a câmara dotada de
menores poderes há de ter condições de manifestar
uma vontade autônoma (faltando a qual não se pode
falar de Bicameralismo, nem mesmo de forma
atenuada). Isso quer dizer, referindo-nos aos
caracteres estruturais das duas assembléias, que a
composição de uma câmara não pode ser
completamente controlada e disciplinada pela vontade
da outra.
A preferência pelo Bicameralismo aceita como
corolário que possam existir divergências entre as
duas câmaras. Para resolvê-las, alguns ordenamentos
excluíram intencionadamente qualquer tipo de
normas, por se julgar que tais divergências pudessem
ser superadas com o tempo e com o evoluir da
discussão; outros estabeleceram que os conflitos se
exaurem no próprio âmbito das câmaras (atribuindo,
por exemplo, à vontade de uma das assembléias
preponderância sobre a da outra, ou predispondo a
formação de comissões mistas); outros ainda prevêem
o recurso a instrumentos que não dependem da
vontade das câmaras (o referendum. por exemplo).
III. O BICAMERALISMO COMO PROBLEMA
DE OPÇÕES TÉCNICAS E POLÍTICAS. — Por que adotar o
Bicameralismo em vez do monocamerismo ou do
pluricameralismo? Por que aprovar uma forma de
Bicameralismo de preferência a outras?
Geralmente rejeitado pelos teóricos, raramente
adotado
na
experiência
constitucional
dos
ordenamentos modernos, o pluricameralismo desperta
escasso interesse. A experiência mais recente, a
iugoslava, baseada na Constituição de 1963, onde,
aliás, o pluricameralismo informava apenas, como foi
dito, uma parte das atividades parlamentares, se
dissolveu em pouco mais de dez anos. A Constituição
de 1974, ao optar pelo Bicameralismo, estabelece,
com efeito, no art. 284 que: "os direitos e os deveres
da Assembléia da R.S.F.J. são exercidos pela Câmara
Federal e pela Câmara das Repúblicas e das
Províncias, em conformidade com as normas desta
Constituição".
BICAMERALISMO
Ao invés, é cada vez mais manifesta a opção
alternativa entre a solução monocamera! — que,
obviamente, exclui in limine o Bicameralismo — e a
solução bicameral — que permite a experiência e a
aceitação de toda a forma e graduação de
Bicameralismo. Entre os argumentos a favor do
Bicameralismo, se podem recordar, em síntese, os
seguintes: o Bicameralismo é um elemento útil nos
Estados descentralizados, nomeadamente nos Estados
federais, contribuindo, por um lado, para os distinguir
da Confederação de Estados e, por outro, dos Estados
centralizados. Isto acontece, se uma câmara é
representativa do povo em sua totalidade e constitui
elemento de garantia da unicidade do Estado, ao
mesmo tempo que a outra se estrutura de modo que
possa tutelar a existência jurídica das entidades
territoriais autônomo-autárquicas do mesmo Estado
(Estados-mcmbros, Lander, etc).
IV. O BICAMERALISMO NA EXPERIÊNCIA
CONSTITUCIONAL. — A discussão sobre o tema da
"funcionalidade" do Bicameralismo traz a qualquer
ordenamento positivo elementos úteis para a disciplina
das formas e dos modos de atuação das técnicas de
organização bicameral (do Bicameralismo perfeito ao
extremamente atenuado), mas é talvez de nenhuma
influência para a solução do problema preliminar: se o
parlamento deve ser constituído por uma ou por duas
câmaras. Nos nossos dias, a escolha do
Bicameralismo, quando não firmada na tradição
(divisão por Estados), corresponde à intenção de
conferir eficiência autônoma a grupos sociais
heterogêneos, de modo que, enquanto uma câmara
representa o povo, entendido como totalidade
indistinta, e é eleita pelo conjunto dos cidadãos, a
outra tende a oferecer particular tutela, ou a diversas
categorias de interesses (culturais, econômicos,
sindicais, etc), ou/e a entidades descentralizadas,
sejam elas Es-tados-membros do Estado federal ou
realidades territoriais com autonomia garantida em
Estados que, não se ajustando à tipologia do Estado
federal, assentam nos princípios da descentralização.
É interessante observar como o intento de que falamos
afunda as suas raízes nos princípios da democracia
ocidental. Não é por acaso que os Estados, que se
inspiram nesses princípios, são geralmente bicamerais.
Constituem exceção os mais pequenos (Andorra,
Liechtenstein, Luxemburgo e Mônaco, por exemplo,
optaram sempre pelo monocamerismo) e, nas últimas
décadas, também alguns Estados de maiores
dimensões. Assim, a Dinamarca estabeleceu em sua
Constituição de 1953: "O Folketing é constituído por
uma assembléia única" (art. 28). E a Suécia, na sua
Constituição de 1975, determinava:
109
"O Riksdag é formado por uma Câmara" (c III, artigo
1.°, II).
Os Estados socialistas, pelo contrário, tendem ao
monocamerismo, justamente em virtude dos
princípios que os informam. Só admitem a
conveniência de subdividir o parlamento em dois
ramos para conceder um especial reconhecimento a
entidades territoriais descentralizadas. Assim acontece
na URSS e na Iugoslávia.
Se passarmos agora a considerar alguns exemplos
particularmente significativos, observaremos que a
fidelidade às instituições é um elemento que
caracteriza o desenvolvimento constitucional do Reino
Unido, onde o Bicameralismo possui origens remotas.
Inicialmente, o princípio bicameral foi adotado de
forma praticamente integral: Lordes e Comuns,
embora com atribuições parcialmente diferentes —
como no já citado processo de impeachment —, se
encontra em posição de igualdade no exercício dos
principais poderes parlamentares. Mas, a partir de
1832 (reforma da representação política) a situação foi
mudando gradualmente. A responsabilidade das
funções de direção e de controle político, bem como a
atividade legislativa de maior importância, se
concentraram nos Comuns, como órgão representativo
da vontade popular. A Câmara dos Lordes,
desautorizada até formalmente (Parlia-ment Acts de
1911 e 1949), isto é, rebaixada ao nível de câmara de
reflexão, fica sujeita à completa atrofia. Se o
Bicameralismo continua a existir no Reino Unido, na
forma acentuadamente atenuada da atualidade, isso
ocorre sobretudo porque as instituições, entre elas a
Câmara dos Lordes, dispõem de uma grande força
simbólica que impede, ou pelo menos retarda,
qualquer modificação formal do ordenamento.
Na França, a escolha entre o Bicameralismo (de
várias formas) e o monocamerismo tem sido objeto de
fadigosas discussões, tendo dado lugar à alternância
de sistemas monocamerais e bicamerais. O atual
Parlamento francês, formado pela Assembléia
Nacional e pelo Senado, adota o Bicameralismo de
forma atenuada. De fato, nos casos mais controversos
e delicados, a vontade da Assembléia (eleita por
sufrágio direto, enquanto o Senado o é por sufrágio
indireto) acaba por prevalecer. Assim, o Governo é
"responsável perante o Parlamento", ou seja, perante
ambos os seus ramos (art. 20 da Const.), mas só a
Assembléia "põe em causa a responsabilidade do
Governo, mediante a votação de uma motion de
censure" (art. 49, II, da Const.), ao passo que o
Senado, a pedido do primeiro-ministro, deve limitarse a uma declaração de política geral (art. 49, V, da
Const.); ambas as Câmaras aprovam a lei, mas, em
caso de contraste, não havendo outro
110
BICAMERALISMO
solução, é à Assembléia que cabe a decisão definitiva
a pedido do Governo.
O Bicameralismo desempenha um papel
particularmente
significativo
na
experiência
constitucional dos Estados Unidos da América. Na
redação original, a Constituição estabelecia que os
representantes fossem eleitos de dois em dois anos em
colégios uninominais e que o seu número, em cada
uma das entidades estatais, devia ser proporcional ao
dos cidadãos ali residentes. Os senadores, pelo
contrário, deviam ser dois por Estado, escolhidos pelo
parlamento estadual (sobre este ponto, art. 1.°, seç. III,
da Const.). A evolução do país mudou
progressivamente a natureza do Bicameralismo, mas o
fator determinante foi a mudança do critério de
indicação dos membros do Senado: não foram mais
escolhidos pelo parlamento estadual, mas (de acordo
com a emenda XVII) eleitos pelo povo. O Senado
assim escolhido poderá ainda hoje ser considerado
uma "Câmara dos Estados"? É para se duvidar. O
Bicameralismo estadunidense, caracterizado por uma
substancial igualdade das câmaras no exercício da
função legislativa (a iniciativa das leis relativas a
finanças concerne apenas aos representantes, mas aos
senadores podem reformular o projeto a título de
emenda) e pela manifestação de poderes diversos mas
coordenados por ocasião do impeachment, se revela
mais como técnica de organização que como garantia
da forma federal do Estado; prova disso é que não só é
bicameral o Congresso do Estado federal, mas
também, imitando-lhe o "modelo", possuem duas
câmaras os Parlamentos (Legislatures) da grande
maioria dos Estados-membros.
Como se sabe, a Lei Fundamental da Alemanha
ocidental atribui a qualificação de federal à republica
alemã; este caráter resulta com extrema clareza, tanto
da subdivisão do Parlamento em dois ramos, como da
atuação do Bicameralismo. É oportuno antes de tudo
observar que uma das câmaras, o Bundestag, é eleita
pelo povo da seguinte maneira: tem direito a voto
quem já completou dezoito anos de idade; a lei prevê
uma dupla votação: metade dos membros da câmara é
eleita em colégios uninominais, ao passo que a outra
metade é votada em colégios plurinominais, com base
em listas partidárias. A outra câmara, ao contrário, o
Bundesrat, é composta por membros dos Governos
dos Lander, que os nomeiam e os revocam (art. 51, I,
da Gundgesetz); todo o Land pode ter de três a cinco
votos, conforme os habitantes, e pode enviar ao
Bundesrat tantos membros quantos são os seus votos,
mas estes só podem ser expressos unitariamente (art.
51, II, III). A Câmara representativa do povo é a
única, como já se disse, a exercer o controle político
sobre o executivo; em geral, quando age em conjunto
com a outra Câmara, a sua vontade prevalece sobre a
do Bundesrat (o que acontece, de costume, na criação
das leis). Contudo, a "Câmara dos Estados" é a que se
impõe nos casos excepcionais: quando, por exemplo,
for declarado "estado de emergência legislativa", o
projeto de lei rejeitado pelo Bundestag poderá entrar
em vigor com a mera aprovação do Bundesrat.
A Constituição soviética de 1977 adota o princípio
bicameral, estabelecendo que ambas as Câmaras do
Soviete Supremo da URSS — o Soviete da União e o
Soviete da Nacionalidade — terão o mesmo número
de deputados (750). A primeira câmara está destinada
a representar proporcionalmente os habitantes de
todas as repúblicas federadas, a outra está constituída
de modo que cada república tenha igual número de
deputados (32), mas se conceda também uma certa
representativi-dade a entidades territoriais autônomas,
compreendidas nas diversas repúblicas federadas (a
maior parte destas entidades menores pertence à
república russa que conta, por isso, com maior número
de deputados). Como órgãos separados, as duas
câmaras possuem iguais poderes; mas o Soviete se
reúne em várias ocasiões em sessão comum ou, como
já foi indicado, confia as funções das assembléias ao
próprio Presidium.
Na Itália, o Bicameralismo, experimentado em sua
forma atenuada com o Estatuto Albertino, foi adotado
pela vigente constituição republicana. A Câmara dos
Deputados e o Senado se encontram em posição de
absoluta igualdade jurídica, têm competências
idênticas e, depois da entrada em' vigor da lei
constitucional de 9 de fevereiro de 1963, n.° 2, igual
duração (cinco anos).
As diferenças dizem respeito à composição: a
Câmara dos Deputados é toda ela eletiva; o Senado,
além dos membros eleitos, está composto também por
cinco senadores vitalícios nomeados pelo chefe do
Estado e pelos ex-presidentes da república, que são
membros de direito. Os eleitores da Câmara são todos
os cidadãos maiores de idade, ou seja, de acordo com
a Lei de 8 de março de 1975, n." 39, quem tiver
ultrapassado os dezoito anos; elegíveis apenas os que
tiverem alcançado os vinte e cinco anos. Para o
eleitorado ativo e passivo do Senado, é exigida idade
mais avançada: vinte e cinco e quarenta anos
respectivamente. O número dos deputados é o dobro
do dos senadores eleitos. Os sistemas eleitorais
adotados são: o das listas concorrentes, no que se
refere à Câmara; uma combinação entre o sistema
uninominal e o de lista, de base regional, no que
respeita ao Senado.
BLANQUISMO
Quanto aos conflitos, eles só podem ser eliminados
com a intervenção do poder presidencial de dissolução
de ambas ou de uma das câmaras.
A divisão do Parlamento italiano em dois ramos
paritários não trouxe ao desenvolvimento democrático
do país aquelas vantagens que a Constituinte esperava.
Partindo de tal consideração, a doutrina mais recente,
levada em conta a experiência concreta, tem
apresentado uma série de propostas que modificam
nosso sistema bicame-ral. Parece evidente que a
diversidade de composição não basta para evitar que
as duas câmaras operem de modo não diferenciado. O
número de senadores nomeados ou de direito é
demasiado exíguo para ter realce; as. diferenças de
idade para o eleitorado ativo e passivo.e os diferentes
sistemas adotados para as duas assembléias não
influenciaram substancialmente até agora a
preferência dos eleitores nem a orientação dos eleitos,
de modo que as duas câmaras constituem, na prática,
uma a duplicata da outra. O Bica-meralismo,
entendido neste sentido, faz da assembléia que atua
em segundo lugar uma câmara de reconsideração e de
reflexão, mas torna pesados os trabalhos e multiplica
os prazos técnicos, sem geralmente melhorar o
conteúdo das decisões. A curva das propostas
modificativas atualmente em discussão é um tanto
ampla. Alguns (G. U. Res-cigno, Labriola)
consideram o Bicameralismo como um fator
regressivo para o desenvolvimento democrático: a seu
entender, a modificação do sistema deveria consistir,
se não na abolição do Bicameralismo, pelo menos em
sua atenuação e conversão em formas análogas à já
experimentada noutros países, por exemplo, no Reino
Unido; outros, sem chegar a teses tão extremas,
sustentam, contudo, a necessidade de diferenciar mais
as câmaras, tanto no que concerne à tutela dos
interesses, como no que se refere às suas funções
(Barile, Cervati, Spagna Musso). Em particular,
defendeu-se de novo a idéia, que a Assembléia
Constituinte não quis aprovar, de que o Senado devia
ser a "Câmara das Regiões" (Occhiocupo) e
representar de alguma maneira as "Câmaras dos
Estados" nos ordenamentos federais (é particularmente
sugestivo a tal respeito o exemplo da Alemanha
ocidental); foi depois apresentada a sugestão de
atribuir às duas câmaras funções distintas (a uma a
função legislativa, e à outra a da orientação e
controle). Mas houve quem objetasse que não adianta
"desemparelhar as funções" das câmaras (Manzella), o
que é preciso, em vez disso, é agilizar o procedimento,
fazendo uso mais atento das comissões bicamerais,
sem, aliás, ultrapassar o limite do voto separado de
cada uma
111
das assembléias, tanto no exercício da função
legislativa, quanto na outorga ou retirada da confiança
ao Ooverno.
BIBLIOGRAFIA. — P. AIMO, Bicameralismo e
regioni, Edizioni dl Comunità. Milano 1977; A.
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Giuffrè. Milano 1966; S.Tosi. Diritto parlamentare,
Giuffrè, Milano 1974.
[NINO OLIVETTI]
Blanquismo.
O Blanquismo representa, no contexto do
movimento operário e socialista, a corrente elaboradora da teoria de que a insurreição, violenta e
improvisa, de uma elite de militantes seria o único
meio possível para se chegar ã revolução
propriamente dita, privilegiando o momento da
organização de um grupo limitado e fechado de
dirigentes sobre o momento do desenvolvimento
112
BLANQUISMO
―em amplitude". Com relação ao Blanquismo é
possível, pois, falar em "ação revolucionária" de uma
minoria, que abriria espaços, após o episódio
jnSurrecional, à realização de um socialismo (ou je um
comunismo) na prática nunca suficientemente
definido, a não ser na caracterização genérica de um
sistema contrário ao burguês-capitalis-la. A corrente
tem sua origem no pensamento e, principalmente, na
atividade política de Louis-Auguste Blanqui e, após a
Comuna de Paris e a morte do agitador (1882), na
ação de seus seguidores franceses, reunidos no Partido
Socialista
Revolucionário
e
convergido
posteriormente no Partido Socialista Unificado. É
possível, porém, encontrar um outro fundamento do
Blanquismo no espírito revolucionário babuvista,
característico da primeira metade do século XIX na
França, em que convergem instâncias igualitárias e
clas-sistas, apoiadas na tradição revolucionária do
jacobinismo radical. Todos estes componentes deram
origem ao fenômeno revolucionário iniciado por
Blanqui, que, porém, vai além de sua figura,
apresentando características de maior generalização.
Especialmente depois de 1872, Marx e Engels
intervieram muitas vezes criticando acentuada-mente
o fenômeno e evidenciando os perigos nele implícitos
de dogmatismo e obstrução caprichosa em relação aos
movimentos populares e revolucionários efetivos
(principalmente Engels, no que escreveu em 1874
sobre Programa dos blanquistas prófugos da
Comuna).
Ao Blanquismo e às suas implicações, avaliadas,
em geral, em termos negativos, se referiram depois
muitas vezes Lenin e Luxemburg. O primeiro,
exatamente nos escritos em que colocava com maior
força a questão da necessidade da centralização do
proletariado no partido de classe e acentuava os
aspectos da organização com relação aos do
movimento numa perspectiva revolucionária, pôs o
máximo empenho em distinguir a análise e a visão de
classe em face do "jacobinismo blanquista" implícito
em muitos dos componentes, mesmo "oportunistas",
do movimento operário (foi assim em Um passo para
a frente e dois para trás, de 1904). Ao invés,
precisamente pela vantagem atribuída ao fator
organizacional e ao "ultracentralismo", Luxemburg
descobriu no projeto de Lenin um animus blanquista,
ou jacobino-blanquista, que não se apoiava mais na
ação direta de classe das massas operárias, mas tudo
fazia depender da elite intelectual, sec-tariamente
agrupada (em Problemas de organização da socialdemocracia russa, de 1904). Ela demonstrou ainda, de
maneira polêmica, que a concepção leninista era a de
um "centralismo impiedoso", cujo "princípio vital"
estava no
"claro destaque e separação da tropa organizada dos
revolucionários declarados c ativos do ambiente
circundante, mesmo que este fosse rcvolucionariamente ativo mas não organizado" e, além disso, na
"rígida disciplina, decisiva e determinante, das
instâncias centrais, em todas as manifestações vitais
das organizações locais do partido".
Na realidade, o pensamento de Lenin não foi
"blanquista" e ele refutou sempre o Blanquismo,
pondo a descoberto suas carências no plano do
esquema organizacional e a inanidade do projeto
insurrecional-revolucionário. Foi justamente ao
abordar este tema, especificamente o da insurreição,
nos dias imediatamente anteriores à Revolução de
Outubro (em O marxismo e a insurreição, setembro de
1917) que Lenin reconfirmou as bases teóricas da
distinção entre marxismo, revolução e Blanquismo.
Disse a propósito: "Para vencer, a insurreição há de
apoiar-se não numa conspiração, não num partido,
mas na classe progressista. Isso em primeiro lugar. A
insurreição tem de apoiar-se no ímpeto revolucionário
do povo. Isso em segundo lugar. A insurreição deve
aproveitar aquele ponto crítico da história da
revolução ascendente que é o momento em que atinge
o auge a atividade das fileiras mais avançadas do povo
e é mais forte a hesitação nas fileiras dos inimigos e
dos amigos débeis, equívocos e indecisos da
revolução. Isso em terceiro lugar. São estas as três
condições que, constituindo as premissas da
insurreição, distinguem o marxismo do Blanquismo".
Hoje por Blanquismo entende-se aquele tipo de
comportamento político que, mesmo permanecendo
no contexto do movimento operário e se situando
voluntariamente numa perspectiva clas-sista de luta
social, privilegia, com relação ao momento da
organização pública c partidária, o sectarismo, isto é a
organização de uma minoria prevalentemente
intelectual que, mediante um ato de vontade, induz as
massas à insurreição num primeiro momento e à
revolução em seguida. Esta minoria ultrarevolucionária precisa assumir necessariamente, para
poder sobreviver, conotações extremistas que acabam
por afastá-la cada vez mais dos objetivos, concretos e
realistas, da luta da classe operária e por aproximá-la a
um vo-luntarismo de tipo pequeno-burguês. Outra
característica do Blanquismo é a proposta da ditadura
revolucionária, bastante diferenciada da ditadura do
proletariado, uma vez que nela se misturam,
contraditoriamente, a ditadura de tipo robespier-riano,
como força centralizadora do poder, e a concepção
bakuniniana, segundo a qual a estrutura política
vigente deve ser destruída pela intervenção consciente
de um pequeno grupo de revolucionários, cônscios da
necessidade de realizar
BLOCOS, POLÍTICA DOS
os objetivos libertários prefixados. Estes objetivos,
entre si unidos, produziriam como resultado uma
ditadura popular, não "da classe" mas agindo a favor
da classe, ou mais genericamente a favor do povo
todo, que — pensa-se — não participou da luta
unicamente por falta de educação. Seria, pois, tarefa
dos revolucionários autênticos, por um lado, "instruir"
este povo e por outro "armá-lo", de maneira que se
torne partícipe da insurreição e, conseqüentemente,
esta não venha rapidamente reprimida, como
aconteceu historicamente no caso do célebre levante
de 1839, com a tentativa (logo fracassada) de golpe de
Estado, que acabou se tornando um ponto
determinante para definir a orientação assumida
posteriormente pelo Blanquismo.
BIBLIOGRAFIA — S. BFRNSTUN. A Blanqui and the
art of inssurection. Lawrence and Wishart. London
1971; G. M. BRAVO, Storia del socialismo. 17891848. Editon Riuniti. Roma 1976; M. RALFA. Lidée de
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Paris 1923; A. B. SPITZER. The Revolutionary
Theories of L. A. Blanqui, Columbia University Press,
New York 1957.
[GIAN MARIO BRAVO]
Blocos, Política dos.
I. SITUAÇÃO HISTÓRICA. — Na linguagem política
contemporânea, quando se fala em blocos, entende-se
a referência a uma específica definição estrutural das
relações políticas internacionais, pela qual Estados
diferentes, normalmente próximos geograficamente ou
afins culturalmente, associam-se de fato para enfrentar
um inimigo comum. A política dos Blocos tem, pois,
sua origem na própria idéia de aliança; porém,
enquanto a aliança é originada unicamente por um
acordo baseado nas regras do direito internacional e
supõe que as partes dela participem em nível de
igualdade pelo menos formal, o bloco não se apoia em
nenhum reconhecimento formal e é caracterizado por
uma estrutura hierárquica.
O termo blocos reporta a um particular período
histórico: a política dos Blocos nasce após a Segunda
Guerra Mundial como conseqüência da estrutura
específica
assumida
pelo
sistema
político
internacional. Ao término da guerra se impõem no
cenário político mundial dois Estados, de longe mais
poderosos do que os outros (Estados Unidos e União
Soviética), que passam, nas relações entre si, de uma
posição de colaboração contingente para uma posição
de oposição total, como campeões de dois sistemas
ideológicos opostos e
113
inconciliáveis. O ato do nascimento da política dos
Blocos pode ser identificado nas célebres palavras de
W. Churchill, no discurso de Fulton (5 de março de
1946), que inauguram o clima de "guerra fria": "desde
Stettin, no mar Báltico, até Trieste, no mar Adriático,
caiu sobre o continente europeu uma cortina de ferro".
A conclusão da guerra faz surgir uma situação em que
a Europa, centro tradicional da política mundial,
praticamente se encontra submetida a uma divisão em
que poderiam ser definidas duas esferas de influência,
sem considerar que foi justamente a necessidade de
defesa contra os temidos objetivos expansionistas dos
Estados da esfera adversária a determinar
definitivamente um movimento de agregação que deu
origem aos blocos. A dos blocos é uma estrutura de
fato. Ela se desenvolve com o objetivo de criar uma
rede de integração entre os diversos Estados aderentes,
uma política de alianças, coletivas ou bilaterais. É o
caso, no bloco ocidental, da organização que dá vida
ao plano Marshall e ao Pacto Atlântico (OTAN); e, no
bloco oriental, do Cominform bem como dos acordos
bilaterais de aliança entre a União Soviética e os
diversos Estados da Europa oriental. Em 1955, a
criação do Pacto de Varsóvia aproximará a estrutura
do bloco oriental à do bloco ocidental. Pela análise da
própria natureza dos pactos citados, é possível
perceber que as duas pilastras que mantêm de pé a
integração do interior dos blocos são: a colaboração
econômica e a proteção militar.
II. ESTRUTURA DOS BLOCOS. — Embora carente de
uma constituição formal, não seria correto afirmar que
o bloco de Estados não possui um seu princípio de
ordem, que o aproxima, sob certos aspectos, do
sistema nacional. A estrutura do bloco (que pode ser
chamado também de "subsis-tema", no caso de se
fazer referência ao contexto mais amplo do sistema
internacional geral) se fundamenta unicamente em
fatos e não no direito; porém, sua estabilidade e a
rigidez dos papéis dos vários membros acabam por
criar um conjunto de expectativas que não são, a não
ser muito raramente, frustradas. O bloco se sustenta
numa estrutura de relações, entre os membros,
praticamente hierárquicas, onde o líder se reveste de
uma função análoga à da autoridade nos sistemas
políticos próprios de cada membro, com relação aos
membros em posição de inferioridade. O que
possibilita assumir o papel de autoridade é a
superioridade (sob todos os aspectos) do líder em
relação aos outros; além disso, o líder, como um
soberano no Estado policial assume o cuidado e a
proteção dos interesses dos "súditos". A integração
econômica, a proteção militar, a homogeneidade
política, a comunicação cultural fazem com que,
114
BLOCOS, POLÍTICA DOS
para quem observa de fora, o conjunto dos Estados
com esta organização se configure como um bloco.
Porém, uma vez que esta estrutura parece ser
fundamentalmente
fruto
de
imposição
(ou
superposição) a uma realidade complexa de Estados
com tradições e culturas muitas vezes diferentes, é
possível que a ordem hierárquica venha a ser
perturbada por tentativas subversivas levadas adiante
por algum dos membros. A falta de uma codificação
formal daquilo que é permitido a cada Estado, por
outro lado, deixa-lhes a liberdade aparente para
manifestar posições autônomas. Justamente no
momento em que se dá a crise, provocada por ações
contrárias aos valores do bloco, mais claramente é
perceptível o caráter autoritário da estrutura. É o caso
de acontecimentos tais como o húngaro (1956) e o
tche-coslovaco (1968), de um lado, e a subida do
gaulismo na França, nos anos 60, do outro, que
mostram como, mesmo usando táticas diferentes, o
líder intervém para impor (e garantir) o respeito das
regras fundamentais do subsistema. A tática política
aplicada pelo líder em tais casos é basicamente a da
intimidação (v. DISSUASÃO).
A política da qual tais blocos são uma expressão
está intimamente ligada ao clima dos anos em que é
originada: a época da "guerra fria" é caracterizada por
enorme tensão entre os blocos (o que acaba
favorecendo integração crescente no interior de cada
bloco), dando a impressão de que ocorreria, a curto
prazo, uma terceira guerra mundial. Porém, com a
morte de Stalin e a deses-talinização, a guerra fria
perde intensidade, dando a impressão que a lógica dos
blocos contrapostos teria se tornado obsoleta. Neste
caso, a superação dos blocos deveria acontecer
mediante a formação de uma única comunidade
planetária, conforme os ideais manifestados por
organizações do tipo da ONU. Esta evolução tornar:seia possível, no clima da distensão, pelo interrelacionamento crescente das relações econômicas e
políticas entre os blocos e não mais apenas no interior
dos próprios blocos. Todavia, os inegáveis sinais de
superação, mesmo parcial, de política dos Blocos têm
como origem, além (ou em lugar) do surgimento de
exigências integracionistas mundiais, a mudança
ideológica ocorrida nas relações entre os blocos.
Parecia que a guerra entre os dois blocos,
incompatíveis, não tinha eclodido ao término do
conflito mundial unicamente porque os dois líderes
teriam concordado em realizar uma trégua, sem data
marcada para terminar, porém provisória. Um
autêntico compromisso constitucional sacramentava a
estrutura bipolar do sistema internacional; todavia,
esta estrutura se tornava precária pela consciência da
existência de uma vontade monopolizadora em ambas
as partes. Parecia, em
suma, que o choque final estava apenas sendo adiado,
graças à presença "moderadora" das armas
termonucleares. Ao contrário, no fim dos anos 50, a
União Soviética (e junto com ela os Estados de seu
bloco) rejeita a doutrina marxis-ta-leninista da
inevitabilidade da guerra, para aceitar a lógica do
condomínio internacional em parceria com os Estados
Unidos. Esta opção gerou a acusação de "socialimperialismo" dirigida à União Soviética por uma
parte do movimento comunista internacional.
Embora ao nível das relações entre os subsiste-mas
a política dos Blocos se manifeste realmente em
declínio, não é possível, todavia, afirmar que tenham
desaparecido as.conseqüências estruturais que
caracterizaram a formação dos blocos. Cada um, no
seu âmbito interno, não conheceu nem está
conhecendo inovações significativas, uma vez que a
estrutura hierárquica não foi minimamente atingida
pelas transformações ocorridas nas relações entre os
blocos, ainda mais considerando que o passar do
tempo contribuiu para aproximar, a um estágio de
institucionalização mais rígida, as relações existentes
entre os membros de cada bloco.
III. TEORIAS ACERCA DA POLÍTICA DOS BLOCOS. — O
estudo da política dos Blocos é englobado pelo
problema bem mais abrangente da forma do sistema
internacional, que representa um dos temas
fundamentais da ciência da política internacional, uma
vez que, de acordo com a concei-tuação que a este
tema se atribui, temos importantes conseqüências no
plano da análise empírica, bem como no plano
normativo. O objetivo de toda e qualquer estruturação
do sistema internacional só pode ser o da conservação
(ou alcance) da paz, que pode ser comparada, com
relação ao conceito de sistema, àquele particular
estado do sistema definido como equilíbrio: o
desaparecimento deste estado determinaria a crise e
conseqüentemente o conflito. O equilíbrio, por sua
vez, irá depender da maneira como é distribuído o
poder internacional: poderá, pois, estar em condições
de equilíbrio tanto uma situação de monopólio (o
império mundial ou sistema hierárquico) quanto uma
situação de pulverização dos centros de poder (a
anarquia internacional ou sistema de unit veto).
Porém, nenhum destes dois modelos limites obteve
uma verdadeira realização no plano histórico; será,
portanto, mais interessante o modelo que interpretará
sistemas caracterizados pelo surgimento de pelo
menos duas potências hegemônicas. M. A. Kaplan
chegou a codificar seis tipos específicos de
estruturação do sistema internacional. Além dos dois
já citados, eles são: os sistemas do balance of power, o
sistema bipolar
BOLCHEVISMO
estreito e indefinido c o sistema universal. Kaplan dá
uma ênfase toda especial ao balance of power, do qual
indicou também seis regras de funcionamento, como o
único, juntamente com o sistema bipolar indefinido,
que já teve realização histórica. Embora a tipologia de
Kaplan represente, até aqui, o mais sofisticado
resultado teórico, não é possível não salientar que
justamente seus tipos mais importantes nada mais são
além de variantes daquele princípio de equilíbrio
internacional, tão genérico que não pode servir para
caracterizar uma particular estruturação do sistema,
pelo qual o objetivo dos Estados não é o equilíbrio,
mas a conquista de maior poder. De acordo com H.
Morgenthau, a forma do sistema, após inspirar-se
longamente no balance of power, encontra-se num
estado de bipolaridade, onde a redução dos
protagonistas principais a apenas
dois é
fundamentalmente conseqüência do aparecimento das
armas termonucleares. S. Hoffmann, ao contrário,
descreve a estruturação dos sistemas internacionais
com base na distinção entre sistemas moderados
(caracterizados pelo balance of power e pela
multipolaridadc, que possibilitam, pela relativa
paralisação recíproca deles decorrente, prevenir e
limitar as guerras) e sistemas revolucionários
(caracterizados pela inflexibilidade das alianças,
portanto pela bipolaridade e por um alto grau de
instabilidade). Procurando interpretar a realidade do
atual sistema internacional com base nesta distinção,
Hoffmann conclui que, embora a estrutura seja
fundamentalmente a bipolar-re-volucionária-instável,
após mais de vinte anos de funcionamento, é inegável
que nela se infiltraram elementos de moderação,
principalmente graças à função paralisadora das armas
termonucleares. Ora, uma vez que, mediante a
superação pelo menos parcial da política dos Blocos, o
princípio de nacionalidade tenderia a voltar à tona
novamente, o atual sistema internacional se veria
destinado a tomar uma forma policêntrica, que se
distingue do balance of power pela permanência, com
aspectos inovadores, de uma estruturação multi-hierárquíca, na qual, mesmo permanecendo a figura do
Estado-guia, dar-se-ia uma descentralização regional,
que possibilitaria autonomia na ação dos diversos
subsistemas, não ideológicos, e sim regionais.
Todavia, mesmo esta estruturação, apesar da
reformulação conceituai, não supera a consagração da
estrutura hierárquica típica do bloco tradicional.
Enfim, cumpre lembrar a posição assumida por J. W.
Burton, segundo o qual, uma vez que os Estados-guia
seriam esmagados e paralisados pelo seu excessivo
poder (termonuclear), a única alternativa viável estaria
no sistema de não-alinhamento, que possibilitaria sair,
mediante
115
uma nova valorização da soberania nacional, dos
perigos da luta para o poder na era nuclear.
É evidente, pois, que embora o princípio
constitutivo dos blocos tenha sido submetido a
diversas revisões críticas e esteja sofrendo
modificações também no plano factual, pela
atenuação da tensão ideológica entre os dois blocos
tradicionais, não pode ser considerado como algo
superado, mesmo estando em declínio, sob pena de
não ser possível, pelo menos por enquanto, definir ou
vislumbrar os pressupostos de uma nova sistematização nas relações de poder entre os Estados.
BIBLIOGRAFIA. - H. BULL, The anarchical
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New York 1973.
[LUIGI BONANATE]
Bolchevismo.
O termo (do russo bolscinstvó, maioria) indica a
linha política e organizativa imposta por Lenin ao
Partido Operário Social-Democrático da Rússia
(P.O.S.D.R.) no congresso de 1903.
Somente nos últimos decênios do século XIX
apareceu na Rússia czarista — país de industrialização
tardia em relação à Europa ocidental — a força social
capaz de dar vida a um partido revolucionário de
orientação marxista, o proletariado de fábrica. É no
ano de 1898 que foi fundado no congresso de Minsk o
partido social-democrático, agrupando vários clubes e
núcleos operários que se formaram nos anos
anteriores. Antes da grande onda de industrialização
do final do século passado, a classe operária não
somente era exígua numericamente mas conservava
um forte ligame com a terra e os hábitos da vida rural.
Era a época em que a oposição do czaris-mo trazia
especialmente as marcas do movimento populista e se
visava, em geral, a negar que a Rússia tivesse que
percorrer as mesmas fases de desenvolvimento do
Ocidente e, portanto, também a mesma trajetória
política.
116
BOLCHEVISMO
As agitações operárias, que se intensificaram a
partir de 1890-92, forneceram a uma parte dos
intelectuais revolucionários o suporte necessário para
aplicar na Rússia a teoria e análise marxista. Isto, é
claro, dentro das limitações impostas por um regime
autocrático que não permitia nem as organizações
operárias — os sindicatos foram legalmente
reconhecidos somente em 1906 — e nem os partidos
políticos.
Unidos na confutação das demais correntes
revolucionárias — populismo, economicismo,
marxismo legal — a quem censuravam o fato de
subestimar a amplitude atingida pelo capitalismo
industrial na Rússia e, portanto, a consistência e o
papel político do proletariado de fábrica, os primeiros
núcleos de social-democratas procuravam diferenciarse, quando se tratava de definir seus programas de
ação. lá no semanário que eles, desde dezembro de
1900, publicavam na Alemanha ou na Suíça, o "Iskra",
surgiram as primeiras divergências entre os redatores
— Plechanov, Martov, Axelrod, Vera Zasulic, Lenin.
No segundo congresso que se realizou em Londres no
ano de 1903, o primeiro verdadeiro congresso depois
do constitutivo, se delineou uma profunda cisão.
Enquanto o programa político geral e as grandes
finalidades do partido — a revolução e a conquista do
poder por parte do proletariado — obtiveram o voto
quase unânime dos 57 delegados, as divergências
sobre um problema aparentemente secundário, a
organização do partido, resultaram inconciliáveis.
Duas posições se defrontaram: uma, apoiada por
Lenin, que queria reservar o título de membro do
partido exclusivamente a quem dava uma
"participação pessoal a uma de suas organizações"; a
outra, apoiada por Martov, que propunha uma fórmula
menos rígida, isto é, a "colaboração pessoal regular".
Uma divergência nominal que escondia, na realidade,
duas concepções muito diferentes sobre aquela que
devia ser a estrutura do partido revolucionário: uma
organização formada por militantes de profissão em
tempo integral e, portanto, limitada de número mas
compacta e disciplinada; ou um partido com ligames
mais elásticos e flexíveis, aberto também a
simpatizantes e colaboradores. No congresso, a
proposta de Martov passou com 28 votos contra 22 e
uma abstenção. Na votação sucessiva sobre as eleições
para o comitê de redação do "Iskra" e para o comitê
central, os leninistas obtiveram, por sua vez a maioria.
Foi nesta votação que surgiram os termos que, a partir
daquele momento, deviam definir as duas correntes da
social-democracia
russa,
bolcheviques
e
mencheviques, isto é, maioria e minoria.
As crônicas do congresso referem não somente
diferenças políticas e debates teóricos mas também
contrastes pessoais e choques verbais violentos. Estes
como aqueles eram destinados a condicionar as futuras
relações entre mencheviques e bolcheviques durante
todo o período que vai até o ano crucial de 1917,
quando os bolcheviques conquistaram sozinhos o
poder. Em 1903 Lenin não tinha certamente elaborado
a estratégia política que devia concretizar-se na
Revolução de Outubro. Todavia, a importância
prioritária por ele atribuída desde o início ao problema
organi-zativo — a formação de um partido
homogêneo, centralizado e altamente disciplinado —
se tornou, desde aquele momento, uma característica
específica do Bolchevismo; característica que se
tornou, como provam os fatos, essencial não somente
para sobreviver nas condições da clandestinidade, mas
também para equipar-se de instrumentos de ação,
intervenção e mobilização operária — o partido por
muito tempo foi formado especialmente por
intelectuais e pequenos-burgue-ses — e para permitir,
enfim, aquela profunda ligação entre a organização e o
movimento espontâneo das massas que se realizou
quando este explodiu quase inesperadamente, em
fevereiro de 1917, derrubando o czarismo. Ter-se-ia,
dessa forma, em grandes linhas, realizado o plano que
Lenin tinha traçado no início do século: um partido
depositário da consciência de classe, capaz de
proporcionar programas, estratégias, táticas e
instrufnentos organizativos a um proletariado
destinado sozinho a gastar suas energias em ações
reivindicativas ou em revoltas sem resultados
políticos.
Sob certo ponto de vista, o Bolchevismo pode ser
efetivamente considerado aquilo que foi definido na
historiografia oficial e, em grande parte, hagiográfica
da União Soviética: uma aplicação criativa do
marxismo às condições específicas de um país
atrasado. A saber, um país em que ao proletariado
cabia o papel que alhures tinha sido desempenhado
pela burguesia; e em que precisava omitir algumas
fases intermediárias que no Ocidente tinham sido
marcadas pela revolução liberal. Por outro lado. o
Bolchevismo aparece como a corrente socialdemocrática que mais diretamente se relaciona com a
tradição russa do populismo utopista e do jacobinismo
conspirador, colocando-se num campo estranho à
teoria política do marxismo.
Após o congresso de 1903, as duas partes, bolchevique e menchevique, coexistiram num quadro de
polêmicas mais ou menos ásperas, alternada? com
tentativas de aproximação. Contribuiu, em parte, para
atenuar as divergências, a revolução de 1905, que viu
surgir no cenário político russo
BOLCHEVISMO
uma nova organização, o soviete. Expressão direta das
lutas operárias, o soviete recolocava em discussão
quer as teses bolchevistas sobre a incapacidade do
proletariado de organizar-se autonoma-mente sem a
ajuda de uma força externa, quer as teses
menchevistas sobre a impossibilidade de acelerar a
luta política por causa do atraso da Rússia. Por
conseqüência, os dois grupos corrigiram em parte suas
posições iniciais, a tal ponto que foi possível a
convocação, em 1906, de um congresso de
reunificação. Mas após o fracasso da revolução e o
refluxo do movimento, às velhas divergências se
acrescentaram novos motivos de polêmica,
decorrentes da diversa interpretação daqueles eventos
e conexos com a procura de uma linha de ação no
momento em que, através das eleições para a Duma e
a legalização dos sindicatos, se abriam alguns espaços
legais para a atividade política.
Diversamente dos mencheviques, que queriam
orientar-se sobre os modelos da social-democracia
européia, os bolcheviques concentraram seus esforços
principais na organização clandestina, apesar de
muitas dificuldades causadas pela repressão, pela
dispersão do movimento e pelas ásperas polêmicas e
lutas internas que não poupavam nem a própria parte.
Não obstante as teorizações sobre a necessária
homogeneidade do partido revolucionário, o
Bolchevismo não era um corpo monolítico mas teve
uma vida articulada em diversas correntes, grupos e
publicações, pelo menos até quando, em 1921, foram
proibidas as divisões partidárias ou frações. A partir
de 1910 se delineou uma retomada das agitações
operárias e estudantis e os bolcheviques decidiram,
então, efetuar uma mudança político-organizativa. Na
conferência que foi convocada em Praga em janeiro
de 1912 transformaram o grupo em partido,
sancionando, dessa forma, a velha e já consolidada
cisão da social-democracia russa.
A amplitude, que teria assumido, depois de poucos
anos, o movimento revolucionário de massa, tem
levado freqüentemente a superestimar a força e a
capacidade da influência que tinham naquele período
as formações social-democráticas e os bolcheviques
em particular. Tratava-se, na realidade, de poucos
milhares de militantes, guiados por grupos dirigentes
que viviam, em grande parte, na emigração, longe do
palco dos acontecimentos e sem a suficiente
possibilidade de testar as teorias na realidade. As
discussões ideológicas e metodológicas, os confrontos
entre as linhas estratégicas e táticas tinham
freqüentemente poucas ligações com o cenário social
e político russo, onde chegavam atenuadas também
pelas dificuldades de comunicação. F. indicativo, por
exemplo, que também após a separação definitiva
117
entre
bolcheviques
e
mencheviques,
eles
continuassem não raramente a atuar juntos,
especialmente nas fases altas do movimento, tanto que
muitas vezes reapareceu a hipótese de uma
reunificação. Mas além da fraca consistência
numérica, estes grupos de dirigentes, quadros de
partido e militantes tinham a consciência da
profundidade das contradições e dos conflitos latentes
em seu país e, de algum modo, tinham o
pressentimento
dos
eventos
que
estavam
amadurecendo. Daqui, a obstinação com que eles, em
particular os bolcheviques, perseguiam seu plano
revolucionário,
atualizavam
e
aperfeiçoavam
constantemente a sua análise, as teorias e linhas de
ação, polemizavam ferozmente uns contra os outros.
Somente após a fundação do Estado soviético muitas
daquelas análises e teorizações se teriam demonstrado
aproximativas e pouco adequadas à realidade. O
atraso da Rússia, negado ou subestimado na fase da
ação revolucionária, teria com freqüência levantado
obstáculos insuperáveis perante a construção do novo
Estado.
Nos anos que imediatamente precederam a
explosão da guerra mundial, consumou-se na Rússia a
tímida e frágil experiência constitucional, iniciada em
outubro de 1905: ela não conseguira derrubar a
aristocracia czarista e chegar à criação de instituições
representativas. Desapareceram, dessa forma, as
hipóteses, alimentadas também pelos bolcheviques,
segundo os quais o processo revolucionário deveria
basear-se, por um certo período histórico, num quadro
democrático-bur-guês, embora sob o impulso das lutas
operárias ou sob a direção do proletariado e dos
camponeses pobres, segundo a fórmula de Lenin. De
fato estava em curso um processo de progressiva
radicalização das agitações sociais, especialmente nos
centros operários. Foram especialmente os
bolcheviques que receberam com quase total
desconfiança as reformas czaristas, aqueles que
conseguiram captar e exprimir tal tendência. A guerra
foi um ulterior fator de aceleração dos eventos e
especialmente pôs a nu a fraqueza, a incapacidade e a
total ineficiência do regime: um vácuo de poder onde
se alastrou o movimento revolucionário.
As forças políticas mostravam-se bem longe de
estar prontas para enfrentar o improviso precipitar dos
eventos. E foram mais uma vez os sovie-tes a dominar
o cenário político, instaurando aquele "duplo poder"
que caracterizou o período entre fevereiro e outubro.
De um lado, uma série de Governos provisórios que
agrupavam, com fórmulas diversas, liberais,
socialistas revolucionárias e mencheviques e que
tentavam dirigir um país dominado pelas insurreições
operárias, pelas revoltas camponesas e pelos motins
militares; do
118
BONAPARTISMO
outro lado, uma miríade de conselhos operários,
soldados e camponeses chefiados pelo Soviete de
Petrogrado. Como as outras forças políticas, os
bolcheviques estavam equipados para dirigir e
canalizar a revolta das massas. Eles, porém,
especialmente após a volta de Lenin em abril, se
alinharam inteiramente ao lado do movimento
popular, interpretando suas aspirações mais radicais:
controle operário, fim da guerra, distribuição das
terras. E especialmente se prepararam militarmen-te
criando as milícias operárias e organizando os
soldados. A sua estratégia excluía já decididamente
uma solução democrático-parlamentar e colocava na
pauta do dia a revolução proletária socialista. Tudo
estava pronto para o assalto ao Palácio, no inverno.
Uma solução tipicamente militar da grande crise de
1917, que ficou na história do movimento operário
como modelo por excelência de revolução socialista:
revolução que, na Rússia da época, se conseguiu
realizar com sucesso, numa noite, devido ao estado de
dissolução em que tinham chegado os aparelhos
políticos e militares do regime, à fraqueza das forças
sociais e políticas que propunham alternativas
diversas e, entre outras, à alta concentração do poder
em Petrogrado e em Moscou.
BIBLIOGRAFIA. — N. BERDIAEV, Les saurces
et le sens du communisme russe. Callimard, Paris
1951; P. BROué, Storia del partito comunista
dell’URSS (1963), Sugar, Milano 1966; E. H. CARR,
Larivoluzionebolscevica. 1917-1923 (1950), Einaudi,
Torino 1964; Id., 1917, Illusione e reallà della
rivoluzione russa (1969), Einaudi, Torino 1970; V. 1.
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STRADA Einaudi, Torino 1971; M. MALIA,
Comprendre la révolu-üon russe, Seuil, Paris 1980; J.
MARTOV, Bolscevismo mondiale (1919), Einaudi,
Torino 1980; J. MARTOV — F. DAN, Storia della
social-democrazia russa (1921), Feltrinelli, Milano
1973; R. MF.DVEDF.V, La rivoluzione dVllobre era
ineluitabile ? E. Riuniti, Roma 1976; M. RF.IMAN, La
rivoluzione russa dal 23 Febbraio al 25 ottobre
(1967), Laterza, Bari 1969; A. ROSEMBERG, Storia del
bolscevismo (1932), Leonardo, Roma 1945.
[LISA FOA]
Bonapartismo.
Esta expressão tem na linguagem histórico-política
um significado diverso, se se refere à política interna
ou à externa. Justamente por isso, nenhum dos dois
significados deve ser entendido como excludente em
relação ao outro.
Pelo que se refere ao primeiro significado, afim ao
de CESARISMO (v.), temos de remontar ao escrito de
Marx O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (que
analisa o golpe de Estado de Luís Napoleão, de 2 de
dezembro de 1851) e a alguns trechos dos escritos de
Engels (particularmente, A origem da família, da
propriedade privada e do Estado). Para os fundadores
do materialismo histórico, o Bonapartismo é a forma
de Governo em que é desautorizado o poder
legislativo, ou seja, o Parlamento, que no Estado
democrático representativo, criado pela burguesia,
constitui normalmente o poder primário, e em que se
efetua a subordinação de todo o poder ao executivo,
dirigido por um grande personagem carismático, que
se apresenta como representante direto da nação,
como garante da ordem pública e como árbitro
imparcial diante dos interesses contrastantes das
classes. Na realidade, a autonomia do poder bonapartista com relação à classe burguesa dominante é,
para Marx e Engels, pura aparência, se se atender ao
conteúdo concreto da política por ele levada a efeito,
uma política que coincide com os interesses
econômicos fundamentais da classe dominante. Esta
autonomia é, porém, real a nível da superestrutura
política, onde foi efetivamente desautorizado o órgão,
Parlamento, através do qual se exprime o poder
político da classe dominante. Esta forma de Governo
tem, por outro lado, as raízes numa situação crítica da
sociedade civil, cujas características fundamentais são
duas. Antes de mais nada, o conflito de classe com o
proletariado tornou-se de tal modo agudo que a classe
dominante, para garantir a sobrevivência da ordem
burguesa, se vê obrigada a ceder seu poder político a
um ditador que, com seu "carisma" e com os
instrumentos de um despotismo não mais tradicional,
isto é, não fundado na sucessão legítima, seja capaz de
reconduzir à disciplina a classe dominada. Em
segundo lugar, a ditadura bonapartista pode sustentarse, desde que conte com o apoio direto de uma classe
que não coincide nem com a burguesia dominante,
nem com o proletariado, e que, no caso específico de
Napoleão III, foi a classe dos pequenos proprietários
rurais, cujos interesses não eram, porém, antagônicos
com relação aos da classe dominante. Desta definição
de Bonapartismo muitos autores, que criticam mais ou
menos fortemente a tese marxista do Estado como
instrumento da classe dominante, tomaram e
desenvolveram sobretudo o conceito de que a ditadura
bonapartista (ou cesarista) constitui o desaguamento
inevitável de situações de anarquia e desordem
devidas a um exasperado conflito entre as classes, as
castas ou os grupos corporativos em que se articula a
sociedade civil. Para os marxistas ortodoxos, a
definição de Bo-
BURGUESIA
napartismo apresentada por Marx e Engels tornou-se,
em vez disso, entre os anos 20 e 30 do nosso século, o
principal fundamento teórico da interpretação
marxista do fascismo.
Além de haver sido relacionada com uma certa
forma de Governo, a expressão Bonapartismo é usada
também (hoje de forma predominante) para designar
uma política externa expansionista, que, para além dos
objetivos específicos do ex-pansionismo, visa
conscientemente o objetivo da consolidação de um
certo regime (e, conseqüentemente, dos interesses dos
grupos nele dominantes), contra as contestações
radicais de que é objeto dentro do respectivo Estado.
Ou seja, esta política visa tanto a robustecer os grupos
dominantes com o prestígio oriundo de sucessos no
plano internacional, como a enfraquecer os
adversários internos, fazendo com que as suas
reivindicações sejam interpretadas como fatores de
debi-litamento da capacidade defensiva e ofensiva do
Estado no plano internacional (v. RELAÇÕES
INTERNACIONAIS). Assim entendida, a expressão
Bonapartismo tem sido usada em especial por grandes
historiadores alemães contemporâneos, como F.
Meinecke, L. Dehio, F. Fischer, para explicar a
política externa da Alemanha guilhermina e nazista; se
tornou de uso geral para designar todo o fenômeno de
política externa expansionista, compreendida como
válvula de vazamento para fora das tensões internas de
um Estado. Entre o Bonapartismo assim entendido e o
Bonapartismo da primeira acepção existe um nexo já
emergente em Marx e Engels. O despotismo que
caracteriza o poder bonapartista não só torna mais
fácil uma política de tipo expansionista, por não ser
contido pelos mecanismos internos de controle liberal
e democrático, como é" também levado, por natureza,
a uma política desse gênero, porque um sistema
despótico produz inevitavelmente fortes tensões
internas, por via das quais se tende a buscar uma
válvula de escape no exterior, numa política de
prestígio e de aventuras militares.
[SÉRGIO PISTONE]
Burguesia.
I. DEFINIÇÃO. — O termo Burguesia não tem
sentido unívoco, podendo-se dar do conceito pelo
menos duas definições (se não mais) alternativas.
Num primeiro sentido, que perdeu muito de sua
validade quando referido à atual sociedade, entende-se
por Burguesia a camada social intermediária, entre a
aristocracia e a nobreza, detentoras hereditárias do
poder e da riqueza econômica, e
119
o proletariado, composto de assalariados ou mais
genericamente de trabalhadores manuais (as
gramscianas "classes subalternas"). Num sentido mais
fecundo e mais atual, à luz dos acontecimentos
históricos contemporâneos, da Revolução Industrial,
da revolução política de 1789 e da revolução social
ainda em curso, pode-se dar uma segunda definição
que mais corresponde à atual realidade. A Burguesia,
pois, seria a classe que detém, no conjunto, os meios
de produção e que, portanto, é portadora do poder
econômico e político. Seu oponente seria o
proletariado que, desprovido destes meios, possui
unicamente sua força de trabalho.
Uma tal definição dá origem a inúmeras distinções.
Com efeito, não apenas a classe pode ser subdividida
em várias subclasses, formando verdadeiros grupos
autônomos (grande Burguesia, média Burguesia,
Burguesia intelectual, pequena Burguesia) que vivem
e atuam em condições diferentes, mas também é
constatável como no conceito se entrelaçam
características
diferenciadas,
não
somente
econômicas, e sim sociais, psicológicas, religiosas.
Conseqüentemente os limites que definem o termo
resultam flexíveis e não rigidamente determinados.
Porém, mesmo sendo difícil individuar este
significado entre limites restritos, é inegável que, na
sociedade capitalista pertencem sociologicamente à
Burguesia, como algo que lhe é peculiar, o predomínio
econômico, ou intelec-tual-profissional, exercido
diretamente, mediante a atividade pessoal de cada
indivíduo, e para atender exclusivamente a interesses
egoístas, inseridos todavia num contexto e numa
dinâmica bem mais amplos. O conceito de Burguesia
é, pois, omnicompreensivo e totalizante, englobando
em si, ao mesmo tempo, uma categoria econômica,
imediatamente caracterizada, e um complexo de
atributos, positivos e negativos, que contribuem para
esclarecer uma ou mais partes desta totalidade. É
possível, portanto, falar em espírito burguês,
mentalidade burguesa, arte burguesa e assim por
diante, até se chegar ao "modo de vida" burguês, às
tradições burguesas, à democracia burguesa e
finalmente à "história" burguesa ou da Burguesia.
A principal causa da afirmação da Burguesia tem
sido individuada na simbiose entre classe social e
categoria espiritual. É evidente, porém, que esta
afirmação tem origens bem mais complexas e
articuladas, possíveis unicamente na dinâmica do
desenvolvimento do capitalismo na Idade Moderna.
Todavia, é inegável que, para descobrir sua posição
econômica no mundo atual, não é possível prescindir
de todas as implicações psicológicas, religiosas e
culturais, não apenas objetivas e sim também
subjetivas, que acompanharam
120
BURGUESIA
esta evolução. É prova do que foi dito o interesse
demonstrado pela definição do conceito por
estudiosos como Sombart e Weber na Alemanha,
Cro-ce e Chabod na Itália. Embora este interesse
tome formas diferentes, todos eles, ou criticamente ou
mediante aceitação parcial, se referem à teoriza-ção
marxista.
II. A BURGUESIA COMO "CATEGORIA
ESPIRITUAL". — Originariamente o termo
Burguesia, cuja raiz se encontra no vocábulo latino
medieval burgensis, caracteriza os habitantes do
burgo, da cidade. Temos, assim, derivações nas
diferentes línguas: Bürger na Alemanha e
posteriormente, bourgeois na França, que se tornará
apelido de uso comum após a Revolução Francesa. Na
passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o
habitante da cidade adquire uma sua configuração
típica de classe: afirma-se como artesão, como
comerciante, como pequeno e médio proprietário rural
ou imobiliário, como representante da lei e, enfim,
como "capitalista". É mediante o burguês e a classe a
que ele pertence, a Burguesia, que se dá a acumulação
inicial de capital que, nos países mais avançados da
Europa ocidental, possibilitará, no decorrer do século
XVIII, a decolagem da Revolução Industrial.
O processo pelo qual o mundo burguês se
contrapõe com violenta determinação às antigas
estruturas de origem feudal predominantes na Europa,
de acordo com um regime que após a Revolução será
logo definido como Ancien, é bastante profundo e se
fundamenta na economia. Existem, todavia, inúmeras
tentativas para caracterizar a protagonista deste
processo, a Burguesia, como categoria espiritual. Os
moventes de sua ação não seriam de ordem
econômica, mais tarde amplamente esclarecidos a
nível teórico nas doutrinas liberais, e sim fruto de um
determinado tipo de mentalidade religiosa, de fé em
alguns "valores" típicos, tais como a parcimônia, o
espírito de grupo mesmo na defesa de um sólido
individualismo, o rígido puritanismo e o estrito
cumprimento de normas éticas e comerciais, não tanto
por estarem escritas e sim por terem entrado nas
convenções.
No período em que o capitalismo burguês estava na
fase inicial de sua formação e afirmação,
caracterizado pela nova organização racional do
trabalho, este é exaltado como o fundamento da
existência social e da vida religiosa, por ser o meio de
produção da riqueza material (isto é o "sinal" do
sucesso humano) e da riqueza moral de cada cidadão
(isto é a pacificação interior). De acordo com as
proposições de Weber, foi principalmente a "ética
protestante" que proporcionou os elementos e as
condições para o salto
à frente, isto é, para o triunfo de uma nova classe que
iria entrar no lugar daquelas que até então tinham
dominado. Os pressupostos desta ética são
encontrados pelo autor alemão (cf. A ética protestante
e o espírito do capitalismo) nas afirmações emitidas
por Benjamin Franklin desde a primeira metade do
século XVIII, mais especificamente: "lembra que o
tempo é dinheiro", "lembra que o crédito é dinheiro",
"lembra que o dinheiro é fecundo e produtivo pela sua
própria natureza" e, enfim, "lembra que quem paga
com pontualidade é dono da bolsa de todos".
Reavaliando, pois, todas as antigas normas católicas
de comportamento econômico-social, ou mais
genericamente reavaliando normas de comportamento
cristão, modificando radicalmente o conceito de
usura, a nova ética obriga os homens a "ganhar
dinheiro". É o mesmo Franklin que percebe no
acúmulo de dinheiro o sinal de benevolência divina
quando cita um versículo da Bíblia: "se tu vês um
homem hábil e bem sucedido na sua profissão, é sinal
que ele pode se apresentar diante do Rei". No rastro
desta concepção, segundo Weber, desenvolveu-se a
riqueza, cresceram as cidades, espalharam-se os
comércios, nasceu uma nova indústria artesanal: os
capitais, que no passado ou nos países de religião
católica permaneciam imobilizados na agricultura,
entram em circulação e crescem cada vez mais,
"subindo" da terra até o céu para glória da divindade e
para o bem-estar do homem abençoado por Deus.
A hipótese levantada e debatida por Sombart em
seus estudos (cf. O burguês e o capitalismo moderno)
é análoga à de Weber, porém com menor ênfase para
o elemento religioso. O autor evidencia como o
espírito do capitalismo se espalhou graças à
racionalidade da Burguesia e à sua vontade de
acumular riquezas cada vez maiores. A primeira
industrialização nasce de um ato de vontade, emitido
com o objetivo de alcançar lucros cada vez maiores,
acompanhado pela sensibilidade inventiva própria de
todos os precursores. Os empresários burgueses,
segundo Sombart, vêm todos "de baixo" e ascendem à
condição de "empresários capitalistas" justamente
graças a "seu espírito burguês", constituindo-se no
resultado de uma seleção ocorrida no contexto do
artesanato urbano. A característica teórica desta
"marca burguesa" é dada pelo "método", pela
"racionalidade" e finalmente pela "objetividade". O
burguês, aspirando a se tornar um empresário
capitalista, apresenta principalmente duas virtudes
fundamentais: 1) a fidelidade aos contratos; 2) a
parcimônia acompanhada pelo bom senso.
Croce refutou amplamente aquelas que ele
considerava definições espirituais da Burguesia, não
aceitando que Burguesia fosse uma concepção da
BURGUESIA
vida, uma maneira de ser religiosa ou filosófica, uma
"personalidade espiritual completa" e, correlacionada
com esta, uma "época histórica na qual esta formação
espiritual tem o domínio e o predomínio". É preciso
pois, segundo Croce, assim como segundo os mais
modernos analistas, voltar a avaliar a Burguesia como
categoria social, "em sentido econômico", a fim de
poder individuar na sua verdadeira realidade as raízes
sociais de classe do fenômeno, e a fim de poder
analisar suas condições atuais.
III. BURGUESIA E ECONOMIA. — Apesar de todas as
tentativas de elaboração, muitas até fascinantes pelas
conclusões alcançadas, é difícil não perceber que, pelo
menos no que diz respeito à Idade Contemporânea,
após a Revolução Francesa, o conceito de Burguesia
precisa ser compreendido como categoria social, com
suas raízes unicamente no mundo da economia. A não
ser assim, corre-se o risco de desvirtuar sua real
função revolucionária com relação ao contexto em que
o fenômeno ocorreu. Já Croce, a respeito, pôde
demonstrar que, se era legítimo na Idade Média o
conceito "jurídico" de burguês como cidadão do
burgo, ou membro de um "estado" da estruturação
política, também na Idade Contemporânea é legítimo
o conceito econômico de burguês, na medida em que
este conceito, nas palavras do filósofo, "designa quem
possui os meios de produção, ou seja, o capital, em
contraposição ao proletário ou assalariado". Eis, pois,
a manifestação, nos seus limites estruturais e
institucionais, da classe revolucionária que,
afirmando-se lentamente no decorrer de séculos,
obtém sua confirmação política em 1789, quando
conquista justamente aqueles direitos de ordem
política, dela habilmente subtraídos pela permanência
das superestruturas feudais numa sociedade que já
tinha eliminado o feudalismo na sua essência.
Mediante os acontecimentos revolucionários, a
Burguesia se demonstra capaz para assumir a
responsabilidade do poder político, dele retirando a
aristocracia antiquada e declarando da maneira mais
clara possível ser sua intenção a vontade de geri-lo.
O predomínio da Burguesia, no século XIX, fica no
campo econômico, é verdade; porém, este fato, quer
seja considerado "justo ou injusto" (para usar a
terminologia proposta no Dictionnaire politique por
Paguerre desde 1848), é evidenciado e "consagrado"
justamente nas instituições políticas. Estas se
caracterizam, mesmo mediante formas que evoluem e
se transformam com o tempo, pelo regime
parlamentar, pelo sufrágio que, apesar dos vários
empecilhos que foram colocados, tende a se tornar
universal,
e
finalmente
pela
conexão
e
interdependência contínua entre
121
interesses materiais e poder político. Em outras
palavras, se o regime parlamentar é caracterizado pelo
domínio da Burguesia, é preciso também afirmar que
sua relevância política existe até o momento em que a
Burguesia, Como classe, permanece como
componente social de primeira grandeza, cuja força se
fundamenta no poder econômico. Passando do campo
econômico para o político, a afirmação da Burguesia
se amplia e atinge todos os outros campos da vida
social. Por esta razão, como classe, a Burguesia busca
resumir em si as necessidades e as tendências da
sociedade inteira, identificar-se com ela na sua
totalidade, apresentar-se como algo de "absoluto" que,
por si mesmo atingida a perfeição interna, permanece
do mesmo jeito, sem modificações, no tempo e no
espaço. Para comprovar a validade deste absoluto não
é necessário procurar as origens espirituais de sua
afirmação. É suficiente analisar o comportamento da
Burguesia, sua força e sua hegemonia, isto é, sua
capacidade de generalização econômica e política no
presente, seu predomínio que, pela primeira vez na
história, graças a sua entrada em cena, não pertence a
indivíduos, e sim a uma classe, na medida em que
corresponde às necessidades de uma época histórica.
IV. A INTERPRETAÇÃO MARXISTA. — Em
posição contrária a esta análise, sem dúvida sedutora,
embora sirva para justificar um poder exercido
durante quase dois séculos e que pretende se
prolongar indefinidamente, encontramos a análise
marxista, sob determinados aspectos análoga, que
porém vai bem além na percepção da importância
revolucionária da própria Burguesia, bem como na
avaliação das possibilidades objetivas de sua
superação.
Foi examinando a evolução histórica da Burguesia
que Marx e Engels (e em geral toda a interpretação
que neles se inspira) evidenciaram sua afirmação de
tipo revolucionário e destruidor de todo o passado. O
elemento base da avaliação marxista é a luta de
classe, ou seja a análise do processo histórico levado
adiante à luz da evolução do processo produtivo. A
Burguesia recebe assim sua maior exaltação sendo
considerada "o produto de um longo processo de
desenvolvimento, de uma cadeia de mudanças
radicais nos mecanismos da produção e do comércio".
Condições ambientais favoráveis, uma notável
capacidade
empreéarial
acompanhada
por
conhecimentos técnicos e profissionais, uma boa
disponibilidade de capitais acumulados anteriormente,
a aceitação da livre concorrência como fator
determinante da produção e portanto da afirmação do
homem, tornaram a Burguesia a classe dominante da
122
BURGUESIA
nossa época. Porém, foi possível realizar este fato,
não apenas mediante a transformação e o processo
decisório no mundo da economia, mas também
derrubando toda a estrutura ética e cultural, própria de
longos períodos históricos. Marx e Engels
escreveram: "A Burguesia despiu de sua auréola todas
aquelas atividades que até então eram consideradas
dignas de veneração e respeito. Transformou o
médico, o jurista, o padre, o poeta, o cientista em seus
operários assalariados".
A Burguesia se afirmou economicamente tornandose classe empresarial e industrial. Nasceram indústrias
possantes nos mais diversos setores da produção, e a
Burguesia conseguiu caracterizar o mundo
contemporâno mediante sua atividade contínua.
Tornou-se a classe capitalista por excelência, que
administra as riquezas da sociedade evoluída
unicamente a nível de finanças ou de
empreendimentos. Mediante este fato, a Burguesia
realizou um enorme salto revolucionário. Este
processo, porém, não pode acabar nunca. Para
sobreviver, a Burguesia precisa continuar revolucionando-se a si mesma, isto é modificando os
instrumentos de produção, as "relações de produção,
em suma, todo o conjunto das relações sociais".
Superando dialeticamente as velhas classes sociais, a
Burguesia se ofereceu como síntese; porém, o
resultado final não foi uma nova forma de produção,
ou seja de concepção das relações sociais, e sim a
concretização de um resultado que acaba negando
tanto o passado como o presente, isto é o proletariado:
"Na mesma medida em que se desenvolve a
Burguesia, isto é, o capital, se desenvolve também o
proletariado, a classe dos modernos operários".
Possuidora dos meios de produção material, a
Burguesia se impôs também espiritualmente, e suas
"idéias dominantes" nada mais são do que a expressão
ideal "das relações materiais dominantes", isto é "as
relações materiais dominantes assumidas como
idéias". Este processo, iniciado com o iluminismo,
encontrou confirmação no decorrer do século XIX.
Cultura, política, vida social e, em geral, toda
manifestação intelectual tiveram como ponto de
referência a maneira de vida burguesa. O absoluto
político representado pelo liberalismo burguês, de que
já falamos, estendeu-se a todos os campos da
sociedade e a todos os momentos da vida humana,
obtendo, como conseqüência, inúmeros intérpretes e
louva-dores. Tudo isto ocorreu, porém, sem levar em
consideração a contradição própria da Burguesia
como categoria social e a teorização liberal de sua
existência política, como foi ressaltado por Marx. O
proletariado na sua condição de classe política propôs,
com efeito, novas formas de vida e de cultura, que
constituem e representam
uma verdadeira ruptura revolucionária com relação ao
passado e ao presente "burgueses".
O próprio poder político no Estado representativo,
exercido em nome e no interesse da Burguesia, gerou
alternativas autônomas internas de gestão a partir de
baixo que podem ter fracassado ou apresentado
momentos de graves deficiências na sua concretização
histórica, que porém significam novas concepções não
apenas do Estado, e sim em geral da própria política.
Isto tudo nasceu da revolução burguesa que foi a
primeira a provocar a concessão formal, a todos os
homens, das liberdades políticas, que porém não
conseguiu encarnar estas liberdades num contexto
social que garantisse seu exercício efetivo.
A interpretação marxista, modificada, atualizada e
transformada, está na base das avaliações da
Burguesia, na maioria dos casos, hoje. Nem sempre se
trata de análises alternativas ou substitutivas; às vezes
seu objetivo foi o de encontrar pontos de conciliação e
não pontos de ruptura ou de contraste; porém se trata
com certeza de avaliações que têm sua fundamentação
não em sínteses abstratas, e sim na realidade das
relações de classe e das condições sociais da própria
Burguesia.
V. A BURGUESIA NA SOCIEDADE ATUAL. —
Em época mais recente, principalmente após o
terremoto provocado pela afirmação do socialismo e
do movimento operário em escala mundial, a
Burguesia como classe e em todas as suas inúmeras
componentes procurou reagir, num certo sentido, de
forma original, contra os ataques que lhe eram
endereçados pelo proletariado e pelas suas
manifestações organizadas. Muitas vezes tem passado
de posições meramente defensivas para posições
ofensivas, reagindo às vezes mediante uma autorenovação interna, às vezes mediante a violência e a
força. O fato é que, após ter mantido firmemente o
poder durante todo o século XIX, manteve suas
posições hegemônicas (de cunho progressista ou
conservador) em grande parte do hemisfério ocidental,
conseguindo ainda estender sua influência a países e
povos "novos", junto aos quais tem se afirmado (como
já tinha acontecido no passado) como força nacional
dominante e em condições para absorver em si os
choques do desenvolvimento, ou da passagem de uma
situação de atraso total para uma situação de atraso
relativo. Isto ocorreu mesmo no meio de fortes
contradições internas e externas, que se manifestaram
principalmente nos países dos chamados Terceiro
Mundo e Quarto Mundo.
A Burguesia, hoje, não se apresenta certamente
como um núcleo compacto, embora as caracterizações
de classe tenham sempre uma razoável
BURGUESIA
unidade, que fazem com que o conceito mantenha
íntegra sua carga ideal, seja ela percebida como algo
positivo ou como algo negativo. O que se tem em
primeiro lugar é uma inversão de tendência na relação
existente entre economia e política.
A pequena Burguesia, mesmo se proletarizando
cada vez mais econômica e socialmente, por causa de
uma série complexa de motivações psicossociológicas
e devido a uma espécie de reação diante de uma
sociedade em que ela tinha e vem tendo cada vez
menos poder — este, com efeito, repartido entre
concorrentes bem mais fortes e atualizados, isto é, o
proletariado de um lado e o grande capital do outro —
adquiriu características sociais cada vez mais
autônomas e originais. Na base de seu comportamento
político, em quase todos os países evoluídos do
Ocidente, encontram-se hoje atitudes irracionais e
extremistas. Estas atitudes evidenciam sua reação
diante da sociedade de massa que nada mais concede
ao
indivíduo
"pequeno-burguês",
que
conseqüentemente encontra sua segurança e sua
maneira de se impor na subversão de direita; daí, a
adesão de muitas camadas de comerciantes, artesãos,
pequenos funcionários públicos e particulares a
movimentos fascistas ou similares. Por outro lado,
também há "pequenos-burgueses" que pensam em se
emancipar de sua condição de alienação aceitando o
espírito revolucionário abstrato da subversão de
esquerda, onde o extremismo é percebido como
"remédio" contra a "velhice" das relações sociais no
mundo moderno. É evidente que, principalmente no
que se refere à segunda alternativa, trata-se de uma
Burguesia fundamentalmente intelectual, que não
vislumbra uma sua saída nesta sociedade altamente
industrializada, assumindo assim uma posição análoga
à do sub-proletariado com relação ao proletariado.
A média e grande Burguesia podem ser avaliadas
de acordo com critérios mais tradicionais. Estas ainda
se identificam com a camada dirigente do capitalismo,
que mantém em suas mãos todo o ambiente cultural e
a própria base, financeira e social, da indústria
capitalista. Detentoras firmes, de acordo com alguns
autores, da estrutura econômica da sociedade
ocidental, a média e grande Burguesia guiam também
a política, diretamente ou mediante classes dirigentes
que delas são a expressão direta. Recuperando a
função revolucionária exercida nos primeiros tempos
de sua existência política, a nova Burguesia (pode ser
chamada assim) apresenta uma flexibilidade bem
maior do que outras camadas sociais — p. ex„ do que
a pequena Burguesia —, demonstrando sua maior
capacidade de adequação aos esquemas dinâmicos do
neocapitalismo, para cuja
123
afirmação ela muito contribuiu. Decorre desta atitude
a aceitação, quando não a proposta, de uma política
moderadamente reformista, de aquisição dialética da
realidade do movimento operário, de anticonformismo
e, às vezes também, de introspecção crítica. Isto faz
com que a ação de Governo levada adiante pela nova
Burguesia, nos países mais desenvolvidos, seja
homogênea não apenas com o desenvolvimento
econômico e sim também com o desenvolvimento
social, possibilitando <jue dela se fale como
"progressista".
Ao mesmo tempo esta política pode ser
interpretada como uma forma atualizada e camuflada
de repressão, aliás, como uma autêntica "manipulação
das massas" por obra dos que detêm a gestão efetiva
do poder. Na realidade é possível perceber que estes
aspectos não são contraditórios entre si; eles
respondem à realidade multiforme das atitudes de
uma classe que busca se afirmar cada vez mais, num
mundo dominado pelo progresso científico e
tecnológico e, portanto, por uma crescente
concentração e especialização do poder, diante das
forças que pretendem descentralizar e modificar
radicalmente este mesmo poder, ou pelo menos
condicioná-lo de baixo.
Pelas considerações aqui apresentadas, é preciso
observar que mudou profundamente a maneira de
perceber o "espírito", a "mentalidade" e a "cultura"
burguesas, e que também mudou radicalmente aquela
forma específica de ser que Benedetto Croce definiu
como "mediocridade" burguesa ("aquilo que não é
nem alto demais nem baixo demais" no "sentir, no
costume e no pensar"). Sofreu, desta forma, mudanças
fundamentais a própria composição sociológica da
classe que leva a denominação genérica de
"Burguesia". O que não se modificou é o fato que esta
classe gere, em primeira pessoa ou servindo-se de
mediadores, o poder na sociedade capita-listaindustrial, e que conseqüentemente subsistem ainda as
mesmas relações (e as mesmas "lutas") de classe
dentro da mesma sociedade, relações já definidas
histórica e teoricamente por Marx e Engels, e que se
concretizam justamente no conflito permanente entre
a Burguesia, na sua globa-lidade e generalidade, de
um lado, e o proletariado do outro.
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[GIAN MARIO BRAVO]
Burocracia:
I. AMBIGÜIDADE DO TERMO. — O termo Burocracia
foi empregado, pela primeira vez, na metade do
século XVIII, por um economista fi-siocrático,
Vincent de Gournay, para designar o poder do corpo
de funcionários e empregados da administração
estatal, incumbido de funções especializadas sob a
monarquia absoluta e dependente do soberano. Basta
lembrar a polêmica fisiocrá-tica contra a centralização
administrativa e o absolutismo para entender que o
termo surgiu com uma forte conotação negativa.
Neste sentido é citado, no início do século XIX, por
alguns dicionários, e é usado por romancistas como
Balzac e logo se difunde em muitos países europeus,
sendo utilizado polemicamente por liberais e radicais
para atacar o formalismo, a altivez e o espírito
corporativo da administração pública nos regimes
autoritários e especialmente na Alemanha. Este uso do
termo é também aquele que mormente se
institucionalizou na linguagem comum e chegou aos
nossos dias para indicar criticamente a proliferação de
normas e regulamentos, o ritualismo, a falta de
iniciativa, o desperdício de recursos, em suma, a
ineficiência das grandes organizações públicas e
privadas.
Uma segunda acepção, igualmente negativa, do
termo, é aquela que foi desenvolvida pelo pensamento
marxista. Embora Marx se tivesse ocupado só
marginalmente da questão, os seus seguidores.
colocados perante a tarefa de construir o partido e o
Estado socialista, foram obrigados a dedicar maior
atenção
aos
problemas
organizacionais.
Especialmente aqueles que provinham de uma matriz
sindicalista tiveram uma clara percepção dos perigos
ínsitos à existência de um aparelho forte e
centralizado: por isso R. Michels, baseando-se no caso
do partido social democrático alemão, sustentou que
toda organização implica numa oligarquia:
aproximadamente nos mesmos anos (1904), R.
Luxemburg entrou em polêmica com Lenin,
acusando-o
de
sufocar
a
espontaneidade
revolucionária da classe operária com uma férrea
organização burocrática do partido. Mais tarde,
Trotski criticou o aparato do partido comunista
bolchevique afirmando que ele ameaçava transformarse num estrato privilegiado dentro da sociedade
socialista. Estes mesmos temas podem ser hoje
relevados na polêmica da nova esquerda que identifica
no burocratismo e no dirigismo centralizado o
verdadeiro inimigo do socialismo. Na tradição
marxista, então; os conceitos de Burocracia,
burocratismo e burocratização são especialmente
usados para indicar a progressiva rigidez do aparelho
do partido e do Estado em prejuízo das exigências da
democracia
de
base
(v.
APARELHO;
BUROCRATIZAÇÃO).
No decorrer do século XIX se delineia, todavia,
uma outra concepção de Burocracia que emprega o
termo no sentido técnico e não polêmico. Trata-se
daquele conjunto de estudos jurídicos e da ciência da
administração
alemães
que
versam
sobre
Bureausystem, o novo aparelho administrativo
prussiano,
organizado
monocrática
e
hierarquicamente, que, no início do século XIX,
substitui os velhos corpos administrativos colegiais. A
ênfase destas obras é normativa e se refere
especialmente à precisa especificação das funções, à
atribuição de esferas de competência bem delimitadas,
aos critérios de assunção e de carreira. Por esta
tradição técnico-jurídica, o conceito de Burocracia
designa uma teoria e uma praxe da pública
administração que é considerada a mais eficiente
possível.
Estas três acepções do termo — disfuncionali-dade
organizativa, antidemocraticidade dos aparelhos dos
partidos e dos Estados, técnica da administração
pública — confluíram no vocabulário das ciências
sociais modernas, originando uma extraordinária
proliferação conceituai. Recentemente um autor
identificou até sete conceitos modernos de Burocracia
(Abrow, 1970, pp. 115-43) e perante esta ambigüidade
do termo alguns estudiosos se questionaram se não
seria mais oportuno considerar o vocábulo Burocracia
como um exemplo das incertas formulações das
ciências sociais primitivas e eliminá-lo do léxico
científico
BUROCRACIA
moderno. Essa pessimística conclusão pode ser,
todavia, evitada se tomamos como ponto de referência
a conceituação dada por Max Weber que considera a
Burocracia como uma específica variante moderna
das soluções dadas ao problema geral da
administração.
II. A CONCEITUAÇÃO WEBERIANA. — A
Conceituação weberiana de Burocracia se enquadra na
sua análise dos tipos de domínio (Herrschaft). Os dois
elementos essenciais desta tipologia são a legitimidade
e o aparelho administrativo: Weber, de fato, julga que
"todo o poder procura suscitar e cultivar a fé na
própria legitimidade" e que "todo o poder se manifesta
e funciona como administração" (Weber, (1922),
1961, vol. I, p. 208, vol. II, p. 250).
Conseqüentemente ele faz uma distinção entre
domínio legítimo e não legítimo e, dentro do primeiro,
entre domínio carismático, tradicional e legalburocrático. O domínio carismático é legitimado pelo
reconhecimento dos poderes e das qualidades
excepcionais do chefe e o seu aparelho consiste
tipicamente no grupo dos "discípulos", isto é, dos
indivíduos escolhidos pelo chefe entre os membros da
comunidade carismática (v. CARISMA). A legitimidade
do domínio tradicional é constituída pela crença nas
regras e nos poderes antigos, tradicionais e imutáveis,
enquanto o aparelho pode assumir quer formas
patrimoniais quer feudais. O domínio legal é
caracterizado, do ponto de vista da legitimidade, pela
existência de normas legais formais e abstratas c, do
ponto de vista do aparelho, pela existência de um slajl
administrativo burocrático. Weber, portanto, define a
Burocracia como a estrutura administrativa, de que se
serve o tipo mais puro do domínio legal.
O estudo weberiano dos "tipos ideais" de domínio
inclui três diversos níveis de análise (Roth, 1970): o
primeiro consiste na formulação de conceitos
claramente definidos; o segundo na construção de
modelos deduzidos de fenômenos históricos
empiricamente semelhantes; o terceiro, na específica
explicação, a partir desses modelos, de casos
históricos particulares. É útil seguir esta tríplice
perspectiva para expor a concepção weberiana da
Burocracia.
A) A Burocracia como conceito. — É bastante
paradoxal que a definição do conceito de Burocracia,
que se tornou em seguida o objetivo de longas
discussões por parte dos politólogos e sociólogos,
representa o aspecto menos original dos estudos
weberianos, enquanto todos os seus elementos podem
ser encontrados na ciência da administração alemã da
época. Sinteticamente, as características da Burocracia
são, para Weber, as seguintes:
125
1) O pré-requisito de uma organização burocrática é
constituído pela existência de regras abstratas às quais
estão vinculados o detentor (ou os detentores) do
poder, o aparelho administrativo e os dominados.
Segue-se daí que as ordens são legítimas somente na
medida em que quem as emite não ultrapasse a ordem
jurídica impessoal da qual ele recebe o seu poder de
comando e, simetricamente, que a obediência é devida
somente nos limites fixados por essa ordem jurídica.
2) Na base deste princípio geral da legitimidade,
uma organização burocrática é caracterizada por
relações de autoridade entre posições ordenadas
sistematicamente de modo hierárquico, por esferas de
competências claramente definidas, por uma elevada
divisão do trabalho e por uma precisa separação entre
pessoa e cargo no sentido de que os funcionários e os
empregados não possuem, a título pessoal, os recursos
administrativos, dos quais devem prestar contas, e não
podem apoderar-se do cargo. Além disso, as funções
administrativas são exercidas de modo continuado e
com base em documentos escritos.
3) O pessoal empregado por uma estrutura
administrativa burocrática é tipicamente livre, é
assumido contratualmente e, em virtude de suas
específicas qualificações técnicas, é recompensado
através de um salário estipulado em dinheiro, tem uma
carreira regulamentada e considera o próprio trabalho
como uma ocupação em tempo integral.
Weber está plenamente consciente de que este
conjunto de características não é possível encontrá-lo
se não com menor ou maior aproximação em casos
históricos concretos e que ele não representa fielmente
mas simplifica e exagera a realidade empírica.
Todavia esta simplificação e exa-geração são
necessárias no interesse de uma clara conceituação.
Deste ponto de vista, a definição de Burocracia
adquire seu pleno significado somente quando esta é
comparada com outros tipos de administração numa
ampla perspectiva histórica. Por exemplo, Weber
contrapõe repetidas vezes o sistema burocrático, que
ele considera próprio do Estado moderno, ao
patrimonial. Neste último, os funcionários nao são
assumidos em base contratual, mas são tipicamente
escravos ou clientes de quem detém o poder e, ao
invés de uma retribuição fixa, são recompensados com
benefícios em natureza ou em dinheiro; as funções
administrativas não são atribuídas com base em
critérios relativos a esferas de competência impessoais
e a hierarquias racionais, mas são distribuídas quer
seguindo a tradição quer de acordo com o arbítrio do
soberano; a distinção entre pessoa e cargo não existe,
enquanto todos os meios de administração são
considerados partes do patrimônio
126
BUROCRACIA
pessoal do detentor do poder; enfim, as funções
administrativas tendem a não ser exercidas de forma
continuada. É à luz de semelhantes distinções que o
conceito de Burocracia revela sua utilidade: como os
outros tipos ideais dos aparatos de domínio, ele serve
quer para identificar de forma muito genérica as
características administrativas de um amplo período
histórico, quer para estabelecer um ponto
indispensável de partida para análises empíricas de
casos concretos. Neste sentido também a tão citada
afirmação weberia-na, segundo a qual a administração
burocrática é, coeteris paribus, tecnicamente superior
às demais, vale somente na medida em que a
Burocracia é comparada com os típicos aparelhos do
domínio tradicional e carismático.
B) A Burocracia como modelo histórico. — Weber
não se limita a enunciar de modo estático as
características do tipo de domínio legal burocrático,
mas constrói também um modelo dinâmico desse tipo.
Esse modelo especifica que casos empíricos
semelhantes que recaem no tipo ideal de Burocracia
funcionam sob determinadas condições e explicita
uma gama de variações que incluem as tendências
quer para uma maior estabilidade quer para a
transformação ou o declínio.
Na construção do modelo burocrático Weber adota
o seguinte procedimento. Em primeiro lugar,
considera alguns pressupostos historicamente
importantes para o surgimento e a formação dos
aparelhos
burocráticos.
Eles
se
reduzem
substancialmente a três: a existência de um sistema de
racionalidade legal, o desenvolvimento de uma
economia monetária e a expansão qualitativa e
quantitativa das funções administrativas. A falta de
uma destas condições não significa que não se possa
mais falar de Burocracia, mas identifica, mais do que
tudo, uma linha de evolução do sistema burocrático
diversa da linha da Burocracia moderna. Por exemplo,
organizações burocráticas evoluíram também na
ausência de uma economia monetária, como
demonstram os casos do antigo Egito, da China pósfeudal e dos impérios romano e bizantino. Trata-se
todavia de sistemas burocráticos intrinsecamente
instáveis: de fato, na medida em que os funcionários
são remunerados em natureza e não em dinheiro, a
regularidade de sua retribuição torna-se problemática
e eles tentam apropriar-se das fontes de tributação e
de renda do sistema. Esta tendência leva a uma
descentralização do aparelho burocrático e, enfim, à
sua transformação em estrutura patrimonial.
Em segundo lugar, Weber sublinha os principais
efeitos da Burocracia moderna. O primeiro consiste
na concentração dos meios de administração e de
gestão nas mãos dos detentores do poder. Esse
fenômeno se verifica em todas as
organizações de grandes dimensões: na empresa
capitalista, no exército, nos partidos, no Estado, na
universidade. A análise marxista da separação do
trabalhador dos meios de produção não é para Weber
senão um exemplo deste processo geral de
concentração. O segundo efeito da Burocracia
moderna é o nivelamento das diferenças sociais que
resulta do exercício da autoridade segundo regras
abstratas e iguais para todos e da exclusão de
considerações pessoais no recrutamento dos
funcionários. Esta tendência niveladora está ligada a
uma importante mudança no sistema escolar.
Enquanto o ideal educacional de uma administração
composta de notáveis é o do "homem culto" formado
com os estudos de tipo clássico, o ideal educacional
da Burocracia é o "experto" formado mediante um
tirocínio técnico-científico e cuja competência é
certificada pela aprovação em exames especializados.
Em terceiro lugar, Weber considera os potenciais
conflitos inerentes a um sistema de domínio legalburocrático. Eles são relacionados quer com o
princípio de legitimidade quer com a relação entre
aparelho e detentor do poder. O princípio de
legitimidade de um sistema de autoridade legal
contém uma tensão interna entre justiça formal e
justiça substancial que, em nível de estrutura social, se
concretiza na complexa relação entre Burocracia e
democracia de massa. No que concerne à igualdade
dos cidadãos perante a lei e ao recrutamento do
pessoal burocrático com critérios uni-versalistas no
lugar de adscritivos, existe uma afinidade entre
Burocracia e valores democráticos. Neste sentido,
Weber afirmou que a Burocracia é um inevitável
fenômeno colateral da Burocracia de massa. Todavia,
estes critérios de igualdade formal podem produzir
resultados ambíguos do ponto de vista da igualdade
substancial. De fato, a seleção dos funcionários
mediante critérios objetivos pode fazer surgir uma
casta privilegiada em bases meritocráticas; de outro
lado, a igualdade de todo cidadão perante a lei implica
na irrelevân-cia de critérios substanciais de eqüidade.
É possível, portanto, que as forças sociais que se
inspiram em ideais democráticos exijam a ampliação
do acesso aos cargos, embora propondo-se seguir o
método eletivo também com prejuízo do requisito da
preparação científica, e a introdução de critérios
substanciais na administração da justiça. Por sua vez,
estas exigências tenderão a ser rejeitadas
pela.Burocracia que, por motivos materiais e ideais,
está ligada aos standards da justiça formal.
Segundo Weber a tensão entre justiça formal e
substancial é um dilema que não pode ser eliminado
num sistema de domínio legal; caso este difícil
equilíbrio venha a ser modificado, num
BUROCRACIA
sentido ou noutro, o sistema de domínio legal está
sujeito a transformações.
O segundo conflito se refere à relação entre
liderança política e aparelho administrativo.
Polemizando com os socialistas e os anárquicos,
Weber
acha
que
o
Estado
moderno,
independentemente do seu regime político, não pode
prescindir da Burocracia: a única alternativa
correspondente na administração pública seria o
diletantismo. Isto acarreta implicações relevantes para
o exercício do poder. Num sistema de domínio legalburocrático para o líder político não é suficiente
derrotar os outros líderes no contexto eleitoral, mas
deve também ser controlada a atuação da Burocracia
em cujas mãos está o exercício diário da autoridade. O
controle da Burocracia torna-se particularmente difícil
pelo fato de que o detentor do poder se encontra na
posição de um diletante em relação aos funcionários
que podem usufruir da própria competência técnica e
se utilizar do segredo do ofício para rejeitar inspeções
e controles. Prevendo a possível, embora ilegítima,
expansão do poder burocrático, Weber afirmou que a
Burocracia é compatível com o sistema da autoridade
legal somente quando a formulação das leis e a
supervisão de sua aplicação ficam sendo mais
prerrogativas dos políticos: se o aparelho burocrático
consegue usurpar o processo político e legislativo, será
preciso falar de um processo de burocratização que
ultrapassou os limites do sistema de domínio legal e
lhe transformou a estrutura (Weber, 1918).
Para Weber, as características típicas do líder
político são diametralmente opostas às do burocrata.
Este é responsável somente pela eficaz execução das
ordens e deve subordinar suas opiniões políticas à sua
consciência do dever de ofício; aquele é um homem
de partido que luta pelo poder, que deve mostrar
capacidades criativas e assumir responsabilidades
pessoais pelas próprias iniciativas políticas.
Fundamentalmente, numa democracia de massa, o
controle do líder político sobre a Burocracia estatal e
de partido torna-se possível principalmente pela sua
capacidade "carismática" em obter um sucesso
eleitoral em condições de sufrágio universal. Mas
também esta tendência, se levada até o extremo, pode
resultar numa modificação do sistema de domínio
legal-burocrático: o carisma do líder pode transformar
uma democracia plebiscitaria num regime cesa-rista e,
enfim, totalitário.
Concluindo, as tensões e o potencial conflitual ao
nível da legitimidade e ao nível do aparelho tornam o
equilíbrio de um sistema legal-burocrático
intrinsecamente instável e exposto a tendências
carismáticas e neopatrimoniais.
127
C) Teorias seculares da Burocracia. — A existência
de pré-condições históricas que podem .ou não ser
satisfeitas e o entrelaçar-se de conflitos e de tensões,
que mencionamos, fazem com que o processo de
burocratização não seja ním unili-near nem
irreversível: "isto é, precisa sempre observar em que
direção específica a burocratização procede em cada
caso histórico" (Weber, 1961, Il vol-, p. 303). Estas
específicas explicações históricas, às quais pela sua
amplitude foi dado o nome de "teorias seculares"
(Roth, 1970), e que logicamente têm origem no
modelo anteriormente delineado, são numerosas nas
obras de Weber: elas se referem, por exemplo, à
Burocracia patrimonial chinesa, ao surgimento e à
consolidação do aparelho burocrático estatal na
Europa continental, ao diferente desenvolvimento da
administração estatal na Inglaterra. A exposição e a
avaliação crítica de tais análises ultrapassa, todavia, o
âmbito deste verbete.
III. ALGUNS PROBLEMAS DAS
PÚBLICAS MODERNAS. — O estudo
BUROCRACIAS
weberiano da
Burocracia, embora elaborado cerca de sessenta anos
atrás e, portanto, ligado, sob certos aspectos, à
situação sócio-política dos primeiros anos do século,
identificou alguns problemas cruciais que se
tornaram, depois, objeto de numerosas análises. No
campo das Burocracias públicas, os temas abordados
com mais freqüência pela mais recente bibliografia se
referem à composição social da Burocracia, às causas
que influenciam a natureza e a extensão do seu poder,
às suas relações com os grupos de interesse e, enfim,
à sua eficácia administrativa.
Já salientamos que os critérios meritocráticos de
recrutamento têm a vantagem de excluir qualidades
adscritivas e interesses políticos do processo de
seleção do pessoal administrativo. Todavia, eles têm
também a desvantagem de refletir a desigual
distribuição social das oportunidades favorecendo os
grupos social e culturalmente mais favorecidos.
Diversos estudos da composição social da Burocracia
nos países anglo-saxões e na Europa continental
chegaram, de fato, à conclusão unânime de que a
quase totalidade dos altos funcionários é proveniente
de famílias da classe média-superior. Esta
homogeneidade social das elites administrativas,
consolidada pelos vínculos culturais e de amizade
pessoal produzidos pelas instituições especializadas
na preparação dos funcionários como as Grandes
Ecoles na França (Su-leiman, 1974) ou algumas
universidades privadas nos países anglo-saxões, tende
a fortalecer a consciência de casta entre os altos
funcionários. A este respeito, a variável-chave parece
ser constituída pela estrutura do sistema escolar: onde
ele
128
BUROCRACIA
é aberto é tende a modificar o sistema preexistente de
estratificaçâo, é possível encontrar uma certa
mobilidade social no vértice do pessoal administrativo
(este parece ser o caso dos países escandinavos); aliás
ele pode tornar-se um corpo fechado que se autoreproduz. O sistema escolar tem também uma certa
influência sobre as dimensões do aparelho
burocrático: de fato, se o afluxo dos diplomatas no
mercado de trabalho foi superior à demanda da
economia, a administração estatal torna-se a saída
mais freqüente desta surplus intelectual. Como se
observou, a propósito da Itália (Sylos-Labini, 1976) e
de outros países, isto provoca uma expansão
"patológica" da Burocracia especialmente nos níveis
médio-baixos.
Embora não seja metodologicamente correto inferir
conclusões automáticas relativas à ação dos
funcionários de sua origem social, porém esta tem
implicações significativas sobre o controle político da
Burocracia. Por exemplo, afirmou-se que o bom
funcionamento do sistema administrativo britânico
depende do fato de que membros do Governo e altos
funcionários são provenientes da mesma classe social
e têm, portanto, opiniões semelhantes sobre
importantes problemas políticos (Kingsley, 1944),
Todavia, mais do que a classe de origem dos
funcionários, duas outras variáveis parecem
influenciar o grau de autonomia do controle político
dos aparelhos administrativos modernos. A primeira
diz respeito à medida pela qual um código de ética
profissional, que sublinha a neutralidade política da
Burocracia, venha efetivamente interiorizado pelos
funcionários; a segunda diz respeito ao grau de
legitimidade e de estabilidade do sistema político.
Onde o código de ética é genuinamente aceito pela
Burocracia e a estabilidade da ordem pública é alta, o
controle do aparelho administrativo não apresenta
particulares problemas; caso contrário, a Burocracia
tende a estender seu poder e a posicionar-se como um
corpo independente perante a autoridade pública. Os
casos da Inglaterra e da França mostram estas duas
posições opostas. Na Inglaterra, a neutralidade
política do civil service e o forte grau de legitimidade
do sistema político garantiu as boas relações entre
Burocracia e Governo também, contrariamente a
algumas expectativas, com o advento ao poder do
partido labo-rista logo após a guerra. Na França, pelo
contrário, a insistência sobre a lealdade da Burocracia
ao partido dominante (ao Governo) estimulou a
formação de claras atitudes políticas entre os altos
funcionários e a tradicional instabilidade do regime os
levou a assumir um papel político independente. Por
conseqüência, a desconfiança do poder político
francês na neutralidade da burguesia é mostrada bem
claramente pelo instituto, existente
também em outros países com tradições políticas
semelhantes, do cabinet ministériel, isto é, de um slaff
de tipo "patrimonial" formado por estreitos
colaboradores pessoais do ministro que age como
intermediário entre estes e os funcionários de carreira
e controla a fiel aplicação das diretrizes políticas.
Relacionado com o problema do controle político
está o das relações entre Burocracia e grupos de
interesse (v. GRUPOS DE PRESSÃO). O aumento da
intervenção do Estado na "sociedade civil" importou
uma descentralização administrativa juntamente com
delegação de atividades propriamente políticas aos
administradores. Estes últimos, de outra parte,
precisaram, a fim de adquirir as necessárias
informações, de estabelecer relações de cooperação e
de legitimar a própria ação, de comunicar e interagir
mormente com os grupos relevantes de interesse, os
quais foram paulatinamente aumentando de número
como resultado da expansão do processo de
democratização e da mais eficaz organização política
dos cidadãos (Ehrmann, 1961; Bendix, 1968). Com o
decorrer do tempo, porém, estas relações podem dar
lugar a fenômenos de tipo clientelar que se esquivam
do controle do poder político central. Além disso,
como observou P. Selznick (1949), a tendência das
estruturas administrativas para se assegurarem o
consenso e a cooperação dos grupos sociais mais
fortes nas próprias áreas de atuação corre o risco de
transformar radicalmente, embora numa forma latente,
os fins progra-máticos para os quais tais estruturas
tinham sido originariamente criadas.
A análise das relações entre Burocracia e grupos de
interesses levou também muitos estudiosos a
reformular o problema da eficiência administrativa.
Esta já não consistiria na aplicação rígida e imparcial
das ordens por parte do burocrata, mas na sua
receptividade dos fins sociais e políticos do sistema.
Num regime político pluralista isto implica uma maior
flexibilidade da ação administrativa e uma mais larga
disponibilidade da Burocracia para a contratação e o
compromisso com os diversos grupos sociais.
Implícita ou explicitamente, afirmações como estas
são consideradas críticas para a clara distinção
weberiana entre política e administração: afirma-se, de
fato, que enquanto essa distinção tinha sentido numa
estrutura social em que a atividade política era uma
prerrogativa de uma roda restrita de notáveis, ela
resulta menos clara no Estado contemporâneo em que
a proliferação paralela das funções administrativas e
dos grupos de interesse deslocou a sede de numerosas
decisões políticas cada vez mais para fora do Governo
propriamente dito.
BUROCRACIA
IV. O MODELO BUROCRÁTICO E A ANÁLISE
DAS
ORGANIZAÇÕES.
—
Embora
a
conceptualização weberiana da Burocracia fique
sendo muito útil quando é aplicada numa perspectiva
histórico-comparada a sistemas políticos de notáveis
dimensões, seu poder analítico diminui na análise microssocial das organizações. De fato, um certo número
de trabalhos teoricamente orientados numa
perspectiva funcionalista e metddologica-mente
estruturados no estudo do caso dirigiu severas críticas
contra a conceituação weberiana (veja, por exemplo,
Blau, 1957; Selznick, 1949; Gouldner, 1954; Crozier,
1963; Stinchcombe 1959). Sinteticamente, estas
críticas podem ser reduzidas a dois pontos
fundamentais. O primeiro é que a análise weberiana
não oferece uma descrição empiricamente atenta das
estruturas organizacionais. Em particular, os
elementos de tipo ideal se situariam em diferentes
níveis de generalidade: alguns, como o uso de pessoal
especializado, os pagamentos em dinheiro e a
definição contratual dos cargos seriam próprios do
genus das administrações racionais; outros, como o
sistema hierárquico, a presença de um amplo staff
administrativo e a continuidade de operações
identificariam a espécie das administrações
propriamente burocráticas enquanto opostas à espécie
das administrações profissionais. Esta confusão entre
Burocracia e profissionalismo existiria também
dentro* do conceito weberiano de autoridade que se
fundamenta ao mesmo tempo na hierarquia
(Burocracia) e na competência (profissionalismo). O
segundo grupo de críticas dirigidas a Weber sustenta
que o seu tipo ideal é uma indevida mistura de um
esquema conceituai — as características-que definem
a Burocracia — e de uma série de hipóteses — a
afirmação de que a Burocracia maximiza a eficiência
organiza-tiva. Em oposição a esta afirmativa foi
sustentado que a adesão dos funcionários às normas
burocráticas se transforma facilmente em ritualismo;
que a hierarquia, a especialização e a centralização
tendem a distorcer as informações e, portanto, a tornar
mais difícil a correta tomada de decisões (Wilensky,
1967); que a determinação unilateral de conduta
administrativa por parte dos superiores limita a
capacidade de iniciativa dos outros membros da
organização; que o modelo weberiano é muito
mecanicista para ser eficiente em situações que
exigem uma elevada capacidade de flexibilidade e de
adaptação; que, enfim, Weber ignorou os aspectos
informais das organizações e, portanto, não soube
prever as disfun-ções burocráticas.
Na realidade, estes argumentos parecem mais úteis
por tudo aquilo que nos ensinam sobre o
comportamento organizacional do que pela análi-
129
se da teoria weberiana. Em primeiro lugar, de fato,
eles visam reificar o tipo ideal de Burocracia, apesar
das repetidas advertências metodológicas de Weber a
este propósito. Em segundo lugar, atribuem ao
sociólogo alemão uma posição de caráter normativo
que ele não tinha, esquecendo, além disso, que a sua
afirmação relativa à superioridade técnica da
Burocracia se referia aos aparelhos tradicionais e
carismáticos. Em terceiro lugar, negligenciam o fato
de que, embora Weber, sagaz observador político que
foi, estivesse perfeitamente a par dos processos
informais em ato nas organizações, não cuidou de
tratar sistematicamente deste problema porque não
estava interessado em construir uma teoria geral dos
fenômenos organizacionais. O debate científico sobre
o conceito weberiano de Burocracia, portanto,
resultou menos fecundo do que se podia esperar.
Nestes últimos anos, todavia, o divórcio entre a
análise macrossocial da Burocracia e a teoria das
organizações está se tornando menos claro e isto com
vantagens recíprocas das duas linhas de estudo. Isto é
conseqüência de duas novas tendências da sociologia
da organização (cf. Per-row, 1972). A primeira
consiste em voltar a dar atenção, após um certo
período de desinteresse, às estruturas formais e às
normas organizacionais como elementos que
delimitam o campo em que se desenrola a luta pelo
poder dos grupos internos à organização: esta
perspectiva apresenta afinidades substanciais com a
análise weberiana dos conflitos internos ao sistema
legal-burocrático. A segunda tendência consiste em
conceptualizar a relação entre organização e ambiente
não mais prevalentemente do ponto de vista da
organização, focalizando numa ótica funcionalista os
mecanismos de sobrevivência e de adaptação, mas
também e especialmente do ponto de vista das
conseqüências da ação organizacional na sociedade.
Também esta corrente parece conforme ao interesse
weberiano para os efeitos culturais e sociais dos
aparelhos de domínio.
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burocrazia (1970), Il Mulino, Bologna 1973; R.
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Springs, Ohio 1944; C. PERROW, Le organizzazioni
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130
BUROCRATIZAÇÀO
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democrática (1949), Angeli, Milano 1974; A.
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Pnnceton, N. J. 1974; P. SYLOSLABINI, Saggio sulle
classi sociali, Laierza, Bari 1974; M. WEBER,
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Cermania (1918), Laterza, Bari 1919; Id., Economia e
società (1922), Comu-nítà, Milano 1961; H. L.
WILENSKY, Organizational Intelligence. Basic Books,
New York 1967.
[PIER PAOLO GIRGLIOLI]
Burocratização.
I. A BUROCRATIZAÇÀO COMO FENÔMENO
HISTÓRICO GLOBAL E AS ORIGENS DA SUA
EVOLUÇÃO. — O termo indica uma degeneração da
estrutura e das funções dos aparelhos burocráticos,
degeneração que, segundo alguns autores, era
implicitamente identificada na elaboração conceptual
do fenômeno burocrático feito por Weber (v.
BUROCRACIA). Se consideramos como características
distintivas indiscutíveis de uma burocracia típicoideal a racionalidade, a centralização da autoridade e
a impessoalidade dos comandos (isto é, a adesão a
precisas normas e regulamentos), podemos dizer que
a Burocratização implica o advento de elementos de
não-racionalidade, de fragmentação da autoridade e
da
"despersonaliza-ção"
dos
comandos.
Burocratização significa proliferação de organismos
sem conexão com as exigências gerais da
funcionalidade, acentuação dos aspectos formais e
processuais sobre os aspectos substanciais com a
conseqüente morosidade das atividades e redução das
tarefas desempenhadas, sobrevivência e elefantíase de
organismos que não desempenham mais alguma
função efetiva e, finalmente, triunfo da organização
— a burocracia — sobre suas finalidades.
Embora o fenômeno da Burocratização seja visto
como um mal tipicamente moderno, a causa das
crescentes tendências neste sentido em todas as
sociedades contemporâneas, podemos todavia
considerá-lo um problema que sempre existiu. O
domínio burocrático, de fato, começa com a divisão
social do trabalho, que, como releva Deuts-cher,
"começa com o processo produtivo junto ao qual se
manifesta a primeira hierarquia de funções‖. Todavia,
o poder da burocracia foi por muitos séculos limitado,
estando o estrato social detentor das funções
administrativas subordinado
às classes dominantes. Apesar de que nos Estados
capitalistas o processo de Burocratização tenha
aumentado, todavia não se deve pensar numa ligação
mecânica entre desenvolvimento capitalista e aumento
do peso da burocracia: os exemplos opostos da
Inglaterra e da Alemanha do século passado
demonstram isso amplamente. Até mais, se se
considera o caso da Rússia pré-revo-lucionária, se
observa que o subdesenvolvimento quer dos
elementos feudais quer dos capitalistas tinha tornado
extremamente forte o poder burocrático. Com a
derrota do capitalismo, aquele poder, longe de
diminuir, se fortificou, como reflexo da tradição entre
dois sistemas sócio-econômicos diferentes e como
conseqüência da prostração física e política de todas
as classes sociais em luta.
No momento atual constata-se que o domínio da
burocracia atingiu toda a formação social e todos os
sistemas
políticos:
os
Estados
capitalistas
desenvolvidos, mesmo aqueles que tinham conhecido
uma Burocratização muito limitada (como os Estados
Unidos e a Inglaterra), sofreram um pesado processo
involutivo, especialmente com o prevalecer do
capitalismo
monopolista;
nos
países
subdesenvolvidos, onde a burguesia é numericamente
fraca e não tem um forte peso social, a burocracia
assume dimensões notáveis e constitui a base para a
afirmação da burguesia nacional. Também neste caso,
o estrato burocrático serve aos interesses da classe
dominante e promove o desenvolvimento do
capitalismo a cujo destino está ligada sua própria
existência.
Enfim, o processo de Burocratização atingiu
também o movimento operário, suas organizações
(partidos, sindicatos, etc.) e os mesmos Estados que o
proletariado construiu em defesa de seus interesses.
Na origem deste fenômeno está o problema do
aparelho e dos funcionários que o compõem. Quer o
primeiro quer os outros são indispensáveis; todavia a
atitude destes últimos se ressente inevitavelmente do
ambiente social em que se encontram em atuação:
cria-se, dessa forma, a tendência a considerar a
atividade desempenhada e a própria organização não
mais como meios para atingir um objetivo, mas como
fins em si mesmos. Uma atividade deste tipo não pode
evidentemente ser separada da vontade de conservar
os privilégios obtidos: até mais, esta vontade gera a
tendência por parte dos funcionários das organizações
operárias de se integrarem numa forma cada vez mais
orgânica na sociedade existente e a considerarem seu
novo slatus social como perfeitamente natural. Isto faz
com que o processo de Burocratização, quer do ponto
de vista da organização quer do ponto de vista psico-
BUROCRATIZAÇÃO
13
1
lógico, se firme cada vez mais, anulando ou
neutralizando os fins e as intenções iniciais.
Roberto Michels tinha captado estas tendências
mas concluíra que a Burocratização não encontra
obstáculos; analogamente, em tempos mais recentes,
B. Rizzi defendeu que a tendência para a
Burocratização é inevitável. Os autores marxistas, por
sua vez, esforçaram-se, além de analisar o fenômeno,
por buscar os meios através dos quais tal fenômeno
pode ser combatido.
II. A BUROCRATIZAÇÃO DO MOVIMENTO
OPERÁRIO NO PENSAMENTO DOS TEÓRICOS
MARXISTAS. — No fim do século passado, Kautsky
concluía o seu livro As origens do cristianismo com
uma inquietante pergunta: o movimento operário não
correrá o risco de experimentar um processo de
Burocratização análogo ao sofrido pela Igreja católica
depois da sua chegada ao poder? A resposta de
Kautsky foi a de que o paralelo seria correto, se a
classe operária chegasse ao poder numa fase de
declínio das forças produtivas, como aconteceu com a
Igreja. Mas, como então se pensava comumente que a
revolução socialista havia de triunfar em países
capitalistas desenvolvidos, esse perigo não se
concretizaria. Foi Rosa Lu-xemburg a primeira a
quem coube afrontar um processo de Burocratização
triunfante: o do sindicato e da social democracia
alemães.
Em sua análise, Rosa Luxemburg captou os
elementos essenciais de uma teoria da degeneração
reformista do movimento operário. A revolucionária
polonesa formulou uma teoria do oportunismo que se
baseava na contradição dialética entre lutas parciais e
objetivo final, inerente a todo o partido socialista na
sociedade burguesa. Apresentou os conceitos de
conservantismo de aparelho e de feiticismo de
organização, fazendo remontar tais atitudes ao terreno
histórico de onde haviam surgido: o período de
crescimento pacífico do capitalismo europeu em fins
do século XIX. Ressalta também a perigosa união que
existe entre tais atitudes e a Burocratização do
movimento operário, e que acentua a separação entre
os dirigentes e as massas, tornando aqueles
autônomos em relação a estas.
Para explicar a evolução oportunista e burocrática
da social democracia, Lenin se baseou numa análise
de Engels sobre a integração da classe operária
inglesa, tida como fruto da prosperidade econômica
do Reino Unido, estendendo-a a todos os países
capitalistas avançados; neles, afirmava Lenin, a
expansão imperialista substituiu o monopólio
industrial como fonte de superlucro e de acumulação
de riquezas. Os superlucros dão à burguesia os meios
para integrar politicamente o proletariado, mediante
diversas concessões
econômicas,
cuidadosamente
dosadas.
Estas
concessões têm a função de satisfazer setores bastante
amplos da classe, com o fim de paralisar o movimento
operário, sendo, porém, perfeitamente compatíveis
com a expansão do sistema. Segundo Lenin, o
crescimento pacífico do movimento operário dentro
das condições de expansão imperialista gera uma
burocracia operária conservadora. Tal burocracia, de
que o aparelho permanente do partido socialista e do
movimento sindical constitui o núcleo, é ela mesma,
socialmente, uma fração da aristocracia operária. Por
outros termos, a burocracia operária é o porta-voz
político da aristocracia operária e não da grande
massa do proletariado.
III. AS RAÍZES DA BUROCRATIZAÇÃO NOS
ESTADOS OPERÁRIOS. — No período histórico atual
a manifestação mais macroscópica e, sob muitos
aspectos, mais desconcertante das tendências à
Burocratização é dada, sem dúvida, pela involução
sofrida pelos Estados coletivistas. Se os fatores que
favoreceram o poder da burocracia estão ligados ao
sistema capitalista, uma revolução socialista, pelos
objetivos que se propõe, deveria ter destruído o
domínio burocrático e substituído pelo Governo das
pessoas a administração das coisas. A extinção do
Estado, o desaparecimento da economia monetária e
de mercado, a eliminação do exército profissional e a
supressão de um estrato de funcionários encarregados
exclusivamente de tarefas administrativas teriam
eliminado de uma vez por todas a burocracia.
As observações de Marx, Engels e Lenin a este
respeito são numerosas e não podem ser acusados de
ter dado pouca atenção ao problema. Todavia, no
primeiro país onde o socialismo coletivista derrubou o
capitalismo não somente não se verificou nada
daquilo que tinha sido previsto, mas, até mais, o
Estado se tornou enormemente mais forte e a
burocracia assumiu um poder absoluto. O problema é,
portanto, de saber se existe verdadeiramente algo que
possa obstacular a Burocratização, como acha também
Giles, ou se, pelo contrário, existem, possibilidades
para deter o alastrar-se do fenômeno. Para este fim é
necessário identificar os fatores que tornaram possível
este processo involutivo e evidenciar as características
que diferenciam a burocracia dos Estados coletivistas
da de outros sistemas sócio-econômí-cos. A respeito
deste último ponto se deve observar que a burocracia
nos Estados coletivistas, embora dependa das novas
bases econômicas e sociais da sociedade, distorce e
impede o desenvolvimento das forças produtivas;
além disso, ela, contrariamente a quanto acontece nos
países capitalistas, atingiu uma autonomia tal que a
tornou
132
BUROCRATIZAÇÀO
livre do controle da classe que fez a revolução, o
proletariado.
Quanto aos fatores de Burocratização, inevitáveis
na fase de transição, é preciso lembrar as
sobrevivências capitalistas e o insuficiente nível de
desenvolvimento das forças produtivas: logo após a
vitória da revolução socialista, o novo modo de
produção se encontra em contraste com o sistema de
distribuição que continua sendo burguês. Com base na
doutrina marxista, isto se explica pelo fato de que o
sistema de produção socialista precisa, para a sua
plena realização, de um grande desenvolvimento das
forças produtivas; somente graças à abundância será,
de fato, possível eliminar aquelas diferenças e
desigualdades que constituem a base das tendências à
Burocratização. Até o nível de desenvolvimento
atingido atualmente pelas forças produtivas nos países
capitalistas mais avançados seria insuficiente para
permitir a superação imediata de toda disparidade
social; com maior razão, portanto, podemos entender
os obstáculos relativos a este problema encontrados
pelos países que derrubaram, até agora, o capitalismo,
países, que como é sabido, têm todos uma base
econômica pouco desenvolvida.
Além disso, contrariamente a quanto sustentavam
os clássicos do marxismo, a primeira revolução
socialista ficou por muito tempo isolada, isto é, não
foi logo seguida por revoluções vitoriosas em outros
países, e isto impediu que as lutas sociais se
atenuassem: antes, a ameaça de intervenções militares
externas fez com que uma parte importante da renda
nacional fosse destinada (quer na URSS quer em
outros Estados de economia coletivista) aos
armamentos e à manutenção de um exército
permanente, que constitui um importante fator de
Burocratização.
No caso da União Soviética tiveram também um
papel fundamental muitos outros fatores, quer
subjetivos quer objetivos. Um elemento decisivo foi,
sem dúvida, a crescente passividade política do
proletariado devido a várias razões históricas: de um
lado, a guerra civil tinha destruído fisicamente grande,
parte da vanguarda revolucionária; de outro lado, as
condições de pobreza extrema em que o povo russo
veio a se encontrar fizeram com que esse povo se
preocupasse, antes de tudo e quase exclusivamente,
para resolver os problemas de cada dia. Acrescente-se
a isto que a revolução em outros países tinha
fracassado, o que contribui para criar desânimo e
desilusão.
A interação entre todos estes fatores e as lutas entre
facções internas ao partido bolchevique explica por
que o processo degenerativo não encontrou grandes
obstáculos. O aparelho do partido tinha-se integrado
cada vez mais com o Estado
(cuja burocracia havia sido notavelmente reforçada),
até identificar-se amplamente com ele, com a
conseqüência de que uma luta contra a involu-ção em
curso teria atuado contra seus próprios interesses.
IV.CONSEQÜÊNCIAS DA BUROCRATIZAÇÃO
A BUROCRACIA UMA CASTA OU UMA CLASSE
SOCIAL?
— Dentro da perspectiva aqui adotada, a análise de
Milovan Djilas sobre a formação nos Estados
operários de uma verdadeira e autêntica "nova classe"
há de ser corrigida e entendida no sentido do
aparecimento de uma "casta" que, como tal, não tem a
propriedade dos meios de produção. Por conseguinte,
a substituição deste estrato social ou a sua derrocada
serão a conseqüência de uma revolução política, não
de uma revolução social.
Não se trata evidentemente de uma questão
terminológica, mas de um problema político
fundamental. A revolução antiburocrática é definida
como revolução política, porque a estrutura econômica
continuaria
fundamentalmente
inalterada;
permaneceriam, com efeito, tanto a supressão da
propriedade privada, a planificação central e o
monopólio do comércio externo, como a forma
específica de apropriação da superprodução social. O
que mudaria radicalmente seria o funcionamento do
sistema, não a sua estrutura econômica. Se, ao invés,
se julgar que a burocracia é uma nova "classe
dominante", esta seria expressão de um modo de
produção cuja "transformação" deixaria intacta a
estrutura econômica de base. E não só isso: teríamos
sempre, pela primeira vez na história, uma "classe
dominante" que não existiria como classe antes de
chegar ao poder. Na realidade, estudiosos que se
ocupam do marxismo como Sweezy pensam que a
"nova classe desfrutadora" nasce das condições
criadas pela própria revolução. Resta, porém, o fato de
que as convulsões sociais podem modificar as relações
de produção, mas não criá-las do nada. Além disso, a
tese da burocracia como classe dominante leva a
outros dois paradoxos: encontrar-nos-íamos, coisa
jamais verificada antes, diante de um comportamento
geral e de uma busca dos interesses privados por parte
da classe dominante que contrastariam com as
tendências e com a lógica interna do sistema sócioeconômico existente.
Isto o demonstra a impossibilidade, observável na
União Soviética, de conciliar as exigências da
planificação e do máximo desenvolvimento
econômico com os interesses materiais específicos da
burocracia. Além disso, fato também até hoje nunca
visto, estaríamos em face de uma classe dominante
que não é capaz de se reproduzir mediante o
funcionamento do sistema sócio-econômico, tal qual
ele é. Com efeito, nos Estados
BUROCRATIZAÇÀO
coletivistas, as posições de poder e de privilégio estão
essencialmente ligadas a funções particulares e
dependera de decisões políticas, não de um papel
específico no processo social de produção. Existem
indubitavelmente elementos que impelem no sentido
do surgimento potencial de uma classe dominante;
mas, por um lado, tais elementos não são na realidade
senão tendências que, para operar um salto de
qualidade, teriam de encontrar-se com obstáculos de
modo algum indiferentes, e, por outro lado, essa
classe dominante não seria uma "nova classe", mas a
antiga classe capitalista, fundada na propriedade
privada dos meios de produção.
A teoria da burocracia como nova classe desfrutadora só pode, pois, ser coerentemente sustentada,
se se confirmar que alguns segmentos da classe
operária (a burocracia e a aristocracia operárias) e da
inteligentzia (a pequena burguesia e os funcionários
estatais de grau mais elevado) eram potencialmente
uma nova classe dominante mesmo antes de tomar o
poder, isto é, antes da "revolução". Como é óbvio,
uma hipótese deste tipo implica inevitavelmente a
modificação radical da análise histórica até hoje
adotada, nada menos que a revisão completa de um
certo modo de ver toda a história do nosso século. Em
abstrato, a "nova classe" poderia ser certamente
progressista em comparação com a classe capitalista,
ou seja, ter com a burguesia uma relação semelhante à
que. esta teve em outros tempos com a aristocracia
"semifeudal durante a revolução burguesa. Mas quais
seriam, nesse caso, o papel, a função e as
incumbências da classe operária? É claro que até a
própria idéia de revolução socialista e de conquista do
poder pela classe operária haveria de ser totalmente
revista; se deveria admitir que ao capitalismo se
seguirá historicamente, não o socialismo, isto é, uma
sociedade sem classes, mas uma sociedade ainda
dividida em classes, se bem que progressista era
relação ao capitalismo. As revoluções historicamente
verificadas até hoje não seriam mais revoluções
proletárias,
burocraticamente
degeneradas
ou
deformadas, mas "revoluções burocráticas". Por outras
palavras, tudo isso significaria que uma sociedade
pós-capitalista, mas não socialista, teria possibilidades
de fazer com que as forças produtivas levassem a
efeito um desenvolvimento prodigioso e, em última
análise, de tornar livre toda a humanidade.
As implicações lógicas e dialéticas deste raciocínio
são evidentes. Se adotarmos o quadro con-ceptual do
marxismo clássico, as classes, mesmo as dominantes,
serão inevitáveis, pelo menos no que se refere a uma
parte da sua existência histórica. Quer dizer, são
instrumentos indispensáveis
133
da organização social. Se se considera, por isso, a
burocracia da URSS como uma nova classe
dominante, progressista se comparada com a
burguesia, isso significa que desempenhou, pelo
menos temporariamente, um papel indispensável e
inovador na sociedade soviética. Por outros termos,
ela foi "historicamente necessária". A tal conclusão
chegaram, por caminhos diversos, teóricos de
tendências muito diferentes entre si. Contamos, a
propósito, com os exemplos opostos de M.
Schachtman e de J. Burnham, por um lado, e de J.
Kuron e K. Modzelewski, por outro. Estes últimos
introdu-zem em sua análise uma diferença qualitativa
entre burocracia política central e tecnocracia,
consideradas como classes distintas; atribuem, além
disso, à burocracia um fim de classe, a "produção pela
produção", e tendem a analisar o fenômeno
burocrático sob uma óptica predominantemente
nacional, deixando em segundo plano o papel
internacional da burocracia. Não obstante, sua
definição de burocracia como classe se insere no
quadro de uma análise marxista, o que torna as
diferenças em relação aos estudiosos marxistas
"clássicos" mais terminológicas que substanciais. Algo
semelhante se pode dizer da análise levada a termo
recentemente pelo estudioso alemão oriental R. Bahro,
no seu livro A alternativa. Nele, em prol da verdade,
Bahro rejeita a tese da "nova classe", mas afirma que
"a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia não
podia levar a qualquer outra estrutura social
determinada senão àquela hoje existente". Em outras
palavras, a acumulação socialista primitiva não podia
ser realizada, segundo o autor, senão graças à
burocracia, que impunha às massas a coerção do
trabalho para a industrialização do país. Deste modo, a
burocracia
é
considerada
inevitável
e,
conseqüentemente, progressista. Só se torna
reacionária, quando a necessidade de uma
"industrialização intensiva" substitui a possibilidade
da industrialização "extensiva". Por seu lado, os
marxistas clássicos rejeitam esta explicação
objetivista, por considerá-la fatalista, e entendem que
o fenômeno deve ser explicado com base na dialética
dos fatores objetivos e subjetivos, acentuando a
relativa autonomia destes. Por outros termos, no caso
da União Soviética, pensam que uma reação,
politicamente corrigida, da vanguarda do proletariado
poderia ter determinado uma mudança no quadro tanto
internacional como nacional das forças sociais e
políticas, evitando a tomada do poder pela burocracia.
Esta, havendo nascido de uma contra-revolução
política vitoriosa, como a do Termidor no tempo da
Revolução Francesa, se foi progressivamente
consolidando como estrato social autônomo. Esta
autonomia é, todavia, limitada pelo modo de
produção, do qual provém e no qual
134
BUROCRATIZAÇÀO
se insere a burocracia. Por isso, por um lado, a
burocracia tem interesse em manter o sistema de
produção que torna possíveis os seus privilégios e a
sua própria existência e, por outro, para manter seu
poder, ela deve impedir a politização do proletariado e
a expansão da revolução internacional. Daí a busca de
um modus vivendi com o sistema capitalista e a
vontade de manter a todo o custo o status quo.
Contudo, seria errado considerar o comportamento da
burocracia
como
algo
unívoco,
mecânico,
exclusivamente determinado pelos seus interesses de
estrato social privilegiado. Muitas tomadas de posição
lhe são, com efeito, ditadas pelas condições históricas
objetivas; é necessário entender que, devido à sua
natureza social, ela é obrigada a comportar-se de
maneira contraditória, a passar até de um extremo ao
outro. Só assim se compreendem as reviravoltas da
política de Stalin e dos seus sucessores.
V. O PROCESSO DE BUROCRATIZAÇÀO NAS
ATUAIS
SOCIEDADES
DE
TRANSIÇÃO.
ALGUNS PROBLEMAS NÃO SOLUCIONADOS.
— Da experiência histórica recente é fácil deduzir que
as indicações acima apresentadas não são meras
petições de princípio, mas medidas concretas que têm
de ser inevitavelmente aplicadas, se se quiser
combater eficazmente a Burocratização.
Há acontecimentos que parecem contradizer na
aparência as análises dos teóricos marxistas sobre a
Burocratização,
mas,
na
realidade,
tais
acontecimentos só podem ser compreendidos e
explicados com a metodologia de interpretação
marxista da realidade histórica e social. Dito por
outras palavras, a experiência demonstra que a falta de
uma real democracia socialista é causa e efeito da
Burocratização e que a esta só se pode pôr remédio, se
se introduzirem medidas como as indicadas no
parágrafo precedente.
Mas vejamos agora o fenômeno da Burocratização
tal como o analisou Trotski há mais de quarenta anos
e tal como se manifesta hoje, na realidade atual dos
Estados operários contemporâneos. Nos seus escritos
da década de 30, o revolucionário russo pôs em
evidência o caráter historicamente excepcional do
fenômeno de dege-neração burocrática do Estado
operário soviético, fazendo ressaltar os fatores que o
determinaram. Esforçou-se por definir a tipologia de
uma sociedade de transição burocratizada, mas
insistindo na precariedade da dominação da casta
burocrática: num prazo relativamente breve, se daria a
restauração do capitalismo ou se restabeleceria a
democracia socialista por meio de uma revolução
política das massas operárias e rurais.
Há quase meio séíulo de distância, constatamos
não só que a burocracia pôde manter seu
poder por um período muito mais longo do que o
imaginado por Trotski, mas também até que se
impuseram novos regimes burocráticos em diversos
países.
Na verdade, os problemas apresentados por Trotski
nos seus escritos não concernem a um "período
temporal", mas às tendências fundamentais de_
desenvolvimento do mundo contemporâneo. E,
atualmente, o problema das tendências fundamentais
do nosso século é e continuará sendo o mesmo que
esse autor apresentou há quarenta anos, mesmo que as
suas previsões temporais se tenham revelado erradas.
Resta, todavia, o fato de que, embora em medida
qualitativamente diversa, ocorreram. processos de
Burocratização em todos os países que derrubaram o
capitalismo. Tais processos assumiram formas
diferentes das que caracterizaram a URSS. Os Estados
operários do Leste europeu, por exemplo, surgiram
em conseqüência de um fenômeno de assimilação
estrutural, depois que a presença do Exército
Vermelho, dentro dos acordos de Yalta, fizera
praticamente possível a destruição das antigas classes
dominantes. Não existindo grandes movimentos de
massa, os novos regimes estavam destinados, desde
início, a sofrer uma profunda deformação burocrática,
em virtude do predomínio de uma direção imposta
desde fora e escassamente independente da direção da
URSS.
A Iugoslávia e a China constituem variantes
significativas: em ambos os países se instaurou um
Estado operário por via revolucionária. Na Iugoslávia,
o processo de Burocratização foi resultado de uma
combinação de elementos análogos aos existentes na
URSS dos anos 20 com os condicionamentos sofridos
pelo grupo dirigente no período stalinlsta e nos
primeiros anos de vida do novo Estado. Na China, não
obstante a especificidade das condições em que se
desenvolveu o processo revolucionário e a sua ampla
autonomia, deu-se igualmente, desde o princípio, uma
deformação
burocrática
que
trouxe
como
conseqüência a expropriação política das massas e a
cristalização de um estrato socialmente privilegiado.
Isto vem demonstrar a não acidentalidade das
tendências que os estudiosos marxistas descobriram
no fenômeno burocrático. Como ficou indicado, este
fenômeno se generalizou indubitavelmente. A
explicação é dupla: de um lado, os países onde o
capitalismo foi derrubado, salvo, em parte, a
Tchecoslováquia e a Alemanha Oriental, partiram de
condições de atraso análogas às da URSS (ou até mais
graves), com um peso específico da classe operária
muito limitado e um nível técnico-cultural totalmente
insuficiente; do outro, embora os novos Estados
operários não se achassem isolados dentro de um
mundo
BUROCRATIZAÇAO
capitalista, nenhuma revolução, contudo, havia saído
vitoriosa num país industrialmente avançado.
Objetivamente isto foi favorável à casta burocrática
da URSS, que pôde continuar a exercer, se bem que
de formas diversas, sua dominação.
Isto pode ajudar a compreender por que é que, na
própria União Soviética, a burocracia não desapareceu
totalmente, não obstante haverem perdido valor os
fatores que foram a origem da Burocratização. Os que
haviam aventado a hipótese de uma possível reforma
ou auto-reforma da burocracia, num contexto político,
econômico e cultural novo, tanto interno como
internacional, foram desmentidos pelos fatos. Na
realidade, tais autores, incluído Deutscher, possuíam
uma concepção mecanicista do problema. Supunham,
com efeito, que o fenômeno burocrático pudesse ser
superado em virtude de uma lógica interna de
deterioração, logo que deixassem de agir os fatores
que o originaram. Pelo contrário, quando uma
realidade se cristaliza a todos os níveis, em ampla
escala e ao longo de uma curva temporária completa,
adquire uma autonomia própria. Por isso, é
impensável que um estrato social dominante, uma vez
mudado o contexto social em que lograra impor-se,
reconheça já não ter qualquer função histórica
(suposto que alguma vez a haja tido) e se-retire. A
tendência será antes a de defender por todos os meios
suas posições de hegemonia política e de privilégio
econômico e social.
Isto não impede, como é natural, que no seio das
castas burocráticas no poder se manifestem diferenças
e conflitos mesmo profundos. Isso depende, em última
análise, do fato de que, nos Estados operários até hoje
surgidos, se juntaram e se juntam contradições típicas
das sociedades em transição entre o capitalismo e o
socialismo,
e
contradições
causadas
pela
Burocratização. Impossibilitadas de modificar as
primeiras, as castas dominantes de cada um dos países
se viram obrigadas a agir sobre as segundas, buscando
soluções parciais ou paliativos em revisões setoriais e
provisórias. Temos assim acentuações variáveis das
opções econômicas e político-administrativas, com
oscilações entre a afirmação ou reafirmação do
centralismo e o reconhecimento da necessidade de
uma descentralização mais ou menos marcante; desta
maneira, os apelos ao controle do mercado contra os
excessos de uma gestão hipercen-tralizada se alternam
com novos e rigorosos controles administrativos para
contrastar as tendências centrífugas que quase
inevitavelmente se desenvolvem. Esta alternância
pode continuar indefinidamente, uma vez que é, por
assim dizer, vital para a normalização de um sistema
burocratizado.
135
Se tudo isto é conseqüência da falta de uma real
democracia socialista, fenômenos que estariam
também presentes numa sociedade não buro-cratizada
assumem, no quadro de um processo involutivo,
aspectos de extrema gravidade. Tomemos o exemplo
do partido único. Num Estado operário existe, em
geral, a necessidade de assegurar uma unidade política
capaz de contrariar as inevitáveis tendências
centrífugas, estimuladas pela presença de resíduos da
velha sociedade, pela permanência por longo período
de duas classes diversas (operários e camponeses) e de
estratos sociais menores, por eventuais pressões
internacionais e pelas próprias contradições típicas de
uma sociedade de transição. Esta unidade, num
processo "normal", há de ser o resultado de uma
dialética múltipla e articulada, cujo coroamento está
nos órgãos centrais de uma democracia socialista
institucionalizada (enquanto que é ao partido de
vanguarda que cabe a função da iniciativa política e da
tomada de consciência teórica, subordinada, em todo
caso, à soberania das instituições democráticorevolucionárias, expressão de toda a sociedade).
Faltando tais estruturas e mecanismos, é o partido,
aliás totalmente integrado no aparelho estatal, que
deve fazer de elemento unificador, de cimento das
estruturas tanto econômicas como políticas,
subordinando a si quaisquer outras instâncias. O
caráter monolítico do partido é uma imposição da
própria lógica. Se, com efeito, existisse no partido
uma vida democrática efetiva, as diferenças e
contradições da sociedade acabariam por manifestarse em seu seio como um perigo para a dominação
burocrática, inerente a toda a forma de democracia
socialista. É justamente por isso que a casta dominante
não pode aceitar uma dialética democrática, nem
mesmo no partido. Daí resulta uma grave alienação
política das massas e o aprofundamento da
contradição entre estas e aqueles que dirigem
efetivamente o Estado e a economia. Nos períodos de
normalidade, tal contradição se traduz em
manifestações de apatia, como esterilização do
potencial criativo dos produtores; nos momentos de
crise, explode em conflitos abertos pela distribuição
da renda e pelo poder de decisão econômica e política.
Em outros termos, enquanto numa sociedade de
transição não burocratizada o fator subjetivo,
constituído pela direção consciente ou autodireção,
atua como fator essencial de superação das
contradições herdadas da velha sociedade e das que
são próprias da nova, numa sociedade burocratizada
esse fator é lacerado, por sua vez, por contradições e
atua contraditoriamente. Se, de um lado, a burocracia
surgiu e pode exercer a sua hegemonia no quadro de
uma economia coletivista, do outro, os burocratas,
individualmente ou por setores, tendem a
136
BUROCRATIZAÇAO
consolidar e a aumentar os seus privilégios em formas
que envolvem em sua dinâmica uma restauração do
capitalismo. A burocracia como tal deve, porém,
combater toda a tendência restau-racionista por minar
as bases estruturais da sua dominação, assim como
tem de combater eventuais tendências que levem
algum dos seus setores a declarar-se favorável às
massas, principalmente em períodos de crise, pois isso
poria em risco a sua hegemonia política. Estas
contradições produzem lacerações profundas na casta
dominante, debilitando-a diante dos adversários e,
sobretudo, marcando-lhe o destino. Um destino que,
no entanto, não poderá ser determinado senão por uma
ação consciente do conjunto dos produtores e não
certamente por fenômenos de progressiva deterioração
ou até de auto-eliminação.
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[FABRIZIO BENCINI]
Camadas, sociedade por. — V. Sociedade por
Categorias.
Cameralismo.
I.
SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO
— Falar de Cameralismo é enfrentar
diretamente um aspecto importante da realidade
política germânica do século XVIII. Com esse termo
nos referimos aqui geralmente a um intrincado
conjunto
de
interações
entre
determinados
comportamentos político-institucionais, relativos ao
período central da formação do moderno Estado
alemão (v. ESTADO DE POLÍCIA), e, de igual modo, a
certas formas de especulação política, elaboradas
assaz freqüentemente com propósitos imediatamente
efetivos e sempre em resposta aos problemas reais que
a nova ordem constitucional e social estava gerando.
Dessa premissa deriva uma conseqüência imediata,
que convém precisar mediante correta definição do
debate historiográfico que até o presente se tem
desenrolado. A relação do pensamento cameralista
com premissas e condições constitucionais bem
definidas obriga, de fato, a restringir a investigação a
uma curva cronológica delimitada e a contornos
territoriais
igualmente
determinados
(aqueles
exatamente em que tais condições ocorreram de fato).
Isto permite atribuir ao Cameralismo um significado
técnico, válido e definitivo, sem diluí-lo numa
acepção, que, por ser demasiado compreensiva,
acabasse por privá-lo das suas verdadeiras
peculiaridades e do seu valor como instrumento de
compreensão histórica.
Essa acepção mais ampla em que o Cameralismo
tem sido amiúde tomada se poideria definir
sinteticamente como "concepção administrativa" do
Estado, desenvolvida na Alemanha (de modo
correspondente, mas autônomo, em relação aos
demais países da Europa), entre os fins do século XVI
e os do século XVIII. Esta, por sua vez, tem sido
alternativamente estudada sob dois pontos de vista
diversos, ambos justificados em si.
TERMO.
porém unilaterais e, por isso, incapazes de oferecer
uma explicação cabal do fenômeno que estudamos.
Trata-se, em primeiro lugar, da tentativa de encontrar
os fundadores do moderno pensamento econômico
entre os autores políticos que, por primeira vez,
encararam os problemas do Estado em termos
financeiros
e,
conseqüentemente,
políticoeconômicos, quer se ocupassem da imposição de
tributos, quer revelassem, ao contrário, a tese do
desenvolvimento das relações comerciais. Trata-se,
em segundo lugar, da tendência de descobrir as
origens da ciência da administração nas primeiras
recomendações
referentes
aos
dispositivos
burocráticos, feitas aos príncipes territoriais da
Alemanha por expertos na arte de governar, mais
práticos do que teóricos, já em fins do século XVI e,
depois, no decorrer dos séculos XVII e XVIII.
Üteis no âmbito, quer da história do pensamento
econômico, quer na do pensamento administrativo,
tais perspectivas são, no entanto, desen-caminhadoras
para quem queira considerar o Cameralismo como
fenômeno histórico completo. Para isso é
indispensável que ele ache a justificação em si mesmo
e não na mera referência à história sucessiva de outras
disciplinas.
As características típicas do Cameralismo podem
substancialmente resumir-se numa só, da qual
dependem todas as outras; globalidade na abordagem
dos diversos temas da experiência política, dos quaís
se tenta uma reconstrução teórica unitária, em
consonância não casual com a coerência e unidade da
forma de Estado que se impôs em alguns territórios da
Alemanha: o Estado de polícia. Elementos da ciência
da administração, bem como da economia, da ciência
das finanças, da técnica agrária ou manufatureíra
concorrem juntamente, em sua unidade, para
constituir o núcleo do pensamento cameralista, no
qual não são simples soma ou achega, mas fusão
articulada que lhe apoia a pretensão a transformar-se
em nova ciência do Estado.
II. CONSEQÜENTE DELIMITAÇÃO, DE DATAS E DE
CONTEÚDO, DO CAMERALISMO. — À exigência desta
compreensão teórica global — que não
138
CAMERALISMO
corresponde fortuitamente, é bom repeti-lo, à
globalidade da experiência constitucional do Estado
de polícia — não respondem decerto as obras de todos
os autores que, do fim do século XVI até o fim do
século XVIII, acompanharam a ação do príncipe em
sua tentativa de tornar-se o fulcro da nova ordem
política do Estado territorial unitário e centralizado.
Melchior von Osse, Reinking, Conring e o próprio
Seckendorff revelam-se como lúcidos precursores de
uma realidade em movimento, mas a sua posição é
bastante ambígua: não é casualmente que eles falam
em geral ao príncipe, de quem são ou aspiram a ser
eminentes conselheiros; a eles se dirigem para o
persuadir, mas num contexto que evoca, ainda, mais a
"arte do Governo" que a "ciência do Estado". As obras
do primeiro e do último desses autores, como dos
restantes (o Politisches Testament de Melchior von
Osse e o Fürsten-Staat de Veit Ludwig von
Seckendorff), refletem, no conteúdo como no título, o
velho propósito dos "espelhos dos príncipes" da tardia
Idade Média e do começo da Idade Moderna,
revelando a fase de formação do Estado territorial.
Eles concentram a sua atenção na figura do príncipe,
apresen-tando-lhe propostas inovadoras no campo
financeiro e administrativo, não como resultado de um
estudo e de uma reconstrução sistemática da realidade
política, mas como avisos.
Embora, portanto, estes autores estivessem
freqüentemente a serviço de príncipes seriamente
empenhados na construção do Estado moderno, e seus
interesses e intervenções tendessem a estimular e a
apoiar a centralização estatal, não diversa da que será
peculiar ao pensamento came-ralista, eles não podem,
contudo, ser considerados propriamente como_
cameralistas. A realidade política que vivem e
consideram é ainda a realidade fragmentária do Estado
de castas ou patrimonial, e não a realidade integrada,
compacta, do Estado total (Gesamtstaat), absolutista,
moderno; a reconstrução que fazem dessa realidade é
ainda ocasional, esmiuçada, não sistemática e,
sobretudo, não cientemente concorde com um critério
de explicação unitária dos fatos concernentes ao
Estado e à política. Segundo o rápido esquema acima
esboçado, eles se situam à margem do Cameralismo,
porque antecedem o espaço cronológico em que este
pôde subsistir, como reflexo da fase políticoconstitucional do Estado de polícia alemão.
Há outros autores ligados à origem do Cameralismo
que, ao invés, ficaram na memória como seus
máximos expoentes: os grandes economistas
austríacos, no auge entre os séculos XVII e XVIII,
Becher, Hõrnigk e Schróder. Para estes não existe o
problema do espaço cronológico; nessa
época a Prússia se organiza como Gesamtstaat, sob a
guia do Grande Eleitor e de Frederico Guilherme; é a
Prússia precisamente que constitui amiúde o alvo de
algumas das suas críticas mais agudas. Nem mesmo
falta neles uma clara distinção dos interesses
modernos,
se
bem
que
centralizados
predominantemente em temas econômicos, nem a
sabedoria e capacidade de os tratar unitária e
sistematicamente. Carecem, no entanto, de ligação
com a praxe constitucional do Estado centralizado e
global. Seu ponto de referência é a Áustria, então num
dos momentos de maior debilitamento da sua história
moderna, já totalmente despida de toda a competência
ou mesmo pretensão imperial, mas ainda não ajustada
internamente como Estado territorial e, por isso,
incapaz de oferecer o indispensável apoio a uma
política econômica de qualquer tipo e muito menos a
uma do tipo mercantilista (de intervenção constante,
interna e externamente), como a defendida por esses
autores. Eles teorizaram de forma admirável,
raramente igualada pela produção mercantilista de
outros países, salvo talvez a Itália, os princípios da
doutrina econômica vulgarizados naquele tempo, mas
não puderam ou souberam transformar as suas teorias
em especulação "política", incapazes como foram de
as aplicar a uma realidade política adequada.
Foram, por isso, mais mercantilistas do que
cameralistas, isto é, deixaram-se prender mais pelo
aspecto econômico-financeiro do fenômeno político
do que pela sua globalidade; mas, acima de tudo,
foram mercantilistas "imperiais", numa época em que
o Império já não existia ou, no mínimo, não estava em
condições de desenvolver as convenientes tarefas de
propulsão e controle da política econômica da Áustria,
por sua vez ainda não inteiramente ajustada como
Estado territorial.
III. O CAMERALISMO E O GESAMTSTAAT
PRUSSIANO DA PRIMEIRA METADE DO
SÉCULO XVIII. — Entretanto, na Prússia, estava em
andamento um rápido processo de racionalização do
Estado. Após a luta vitoriosa do Grande Eleitor contra
as castas territoriais, e graças à criação de um exército
estável, à gestão direta de uma parte considerável dos
tributos, principalmente indiretos, e à incipiente
organização de uma burocracia profissional e
centralizada (oriunda precisamente de dois setores
diretamente dependentes do príncipe, o exército e os
impostos indiretos), o segundo grande Hohenzollem, o
rei Frederico Guilherme I, estava prestes a dar outro
passo, o da fusão das diversas atividades do Estado
numa estrutura unitária encabeçada por um órgão
central (o General-Direktorium, instituído em 1723),
e, em
CAMERALISMO
última instância, pelo próprio príncipe que guiava e
orientava externamente as decisões do Direktorium
(sistema de Governo denominado Regierung aus dem
Kabinett). A situação constitucional permitia pois que,
à volta da figura do príncipe, se fosse cristalizando
uma estrutura institucional unitária e centralizada, dele
dependente, mas potencialmente dotada de dinamismo
e justificação próprios. Desta maneira, ao interesse
privado do príncipe (também entendido em seu
aspecto público, político-religioso, de monarca,
daquele que governa) se vinha contrapondo e
substituindo um interesse mais amplo, mas também
mais genérico, mais indiscriminado, mas também
mais necessitado de justificação objetiva e
sistemática: o do aparelho institucional do Estado.
Além disso, as diversas atividades do Governo, que
apoiavam tradicionalmente sua unidade na pessoa do
príncipe autocrático, tendiam agora a uma coerência
mais explícita e direta, mais representativa da
participação comum, mais articulada e unitária, a um
plano sistemático e previsível da vida do Estado.
A esta transformação da realidade política e social
corresponde, a nível do pensamento, mas também, em
parte, da prática, a experiência came-ralista que, da
própria ambigüidade das situações em que se origina,
tira as inevitáveis incertezas e contradições (entre
velho e novo) que a caracterizam. Deste modo, já não
bastava o estudo setorial do problema financeiro que,
ligado à pessoa do príncipe, se reduzia
inevitavelmente a mero fiscalismo (da juristische
Steuerliteratur e da Akzisenstreit do século XVII); já
não bastava o interesse relevante pela administração e
a genérica procura de bons funcionários e de boas
práticas burocráticas (como em Seckendorff); já não
bastava a simples aceitação das teorias mercanti-listas,
desvinculadas de uma clara opção no campo político
(como nos mercantilistas austrc-impe-riais). Tudo isso
continuava a ser importante, mais ainda, adquiria cada
vez maior valor, mas numa visão unitária em que se
buscava ligar entre si as diversas peças do mosaico,
tornando-as reciprocamente funcionais dentro do
plano unitário da vida do Estado em que se inspirava a
prática constitucional do momento.
O Cameralismo foi a resposta: uma resposta que se
deu dentro de certos limites cronológicos e com as
necessárias aplicações práticas. Uma resposta decerto
insuficiente sob muitos aspectos, contraditória, mas
autêntica e, sobretudo, funcional. Uma resposta que
facilitou, na Alemanha, a transição da arte de governar
às modernas ciências do Estado.
O termo Cameralismo está ligado evidentemente a
uma instituição característica do Estado
139
patrimonial e do período de luta do príncipe centra as
forças intermediárias e locais na fase principal do
Estado de castas: a "Câmara", órgão privado do
Governo, pelo qual o príncipe, coadjuvado por homens
experientes que lhe eram subordinados e fiéis,
administrava os próprios negócios. Mais diretamente,
porém, o Cameralismo reflete um momento
subseqüente, aquele em que a expansão das atribuições
e dos poderes do príncipe, pouco a pouco vencedor da
resistência das castas, conduz à oposição, dentro da
atividade do Estado, entre os negócios "camarários" e
os "tributários". Estes indicavam a preeminência —
mormente no campo financeiro, mas também no
administrativo — da posição do príncipe em ordem à
construção do Gesamtstaat; aqueles acentuavam a
persistência de uma estrutura descentralizada e
articulada do poder, baseada na participação das castas
territoriais nos principais negócios do Governo, e a
prevalência da antiga sociedade de castas sobre o
Estado centralizado e institucional moderno. Em
realidade, estes não são senão os termos basilares do
conflito constitucional ocorrido nos principais Estados
territoriais alemães entre os séculos XVII e XVIII. O
fato de que na Prússia tal conflito se tenha resolvido a
favor da solução cameralista nos moldes acima
sucintamente descritos constitui a explicação mais
simples de que o Cameralismo tenha tido, ali,
propriamente sua origem, mesmo no meio da ação
centralizadora e racionalizante da máquina do Estado
prussiano, levada a cabo por Frederico Guilherme I.
Há de resto uma data que deve ser considerada
como a data do nascimento do Cameralismo
propriamente dito: 1727, ano em que o rei da Prússia
instituiu, nas duas universidades de Halle e Frankfurt
junto ao Oder, as primeiras cátedras de "ciências
cameralísticas".
Isto permite descobrir uma das características
peculiares do fenômeno que estudamos, a sua
oficialidade, que se revela na relação de dependência
institucional (através do ensino universitário
específico), em face do Estado, de que era expressão
histórica. É assim que, após a definição exata de
Cameralismo e sua distinção dos movimentos que o
precederam (preparação) ou o seguiram (dissolução),
ele há de ser chamado com propriedade "Cameralismo
acadêmico".
Os próprios motivos da iniciativa do rei da Prússia
revelam mais uma vez a real importância
"institucional" do Cameralismo desde a sua origem. O
ensino específico das ciências "cameralísticas,
econômicas e de polícia" era, com efeito, visto como
instrumento indispensável à formação de funcionários
competentes, modernos e preparados, "echten
Kameralisten", que correspondes-
14Ü
CAMERALISMO
sem dignamente às exigências do novo Estado,
substituindo os já superados juristas. Como se vê, a
ligação estabelecida desde o início entre o
Cameralismo e a forma histórica do Estado de polícia
da Prússia não carece de razões, nem no plano das
justificações teóricas e da história do pensamento,
nem no das aplicações práticas e da história
constitucional.
Mas em que é que se concretizou de fato a
experiência cameralista? Substancialmente na
resposta teórica, de fundo político, às instâncias
concretas que a mesma experiência havia formulado.
Da obra dos primeiros professores de Halle e
Frankfurt, Gasser e Dithmar, à do último expoente do
"Cameralismo acadêmico", Zincke, apenas trinta anos
mais tarde, se assiste, de fato, a um rapidíssimo
processo de sistematização e organização conceituai
da complexa e retalhada matéria cameralista. O
motivo condutor de tal processo não foi tanto a
introdução de novas temáticas, a proposta de soluções
originais, a abertura de novos campos de pesquisa,
quanto a adoção de uma perspectiva até então ainda
não explorada: a que visava à unificação das diversas
ramificações "técnicas" do pensamento político
moderno (economia, ciência da administração, ciência
financeira, tecnologia produtiva, etc.) num corpo
integrado e dotado de uma significação própria. Com
isso se pretendia dar uma explicação "mecânica", a
partir de dentro, do funcionamento da coisa pública,
tomada esta na sua dimensão histórica, concreta, de
Estado de polícia, centralizado e unitário, cada vez
mais institucionalizado e superior à figura do
soberano, tal qual se efetivou na Prússia, na primeira
metade do século XVIII.
Não foi por acaso que, dos diversos ramos que
constituíam as ciências cameralistas, foi o da ciência
de polícia (Polizeiwissenschajt) que assumiu o papelchave como fulcro de todo o sistema, como síntese da
complexa transformação que o nascimento do Estado
moderno havia provocado. Apoiada nesta ciência e
mantendo um delicado equilíbrio entre a ciência das
finanças e a da economia (em sua dimensão tanto
privada como pública), a cameralística tornou-se, em
conjunto, na obra de Zincke, a verdadeira, a própria
doutrina do Estado de polícia prussiano daquela
época. Deste Estado ele nos deixou, já não a
teorização abstrata e metafísica (quer esta se
desenvolvesse em termos teocrático-escolásticos, quer
nos termos mais recentes do direito natural
racionalista), mas uma explicação das forças concretas
empiricamente
observáveis
e
teoricamente
mensuráveis: uma explicação "científica", portanto.
A história do "Cameralismo acadêmico" é assaz
breve, não porque fossem eliminadas as cátedras
de
cameralística
das
universidades
alemãs
(aumentaram até em número e perduraram até meados
do século XIX), mas porque esmoreceu o significado
peculiar da cameralística como ciência global do
Estado. Ela não pôde resistir ao esforço de
especialização a que foram sujeitas igualmente e em
primeiro lugar as diversas ramificações técnicas que
abrangia em seu âmbito; cada uma delas se foi
desenvolvendo de forma autônoma até se transformar
em ciência. À tentativa exaltada e ingênua de aprontar
uma ciência unitária do Estado, capaz de abarcar e
explicar todas as suas variadíssimas atividades,
seguiu-se a proliferação de numerosas e diferentes
ciências do Estado, cada uma das quais se limitou a
aprofundar um dos aspectos da antiga disciplina
unitária.
Por outro lado, isto corresponde, como não podia
deixar de ser, a uma certa mudança na ordem
constitucional, verificada na Prússia durante a segunda
metade do século XVIII, com o advento de Frederico,
o Grande, e, na Áustria, na mesma época, após as
reformas de Maria Teresa, que se aproveitaram da
experiência até então adquirida pelo Estado prussiano.
Esta mudança consistiu no ulterior fortalecimento do
aparelho estatal, não no sentido de uma centralização
das funções e atividades por via da necessidade
política de reprimir as resistências locais, mas no
sentido de uma descentralização dos órgãos, que são
sempre unitários, mas diversificados, e das atividades,
sempre movidas do vértice, mas conduzidas por canais
diferentes, em virtude da necessidade de tornar cada
vez mais eficiente a administração de um Estado cuja
estrutura e dimensão unitária fundamental já não eram
questionadas, nem precisavam por isso ser defendidas.
Assim, depois de separada a justiça da administração,
bem depressa se subdividiu o Ceneral-direktorium em
vários departamentos, cada um deles competente num
tipo de assunto respeitante às diversas atividades do
Estado. A necessidade de dar uma explicação unitária
e integrada do Estado global, baseada na atividade de
polícia, o verdadeiro suporte de toda a estrutura do
Estado alemão em determinada fase da sua história,
sucede a necessidade de tornar cada vez mais
exeqüíveis e funcionais as diversas atividades de um
Estado que encontrou agora noutro lugar a sua
legitimação. Ao Estado de polícia sucede o Estado de
direito. A grande codificação "iluminada", que, após a
sua morte, coroará a obra de Frederico, o Grande, é
uma confirmação disso.
Em seus limites, a história do Cameralismo é um
reflexo desta grande transformação. Adequan-do-se
ao novo curso das coisas e às novas exigências, vai
decaindo, conquanto perdure sua etiqueta nos livros e
nas cátedras universitárias. Justi,
CAPITALISMO
considerado o mais eminente cameralista alemão,
Sonnenfels, e iodos aqueles que lhes sucederam, já
não são cameralistas em sentido estrito: neles assumiu
relevo determinante o interesse monodis-ciplinar.
Concentram-se ainda de preferência na ciência de
polícia que já não é vista, no entanto, como síntese de
toda a experiência cameralista (juntamente com a
economia e còm a ciência financeira), mas como
momento privilegiado, autônomo, da complexa vida
do Estado, como momento digno de estudo, mesmo
prescindindo dos seus demais aspectos; quer ela seja
estudada como "política econômica", quer como
"ciência da administração", quer como verdadeiro e
específico "direito policial" em sentido moderno, a via
onde se entrou é agora totalmente outra. O "Cameralismo acadêmico" como pretensão exaustiva de
engenharia social acabou: podia (poderia) existir
apenas como referência a uma forma de organização
da vida pública mecânica, integrada, compacta, como
o Estado de polícia.
BIBLIOGRAFIA.
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BRÜCKNER.
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ZIELENZIGER, Die alten deutschen Kameralisien. Ein
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zum Problem des Merkantilismus, Fischer, Jena 1913.
[PIERANGELO SCHIERA]
Capitalismo.
I. O PROBLEMA DA DEFINIÇÃO. — Na cultura
corrente, ao termo Capitalismo se atribuem conotações
e conteúdos freqüentemente muito diferentes,
reconduzíveis todavia a duas grandes acepções. Uma
primeira acepção restrita de Capitalismo designa uma
forma particular, historicamente específica, de agir
econômico, ou um modo de produção em sentido
estrito, ou subsistema econômico. Esse subsistema é
considerado uma parte de um mais amplo e complexo
sistema social e político, para designar o que não se
considera significativo ou oportuno recorrer ao termo
Capitalismo. Prefere-se usar definições deduzidas
14!
do processo histórico da industrialização e da.
modernização político-social. Fala-se, exatamente, de
sociedade industrial, liberal-democrática, ou de
sociedade complexa, da qual o Capitalismo é só um
elemento, enquanto designa o subsistema econômico.
Uma segunda acepção de Capitalismo, ao invés,
atinge a sociedade no seu todo como formação social,
historicamente qualificada, de forma determinante,
pelo seu modo de produção. Capitalismo, nesta
acepção, designa portanto, uma "relação social" geral.
A própria história do conceito de Capitalismo
oscila entre estas duas acepções. Não se trata de uma
controvérsia nominalista, solúvel através de um
acordo entre os estudiosos, mas de uma questão de
identificação do mundo moderno e contemporâneo,
que envolveu e envolve a identidade e a ideologia de
vastos grupos sociais.
A distinção entre acepção restrita e extensa de
Capitalismo é aqui introduzida somente como ponto
de partida, destinado a relativizar-se no decorrer das
argumentações, que serão guiadas por uma ótica
sociológica e politológica, embora sem perder de vista
a economia.
Para começar, precisamos determinar melhor a
peculiaridade do Capitalismo como conjunto de
comportamentos individuais e coletivos, atinentes à
produção, distribuição e consumo dos bens. Embora
esta peculiaridade tenha sido e continue sendo cbjeto
de controvérsia histórica, cultural e sociológica,
podemos elencar algumas características que
distinguem o Capitalismo dos outros modos históricos
de produção. Eles são: a) propriedade privada dos
meios de produção, para cuja ativação é necessária a
presença do trabalho assalariado formalmente livre; b)
sistema de mercado, baseado na iniciativa e na
empresa privada, não necessariamente pessoal; c)
processos de racionalização dos meios e métodos
diretos e indiretos para a valorização do capital e a
exploração das oportunidades de mercado para efeito
de lucro.
Ao lado da racionalização técnico-produtiva,
administrativa e científica promovida diretamenie pelo
capital, está em ação uma racionalização na inteira
"conduta de vida" individual e coletiva. Esta
racionalização ou modernização política culmina na
formação do sistema político liberal, que
historicamente coexiste com o Capitalismo.
Não é possível estabelecer uma ordem de
prioridade entre estes elementos que caracterizam o
Capitalismo. Estes constituem uma constelação de
fatores lógica e geneticamente relacionados entre eles,
que podem gerar modelos interpreta-tivos divergentes,
de acordo com a ordem de peso e valor com que são
estruturados. Um modelo
142
CAPITALISMO
que dá valor fundamental à relação trabalho
assalariado-capital (segundo a tradição marxista) leva
a leituras e a prognoses da dinâmica capitalista muito
diferentes dos modelos construídos sobre a prioridade
dos processos de racionalização do agir (segundo a
tradição weberiana).
De qualquer forma, um ponto é certo: os elementos
acima elencados não podem ser circunscritos dentro
de um simples subsistema econômico. Nenhum deles
(nem o sistema de mercado) pode existir sem fatores
contextuais
extra-econô-micos,
sejam
estes
imputáveis a puras relações de força de poder ou a
pressupostos culturais mais profundos.
Isolar no processo capitalista um conjunto de fatos
puramente econômicos é certamente legítimo no
plano da abstração científica e da opera-cionalização
da ação econômica. Mas é uma operação redutiva, se
se considera o Capitalismo como fenômeno social,
político e histórico. De outro lado, é insuficiente
limitar-se a declarar o Capitalismo uma "relação
social", se não se determinam ulteriormente a natureza
e os termos dessa relação, mantendo a distinção
analítica entre os vários subsistemas e a recomposição
destes na unidade funcional do sistcma-sociedade.
Sem presumir compreender todos os temas do
debate sobre o Capitalismo dos últimos cem anos (até
excluindo expressamente a literatura econômica
especializada), podemos distinguir algumas grandes
fases importantes para a definição e redefinição do
Capitalismo, considerado como sistema global ou
sociedade.
A primeira fase está idealmente compreendida
entre a análise crítica de Karl Marx e os trabalhos
histórico-sociológicos da escola alemã, já considerada
clássica, de Werner Sombart, Ferdinand Tonnies,
Ernest Troeltsch e especialmente Max Weber. A
segunda fase é a prossecução e a revisão quer da
análise marxista quer das doutrinas liberais clássicas,
à luz das mudanças sofridas pelo Capitalismo entre o
fim do século XIX e o primeiro vintênio do século
XX. Lembre-se, por exemplo, Rudolf Hilferding, de
um lado, e Joseph Schumpeter, do outro, cuja
produção nos introduz no momento crucial de reflexão
crítica em coincidência com a Grande Crise dos anos
30. A atividade teórica, publicitária e política de John
Maynard Keynes e suas conseqüências práticas
absorvem a atenção científica por alguns decênios
após a Segunda Guerra Mundial. E é com a
emergência das limitações do keynesianismo que se
abre uma nova fase, articulada em torno da forma
"corporativista" do Capitalismo.
II.
O
CAPITALISMO
NA
ANÁLISE
MARXISTA. — A análise crítica do comunismo
realizada por
Karl Marx não é a primeira em ordem de tempo, mas
certamente foi, do ponto de vista histórico, a mais
eficaz. Ela tem um valor exemplar pela perspicácia
com que são enunciados os elementos constitutivos e,
ao mesmo tempo, contraditórios do Capitalismo.
Todavia essa perspicácia crítica não se traduz
imediatamente em prognose da efetiva dinâmica da
evolução do Capitalismo. Este hiato entre força da
análise crítica e incapacidade preditiva desempenhará
um papel paralisante sobre a instância política que
guia os movimentos políticos inspirados no marxismo.
A irresoluta questão da chamada "crise do
Capitalismo", que é parte integrante do marxismo
histórico, está a demonstrar, de um lado, a exatidão de
algumas análises marxistas, mas, do outro, o malentendido do significado e da direção das
transformações internas ao próprio Capitalismo.
Particularmente problemática se revelou a categoria
"contradição" — verdadeira pedra angular da
construção conceituai marxista — pela qual o êxito
mortal do Capitalismo é logicamente antecipado como
uma "necessidade natural".
Para Marx, o Capitalismo se baseia na relação entre
trabalho assalariado e capital, mais exatamente na
valorização do capital através da mais-valia
extorquida ao trabalhador. "O trabalho é a substância e
a medida imanente dos valores, mas ele mesmo não
tem valor". Ou melhor, o trabalho perde o seu valor
logo que entra no mercado das mercadorias
capitalistas, tornando-se ele mesmo mercadoria.
O Capitalismo consiste, portanto, num modo de
produção baseado na extorsão da mais-valia através do
mais-trabalho do trabalhador, que é "explorado"
porque obrigado a vender "livremente" a sua forçatrabalho a quem possui o dinheiro e os meios de
produção (o proprietário). Além disso, "o processo de
produção capitalista, considerado no seu nexo
complexivo, isto é, como processo de reprodução, não
produz somente mercadoria e mais-valia, mas produz
e reproduz a própria relação capitalista: de um lado, o
capitalista e, do outro, o operário assalariado" (assim
escreve Marx no primeiro livro de O capital). Nesta
passagem está enunciado com clareza o nexo
necessário entre as regras do mercado econômico e a
estrutura da sociedade capitalista. Nesta ótica deve ser
entendida a primazia do agir econômico a respeito das
formas e da institucionalização do agir social.
Em particular, a dimensão política da relação
capitalista está já compreendida na constrição
específica e na necessidade que caracteriza a venda da
força-trabalho por parte do trabalhador. Trata-se de
uma pressão exercida, não sobre escravos, mas sobre
homens juridicamente livres, sobre
CAPITALISMO
cidadãos. Sem as liberdades burguesas não existe
Capitalismo moderno.
A força histórica do Capitalismo moderno consiste
em proporcionar uma base de legitimação universal,
ultimamente encarnada no Estado liberal, a uma
relação de dependência econômica. O sistema
capitalista é legitimado em tdrmos de função, não de
domínio direto. O domínio através da economia
assume a forma de dependência funcional. Mas é aqui
que se aninha — para Marx
— a contradição do Capitalismo. A relação tra
balho assalariado-capital (ou seja, a lei do valor
que está na base da valorização do capital) é o
princípio revolucionário do Capitalismo, mas
também o seu destino mortal.
A historicidade do Capitalismo é um outro
componente essencial da concepção marxista. A
natureza da mercadoria do trabalho e do Capitalismo
como produção de mercadoria não é uma descoberta
de Marx. Era uma aquisição científica e crítica de seus
mestres burgueses: Smith e Ricardo. Mas estes
ignoraram o caráter histórico e, portanto, transitório
desse sistema de produção. Marx escreve: "se Ricardo
acha que a forma de mercadoria é indiferente, isto
depende da sua hipótese segundo a qual o modo
burguês de produção é absoluto, portanto, um modo
de produção sem determinação específica mais
precisa".
A intenção do materialismo histórico está na
determinação do "desenvolvimento da formação
econômica da sociedade como processo de história
natural". Em outras palavras, a instância científica da
definição marxista de Capitalismo subsiste ou cai pela
identificação de uma "lei econômica do movimento da
sociedade moderna". Sem dúvida, Marx tinha
identificado as antinomias que estão na base da
dinâmica do Capitalismo; mas atribuiu à
conceptualização deles um estrangulamento lógico
(especialmente pela forma da contradição), que não
lhes permite captar o andamento efetivo e histórico do
Capitalismo como sistema complexo e como
"civilização".
III.
O
CAPITALISMO
NA
ANÁLISE
WEBERIANA. —
O estímulo para acertar o
conceito de Capitalismo, nas ciências histórico-sociais
do início do século XX, vem do desafio do marxismo,
que se tornou doutrina oficial do movimento operário
e da "questão social", que explode, pondo em
dificuldade o mundo ideológico e político liberal.
Os autores que se distinguem no estudo sistemático
do Capitalismo são Werner Sombart e Max Weber.
Em ambos, a centralidade marxista da relação capitaltrabalho é substituída pela procura de esquemas de
comportamento individuais e coletivos, atribuíveis ao
processo histórico da
143
racionalização de todos os setores da vida, que
caracteriza o Ocidente.
É de Sombart a feliz expressão de "espírito do
Capitalismo", para designar a soma de atitudes
psicológicas e culturais que estão na origem do
Capitalismo moderno — a Gulsinnung, a orientação
ético-intelectual identificada no individualismo, no
princípio aquisitivo e, portanto, no racio-nalismo
econômico.
A contribuição de Max Weber para a definição de
Capitalismo se coloca no contexto de duas questões:
as origens do Capitalismo moderno, ou seja, os
requisitos culturais que permitem o surgimento e o
desenvolvimento do Capitalismo e a questão da
especificidade do Capitalismo ocidental moderno na
sua relação com outros modos de produção históricos
e extra-ocidentais.
Em A ética protestante e o espírito do capitalismo,
de Weber, a ética calvinista, graças à idéia de Beruf
(profissão como vocação), é vista como o fator
decisivo para a difusão de uma conduta de vida
ascético-racional, que é pressuposto para o espírito
capitalista moderno.
A conduta de vida e a coerência nas próprias
convicções e crenças são, para Weber, motivo de agir
autônomo na sua relação com o simples cálculo
econômico e com a pressão do puro poder. É assim
que, a partir do século XVI, nas áreas geográficas
visadas pela Reforma Protestante, se. instaura um nexo
preciso entre credo religioso, conduta moral de vida e
comportamento econômico, que pode ser definido
como "racional" em sentido capitalista. O núcleo
central desta união é dado pela reavaliação do trabalho
e da profissão, que são chave de vocação e sinal da
eleição divina.
A asccse intramundana atua com energia contra
qualquer forma de prazer, luxo, esbanjamento ou
exibição de riqueza, com a conseqüente redução dos
consumos e poupança de dinheiro e de bens,
disponíveis para uma acumulação
e um
reinvestimento de tipo capitalista. Uma riqueza
considerada como prêmio para uma prudente
administração dos bens recebidos de Deus é a
mentalidade que, a longo prazo, dinamizará os
mecanismos da economia capitalista.
Naturalmente — observa Weber — o Capitalismo
nesse tempo se esvaziou de qualquer motivação
religiosa: a autodisciplina ascética foi substituída pela
disciplina externa do trabalho ou do escritório e a
ganância dos bens materiais volta a ser o movente do
comportamento econômico.
O Capitalismo para Weber — e para a vasta
orientação científica por ele determinada — é a
dimensão econômica de um mais profundo e peculiar
comportamento econômico chamado racio-nalista, de
que fazem parte os difundidos
144
CAPITALISMO
processos de racionalização burocrático-administrativa e jurídica culminantes no Estado moderno
ocidental.
Se o Capitalismo é o momento econômico do
racionalismo, ele reproduz em si as próprias
características da ratio: controle e domínio dos meios
em relação ao fim, através da calculabilidade, da
generalizabilidade e da previsibilidade. O agir
capitalista é um exercício pacífico de um poder de
disposição, posto em ato racionalmente para
conseguir lucro através da exploração inteligente das
conjunturas de mercado. Se quisermos falar de
"essência do Capitalismo", ela consiste nos processos
de racionalização e otimização das oportunidades do
mercado — inclusive o mercado do trabalho livre.
A relação de trabalho assalariado e os traços
coercitivos ínsitos na organização capitalista do
trabalho (disciplina de fábrica, a inderrogável
necessidade de vender a força-trabalho) não
constituem, como tais, a essência do Capitalismo.
Esta consiste mais do que tudo na exploração racional
das regras de troca em geral — de cujas regras a troca
de força-trabalho contra salário é só um aspecto. Para
Weber, a coerção inerente à venda da força-trabalho é
um aspecto da "vontade de trabalho", que dá lugar à
lógica da troca.
O mercado é a transposição econômica da
incessante luta entre os homens. A economia racional
é orientada pelos preços monetários, que por sua vez
se formam no mercado pela luta entre os interesses.
"Sem uma avaliação em preços monetários — isto é,
sem aquela luta —, não é possível nenhum cálculo".
A lógica do cálculo formal capitalista é, portanto,
ligada — através do livre mercado — à lógica da luta
entre os interesses. Onde não há livre luta, não há
cálculo racional.
Aquela, que para Marx era uma cadeia de
elementos em contradição (trabalho — mercadoria —
dinheiro), torna-se em Weber a dinâmica vital da
economia racional capitalista. O potencial de crise
interna ao Capitalismo não consiste em uma
presumida contraditoriedade de seus elementos, mas
na virtual extinção de sua dinâmica por obra de um
poder burocrático. Weber não auspicia a abolição do
mercado, que para ele é garantia de cálculo racional e
de autonomia dos sujeitos: à extinção do mercado
sucederia somente o despotismo puro e simples do
poder burocrático.
IV. NOÇÕES SOBRE A QUESTÃO DAS
ORIGENS DO CAPITALISMO E DO SEU
DECLÍNIO.
—
A pesquisa historiográfica
contemporânea sobre as origens do Capitalismo
progrediu muito em rela ção às indicações dos
clássicos, com uma documentação sistemática e
inovadora que abriu novos
horizontes (lembrem-se os estudos sobre Capitalismo
e civilização material de F. Braudel).
O imponente debate sobre a relação histórica entre
protestantismo e origens do Capitalismo (desde os
velhos estudos de R. Tawney às mais recentes
contribuições coletadas, por exemplo, por S. M.
Eisenstadt e P. Besnard) oferece um quadro muito
diversificado que, se não falsifica as teses weberianas,
permite rever a problemática de tal forma que rejeita
qualquer simplificação.
O Capitalismo do século XVI é reproposto com
base na World economy (I. Wallerstein), no sentido de
um sistema econômico que progride enquanto não
fica preso num sistema político homogêneo a nível
europeu e internacional (homogeneidade nacional na
heterogeneidade internacional).
A organização capitalista coloca em ação seus
recursos econômicos num campo mais vasto do que o
campo controlável por cada instituição política. De
fato, na Europa do século XVI, caracterizada pelos
seus limites fluidos, cria-se uma World economy, que
compreende no seu seio1 mais sistemas políticos e
concentra em medida crescente empresa e riqueza em
mãos privadas, prescindindo das cores nacionais.
Nesta ótica, o protestantismo aparece simplesmente
como a religião das áreas impulsoras e centrais deste
sistema, enquanto a religião católica aparece
periférica e semi-periférica.
Sem subestimar a contribuição determinante dada
pelo protecionismo estatal direto e indireto,
especialmente na época mercantilista, é certo que a
decolagem definitiva do Capitalismo acontece em
concomitância com a chamada Revolução Industrial.
Ela inicia primeiramente na Inglaterra na segunda
metade do século XVIII, na França e nos Estados
Unidos da América a partir dos primeiros decênios do
século XIX, e somente na segunda metade do mesmo
século na Alemanha.
No seu clássico Problemas de história do
Capitalismo (1946), Maurice Dobb assim sintetiza
esta fase: "A Revolução Industrial representa um
momento de transição de uma fase primitiva e ainda
imatura do Capitalismo — na qual a pequena
produção pré-capitalista estava permeada da
influência do capital, subordinada a este, espoliada de
sua independência como fenômeno econômico, mas
não ainda totalmente transformada — para a fase em
que o Capitalismo, com base na transformação
técnica, atingiu a realização de seu específico
processo produtivo, fundado na fábrica como unidade
coletiva de produção de massa; com isso se efetua a
separação definitiva do produtor da propriedade dos
meios de produção (ou daquilo que dela tinha ficado),
e se estabelece
CAPITALISMO
uma relação simples e direta entre capitalistas e
assalariados".
A primeira industrialização se verificou em
coincidência com uma série de fenômenos que é
difícil subestimar: aumento da população, êxodo mais
ou menos forçado de massas camponesas para os
centros urbanos, primeiros fenômenos de urbanização
com a rápida transformação da tradicional
estratificação social, formação do proletariado
operário urbano, crescente intervenção do aparelho
estatal, quer em forma repressiva, quer protecionista e
garantidora.
Estamos também no período clássico do
liberalismo, como doutrina econômica e prática
política. Ela é tão forte e eficaz que faz acreditar na
idéia de que o Capitalismo seja uma coisa só com a
igualdade dos cidadãos, a liberdade e a função
puramente administrativa do Estado. A ideologia
liberal e liberalista oculta completamente o momento
de coerção, implícito no mercado do trabalho livre e
na concepção individualista do Estado. De fato, em
crescentes camadas da população trabalhadora urbana,
nasce
progressivamente
uma
sensação
de
"estranhamento" perante um Estado cesse tipo. Desde
o final do século XIX, surgem e se fortalecem as
grandes organizações proletárias para as quais
"Capitalismo" soa como sinônimo de sociedade
desumana e injusta. O sistema capitalista, estabilizado
em suas estruturas econômicas de fundo, vencidas
suas batalhas contra os setores atrasados précapitalistas, tem que enfrentar e racionalizar sua
primeira transformação.
V. TEMAS DO "CAPITALISMO ORGANIZADO". — Entre
as definições elaboradas no primeiro vin-tênio do
século, e retomadas na década de setenta, para
assinalar as mudanças de estrutura e de funcionamento
do Capitalismo, temos a de "Capitalismo organizado".
Além dos significados atribuídos a esta definição,
em diversas ocasiões, por Rudolf Hilferding e por
outros estudiosos, podemos encontrar sintetizados nela
os seguintes fenômenos: a) os processos de
concentração econômica em monopólios, oligopólios,
cartéis, com a virtual extinção da concorrência e do
mercado, entendidos no sentido liberal; b) o
deslocamento, conseqüência da concentração, do
poder real, especialmente em forma de poder de
influência, fora do quadro político institucional, em
favor das forças econômicas e sociais, cuja ação de
pressão se torna eficaz nos momentos críticos de
decisão política; c) o processo de concentração
econômica é acompanhado por uma paralela
organização de massa dos trabalhadores dependentes,
com relevantes
145
conseqüências sobre o sistema das representações, em
particular sobre a relação entre sindicatos e partidos;
d) o Estado é co-responsabilizado de forma crescente
na gestão econômica, não tanto com a criação de
setores econômicos diretamente controlados por ele,
quanto com a expansão da despesa pública e o peso
determinante para a inteira economia da política
creditícia e fiscal e em geral das estratégias
conjunturais; e) o Estado assume o papel de garante
no processo de institucionalização dos conflitos de
trabalho, em particular do conflito industrial entre as
grandes organizações sindicais e patronais, chegando
a uma espécie de intervencionismo social, que faz da
função arbitrai estatal (seja qual for sua figura
institucional) um dos elementos decisivos do
Capitalismo organizado.
Estas indicações gerais são suficientes para
delinear uma tendência que se faz evidente em todos
os sistemas capitalistas no período entre as duas
guerras. Aqui tem pouca importância indagar por que,
na base destes processos de auto-organi-zação
capitalista, o movimento socialista (R. Hilferding)
tenha erroneamente deduzido uma antecipação do
princípio socialista de plano.
Tecnicamente, muitas das características acima
mencionadas aparecem durante o primeiro conflito
mundial e são testadas nos anos sucessivos. Mas é
somente na década de 30, no contexto da Grande
Crise de 29, que elas gradualmente se configuram
como soma de medidas para restabelecer uma nova
fase capitalista. "Somente nos anos 30, sob o signo da
recepção das teorias keynesianas, a política estatal
conjuntural pôde desenvolver-se de tal forma que se
tornou o meio clássico para a luta econômica.
Somente após a afirmação da política conjuntural
anticíclica foi possível falar de Capitalismo
organizado desenvolvido" (H. A. Winkler).
O processo de concentração das grandes empresas
e a organização cada vez mais rígida dos mercados de
bens, de capitais e de trabalho acompanham a
sistemática intervenção do Estado na economia. As
fronteiras entre setor privado e setor público se
tornam cada vez mais caducas. Os sistemas
econômicos "mistos", caracterizados pela presença
estatal direta (através da empresa pública) e indireta
(através de institutos de co-parti-cipação e controle
estatal), não são mais fenômenos anômalos ou típicos
de economias atrasadas em relação aos modelos do
Capitalismo avançado, segundo os padrões liberais
clássicos.
Tendo presente a experiência americana,
convencionalmente considerada hostil a qualquer
estatalismo, tende-se a generalizar um esquema
interpretativo para três setores: um privado de
146
CAPITALISMO
bens de consumo aberto à concorrência em sentido
tradicional, mas substancialmente marginal e
dependente quanto aos recursos materiais e
energéticos primários. Estes últimos fazem parte,
juntamente com outros gêneros de mercadorias de
largo consumo, de um mercado governado por
oligopólios, que toleram apenas ligeiros movimentos
de competição. Existe, em seguida, um setor de
produção de exclusivo domínio estatal e com altíssimo
investimento financeiro e tecnológico (setor espacial,
dos armamentos não convencionais, etc), no qual as
empresas — não importa se privadas ou públicas —
agem sem nenhuma autonomia. Neste setor
monopolístico e/ou estatizado, como no setor regulado
pelos oligopólios, predominam empresas e indústrias
de alta intensidade de capital, enquanto no setor
concorrencial agem empresas e indústrias de alta
intensidade de trabalho. No primeiro setor, os
progressos tecnológicos são relativamente rápidos,
com imediatos reflexos produtivos, enquanto são mais
lentos e mediatos no setor concorrencial tradicional.
Estas observações têm aqui somente valor
indicativo da progressiva perda da função central
reguladora
do
mercado
no
Capitalismo
contemporâneo, função integrada se não substituída
pela ação estatal.
Isto não significa que à reduzida função do
mercado corresponda por parte do Estado uma ação
de plano programada. O Estado contemporâneo se
limita freqüentemente a substituir as regras
tradicionais do mercado, mantendo as condições da
sua reprodução.
De resto, também na fase liberal do Capitalismo, o
Estado tinha garantido a reprodução e o
funcionamento do sistema econômico desempenhando
funções precisas: defesa dos direitos privados da
empresa e adequação do aparelho legislativo às
necessidades surgidas, de quando em vez, durante o
desenvolvimento econômico; defesa da força-trabalho
contra a lógica da indiscriminada exploração
capitalista (legislação social) e, mais em geral, criação
de infra-estruturas para a reprodução da força-trabalho
(transporte, esco-larização, urbanização, etc).
Estas funções se encontram enormemente
ampliadas e aperfeiçoadas na ação do Estado
contemporâneo. Hoje, a importância das infraestruturas materiais e imateriais (pesquisa científica)
se tornou decisiva, asim como o apoio contra a
concorrência internacional (para não falar do papel
das despesas improdutivas, tais como os armamentos).
Além disso, o Estado tem a oportunidade de fazer
sentir sua presença direta em segmentos econômicos
vitais e a possibilidade de dirigir investimentos e
facilitações de
investimentos para áreas negligenciadas pelo
Capitalismo privado. Tudo isto se traduz em
imperativos contrastantes, que marcam as fronteiras
dentro das quais se movimenta o sistema capitalista de
regime democrático: necessidade de crescimento
econômico, estabilidade monetária, intervenção e
prevenção das crises conjunturais, balança de
pagamentos, etc, mas também a necessidade de plenoamprego, defesa das classes desfavorecidas,
estratégias de redução das desigualdades sociais,
políticas fiscais eficazes e justas, etc. Na incapacidade
de fazer frente, contemporaneamente, a estes
imperativos, se revela a "crise" do Capitalismo
contemporâneo.
VI. TEMAS DA "CRISE DO CAPITALISMO". — Desde
quando o Capitalismo foi identificado como o fator
que caracteriza a nossa civilização, se fala de sua crise.
A doutrina marxista faz dessa crise um de seus
fundamentos, embora o tema hoje seja desenvolvido
em termos muito diferentes dos do marxismo
histórico. Toda a questão da crise do Capitalismo do
ponto de vista marxista aparece bastante controvertida
(cf. os textos selecionados por L. Colletti e C.
Napoleoni, O futuro do capitalismo. Fracasso ou
evolução?).
Mas a idéia da crise do Capitalismo como crise de
toda a civilização burguesa não é exclusiva dos
movimentos de oposição social e política. Torna-se
um motivo autocrítico da cultura liberal-burguesa, que
atinge seu cume nas décadas de 20 e 30. Não se trata
só de humores literários, filosóficos ou publicistas.
No Handwõrterbuch der Soziologie de 1931
(elaborada por Alfred Vierkandt, que coletou as
contribuições dos cientistas sociais alemães mais
eminentes da época), o "estilo de vida" capitalista é
apresentado como um modelo negativo. Ele é
sinônimo de destruição de todo valor autêntico,
substituição da qualidade pela quantidade, ânsia de
fortes sensações epidérmicas, obsessão do sucesso,
consumismo desenfreado, culto da violência — uma
soma de contravalores em oposição a um idealizado
mundo pré-capitalista.
Uma diagnose crítica desse tipo pode estar a serviço
indiferentemente quer de posições políticas
pragmático-progressistas quer de posições niilistas,
irracionais e reacionárias, também de cunho fascista.
Na realidade, dentro da temática da crise do
Capitalismo como crise cultural e de civilização
convivem elementos disparatados, quer do ponto de
vista analítico, quer do ponto de vista valora-tivo. À
parte a latente vontade de um mundo pré-capitalista,
presumidamente harmonizado num universo de
valores divididos, existem fenômenos
CAPITALISMO
que são imputados distinta e separadamente ao
industrialismo, à secularização, à modernização social
e política. Embora não esteja errado chamar
sinteticamente Capitalismo a todos estes fenômenos
(e, portanto, "crise do Capitalismo" sua patologia), é
necessário do ponto de vista analítico manter
atribuições causais distintas. Fenômenos disfuncionais
ou patologias sociais ligadas ao desenvolvimento
técnico-industrial não são deduzí-veis da estrutura
capitalista como tal, tanto que se encontram também
em sistemas declaradamente anticapitalistas.
Muitas análises da crise do Capitalismo
contemporâneo deslocam o eixo da estrutura
econômica para a sócio-cultural, centrando a atenção
sobre os problemas da integração social e do
consenso. Motivações, expectativas, frustrações
individuais e coletivas, incompatibilidade e ecletismo
de ideologias e valores, perda do sentido,
secularização e volta ao sagrado, privatização dos
interesses contra os bens públicos: estes e outros
indicadores dificilmente se deixam compor (tanto
menos qualificar) em esquemas unívocos de
comportamento. Em todo caso, tais comportamentos
não são deduzíveis da contradição de princípio entre
capital e trabalho, mas são inventariáveis somente no
interior de uma profunda mudança da estratifi-cação
tradicional, com a conseqüente revolução das
expectativas. A mesma luta de classe é levada cada
vez mais para a área da balança do Estado e do
emprego de recursos públicos para fazer frente às
demandas sociais.
Com linguagens e opções políticas diferentes,
autores de inspiração liberal e de inspiração marxista
abordam estes temas situados entre acumulação e
legitimação. A crise do Capitalismo se expressa para
uns em forma de "contradições culturais de
Capitalismo" (Daniel Bell), para outros numa cadeia
de patologias de que a "crise de legitimação" é a figura
mais forte (Jürgen Haber-mas). Segundo este último
autor, o Capitalismo contemporâneo se subtrai do
êxito fatal de uma verdadeira crise de sistema graças
ao papel determinante do Estado, através da expressão
do aparelho adminstrativo, da solução quase-política
dos conflitos salariais, dos compromissos que
imunizam o centro contra o conflito de classe,
descarregando seus custos sobre a periferia ou
difundindo-os de forma anônima sobre o sistema
(inflação, crise permanente das finanças estatais,
sistemáticos desequilíbrios salariais em prejuízo dos
grupos sociais mais fracos).
Enquanto isso, realiza-se programaticamente uma
difusa despolitização sob o signo da democracia de
massa. A única base de legitimação do sistema fica
sendo o ressarcimento a classes e
147
grupos em troca da passividade nos processos de
formação da vontade política. Desfeita a identidade
das classes e fragmentada sua consciência, o
Capitalismo avançado remove a crise do sistema, mas
não destrói suas origens básicas. Encontra-se, assim,
exposto a sempre novas formas de crise econômica
cíclica, de crise de racionalidade administrativa, de
crise de motivação e de legitimação. A crise de
legitimação, em particular, se produz "logo que as
pretensões de ressarcimento em relação ao sistema
aumentam mais rapidamente do que a massa dos
valores disponíveis, ou quando surgem no seu interior
expectativas impossíveis de serem satisfeitas com
ressarcimentos conformes ao sistema". Esta crise, que
é mais do que tudo carência ou déficit de legitimação,
dá lugar a patologias sociais cada vez mais novas e
nunca resolvidas.
VII. TEMAS DO "CAPITALISMO CORPORATIVIS-TA". —
Uma outra ótica para recompor alguns indicadores
centrais e críticos do Capitalismo contemporâneo é
dada pelos modelos "corporativis-tas". Também estes
têm seu início na presença multiforme do Estado e do
setor público nos processos econômicos, que altera os
tradicionais equi-líbrios entre a ação econômica e a
ação política. Essa presença, todavia, não introduz
elementos de uma racionalidade diferente ("de
plano"), mas simplesmente instaura uma "troca
política", entre os grandes protagonistas organizados
do sistema. Nesse intercâmbio são tratados "bens" que
não eram formalmente negociáveis na lógica do
mercado capitalista tradicional — isto é, os chamados
"bens de autoridade", que dizem respeito ao consenso
com o sistema político, à autodisciplina do trabalho,
etc.
Os modelos do "Capitalismo corporativista"
identificam o ruído desta troca numa particular relação
instituída entre os grandes protagonistas do processo
capitalista: empresários, sindicatos e Estado. Em
termos maximais, estes três atores sociais se declaram
positivamente interessados por uma gestão quase
colegial do desenvolvimento, atribuindo ao Estado o
papel de garante público. Em termos minimais, os três
atores admitem a necessidade negativa de não fazer
opções unilaterais que, ferindo uma das duas partes,
ameaçaria a estabilidade complexiva do sistema.
Nesta escala entre máximo e mínimo de corporação,
as variantes são muitas — da "ação centralizada"
alemã, às tentativas de pacto social inglês, à rejeição
formal de qualquer acordo, também em situações de
corporativismo rastejante.
No Capitalismo corporativista se instaura uma
relação especial entre política e economia, que
reproduz uma lógica de mercado sui generis. Os
148
CAPITALISMO
bens que são negociados não são somente salários,
ocupação, produtividade, investimentos, etc, mas
também formas de lealdade e de consenso político.
Deste modo, o corporativismo pode funcionar como
canal de legitimação de um sistema capitalista
modificado, de fato, em alguns de seus mecanismos
decisionais. Em perspectiva histórica, ele é fator
portante daquela "arquitetura de estabilidade" que está
presente — não obstante todos os sintomas de crise —
nos sistemas capitalistas contemporâneos e foi
antecipada na década de vinte, quando se falou até de
"refundação da Europa burguesa" (C. S. Maier).
O corporativismo é, evidentemente, um dos
possíveis modelos de realização e, portanto, de
interpretação da relação entre mercado e política do
Capitalismo. Ele se aplica a alguns sistemas e não a
outros. De fato, Ch. Lindblom, examinando o
Capitalismo americano, constata especialmente a
posição privilegiada do "sistema das empresas" na sua
relação com o sistema democrático de controle, por
ele chamado de "poliárquico". Os mesmos
empresários se tornam, de fato, uma espécie de
funcionários públicos, subtraindo importantes
decisões ao controle democrático. Neste caso, as
regras de troca política são claramente a favor das
empresas capitalistas, contra os demais grupos sociais.
Para definir corretamente a relação entre mercado
capitalista e política democrática, é necessário, então,
manter abertas várias estratégias conceituais. Muitas
análises tradicionais, no cam-do marxista e no campo
liberal burguês, têm cultivado a pretensão ou a ilusão
de identificar "a essência" (das Wesen) do Capitalismo
— quase um ponto de Arquimedes, entendido ou
removido, o qual seria entendida ou mudada
radicalmente a estrutura do sistema. Certamente, o
Capitalismo é caracterizado por constantes
identificáveis. Mas no seu concreto funcionamento,
essas constantes dão origem a um conjunto complexo
e mutável de combinações, que engloba também
fatores "não-capitalistas" (especialmente de natureza
cultural), insubstituíveis para a estabilidade do próprio
sistema.
Esta constatação não traz nada contra o fato de que
a relação trabalho-capital permaneça a relação central
do Capitalismo. Esta centralidade em si, todavia, não
parece ser decisiva, nem para produzir no plano
analítico uma definição inequívoca, exaustiva e
conclusiva do Capitalismo, nem para propor no plano
prático-político soluções seguras para a otimização
das virtudes do Capitalismo, ou para a correção de
suas distorções — sem falar das perspectivas de seu
supera-mento. O Capitalismo, exatamente porque é
"relação social" em contínuo dinamismo, solicita uma
constante redefinição de seus elementos, ou, pelo
menos, de sua concreta articulação, que é uma coisa
só com o modo de funcionar das sociedades
contemporâneas.
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Ruprecht, Gòttingen 1974.
[GIAN ENRICO RUSCONI]
CARISMA
Carisma.
I. CONCEITO CLÁSSICO DE CARISMA. — O conceito
sociológico clássico de Carisma foi apresentado por
M. Weber para caracterizar uma forma peculiar de
poder.
Este primeiro conceito analisa a existência dos
líderes, cuja autoridade se baseia, não no caráter,
sagrado de uma tradição nem da legalidade ou
racionalidade de uma função, mas num dom, isto é, na
capacidade extraordinária que eles possuem. Estes
dons excepcionais se impõem como tais no anúncio e
realização de uma missão de caráter religioso, político,
bélico, filantrópico, etc. Aqueles que reconhecem este
dom, reconhecem igualmente o dever de seguir o chefe
carismático, a quem obedecem segundo as regras que
ele dita, em virtude da própria credibilidade do
Carisma e não em virtude de pressões ou de cálculo.
Mais, a influência do Carisma nasce e perdura, se a
missão é deveras cumprida, isto é, se oferece provas
eficazes e úteis, capazes de robustecer a fé dos
sequazes. Toda a expressão do processo carismático, as
novas regras, a força, as provas que demonstram a
legitimidade do Carisma e da missão se colocam, de
modo revolucionário em relação à situação
institucionalizada, mediante uma experiência social
que exige conversão (me-tanóia) nas atitudes e
comportamento dos sequazes, como do próprio chefe.
Assim esboçada, a situação carismática é, ao
mesmo tempo, forte e lábil. Seus limites se vão
configurando à medida que surge a conveniência de
dar uma estrutura permanente, formalmente
organizada, ao papel do chefe, dos sequazes e
sucessores.
II. CONDIÇÕES DO APARECIMENTO DOS FENÔMENOS
CARISMÁTICOS. — Na tentativa de distinguir as
condições típicas do aparecimento dos fenômenos
carismáticos, os estudos têm-se concentrado na análise
de vários tipos desse processo.
Nos casos em que aparece em evidência o líder e o
plano de salvação por ele proposto, a gênese do
fenômeno tem sido vinculada ao pavor coletivo de um
povo, de uma minoria religiosa ou étnica a estados de
total insegurança e de angústia generalizada, diante
dos quais o carismático é visto como um salvador. Ele
é acolhido como portador da segurança fundamental,
da esperança, do fim do sofrimento, embora este, ao
cabo, possa ter uma expressão de dimensões
apocalípticas, de destruição em termos sociais, de
morte física.
Estes fenômenos estão associados a condições de
falta de modernização política e econômica e a êxitos
de caráter totalitário, ditatorial.
149
Nas sociedades modernizadas, bem articuladas e
complexas, se verificou, porém, que os fenômenos
carismáticos se manifestam mais freqüentemente
através de grupos e movimentos, surgindo de âmbitos
produtivos e reprodutivos delimitados, subculturas,
instituições reguladoras de determinados setores da
sociedade. É daí que eles emergem para indicar
carismaticamente
alternativas
radicais,
não
circunscritas ao próprio âmbito ou instituição,
partindo da existência de particulares condições de
desigualdade, de sofrimento, de insatisfação,
condições em si recorrentes nas sociedades, podendo
ser consideradas como próprias das fases normais de
desenvolvimento das contradições sociais. Embora o
fato carismático seja em si imprevisível, as sobreditas
precondições, menos gritantes, estão, sob esta
perspectiva, presentes, com maior ou menor
amplitude, em numerosos e diversos pontos das
estrutras, muito mais do que se supôs nas primeiras
teorizações.
Para delimitar esta tese, convirá, todavia, observar
que, na ética prática do bem-estar das sociedades
neocapitalistas, existem tendências sistemáticas à
dessagração e ao "consumo", que opõem resistência à
difusão e duração dos estímulos carismáticos.
III.
A,
MUDANÇA
SOCIAL:
RACIONALIZAÇÃO E CONVERSÃO. — Pondo
como centro dos fenômenos carismáticos um certo
tipo
de
relação
de
autoridade
baseada
fundamentalmente no líder, a análise histórica usou
seus conceitos principalmente no estudo de homens de
Estado, líderes religiosos, nacionalistas, militares, e
nas suas qualidades e realizações (Jesus Cristo,
Gandhi, Lenin, Atatürk, Churchill, de Gaulle,
Nkrumah, Nasser). Esta perspectiva foi notavelmente
ampliada por estudos recentes sobre os processos de
mudança social e sobre a importância dos movimentos
sociais, dos fenômenos de comportamento coletivo,
observáveis no âmago e origem das próprias
mutações.
As transformações são tanto mais radicais, quanto
mais questionados forem o tipo de legitimação, o
modo de distribuição do poder, o sistema de valoresnorma básicos que inspiram e regulam os
comportamentos da coletividade. Baseíuido-nos na
conceituação weberiana, podemos distinguir dois tipos
fundamentais de desenvolvimento: a racionalização e
a conversão. A primeira se realiza através de
progressiva diferenciação das funções, na qual os
modelos essenciais do sistema se desenvolvem por
meio de regras e técnicas mais especializadas,
aplicadas a setores sociais mais limitados, com
inovações formais e instrumentais.
150
CARISMA
A conversão, ao contrarie, se baseia na mudança
interior, na reestruturação dos valores fundamentais e,
conseqüentemente, de todos os comportamentos
derivados, por uma fé vivida como dom e como dever,
vocação essencialmente diversa do comportamento
conformista. Tende por si a difundir uma consciência
de valores e uma prática alternativa em relação aos
fins, às normas, às recompensas, às oportunidades
oferecidas pelas crenças dominantes.
IV.
IMPORTÂNCIA
PRÁTICA
E
TEÓRICA
DOS
— Atendendo à
lógica da conversão, é possível considerar ainda os
fenômenos carismáticos, partindo antes do grupo que
vive a experiência coletiva de uma fé e de uma
conversão tipicamente carismáticas, do que dos líderes
reconhecidamente dotados de Carisma. É a fisionomia
deste tipo particular de comportamento coletivo que
caracteriza movimentos sociais e até experiências de
grupo mais limitadas, que se apresentam como formas
de uma nova sociedade em estado nascente. Os
processos coletivos de origem política, religiosa,
artística, de oposição cultural, etc, que na última
década se multiplicaram e difundiram, particularmente
nas sociedades neocapitalistas ocidentais, se oferecem,
na condição de grupo, como alternativa institucional,
ética e instrumental, o que pode ocorrer a partir de uma
experiência das contradições particulares do sistema de
produção e de poder, da qual se passa à contestação
radical dos valores e contradições fundamentais. O
poder que o grupo reivindica se baseia em valores que
ele próprio cria e propõe, numa fé e atividade prática
novas, vividas como algo radicalmente diverso em
relação aos "demais", e cuja eficácia se quer
demonstrar ativamente, quando menos num sentido
simbólico de ruptura e de reconstrução básica. O grupo
carismático apresenta-se a si mesmo, e não tanto a sua
teadership interna (que também pode ser carismática
no sentido pessoal do termo), como quadro de
referência e coletividade de agremiação inteiramente
novos. Neste sentido, ele oferecerá, no plano
psicológico, a cada um dos membros, a defesa social e
uma segurança psíquica profunda, necessárias para a
reconstrução e desenvolvimento da identidade dos
indivíduos, negada na sua condição preexistente e
substituída na conversão. Por isso, aqui não se
sublinha tanto a relação de autoridade entre os
sequazes-fiéis e o chefe-profeta, passividade em face
do dever, quanto o papel ativo de todos os membros do
grupo no processo de criação coletiva de valores,
verificados na prática comum.
FENÔMENOS CARISMÁTICOS DE GRUPO.
V. O LÍDER CARISMÁTICO DENTRO DO GRUPO. —
Tornamos a encontrar nesta perspectiva a figura do
chefe carismático. Este muitas vezes não se acha de
fato na origem do movimento; em primeiro lugar, é
um membro entre outros e só gradualmente
desenvolve aquela capacidade, aquela força
persuasiva, aqueles resultados capazes de o impor
como líder, dotado de dons extraordinários na
encarnação da missão própria do movimento. Lá
dentro pode fazer crescer as contradições até o ponto
de provocar fendas no movimento originário,
resultando daí um novo grupo formado por aqueles
que reconhecem seu Carisma, vendo nele a garantia de
uma verdade e eficácia superiores. Se o movimento se
difunde e consegue alcançar o poder legítimo, mesmo
fora do grupo dos sequazes, originando um novo
sistema social, o Carisma se consolida com novos
apoios, baseados no poder direto e condicionante,
exercido até sobre aqueles que, interiormente, não o
reconhecem de nenhum modo. Por isso, na análise
destes fenômenos, convém distinguir normalmente as
situações em que o Carisma coincide já com o poder
formal, numa nação ou numa vasta coletividade, das
fases em que nasceu e se foi afirmando.
Estas afirmações são metodologicamente válidas,
mormente no confronto das imagens clássicas,
fundamentalmente estereotípicas, de famosos chefes
carismáticos, que são corretamente demi-tizados para
análise dos seus ligames concriativos com o grupo que
reconheceu sua autoridade.
VI. RELAÇÃO CARISMA-INSTITUIÇÃO. — Para
garantir a continuidade da experiência carismática, é
indispensável legitimar alguns mecanismos de
transmissão do Carisma e a organização da autoridade
e das atribuições da nova instituição que se pretende
consolidar. Têm sido especificados, sobretudo no
estudo de movimentos ligados a um líder carismático,
alguns dos modos pelos quais o Carisma é transmitido
a outros para sobreviver. O ligame do parentesco,
particularmente o da descendência com direito à
aquisição hereditária, tem sido uma forma bastante
comum de perpetuação do Carisma. O contato com o
carismático é outra modalidade típica da transmissão.
A forma mais importante e passível de ser formalizada
é, contudo, a da outorga do Carisma por ofício. O
exemplo histórico da Igreja católica é apresentado
como
um caso
clássico deste tipo de
institucionalização. Não obstante a oposição teórica
entre o caráter pessoal do Carisma e o caráter formal
da instituição, esta forma de transmissão faz coincidir
os dois termos, somando a força dos dois diversos
tipos de autoridade que aí se reúnem: a autoridade
legal.
CASTA
burocrática, e a autoridade por dádiva excepcional. A
instituição assim legitimada possuirá um poder
interno de controle social e um poder de continuidade
elevadíssimos.
A distinção destas formas é útil para se poder
decompor corretamente o processo de legitimação e
de organização do fato carismático concreto que, no
entanto, se fundamenta sempre na constância da fé e
da experiência habitual do grupo. Na análise da sua
estruturação funcional em ordem a um fim, dentro dos
termos habituais da psicossociologia da organização,
se observa que esta adota uma rigidez diversa nas
regras relativas aos tipos de conflito externos e
internos que o grupo tem de enfrentar.
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Sociological Review". XXX, 1965; R. C. TuCKER,
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verão de 1968; M. WEBER, Economia e socieià (1922),
Comunità, Milano 1968.
[ÍTALO DE SANDRE]
Casta.
(Originária do espanhol e do português, Casta,
"linhagem", deriva do adjetivo latino castus, "puro".)
Grupo social fechado que se reproduz de forma
endógama e cujos membros levam vida social diversa
e, enquanto possível, separada do resto da sociedade.
O fenômeno das Castas existiu e subsiste ainda em
numerosas
sociedades
pré-mo-dernas.
Tem
importância, política porque, normalmente, numa
sociedade onde existe uma ou mais Castas, o poder
político e os privilégios sociais são distribuídos
levando-se em conta se os indivíduos pertencem ou
não a uma Casta. Na origem das Castas o que vale
muitas vezes são as diferenças raciais; outras vezes, é
o crescimento de acentuadas diferenças sociais no seio
de comunidades etnicamente homogêneas. É assaz
freqüente as Castas se caracterizarem pela função
social que os seus membros exercem de forma
hereditária ou exclusiva. No antigo Egito, por
exemplo, havia grupos sociais, identificáveis como
Castas, que se distinguiam por sua específica função
social: os sacerdotes, os guerreiros, os comerciantes e
os artesãos; entre os hebreus, a função sacerdotal
estava reservada exclusivamente aos membros da tribo
de Levi; na antiga
151
Grécia, os asclepíadas, que ligavam sua origem ao
deus Esculápio, constituíam uma Casta sacerdotal que
ia transmitindo, de geração em geração, os segredos
da arte médica.
O país onde o sistema social de Castas teve maior
desenvolvimento foi certamente a Índia. Aqui parece
indubitável, a julgar até pelo próprio nome dado às
Castas (varna, cor), que elas tiveram uma origem
racial. A divisão em Castas teria sido imposta pelos
povos árias, conquistadores da índia; assim eles se
manteriam distantes das populações preexistentes
subjugadas (dravídicas e pré-dravídicas). Ignoradas
nos antigos hinos védicos, aparecem quatro Castas
num tardio hino do Rigveda: brahmana, os sacerdotes;
ksatria, os guerreiros; vaisia, os agricultores e
comerciantes; sudra, os lavradores mais humildes e os
servos. O número de Castas se multiplicou
desmedidamente com o decorrer dos séculos, havendo
constituído a estrutura de toda a sociedade indiana.
Religiões universalistas, como o budismo e o
islamismo, não as puderam erradicar. Só o processo de
modernização, agora em marcha, veio abalar sua
solidez.
Sistemas de Castas, embora menos complexos,
encontraram-se noutras partes do globo: na África
oriental (Somália, Galla, Massai), em Ruanda,
Madagascar, Senegâmbia, Polinésia e na América précolombiana. Nestes últimos casos, existe uma divisão
dicotômica e conflitante da sociedade entre a Casta
nobre (sacerdotes, guerreiros, pastores), racialmente
caracterizada, e o vulgo, geralmente entregue a
trabalhos artesanais, tradicionalmente tidos como
impuros (ferreiros, tecelões, oleiros, carpinteiros).
Na história da Europa medieval e moderna, esse
caráter de Casta, isto é, de um grupo tenden-cialmente
fechado, endógamo, com funções específicas
hereditárias (a atividade militar ou a função pública),
foi mantido pela nobreza, também chamada por vezes
de Casta aristocrática ou no-biliárquica (v. NOBREZA).
[GIORGIO BIANCHI]
Castrismo.
I. CASTRISMO E MARXISMO-LENINISMO. — Com o
termo Castrismo, não é possível especificar um
conjunto de proposições ideológicas e teóricas que
constituam um corpo orgânico e que se possam
atribuir especificamente a Fidel Castro; os aspectos
mais relevantes da personalidade e obra do líder
cubano não há que buscá-los, como é sabido, na sua
"doutrina" ou produção teórica,
152
CASTRISMO
mas na sua capacidade política. Sob o ponto de vista
da teoria marxista-leninista e revolucionária, o que
caracteriza o pensamento de Castro é a sua
progressiva e constante evolução das posições
iniciais, dernocrático-radicais, para um marxismoleninismo declarado, cujas peculiaridades são,
fundamentalmente: o pragmatismo, o empirismo e o
ecletismo (tanto que, de vez em quando, tem sido
possívíl distinguir nele claros elementos de
populismo, caudilhismo, jacobinismo, etc).
Em suma. como diz R. Debray, "historicamente, o
que se chama Castrismo é uma ação revolucionária
empírica e conseqüente que, em sua marcha, se
encontrou com o marxismo". Portanto, com o termo
Castrismo se sintetizam determinados aspectos
peculiares do processo revolucionário cubano,
mediante um trabalho de análise e abstração a
posteriori que, às vezes, excedeu não só os reais
acontecimentos de Cuba, como também as próprias
intenções e interpretações dos seus protagonistas.
Quis-se às vezes fazer de Cuba um modelo capaz de
servir de apoio a teses polêmicas nos confrontos da
"ortodoxia" revolucionária dos partidos comunistas
oficiais. É bom realmente salientar que as opções
socialistas de Cuba se aprofundam e consolidam
precisamente nos anos em que entram em profunda
crise o conceito do Estado-guia e as relações
tradicionais entre os partidos comunistas (a ruptura
definitiva entre a China e a Rússia, por exemplo, deuse em 1963); num contexto mais geral, é então que
ocorre o alinhamento da esquerda em geral.
Ao mesmo tempo, se verifica no Ocidente,
geralmente em polêmica com os partidos comunistas,
um retorno às temáticas revolucionárias e "terceiromundistas", para as quais o sucesso da revolução
cubana constituiu claro ponto de referência,
especialmente (mas não só) como modelo aplicável
aos países subdesenvolvidos e coloniais.
Não é, pois, de admirar que os modelos em que se
inspirava a evolução da situação cubana parecessem a
alguns, não só "alheios" à ortodoxia, como também
"contrários", o que fazia com que pudessem ser
usados, talvez até com violência polêmica, no debate
mais geral a que nos referimos.
Após estas premissas, é mister precisar que o
Castrismo, como sinônimo de via cubana para o
socialismo,
assume significados
particulares,
conforme for a fase do processo revolucionário a que
se refere: conquista do poder, transformação das
estruturas, construção de um novo sistema político. É
por isso que trataremos separadamente do Castrismo:
a) como forma de luta
revolucionária; b) como modelo de construção do
socialismo; c) como regime político.
II. O CASTRISMO COMO FORMA DE LUTA
REVOLUCIONÁRIA. — Graças justamente à
experiência cubana, quando se fala em guerra de
guerrilha, ninguém se refere mais a uma simples
técnica militar, mas a uma forma de luta (armada)
revolucionária, cujo objetivo é a conquista do poder
político. Na realidade, historicamente, a guerra de
guerrilha foi sempre adotada como tática defensiva,
particularmente eficaz contra um adversário munido
de meios e forças mais poderosas, fosse ele um
invasor estrangeiro, fosse o próprio poder central
(revoltas endêmicas de camponeses, fenômenos de
banditismo,
guerras
de
libertação,
guerras
anticoloniais, etc). Mas, nesta primeira acepção, o
Castrismo é, ao invés, sinônimo de guerra
revolucionária pelo poder, conduzida de acordo com
uma tática guerrilheira.
Porém, a novidade do Castrismo é outra. Se ele se
apresenta historicamente como tipo intermédio em
relação aos outros dois modelos revolucionários
vencedores (o bolchevique da insurreição, e o chinês
da guerra do povo), também se situa objetivamente
dentro das concepções revolucionárias clássicas, para
as quais a luta não pode ser senão armada. Mais, na
intenção dos chefes cubanos, a estratégia escolhida
levava em conta ambos os modelos, no sentido de que
à ação militar devia constantemente seguir-se o
incitamento insurrecional nas cidades, enquanto a
guerra
de
guerrilha,
reforçada,
evoluía
progressivamente para a guerra do povo. São
fundamentalmente as circunstâncias reais (mormente a
rapidez dos acontecimentos) que explicam por que é
que isso não se realizou cabalmente.
A verdadeira novidade do modelo cubano deve,
portanto, buscar-se noutros aspectos. O que autorizou
Régis Debray a falar de revolução na revolução, foi,
na realidade, o fato de que, nas experiências históricas
precedentes, o processo revolucionário teve sempre
uma direção política, a do partido (marxista-leninista),
guia e vanguarda do movimento total. De acordo com
essa experiência, era ponto basilar da teoria
revolucionária moderna (a marxista-leninista ou a ela
assimilada) que, sem a direção política do partido, à
qual se hão de subordinar as próprias exigências
militares, não é possível a revolução: "Para fazer a
revolução, é necessário um partido revolucionário"
(Mao Tsé-tung).
O caráter de profunda ruptura que diferencia o
Castrismo residiria então no fato de que, contrariando
toda a tradição revolucionária, a guerra de guerrilha,
ao privilegiar resolutamente o fator militar, parece
não exigir (rejeitando-a até,
CASTRISMO
em certa maneira) uma organização política à parte,
destinada a dirigir os quadros militares. Em outras
palavras, a vanguarda do processo revolucionário não
é mais o partido, mas a própria guerrilha, pelo mero
fato de haver empunhado as armas. Tornou-se famosa
esta frase de Castro que bem sintetiza tal concepção:
"Quem fará a revolução na América Latina? Quem? O
povo, os revolucionários, com ou sem partido" (o grifo
é nosso). A revolução não é, portanto, um longo
processo em que o trabalho paciente e a organização e
educação política a longo prazo desembocam na
sublevação armada; suas condições, pelo contrário, "...
são ditadas pela fome do povo, pela reação provocada
pelo confronto dessa mesma fome, pelo terror
desencadeado para conter as reações populares e pelas
ondas de ódio criadas pela repressão" (Che Guevara).
As massas estão, pois, devido às suas condições de
miséria e opressão, objetivamente prontas para a
revolução. Será indispensável a condição subjetiva do
partido revolucionário? Não: "Não é sempre
necessário esperar que se dêem todas as condições
para a revolução; o foco insurrecional poderá criá-las"
(Che Guevara). O que é necessário não é, portanto, a
organização e a direção política, mas um exemplo
concreto, ou seja, a criação de um foco guerrilheiro
por um pequeno grupo armado, sua manutenção, e
criação de outros focos em outras partes do país. É
quanto basta para que o incêndio se ateie como
mancha de óleo. No curso do processo militar, a
vanguarda se consolidará politicamente, aumentará
suas possibilidades políticas, se converterá em
verdadeiro guia do movimento total. Paralelamente, se
elevará a consciência das massas, seja por meio da
propaganda
armada,
obra
das
formações
guerrilheiras, seja devido às reformas econômicas e
sociais realizadas nas zonas libertadas.
Trata-se, em boa medida, de teorizações a posteriori, de racionalizações da experiência concreta,
que se ressentem tanto do esforço voluntarista
realizado pelos castristas ao iniciar a guerrilha, como
da- polêmica contra as agremiações políticas
tradicionais, especialmente o Partido Comunista. De
resto, a discordância que marcou toda a fase
guerrilheira da revolução cubana, entre sierra
(guerrilheiros da montanha) e llano (organizações
políticas da cidade), não versava sobre aspectos
táticos ou militares, mas antes sobre a própria
hegemonia da revolução. Uma discrepância que se
prolongou até bem depois da conquista do poder.
A conseqüência mais imediata de uma estratégia
deste gênero é que, teoricamente, ela parece aplicável
a todas as situações nacionais em que, afora as
particularidades contingentes, as
153
condições de miséria e opressão das massas populares
(em última análise, camponesas) sejam idênticas às
dos cubanos nas vésperas da revolução, ou seja,
praticamente a boa parte dos países subdesenvolvidos
e certamente a quase todos os países latinoamericanos. Se a mecânica "exportabi-lidade" do
Castrismo foi, na realidade, desmentida pelos fatos
(por exemplo, após o malogro da aventura boliviana
de Guevara), é fácil, contudo, entender sua
repercussão e efeito político entre os revolucionários
daquele continente e do Terceiro Mundo.
O sucesso do Castrismo no Ocidente, onde uma
revolução guerrilheira é naturalmente impensável,
tem, como é óbvio, um fundamento diferente,
assentando precisamente mais em seu valor de ruptura
dos esquemas consolidados que em sua aplicabilidade.
A revolução cubana coincide com a volta, no
Ocidente, a temáticas revolucionárias fortemente
ligadas, por um lado, a uma visão internacionalista e
antiimperialista, e, por outro, ao crescimento de
movimentos que se colocam "à esquerda" dos partidos
comunistas, até em situações nacionais. Neste
contexto, a influência do Castrismo foi muito mais
profunda do que habitualmente se pensa: as teorias da
ação exemplar e do detonador social, sustentadas por
grande
parte
dos
movimentos
juvenis
extraparlamentares, foram, bem vistas as coisas, o
correlativo bem claro da teoria dos focos. E,
conquanto as matrizes culturais sejam diversas, são
muito semelhantes as posições sustentadas pelos
atuais grupos terroristas, tanto quando se referem às
exigências do Partido comunista combatente, como
quando invocam a prática da violência difusa.
III. O CASTRISMO COMO MODELO DE
CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO. — O socialismo
cubano, pelo menos em sua primeira fase, que é
propriamente castrista, foi orientado para o
desenvolvimento da agricultura e não para a indústria,
como aconteceu na Rússia, na China e nos outros
países socialistas industrialmente atrasados. É de
acentuar também que essa opção parece tanto mais
insólita em relação aos modelos passados, quanto
mais se pensa que a dominação colonial e imperialista havia forçado rigidamente a ilha a uma
economia agrícola de monocultura (cana-de-açúcar).
Justamente por isso, o primeiro objetivo deveria ter
sido, com muita razão, o da auto-suficiência
econômicas cujo pressuposto é exatamente a
industrialização.
Não podendo acompanhar as diversas implicações
de um debate que, pela sua complexidade, transcende,
sem dúvida, o caso isolado de Cuba (atinge, na
realidade, o problema mais geral de
154
CASTRISMO
todos os países "subdesenvolvidos" que se dispõem,
ou disporão, a percorrer os caminhos da
independência nacional), será todavia oportuno
esclarecer alguns aspectos do problema, nunca
suficientemente sublinhados, sem os quais passam
despercebidos, certamente, os termos reais da
discussão, particularmente para o observador
ocidental.
Em primeiro lugar, Cuba é um pequeno país que,
além do mais, não dispõe de recursos naturais que
possam justificar uma industrialização forçada
segundo os modelos do passado, que acima
recordamos. Em segundo lugar, embora ela tenha
estado isolada por longo tempo na América Latina, o
campo dos Estados socialistas (e o seu potencial
industrial) já está em condições de transferir, dentro
do plano da cooperação internacio-nalista, a solução
de muitos problemas que a URSS e a China tiveram
de resolver por si sós.
Além destas circunstâncias reais, que levam, não
obstante, a acolher com reserva todo o esquema
interpretativo excessivamente rígido (de resto, os
próprios modelos soviético e chinês apresentam
peculiaridades bem marcantes), é preciso acentuar que
as condições da ilha antes da revolução não eram as
condições do subdesenvolvimento agrícola, no sentido
tradicional do termo: latifúndio de um lado e, do
outro, massas camponesas em condições feudais. A
plantação de açúcar, estrutura basilar da economia
cubana, é, na realidade, uma grande empresa agrícola
e, ao mesmo tempo, indústria média de transformação,
porquanto, normalmente, anexo à plantação, se
encontra o ingenio ou refinaria; por outro lado, a zafra
não é o simples corte da cana, mas toda a série de
atividades que culminam no refino. O problema real
da economia cubana não era, portanto, o da terra para
os camponeses, aliados assim à classe operária e
inseridos nó processo de mobilização revolucionária,
para extrair depois do campo os excedentes
necessários à industrialização.
O problema de Cuba era o da gestão socialista da
rede de grandes empresas agrícolas e da criação
paralela de uma estrutura industrial de apoio à
atividade econômica de maior relevância, bem como
de zonas agrícolas de culturas diversificadas e
intensivas destinadas aos produtos de primeira
necessidade (hortaliças, frutas, leite, etc), tudo, é
óbvio, dentro de um quadro geral de esforço maciço
visando ao estabelecimento da necessária infraestrutura social (escolas, hospitais, etc). Se estas são
as opções estruturalmente determinantes, uma
indústria autônoma de base é um objetivo que,
necessariamente, só se pode pôr a longo prazo.
As conseqüências destas opções econômicas são,
conforme acentuou a crítica, essencialmente duas. Em
primeiro lugar, no que toca às relações de classe, o
apoio ao regime socialista continua confiado às
massas camponesas que, por definição, se supõem
menos modernizadas que a classe operária e as
camadas urbanas.
Em segundo lugar, no que respeita às relações
internacionais, a renúncia à auto-suficiência
econômica tem como conseqüência lançar Cuba numa
esfera de influência, tornando-a tributária do campo
socialista, quer quanto aos produtos industriais, quer
quanto à venda do açúcar. O embargo sobre o açúcar
cubano criou, de fato, uma situação de monopólio da
demanda por parte dos países do Leste.
Quanto ao primeiro ponto, já mostramos como a
estratificação de classe se caracterizava em Cuba pelo
predomínio dos operários agrícolas e como o
Castrismo contou com eles, obstinando-se em fazê-los
entrar plenamente no processo revolucionário e no da
gestão socialista das estruturas econômicas (a zafra,
neste sentido, teve sempre mais um caráter de
mobilização social de massa que de atividade
econômica sazonal).
Quanto ao segundo ponto, é indubitável que cada
vez se foi delineando mais uma situação de clara
dependência da URSS. No plano econômico, isto é
assaz manifesto a partir do malogro do projeto que
visava a garantir a auto-suficiência financeira com o
progressivo aumento das exportações de açúcar. O
perdurar das dificuldades econômicas e a
impossibilidade de dar uma satisfação às demandas
sociais, traduzida na acentuação dos incentivos morais
sobre os materiais e na perpetuação artificiosa de um
clima de permanente mobilização revolucionária,
acabaram por incidir irremediavelmente sobre a
autonomia política do regime. O próprio fracasso das
guerrilhas e de experiências democráticas como a
chilena ajudaram também a perpetuar o férreo
isolamento a que a ilha tinha sido constrangida. Desta
maneira, o papel autônomo reivindicado pelo grupo
dirigente durante os primeiros dez anos e a aspiração
de vir a ser Estado-guia dos países não alinhados
foram sendo pouco a pouco redimensionados. Então, a
história de Cuba já não é mais a história do Castrismo,
mas de um regime comunista, para todos os efeitos.
IV. O CASTRISMO COMO REGIME POLÍTICO.
— O fascínio pessoal de Fidel Castro e o proeminente
papel por ele exercido no primeiro decênio da
revolução cubana (o decênio propriamente dito do
Castrismo), juntamente com a precariedade das
estruturas políticas e de Governo do pais, fez pensar
que nos achávamos diante de um
CATOLICISMO LIBERAL
regime político típico de poder (legítimo) carismático.
Pelo que concerne diretamente à pessoa de Fidel
Castro, posto de parte seu hábito de percorrer a ilha de
cabo a cabo, misturando-se com o povo e mantendo
com ele diálogos imprevisíveis e extemporâneos
(pense-se, em vez disso, no estilo de Stalin ou Mao),
sua própria oratória, sempre citada como exemplo de
aptidão carismática, é, na realidade, seu oposto. Na
verdade, para M. Weber, o esquema de argumentação
do chefe carismático é profético, isto é, visa à
revelação, segundo aquela fórmula: "Está escrito, mas
eu vos digo...". O estilo oratório de Castro, embora
sempre tenso e apaixonado, embora não descure
nenhum dos ardis do hábil homem de comícios, é,
contudo, sempre rigorosamente di-dascálico e
pedagógico, põe toda a sua eficácia numa
argumentação racionalmente apresentada, ou seja, tem
por fim persuadir. A famosa "Autocrítica" de 26 de
julho de 1970 é, neste sentido, exemplar.
Num plano mais geral, podíamos, porém, perguntar
se o regime cubano não terá favorecido uma relação
de tipo carismático na gestão do poder, ou, por outras
palavras, se não terá sido favorecido em Cuba o culto
da personalidade, entendido como exaltação de
elementos carismáticos na relação com os
governantes. Sem querermos discutir se e em que
medida a categoria do poder carismático é, sem mais,
aplicável à realidade contemporânea, a resposta à
interrogação é, de qualquer modo, totalmente
negativa.
Enquanto a relação carismática se define por seu
caráter imediato e pela sua direção (de alto para
baixo), o grupo dirigente cubano pôs sempre o maior
empenho em criar estruturas de igregação e
organização da sociedade civil (parido, sindicatos,
comitês de dejensa revolucionaria, etc). Procurava
assim criar, ao mesmo tempo, níveis intermédios entre
a sociedade e o Estado e, com eles, níveis de
autonomia e de relação dialética em face do poder
central. Além disso, ocorreu também em Cuba o que
Weber já havia definido como tendência intrínseca da
autoridade carismática: a de exaurir e, por isso, se
institucionalizar. Após a primeira fase de
consolidação do regime, muito baseada no em-pirismo
e na mobilização ideológica, o sistema político se
ajustou, não sem problemas, aos sólidos esquemas das
democracias populares. De resto, a própria figura de
Fidel Castro foi pouco a pouco adquirindo novas
dimensões diante do constante robustecimento da
gestão coletiva do poder e do tecido político que
interliga a sociedade civil.
155
BIBLIOGRAFIA - AUT. VÁR., Le radiei storiche
della rivoluzione cubana, in "Ideologie", n." 5-6,1968;
F. CASTRO, La rivoluzione cubana. Editori Riuniti,
Roma 1961; R. DEBRAY, Rivoluzione nella rivoluzione
? Feltrinelli, Milano 1967; E. CHE GUEVARA, Scritti,
discorsi e diari di guerriglia. 1959-1967, Einaudi,
Torino 1969; H. THOMAS, Storia di Cuba (1971),
Einaudi, Torino 1973; S. TUTINO, L’ottobre cubano,
Einaudi, Torino 1968.
[LUCIANO BONET]
Catolicismo Liberal.
O termo Catolicismo liberal é um termo do século
XIX, sem referências com períodos anteriores,
embora o de "católico liberal" possa talvez ter sido
usado (não pelos contemporâneos, mas pelos
narradores de nosso tempo) para indicar sacerdotes ou
leigos de "manga larga" (de consciência liberal e
aberta), antítese dos escrupulo-sos, sempre com medo
de estar em pecado e que pusessem no mesmo plano
qualquer infração a preceitos religiosos, qualquer que
fosse sua importância.
O Catolicismo liberal se delineia na França, na
Itália e na Bélgica mas com ramificações na Espanha
e na América Latina, após a Revolução Francesa, para
designar um catolicismo que não só aceita mas
propugna as formas de Governo liberais, e julga não
ser oportuna, em qualquer circunstância, a aliança
entre o trono e o altar.
No ANCIEN RÉGIME, apesar dos contrastes
freqüentes entre Santa Sé e Estados (quando não
chegavam ao cisma), a obediência aos preceitos do
soberano constituía um dever também religioso: o
sonegador de impostos, o contrabandista, quem
cunhava moedas falsas estava em pecado; em pecado
estava também quem criticava em seus discursos o
monarca; o confessor tinha que negar a absolvição ao
penitente que recusasse denunciar maquinações contra
o soberano, e seus cúmplices. O rebelde, em seu
íntimo, mesmo sem ter chegado a ações contra o
soberano (que é dependente somente ao juízo de
Deus), o negador da potes-tade do príncipe, era um
pecador.
Na época da Restauração, especialmente entre o
clero se torna patente uma divisão entre aqueles que
se conservam fiéis à idéia do direito divino dos reis e
ao princípio da legitimidade, pelo qual são
usurpadores aqueles que se proclamam soberanos,
contrastando o direito que caberia ao membro da
família ou à pessoa que recebeu do alto a investidura
(na Espanha, durante a primeira guerra carlista,
grande parte do clero lutou com armas, chefiando seus
paroquia-nos, em favor do pretendente dom Carlos
contra
156
CAUDILHISMO
os constitucionalistas, a rainha Isabel e a regente
Cristina), e aqueles que, pelo contrário, sustentavam
ser aceitável pelo católico qualquer forma política,
desde que não contrastasse com a liberdade da Igreja
e com o poder do magistério desta; afirmam
outrossim que seria impossível ou, de qualquer forma,
prejudicial voltar aos velhos regimes.
Para não confundir as diversas épocas, é preciso
acrescentar que para o católico liberal do século XIX
o Estado não somente não deve usurpar os direitos da
Igreja, mas deve conservar uma característica cristã na
sua legislação: dessa forma, manter o matrimônio
indissolúvel e deixar à Igreja o direito de
regulamentá-lo e de celebrá-lo; punir o adultério, a
blasfêmia, etc; o Estado, ao invés, garantirá igualdade
de direitos aos membros de outras confissões
religiosas, como também aos incrédulos.
Na Bélgica, especialmente, católicos liberais foram
todos aqueles que aceitaram de bom grado uma
Constituição que importava na separação da Igreja do
Estado, deixando uma livre competição entre
católicos e seus contrários (quase como símbolo, as
universidades de Lovaina e de Bruxelas). Na França
se considerou tal o padre La-cordaire, em
contraposição com os integralistas intransigentes, e
enquanto compreensivo dos movimentos nacionais.
Na Itália, o Catolicismo liberal se afirmou, na
questão do poder temporal, considerando-se católicos
liberais todos aqueles que queriam que o Papa
renunciasse ao poder temporal, para se poder
constituir a unidade nacional; a figura eminente foi o
padre Cario Passaglia, religiosamente ortodoxo, que
sustentou a proclamação do dogma da Imaculada
Concepção. Considera-se expoente do Catolicismo
liberal italiano Alexandre Manzo-ni, e há quem
considere também César Cantú, veemente opositor do
matrimônio civil, e Stefano Jacini, ministro de
Vittorio Emanuele Il e admirador de Cavour, mas nas
discussões do Parlamento de 1871 contrário à
transferência da capital para Roma. Não é
considerado, ao invés, católico liberal Marco
Minghetti, expoente do liberalismo e da atuação do
programa cavouriano, e ao mesmo tempo católico
fervoroso.
As gradações, na realidade, são muitas. Observe-se
que nem o clero nem o laicado puderam compreender
todos os católicos, divididos em dois grupos, o dos
saudosistas dos velhos regimes e dos fautores das
instituições liberais; mas houve também muitos que se
preocuparam somente da prática religiosa e dos
destinos da Igreja, desin-teressando-se dos
acontecimentos políticos, tanto que nem os fatos de
1960-1961 (redução do
Estado Pontifício somente ao Lácio), nem a tomada
de Roma constituíram verdadeiros traumas.
O termo foi usado até o fim do século XIX, quando
se falava, mais do que tudo, de padres patriotas e
padres moderados, desejosos de uma cooperação entre
Igreja e Estado.
O termo, porém, não pode ser aplicado aos
modernistas (os seguidores de Murri não são, de fato,
liberais) nem ser usado para o regime fascista, onde
entre a minoria do clero antifascista existem
integralistas católicos e elementos dispostos a
colaborar com os socialistas: e dom Sturzo estará
sempre na antítese da política liberal.
O termo de católico liberal ressurgiu após o
advento da República, mas num sentido impróprio,
isto é, para indicar o católico que como tal se
comporta na sua vida religiosa, mas não aceita as
diretrizes emanadas pelas hierarquias eclesiásticas no
sentido de votar por um determinado partido que
garanta os interesses da Igreja.
[ARTURO CARLO JEMOLO]
Caudilhismo.
Com o termo Caudilhismo nos referimos ao regime
imperante na maior parte dos países da América
espanhola, no período que vai dos primeiros anos da
consolidação definitiva da Independência, em torno de
1820, até 1860, quando se concretizaram as aspirações
de unificação nacional. O termo, de origem espanhola,
é o adotado no uso corrente e científico, em referência
a esse fenômeno.
O Caudilhismo é caracterizado pela divisão do
poder entre chefes de tendência local: os caudilhos.
Estes líderes, geralmente de origem militar, oriundos,
em sua grande maioria, da des-mobilização dos
exércitos que combateram nas guerras de
independência, de 1810 em diante, provinham, em
certos casos, de estratos sociais inferiores ou de grupos
étnicos discriminados (mestiços, índios, mulatos,
negros). Para grande parte deles, o Caudilhismo, com
sua organização paramilitar, constituiu um canal de
mobilidade vertical. Valiam-se do seu magnetismo
pessoal na condução das tropas, que haviam recrutado
geralmente nas áreas rurais e mantinham como reses
requisitadas, em ações guerreiras, seja contra o ainda
mal consolidado poder central, seja contra os seus
iguais, com o apoio dos senhores locais. Esse poder
carismático, exercido ao mesmo tempo de forma
autoritária e paternalista, e retribuído com a adesão
incondicional dos seus homens (e respectivas
mulheres), não possuía uma linha
CENSO
política definida e carecia, como se diria hoje, de
conteúdo ideológico.
Durante os chamados "anos negros da anarquia", o
Caudilhismo foi um obstáculo à realização das
aspirações das elites urbanas do comércio,
empenhadas na construção de Estados nacionais de
acordo com o modelo liberal de inspiração européia
(conflito centro-periferia).
Contudo, durante o período do Caudilhismo, se
estabeleceram, em alguns casos, ditaduras pessoais
unificadoras, quer por obra e força individual de
caudilhos de grande influência, quer por meio de
pactos entre caudilhos. O Caudilhismo se exaure
quando tais regimes cederam o lugar, não sem luta,
aos Governos centrais de inspiração liberal.
O Caudilhismo representou em certos casos a
defesa das estruturas sócio-econômicas tradicionais,
como também o artesanato e a indústria incipiente,
contra as elites burguesas que atuavam na exportação
de matérias-primas, constituindo a típica burguesia
"compradora".
Na América Latina, o termo caudilho ainda
continua a ser usado, como o de cacique, para
designar chefes de partido local ou de aldeia, com
características
demagógicas.
O
epíteto
foi
expressamente rejeitado pelos ditadores militares do
nosso século, pelas conotações naturais e inorgânicas
que implica na região, contrariamente ao que
acontecia na Espanha, onde os partidários do
franquismo chamavam oficialmente o seu chefe de
Caudillo. Mas não se aludia neste caso à tradição
latino-americana, mas ao lema das forças antirepublicanas durante a Guerra Civil (1936-1939):
"una fe, una pátria, un caudillo".
Presentemente, parte dos estudiosos da ciência
política crêem que o Caudilhismo é particularmente
significativo para a compreensão da gênese do
militarismo na América Latina.
[MABEL OLIVIERI]
Censo.
Sistemas visando ao conhecimento da quantidade
de bens possuídos pelos cidadãos estavam em uso já
no antigo Egito e nos reinos do Oriente: um meio
destinado a mostrar bastante aproximadamente quais
os recursos do Estado, tendo em vista sobretudo a
imposição de tributos. O duplo significado da palavra
latina census traduz bastante bem a dualidade das
alternativas censitá-rias: controle dos bens possuídos e
posição social em relação a esses bens. Havendo esta
prática caído cada vez mais era desuso a partir da
época
157
das guerras civis, devido às novas formas sociais que
estavam surgindo, a própria palavra census acabou por
perder o seu significado primitivo durante a época
feudal, passando a significar uma contribuição in
natura ou em dinheiro, que incumbia ao senhor feudal
pela concessão de uma terra em feudo. Na
especificação de census capitis continuava a designar
a numeração das pessoas por interesses fiscais; mas
tais Censos eram irregularmente mantidos pelos
Estados feudais (a censa del sale, por exemplo). Após
a queda do ANCIEN RÉGIME e a constituição de
regimes burgueses, as divisões sociais não se
baseavam mais na origem nobre, burguesa ou rústica,
mas no fato de pertencer a uma classe com
determinado tipo de renda. A nova sociedade
burguesa se ia constituindo sobre bases estritamente
censitárias,
mais
facilmente
adaptáveis
às
necessidades do desenvolvimento econômico. A
sanção política de tal sistema surgiu com a formação
de um sistema parlamentar representativo, que excluía
das eleições todos aqueles que não atingissem um
certo Censo, excluindo-os, por isso, da possibilidade
de se fazer representar politicamente. O Censo
eleitoral era o custo da contribuição necessária para
ser considerado eleitor. Este sistema estendeu-se a
todos os países da esfera de influência européia
durante o século XIX. Na Itália, o sistema censitário
teve uma primeira versão duradoura no Statuío
Albertino, 1848, mantendo-se inalterado mesmo com
a formação do Reino; os eleitores eram cerca de
620.000. Este número foi depois ampliado em 22 de
janeiro de 1882. Exigia-se a instrução elementar
obrigatória e um Censo anual de L. 19,80; os eleitores
aumentaram para 2 milhões. Seria longo acompanhar
todas as vicissitudes da legislação nesta matéria.
Bastará recordar que, em 30 de junho de 1912, era
concedido o sufrágio a toda a população masculina
maior de trinta anos (8.700.000 eleitores) e que,
finalmente, a 16 de dezembro de 1918, o direito a voto
era reconhecido a todo o varão maior de idade. Após
as restrições fascistas do T. U. de 15 de fevereiro de
1948, foi restabelecido o sistema proporcional, agora
corrigido, sendo instituídos 31 colégios eleitorais e
conce-dendo-se o direito a voto a toda a população
maior de idade, tanto masculina como feminina. Um
sistema eleitoral censitário continua geralmente a
alargar seus limites, de acordo com o aumento da
consciência política das categorias e classes sociais, e
não representa senão uma etapa rumo ao sufrágio
universal, conquistado pela maior parte dos países
ocidentais no início do século XX.
[MAURO AMBROSOLI]
158
CENTRISMO
Centrísmo.
I. O CENTRÍSMO EM GERAL. — Centrismo deriva
claramente de centro. Em linhas gerais, o centro,
segundo a visão geométrica tradicional da política, que
se baseia na dicotomia "mudança-con-servação", e é a
posição intermédia por excelência (v. ESPAÇO
POLÍTICO). Quando o grau de polarização das partes
que se defrontam se eleva a ponto de pôr em grave
perigo a mútua existência física, é então que nascem
os agrupamentos, as coalizões, as tendências de
opinião, os partidos de centro, as atitudes e políticas
cen-tristas. As motivações que determinam o
Centrismo pressupõem todas elas a dificuldade da
escolha; todavia, podem ser assim esquematiza-das:
escolhe-se o Centrismo, ou porque se crê que ambas as
posições opostas apresentam elementos positivos tais
que justifiquem uma síntese ou mediação, ou porque
se considera que ambos os contendores estão errados;
então, a via justa está em situar-se ao centro, isto é,
acima das facções. Sob o aspecto valorativo, não cabe
a menor dúvida de que o Centrismo corresponde ao
moderan-tismo. Mas, enquanto para os centristas in
médio est virtus, para os opositores, Centrismo é
sinônimo de indecisão, de imobilismo, de
oportunismo, etc. Atendendo finalmente ao caso da
Itália, podemos muito bem afirmar que, desde o
sentido giolittiano "nem reação, nem revolução" ao
mais recente "progresso sem aventuras", nos
encontramos assaz freqüentemente com uma sólida
vocação centrista, ao longo de um século da nossa
vida política.
II. O CENTRISMO COMO FÓRMULA DE GOVERNO. —
Mas o uso do termo Centrismo não se limita apenas a
isto. Entre outros casos, queremos lembrar que hoje,
sob esse nome, se entende aquela forma particular de
coalizão quadripartida entre a Democracia Cristã, o
Partido Liberal, o Partido Socialista Democrático e o
Partido Republicano, que constituiu a maioria sob a
qual se mantiveram quase todos os Governos do apósguerra até o início dos anos 60, época em que se
formou o centro-esquerda. O Centrismo foi
excogitado por De Gasperi, para excluir do Governo
os extremistas da esquerda, comunistas e socialistas,
ligados por um pacto de unidade de ação, e os
extremistas da direita, neofascistas e monárquicos.
O ciclo do Centrismo iniciou-se com a vitória
eleitoral da Democracia Cristã na consulta popular de
18 de abril de 1948, onde ela alcançou 48,5% dos
sufrágios e, além disso, a maioria absoluta das
cadeiras no Parlamento. Não obstante a possibilidade
de organizar um Governo
monocolor majoritário, De Gasperi preferiu aliar-se
aos outros partidos menores do centro, a fim de
contrabalançar, não só as alas extremas da
composição parlamentar, como também eventuais
veleidades autoritárias, integralistas e clericais,
surgidas do seio do seu próprio partido. A tarefa dos
Governos centristas da primeira legislatura
republicana consistiu em iniciar a reconstrução do
após-guerra, mas também em restabelecer a
autoridade tradicional do Estado e em isolar a
esquerda e a direita, com o fim de assegurar a
sobrevivência do sistema democrático-parlamen-tar,
para a qual seria perniciosa, na opinião dos
moderados, a vitória de qualquer das duas extremas.
Depois dos Governos do Comiialo di Liberazione
Nazionale, os Governos centristas levaram a cabo o
que alguns denominaram "restauração", repetindo a
exclusão, através dos partidos que mais diretamente as
representavam, P.C.I. e P.S.I., daquelas forças
populares que a Itália liberal e a Itália fascista, embora
com sistemas totalmente diversos, sempre tinham
procurado manter cuidadosamente à margem da vida
política nacional. Além disso, o Centrismo, como
solução moderada, permitiu que a Democracia Cristã
assumisse o papel de partido hegemônico dentro do
sistema. Como partido-coalizão, era o partido não só
de grupos de origem católica, como também de boa
parte dos descendentes daquilo que se poderia
justamente chamar "partido dos notáveis" liberais. O
resultado de tal hegemonia não podia ser senão o da
estabilização do sistema sobre bases moderadas,
acusando-a os opositores de imobilismo, de ser o fim
de todo o propósito reformador e de toda a
participação popular. Na tentativa de pôr termo a tal
impasse, chegou-se ao ocaso do Centrismo como
fórmula de Governo, dando lugar ao centro-esquerda,
onde o Partido Socialista, livre do compromisso com
os comunistas, ocupava o lugar do componente
liberal. Contudo, esta nova coalizão, devido ao
moderantismo intrínseco que viciava a Democracia
Cristã, acabou por não ser senão uma limitada
ampliação das fontes de legitimação do Governo,
tanto que hoje muitos escritores políticos, lembrados
da experiência dos anos 50, a acusam com bastante
freqüência de "neocen-trismo".
III. O CENTRISMO COMO MODO DE
FUNCIONAMENTO DE UM SISTEMA DE
PARTIDOS. — Apercebemo-nos até aqui de dois usos
correntes, preponderantemente jornalísticos, do termo
de que estamos tratando: é sinônimo de moderantismo
e designa uma fórmula política que desempenhou um
papel decisivo na história recente da Itália. Mas o uso
do termo Centrismo pode ser também
CESARISMO
encontrado nos escritos de sociologia e ciência
políticas. Neste campo, o Centrismo refere-se a um
contexto bastante específico, isto é, ao sistema dos
partidos. A descrição mais adequada é a que resulta de
uma amplíssima pesquisa dedicada aos sistemas
partidários, de alcance mundial, realizada por
Giovanni Sartori (1966). Mas não se pode negar a
Maurice Duverger o ter falado antes (1964) deste
Centrismo, se bem que referindo-se exclusivamente
ao contexto francês.
Pelo que se refere a este último, será útil lembrar
que ele começa por não aceitar as interpretações
anteriores sobre o sistema de partidos na França,
hipóteses que se podem agrupar fundamentalmente
em duas teses essenciais: para uma, o sistema francês
está organizado segundo um esquema dualístico; a
outra julga-o caracterizado por uma confusa
multiplicidade. Para Duverger, não obstante a
aparente relevância do discriminador direita-esquerda,
a luta política não se desenvolve baseada nessa
contraposição. Na grande maioria dos regimes.
Diretório, Primeiro Império, Monarquia de Julho,
Segundo Império, Terceira, Quarta e Quinta
República, a política francesa é determinada pelos
grupos de centro, isto é, por uma vasta área onde confluem os moderados das duas formações tradicionais e
em cujo âmbito se podem dar oscilações, mas sempre
de somenos importância. A fisionomia do Centrismo
francês está, pois, marcada pela preponderância dos
moderados da direita e da esquerda que receiam, dada
a aspereza dos antagonismos políticos, ser dominados
e eliminados, se uma das alas extremas vier a
governar. Resta acrescentar que, em seus escritos mais
recentes, Duverger acabou por estender o Centrismo a
todos os sistemas, incluídos aqueles que define ao
mesmo tempo como dualísticos: neste caso, Centrismo
é usado para indicar a predominância dos moderados
no interior de- cada uma das duas formações
antagônicas, tomadas separadamente, e sendo excluída
toda possibilidade de aliança entre elas.
Mas voltemos a Sartori que não fala tanto de
Centrismo quanto de sistemas de partidos cujo
funcionamento se baseia no centro. Em sua exposição,
nem sequer aparece o termo Centrismo. Distingue, de
preferência, entre os sistemas de partidos europeus e
anglo-saxões,
um
pluralismo
simples,
ou
bipartidarismo, um pluralismo moderado, típico dos
países escandinavos e das pequenas democracias
continentais, e um pluralismo extremo, fazendo
referência explícita à França da Quarta República, à
Alemanha de Weimar e à Itália contemporânea. Nessa
tipologia, o critério numérico se emparceira com o
analítico (v. SISTEMAS DE PARTIDO). Aqui nos interessa
159
somente o pluralismo extremo, também chamado
pluralismo polarizado, isto é, aqueles sistemas que
apresentam multiplicidade de partidos, entre os quais
prevalecem, a nível de Governo, os de centro. É neste
âmbito que se desenvolvem todas as formas de
substituição do Governo. Enquanto os sistemas
bipartidários apresentam um completo rotativismo
entre os dois partidos principais, e nos sistemas de
multipartidarismo moderado se estabelecem coalizões
alternativas, no multipartidarismo extremo a mudança
se limita a um rotativismo marginal entre os partidos
menores, chamados de vez em quando, pelo partido
maior, a desempenhar o papel de comparsas.
Enquanto for possível, o partido de centro de maior
peso procurará tomar conta da cena, tentando, com a
ajuda dos demais componentes da coalizão, reduzir ao
mínimo o espaço dos partidos de extrema que, por via
da sua atitude de recusa e de oposição radical, são
definidos por Sartori como anti-sistemas. Entre as
características negativas dos sistemas em questão, são
de mencionar sobretudo duas: a ineficiência e a
instabilidade.
BIBLIOGRAFIA - M. DUVERGER, L’éternel
morais. Essai sur le centrisme français. em "Revue
Française de Science Politique", vol. XIV, fevereiro de
1964; Id., Sociologie polilique, P. U. F., Paris 1966; G.
GIOLITTI, Memorie della mia vila (1922), nova ed.
Garzanti, Milano 1967; A. MASTROPAOLO, Elezioni, in
Il mondo contemporâneo, Storia dlialia, ao cuidado de
N. TRANFAGLIA, La Nuova Itália. Firenze 1978, vol. I;
G. SARTORI, Europeànpoliticalpariies; the case of
polarized pluralism. in política! parties and political
development, ao cuidado de J. LA PALOMBARA e M.
WEINER, Princeton University Press 1966; Id., Parties
and party systems. A framework for analysis,
Cambridge University Press 1976; A. TASCA, Nascita e
avvento del fascismo, La Nuova Itália, Firenze 1950.
[ALFIO MASTROPAOLO]
Centro. — V. Espaço Político.
Cesarismo.
I. CESARISMO, FASCIMO E BISMARCKISMO. — O
termo Cesarismo tem sua origem histórica no regime
instaurado na Roma antiga por Caio Júlio César. A
idéia de um poder forte, que soubesse desvincular-se
dos interesses dos grupos e dos indivíduos e aliar-se
estreitamente ao exército com o fim de articular uma
política equilibrada que correspondesse mais aos
interesses
160
CESARISMO
globais da comunidade, se apresenta repetidas vezes
na literatura medieval e moderna.
Com um sentido moderno, o termo tem sido usado
para designar os regimes instaurados na França pelos
dois Bonapartes, embora as condições históricas
diferissem profundamente das condições típicas do
antigo Cesarismo. Segundo Marx, trata-se de uma
"analogia histórica superficial", visto não se levar
devidamente em conta que, na antiga Roma, a luta de
classes se desenrolava no âmbito de uma minoria
privilegiada (os cidadãos livres), enquanto, com o
desenvolver-se da moderna sociedade industrial, o
campo da luta de classes se alargou, vindo a
compreender praticamente toda a sociedade. No caso
dos dois regimes napoleônicos, seria, portanto, mais
apropriado falar de BONAPARTISMO (v.).
Apesar disso, o teimo Cesarismo alcançou notável
sucesso, havendo merecido a atenção de Gramsci.
Numa rubrica de suas Note sul Machiavelli, é chamada
cesarista "uma situação em que as forças em luta se
equilibram de maneira catastrófica, isto é, se
equilibram de tal forma que a continuação da luta não
pode findar senão com a destruição recíproca"
(Gramsci, 1966, p. 58). Então, o Cesarismo designa a
"solução arbitrai, confiada a um grande personagem,
de uma situação histórico-política caracterizada por
um equilíbrio de forças de perspectivas catastróficas",
que, de quando em quando, segundo condições
histórias, assume um determinado significado político,
mais ou menos progressivo. O próprio Gramsci
distingue o Cesarismo de Napoleão I, que possui um
caráter progressivo como conso-lidador de um novo
tipo de Estado, do de Napoleão III, que é, ao contrário,
regressivo, porquanto não representa ruptura em
relação ao passado, mas é antes uma evolução do tipo
antigo.
Os acontecimentos do. fim do século XIX e da
primeira metade do século XX introduziram outros
dois conceitos que muitos relacionam não raro com o
de Cesarismo: bismarckismo e fascismo. Trata-se,
contudo, de fenômenos notavelmente diversos entre
si. Para Saitta, o que distingue o fascismo do regime
dos Bonaparte é que aquele "surge e se realiza tão-só
onde existem condições efetivas para a passagem do
antigo regime de base individualista para o novo
regime de massa". O fascismo estaria então unido à
presença de organizações de massa, tendentes a
subtrair ao Estado um número cada vez maior de
funções. Neste sentido, se poderia ainda afirmar que o
fascismo não é senão o Cesarismo da sociedade
capitalista desenvolvida, opinião que, aliás, parece ter
sido a de Gramsci. Mas talvez fosse particularmente
útil conservar certa
especificidade do termo Cesarismo, referindo-o
especialmente a situações sociais caracterizadas pela'
criação, se bem que por motivos variados, de um certo
equilíbrio entre as forças políticas e sociais em campo.
Por isso, no jogo político que se desenrola num Estado
cesarista, nenhuma dessas forças, diferentemente do
que ocorre nos regimes fascistas, se acha nunca
completamente vencida. Neste sentido, segundo
Gramsci, todo Governo fruto de coalizão entre várias
forças possui um certo grau inicial de Cesarismo, que
poderá desenvolver-se até atingir formas mais plenas,
caracterizadas pela figura heróica do chefe
carismático.
Mais interessante ainda é a relação com o
bismarckismo. À primeira vista, os dois fenômenos
parecem bastante semelhantes entre si. É indubitável
que o bismarckismo também se caracteriza por uma
relativa autonomia do Estado em face das forças
sociais, constituindo, neste sentido, uma forma de
Cesarismo. Mas convém observar que, historicamente,
o regime de Bismarck atuou numa situação de
transição, que levaria a uma sociedade industrial
moderna, na qual, portanto, não se achavam ainda
bastante desenvolvidas forças sociais fundamentais,
como a burguesia e o proletariado (Poulantzas, 1971,
p. 209).
O conceito foi, todavia, reexaminado e reformulado
de modo interessante, nestes últimos tempos, pelo
sociólogo brasileiro Hélio (aguaribe. Para Jaguaribe,
pode-se falar, relativamente aos chamados países
"subdesenvolvidos",
de
um
modelo
de
desenvolvimento de tipo neobismarckiano. Neste
modelo, o papel do Estado é fortalecido, de modo que
proteja o mercado nacional da penetração de empresas
estrangeiras e exerça uma função de mediação entre os
diversos antagonismos, acelerando o desenvolvimento
do país. Com isto, se tornaria mais fácil a formação e
desenvolvimento de uma burguesia nacional. Esta
tenderia, em seguida, a assumir como própria a gestão
do poder político, inaugurando assim o regime
democrático-representativo de tipo clássico.
Poder-se-ia então dizer que o fenômeno bismarckiano pode mais exatamente referir-se aos
momentos iniciais do desenvolvimento de uma
sociedade, quando certas forças sociais não atingiram
ainda seu pleno crescimento. Usando uma
terminologia de tipo marxista, pode-se afirmar que ele
corresponde a uma fase de transição em que, ao
passar uma sociedade da dominância de um modo de
produção para a de um outro, coexistem em tal
situação classes e grupos sociais característicos de
épocas diferentes. Segundo isso, o regime de
Bismarck seria típico de uma sociedade em transição
do feudalismo para o
CESARISMO
capitalismo, ao passo que o modelo neobismarckiano
de Jaguaribe se referiria, em vez disso, aos países que
têm de afrontar um processo de transição de uma
situação de dependência colonial ou neo-colonial para
uma situação de maior autonomia e independência. O
Cesarismo propriamente dito, segundo as indicações
de Gramsci, parece antes característico de sociedades
que já desenvolveram suficientemente suas
potencialidades e dão, por isso, continuidade a uma
articulação de classes sociais que podemos definir, em
linhas gerais, como moderna.
II. CAUSAS DO CESARISMO. — Quanto à
identificação das causas que podem levar a um regime
cesarista, é útil recordar ainda as considerações de
Gramsci. A causa geral pode encontrar-se co-mumente
numa situação de equilíbrio entre classes e grupos
sociais que se opõem entre si. Esta situação pode ser
naturalmente provocada por causas de natureza muito
diversa. Nota-se, antes de tudo, que o antagonismo
entre os grupos não possui regularmente um caráter
absoluto tal que não permita, em certos momentos,
que as duas forças, antes antagônicas, se harmonizem
até certo ponto, superando assim a contradição
anterior. Um exemplo clássico desta situação nos é
oferecido, em grandes traços, pela luta da burguesia e
da aristocracia na fase de transição para o capitalismo.
Em segundo lugar, a situação de equilíbrio pode ser
devida a causas momentâneas. Uma força, embora seja
predominante num determinado contexto, pode estar,
por vezes, dividida em facções discordes entre si.
Sendo assim, permite que uma outra força, de menor
relevo mas mais compacta, desafie o poder tradicional.
Enfim, uma situação de equilíbrio também pode ser
favorecida pelas relações que intermedeiam dentro do
bloco do poder dominante: entre os grupos principais
das classes que dominam e as chamadas forças de
apoio que estão sujeitas à sua influência hegemônica.
Neste caso, é preciso ter presente que uma mudança de
posição das forças de apoio pode modificar a relação
das forças principais em campo. A situação favorável
ao Cesarismo é assim globalmente definida por
Gramsci: "quando a força progressiva A luta com a
força regressiva B, pode ocorrer, não só que A vença
B ou B vença A, mas também que nem vença A nem
B e, anulando-se ambas reciprocamente, intervenha de
fora uma terceira força, C, e domine o que resta de A e
de B" (Gramsci, 1966, p. 58).
Numa outra óptica, mais propriamente política, foi
identificada por Tocqueville, como fator do
Cesarismo, a predominância cada vez maior da
sociedade sobre o indivíduo e a conseqüente
161
afirmação do que se chama democracia totalitária, isto
é, de um tipo de organização política em que perde
progressivamente a importância uma série
significativa de poderes intermédios, situados entre o
Estado e o indivíduo, com o inevitável aumento do
poder estatal.
Na realidade, é o próprio desenvolvimento da
sociedade ocidental que envolve em si um processo
de atomização e de crescente influência do Estado na
vida dos cidadãos. É aqui que se há de buscar a
gênese do fenômeno cesarista moderno que,
justamente por isso, está, segundo Tocqueville,
estreitamente ligado, quer à democracia plebiscitaria,
quer ao socialismo.
É também nas tendências gerais de democratização
e burocratização da sociedade moderna que Weber
descobre as causas do Cesarismo. Mas, para ele, as
tendências cesarístas, sobretudo quando ocorrem em
estruturas institucionais de tipo liberal-democrático,
desempenham a indispensável função de controlar o
poder crescente da burocracia. Eliminada como
inadequada a hipótese da eleição direta dos burocratas
e dado por suposto o inevitável aumento da
importância da burocracia, fruto de um processo mais
geral de racionalização iniciado pelo capitalismo
moderno, a única solução está na presença de um líder
— um presidente eleito pelo povo ou um chefe
parlamentar vencedor nas eleições —, "homem de
confiança das massas" e por isso capaz de exercer
domínio sobre os funcionários burocráticos e de lhes
limitar o poder. Em suma, o Cesarismo surge como
uma exigência que tende a manifestar-se até nas
democracias parlamentares, como equivalência, a
nível político, do papel do empresário capitalista.
Portanto, desde este ponto de vista, o Cesarismo —
que, para Marx, remontava sobretudo à estrutura
social da França do século XIX — torna-se uma
característica permanente, conquanto variável, da
sociedade moderna.
Pelo que respeita aos aceleradores que permitem ao
processo encontrar um canal concreto, será útil adotar
o conceito gramsciano de crise orgânica. Esta se
verifica quando, numa organização, se geram, a
diversos níveis, graves contrastes entre representantes
e representados.
De fato, em certos momentos, os grupos sociais se
desligam dos seus partidos tradicionais, não mais
reconhecidos desde então como expressão da sua
classe ou grupo social. Quando ocorrem estas crises
de representação, a situação fica imediatamente aberta
a vários canais, freqüentemente representados por
chefes carismáticos. Este tipo de crise é, na
terminologia gramsciana, sobretudo uma crise de
hegemonia da classe dirigente. Crises deste gênero
são amiúde resolvidas com uma
162
CESAROPAPISMO
reestruturação das forças políticas, que restabeleça
eficazmente a relação entre representados e
representantes. Fenômeno evidente deste processo é
comumente a formação de novos partidos ou coalizões
de partidos, e o desmoronamento e dissolução de
outros. Mas esta solução pode não bastar, quando
inserida na já conhecida situação de equilíbrio
estático. Neste caso, a reestruturação das forças
políticas deve ser ainda mais radical, podendo ser
efetuada com êxito por um regime cesarista.
III. O CESARISMO HOJE. — Agora já podemos
compreender o Cesarismo como um regime político
que se caracteriza por forte aparato estatal — ao
menos em relação ao resto da sociedade —, e que
conseguiu gozar de considerável autonomia em
confronto com as forças sociais. Para Trotski, por
exemplo, a essência do bonapartismo "consiste nisto:
apoiando-se na luta de duas facções, salva a nação
com uma ditadura burocrático-militar". Assim, com
seus próprios instrumentos, o poder cesarista pode-se
fazer de mediador entre os interesses contrastantes das
forças sociais; embora não ataque nunca
completamente os interesses dos grupos que gozam de
uma posição dominante na estrutura social, jamais lhes
consolida o poder. Neste sentido, a época
contemporânea apresenta também alguns exemplos de
Cesarismo, se bem que em sua feição
neobismarckiana.
Ao primeiro tipo pertence o gaullismo, que se
inseriu num contexto histórico rico de tradições
cesaristas como o francês: "Assim como Luís
Bonaparte contou com a adesão do povo francês,
quando conseguiu legitimar, por meio de plebiscito,
seu golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851, assim
também De Gaulle fez com que o aprovassem em
plebiscito, a 28 de setembro de 1958" (Duelos).
Ao segundo tipo se assemelham muitos dos
regimes modernos do "Terceiro Mundo". Neste
contexto, é o forte poder estatal que promove, "desde
o alto", o desenvolvimento de uma sociedade moderna
e a formação dos correspondentes grupos e classes,
sem contudo se identificar nunca completamente com
nenhum deles em particular. Como exemplos
concretos, pensemos no Egito de Nasser e na Argélia
de Boumedienne. No regime do general Perón na
Argentina,
pelo
contrário,
os
aspectos
neobismarckianos parecem mais reduzidos. De fato,
embora situado num contexto tido ainda como não
inteiramente "desenvolvido", o regime peronista não
contribuiu de forma determinante para a formação de
uma estrutura de classes relativamente moderna, pela
simples razão de que ela, em certo modo, já existia ou
estava em formação, quando o regime se estabeleceu.
Talvez por esse motivo, o peronismo se limitou à
clássica função da "arbitragem", que parece própria de
todas as esfumaturas do Cesarismo.
BIBLIOGRAFIA. - I. CERVEUJ, - Cesarismo" e
"Cavourismo". A propósito di Heinrich von Sybel.
Alexis de Toc-queville e Max Weber, in "La Cultura",
X, 1972, pp. 337-91; A. DANSETTE, LOULS Napoléon à
la conquéte du pouvoir. Hachette, Paris 1961; J.
DUCLOS, De Napoléon III à de Gaulle, Editions
Sociales, Paris 1961; A. GRAMSCI, Noie sul
Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno.
Einaudi, Torino 1966; H. JAGUARIBF, Economic and
politicat development, Harvard Umversity Press,
Cambridge (Mass.) 1968, L. MANGONI, Cesarismo.
bonapartismo e fascismo, in "Studi Storici", XVII,
1976, n.° 3, pp. 41-61; K. MARX, Il diciolto brumaio di
Luigi Bonaparte (1852), Edúori Riuniti, Roma 1964;
N. POULANTZAS, Potere político e classi sociali (1968),
Editori Riuniti, Roma 1971; A. SAITTA, Dal Jascismo
alia resistenza. La Nuova Itália, Firenze 1961; A.
STAWAR, Liberi saggi marxisti (1961). La Nuova Itália,
Firenze 1973; L. TROSTSKU, Serial 1929-1936,
Einaudi, Torino 1962.
[CARLO GUARNIERI]
Cesaropapismo.
O termo Cesaropapismo indica um sistema de
relações entre Estado e Igreja em que o chefe do
Estado, julgando caber-lhe a competência de regular a
doutrina, a disciplina e a organização da Societas
fidelium, exerce poderes tradicionalmente reservados à
suprema autoridade religiosa, unificando (pelo menos
em via tendencial) na própria pessoa as funções de
imperator e de pontifex. Decorre daí um traço
característico
do
sistema
cesaropapista:
a
subordinação da Igreja ao Estado, que atingiu formas
às vezes tão acentuadas de levar a considerar a
primeira como um órgão do segundo.
Na base do Cesaropapismo está a idéia,
predominante no mundo romano, de que a religião
interessa antes de tudo à coletividade e
secundariamente ao indivíduo: nesta perspectiva,
religião e política aparecem como duas entidades
indissolúveis, tanto que o jus sacrum é considerado
parte integrante do jus publicum, e o chefe do Estado é
também chefe da Igreja.
Esta concepção não obstante seja diretamente
contrária ao princípio judaico-cristão que atribui à
religião uma importância, em primeiro lugar.
CHAUVINISMO
pessoal, ligada a Salus animarum de cada indivíduo e
sobrevive ao edito de Teodósio, que proclama o
cristianismo religião do Estado, e, embora submetida a
ásperas críticas por parte dos pontífices e dos padres
da Igreja, determina o modelo de relações entre Estado
e Igreja em vigor até o desaparecimento do Império
romano do Ocidente (476) e do Oriente (1453). Neste
sistema — que representa a mais completa expressão
histórica do Cesaropapismo —, o Imperador contínua
fazendo valer para com o cristianismo os poderes que
precedentemente exercia em relação aos cultos
pagãos. Ele, portanto, emana normas e sanciona os
decretos dos concílios ecumênicos; convoca os
tribunais eclesiásticos e determina-lhes a competência;
cuida da exata aplicação das leis canônicas, controla a
correta administração dos bens da Igreja e, em muitos
casos, prove a nomeação dos titulares dos ofícios
eclesiásticos (entre os quais os bispos).
Em um modelo de Cesaropapismo se inspiram
também os imperadores do Sacro Romano Império.
Reconstituída a unidade religiosa do" Ocidente, Carlos
Magno reivindica para si a função não somente de
"defender com as armas" a Igreja de seus inimigos
externos, mas também a de "fortificá-la no seu interior
através do maior conhecimento da fé católica" (carta
ao Papa Leão III, 796), deixando, por sua vez, para o
pontífice, só a tarefa de orar pelas vitórias do
Imperador. Nesta base volta a reviver um sistema de
relações entre Estado e Igreja em que os imperadores
francos se reapoderam dos poderes já exercidos pelos
imperadores romanos no campo legislativo, jurídico e
administrativo.
Um pressuposto essencial do modelo do
Cesaropapismo desaparece com a dissolução do
Império e a formação dos Estados nacionais: cada
soberano de fato visa controlar a atividade das Igrejas
nacionais, mas não pode avançar nenhuma pretensão
em relação à Igreja universal. É ainda possível
encontrar tendências de Cesaropapismo na ação de
algum imperador (Filipe, o Belo, e Ludovico, o
Bávaro) ou nas construções teóricas de algum escritor
(em particular, o Defensor Pacis de Marcílio de
Pádua); mas já as tentativas da autoridade estatal de
interferir nos interna corporis da Igreja assumem uma
nova configuração, dando vida a um diferente sistema
de relações entre os dois poderes (v. JURISDICIONALISMO).
Características
de
Cesaropapismo
adquire,
imediatamente após a reforma anglicana, o sistema de
relações entre Estado e Igreja na Grã-Bretanha: mas os
poderes do soberano — que conserva ainda hoje o
título de supreme governor
163
da Igreja da Inglaterra — foram progressivamente
limitados, inicialmente em favor do Parlamento e mais
recentemente em favor de organismos eclesiásticos,
reduzindo-se, enfim, a muito pouco. Maior resistência,
ao contrário, demonstrou o sistema do Cesaropapismo
na Europa oriental, onde mais forte se fez sentir a
experiência da Igreja bizantina: na Rússia, os czares
mantiveram sempre uma posição proeminente na
orientação da Igreja ortodoxa.
BIBLIOGRAFIA. - P. R. COLEMAN NORTON.
Roman State and Christian Church. A collection of
legal documents Io A. D. 535. I. P. C. K., London
1966; S. Z. EHLER, J. B. MORRAL, Chiesa e Stato
attraverso i secoli, Vita e Pensiero, Milano 1958; H.
JEDIN, LM Chiesa ira Oriente e Occidente, ín Storia
della Chiesa. Jaca Book, Milano 1978, vol. III; H.
RAHNER, Chiesa e struttura política nel cristianesimo
primitivo, Jaca Book, Milano 1979; F. RUFFINI,
Relazioni tra Stato e Chiesa. Il Mulino, Bologna 1974.
[SILVIO FERRARI]
Chauvinismo.
Com este termo indica-se uma atitude de
exasperado e cego patriotismo, que leva sempre a
seguidas polêmicas negadoras dos direitos de outros
povos e nações. A palavra tem origem no nome do
soldado Nicolas Chauvin, valoroso combatente das
guerras napoleônicas, famoso por sua fidelidade ao
Imperador, mesmo durante o período da Restauração,
cuja figura é sempre mencionada como exemplo de
fanatismo patriótico, através de caricaturas, canções e
anedotas, especialmente após a representação da
comédia La cocarde tricolore, épisode de la guerre
d'Alger (1831), de autoria dos irmãos Gogniard. Esta
comédia teve grande sucesso na França, especialmente
durante o reinado de Luís Felipe, e o termo ganhou
fama também em outros países para indicar toda a
forma de extremo nacionalismo
Na Inglaterra, porém, usa-se o termo gingoísmo
(jingoism), que deriva do nome da deusa japonesa
fingo, que figura como interjeição numa canção
popular de cunho nacionalista, em voga no tempo da
guerra russo-turca de 1878.
[GIORGIO BIANCHI]
Cidade-Estado. — V. Pólis.
164
CIÊNCIA POLÍTICA
Ciência Política.
I. CIÊNCIA POLÍTICA EM SENTIDO AMPLO E SENTIDO
ESTRITO. — A expressão Ciência política pode ser
usada em sentido amplo e não técnico para indicar
qualquer estudo dos fenômenos e das estruturas
políticas, conduzido sistematicamente e com rigor,
apoiado num amplo e cuidadoso exame dos fatos
expostos com argumentos racionais. Nesta acepção, o
termo "ciência" é utilizado dentro do significado
tradicional como oposto a "opinião". Assim, "ocuparse cientificamente de política" significa não se
abandonar a opiniões e crenças do vulgo, não formular
juízos com base em dados imprecisos, mas apoiar-se
nas provas dos fatos. Neste sentido, a expressão não é
nova, mas usada largamente no século passado,
especialmente na Alemanha; não é supérfluo recordar
que os célebres Lineamenli di filosofia del dirilto de
Hegel (1821), cujo subtítulo é Scienza dello stato
(Staatswissenchaft) in compêndio. Na Alemanha, na
primeira metade do século passado, desenvolveu-se
uma importante tradição de ciência do Estado, através
de cientistas dedicados aos estudos da organização
estatal (da administração pública), como Roberto von
Mohl e Lorenz von Stein. Na França e na Itália teve
maior aceitação a expressão Ciência política, como
mostra a célebre coleção de obras italianas e
estrangeiras, intitulada Biblioteca di scienze poli-tiche,
dirigida por Attilio Brunialti, que antepôs um ensaio
de sua autoria sobre Le scienze politiche nello stato
moderno (vol. I, 1884, pp. 9-74).
Em sentido mais limitado e mais técnico,
abrangendo uma área muito bem delimitada de
estudos especializados e em parte institucionalizados,
com cultores ligados entre si que se identificam como
"cientistas políticos", a expressão Ciência política
indica uma orientação de estudos que se propõe
aplicar à análise do fenômeno político, nos limites do
possível, isto é, na medida em que a matéria o
permite, mas sempre com maior rigor, a metodologia
das ciências empíricas (sobretudo na elaboração e na
codificação derivada da filosofia neopositivista). Em
resumo, Ciência política, em sentido estrito e técnico,
corresponde à "ciência empírica da política" ou à
"ciência da política", tratada com base na metodologia
das ciências empíricas mais desenvolvidas, como a
física, a biologia, etc. Quando hoje se fala do
desenvolvimento da Ciência política nos referimos às
tentativas que vêm sendo feitas com maior ou menor
sucesso, mas tendo em vista uma gradual acumulação
de resultados e a promoção do estudo da política
como ciência empírica rigorosamente compreendida.
Neste sentido mais específico de "ciência", a
Ciência política vem cada vez mais se distinguindo da
pesquisa, voltada não mais para a descrição daquilo
"que deve ser", pesquisa esta à qual convém mais
propriamente dar o nome de "filosofia política", usado
comumente. Aceitan-do-se esta distinção, as obras dos
clássicos do pensamento político são, em sua maior
parte, obras nas quais mal se distingue aquilo que
pertence à filosofia, enquanto os "cientistas políticos"
contemporâneos tendem a caracterizar as próprias
obras como "científicas", para acentuar aquilo que as
distingue da filosofia. Embora não seja o caso de
deter-se sobre o conceito de "filosofia política",
enquanto diferente da Ciência política, é conveniente,
pelo menos, advertir que voltam a fazer parte da noção
de filosofia política como estudo orientado
deontologicamente, tanto as construções racionais da
ótima república, que deram vida ao filão das "utopias",
quanto as idealizações ou racionalizações de um tipo
de regime possível ou já existente, características das
obras dos clássicos do pensamento político moderno
(como Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel). Mais
do que distinguindo entre projeção utópica ou
idealizante e análise empírica, Sartori individualiza a
diferença entre filosofia política e Ciência política, na
falta de operatividade ou aplicabilidade da primeira,
pois "a filosofia não é. .. um pensar para aplicar, um
pensar em função da possibilidade de traduzir a idéia
no fato", enquanto a ciência "é a teoria que reenvia à
pesquisa, tradução da teoria em prática", afinal um
"projetar para intervir" (La scienza política, p. 691).
Poderia objetar-se que, em relação à operatividade,
não significa que os ideais tenham sido na história das
mudanças políticas menos "operativos" do que os
conselhos dos "engenheiros" sociais.
II. CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA
CONTEMPORÂNEA. — Embora a constituição
POLÍTICA
da Ciência
política em ciência empírica como empreendimento
coletivo e cumulativo seja relativamente recente,
podem ser consideradas obras de Ciência política, ao
menos em parte, e na sua inspiração fundamental,
também no sentido limitado e técnico da palavra,
algumas obras clássicas, como as de Aristóteles.
Maquiavel, Montesquieu, Tocqueville, enquanto elas
tendem à formulação de tipologias, de generalizações,
de teorias gerais, de leis, relativas aos fenômenos
políticos, fundamentadas, porém, no estudo da
história, ou seja, apoiando-se na análise dos fatos.
É verdade, todavia, que a Ciência política, como
disciplina e como instituição, nasceu na metade do
século passado; ela representa um
CIÊNCIA POLÍTICA
momento e uma determinação específica do
desenvolvimento das ciências sociais, que caracterizou
justamente o progresso científico do século XIX e teve
suas expressões mais relevantes e influentes no
positivismo de Saint-Simon e Comte, no marxismo e
no darwinismo social. Enquanto momento e
determinação específica do desenvolvimento das
ciências sociais, o nascimento da Ciência política
moderna se processa através do distanciamento dos
estudos políticos da matriz tradicional do direito
(particularmente do direito público). Não devemos
esquecer que a filosofia política moderna, a partir de
Hobbes até Kant, apresenta-se como parte, não mais
do que uma parte, do desenvolvimento do direito
natural, no qual o Estado aparece como uma entidade
jurídica, criada através de um ato jurídico (como o
contrato ou os contratos, que constituem o fundamento
de sua legitimidade), e criador ele mesmo, uma vez
instituído de direito (o direito positivo). Este
distanciamento da matriz jurídica é evidente e
declarado nos dois autores, que mais do que quaisquer
outros, podem ser considerados, a meu ver, como
iniciadores da Ciência política moderna: Ludwig
Gumplowicz, cuja obra Die soziologische Staatsidee é
de 1892 e Gaetano Mosca, que publicou a primeira
edição dos Elementi di scienza política, em 1896.
No nosso século, o desenvolvimento da Ciência
política acompanha de perto a sorte das ciências
sociais e sofre influência, seja no que se refere ao
modo de aproximar-se da análise do fenômeno político
(approach), seja no que se refere ao uso de certas
técnicas de pesquisa. O país no qual a Ciência política
como ciência empírica foi mais cultivada, os Estados
Unidos, foi justamente aquele no qual as ciências
sociais tiveram, nos últimos cinqüenta anos, o maior
desenvolvimento. Com referência ao approach, 'que
surgiu com particular intensidade nos últimos vinte
anos (embora o seu início remonte ao artigo de
Charles E. Merriam, The present state of the study of
politics, de 1921), a passagem do ponto de vista
institucional, dominado ainda pela matriz jurídica
tradicional dos estudos políticos, para o ponto de vista
"comportamental", segundo o qual o elemento
simples, que deve iniciar o estudo político com
pretensões ao uso, legítimo e fecundo, da metodologia
das ciências empíricas, é o comportamento do
indivíduo e dos grupos que têm ação política. Para
exemplificá-lo, bastará lembrar o voto, a participação
na vida de um partido, a busca de uma clientela
eleitoral, a formação do processo de decisão nos mais
diversos níveis. Com referência às técnicas de
pesquisa, aconteceu uma mudança igualmente decisiva
a partir do uso exclusivo baseado na coleta de dados
da
165
documentação histórica, da qual se valeram estudiosos
políticos do passado, desde Aristóteles até Maquiavel, de Montesquieu até Mosca, do emprego
sempre mais freqüente da observação direta ou da
pesquisa de campo, através de técnicas tiradas da
sociologia, da investigação por sondagem ou por
entrevista. Isto foi possível em conseqüência da
aproximação comportamental. Esta transformação
teve como resultado um enorme aumento de dados à
disposição do pesquisador, que exigiu por sua vez,
para a sua padronização, e, portanto, para uma
utilização mais profícua, o uso sempre crescente de
métodos quantitativos. A aplicação cada vez mais
extensiva dos métodos quantitativos nas ciências
sociais, repercutindo-se na Ciência política, embora
por vezes depreciada e na prática nem sempre
proveitosa,
aparece
inevitavelmente
pela
transformação acontecida no objeto da pesquisa; isto,
porém, não significa que seja, ou que chegue a ser
exclusiva e exaustiva.
III. SUAS CONDIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO. — Em
comparação aos estudos políticos do passado, o estado
presente da Ciência política caracteriza-se pela
disponibilidade de um número de dados
incomparavelmente maior do que aquele de que
poderiam dispor os estudiosos do passado. Além da
mudança da aproximação e da introdução de novas
técnicas de invenção, o crescente número de dados
depende também da gradual extensão dos interesses
políticos fora da área das nações européias ou de
influência européia, seja no tempo (civilização
primitiva, mundo oriental, civilizações précolombianas), seja no espaço (referentes às chamadas
nações do Terceiro Mundo). lá Mosca, analisando as
instituições do México, da índia e da China, destacou
a pouca credibilidade da análise de Maquiavel, que
tirou seus dados unicamente da história romana e de
algumas nações de seu tempo. A ampliação dos
horizontes culturais dos cientistas políticos de hoje,
além dos tradicionais limites da ciência européia atual,
poderia permitir dirigir a Mosca a mesma crítica que
ele fez a Maquiavel. Karl Deutsch enumera nove
espécies de dados desenvolvidos nos últimos anos
pelos cientistas políticos, ou postos à sua disposição:
elites, opiniões de massa, comportamento de voto dos
eleitores e dos membros do Parlamento, os chamados
dados agregados colhidos nas estatísticas e relevantes
para o estudo dos fenômenos políticos, dados
históricos, dados fornecidos por outras ciências sociais
sobre as condições e os efeitos da comunicação, dados
secundários, derivados de novos processos analíticos,
matemáticos e estatísticos e de programa de
computers. Para ter-se idéia da real importância dos
novos dados dos quais pode dispor hoje o cien
166
CIÊNCIA POLÍTICA
tista político, ocorre acrescentar que cada uma das
nove espécies de dados torna-se, pouco a pouco,
acessível a um número cada vez maior de países. Em
outras palavras, a expansão intensiva dos dados
caminha tanto quanto a expansão extensiva dos
mesmos.
O rápido aumento extensivo de dados tornou
possível uma ampliação cada vez maior da
comparação entre os regimes dos diversos países,
estimulando os estudos de política comparada, a ponto
de induzir alguns a identificar sic et simpliciter a
Ciência política contemporânea na especificação, ou
seja, na diferença que a distingue das disciplinas afins
e dos estudos políticos do passado com a política
comparada. Na realidade, a política comparada não é
uma novidade: o estudo dos fatos do fenômeno
político, que tem origem em Aristóteles, teve início
com a comparação entre diversas constituições gregas.
Uesprit des lois, de Montesquieu, nasceu de uma
grandiosa tentativa de "comparar" entre si o maior
número possível de regimes de todas as partes do
mundo. Como dizíamos, aquilo que é novo é a
quantidade de dados à disposição, mas trata-se de uma
diferença quantitativa e não qualitativa. É provável
que o particular relevo dado à política comparada por
alguns dos mais prestigiados cientistas políticos dos
últimos anos dependa também de terem erroneamente
isolado, entre outros, métodos dos quais se serviria a
Ciência política, tais como o método experimental, o
método histórico e o método estatístico, um
pressuposto "método comparativo", do qual teria o
monopólio exatamente a política comparada. De fato,
um método comparativo não existe: a comparação é
um dos procedimentos elementares e necessários a
toda a pesquisa que pretenda tornar-se científica.
Mesmo quem estuda o sistema político italiano servese habitualmente da comparação para analisar as
diferenças, digamos, entre o Parlamento de hoje e
aquele de ontem. O uso lingüístico de denominar
política comparada o estudo que compara instituições
de diversos países não invalida o fato do
procedimento usado ser idêntico àquele que vem
sendo empregado por quem se propõe a notar as
semelhanças e as diferenças entre duas instituições do
mesmo país numa dimensão histórica. Este faz
comparação, mesmo quando aquilo que faz não se
pode chamar (por causa de um certo uso lingüístico
consolidado) exatamente política comparada. Por
outro lado, o estudioso de política comparada não se
limita somente a utilizar o processo de comparação
com a finalidade de comparar regimes dos diferentes
países, mas faz largo uso também dos métodos
histórico e estatístico. Em outras palavras, a política
comparada não tem apenas a exclusividade
da comparação (no sentido que os politólogos
comparatistas façam somente comparação).
IV. AS PRINCIPAIS OPERAÇÕES DA CIÊNCIA
POLÍTICA. — A crescente acumulação de dados
permite à Ciência política contemporânea proceder
com maior rigor na execução das operações e na
obtenção dos resultados que são próprios da ciência
empírica: classificação, formulação de generalizações
e conseqüente formação de conceitos gerais,
determinação de leis, pelo menos de leis estatísticas e
prováveis, de leis de tendência, de regularidade ou
uniformidade, elaboração (ou proposta) de teorias.
Como exemplo de classificação, podemos citar as
várias tentativas recentes de aperfeiçoar a tipologia
dos regimes políticos que por séculos ficou presa k
classificação aristotélica das três formas puras e das
três correspondentes formas impuras de Governo. Um
exemplo já aceito de classificação é a tripartição
weberiana das formas de poder legítimo (tradicional,
legal e carismático), que ainda hoje é usada, mesmo se
suscetível de ser muito mais articulada. Procedimento
típico de generalização é aquele que conduziu a
formulação do conceito de poder, freqüentemente
considerado, como o conceito unificador de todos os
fenômenos que caem no âmbito da política (no sentido
de considerar-se como fenômeno político aquele no
qual se encontra um elemento recon-duzível ao
conceito de poder). Pode-se considerar um exemplo
bastante fecundo de hipóteses, mesmo que bem longe
de ser verificado, aquele que presidiu à recente
proliferação dos estudos sobre "desenvolvimento
político": a hipótese é que a uma dada fase de
desenvolvimento
econômico-social
corresponde
sempre uma determinada fase do desenvolvimento
político, de onde deriva a conseqüência (prescritiva)
sobre a impossibilidade ou a inoportunidade de
acelerar o desenvolvimento político, se este não vem
acompanhado de uma correspondente aceleração do
desenvolvimento econômico. Uma das regularidades
ou uni-formidades às quais a Ciência política, até hoje,
parece disposta a dar maior crédito é aquela que deu
origem à teoria da classe política ou das elites,
segundo a qual em cada regime, seja qual for sua
"fórmula política", é sempre uma minoria organizada
ou um número muito restrito de minorias, em luta
entre elas, que governam o país. Esta regularidade foi
considerada por Roberto Michels, no seü estudo a
respeito dos partidos, como verdadeira lei (chamada
"lei férrea da oligarquia"). Formularam-se leis de
tendência por Marx e Engels, retomadas depois por
Lenin, focalizando a gradual extinção do Estado no
assim chamado "Estedo de transição", partindo da
CIÊNCIA POLÍTICA
hipótese que o aparelho estatal seja necessário até que
dure a divisão da sociedade em classes antagônicas. Se
por "teoria" se entende, num dos seus muitos
significados, um conjunto de proposições com relação
entre si (mas não tendo necessariamente o status de
proposições empíricas), de modo a formar uma rede
coerente de conceitos que sirvam de orientação para a
explicação (e a previsão) num campo bastante vasto,
hoje uma das teorias mais aceitas, ou pelo menos
bastante discutidas entre os cientistas políticos, é a
"sistêmica" {general sysiem theory), proposta por
David Easton, segundo a qual a vida política no seu
conjunto é considerada como um processo de inputs
(perguntas) que nos chegam do ambiente externo
(econômico, religioso, natural, etc.) e que se
transformam em outpuls (respostas), que seriam as
decisões políticas em todos os níveis, que, por sua vez,
retroagem sobre o ambiente circunstante provocando,
assim, sempre novas perguntas.
V. EXPLICAÇÃO E PREVISÃO. — Através desta série
de operações, que vai da classificação à formulação de
generalizações, de uniformidade, de leis de tendência
e de teorias — operações estas que o acúmulo
crescente de dados torna sempre mais fecundas, mas,
ao mesmo tempo, sempre mais difíceis —, a Ciência
política persegue a finalidade, que é própria de cada
pesquisa que ambicione ao reconhecimento do status
de ciência (empírica), de explicar os fenômenos objeto
de seu interesse, e não apenas limitar-se a sua
descrição. O enorme número de dados dos quais o
estudioso de fatos políticos pode dispor, juntamente
com o uso de métodos quantitativos que permitem,
não apenas sua padronização, mas também a sua cada
vez mais rápida utilização, pôs eu crise o tipo de
explicação que, até aqui, prevaleceu nas ciências
sociais tradicionais e arte-sanais, explicação esta
fundada na pesquisa apenas de um ou de poucos
"fatores", e, ao mesmo tempo, incentivou os
pesquisadores a considerarem uma notável pluralidade
de variáveis significativas, cuja análise de suas interrelações é sempre confiada ao cálculo estatístico.
O estágio presente da Ciência política,
caracterizado pela difusão da técnica da análise de
muitas variáveis {multivariate analysis), representa,
em relação ao objetivo principal de cada pesquisa que
se queira apresentar como ciência, ou seja, com
referência à explicação, de preferência um momento
crítico ou, no máximo, re-construtivo, mas não
representa ainda o tão esperado momento construtivo
e inovador. Têm sido recusadas as explicações
tradicionais consideradas simplistas, enquanto não
reconhecem a
167
multiplicidade dos fatores que agem entre si, mas
exatamente em conseqüência desta constatada
multiplicidade, o processo de explicação torna-se
sempre mais complexo e seus resultados aparecem,
pelo menos até agora, cada vez mais incertos. Sempre
que aumenta o número de correlações, a sua
interpretação, da qual depende a validade de uma
explicação, fica cada vez mais complexa.
Ao processo de explicação está estritamente conexo
o de previsão, mesmo quando seja possível uma
explicação, que não permita uma previsão, e uma
previsão não baseada numa explicação, porque
geralmente explica-se para prever. A previsão é a
principal finalidade prática da ciência assim como a
explicação é a principal finalidade teórica).
Infelizmente, quando o processo de explicação se
apresenta incompleto, não se pode falar de previsão
científica, mas, no máximo, de conjetura ou, na pior
das hipóteses, de profecia. Além disso, nas ciências
sociais que têm como objetivo comportamentos
humanos, ou seja, de um ser que é capaz de reações
emotivas e de escolhas racionais, verifica-se o
conhecido duplo fenômeno da previsão, que, por sua
vez, se auto-destrói (profecia verdadeira que não se
realiza), ou então que se auto-realiza (profecia falsa,
mas que de fato se realiza). A Ciência política, na
atual fase de seu desenvolvimento, está bem longe de
poder formular previsões científicas. Isto, porém, não
impede que não haja estudiosos de coisas políticas que
não procurem emitir alguma previsão, mesmo de
modesto alcance, baseados nas conclusões'
conseguidas por etapas. A tendência de fazer
previsões é tão irresistível que um grupo de estudiosos
de política, sob a direção de Bertrand de Jouvenel, está
elaborando, há alguns anos, um programa de pesquisas
sobre os chamados "futuríveis". A diferença entre a
utopia de ontem o "futurível" de hoje é que o projeto
utópico é construído de maneira totalmente
independente das linhas de tendência do
desenvolvimento social e, portanto, da sua maior ou
menor possibilidade de realização, enquanto o
chamado "futurível" representa o conjunto daquilo que
pode acontecer sempre que se realizem determinadas
condições; não é o futuro impossível (e tampouco o
futuro necessário), mas é o futuro possível. O
"futurível" é o produto típico da atitude científica em
relação ao mundo, especialmente ao mundo histórico,
enquanto a utopia é o produto típico dá imaginação
filosófica.
VI. DIFICULDADES PRÓPRIAS DA CIÊNCIA POLÍTICA.
— Tudo quanto já se disse até agora a respeito das
tentativas que se vêm desenvolvendo para aproximar
os estudos políticos do modelo das ciências empíricas
não deve esconder
168
CIÊNCIA POLÍTICA
as enormes dificuldades, muito peculiares, que se
interpõem ao alcance do objetivo desejado. Agora, em
relação à classificação tradicional das ciências, com
base na sua crescente complexidade, a Ciência política
ocupa um dos últimos lugares; enquanto o sistema
político é um subsistema em relação ao sistema social
geral, a Ciência política pressupõe a ciência geral da
sociedade (um partido político antes de ser uma
associação política é uma associação); enquanto o
subsistema político tem a função primordial de
permitir a estabilização e o desenvolvimento de um
determinado subsistema econômico e a coexistência
ou a integração do subsistema econômico com
determinados subsistemas culturais (dos quais o
principal é a Igreja ou as Igrejas). A Ciência política
não pode prescindir da ciência econômica, enquanto a
ciência econômica pode dispensar a Ciência política
(seria a mesma relação que ocorre entre a física e a
biologia); a Ciência política não pode prescindir
também do estudo dos subsistemas culturais
(considerando a importância, por exemplo, do
problema dos "intelectuais" e das ideologias para o
estudo da política).
A Ciência política, além disso, é uma disciplina
histórica, ou seja, uma forma de saber cujo objeto se
desenvolve
no
tempo,
sofrendo
contínua
transformação, o que torna impossível, de fato, um
dos procedimentos fundamentais que permite aos
físicos e aos biólogos a verificação ou a falsificação
das próprias hipóteses, isto é, a experimentação. Não
se pode reproduzir uma revolta de camponeses em
laboratório por óbvias razões, entre outras, aquela que
uma revolta reproduzida não seria mais uma revolta
(note-se a relação entre uma ação cênica, que -se pode
repetir indefinidamente e a realidade representada
pelos acontecimentos: o Hamlet, de Shakespeare, não
é o príncipe da Dinamarca que realmente viveu).
Finalmente, a Ciência política, enquanto ciência do
homem e do comportamento humano, tem em
comum, com todas as outras ciências huma-nísticas
dificuldades específicas que derivam de algumas
características da maneira de agir do homem. Destas,
três são particularmente relevantes:
a) O homem é um animal teleológico, que cumpre
ações e se serve de coisas úteis para obter seus
objetivos, nem sempre declarados e, muitas vezes,
inconscientes. Podemos designar um significado à
ação humana somente quando se consegue conhecer
os fins desta ação; por isso, a importância que tem no
estudo da ação humana o conhecimento das
motivações, porque cada ciência social, e, portanto,
também a Ciência política, não pode prescindir da
presença da psicologia.
b) O homem é um animal simbólico, que se comunica
com seus semelhantes através de símbolos (dos quais
o mais importante c a linguagem): o conhecimento da
ação humana exige a deci-fração e a interpretação
destes símbolos, cuja significação é quase sempre
incerta, às vezes desconhecida, e apenas passível de
ser reconstruída por conjeturas (línguas mortas ou
primitivas).
c) O homem é um animal ideológico, que utiliza
valores vigentes no sistema cultural no qual está
inserido, a fim de racionalizar seu comportamento,
alegando motivações diferentes das reais, com o fim
de justificar-se ou de obter o consenso dos demais; por
isso, a importância que assume na pesquisa social e
política a revelação daquilo que está escondido, assim
como a análise e a crítica das ideologias.
VII. O PROBLEMA DA AVALIAÇÃO. — Uma forma de
saber se aproxima do ideal limite do científico, quanto
mais consegue eliminar a intrusão de juízos de valores,
ou seja, a chamada avaliação. A Ciência política é
certamente, entre as outras ciências, aquela na qual a
avaliação é mais dificilmente alcançável. Quando se
fala de avaliação não nos referimos, nem às avaliações
que presidem a escolha do assunto em estudo (escolha
esta que pode depender também de uma preferência
política), nem às avaliações às quais o pesquisador
pode chegar, conforme os resultados da pesquisa, com
o fim de reforçar ou enfraquecer um determinado
programa político (e nisto consiste a função crítica e
prescritiva à qual a Ciência política não pode
renunciar). Aqui nos referimos à suspensão dos
próprios juízos de valor durante a pesquisa, que
poderia ser influenciada, perdendo, assim, sua
objetividade. Ocorre atentar para a distinção entre a
ciência como operação humana e social, que como tal
é assumida e utilizada para finalidades sociais, e os
procedimentos prescritos para o melhor remate dessa
operação, entre as quais ocupa um lugar importante a
abstenção dos juízos de valor. A avaliação, que é
garantia de objetividade (somente o caráter da
objetividade assegura à ciência a sua característica
função social), é perfeitamente compatível com o
compromisso ético e político em relação ao argumento
escolhido ou aos resultados da pesquisa, que garante a
relevância do empreendimento científico. O perigo de
que numa pesquisa falte objetividade, porque o
pesquisador esteja nela demasiadamente envolvido,
não é menos grave do perigo inverso, ou seja, que a
uma pesquisa perfeitamente objetiva falte porém
relevância (como poderia ser, por exemplo, uma
pesquisa sobre a cor das meias dos deputados italianos
da terceira legislatura). É deplorável a confusão,
muitas vezes
CLASSE
169
verificada, entre objetividade e indiferença: a
objetividade é um requisito essencial da ciência,
enquanto a indiferença é uma atitude não benéfica à
boa pesquisa científica — do pesquisador. A
avaliação, como cânone (um dos cânones) da pesquisa
que pretenda ser objetiva, não exclui, como dissemos,
a função prática (ou prescritiva) da própria pesquisa,
através da utilização dos resultados conseguidos. Pelo
contrário, a Ciência política, tanto mais cumpre sua
função prática, quanto mais ela é objetiva: o
desenvolvimento das ciências sociais em geral (a
começar pela economia e terminando na Ciência
política) é estritamente conexo com a certeza de que o
conhecimento científico do sistema social geral e dos
subsistemas que o compõem, assim como das suas
relações, exatamente porque objetiva, presta um
serviço utilíssimo à ação política e contribui para a
realização de uma sociedade "mais justa". Citamos
aqui a função prática que foi paulatinamente
assumindo, há mais de um século, o socialismo
científico e a conexão entre a sua função prática e o
seu proclamado caráter científico. O desenvolvimento
real da Ciência política é guiado, mais ou menos
conscientemente, pelo ideal de uma política científica,
ou seja, de uma ação política fundada no
conhecimento, tanto quanto possível rigoroso, das leis
objetivas do desenvolvimento da sociedade, e que não
fica portanto abandonada ao acaso ou à intuição dos
operadores políticos. Na luta contra qualquer contrafacção ideológica das reais motivações da ação
humana, na sua geral concepção "realística" da ação
humana, a Ciência política nasce, ela mesma, num
contexto social e ideológico bem individualizado,
onde vai abrindo caminho o ideal da política como
ciência, ou seja, uma política sem interferência de
ideologias. Por conseqüência, a tarefa mais urgente e,
ao mesmo tempo, mais incisiva que cabe nesta fase da
Ciência política é a de submeter às análises e,
eventualmente, de colocar em questão a mesma
ideologia da política científica, examinando seus
significados histórico e atual, salientando seus limites
e suas condições de atualidade, assim como indicando
suas eventuais linhas de desenvolvimento.
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theory and method of political analysis. The
encontrar uma definição de Classe social que conte
com o consenso dos estudiosos ligados a diversas
tradições políticas e intelectuais, todos estão de acordo
em pensar que as classes sociais são uma
conseqüência das desigualdades existentes na
sociedade. Isto já permite uma rigorosa delimitação
dos fenômenos que entram nos limites da aplicação do
conceito de Classe, uma vez que: 1) torna possível
excluir tudo o que entra na categoria das
desigualdades naturais; 2) faz referência apenas às
desigualdades que não são casuais e se revelam de
modo sistemático e estruturado. Isso não impede,
porém, que haja desigualdades naturais que adquirem
relevância
[NORBFRTO BOBBIO]
Classe.
I. CONSIDERAÇÕES INTRODUTIVAS E DEFINIÇÃO DO
CONCEITO. — Embora seja difícil, se não impossível,
170
CLASSE
na sociedade e se convertem, por isso, em
desigualdades sociais. As diferenças entre sexos, entre
jovens e velhos, entre indivíduos de raças diversas
tornam-se diferenças sociais, quando uma sociedade
escolhe tais diferenças como critérios para a atribuição
dos vários papéis sociais; tornam-se desigualdades
sociais, quando os papéis são distribuídos por diversos
níveis da escala social. Há aqui desigualdade social no
pleno significado do termo, porquanto se podem
conceber, e até freqüentemente encontrar, na história,
tipos de sociedade para os quais as diferenças de sexo,
de raça e de geração não são, ou não são do mesmo
modo, critérios de destinação dos indivíduos aos
papéis sociais. O uso do adjetivo "natural" se
apresenta em tais casos como pura função ideológica,
pois visa a considerar como "naturais", e, portanto,
inevitáveis e imodificáveis, características que
dependem, ao contrário, da estrutura da sociedade.
Tornado claro, contudo, que a aplicação do conceito
de Classe se circunscreve ao âmbito restrito das
desigualdades sociais, só se atingiu com isso uma
primeira delimitação do conceito, pois nem todas as
desigualdades sociais dão lugar à formação de Classes.
Uma ulterior especificação do conceito mostrará que
só originam a formação de Classes aquelas
desigualdades sociais que se reproduzem ao passar de
uma geração a outra. Podemos, de fato, imaginar uma
sociedade acentuadamente não igualitária e não
classista, isto é, uma sociedade em que cada indivíduo
tenha as mesmas possibilidades que os outros "têm de
ocupar qualquer posição social, independentemente da
condição social da família de origem. Imaginemos, por
exemplo, uma sociedade em que 30% da população
sejam camponeses, 40% operários, 20% empregados e
10% proprietários e dirigentes, e suponhamos que tal
distribuição não se modifique substancialmente ao
longo da curva de uma geração. Numa sociedade
assim, não existirão Classes, se todo filho de operário,
camponês, empregado ou dirigente tiver 10
probabilidades entre 100 de se tornar dirigente ou
proprietário e, ao invés, se todo filho de proprietário
ou dirigente tiver 70 probabilidades entre 100 de vir a
ser operário ou camponês; em outras palavras, se, de
100 filhos de proprietários e dirigentes, só 10 tiverem
possibilidades de vir a ocupar uma posição social
equivalente à do pai. É claro que uma sociedade deste
tipo, isto é, onde houvesse uma mobilidade perfeita,
não seria, de per si, uma sociedade igualitária,
porquanto, aos diversos papéis, poderiam teoricamente
ser associadas recompensas diferenciais até muito
elevadas; contudo, o acesso aos vários papéis seria
igual para todos e esta sociedade teria alcançado o que
freqüentemente se chama igualdade de pontos de
partida. Quando falamos de sociedade meritocrática,
refe-rimo-nos, em geral, a uma sociedade que se
aproxima muito do modelo da mobilidade perfeita.
Todavia, dado que uma sociedade deste tipo não se
haja nunca realizado historicamente, teremos de dizer
que todas as sociedades históricas que conhecemos
foram sociedades de Classe, ou sociedades classistas?
É certamente possível; na própria literatura
sociológica encontra-se amplamente difundido o uso
do conceito de Classe neste sentido. Muitos autores,
porém, são concordes em limitar a aplicação do
conceito apenas às sociedades em que as
desigualdades sociais não são sancionadas pela lei.
Quando se diz que todos os cidadãos são iguais em
face da lei, ou que certos direitos são concedidos a
todos independentemente do sexo, da religião, da raça
e das condições econômicas ou sociais, não se quer
certamente afirmar que, com isso, desapareceram
realmente as desigualdades sociais, mas apenas que
elas não gozam de qualquer reconhecimento formal no
sistema de normas de uma determinada sociedade.
Isso significa que não se pode pertencer a uma
Classe por direito, mas somente de fato, e que o
nascimento não é critério suficiente para fazer parte
de uma Classe social. É neste sentido que o conceito
de Classe se diferencia, quer do conceito de casta,
quer do conceito de ordem ou estado. O pertencer a
uma casta depende exclusivamente do nascimento e,
por princípio, é excluída a passagem de uma casta a
outra; quando ocorre, ela representa uma violação da
lei tradicional. A uma ordem ou estado, tais como, por
exemplo, os da época feudal, também se pertence
sobretudo pelo nascimento, embora a passagem de
uma ordem a outra não esteja excluída e seja até, por
vezes, freqüente. Neste caso, porém, a passagem está
vinculada ao cumprimento de um requisito formal,
por exemplo, a investidura por parte do monarca ou a
aquisição de um título ou concessão de nobreza.
Também as Classes, como vimos, se perpetuam de
geração em geração, constituindo o nascimento o
critério principal de integração e o mecanismo
fundamental de recrutamento; mas não existe
nenhuma norma formal que sancione tal critério ou
estabeleça os requisitos necessários para a passagem
de uma Classe a outra. Numa sociedade de Classes,
nada obsta formalmente a que se efetue essa
passagem, justamente porque as Classes são
agrupamentos de fato, cuja existência não só não é
reconhecida, como é, em certo sentido, explicitamente
negada pelo ordenamento jurídico da sociedade.
Podemos, por isso, afirmar que as Classes são
agrupamentos que emergem da estrutura de
desigualdades sociais, numa
CLASSE
sociedade que reconhece que todos os homens, ou
melhor, todos os cidadãos, são formalmente iguais
perante a lei.
Portanto, em sentido estrito, só se pode falar de
Classes sociais depois das revoluções demo-cráticoburguesas do século XIX e do advento da sociedade
capitalista. Ainda que em muitos países a revolução
democrático-burguesa não coincida com o advento do
capitalismo, é evidente, contudo, que se trata de dois
aspectos do mesmo processo de mudança social que
atingiu, se bem que com grande variabilidade de
formas e de tempo, grande parte do gênero humano;
trata-se fundamentalmente do processo pelo qual a
relação do homem com a terra, entendida como
instrumento de produção, deixou de ser o critério
essencial da atribuição dos papéis sociais. Podemos,
por isso, dizer que o aparecimento da sociedade de
Classes coincide com o declínio das sociedades
fundadas na agricultura. Daqui se conclui que,
rigorosamente falando, a primeira Classe que surgiu
no horizonte da história foi a Classe burguesa.
Afirmando os valores igualitários e reivindicando os
direitos de cidadania, baseada na natureza universalista, abstrata e fungível do dinheiro, infringiu a
ordem fundada nos "Estados", transformou a terra em
capital e, conseqüentemente, a aristocracia fundiária
na Classe dos proprietários rurais, os servos da gleba
na Classe dos camponeses, dando, finalmente, origem
à Classe operária como conseqüência direta da
consolidação da Revolução Industrial. Na realidade, o
conceito de Classe foi introduzido, como instrumento
analítico, pelos estudiosos que analisavam tal
fenômeno com o fim de interpretarem as
transformações sociais que levaram à formação do
proletariado industrial. O conceito de Classe envolve
dois
aspectos
compatíveis
entre
si,
mas
freqüentemente acentuados de modo muito diverso
pelos vários autores: de um ponto de vista teórico,
como já observamos, o conceito de Classe serve para
identificar os agrupamentos que emergem da estrutura
das desigualdades sociais; de um ponto de vista
histórico, serve para identificar os que se constituem
em sujeitos do curso da história, ou seja, as
coletividades que se apresentam como artífices do
devir da sociedade no tempo.
II. A TEORIA DAS CLASSES EM MARX. —
Esse último aspecto aparece de modo particularmente
claro na teoria das Classes de Marx, a quem devemos
o primeiro tratado explícito sobre o fenômeno e a
primeira elaboração teórica do conceito. Para Marx, as
Classes são expressão do modo de produzir da
sociedade no sentido de que o próprio modo de
produção se define pelas relações que intermedeiam
entre as Classes sociais.
171
e tais relações dependem da relação das Classes com
os instrumentos de produção. Numa sociedade em que
o modo de produção capitalista domine, sem
contrastes, em estado puro, as Classes se reduzirão
fundamentalmente a duas: a burguesia, composta
pelos proprietários dos meios de produção, e o
proletariado, composto por aqueles que, não dispondo
dos meios de produção, têm de vender ao mercado sua
força de trabalho. Nenhuma sociedade histórica
apresentará, em momento algum, o domínio
incontestado de um modo de produção em sua forma
pura; apresentará, sim, uma combinação de elementos
remanescentes dos modos de produção anteriores, de
elementos do modo de produção historicamente
preponderante, ou de elementos que antecipam as
transformações dos modos de produzir ainda não
operadas. A presença contemporânea de vários modos
de produção numa mesma sociedade, em determinado
momento histórico, é chamada por Marx de formação
social. Enquanto o conceito do modo de produção se
situa ao nível da análise teórica das grandes
transformações sociais, o conceito de formação social
se coloca ao nível da análise histórica. No primeiro
caso, a análise das Classes na sociedade capitalista
tenderá para um modelo dicotômico que considera a
existência de duas Classes antagônicas, a burguesia e
o proletariado; no segundo caso, teremos pluralidade
de Classes ou de agrupamentos no seio das Classes
(por exemplo, uma burguesia financeira, comercial,
industrial, um proletariado e um subproletariado,
camponeses independentes e braceiros agrícolas, etc.)
e o antagonismo dominante se articulará em vários
antagonismos particulares, abrindo campo à formação
de alianças entre Classes diversas e entre uma Classe c
frações dissidentes da Classe antagonista.
O fato de que Marx fale às vezes de duas Classes
antagonistas e, outras, de pluralidade de Classes se
explica, levados em conta os diversos níveis em que a
análise das Classes pode ser colocada; em qualquer
caso, no entanto, toda Classe será definida pelas
relações que a ligam às outras Classes, dependendo
tais relações das diversas posições que as Classes
ocupam no processo produtivo. As Classes constituem
por isso um sistema de relações em que cada Classe
pressupõe a existência de outra, ou de outras; não
pode haver burguesia sem proletariado, e vice-versa.
Portanto, para Marx, enquanto a existência das
Classes se baseia nas posições diversas que os
homens ocupam no processo produtivo, o
antagonismo que existe entre elas se situa ao nível
político; estes dois níveis estão estreitamente ligados
entre si, mas não coincidem. A diferente posição em
relação aos instrumentos produtivos faz
172
CLASSE
com que os interesses de uma Classe sejam diversos e
contrapostos aos interesses da outra; no caso genuíno
do modo de produção capitalista, isso significa que, o
que redunda em vantagem da burguesia, redunda em
desvantagem do proletariado, isto é, que o lucro não é
senão uma parte de produto subtraída aos produtores
diretos, algo que falta no envelope de pagamento dos
operários. É esta a base econômica do antagonismo
dos interesses de Classe. Este antagonismo, porém,
não assume um significado político, senão quando o
conflito ultrapassa a simples oposição entre o operário
e o capitalista, ou entre os operários de uma fábrica e
o patrão, e se converte num conflito generalizado, que
tende a contrapor todos os capitalistas, a burguesia, a
todos os trabalhadores, o proletariado. O momento de
agregação, mediante a organização política dos
interesses de todos aqueles que foram colocados pelo
processo produtivo na mesma posição de domínio ou
de subordinação, é o momento verdadeiramente
constitutivo da Classe. "Os indivíduos — escrevem
Marx e Engels em Deutsche Ideologie — formam uma
Classe só quando estão comprometidos na luta comum
contra uma outra Classe". Mas a luta entre duas
Classes — diz ainda Marx — é uma luta política,
sendo as Classes algo que se situa no nível político da
vida social; é só a este nível que os indivíduos que
compõem uma Classe reconhecem, de fato, a
comunidade dos seus inte-reses e do seu destino, e se
tornam conscientes da diversidade fundamental e do
antagonismo irredutível desses interesses, em
confronto com os da Classe oposta. A identidade de
interesses não é o bastante para fundamentar a
existência de uma Classe, a não ser que, com base
nesta identidade, nasça uma comunidade, uma
associação ou uma organização política; a não ser que
se forme, digamos, uma consciência de Classe. Uma
Classe dotada dessa consciência é uma Classe para si
(für sich); onde, ao contrário, tal consciência não
existir e se afirmar, a Classe continuará sendo uma
mera Classe em si (an sich), incapaz de expressar
reivindicações políticas coletivas.
A mudança da Classe em si para Classe para si não
é nem automática nem necessária. A identidade de
interesses, isto é, a identidade de colocação no
processo produtivo, não garante a formação da
consciência de Classe; o momento subjetivo não é o
simples reflexo da situação objetiva da Classe. Os
camponeses franceses, cuja situação de Classe é
analisada por Marx em Der Bürgerkrieg in Frankreich
e Der 18 Brumaire des Louis Bonaparte, não
conseguirão nunca adquirir consciência da identidade
dos seus interesses e agir, em conseqüência, como
Classe, dado que as condições de produção os isolam
uns dos outros e os
põem em contato direto, diário e familiar, com o
patrão. Pelo contrário, a grande fábrica capitalista,
produto do irreprimível processo de concentração do
capital, é que oferece as condições mais favoráveis ao
nascimento de uma consciência de Classe.
Em geral, se pode afirmar que a consciência de
Classe tende a desenvolver-se mais facilmente onde
forem maiores os obstáculos à penetração das idéias
da Classe dominante na Classe subordinada. Para
Marx, a Classe dominadora do mundo da produção é
também a que domina no plano político e a que
produz as idéias culturalmente dominantes. Estas
idéias, contudo, tendem a apresentar um quadro
harmônico, não contraditório, da realidade social.
Sempre que as Classes subalternas as apropriam, elas
produzem uma "falsa consciência" da situação de
Classe e sua função não é mais a de fazer progredir o
curso da história humana, mas a de o sustar; trata-se,
no fundo, de um problema de ideologias. A burguesia
exerceu sua função de Classe revolucionária, lutando
contra a ordem feudal e a Classe então dominante,
mas, uma vez consolidado seu poder e desenvolvidas
as potencialidades do modo capitalista de produção,
findou seu papel revolucionário e ela tornou-se, pelo
contrário, um obstáculo real no caminho do progresso.
Mas ela não pode deixar de originar a Classe que está
destinada a abater seu domínio e a criar as bases de
uma sociedade sem Classes, isto é, uma sociedade
onde as relações sociais deixarão de ser relações de
exploração e de dominação. Para Marx, portanto, as
Classes são o sujeito do devir da história, que não é
mais a história de uma sociedade atomisticamente
concebida como resultado de uma infinidade de ações
individuais, mas uma história onde os atores são
precisamente as Classes, ou seja, entidades coletivas.
Diremos, concluindo, que, para Marx, o conceito de
Classe constitui um instrumento de análise que lhe
permite entender as relações entre os fenômenos
econômicos, políticos e culturais, no quadro de um
modelo dialético das transformações da sociedade e de
uma teoria do curso da história.
III. CLASSES E CATEGORIAS NA ANÁLISE DE MAX
WEBER — A teoria de Marx é, sem dúvida um ponto
de referência necessário na determinação do uso que
vem sendo feito, há mais de um século, do conceito de
Classe, quer nas ciências sociais, quer na linguagem
política corrente. Isto não só porque os estudiosos que
seguem Marx foram mais longe na elaboração do
conceito e da teoria social que nele se baseia (basta
pensar nas obras de Bucharin e Lukács, só para citar
dois exemplos), mas também porque os que
CLASSE
se afastam do uso marxista do conceito de Classe, a
ele se referem, não obstante, para melhor ilustrar as
características alternativas das suas elaborações
conceituais.
Das tentativas de utilização do conceito de Classe
numa perspectiva diversa da de Marx é a de Max
Weber a mais importante, sobretudo pela influência
que exerceu sobre a sociologia contemporânea.
Enquanto Marx não apresenta nunca uma definição
explícita do conceito de Classe, mesmo construindo
sobre ele toda a sua teoria da sociedade e da história,
Weber o define claramente, limitando, porém, seu
alcance teórico à descrição de um campo muito
restrito de fenômenos. Parte de uma definição
estritamente econômica do conceito de Classe;
segundo tal definição, fazem parte de uma Classe
todos aqueles que possuem a mesma situação em
relação ao mercado, ou seja, têm as mesmas
possibilidades objetivas de acesso aos bens escassos
que o mercado oferece. Os fatores que influem na
situação em relação ao mercado e, portanto, na
situação de Classe, são da mais variada natureza.
Todavia, tal como Marx, também Weber reconhece
que a Classe dos proprietários goza de vantagens
particulares na porfia pelo acesso aos bens. A
propriedade não é, porém, o fundamento da divisão da
sociedade em Classes; é tão-só uma fonte freqüente de
privilégios e de discriminação no mercado. Daqui
derivam duas conseqüências: 1) que não se pode falar
de Classes senão nas sociedades em que se
desenvolveram formas de economia de mercado; 2)
que as Classes, como tais, são, pura e simplesmente,
agregados
sociais
que
não
determinam
necessariamente a formação de grupos sociais
efetivos.
A primeira conseqüência indica que as Classes não
se baseiam na divisão social do trabalho, mas na
existência de uma situação concorrencial de mercado.
A segunda conseqüência mostra que, embora a
identidade da situação de mercado crie a identidade
dos interesses de Classe, estes não bastam para
fundamentar a unidade da Classe como grupo social.
Com base na identidade de interesses, é possível que
os indivíduos se comportem todos de modo paralelo e
idêntico, sem que isto suponha uma ação ou uma
organização comuns; trata-se, em tal caso, segundo a
linguagem de Weber, de um simples agir de massa. A
Classe só pode ser base de uma ação coletiva, ou de
comunidade, como diz Weber, quando se desenvolveu
o sentimento de uma comunidade de interesses ou de
uma comunidade de destino, e esse sentimento
fomenta a ação comum em defesa de tais interesses. É
assim que podem surgir as lutas de Classe, como as
que opuseram, na Antigüidade, os camponeses e
artesãos devedores aos seus
173
credores (única forma de mercado do mundo antigo),
na Idade Média, os produtores de alimentos da área
rural aos consumidores das cidades, e, nos tempos
modernos, os que oferecem trabalho aos
trabalhadores. O custo do dinheiro, o preço do trigo e
o salário são, nestes exemplos, os elementos que
definem os termos da luta de Classes.
Do que fica dito se conclui que não faltam, nas
concepções de Weber e de Marx, notáveis pontos de
convergência. A distinção entre Classe e ação de
comunidade, com base numa situação de Classe,
corresponde amplamente à distinção que Marx fez
entre Classe em si e Classe para si. O ponto fulcral da
divergência das duas concepções é que, enquanto para
Marx a Classe constitui o elemento central na análise
das relações entre o econômico, o político, o social e o
cultural, e o contorno das Classes vem a ser como que
o corte por onde é possível examinar a estrutura da
sociedade e sua dinâmica, para Weber a Classe só
adquire relevo dentro da ordem econômica e suas
divisões não correspondem necessariamente às que se
verificam na ordem política e social. É esta a razão
por que, com o conceito de Classe, aparecem os de
categoria ou status (em alemão, stand) e de partido.
O grupo de status compreende todos os que gozam
de particular honra ou prestígio social e se
caracterizam por um estilo peculiar de vida, pelo modo
de comportamento, por determinados padrões de
consumo, de indumentária, de habitação, pelo
casamento que fazem, pelo tipo de relações sociais que
mantêm, pela profissão que exercem, pelos gostos,
pela instrução recebida, etc. Diversamente das Classes,
os grupos de status constituem sempre comunidades,
porquanto se definem, não com base numa
característica objetiva e formal (situação de mercado),
mas num agir específico, no modo de se entenderem a
si mesmos e de serem entendidos pelos outros. É
óbvio que o agrupamento por Classes e por categorias
estão ligados entre si, mas o que os caracteriza é o fato
de não coincidirem necessariamente, acontecendo até,
com muita freqüência, pertencerem à mesma categoria
indivíduos de Classes diversas, e vice-versa. A
categoria dos burocratas, por exemplo, pertencem
regularmente indivíduos cuja posição, em termos de
poder aquisitivo e de autoridade, apresenta claras
diferenças. É importante observar que o pertencer a
um grupo de status ou categoria depende da
possibilidade de ter uma certa característica distintiva,
cujo acesso tende a ser monopolizado e restringido
pelos componentes da própria categoria. As categorias
tendem, pois, a diferenciar-se pela dificuldade de
aquisição das condições características que as
174
CLASSE
distinguem; quando adquiríveis só pelo nascimento ou
por herança, teremos uma categoria absolutamente
fechada e, neste caso, se poderá falar de casta. Em
geral, haverá sempre regras que fixem os critérios de
participação e de admissão, as quais poderão ser de
natureza formal, isto é, sancionadas pelo ordenamento
jurídico (por exemplo, o ordenamento feudal, os
estatutos das corporações), ou de natureza informal,
como o uso de uma certa linguagem ou de um acento
particular, e a adesão a cânones estabelecidos de
gostos e de estilo que, em geral, se supõe só possam
ser adquiridos com longa preparação, se não mesmo
no ambiente da família onde se nasceu.
O conceito de categoria abrange, pois, um quadro
de fenômenos muito vasto, desde as castas indianas às
ordens e corporações medievais, desde os grupos e
minorias étnicas ao clero, aos militares e aos grandes
grupos profissionais das sociedades modernas;
abrange, em geral, todas aquelas situações em que a
posição social de um indivíduo não se pode presumir
exatamente pela soma de riqueza de que dispõe, isto é,
em termos weberia-nos, pela sua posição de Classe.
Junto com a distinção de Classes e categorias
Weber apresenta também a distinção dos partidos
políticos. Estes são associações voluntárias, cujo fim é
a conquista ou conservação do poder; podem surgir
como resultado dos interesses de Classe ou de
categoria, mas não é raro o caso de partidos
interclassistas, cujos membros não se identificam
também com qualquer categoria particular.
Concluindo, diremos que Weber analisa a estrutura
das desigualdades sociais numa tríplice dimensão: a
da riqueza, a do prestígio e a do poder. Estas
dimensões são, evidentemente, interdependentes, mas,
em parte, não dependem uma das outras.
IV. UTILIZAÇÃO DO CONCEITO DE CLASSE NA
SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA. — Com Weber,
portanto, a teoria das Classes sociais se transforma na
teoria das relações entre essas três dimensões da
estratificação social. Efetivamente, na sociologia
contemporânea, bem como na linguagem comum, se
confunde, com demasiada freqüência. Classe com
estrato social, sobretudo quando se torna necessário
identificar os indicadores empíricos da estrutura de
Classe e, depois, analisar a própria estrutura com base
nas suas dimensões fundamentais. E claro que, quando
as diversas dimensões se definem mediante a escolha
de indicadores graduáveis, as Classes assim
identificadas são tais só no sentido lógico do termo,
mas não no sentido que o termo possui na tradição
sociológica. Se, por exemplo, quisermos dividir a
população italiana segundo a renda familiar, o
prestígio associado à condição profissional do chefe
de família, o nível de instrução ou qualquer outro
indicador, e dispusermos de um procedimento
estatístico capaz de combinar as diversas medidas
obtidas num índice sintético, identificaremos decerto
algumas Classes, mas elas não poderão ser
consideradas como coletividades concretas, porque
tanto o seu número como o modo como foram
construídas dependerão da nossa escolha arbitrária,
muito mais ligada à idéia que temos ou queremos dar
da estrutura social que à própria estrutura. Quando,
por exemplo, Hollingshead e Redlich estudam a
relação existente entre Classes sociais e doenças
mentais numa comunidade da costa atlântica dos
Estados Unidos, ou quando Lloyde Warner analisa o
sistema de status num conjunto de comunidades
americanas, as Classes por eles identificadas
correspondem a uma definição puramente nominalista
do conceito; seria, por isso, mais apropriado falar em
tais casos de estratos sociais.
Em suma, para identificar uma Classe social, não
basta isolar as características comuns aos membros
dessa Classe; é necessário ainda observar se, além
destas características, os indivíduos revelam um
sentimento de comunidade e solidariedade,
compartilham um destino comum e uma comum
concepção da sociedade, se se reconhecem como
iguais e consideram os que não pertencem à Classe
como diversos. No âmbito da pesquisa empírica, têm
sido elaboradas diversas metodologias para apreender
esta dimensão subjetiva que, mesmo à luz da teoria
marxista, é constitutiva do próprio conceito de Classe
social. Alguns estudos se ocuparam particularmente
da auto-iden-tificação de Classe, havendo sido pedido
aos indivíduos que se colocassem numa série de
categorias fornecidas pelo pesquisador. Em 1949, por
exemplo, Centers perguntava aos seus entrevistados se
julgavam pertencer à Classe superior, média, operária
ou inferior. Outros estudos, ao contrário, visavam
saber como é que os indivíduos se situam na estrutura
de Classes, entendida esta, não como a preconcebera o
pesquisador, mas como era diretamente compreendida
pelos próprios sujeitos. Tratava-se, neste caso, de
separar a imagem que os indivíduos fazem da
sociedade e de a relacionar com o lugar que a si
mesmos se atribuem na estrutura de Classes assim
reconhecida.
Ossowski distingue, a propósito, três categorias
possíveis, dentro das quais se podem distribuir as
várias imagens da estrutura de Classes: concepções
dicotômicas, esquemas de graduação e concepções
funcionais. Uma concepção dicotômica reflete uma
imagem da sociedade claramente dividida em duas
Classes contrapostas ou
CLERICALISMO
antagônicas; o esquema de graduação reflete, ao
contrário, uma imagem onde as várias posições
sociais estão ordenadas segundo o grau de
participação na distribuição de elementos ou valores
comuns; a concepção funcional, finalmente, reflete
uma imagem integrada da sociedade, onde as várias
Classes só se distinguem pelo modo diverso como
contribuem para a vida da sociedade e para o seu
progresso. As concepções dicotômicas, como se
depreende também de pesquisas levadas a cabo na
Alemanha (Popitz), França (Willener), Grã-Bretanha
(Booth) e Itália (Pagani), tendem a predominar entre
os que se colocam na Classe operária; os esquemas de
graduação são, em vez disso, típicos de quem se sente
pertencente à Classe média; as concepções funcionais
tendem a refletir a ideologia das Classes dominantes.
A freqüente confusão entre estrato social e Classe
social, o primeiro puro e simples agregado estatístico,
a segunda, ao contrário, uma coletividade concreta,
não levou a descurar somente a importância da
dimensão subjetiva da estrutura de Classes, mas
também o fato de que as Classes constituem um
sistema, podendo, por isso, cada Classe só ser definida
em relação às outras. Mas as relações que entrecorrem
as Classes, as definem e lhes determinam o sistema
numa sociedade são essencialmente relações de poder;
e são justamente as relações de poder que não é
possível atingir mediante uma concepção nominalista
da estrutura de Classe. É possível, de fato, construir
estratos segundo a distribuição de certos valores
sociais (riqueza, prestígio, instrução, etc), mas seria
árduo construir estratos segundo o grau de distribuição
do poder numa sociedade. O poder é um valor
particular, não só porque determina a distribuição de
todos os demais valores, mas sobretudo porque, sendo
exercido sobre os homens, uns são os que o detêm,
outros os que o suportam, tornando-se, por isso, difícil
considerá-lo um recurso distribuído, embora de forma
desigual, por todos os cidadãos. Trata-se, por outras
palavras, de um valor cuja soma é igual a zero.
Se o que afirmamos c verdadeiro, isto é, que o
poder é um valor cuja soma é igual a zero e determina
a distribuição dos outros valores sociais, podemos
dizer que as relações de Classe são essencialmente
relações de poder e que, então, o conceito de poder
representa o aspecto unifica-dor capaz de identificar,
de modo sintético, a estruturação das desigualdades
sociais.
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Sociologia
dell’imperialismo (1953), Laterza 19742; P. SYLOSLABINI, Saggio sulle classi sociali, Laterza, Ban 1974;
M. WEBF.R, Economia e società (1922), Edizioni di
Comunità, Milano 19802.
[ALESSANDRO CAVALLI]
Clericalismo.
Trata-se de um daqueles termos cuja definição está
estritamente ligada ao contexto histórico-político em
que é usado, tendo em seguida sofrido modificações e
transformações que riscam determinar uma certa
ambigüidade e dificuldade de compreensão. Mas hoje
é geralmente usado para indicar o comportamento de
uma Igreja institucional que tenta intervir em âmbitos
da sociedade civil que não lhe pertencem, para
determinar opções e diretrizes, utilizando como
instrumento de intervenção o clero e suas
organizações laicais, orientadas, dessa forma, para
atividades que se afastam das finalidades para as quais
foram criadas. O Clericalismo, portanto, diz respeito
não tanto às relações entre Estado e Igreja, como
entidades autônomas e independentes, mas às relações
entre Igreja e sociedade civil; é quase sempre
conseqüência da formação, nas Igrejas, de uma classe
dirigente que se considera depositária e arbitra de todo
o poder e autoridade e freqüentemente indica uma
atitude que penetra também dentro das próprias
Igrejas quando os
176
CLERICALISMO
clérigos julgam ter direito de intervir em relação a
correligionários leigos ou subalternos só pelo fato de
serem detentores do poder.
O adjetivo "clerical" é de origem intra-eclesiás-tica;
durante séculos indicou simplesmente o que era
próprio do clero. Só depois da Revolução Francesa, e
precisamente na metade do século XIX, ele assumiu
um significado polêmico (o termo parece ter sido
utilizado com este sentido pela primeira vez em 1848),
e entra no uso corrente junto com o seu termo
antagônico especulativo de anticlerical. Poucos anos
depois foi também substantivado e o termo clerical
ficou indicando uma categoria de pessoas bem
identificáveis: na França são aqueles católicos que se
demonstram, nas formas mais diferentes, fautores do
ANCIEN RÉGIME; na Itália são, inicialmente no
Piemonte,
aqueles
católicos
particularmente
preocupados em defender as prerrogativas da Igreja e
os direitos do Papa, e que se distinguiam dos católicos
liberais (v. CATOLICISMO LIBERAL), embora fazendo
parte das mesmas fileiras do catolicismo; em seguida,
após 1870, todos aqueles que se faziam paladinos da
reconquista, por parte do Papa, do poder temporal.
Neste último caso, em certas ocasiões, acabou-se por
identificar os cle-ricais com todos os católicos.
Os dois termos, Clericalismo e anticlericalismo,
tiveram uma história e uma sorte comum; assim como
o seu uso, presente quer nas relações confli-tuais entre
Igreja e sociedade civil, quer no interior da Igreja e em
particular da Igreja católica (máximo alvo do ódio
anticlerical devido ao comportamento dela e também
porque é a mais difundida nos países onde o termo
nasceu e se desenvolveu). Entre os adversários da
Igreja o uso do termo não é unívoco; para os liberais e
os fautores da separação entre Estado e Igreja, o termo
no significado polêmico tem uma valentia
especialmente antiinstitucional mais do que antieclesiástica e está quase sempre ausente o aspecto antireligioso. Só gradualmente e com a passagem do
termo para o vocabulário do radicalismo e, em
seguida, do movimento operário, o ANTICLELICALISMO (v.), termo que chamamos de especulativo
em relação ao Clericalismo, assumirá também esse
significado para indicar um movimento de luta não
somente contra as ingerências de qualquer Igreja, mas
também contra o sentimento religioso. Não se deve,
porém, esquecer que também, no interior da Igreja,
ainda a partir da metade do século XIX, nascem
movimentos e tendências anticlericais, que têm nas
origens quer em grupos que não se consideram
explicitamente de matriz católica, quer em grupos ou
pessoas que atuam e pretendam ficar dentro da Igreja.
Enquanto o termo assumia no movimento
operário valências anti-religiosas, diversos católicos
limitantes, logicamente sem o consentimento da Igreja
hierárquica e freqüentemente com a explícita
desaprovação desta, se fazem promotores e fautores
de um catolicismo anticlerical.
Isto levará, em épocas mais recentes, à formação de
neologismos que por sua vez ficarão carregados de
antigüidade: considere-se, por exemplo, o termo
desclericalização, usado às vezes para indicar a
tendência no interior da Igreja a dar espaço e poder
aos leigos, reduzindo o monopólio do clero; outras
vezes, em âmbito extra-católico, para indicar o esforço
para opor-se a qualquer forma de ingerência da Igreja
na sociedade civil; outras vezes, enfim, como quase
sinônimo de secularização, no seu significado não
eclesiástico, mas sociológico.
As vicissitudes do Clericalismo estão, na prática,
ligadas às atitudes do mundo católico: a formação e a
radicalização das atitudes de intransigência geram
formas de anticlericalismo, que por sua vez se
carregam de valores diversos. Contemporaneamente,
porém, na relação entre as duas tendências se insere
um outro termo que gradualmente vai mudando o
conteúdo destes termos: o termo leigo, também de
origem eclesiástica, recebe a herança positiva do
anticlericalismo e é usado conseqüentemente dentro da
Igreja e nas ideologias que a ele se opõem. Este último
gerará, por sua vez, outros dois vocábulos,
freqüentemente confundidos entre si: LAicrDADE E
LAICISMO (V.).
Todas as Igrejas se tornam minoritárias, embora
ficando presentes em contextos geográficos e culturais
sobre as quais anteriormente exerciam sua hegemonia:
essa situação tinha produzido uma mentalidade
difundida ainda hoje, propensa a sustentar que, como
única depositária da verdade, a Igreja e a sua classe
dirigente tivessem o direito de intervir em todos os
problemas. A evolução mais recente da Igreja Católica
levou aquela classe dirigente a emanar documentos
nos quais essa mentalidade parece superada; não
sempre, porém, é assim nos fatos. A volta de
intromissões clericais provoca a volta de oposições.
Estas são heranças de tradições diversas: uma de
tolerância, que hoje se manifesta pela volta à laicidade
(termo talvez mais adequado do que laicismo), uma de
intolerância e freqüentemente de preconceitos, que se
manifesta pela volta a verdadeiras formas de
anticlericalismo.
De fenômeno eclesiástico, o Clericalismo se tornara
fenômeno político; hoje, talvez, é mais um fenômeno
cultural no sentido mais amplo do termo. O encontro
entre culturas diferentes tirou às Igrejas o monopólio
do saber e, portanto, o próprio poder. Os diversos
processos de
CLIENTELISMO
secularização acabaram por introduzir, lambem, no
interior das Igrejas, problemáticas e crises antes
desconhecidas. Embora ficando uma tentação latente e
nem sempre afastada, o Clericalismo parece hoje
encaminhado a perder espaço, numa sociedade que
não somente não é mais sacral, mas é tendencialmente
pluralista.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., Laicità, problemi e
prospettive. Vita e Pensiero, Milano 1977; R.
BERNARDI, "Clericale" e "Clericalismo" negli ultimi
cento anni, in "Il Mulino", IX. aprile 1960; e
Clericalismo e anticlericalismo, in "Enciclopédia
Filosófica", Sansoni, Firenze 1967; G. MICCOLI, La
questione della laicità nel processo storico moderno,
in "Bozze 79", II, dicembrc 1979; R. MURRI, La
politica clericale e la Democrazia. Società Nazionale
di Cultura, Roma 1908; P. SCOPPOLA, Laicismo e
anticlericalismo. in "Chiesa e religiosità in Itália dopo
l'Unità (1861-1878)", Viu e Pensiero, Milano 1973.
[MAURIUO GUASCO]
Clientelísmo.
Para se compreender o uso que hoje se faz do termo
Clientelísmo na ciência e na sociologia política, talvez
seja útil partir dos tempos antigos, fazendo referência,
se bem que breve, às clientelas e aos clientes das
sociedades tradicionais, particularmente à clientela
romana, que não deu apenas o nome ao fenômeno,
mas é indiscutivelmente seu exemplo mais conhecido.
Em Roma entendia-se como clientela uma relação
entre sujeitos de status diverso que se urdia à margem,
mas na órbita da comunidade familiar: relação de
dependência tanto econômica como política,
sancionada pelo próprio foro religioso, entre um
indivíduo de posição mais elevada (patronus) que
protege seus clientes, os defende em juízo, testemunha
a seu favor, lhes destina as próprias terras para cultivo
e seus gados para criar, e um ou mais clientes,
indivíduos que gozam do status libertatis, geralmente
escravos libertos ou estrangeiros imi-grados, os quais
retribuem, não só mostrando submissão e deferência,
como também obedecendo e auxiliando de variadas
maneiras o patronus, defendendo-o com as armas,
testemunhando a seu favor ante os tribunais e
prestando-lhe, além disso, ajuda financeira, quando as
circunstâncias o exigem. Partindo desta descrição,
embora sumária, não seria difícil definir as relações de
clientela como fenômenos típicos de uma sociedade
tradicional como era a romana onde, não só nos
tempos mais recuados da República, mas ainda em
épocas
177
posteriores, continua a prevalecer, não obstante a
expansão territorial e o desenvolvimento da economia
mercantil, uma economia natural fechada, voltada
mais para a produção destinada ao consumo direto do
que para a destinada ao mercado. Numa sociedade
assim, a organização política atende, em primeiro
lugar, à comunidade doméstica que, além de ser a
estrutura econômica fundamental com o trabalho da
terra, é também um microcosmo político, governado e
protegido pelo pater familias. A comunidade política
estatal vem em segundo lugar e é praticamente
constituída pela associação de um grande número de
comunidades familiares (res publica); como tal, ela é
incapaz de garantir — como ocorre na maioria das
sociedades tradicionais, organizadas mais ou menos
da mesma maneira — uma tutela eficaz aos próprios
membros, tutela que recai então sobre as estruturas
familiares, que adquirem assim uma relevância
preponderante; aos escravos libertos e aos
estrangeiros recém-chegados à cidade não se oferece
solução melhor que a de buscar a proteção dos
notáveis de origem nobre, que possuem terras e
exercem as funções políticas mais importantes;
prestarão seus serviços em troca.
Mas deixemos agora o mundo romano. As
estruturas da clientela são um fenômeno igualmente
comum nas outras sociedades tradicionais; como tais,
são essencialmente objeto do estudo dos
antropólogos. Todavia, termos como clientela e
Clientelísmo não podem ser considerados como
patrimônio exclusivo da pesquisa antropológica.
Levando em conta o que se disse até agora, não será
difícil descobrir o uso que deles se faz na ciência
política. Esse uso o encontraremos, em primeiro
lugar, nas pesquisas sobre modernização política e
sobre as realidades sociais em transformação entre o
tradicional e o moderno, onde o modo capitalista de
produção e a organização política moderna, apoiada
num aparelho político-administrativo centralizado, se
compenetram, mas não conseguiram abalar
completamente as relações sociais tradicionais e o
sistema político preexistente. De fato, embora o
impacto com as estruturas do mundo moderno
provoque rupturas na rede de vínculos da clientela,
embora as relações de dependência pessoal sejam
formalmente excluídas, tudo isso tende, contudo, a
sobreviver e a adaptar-se, seja em face de uma
administração centralizada, seja em face das
estruturas da sociedade política (eleições, parlamento,
partidos). Há apenas uma diferença fundamental:
enquanto na sociedade pré-moderna, os sistemas de
clientela formavam verdadeiros e autênticos
microssistemas autônomos, que, excepcionalmente,
sobrevivem como tais, apresentando-se como
alternativa do sistema político estadual (v. MÁFIA), no
sistema
178
CLIENTELISMO
político moderno, eles tendera a coligar-se e a
integrar-se numa posição subordinada ao sistema
político. Exemplo clássico disso é o partido dos
"notáveis" — não os notáveis em sentido genérico,
mas os senhores fundiários — onde acabava, como
ocoria com os "senhores de casa" pré-mo-dernos, uma
rede de relações de clientela que agora se transforma,
porém, em estruturas de acesso e contacto com o
sistema político. Sobretudo na época do sufrágio
restrito — mas não faltam exemplos após a introdução
do sufrágio universal —, o notável, a quem, de direito
e de fato, está reservado um trato privilegiado com o
poder político, serve de elemento de ligação do poder
com a sociedade civil e com seus próprios clientes, a
quem continua a dispensar proteção e ajuda diante de
um poder freqüentemente distante e hostil, em troca
do consenso eleitoral.
Mas o partido dos "notáveis", apenas esboçado,
típico das formações sociais em vias de
desenvolvimento, não esgota toda a gama de
fenômenos a que se aplica o termo Clientelismo. Ele é
um elo a ligar o Clientelismo vinculado à difusão da
organização política moderna, especialmente dos
partidos de massa. Nos referiremos exclusivamente a
estes últimos, mas o raciocínio poderá também ser
aplicado, por analogia, à burocracia moderna. Se é
verdade que o relacionamento destes partidos com a
sociedade civil é, em princípio, claramente oposto ao
do Clientelismo, baseando-se em vínculos horizontais
de classe ou de interesses, a que se associa um
significado político, sobretudo nos mesmos contextos
em que havia prosperado o partido dos "notáveis",
onde o desenvolvimento determina processos de
desagregação social, por vezes macroscópicos, e os
partidos e estruturas políticas modernas foram
introduzidos "do alto", sem o suporte de um adequado
processo de mobilização política, também é claro que,
em lugar do Clientelismo tradicional, tende a afirmarse um outro estilo de Clientelismo que compromete,
colocando-os acima dos cidadãos, não já os notáveis
de outros tempos, mas os políticos de profissão, os
quais oferecem, em troca da legitimação e apoio
(consenso eleitoral), toda a sorte de ajuda pública que
têm ao seu alcance (cargos e empregos públicos,
financiamentos, autorizações, etc). É importante
observar como esta forma de Clientelismo, à
semelhança do Clientelismo tradicional, tem, por
resultado,
não
uma
forma
de
consenso
institucionalizado, mas uma rede de fidelidades
pessoais que passa, quer pelo uso pessoal por parte da
classe política, dos recursos estatais, quer, partindo
destes, em termos mais mediatos, pela apropriação de
recursos "civis" autônomos.
De clientela e Clientelismo se pode também falar
tratando-se de realidades fora do âmbito das
formações sociais atrasadas ou em transição. Nos
referimos aqui aos fenômenos apresentados pela
análise do bossismo e da machine politics num
contexto como o dos Estados Unidos que, se evidencia
em certos setores (áreas suburbanas, imi-grados,
negros, etc.) características de desagregação social
semelhantes às das áreas em vias de desenvolvimento,
justificando, como tais, fenômenos de clientela,
também apresenta, difundido por toda a nação, um
certo Clientelismo, atribuível à fragmentação da
sociedade civil em numerosos grupos de interesse,
concorrentes entre si, os quais encontram
paradoxalmente na singular disponibilidade de
recursos, já que, por um lado, não os constringe a uma
recomposição de classes, mesmo a longo prazo,
segundo o modelo dos partidos europeus (cf. C. W.
Mills, Colarinhos brancos, New York 1951, sobre as
diferenças entre partidos americanos e partidos
europeus), já que, por outro lado, lhes permite a
coexistência. Quanto aos recursos, a parte que é de
origem pública (excluídos os maiores grupos de poder
da sociedade civil, capazes de impor as próprias
decisões à classe política) é destinada na forma
rigorosamente típica da clientela, que tem muito de
comum com o Clientelismo das zonas atrasadas antes
descritas. Envolve formas de aquisição do consenso
através de permuta e, por isso, fenômenos de
personalização do poder, aliás extremamente
evidentes.
Passando à Europa, embora com não poucas
diferenças, também aqui encontraremos um
Clientelismo coincidente em numerosos pontos com o
que acabamos de mencionar. Mas, neste caso, ele
atinge somente um setor mais restrito da estrutura
social, como são os estratos intermédios. Excetuam-se
as situações em que tais estratos são praticamente
constrangidos, pelas relações das duas classes
capitalistas dirigentes, a tornar-se. em grande parte, a
massa seguidora dos partidos de inspiração burguesa;
tais relações pressupõem a institucionalização do
conflito entre ambas as classes e, como no caso
britânico, permitem o desenvolvimento de um sistema
partidário bipo-lar. Só nos podemos referir ao tema em
termos extremamente esquemáticos: onde as classes
subalternas gozam de uma cidadania política
incompleta e seus partidos são rotulados ou impelidos
a tornar-se partidos,"anti-sistemas" (no que
transparece um modelo bem diverso de hegemonia
capitalista), os estratos intermédios são, por sua vez,
encorajados a traduzir a desagregação de classe que os
caracteriza por uma fragmentação política que seja
diretamente proporcional i importância do seu
consenso para a estabilidade do
CO-GESTÃO
sistema. Como respondem os partidos burgueses "de
vocação majoritária" a estas tendências centrífugas?
Parece que se poderá contrapor ao uso dos recursos
simbólicos, isto é, à busca da recomposição política
mediante o auxílio de símbolos genericamente
definíveis como "defensivos" (anticomunismo,
nacionalismo, qualunquismo, etc), o uso de recursos
bastante mais práticos, diante dos quais a falta de
interesses homogêneos é substituída, como na
political machine (vejam-se os casos da Democracia
Cristã, que passa de um partido parcialmente
religioso, parcialmente dos notáveis no sentido
tradicional, mas em grande parte baseado no apelo
anticomunista de 1948, à situação, hoje por Iodos
denunciada, e, na França, a passagem do gaullismo da
grandeur ao gaullismo dos "barões"), por formas de
estímulo individualista e corporativista que, não
prevendo qualquer associação orgânica dos interesses
num quadro político, realizam uma permuta, de típica
clientela, entre o consenso eleitoral dos indivíduos ou
dos grupos e os recursos que o Estado põe ao dispor
do pessoal dos partidos.
BIBLIOGRAFIA. - Clientelismo e mutamento
político, ao cuidado de L. GRAZIANO. Milano 1974:
especialmente os textos de GRAZIANO, GREGO, ScOTT,
WHNGROD. TARROW. Além disso: A. PIZZORNO, I ceti
medi nel meccanismi del consenso, in Il caso italiano,
ao cuidado de F. L. CAVAZZA e S. R. GRAUBARD. 2
vols.. Milano 1974.
[ALFIO MASTROPAOLO]
Co-gestão.
I. PARTICIPAÇÃO E CO-GESTÃO. — Nas sociedades
industriais regidas por ordenamento democrático, se
discute o problema da instituição de direitos de
participação, não só para o cidadão como membro da
comunidade política, senão também para o
trabalhador como membro da comunidade econômica.
Na empresa, capital e trabalho são considerados,
dentro de uma concepção de-mocrático-participativa,
como elementos comple-mentares cia vida
empresarial,
portadores
de
dignidade
e
responsabilidade paritárias, se bem que diversamente
orientadas. Por isso, assim como é garantida ao
acionista a possibilidade de participar na
administração do capital, também se defende que seja
atribuída ao trabalhador a possibilidade de participar
na gestão da empresa.
A participação do trabalhador na gestão da empresa
pode efetuar-se de várias maneiras e a diversos níveis;
a Co-geslão no sentido exato do
179
termo constitui seu mais alto grau dentro dos moldes
do sistema capitalista. Os graus de participação na
gestão podem ser classificados segundo a seguinte
escala: a) informação dos trabalhadores em relação às
opções da direção da empresa; b) informação
recíproca entre direção e trabalhadores através da
discussão; c) processos de consulta preventiva não
obrigatória; d) consulta obrigatória dos trabalhadores
em relação a determinadas decisões da empresa,
consulta que poderá ir da negociação e do controle
até ao direito a veto; e) co-decisão, quando as
decisões são tomadas de comum acordo entre as duas
partes. No penúltimo grau, que também podia ser
chamado de cooperação, a consulta recíproca ocorre
no momento das deliberações programáticas; no
último, que é o da Cogestão, o acordo recíproco
ocorre também no momento das decisões efetivas. Em
alguns países, a participação dos trabalhadores,
através das países (cf. § 3), há, pelo contrário,
exemplos de Co-gestão abrangendo toda a atividade
da empresa.
O problema da Co-gestão é claramente diverso do
problema mais amplo e diferenciado da participação
dos trabalhadores na propriedade e/ou nos lucros da
empresa. Ambos apresentam, porém, ligações diretas;
a Co-gestão induz facilmente os trabalhadores ao
desejo de participar nos resultados econômicos da
empresa que ajudam a gerir; inversamente, os
trabalhadores que participam nos resultados
econômicos da empresa se sentem movidos a
reivindicar o controle e co-responsabilidade em sua
gestão.
II. TENDÊNCIAS À CO-GESTÃO NA ITÁLIA. — "Com
vistas à elevação econômica e social do trabalho e de
acordo com as exigências da produção — estabelece o
art. 46 da Constituição italiana — a República
reconhece o direito dos trabalhadores a colaborar, nos
moldes e limites estatuídos pelas leis, na gestão das
empresas." Tal como outras normas fixadas pela
Constituição no título das "relações econômicas", este
artigo programático teve escassa aplicação. A
participação na gestão foi objeto de uma instância
muito atuante na Itália, nos anos decorrentes entre o
fim da Primeira Guerra Mundial e o advento do
fascismo. Na abertura de um inquérito sobre o
controle operário nas indústrias, escrevia Luigi
Einaudi cm "Corriere della Será", de 16 de setembro
de 1920, que a aspiração do trabalhador "a senür-se
senhor do seu trabalho", "é a tradução, na indústria, de
um princípio aceito pelo Governo político dos povos
modernos". Depois do rompimento das negociações
sobre conselhos de gestão entre industriais e
sindicatos, a 8 de fevereiro de 1921 apresentava
Giolitti na Câmara
180
CO-GESTAO
um projeto de lei relativo ao "controle das indústrias
por parte dos trabalhadores a elas adscritos". Este
projeto de lei não obteve sucesso parlamentar, devido,
em parte, às tendências do sindicalismo
revolucionário apoiadas então pelos socialistas.
O fascismo enfrentou nos últimos meses do regime
o problema da Co-gestão, com o decreto legislativo de
12 de fevereiro de 1944 sobre a socialização das
empresas. Este decreto instituía o conselho de gestão,
formado por representantes dos trabalhadores e
encimado pela figura do "chefe da empresa", no
quadro de uma ordenação corporativa. Entretanto,
certas cláusulas referentes à participação já haviam
sido acertadas entre industriais e trabalhadores no
primeiro acordo de criação das comissões internas,
estipulado por Mazzini e Buozzi, em Roma, a 2 de
setembro de 1943. Depois da Liberação, a experiência
realizada pelas C.L.N. empresariais fez com que fosse
apresentado um projeto de lei governativo (MorandiD'Aragona) que reconhecia juridicamente os
conselhos de gestão; não teve, porém, melhor sorte
que o de Giolitti. O desenvolvimento sucessivo da
legislação do trabalho e das negociações sindicais
levaram a considerável revigora-mento dos direitos
dos trabalhadores nos lugares onde trabalham, mas
segundo rumos e processos diversos dos da Cogestão.
III. A "MITBESTIMMUNG" ALEMÃ. — As
formas mais desenvolvidas e significativas da Cogestão da empresa se encontram na Alemanha
ocidental. A Co-gestão paritária só vigora nas
indústrias carbo-siderúrgicas; nos demais setores, a
Co-gestão dá-se apenas de forma atenuada, sendo o
poder de representação dos dependentes minoritário.
De há uns anos para cá, a ação política e sindical vem
desenvolvendo seus esforços para que a Co-gestão
efetiva se estenda a todos os setores industriais.
A Co-gestão nas indústrias do carvão e do aço é
uma herança da ocupação do após-guerra. A maior
parte destas indústrias está concentrada na região do
Ruhr, que ficou sob controle inglês. As autoridades
britânicas de ocupação, no propósito de
"democratizar" as grandes indústrias mineiras e
metalúrgicas que sustentaram o nazismo e
rproveitaram com a produção bélica, chamaram
representantes operários a participarem nas decisões
respeitantes a tais empresas. Devido também à
influência exercida por uma comissão consultiva,
constituída em sua maioria por economistas da escola
de Freiburg, chegou-se em 1951 à aprovação da lei
federal sobre a Mitbestimmung (co-decisão) dos
trabalhadores nos conselhos de administração das
indústrias do carvão,
do ferro e do aço. As características principais da lei
são: a paritaricdade do conselho de administração,
composto por igual número de representantes do
capital e do pessoal, acrescido de um membro
extrínseco designado, de comum acordo, pelas duas
partes; presença, na direção da empresa, ao lado dos
diretores encarregados da direção técnica e
econômica,
de
um
diretor
do
trabalho
(Arbeitsdirektor) indicado pelo pessoal. Em 1952, foi
aprovada uma segunda lei que estendia a Co-gestão a
todas as outras empresas, mas de forma atenuada, com
atribuições consultivas.
Em conjunto, a experiência alemã tem demonstrado
que a Co-gestão não é inconciliável com as exigências
produtivas e com a economia de mercado, pelo menos
num sistema capitalista onde os sindicatos estejam
dispostos a desempenhar um papel mais cooperativo
que conflitante. Ela revelou, além disso, certos
limites, entre os quais o que parece evidenciar-se mais
é a tendência dos representantes do pessoal a
burocratizarem-se e a relaxarem os contatos com o
ambiente donde provêm. Do exame das relações entre
os trabalhadores e os seus representantes nos
conselhos de administração das empresas onde vigora
a Co-gestão, Dahrendorf pôde concluir que os
conflitos industriais continuarão a subsistir até que se
esboce a possibilidade de coordenar as empresas de
outra forma que não a da autoridade.
IV. EXPERIÊNCIAS NOUTROS PAÍSES. — A Cogestão, tal como se definiu no § I, é uma forma de
encontro entre capital e trabalho, realizado no seio da
empresa. Parece, por isso, inadequado estender o
termo a formas de cooperação que ocorrem a nível
macroeconômico, como os conselhos econômicos e
sociais paritários que têm particular importância no
ordenamento nacional belga e holandês.
É também evidente que a Co-gestão não busca
como objetivo a transferência dos poderes
empresariais para os trabalhadores, tal como acontece
no caso da AUTOGESTÃO (V.).
A ampliação das experiências da Co-gestão é
impugnada numa dupla frente: enquanto a
generalidade dos empresários a considera um perigoso
debilitamento do próprio poder decisório, os
sindicatos acham-se divididos entre o propósito de se
valerem das oportunidades oferecidas pela Co-gestão
e a consideração da incompatibilidade da Co-gestão
com a função conflituosa e contestadora do
sindicalismo. Escolher a via da Co-gestão significa
optar previamente pela co-responsabilidade da
integração no sistema e contra a contestação radical
do mesmo; isto explica
COLONIALISMO
também o escasso sucesso obtido na tentativa de
estender o assunto da Co-gestão do mundo operário
ao mundo estudantil.
BIBLIOGRAFIA. - F. BLOCH-LAINE, Per una
riforma dell’impresa (1963), Etas Libri, Milano 1968;
H. A. CLEGC, A new approach to industrial
democracy. Blackweil, Oxford 1960; R. DAHRENDORF,
Classe e conflitto di classe nella società industriale
(1957), Laterza Bari 1963; M. DEMON-QUE e J. Y.
EICHENBERGER, La participation. France-Empire, Paris
1968; W. GARCIN, Congeslion et partecipation dons
les entreprises des pays du Marche Commun. Júpiter,
Paris 1968.
[VALERIO ZANONE]
Colonialismo.
I. DEFINIÇÃO. — Colonialismo indica a doutrina e a
prática institucional e política da colonização.
Enquanto colonização é o processo de expansão e
conquista de colônias, e a submissão, por meio da
força ou da superioridade econômica, de territórios
habitados por povos diferentes dos da potência
colonial, Colonialismo define mais propriamente a
organização de sistemas de domínio.
A colonização existiu em todas as épocas da
história, tendo sido diversos os sistemas de domínio
colonial, de acordo com a natureza e os fins do
Colonialismo. No uso corrente, Colonialismo significa
dominação institucionalizada de um Estado sobre
povos pertencentes a civilizações diversas e
longínquas: fala-se então de Colonialismo formal. A
Segunda Guerra Mundial e a nova ordem
internacional que daí surgiu assinalam o fim dos
sistemas coloniais formais, ou reconhecidos como
legítimos pela comunidade internacional. Muitos
países, embora não fossem governados por Estados'
estrangeiros e fossem formalmente independentes,
foram, em certos períodos da sua história,
considerados objeto de Colonialismo informal (Pérsia,
Afeganistão e China, por exemplo), ou seja, estiveram
sujeitos a uma dominação de facto. O termo
neocolonialismo começa a surgir na literatura dos
anos 50 para definir as formas de dependência
econômica, social, política e cultural a que ficaram
sujeitos os países ex-coloniais ou os que, na época, se
preparavam para a independência. O neocolonialismo
caracteriza-se hoje, mais que pelo domínio político
exclusivo de uma metrópole sobre as suas antigas
possessões coloniais, pelo domínio do mercado
capitalista internacional sobre países
181
produtores de matérias-primas, privados de estruturas
industriais integradas, dependentes financeira e
tecnologicamente, e governados por classes políticas
profundamente condicionadas pela estrutura da
dependência econômica.
Colonialismo é freqüentemente usado como
sinônimo de imperialismo, quando, em vez disso, ele
não é senão uma das formas assumidas pelo
imperialismo no decorrer da história. O Colonialismo
teve na época da expansão mais avançada do
imperialismo, fim do século XIX, formas e conteúdos
mais complexos que em qualquer época anterior.
A necessidade de aumentar as fontes de matériasprimas, minerais e agrícolas, em benefício do
desenvolvimento industrial dos países europeus,
motivou não só a repartição do resto do mundo ainda
não colonizado, como também e sobretudo a
organização de formas de Estado coloniais, visando a
uma estruturação econômica e social dos países
colonizados que se prestasse a um aproveitamento
mais racional dos recursos.
Os limites dos países colonizados são definidos
segundo os interesses das potências coloniais, a
economia é organizada em função das necessidades de
matérias-primas das metrópoles, e a sociedade é
administrada com métodos que permitam a
exploração da força-trabalho a baixo preço e, ao
mesmo tempo, mantenham o equilíbrio necessário
para não haver infrações à lei e à ordem impostas.
Mas o termo Colonialismo é usado em outros
contextos diferentes: pode significar segregação e
desigualdade institucionalizada, como a existente, por
exemplo, no regime de APARTHEID (v.) da África do
Sul. Alguns estudiosos sustentam, com efeito, que o
regime racista sul-africano não seria senão um regime
colonial de Colonialismo doméstico.
Muitos intelectuais africanos falam, além disso, de
autocolonialismo para definir o processo de
subordinação à cultura ocidental que informa em boa
parte a tomada de consciência nacionalista das classes
médias dos países ex-coloniais.
II.
COLONIALISMO: PERIODIZAÇÃO. —
O
Colonialismo teve formas, conteúdos e conseqüências
diversas, conforme as exigências de expansão dos
países europeus no mundo. Há uma interação clara
entre o desenvolvimento peculiar da Europa e a
colonização. A contribuição do Colonialismo leva, em
suas diversas formas, à modificação progressiva das
estruturas econômicas dos países europeus, enquanto
age, transformando-as profundamente, sobre as
sociedades colonizadas.
Podemos distinguir um primeiro período em que o
Colonialismo é determinado pela expansão
!82
COLONIALISMO
do comércio no mundo. Vai até meados do século
XVII. É o período do predomínio de Portugal e da
Espanha, do estabelecimento de bases nas costas dos
continentes extra-europeus, da exploração das minas
de ouro e de prata, e do comércio dos tecidos indianos
e das especiarias orientais.
O Colonialismo moderno começa, portanto, com as
viagens de exploração dos portugueses que haviam de
levar à descoberta da via marítima para as índias. O
duplo objetivo ansiado por Portugal era o de estender
a cruzada contra o Islão e o de estabelecer um tráfico
direto, não mais intermediado por italianos e árabes,
com o Oriente produtor de especiarias. O alvo
essencial são as índias e a possibilidade de desfrutar
suas riquezas. No caminho são estabelecidas bases nas
costas africanas, a partir das quais se iniria o comércio
do ouro e dos escravos. Por meados do século XVI,
Portugal domina todo o Oceano Indico, possui
importantes bases comerciais nas índias e,
posteriormente, com a conquista de Macau, penetrará
no sul dos mares da China.
Com a descoberta da América e o Tratado de
Tordesilhas (1494) — segundo o qual o Oceano
Atlântico ficava dividido em duas zonas de influência,
uma espanhola e outra portuguesa, sendo a linha de
demarcação constituída por um meridiano que
passava a 370 milhas marinhas a Oeste das ilhas de
Cabo Verde — também o Novo Mundo se abria à
conquista.
A conquista das Américas produzirá nas sociedades
colonizadas, sujeitas a uma intensa exploração,
primeiro nas minas e depois nas plantações, efeitos
devastadores. Houve sociedades que foram
inteiramente destruídas, não só política como também
biologicamente.
Aos portugueses e espanhóis seguiram os
holandeses, os ingleses e os franceses. No fim do
século XVII, entre as potências comerciais emerge a
Inglaterra que estende as suas possessões por todos os
continentes.
A colonização é, pois, nesta fase, acima de tudo,
expansão das atividades comerciais. Mas, enquanto na
Ásia e na África prevalecem as bases mercantis, as
Américas vão-se cobrindo de colônias de
assentamento, onde se desenvolve a produção
destinada à exportação para os centros metropolitanos
(açúcar, por exemplo), uma produção que se baseava
no sistema das plantações escravistas. A partir do
século XVII, é o continente africano que se torna o
fornecedor de escravos para essas plantações.
Até à abolição do tráfico de escravos no início do
século XIX, o sistema de plantações baseava-se, com
efeito, na força de trabalho coagida,
produtora das matérias-primas necessárias à expansão
do comércio europeu. A acumulação de riquezas na
Europa e sobretudo na Inglaterra, bastião da sua
superioridade marítima e comercial e da sua mais
avançada e eficiente organização estadual, permite,
pelos fins do século XVIII, o desenvolvimento em
larga escala da produção manufatureira, abrindo assim
caminho à Revolução Industrial e transformando
definitivamente as condições da economia mundial. A
Inglaterra, primeiro país a realizar tal revolução,
manterá a supremacia e o conseqüente monopólio,
mesmo colonial, quase até ao fim do século XIX.
Na primeira década do século XIX, pode dizer-se
concluída a primeira fase colonial, com a
independência da quase totalidade das colônias
americanas. Entretanto, a potência inglesa continua a
expandir-se, da índia à Austrália, no Sul da África e
com a criação de bases na África ocidental. É a época
do livre comércio que acentua a superioridade das
manufaturas inglesas. Fica formalmente abolido o
tráfico dos escravos — que continua na África oriental
até à segunda metade do século XIX e só perde força
com a conclusão da guerra civil americana — pois já
não corresponde às necessidades de expansão do
capitalismo industrial. Inicia-se a era de fomento do
comércio chamado "legítimo" (para o distinguir do
comércio já então considerado ilegítimo de seres
humanos) que vê expandir-se a gama de produtos
solicitados aos centros industriais. Aumentam os
interesses minerais e agrícolas das empresas
comerciais européias; constituem-se companhias
privadas ou estatutárias que obtêm o direito de
explorar os recursos de imensos territórios. Aumenta
assim, mesmo onde a colonização se limitara à
presença de postos comerciais, a penetração para o
interior, apoiada militarmen-te e acompanhada da
criação de estruturas administrativas.
III. O COLONIALISMO COMO SISTEMA. —
Na segunda metade do século XIX, assiste-se a uma
verdadeira e autêntica competição entre as grandes
potências européias em alargar as áreas de influência
das empresas comerciais nacionais na Ásia e no
continente africano. A repartição da África a seguir ao
congresso de Berlim (1884-1885) abre nova era do
Colonialismo com a criação de uma organização de
Estados que permitisse um aproveitamento mais
eficiente dos recursos dos países e povos dominados.
A busca do lucro não fica mais limitada às empresas
privadas ou às companhias, mas converte-se numa
política nacional seguida pelos Estados europeus,
financiada pelos fundos públicos e apoiada pela
COLONIALISMO
criação de aparelhos administrativos e políticos ad
hoc. Do ponto de vista econômico, se passa do
comércio de exportação ou de troca ao fomento da
produção de matérias-primas agrícolas (oleaginosas,
algodão, cacau, café, chá, etc.) e à exploração, com o
emprego de notáveis investimentos de capital, dos
recursos minerais.
O Colonialismo transforma-se num método de
organização da produção baseado na exploração de
uma força de trabalho privada de direitos políticos e
sociais no âmbito do Estado colonial, um método, ao
mesmo tempo, de conquista de mercados
monopólicos, tanto para os produtos industriais
europeus como para o investimento de capitais.
O continente africano foi repartido entre as
potências que já desfrutavam de áreas de influência
econômica e política. Os ingleses reivindicaram os
territórios onde já operavam as companhias (Royal
Niger Company na Nigéria, Bri-tish East África
Company no Quênia, British South África Company
na Rodésia e Niassalân-dia), ou onde existiam fortes
interesses de empresas comerciais privadas inglesas.
Os franceses estenderam seus domínios partindo das
zonas costeiras da África ocidental e equatorial. Os
alemães, mediante uma série de tratados, conseguem
criar um império, conquanto de menor extensão, tanto
na África ocidental (Togo, Camarões), como na
oriental (Tanganica e anexos de Ruanda e Urundi) e
no hemisfério sul (Sodoeste Africano, atual Namíbia).
A conquista colonial realiza-se por meio de ações
militares e de tratados. Constitui um processo longo e
complexo que, em alguns casos, só se pode considerar
concluído nas primeiras décadas do século XX.
Existe um complicado debate historiográfico sobre
as razões da repartição que assinala o começo desta
fase do Colonialismo. Alguns historiadores
consideram o Colonialismo do fim do século XIX
como expressão do nacionalismo dos Estados
europeus e do conseqüente aumento das rivalidades
internacionais. Outros vêem as suas causas no
intrincado jogo diplomático, mormente na política de
Bismarck, desafiadora de equilí-brios estabelecidos. E
indubitável que, na raiz da repartição, está o fim da
supremacia econômica e política da Inglaterra e o
aparecimento em cena de potências industriais
concorrentes, à busca de fontes seguras de matériasprimas e de mercados. Isso não explica, todavia, por
que é que foi necessário criar Colonialismos formais e
estruturais. A característica que distingue o
Colonialismo contemporâneo tem de ser vista na
necessidade de criar estruturas de domínio total para
organizar a exploração sistemática dos recursos. O
Colonialismo tornou-se uma
183
"necessidade histórica" para a expansão do
capitalismo; estrutura-se como sistema: as sociedades
colonizadas, seja qual for o seu estatuto formal
(colônias, protetorados), após a conquista, serão
submetidas e profundamente transformadas. Toda a
economia bem como as infra-estruturas físicas e
administrativas estarão voltadas para a produção de
exportação. Os sistemas sócio-políticos preexistentes
ou serão destruídos ou modelados para ser usados em
função da preservação da ordem colonial.
A Primeira Guerra Mundial, com a derrota da
Alemanha e da Turquia, trouxe uma nova subdivisão
das possessões coloniais entre as potências
vencedoras. As colônias das potências vencidas serão
governadas sob controle internacional.
O art. 22 do Pacto da Sociedade das Nações
declarava que esses territórios haviam de ser
considerados como "mandatos", controlados por uma
comissão permanente ad hoc. Distinguiram-se três
tipos de mandatos, segundo a maior ou menor
autonomia concedida: mandatos A (Síria, Líbano,
Transjordânia, Palestina) que seriam preparados para a
independência a curto prazo; mandatos B (Camarões,
Togo, Tanganica, Ruanda e Urundi), que haviam de
ser administrados à guisa de colônias e repartidos
entre a Inglaterra, França e Bélgica, mas não haviam
de ser incorporados a outras possessões coloniais;
mandatos C (ilhas do Pacífico e Sudoeste Africano) a
respeito dos quais não se impunha qualquer limite às
potências mandatárias.
O sistema dos mandatos, conquanto pouco eficaz,
devido à pouca força da Sociedade das Nações, para
permitir um efetivo exercício de toda a autonomia
consentida, constitui a primeira brecha no sistema
colonial. No espaço entre as duas guerras, a expansão
da economia de exportação e as mudanças sociais daí
advindas têm reflexos políticos na formação, em
muitos territórios coloniais, de grupos e movimentos
de caráter muitas vezes militante que reclamam não
ainda a independência, mas certamente a libertação
dos sistemas colonais. Segue-se uma série de reformas
administrativas e constitucionais cujo intuito é manter
o poder e a estabilidade dos Estados coloniais.
Não se dão neste período novos episódios de
conquista colonial, se excetuarmos a guerra sangrenta
com que o regime fascista italiano incorpora, por
poucos anos, a Etiópia às suas possessões na África
oriental (Eritréia e Somália).
A crise do Colonialismo formal, iniciada, como já
se disse, nos anos. 30, havia de acentuar-se após a
Segunda Guerra Mundial. As potências coloniais,
prontas a reconhecer a inevitabilidade da solução das
lutas nacionalistas de um país
184
COLONIALISMO
como a índia, não consideravam a maioria dos
restantes territórios "amadurecidos" para a
independência. No segundo pós-guerra, as principais
potências coloniais tentaram, antes de tudo, não
descolonizar, mas reorganizar e reconstituir os
sistemas coloniais, com o objetivo de reestruturar a
economia de exportação, para que ela contribuísse
para a reconstrução européia, e de salvaguardar os
mercados monopólicos da concorrência das
multinacionais. É neste período que se empreendem
reformas no Estado colonial, visando favorecer a
formação e consolidação de classes médias locais que
se constituam em aliadas no intento de manter o stalus
quo colonial.
Subestima-se a força explosiva do nacionalismo,
das lutas políticas e das lutas armadas de libertação
depois.
Dentro da nova situação internacional, o
Colonialismo se revelava, não como um sistema de
estabilidade, mas como um sistema cheio de perigosas
advertências revolucionárias. As potências coloniais
viram-se obrigadas a formular uma nova estruturação
econômica, financeira, administrativa e política para
"preparar" os países delas dependentes para a
independência e continuar a manter vínculos especiais,
privilegiados. A descolonização que se desenvolve nos
anos 50 constitui um processo em grande parte
negociado, de compromissos, e de uma luta política de
resultados desiguais. Contudo, se pode afirmar, em
geral, que os Estados pós-coloniais continuam a
manter, em sua estrutura, vestígios estáveis do antigo
Colonialismo. A descolonização não foi só um
processo negociado. Em alguns casos notáveis, de
uma influência decisiva na história política do mundo
contemporâneo, a independência foi conquistada
mediante a luta armada pela libertação nacional. Na
Argélia, Vietnã, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau,
Zimbabue, o Colonialismo terminou como sistema
devido à luta armada do povo, onde, ao nacionalismo,
se veio juntar a busca da redenção social, da libertação
não só do Colonialismo formal, como também de todo
o sistema de exploração de que o Colonialismo foi
apenas uma das formas.
IV. POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO. — O Colonialismo
contemporâneo se realizou como Estado com formas
administrativas diferenciadas e complexas. Estrutura
articulada de organização e exploração dos recursos,
mas sobretudo de recrutamento e controle da forçatrabalho que em vários sistemas de produção
representava sem dúvida a riqueza principal das
colônias, o Estado se aperfeiçoa como sistema
administrativo, principalmente e antes de tudo nas
colônias das potências mais adiantadas: Inglaterra e
França. A experiência colonial alemã é demasiado
breve pa-
ra constituir modelo. O colonialismo português é, de
todos, o que possui mais antiga história; mas o efetivo
controle sobre a totalidade dos territórios coloniais só
começará a ser exercido por Portugal com a
constituição do Estado Novo sa-lazarista, na década
de 30.
Nas colônias de povoamento inglesas, se
desenvolvem formas de autogoverno, mas estas se
mantêm por longo tempo circunscritas à população de
origem européia. O "responsible government" fazia
distinção entre os interesses imperiais, sob o controle
exclusivo do governador e, conseqüentemente, do
Governo metropolitano, e os interesses coloniais, sob
a jurisdição de um gabinete eleito pelos colonos. Os
primeiros a obter um Governo responsável foram o
Canadá e a Nova Escócia; tiveram-no depois, antes de
1872, a colônia do Cabo, Natal e Nova Zelândia; em
1923, a Rodésia do Sul. O princípio segundo o qual os
não-europeus eram incapazes de fazer funcionar um
sistema parlamentar foi posto parcialmente de lado,
quando, em 1919, as províncias indianas obtiveram
uma forma de Governo responsável. O Governo
responsável levou à constituição dos Dominions, ou
comunidades autônomas, dentro do império britânico,
comunidades iguais em sua situação jurídica, não
subordinadas umas às outras, unidas pela comum
fidelidade a coroa e livremente associadas no
Common-wealth britânica. O estatuto de Westminster
(1931) libertou os Dominions da hegemonia
parlamentar britânica, completando o processo de
autonomia.
A Índia estava dividida em duas regiões: a índia
britânica, governada diretamente, e os Estados
indianos, que mantinham formalmente as estruturas
tradicionais de poder, mas estavam sujeitos à
supervisão britânica.
As outras colônias e protetorados, bem como os
mandatos ("territórios sob tutela" com a constituição
das Nações Unidas), apresentavam uma grande
variedade de status jurídicos, conquanto a prática
administrativa, tidas em conta as particularidades de
cada território, tenha sido em grande parte uniforme.
Quando possível, a administração de moldes ingleses
procurava regular-se pelos principados indianos, ou
então estabelecer uma espécie de supervisão das
administrações indígenas locais. O sistema
administrativo chamado de "indirect rule", de
Governo ou administração indiretos, elaborado para a
África por Lord Lugard, primeiro governador da
Nigéria como Estado colonial unitário depois da
amalgamation de 1914-16, não significava a
manutenção das autonomias locais, mas seu uso ao
serviço de uma mais eficiente e menos dispendiosa
administração. "A política do Governo", afirma Lu-
COLONIALISMO
gard em Report on amalgamation (AHM. KirkGreene, [ed.], Lugard and the amalgamation of
Nigéria. A documentary record, London 1968), "é de
que estes chefes governem os próprios povos não
como governantes independentes, mas como
dependentes". O sistema de Governo que se servia das
autoridades indígenas era definido como um
"expediente" necessário, dada a escassez de meios à
disposição das administrações coloniais e a
dificuldade de encontrar pessoal administrativo para
tão vastos territórios. Permitia, além disso, controlar
de modo mais eficiente populações diversíssimas
entre si, aproveitando suas próprias instituições
tribais. O sistema, embora definido como indireto,
interfere nas sociedades tribais, modificando-lhes os
limites, demar-cando-as e amoldando-as às exigências
de reestruturação e controle da produção e dos fluxos
da força-trabalho. Criam-se chefes tribais onde não
existem e os que não querem colaborar são
substituídos. A ideologia colonial inglesa quer fazer
crer que, com este sistema, os africanos são
governados com as instituições que lhes são mais
adequadas e familiares. Na realidade, os sistemas
chamados tradicionais haviam sido reduzidos a formas
vazias de qualquer substância, uma vez que as funções
delas requeridas eram as de servir às exigências da
economia colonial. Como sociedade, o Colonialismo
funcionava, pois, em duas esferas distintas, a moderna
da administração européia, e a tribal, completamente
separada, dos africanos, divididos pela própria política
de manutenção do sistema de indirect rule.
Este sistema foi sendo gradualmente modificado,
mas nunca fundamentalmente como nos anos 50,
época em que, da designação das autoridades
indígenas, se passa à eleição, se bem que controlada,
das autoridades locais. Mas isto era o resultado de
profundas transformações operadas na sociedade
africana, do aparecimento entre a população de
estratos com um certo nível de escolarização, da
presença em alguns casos de uma pequena burguesia e
de uma classe média profissional, e do fortalecimento
dos cultivadores rurais com acesso ao mercado das
exportações.
O Colonialismo francês caracteriza-se por sistemas
fortemente centralizados. A ideologia que lhe serve de
base define como fim do Colonialismo a assimilação.
Na realidade, embora raramente lhes reconheça um
status tradicional, o sistema francês usa as autoridades
locais, diversamente definidas (das políticas e das
religiosas veja-se o exemplo da poderosa confraria
muçulmana dos muridis no Senegal — às econômicas
— grandes comerciantes) como auxiliares da
colonização.
185
A diferença fundamental entre os dois principais
tipos de Colonialismo, o francês e o inglês, está na
desigual atitude de um e de outro em relação ao
desenvolvimento das colônias. No sistema inglês não
se pretende desenvolver qualquer outra missão
civilizadora que não seja a de introduzir a economia
de mercado. Também ninguém julga que os povos
coloniais possam tirar vantagens de formas de
Governo semelhantes às usadas na metrópole. O "bom
Governo" colonial inglês assenta na preservação
formal das instituições autóctones ou no seu uso
funcional para os fins da colonização. O Colonialismo
inglês coexiste, portanto, com uma vasta gama de
sistemas e estruturas políticas e ideológicas, ou seja,
parece respeitar a tradição. Será, contudo, a
introdução da economia capitalista e a supervisão
administrativa que transformarão fundamentalmente
as estruturas e os sistemas tradicionais. Disto se hão
de aperceber as autoridades coloniais, como o
demonstram
as
reformas
constitucionais
e
administrativas que acompanham o desenvolvimento
da sociedade colonial desde os anos 30 até à
independência. O sistema colonial francês se
apresenta teoricamente como portador da "mission
civilisatrice" que havia de anular as estruturas do
poder tradicional, nivelando toda a sociedade num
desenvolvimento linear que seria definido por uma
administração centralizada e uniforme, apoiada num
sistema educativo absolutamente semelhante ao da
mãe-pátria. Na realidade, isto não só não é possível (v.
ASSIMILAÇÃO), como também nem sequer se tornou
comum na prática econômica e política da
administração colonial.
V. CONCLUSÕES. — Não obstante a diversidade de
formas e de sistemas, o Colonialismo produziu
resultados muito semelhantes em todos os países
coloniais. Foi o Colonialismo que motivou a estrutura
econômica de países produtores de matérias-primas,
com uma força de trabalho que vive nos limites da
subsistência. Foi o Estado colonial e, depois, os modos
e época da descolonização que prepararam as
estruturas institucionais e políticas que caracterizam os
novos Estados independentes. O Colonialismo é que
deu os moldes dos modelos culturais e, sobretudo, dos
sistemas de instrução escolar de todos os níveis. E foi
ele também que modelou os gostos e os modos de vida
das classes médias emergentes.
Herança do Colonialismo são, pois, economias
"extrovertidas", ou seja, segundo o economista Samir
Amin, voltadas para a exportação e não para a criação
de um mercado interno. O processo de
industrialização segue o mesmo caminho: inicia-se só
no segundo pós-guerra e, na
186
COMPORTAMENTISMO
maior parte dos casos, graças à ação das
multinacionais que criaram subsidiárias nos países
subdesenvolvidos, destinadas à produção de
mercadorias em série que, mais que atender às
exigências de um mercado interno, satisfazem
principalmente ao mercado de exportação.
Mesmo sob o ponto de vista industrial, os países
ex-coloniais continuam a produzir o que não
consomem e a consumir o que não produzem.
A herança política do Colonialismo acompanha os
países ex-coloniais: o Estado colonial era tipicamente
um Estado administrativo autoritário; os Estados póscoloniais deveriam lograr transformar as instituições
herdadas, ou então fazê-las funcionar de modo
democrático, isto é, fazer com que o processo de
construção da nação fosse o processo de formação de
uma sociedade civil e não predominantemente um
processo imposto pelo comando político, um processo
autoritariamente determinado.
A isto se há de acrescentar que a descolonização
levou a resultados dos mais disformes. Mais de vinte
anos de experiências de gestão dos novos Estados
independentes modificaram notavelmente as situações
herdadas, pelo menos sob o aspecto de uma maior
consciência da herança deixada pelo Colonialismo.
BIBLIOGRAFIA. - S. AMIN, L’Afrique de Louest
bloquèe. économie polilique de la colonisation. 18801970, Ed. Mi-nuit. Paris 1971; H. BRUNSTHWIG, Miti e
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FIFLDHOUSE. Gli imperi coloniali dall XVIII secolo
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dal 1870 al noslri giorni. Rizzoli. Milano 1977; W. J.
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Studi sulla teoria deli imperialismo (1972), Einaudi,
Torino 1977.
[ANNA MARIA GFNTILI]
C omportamentismo.
I. DEFINIÇÃO. — O Comportamentismo político
constitui um movimento de protesto e de renovação da
ciência política tradicional ou clássica, surgido nos
Estados Unidos. Como ciência política, se desenvolve
em dois sentidos principais. O primeiro se refere ao
objeto do estudo
da política. Os comportamentistas sustentam que a
análise política há de estar voltada para o estudo e
observação do homem como ator político e examinar
não só as suas ações, como também suas motivações,
suas atitudes, suas expectativas, suas tendências, suas
interrogações. Em oposição à ciência política
tradicional, que se ocupa de instituições e de
mecanismos jurídico-formais, e tende a reificar as
instituições atribuindo-lhes uma vida diversa da
daqueles a quem pertencem, os comportamentistas
concentram sua atenção na personalidade e na
atividade política do homem. A outra linha de
desenvolvimento, complementar, diz respeito ao
método e técnicas que deverão ser usados no estudo da
política. Os comportamentistas estão sobremodo
empenhados num método rigorosamente científico,
inspirado no modelo das ciências naturais, e em novas
técnicas de pesquisa como entrevistas, sondagens de
opinião, paneis (entrevistas repetidas com o andar do
tempo a uma mesma amostra de entrevistados),
análise de conteúdo, simulação, não excluídas sequer
as mais refinadas técnicas quantitativas. Contrariando
a aceitação acrítica das regras formais (jurídicas), os
comportamentistas dão atenção aos processos e
mecanismos informais, mediante os quais os homens
exercem uma interação recíproca entre si.
II. ORIGEM DO COMPORTAMENTISMO. — A reação
contra a ciência política tradicional não abrangia
apenas o objeto (as instituições em vez do homem, os
mecanismos jurídico-formais em vez dos processos
informais) e o método (um método impressionista em
vez de científico e sistemático), mas atingia também as
disciplinas que mais tinham influído e contribuído para
o desenvolvimento da ciência política, a saber, o
direito, a filosofia e a história.
O abandono do estudo do direito é devido à
consciência crescente de que ele não proporciona
senão
uma
compreensão
superficial
do
comportamento político e de que, em suas atividades,
os homens e as instituições se conformam só
parcialmente com as normas jurídicas. A cisão entre
filosofia e ciência política se vinha consumando lenta
mas inexoravelmente, já em virtude de uma profunda
intransigência relativa à elaboração abstrata, já porque
os cientistas políticos americanos haviam aceitado, na
prática, a democracia como quadro último de
referência, só suscetível de modificações parciais. A
filosofia não é senão um conjunto de preceitos de
pouca aderência específica ao comportamento efetivo
dos homens; especulativa, ela se tornava ainda mais
inútil num país que não sentia o problema da criação
de uma nova utopia, mas o de fazer fun-
COMPORTAMENTISMO
cionar, da melhor maneira possível, o sistema
existente. Pelo que respeita à História, seu peso sobre
a ciência política tradicional tinha sido enorme, mas
sua rejeição foi igualmente total. Por um lado, a
"pesquisa" implica a necessidade de estudar
acontecimentos contemporâneos. Por outro, enquanto
a explicação histórica tende a acentuar o caráter
irrepetível de cada acontecimento, trazendo à luz os
aspectos peculiares do seu desenrolar, os
comportamentistas, interessados em passar da
descrição de um fenômeno à sua explicação e, daí, à
sua previsão, tendem a perceber nos fenômenos, não
as peculiaridades de cada um, mas a uniformidade
existente entre eles.
Havendo-se afastado assim das disciplinas que
constituíram a fonte de tão grande parte da ciência
política tradicional ou clássica, os comportamentistas
buscam inspiração e ajuda em outras disciplinas mais
próximas dos seus interesses e necessidades. Pelo
próprio fato de tomarem de empréstimo o nome de
uma escola psicológica da década de 20, o
behaviorismo, e por seu interesse pelo homem
concreto, os comportamentistas foram sempre
profundamente atraídos pela psicologia. Além disso, a
antropologia, a sociologia e, por seu rigor e relativa
perfeição técnica, a economia, foram as disciplinas às
quais os comportamentistas mais recorreram. Se
imperativos de fundo explicam esta alteração do
quadro de referência, seria, contudo, um erro
subestimar os estímulos ocasionais. Há "dois que
possuem, sem dúvida, uma importância superior à dos
demais. É, em primeiro lugar, o ambiente do
Departamento de Ciência Política da Universidade de
Chicago, dirigido por Charles Merriam, e a influência
do positivismo lógico; é, em segundo lugar, i chegada
aos Estados Unidos dos sociólogos e psicólogos
alemães, portadores dos ensinamentos de Max Weber
e de Freud. Outros estímulos colaterais se encontram
constantemente na crescente participação dos
politólogos e, em geral, dos cientistas sociais na
atividade governamental, como conselheiros, primeiro,
durante a Segunda Guerra Mundial, depois, na
reconstrução da Alemanha e do lapão, no período da
guerra fria. Isso possibilitou aos cientistas sociais um
contato direto com o funcionamento efetivo da
máquina governativa. Entretanto, a constituição, em
1945, do Comitê do Comportamento Político por parte
do Social Science Research Council anunciava a
aceitação do Comportamentismo no campo da ciência
política. As subvenções de ricas fundações
americanas, que permitiram financiar as necessárias e
dispendiosas pesquisas, foram de importância decisiva
para o assentamento do Comportamentismo no sulco
da ciência política
187
oficial. A possibilidade de efetuar pesquisas na área
consentia pôr à prova as técnicas mais modernas e
aperfeiçoá-las ulteriormente.
III.
PRINCÍPIOS
COMPORTAMENTISMO. —
FUNDAMENTAIS
DO
Pelos meados da década de
50, o Comportamentismo já não era, na ciência
política, corrente de uma minoria olhada com suspeita,
mas constituía um movimento de crescente
importância em não poucos setores da ciência política
tradicional, um movimento com que todos tinham de
contar. Contudo, os comportamentistas não haviam
elaborado um manifesto e os que se confessavam tais
nem sempre compartilhavam os mesmos princípios.
Não obs tante, é possível resumir em oito pontos os
princípios fundamentais do Comportamentismo, advertindo-se que nem todos os princípios são aceitos
por todos e que a sua importância é diversamente
avaliada. O primeiro princípio pode ser definido como
o da uniformidade. No comportamento político há
uniformidades que se podem generalizar e traduzir em
teorias de valor explicativo e preditivo. As
generalizações e teorizações exigem quer a superação
de um estudo meramente descritivo, quer uma análise
sistemática da política. Em segundo lugar, está o
princípio da observação. O comportamentista baseia as
suas generalizações e teorias na observação da
realidade e não em especulações ou deduções. Depois
vem o princípio da verificação. A validade das
generalizações e das teorias elaboradas à base da
observação da realidade deve ser depois comprovada,
num novo confronto com ela. Deste confronto
resultará
a
validação,
a
invalidação
ou
aperfeiçoamento das generalizações e teorias em
questão. Em quarto lugar, temos o princípio da
quantificação. Caso os problemas em exame o
consintam, o pesquisador, usando técnicas apropriadas,
deverá tentar mensurar e quantificar os dados
levantados para lhes dar maior precisão. O quinto
ponto se refere à relação entre teoria e pesquisa.
Teoria e pesquisa devem ir a par: "Sem o apoio da
teoria, a pesquisa pode revelar-se banal; sem a base
dos dados, a teoria pode resultar fútil" (Easton 1967,
16). O sexto ponto concerne à relação entre ciência
pura e ciência aplicada. A compreensão e explicação
do comportamento político antecede logicamente e
fornece as bases a toda a tentativa de utilização dos
conhecimentos políticos na solução dos problemas
práticos e urgentes da sociedade. De resto, o
comportamentista deve cuidar de não confundir a
atividade prática com a reflexão teórica, se quiser
continuar a agir como cientista. O sétimo ponto diz
respeito ao papel e lugar dos juízos de valor na
pesquisa científica. A explicação
188
COMPORTAMENTISMO
empírica e as valorações éticas são consideradas como
distintas. Não resulta daí ser impossível exprimir
juízos de valor; mas a verdade e falsidade dos valores
políticos não fazem parte da pesquisa do
comportamentista. Como último ponto, o princípio da
integração das ciências do homem constitui o
princípio axial do Comportamentismo. A ciência
política não pode nem deve ignorar os resultados das
pesquisas realizadas noutras áreas científicas, se não
quiser reduzir a importância e empobrecer o conteúdo
das suas descobertas.
IV. CRÍTICA E AVALIAÇÃO DO COMPORTAMENTISMO.
— Um movimento de protesto se avalia pelos efeitos
que produziu e pelas contribuições que soube oferecer.
O Comportamentismo ampliou os conhecimentos
políticos ao menos em três setores de significativa
importância: no setor do comportamento eleitoral e da
participação política; no estudo da "personalidade"
política e das elites (v. ELITES, TEORIA DAS); no setor
do comportamento legislativo e judiciário. O
Comportamentismo deu, além disso, o primeiro
impulso ao estudo observativo dos sistemas políticos,
concentrando sua atenção na distribuição do poder nas
comunidades locais. Temas, como se vê,
quantificáveis, suscetíveis de ser estudados com as
modernas técnicas de investigação. É natural que os
comportamentistas se tenham dedicado principalmente
àqueles setores aos quais suas técnicas de pesquisa, de
levantamento e elaboração de dados melhor se
adaptavam.
A falta de atenção a outros problemas e setores não
se explica, contudo, apenas pela dificuldade de
empregar certas técnicas, mas também pelos
pressupostos teóricos, pelos oito princípios
fundamentais acima enumerados. Por isso, os
comportamentistas adotam muitas vezes uma
perspectiva a-histórica, mostrando-se incapazes de
utilizar o material que a história lhes oferece. O
campo das mutações políticas particularmente ligadas
à compreensão histórica e não suscetíveis de ser
sujeitas a pesquisa com entrevistas, questionários e
sondagens, constitui uma das grandes lacunas da
produção dos comportamentistas. Sua propensão a
estudar segmentos políticos restritos e até irrelevantes
por vezes, mas passíveis de determinações precisas e
de formulações quantitativas, não contribuiu para
cobrir a diferença entre estudos empíricos e teorias
gerais; contribuiu para o "hiperfatualismo" — recolha
indiscriminada de dados sem esquema teórico onde
inseri-los —. negando um papel à intuição e à
imaginação na análise política. Enfim, os
comportamentistas se refugiaram muitas vezes na
torre de marfim da avaliabilidade da pesquisa
científica, negando-se a fornecer guia e conselhos
baseados nos resultados da pesquisa empírica. Têm
sido também criticados por seus preconceitos
ideológicos latentes. A direita os censura por não se
haverem definido a respeito do conflito entre
democracia e comunismo, enquanto a esquerda os
condena por terem aceitado de modo acrítico os
pressupostos da ideologia democrática de feição
americana. Sob o aspecto metodológico, os cultores da
ciência política tradicional, da direita, acentuam que
os grandes problemas políticos não são suscetíveis de
tratamento científico-quantitativo. A relevância da
pesquisa foi sacrificada à tecnologia da pesquisa. Em
vez
disso,
a
esquerda
afirma
que
os
comportamentistas fizeram desaparecer da ciência
política o estudo da política como atividade
conflitante tendente a promover o bem de uma
comunidade, restringiram a política a um papel
secundário e legitimaram a ordem existente. Ambas as
críticas apresentam numerosos pontos comuns, se bem
que com acento diverso; estão, porém, viciadas por
esquematismos pelo menos tão fortemente enraizados
como os do Comportamentismo. Além disso, não
convém confundir as posições dos comportamentistas
com os princípios do Comportamentismo. Os
comportamentistas têm adotado vasta gama de
atitudes políticas. Mas o Comportamentismo, em
sentido estrito, apenas reivindica rigor científico no
estudo da política e um maior interesse pelo homem
como ator político.
V.
POSIÇÕES
ATUAIS
E
PERSPECTIVAS
DO
—
Em
suma,
o
Comportamentismo é como que a crista montanhosa a
separar dois modos diversos de conceber a ciência
política: o modo tradicional e o modo moderno, que
acentua seu caráter não normativo e a necessidade de
métodos rigorosos de explicação científica. O
Comportamentismo provocou reações violentas, até
mesmo de tipo corporativo, da parte daqueles que se
sentiam postergados pelos cultores das técnicas
quantitativas. Embora o Comportamentismo se ache,
na atualidade, fortemente integrado no corpo da
ciência política, seus cultores, ou os que se confessam
tais, não constituem a maioria dos cientistas políticos.
No âmbito da ciência política, ainda há lugar para as
perspectivas histórica, jurídica e institucional, como
complemento da perspectiva comportamentista. É
talvez ainda prematuro dizer qual será o futuro do
Comportamentismo: se se unirá a outras perspectivas,
se se converterá no movimento da maioria, ou se
desaparecerá pouco a pouco. O que importa é que o
Comportamentismo introduziu notáveis inovações na
ciência política: o estudo apurado e rigoroso dos
processos políticos
COMPORTAMENTISMO.
COMPORTAMENTO ELEITORAL
informais; técnicas de pesquisa, mensuração e
quantificação cada vez mais precisas; tendência à
pesquisa interdisciplinar. Assimilado ou não, o Comportamentismo permeou a ciência política dos últimos
vinte anos e constitui, hoje, uma corrente essencial e
ineliminável.
BIBLIOGRAFIA. — R. A. DAHL, The Behaviorall
Approach in Poliiical Science: Eptiaph lor a
Monument Io a Sucessful Protest. in "American
Pontual Science Review", LV, September 1961, pp.
763-72; D. EASTON, Significam attuale del
"comportamentismo", in "Teoria e metodi in scienza
política" ao cuidado de C. J. CHARLESWORTH (1967), Il
Mulino, Bologna 1971, pp. 47-69; Id„ The new
revolution in political science. in "American Political
Science Review", LXIII, December 1969, pp. 105161; H. EULAU, The behavioral persuasion in poli lies.
Random House, New York 1963; Id., Micro-macro
political analysis. Accents of inquiry, Aldine, Chicago
1969; Behanoralism in political science, ao cuidado de
Id., Atfaertoo Press, New York 1969; The postbehavioral era, perspectives on political science, ao
cuidado de G. J. GKAHN JR. e G. CARFY. David
McKay, New York 1972;F. 1. GREF.NSTEIN, Personaliiy and polities. Markham, Chicago 1969;
Apolitical polities. A critique of behavioralism. ao
cuidado de C. A. MCCOY e J. PLAYPORD, T. Y.
Crowell, New York 1967; Essays on the behavioral
study of polities. ao cuidado de RANNEY A., Umversity
of Illinois Press, Urbana 1962.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Comportamento Eleitoral.
I. DFINIÇÕES E MÉTODOS DE ANÁLISE. — Por
Comportamento eleitoral entendemos o processo de
formação e de expressão das preferências individuais
em ordem às alternativas políticas sujeitas à crítica do
voto. Historicamente, o estudo do Comportamento
eleitoral se desenvolveu em duas direções principais,
tendo uma como centro de análise o agregado (isto é,
um certo conjunto de votos), a outra, o indivíduo.
Cada um destes tipos de pesquisa empregou e
emprega técnicas e métodos específicos, embora,
como é claro, possa haver pesquisas que integrem
outros procedimentos. A análise do Comportamento
eleitoral baseada no agregado se desenvolve no
âmbito de um estudo ecológico-comparativo, usando
preferente-mente métodos e instrumentos de tipo: 1)
esta-tístico-demográfico, e/ou 2) histórico, e/ou 3)
geográfico-cartográfico. O processo de pesquisa
consiste,'neste caso, em relacionar os votos dos vários
partidos numa determinada área, mais ou menos vasta,
com algumas das características de-
189
mográficas, históricas, econômicas e sociais da
mesma. O objetivo da pesquisa é, em geral, o de
identificar a importância de tais características ou de
algumas delas no comportamento dos votos. O estudo
do Comportamento eleitoral, que escolhe como centro
de análise o indivíduo, usa essencialmente duas
técnicas: a sondagem de opinião e o panei. Este
compreende uma série de entrevistas periodicamente
repetidas (geralmente durante a campanha eleitoral,
mas às vezes incluída também uma entrevista após as
votações para verificar se, na hora de votar, houve
desvios quanto às tendências anteriormente reveladas)
com a mesma amostra de entrevistados. A novidade
que a análise, que estuda diretamente o indivíduo, traz
é o reconhecimento da percepção subjetiva como
elemento constitutivo do comportamento político. Por
outros termos, o comportamento político é, para uma
grande parte, o resultado das respostas subjetivas à
realidade externa, tal qual ela é percebida. A dimensão
objetiva é acrescentada, a nível de pesquisa, a
dimensão subjetiva. Pressupõe-se que, para verificar,
por exemplo, a correlação existente entre o
Comportamento eleitoral e o status sócio-econômico
de um indivíduo, não basta encontrar os indicadores
objetivos desse status — fundamentalmente, os níveis
de instrução, de ocupação e de renda — mas é
necessário, além disso, levar em conta a percepção
que o sujeito tem do seu status sócio-econômico. Nem
sempre coincidem, de fato, os níveis objetivos e a
percepção
subjetiva,
o
que
repercutirá
significativamente no comportamento. Como é
evidente, nesta segunda análise, a atitude
metodológica coincide, no fundo, com a da psicologia
social.
II. CLASSES SOCIAIS E COMPORTAMENTO ELEITORAL.
— O voto é momento imprescindível no processo
democrático das decisões políticas. A importância
específica desse momento pode variar de acordo com
o quadro institucional em que o voto se engloba e com
a diversidade do sistema eleitoral adotado (v.
SISTEMAS ELEITORAIS). Isto indicado, continua sendo
válido o propósito inicial, o que explicaria a crescente
tendência da literatura a enquadrar os estudos sobre o
Comportamento eleitoral na área de competência da
ciência política, se bem que com a utilização constante
da contribuição, tanto dos métodos como da matéria,
de outras disciplinas. Em sua divisão mais genérica, a
análise do Comportamento eleitoral compreende duas
grandes áreas de observação: a da expressão do voto e
a da abstenção. A abstenção também é uma forma de
comportamento.
190
COMPORTAMENTO ELEITORAL
O problema essencial relativo à expressão do voto
está na identificação dos fatores, motivações ou
causas que movem o eleitor a optar por uma
determinada alternativa político-partidária. Para nos
entendermos, é esta a pergunta que se faz aqui: "Por
que é que o eleitor vota como vota?"
Há uma tese que vincula o Comportamento
eleitoral à condição de classe do ator político.
Geralmente esta tese se articula em duas proposições
principais: a) o eleitor vota baseado na sua situação de
classe; b) ele vota nos partidos "de classe". Resulta
então, como corolário particular, que os que
pertencem à classe operária votam na esquerda e isso
constitui uma resposta à necessidade de classe.
À explicação "classista" do Comportamento
eleitoral — apresentada em versões de tonalidades
mais ou menos diversas, mas todas elas redutíveis a
uma lógica de determinação causai — são feitos dois
tipos de crítica. A primeira é de caráter conceituai,
contra a ambigüidade da noção de classe. Esta, de fato,
é amiúde confundida com o status sócio-econômico do
eleitor. Mas a análise do status dos membros de uma
comunidade nos oferece o mapa da estratificação
social dessa comunidade e não (não por enquanto) o
da sua divisão em classes. E, vice-versa, para se poder
falar corretamente de voto de classe, é necessário que
a noção de classe evoque e compreenda também as
condições psicoculturais de integração na mesma:
desde a percepção à identificação e consciência de
classe. A questão é que muitas pesquisas que supõem
o Comportamento eleitoral motivado por razões de
classe, na realidade demonstram, quando muito, o
papel do status sócio-econômico no processo eleitoral.
Por outro lado, o status também não é um dado
homogêneo, mormente nas sociedades industriais
avançadas. Não raras vezes, existe uma certa
incoerência entre os indicadores de status de um
mesmo indivíduo: se pode ser classificado como
pertencente a um estrato social inferior quanto à
ocupação, poderá ser considerado "da classe média"
quanto ÍJ renda. É a chamada hibridez de status, em
virtude da qual a resposta eleitoral poderá depender
menos do status — que contaria pelo menos com duas
respostas, uma "de esquerda" e outra "burguesa" — do
que de outras variáveis.
O segundo tipo de crítica à explicação classista
pode resumir-se em dois pontos. Antes de tudo, nos
sistemas políticos ocidentais, elevados percentuais de
trabalhadores industriais dependentes não votam pela
esquerda, mas preferem partidos burgueses,
conservadores ou interclassistas. Além disso, há
sistemas democráticos, por exemplo o dos Estados
Unidos, onde os partidos de classe nem sequer
existem. Isto é: também nos Estados
Unidos se pode classificar como de esquerda o partido
democrático e como de direita o republicano. Mas,
sendo assim, se deveria, a rigor, aplicar a etiqueta da
esquerda ao voto, tradicional e massivamente
democrático, de numerosos Estados do "baixo Sul",
voto historicamente originado em pressões de caráter
racial.
III. PLURALIDADE DOS FATORES DE VOTO E
"TRADUÇÃO" POLÍTICA. — A última consideração
constitui ótima introdução ao que vamos dizer acerca
do segundo grupo de interpretações teóricas do
Comportamento eleitoral, que resumiremos nos
seguintes termos. Se a tese classista é de caráter
determinista, a hipótese alternativa pretente apoiar-se
numa lógica condicional e pro-babilista. Por outras
palavras, em contraste com a tendência a atribuir as
motivações do voto a razões de classe, aqui se aceita
como postulado a existência de variados fatores
operantes no processo de elaboração das opções
eleitorais. Os principais fatores mencionados pela
literatura são: classe, religião, diferenças étnicas e
raciais, status sócio-econômico, lugar de residência.
Pode-se afirmar que cada um destes fatores é uma precondição do Comportamento eleitoral. Contudo, para
que tais precondições se tornem operantes, é
necessário que se dê uma condição ulterior, de caráter
mais genérico: os estudiosos do Michigan Survey
Research Center falam, a propósito, de um processo
de "tradução política" (political translation). Isso quer
dizer que os fatores antes mencionados não são, de per
si e ipso jacto, determinantes do processo eleitoral.
Sao, quando presentes outros fatores que canalizam e
utilizam seus imperativos dentro do processo político.
Instrumentos desta tradução política são sobretudo os
partidos e as organizações sindicais.
Neste quadro, claramente complexo, não existe
prioridade absoluta entre os fatores pré-políticos e
políticos que condicionam o Comportamento eleitoral.
O problema consiste em distinguir em cada caso a
intensidade das divisões presentes num determinado
contexto sócio-político. É, com efeito, provável que o
voto seja o resultado da ruptura percebida como a
mais intensa num dado momento histórico. Assim,
numa área povoada por minorias étnicas, o voto será
predominantemente orientado por influências raciais,
sempre que a linha de divisão étnica seja percebida
com o máximo de intensidade em relação aos outros
problemas da comunidade. Esta última cláusula
confirma a inexistência de automatismos e primogenituras irreversíveis entre os fatores condicio-nantes
do Comportamento eleitoral. Em que sentido? No
sentido de que nem mesmo a relação entre os fatores
pré-políticos e os fatores políticos
COMPORTAMENTO ELEITORAL
é do tipo unidirecional. Para nos alermos ao exemplo
do voto étnico, não se diz que o partido de minoria
racial seja sempre e necessariamente provocado por
uma "questão étnica" profunda. Tão plausível como
esta é a hipótese inversa, a de que é o partido que
confere intensidade e profundidade às diferenças
étnicas. De forma geral, nem todos os sistemas que
compreendem grupos raciais diversos apresentam
partidos de feição étnica; por outro lado, nem todos os
partidos que se baseiam em tal origem estão sempre
dispostos a reconhecer ou a atribuir o máximo de
intensidade ao problema das diferenças étnicas. E
tudo isto nos coloca fora do plano do Comportamento
eleitoral.
Um aspecto que importa deixar claro é que o eleitor
nem sempre percebe a predominância de um fator
com respeito aos demais. Ele pode estar sujeito ao
estímulo de vários fatores heterogêneos igualmente
intensos, vindo assim a encontrar-se sob a influência
de pressões cruzadas (cross pressures). Caso clássico
é o do eleitor que sente tão vivamente a sua condição
de membro da classe operária como a sua fé religiosa.
Diante de dois partidos, um que apela para a classe, o
outro que apela para a religião, é bastante provável
que tal eleitor, sentindo-se incapaz de uma escolha,
acabe por abster-se.
Devemos também ter presente que a intensidade
não é um dado constante no tempo: pode crescer ou
declinar. Ora, dos dois momentos o do declínio parece
ser o mais significativo no que respeita ao
Comportamento eleitoral, quer por motivos
estruturais, quer por motivos psicológicos. É verdade
que o voto pode constituir ab initio a resposta a um
problema entendido como particularmente profundo.
Mas também parece comprovado que o eleitor
continua muitas vezes a votar no mesmo partido,
ainda quando a condição que o induzira à opção
inicial já não existe. Os motivos estruturais de tal
comportamento se encontram na natureza do partido
político moderno. Por um lado, ele é caracterizado por
uma certa dimensão organizacional que constitui já
por si um meio de controle eleitoral; por outro lado,
ele tende, correlativamente, a autoperpe-tuar-se,
mesmo depois que os temas iniciais perderam sua
força. Pelo que respeita aos motivos psicológicos,
várias pesquisas evidenciaram: a) que no leitor médio
tende a fixar-se um mecanismo de identificação com
uma certa imagem do partido; b) que esta
identificação age como um fator de escolha eleitoral
que se mantém constante com o decorrer do tempo e é
mais forte que os estímulos e soluções apresentados
em cada uma das disputas eleitorais. Além disso, a
imagem do partido (ou, às vezes, uma imagem mais
ampla
191
das suas tendências) parece suscetível de transmissão
através das gerações, no âmbito dos processos de
socialização política. E há quem interprete a
persistência de uma mesma linha eleitoral em certas
áreas político-culturais em virtude, precisamente, da
sobrevivência, por vezes secular, de uma determinada
imagem do partido, ou de sua tendência.
IV. IDENTIFICAÇÃO DO PARTIDO E VOTO FLUTUANTE.
— Sobre a noção de identificação do partido (party
identification) há discussão entre os teóricos. O debate
não visa tanto a questão do método, pelo menos no
sentido amplamente aceito de que tal noção constitui
um instrumento de pesquisa que enriquece a bagagem
teórica de que dispõe a análise eleitoral. O contraste
refere-se preponderantemente à questão do mérito,
controvertendo a taxa percentual de "eleitores
identificados" nos sistemas democráticos modernos.
Este percentual está estreitamente ligado ao percentual
dos eleitores "flutuantes": quanto maior for o número
destes, menor será o dos votantes identificados e viceversa. A determinação das dimensões do eleitorado
flutuante parece assumir um significado peculiar na
análise do Comportamento eleitoral, porquanto há
alguém que pensa, se bem que o ponto seja
controverso, que a flutuação é resultado de uma
participação mais ativa e consciente do indivíduo na
escolha do voto. Enquanto o eleitor que se identifica
responde à lógica do "voto de conformidade", o
flutuante parece mais sensível às motivações
condizentes com os "interesses" ou a "racionalidade":
como tal, amolda a preferência do voto aos temas
emergentes em cada campanha eleitoral, em vez de se
dobrar à propaganda preestabelecida da identificação.
Estas hipóteses de interpretação revelam às vezes a
preocupação de que os resultados dos estudos
eleitorais possam estar em conflito com a imagem
quer da democracia, quer das qualidades exigidas ao
homo democraticus para o bom funcionamento do
correspondente sistema político. Daí interrogações
como estas: qual é o opti-mum para a democracia? Ê O
eleitor flutuante, racional mas instável, ou o eleitor
identificado, estável porque conformista, primeiro
consigo mesmo e depois com os mais? Será
porventura que ambos os tipos são necessários ao
sistema democrático? Nesse caso, qual será a melhor
distribuição percentual dos dois tipos?
Contentar-nos-emos com assinalar tal preocupação,
bem como as interrogações dela decorrentes. De resto,
a bibliografia está longe de haver dado respostas
exaustivas sobre o assunto. Acrescentaremos ainda:
não existe um modelo antropológico
192
COMUNA
único em democracia. Historicamente, o citoyen da
tradição francesa possui características bem diversas
das do common man da cultura anglo-saxônica, tal
como o homem inteiramente movido pela razão e
pelos interesses gerais da democracia continental tem
pouco em comum com a população inglesa, cuja
"estupidez" — a dar ouvidos a Walter Bagehot —
seria a causa da solidez do regime político insulano. A
advertência é importante, creio, porque ajuda a
distinguir, pelo que se refere a relações, entre
resultados da análise eleitoral e antropologia
democrática, entre problemas verdadeiros e problemas
que, ao contrário, do ponto de vista crítico, não o são.
V. ABSTENCIONISMO. — Como já se disse
anteriormente, a abstenção eleitoral pode ser o
resultado de uma situação de cross-pressure. Mas uma
situação destas está bem longe de esgotar todas as
condições que podem provocar a atitude de apatia
eleitoral. Em primeiro lugar, convém lembrar uma
série de fatores de abstencionismo que não possuem
qualquer significado político: a doença, a idade
avançada, dificuldades de locomoção para chegar à
sede. Há, depois, uma série de fatores de significado
político, se bem que, por vezes, de significado diverso.
Assim, uma maior apatia dos jovens (sobretudo dos
com direito a voto pela primeira vez) em relação às
pessoas de meia-idade pode supor falta de orientação
sobre problemas políticos. Há também o
abstencionismo de quem, qualquer que seja a sua
idade, nunca se ocupou de política: as mulheres que
não votam parecem entrar amplamente nesta categoria.
Mas a apatia pode indicar igualmente desgosto pela
política. Aqui o que existe não é tanto o desinteresse
ex tunc, mas a recusa ex nunc. Há depois quem,
desertando das urnas, exprime o sentimento da
vacuidade e inutilidade da própria participação: vote
ou não, é este o raciocínio, o sistema continuará a
funcionar da mesma maneira.
O problema mais relevante, e que está subjacente ao
fenômeno do absenteísmo eleitoral, é o da sua
interpretação em relação à estabilidade das estruturas
políticas democráticas. É freqüente pensar que a apatia
eleitoral se converte de fato num consenso tácito
acerca do sistema político e das suas "regras de jogo",
operando, por isso, como fator de estabilidade. Uma
hipótese plausível, mas só sob certas condições. Mais
especificamente, ela só é aplicável aos sistemas
democráticos caracterizados por uma cultura política
homogênea (v. CULTURA POLÍTICA). AO contrário,
quando ocorre nos sistemas democráticos de cultura
heterogênea e fragmentada, o abstencionismo eleitoral
é interpretado mais como manifestação
de discrepância ou, de qualquer modo, como um
elemento apto a agravar de modo concreto a
instabilidade do sistema. Isto para não dizer que, às
vezes, a abstenção exprime uma determinada opção
política e uma orientação de consciente hostilidade
contra o regime vigente: um caso verificável na
atitude adversa dos partidários de um regime
autocrático deposto, em relação ao sistema
democrático restaurado após certo in-terlúdio. É o
caso da experiência argentina depois de Perón: em
várias eleições, as centrais sindicais de inspiração
peronista exortaram com sucesso os próprios adeptos
a recusar o voto a qualquer dos partidos concorrentes.
BIBLIOGRAFIA. - R. R. ALPORD, Party and
society. The anglo-american democracies. Rand
McNally. Chicago 1963; Ideology and discontent, ao
cuidado de D. E. APTER, Free Press, New York 1964;
M. BARBAGLI, P. CORBETTA, A. PARISI, H. M. A.
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(Mass.) 1966; R. S. MILNE e H. C. MACKENZIE,
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(Mass.) 1976; The electorate reconsidered. ao cuidado
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Frammenlazione,
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e
cleavages:
democrazie facili e difficili. in '"Rivista Italiana di
Scienza Politica". VIII, 3, 1978; Il comportamento
eletiorale, ao cuidado de G. SIVINI, Il Mulino, Bologna
1967.
[DOMFNICO FISICHIELLA]
Comuna.
I. ORIGINALIDADE DA COMUNA ITALIANA.
PODERES EPISCOPAIS E COSTUMES URBANOS.
— A Comuna urbana constitui muito provavelmente,
COMUNA
na Itália da Idade Média, o momento de agregação
política mais alto e original que já se viu na história
italiana. Marcou duravelmente, tanto positiva como
negativamente, todas as suas sucessivas manifestações
e evolução. Hoje, com o nome de Comuna, perduram
ainda, pelo menos, algumas das suas funções
fundamentais. Comuna e cidade, originariamente
distintas, compenetraram-se tão profundamente que se
tornaram, na própria linguagem corrente, quase
sinônimas, significando ainda agora, a primeira, o
instrumento da gestão administrativa da segunda.
A Comuna medieval, embora com manifestações
"rurais", foi, sem dúvida, um fenômeno
eminentemente urbano, típica e principalmente
italiano, dado o papel fundamental que a cidade
sempre teve e conservou neste país: é o mesmo que
dizer que a Comuna teve na Itália sua máxima
expressão e seu mais completo desenvolvimento,
desempenhando ali funções e papéis que a distinguem
claramente das Comunas de outros países europeus.
As funções da Comuna urbana italiana talvez se
possam resumir nisto:
a) criação de novas estruturas e poderes políticos
urbanos;
b) reorganização do território provincial (comitatus);
c) criação de um novo sistema produtivo, capaz de
intenso desenvolvimento e auto-reprodução.
Em contraposição, se pode dizer que tais funções
faltaram, total ou parcialmente, ou não tiveram tão
acentuado e coerente desenvolvimento nas Comunas
de fora da Itália.
Isto parece derivar do próprio momento da sua
criação: seja qual for a opinião que se tenha acerca da
atormentada e velha questão da origem da Comuna,
não há dúvida de que ela encontrou na Itália, quando
surgiu, uma bem fincada rede de cidades, com a
animação e vida próprias da alta Idade Média e
apresentando, entre suas características, um certo
processo de continuidade em relação às últimas
experiências romanas.
Isto parece absolutamente certo: não caindo nos
exageros formais de tantos defensores da chamada
"teoria da continuidade", usada até com demasiada
freqüência por historiadores do direito e da economia,
é claríssimo que, mesmo depois do violento abalo das
invasões germânicas dos séculos V e VI, se manteve
um certo grau de vida urbana, que se foi transmitindo
dentro dos grupos urbanos italianos de origem
romana, embora murchos e enfraquecidos.
A antiga cidade romana, que era uma reprodução
da urbe, com seu modelo social e constitucional, e se
multiplicara por toda a península
193
justamente para assegurar seu controle, continuava,
pois, de algum modo operante em meio das
perturbações da tardia Idade Antiga e alta Idade
Média. Foi nesta estrutura, mesmo enfraquecida, que
se inseriu, a partir do século X, o processo genético da
communilas urbana.
Desde a mais remota época germânica, mas
sobretudo após a ampla feudalização da sociedade
militar ocorrida entre os séculos VIII e IX, o papel Ja
cidade era, indubitavelmente, bem reduzido: fazendo
parte do próprio campo, ela, na prática, não
funcionava mais como centro da organização
administrativa e política territorial, enquanto as suas
antigas funções de mercado se haviam total ou
parcialmente esvaziado com o predomínio do sistema
de economia auto-suficiente e natural.
A autoridade política, o conde, residia já de há
tempos fora da cidade, como fora da cidade residiam
os pólos principais daquele sistema fra-cionado e
decomposto de dinastas feudais ou de detentores de
título feudal de direitos sobre terras, que se
contrapunham dentro do antigo comitatus unitário.
Como cabeça da cidade feu-dalizada, o vice-comes
(visconde) representava, quando presente, o poder do
dinasta ou do consórcio de dinastas que por ele se
haviam feito substituir.
Mas, como é sabido, havia nas cidades italianas um
outro poder, urbano por excelência e, excluídos
períodos de grandes tensões como o da luta das
investiduras, capaz de estabelecer uma vinculação
natural com o comitatus: se trata, é claro, do bispo
que, diversamente das autoridades temporais, nunca
abandonou a cidade como sede fundamental e como
residência praticamente única. Ora, a partir de Otão I,
o bispo havia sido largamente favorecido pelo poder
imperial, que via na função episcopal apenas um
poder local não transmissível por herança nem
transferível por parte do titular.
Começa assim com a época otoniana o processo da
transformação do episcopus em comes, processo de
que existem uns vinte casos absolutamente
comprovados. O bispo convertia-se em "conde" da
cidade, em representante local do poder imperial e
régio e, conseqüentemente, em titular do poder estatal
sobre o centro urbano, contrapondo-se ao "condeconde", ou seja, ao antigo magistrado, agora
feudalizado, de todo o comitatus. A cidade
transforma-se assim, na segunda metade do século X e
nos seguintes, numa espécie de distrito autônomo,
mais ou menos separado administrativa e
politicamente do território provincial, conforme os
poderes mais ou menos elevados outorgados ao bispo
e a eficácia real e possível da sua aplicação.
194
COMUNA
A cidade se havia separado do comitatus, durante
esses séculos, sob um outro aspecto, embora não tão
claro e inequívoco: nos referimos aqui à formação dos
costumes urbanos, isto é, à formação de um direito
próprio dos habitantes de cada cidade, resultante da
progressiva fusão dos grupos germânicos e romanos
(maioria), que conviviam no mesmo centro urbano.
Resumindo: enquanto no campo se seguia o direito
germânico (classes altas, em geral) ou o direito
romano "vulgarizado" (clero, camponeses), na cidade,
grupos sociais diversos, provenientes de diversas
nações, iam descobrindo uma via peculiar de
unificação jurídica, formando sobre diversas matérias,
com a progressiva fusão de "lombardos" e "romanos",
costumes jurídicos comuns, sob a mistura de
elementos do direito germânico (especialmente
lombardo) e romano.
A cidade se distinguia e quase se contrapunha ao
campo. Mas o processo de formação dos costumes
parece simples projeção externa, normativa, de um
processo que diz diretamente respeito à formação da
Comuna.
II. FRAGMENTAÇÃO DO FEUDO LOMBARDO.
ASSOCIAÇÃO VOLUNTÁRIA DOS "SECUNDI
MILITES". — Este processo tem uma origem
seguramente longínqua, iniciando-se com a superação,
nas cidades, dos conflitos e tensões de derivação
nacional. Manifesta-se na formação de um populus
unitário nas diversas cidades antes que no campo e em
conseqüentes e distintos usos comuns. Reforça-se
depois com o aumento dos poderes condais do bispo
sobre a cidade, poderes que criam, como é óbvio, uma
distinção e salvaguarda para as realidades urbanas em
relação às realidades feudais que predominavam no
campo.
Mas isto não era o bastante para a formação da
Comuna. Se por toda a parte era clara a influência
episcopal sobre a cidade italiana nos séculos X e XI,
não havia em todo o lugar bispos expressamente
providos de comitatus. Era necessária, portanto, uma
causa mais profunda e específica.
Por paradoxal que pareça, é lógico pensar que a
Comuna urbana não nasceu fundamentalmente senão
de uma nova organização efetuada nos últimos, nos
mais baixos escalões da sociedade feudal, e que ela
própria, em seu momento genético, não é senão um
fenômeno feudal, se bem que rico de uma lógica
interna profundamente antifeudal. É esta realidade
genética que nos permitirá superar os obstáculos
fundamentais na compreensão e classificação do
fenômeno comunal.
Em decorrência da praxe sucessória feudal, more
longobardico, em virtude da qual, no feudo italiano,
eram admitidos à sucessão pro quota
todos os filhos e filhas do dinasta falecido, isto é,
aplicando-se rígida e arbitrariamente aos bens feudais
o regime germânico da sucessão legítima, acontecia
que o poder ligado aos direitos feudais sobre a terra
(função fiscal, forragens, administração da justiça,
etc.) ia-se progressivamente dispersando por diversas
mãos e por diversos níveis de poder. Em suma, a
hierarquia feudal se multiplicava e ampliava cada vez
mais, admitindo constantemente ao gozo dos
estipêndios feudais militares, novos grupos de
sucessíveis.
Esta situação é legalmente reconhecida em 1037,
quando Conrado II, com a promulgação, em Milão, do
famoso Edictum de beneficiis e a ratificação da praxe
do direito de sucessão até no tocante aos benefícios
menores, sanciona de fato todas as sucessões e
dispersões ocorridas em prejuízo dos interesses de
sistemática recuperação do feudo por parte dos
sêniores, primi milites ou capitanei, como eram
chamados os grandes feu-datários (v. FEUDALISMO).
Na realidade, Conrado Il não estabeleceu, nem
podia estabelecer, um verdadeiro e autêntico direito de
sucessão em relação ao feudo, porquanto uma das
premissas indeclináveis do sistema era a de que, à
morte do usufrutuário (subvassus, subvassalo,
secundus miles, etc), o feudo devia voltar in capite ao
titular; mas, ao obrigar, com a lei de 1037, o sênior a
reenfeudar logo o bene-ficium ao filho do vassalo
defunto (salvo casos gravíssimos realmente
excepcionais), Conrado Il privava-o de fato do poder
de extorsão sobre o miles, tornando efetiva,
fundamentalmente, a transmissão de pai a filhos e, ao
mesmo tempo, a alienação tácita do feudo militar em
questão.
Fragmentado e enfraquecido, o alto feudalismo já
não estava, em fins do século XI e princípios do
seguinte, em condições de dominar a ampla rede dele
dependente, uma rede que buscava então novas e
perigosas formas de reagregação. A primeira forma de
reagregação, o primeiro momento do processo de
formação das Comunas, deveu ocorrer na cidade,
quando grupos de se-cundi milites ali residentes,
amparados na tutela episcopal, se uniram para a defesa
solidária (consortium, communantia, compagna, etc.)
dos próprios interesses no comitatus, bem como dos
bens da Igreja urbana, sempre ameaçados pela
insaciável necessidade de terras dos grandes di-nastas.
O rígido sistema vertical e individualista de tipo
feudal se fragmentava, sendo substituído, num certo
ponto da cadeia (bastante baixo), por um sistema
horizontal e coletivo de gestão. Esta primeira ruptura,
uma ruptura ainda totalmente dentro do mundo feudal,
portanto rústico, havia de trazer em breve
conseqüências importantíssimas
COMUNA
e generalizadas. Isto por duas razões: a) primeiro,
porque a transição do sistema fracionário ao da
associação por parte dos secundi milites, sem medo já
de serem despojados de seu feudo, grande ou
pequeno, pelo dominus, devia ocorrer bastante
depressa e com bastante amplitude em diversos
centros; b) segundo e principalmente, porque este
processo de ruptura deu-se na cidade, apoiou-se em
forças urbanas, associando subitamente, ou quase
subitamente, forças não feudais, burguesas, que com
isso viam favorecida sua expansão; multiplicara-se
assim seu próprio poder desestabi-lizador.
III.
A
"PRIMEIRA"
COMUNA,
CHAMADA
"ARISTOCRÁTICA" ou "CONSULAR". — Feito este esboço
mais geral, nos parece, e é esse o sentir bastante
comum na doutrina dominante, que são já de menor
importância as explicações referentes ao momento
exato do aparecimento da Comuna urbana. E que, quer
se pense na conjuralio, conjuração ou associação
jurada e voluntária dos secundi milites e burgenses,
como faz Volpe, quer se ressalte, à maneira de Goetz,
a formação de uma espécie de consortium entre
dinastas
colaboradores
do
bispo-conde
na
administração da cidade, o que está na origem de tudo
é a atitude diversa e decisiva dos grupos feudais
menores que viviam na cidade ou para ela se haviam
transferido.
Fenômeno ainda absolutamente feudal, o
consortium dos secundi milites deveu converter-se em
acontecimento urbano, da cidade, com decisiva
repercussão na estrutura social e na organização do
poder,'quando os núcleos feudais se uniram aos
grupos nascentes da burguesia mercantil urbana:
tabeliães, juizes, comerciantes, cambistas, células
básicas da sociedade urbana, se aliaram à conjuratio
ou se associaram simplesmente ex facto ao grupo
feudal dominante que tinha obtido ou visava obter o
controle da cidade.
Afastando ou englobando o representante do conde
secular, onde houvesse, ou o próprio conde,
substituindo de forma mais enérgica o governo
episcopal com que até ali havia colaborado, o grupo
feudal operava aquela coincidência entre communitas,
commune e civitas que se tornaria irreversível. A
Comuna assumia o controle da cidade: resultado da
união dos dinastas com os burgenses, portanto da
união do capital imobiliário com o incipiente capital
móvel, ela procurava formas institucionais adequadas
ao governo autônomo, da realidade urbana, de há
muito distinta e isolada do comitatus. Se pode muito
bem dizer que, criada a Comuna, os próprios vínculos
que ainda ligavam a cidade ao campo, através dos
secundi milites, se romperam a nível institucional
195
para se reapresentarem agora a nível de gestão do
poder.
No início da sua grande curva, como também
depois, a instituição comunal experimentou escassa
coesão interna, seja entre o grupo feudal e o grupo
burguês, seja no seio de cada um dos grupos. A
desconfiança que guia os conjuratores ou, mais
simplesmente, os comunais, torna-se imediatamente
visível até nas formas esquemáticas de organização
que a si mesmos deram: estas formas foram a
assembléia de todos os membros da Comuna e o
colégio consular, grupo que governava também como
assembléia e era constituído por tantos membros
quantos fossem os núcleos emergentes da
communitas.
Certamente, nas primeiras Comunas, quem tinha a
primazia no colégio consular e nos órgãos dirigentes
era o componente feudal. Pelo menos até à paz de
Constança (1183), primeiro, a ameaça senhorial do
condado, e a ameaça imperial, depois, foram tais que
garantiram o predomínio estável do componente
militar na Comuna; só esse núcleo feudal era capaz de
opor resistência, de enfrentar e vencer em campo
aberto as análogas milícias feudais dos condes e
viscondes e, mais tarde, a grande cavalaria feudal
germânica (Leg-nano).
Por isso se fala também, quando se trata das
primeiras Comunas, ou Comunas consulares, de
Comunas aristocráticas ou feudais. O núcleo burguês
cresceu e prosperou ao abrigo dos muros e da espada
dos secundi milites, vindo a expandir-se e
desenvolver-se de forma prodigiosa. Mas, para
crescer, precisava de controlar seu reabastecimento de
víveres e matérias-primas vindos do condado, e de
romper, por isso, o cerco do campo, esse cerco que,
quando mantido, limitou a expansão urbana em
diversas partes da Europa.
Mas, na realidade, os bens feudais que os secundi
milites conservavam na província, a uma distância
mais ou menos considerável da cidade, eram um
trampolim
de
lançamento
nos
territórios
circunvizinhos, distinguindo basicamente ab origine a
Comuna italiana das Comunas ultramon-tanas. A
cidade já possuía no condado direitos fiscais, direitos
sobre pontes e margens, direitos de foro, imunidades
várias: a gestão comunal e unitária desses direitos fez
com que eles fossem o ponto de partida para a
operação fundamental da conquista do condado e da
recomposição, a seguir, da antiga unidade do território
provincial sob a guia da Comuna.
IV. A CONQUISTA DO CONDADO E A CONSTANTE
SOBREPOSIÇÃO DA CIDADE AO CAMPO. — Exatamente,
recomposição ao amparo da Comuna urbana: é esta
outra das características fundamen-
196
COMUNA
tais da realidade comunal italiana. No período da
gestão aristocrática, mais ou menos segunda metade
do século XII, o grupo dirigente, que então dominava
na cidade, se empenhou, de forma sistemática, em
exercer seu poder sobre a realidade provincial
confinante: grandes, médios e pequenos dinastas
feudais, feudos eclesiásticos, comunidades autônomas
e semi-autônomas, em suma, toda a complexa
realidade agrária fica ligada pdr pactos de submissio e
dedicação à Comuna da cidade.
Desta maneira, os dinastas foram obrigados a
levantar vínculos e impostos fiscais, a limitar seus
homens armados, a dar hospedagem às guarnições
comunais, a pagar tributos, a reconhecer sob
juramento a Comuna, com a obrigação de residir na
cidade durante um período determinado do ano.
Também as igrejas locais e as abadias dotadas de
benefícios feudais tiveram de reconhecer a tuitio e a
protectio da Comuna, pagar-lhe encargos e impostos,
permitir o livre trânsito por suas terras de
mercadorias, comércio e empreendimentos dos
comunais. As realidades locais semi-autônomas
tiveram, de igual modo, que jurar em bloco fidelitas à
Comuna, pagar impostos, fornecer provisões e
homens, receber a proteção da Comuna que
examinava e aprovava seus eventuais estatutos.
Toda a realidade camponesa ficou assim sujeita,
pela persuasão ou pela violência, à força exuberante
da Comuna que só encontrou limites no impulso
convergente das Comunas das cidades limítrofes: daí
as duríssimas lutas e rivalidades intercomunais. Tratase globalmente de um esforço longo, organizado,
imponente, não isento de retrocessos: de um esforço
que levou a cabo a recomposição do antigo comitatus
pré-feudal e feudal em torno da Comuna e que levou a
cidade a utilizar sistematicamente, para seu
crescimento no condado, as formas feudais.
Existe aqui verdadeira continuidade: assim como a
Comuna nos parece surgir na cidade da diversa
agregação das estruturas feudais, assim também no
campo foi justamente a utilização e não a supressão
das realidades feudais que permitiu o novo domínio
territorial. De fato, como já se disse, no caso do
fenômeno designado com o nome de "feudalismo
comunal" as antigas realidades feudais não foram de
todo suprimidas, senão nas situações que
representavam uma ameaça mortal para a nova
organização urbana. Em geral, tudo ficou em
condicioná-las e vigiá-las de perto, para obter assim o
controle de todas aquelas estruturas rurais, vicinais ou
eclesiásticas que já se achavam englobadas na
vinculação feudal.
Um controle, contudo, claramente subalternizante:
como já se disse, é esta a característica
fundamental da Comuna italiana. Ela manteve sempre
todas as realidades rurais, definidas ou definíveis,
todo o mundo camponês fora da cidade, e não apenas
formalmente. De fato, o mundo rural sujeito à
Comuna devia servir à cidade como área de
fornecimento de bens e de mão-de-obra a baixo custo
e, ao mesmo tempo, como âmbito de comercialização
das mercadorias da cidade não destinadas ao consumo
urbano ou à exportação.
Mas não se permitiu nunca a esta realidade, aos
homens do condado, fazer parte da Comuna, afirmá-la
sob juramento; eles nunca foram admitidos no grupo
dirigente da cidade, nem na sua ampla ou restrita base
popular. Qualquer que fosse na época o tipo de regime
urbano, essa rígida contraposição e sujeição do campo
à cidade jamais foram seriamente questionadas. A
transferência dos camponeses para a cidade fora tão
rigidamente limitada pelas normas precisas do
estatuto comunal, estava rodeada de tais limitações e
cautelas, que se tornava fundamentalmente
impossível. A cidade ratificou normatívamente seu
domínio sobre o campo.
Esta foi a situação típica e invariável, tanto
temporal como geograficamente, de todas as
manifestações comunais italianas. É o primeiro dos
limites que as normas comunais urbanas nunca foram
capazes de superar.
V. O GOVERNO DO PODESTADE. — Conquistado o
condado e vitoriosamente encerrada a grande luta
contra os resíduos do mundo feudal italiano e
germânico (o Império), começou para a Comuna um
período de grandes transformações internas. É o seu
segundo período, o dos podestades, que coincidiu com
o pleno desenvolvimento dos instrumentos produtivos
e comerciais acumulados, durante sucessivas décadas,
na Comuna urbana.
No podestade se pretendeu ver recentemente
(Cassandro) a permanência e "comunalização" do
órgão de governo imposto pelo império à Comuna no
confuso período da trégua precária que se seguiu à
Dieta de Roncaglia (1158). Este órgão individual,
colocado acima e à margem do colégio consular, que
de vez em quando reassumiu os poderes do governo
sobre a Comuna e a cidade (e, conseqüentemente,
sobre
o
condado),
começou
a
aparecer
sistematicamente, embora alternando ainda com os
cônsules, a partir do início do século XIII.
Tratava-se de um magistrado único, escolhido
temporariamente — um ano, seis meses — pela
Comuna de entre os membros de famílias feudais ou
burguesas de outros centros urbanos, centros estes que
deviam desenvolver uma ação política semelhante à
da Comuna que o elegia: os inte-
COMUNA
resses econômicos e as tendências ideais deviam
completar-se entre si. É evidente aqui o recurso a um
elemento externo, colocado de algum modo super
partes e, como quer que seja, não envolvido nos
conflitos políticos em curso na cidade que o acolhia.
Parece bastante simplista e nada seguro ceder a um
magistrado estranho para garantir a imparcialidade do
poder comunal em face das opo-sições internas. Mas,
pelo que sabemos, este sistema conseguiu funcionar
com notável eficiência por longo espaço de anos. Isto
é sinal evidente de que, além das descobertas da mera
técnica constitucional, existia ainda um equilíbrio
fundamental entre as partes em luta, equilíbrio que a
figura do podestade, conquanto frágil, era capaz de
assegurar.
Uma das partes não podia ser senão o velho,
orgulhoso e intransigente grupo feudal militar que
criara a Comuna e a tinha guiado ao sucesso no
comitatus e na luta contra o Império do Barba-roxa.
Este grupo, embora continuamente reforçado pelos
núcleos mais eminentes da velha burguesia urbana,
devia ser cada vez mais hostilizado e dificultado na
gestão do poder pelas exigências crescentes de uma
nova burguesia empreendedora e mercantil, com bem
pouca relevância no velho pacto comunal, mas que a
toda a hora vinha crescendo em força, riqueza, arrojo
e número.
Eram grupos que tinham criado ou estavam criando
um novo e original sistema produtivo, que não se
contentavam com o controle do território provincial,
com a produção, o comércio e os investimentos locais,
mas que viam mais além, aspirando a um grande
comércio regional, supra-regional ou absolutamente
europeu. Para os mercadores florentinos, para os
banqueiros geno-veses, para os negociantes de tecidos
bolonheses, a ambição era já bem outra que a do
controle de espaços limitados: sua ambição era, como
se sabe, a do comércio mundial.
Ora tudo parece indicar que estes novos grupos
mercantis e de tipo empresarial começaram realmente
a florescer em fins do século XII e princípios do XIII.
Pelo que o Governo do podestade deve ter-se
apresentado como uma garantia tão capaz quanto a
que a velha Comuna oferecia, como um possível meio
de condicionamento, mas nunca de limitação, por
parte do sempre restrito Governo da cidade. Em
resumo, o Governo do podestade surgia como um
Governo de compromisso.
Certamente viria a propósito objetar aqui que,
enquanto vemos transformar-se a Comuna consular
em Comuna do podestade em quase todos os centros,
nem todos afinal albergavam grupos de burguesia
capitalista capazes de se propor
197
objetivos tão ambiciosos. Além disso, se certo r grupos
burgueses de algumas cidades (Milão Florença,
Bolonha, Veneza, etc.) podiam progressivamente
alimentar tais propósitos, já não acontecia o mesmo
com grupos análogos dos centros que depois se
chamaram e tornaram "menores" (Módena, Lodi,
Lucca, Ferrara, etc).
Mas o fato é que, em nosso entender, sob o forte
amparo do poder feudal urbano, se formou uma
ambiciosa e capaz burguesia empreendedora em todos
os centros da Itália central e do norte (foi diferente no
sul, onde o feudalismo em primeiro lugar, depois a
monarquia normando-sueva, bloquearam para sempre
o desenvolvimento urbano), opondo-se por toda a
parte aos velhos grupos dirigentes: um contraste que,
sem romper o pacto comunal, levou à introdução
sistemática do podestade.
VI. O "COMMUNE POPULI" E A COMUNA SE— O equilíbrio assim encontrado entre os
grupos burgueses e o velho grupo feudal urbano ficou
um tanto abalado em conseqüência do progressivo e
rápido desenvolvimento daqueles e das suas poderosas
organizações de ofícios (artes, corporações). O
fenômeno se acentuou mais no decorrer do século
XIII, quando o processo orga-nizativo se ampliou de
forma crescente, provocando às vezes até o interesse
da média e baixa burguesia (artesãos, donos de
oficinas, etc).
Trata-se daquelas forças que, na cidade medieval,
se agrupavam sob o nome de "povo" e se foram
organizando paulatinamente em todos os centros
como commune populi, abrangendo umas vezes os
grandes grupos burgueses dos "magnatas", outras
separando-se claramente deles. É claro, onde o
processo de organização dos grupos não privilegiados
e não inseridos na direção da Comuna se desenvolveu
ampla e completamente, houve o desenvolvimento
antagônico de forças adversas aos magnatas que não
podiam ser absorvidas pela Comuna do podestade;
onde o populus, devido ao relativo atraso do
desenvolvimento econômico local, não pôde adquirir
uma forte e sólida base de organização, a ruptura não
foi tão clara nem se formou um verdadeiro e autêntico
antipoder.
De fato, o populus, desenvolvendo-se a partir das
"artes" e apoiando-se em suas próprias companhias
territoriais de "armas", deu vida a uma Comuna
antagônica (v. SENHORIAS E PRINCI-PADOS), organizada
de forma paralela e em concorrência com a Comuna
tradicional urbana. O commune populi tinha, como se
sabe, um consilium geral do "povo", análogo ao
grande conselho geral da Comuna, um consilium, ou
credencia ancianorum, similar ao conselho restrito da
NHORIL.
198
COMUNA
mesma, e era dirigido por um capitaneus populi
designado e eleito segundo critérios afins aos
adotados pela Comuna feudal e alto-burguesa na
escolha do próprio podestade.
Onde tal diarquia alcançou formas de articulada
complexidade, seguiu-se a ruptura da velha estrutura
urbana comunal, sobrepondo-se-lhe violentamente a
nova organização urbana de classe. Uma sobreposição
que não significou jamais dissolução: foi-se operando
por meio da oposição firme e constante, um dos mais
graves motivos do enfraquecimento do mundo
comunal em seu conjunto.
Como quer que seja, é indubitável que o
desenvolvimento pleno da organização popular
coincidiu com os períodos mais duros e impiedosos
dos choques internos. Diante do avanço do populus,
os velhos grupos dos magnatas, quando não batidos
em bloco, se dividiram, apoiando-se uns na
organização
popular,
outros
opondo-se-lhe
abertamente ou alinhando com uma facção dela. Isto
até ao momento em que o grupo vitorioso afastou o
vencido e institucionalizou duramente seu poder,
impondo sob diversas formas, mas sempre com plena
autoridade, seu chefe como governador da cidade
(dominus. Senhor).
Abriu-se assim caminho àquele progressivo período
de endurecimento do sistema de Governo urbano que
deu lugar à formação de novos tipos de realidade
institucional já evocados (v. SENHORIAS E
PRINCIPADOS). No âmbito dessas formas e de um
ordenamento progressivamente monocrá-tico e
principesco, a Comuna não perdeu, contudo, sua
identidade.
Com o surgir dos grupos urbanos vitoriosos, dos
seus senhores e do progressivo processo de
organização de diversas realidades em torno do
dominus de uma das cidades (dominavam os Visconti
em Milão, centro organizador de toda a Lombardia, os
Mediei em Florença, centro da Toscana, e a oligarquia
veneziana em todo o Vè-neto), se foi constituindo a
novíssima figura do Estado territorial, no qual, a uma
das cidades, graças ao papel dominante da sua
burguesia e do seu populus em relação às demais
burguesias e grupos populares urbanos, era
reconhecida a primazia.
Mesmo em tais cidades, a base do poder já não
dependia senão formalmente e cada vez menos das
antigas instituições comunais feudal-bur-guesas ou
populares. Mas estas instituições continuaram vivas,
tanto nas cidades "dominantes", como nas cidades
"dominadas": eram órgãos asseguradores não já da
autonomia política, mas apenas da autonomia
administrativa da cidade.
Permaneceram os velhos órgãos (cônsules,
podestades), as formas de deliberação (conselhos), os
órgãos técnicos (ecônomo, administrador, etc).
Permaneceram também, mas cada vez mais
cristalizados e "imóveis", os estatutos urbanos: o
príncipe se reservou alguns poderes — defesa,
administração financeira, jurisdição superior sobre a
cidade — e, geralmente, a nomeação do podestade e a
sobreposição de um órgão principesco de controle.
Exigiu e obteve, além disso, o direito de revisio e
approbatio statutorum, com o fim de controlar, de
perto, todos os aspectos da regulamentação urbana.
Detrás destas formas, que não escondiam a
sistemática intromissão do príncipe na vida municipal,
a velha estrutura da Comuna urbano-po-pular foi
mantida como forma de gestão administrativa da
cidade e do território, persistindo as antigas oposições.
Permaneceu amplamente inalterada até fins do século
XVIII quando os acontecimentos revolucionários
provocaram a destruição violenta das velhas estruturas
do município comunal, e a introdução de instrumentos
de Governo urbano mais uniformes e modernos.
VII. A COMUNA FORA DA ITÁLIA: ESBOÇO.
— É só nominalmente afim o processo de
consolidação da Comuna em áreas regionais não
italianas (particularmente na França mediterrânica e
na França do norte, Flandres, grandes divisões
territorias alemãs, Inglaterra). Por muito arbitrária que
se possa e deva crer esta contraposição das
experiências italianas como um todo às não italianas,
dadas as profundíssimas diferenças que, contra
qualquer hipótese simplista de igualamento, existem
entre uma zona e outra e até dentro de uma mesma
zona, é O fato que as divergências entre o primeiro
setor e, em geral, entre a área mediterrânea e todas as
demais zonas, são imediatamente originadas do
próprio momento genético.
Como acima se observou, na Itália (e, se pode
acrescentar, na França mediterrânica), a antiga cidade
romana conservou, de algum modo, em toda a parte
uma vida própria e sua realidade autônoma mesmo
durante o período feudal: a reestruturação dessa vida e
de forças que eram, ao mesmo tempo, inerentes ao
sistema feudal, constituiu o primeiro núcleo, o núcelo
genético da Comuna. Foi outra a situação nas zonas
não mediterrâneas, especialmente em terras
germânicas, onde a cidade era uma realidade parcial
ou totalmente ausente e onde o processo da formação
das Comunas derivou, portanto, necessariamente de
um processo de nova organização urbana.
Muitas e diversas, mas todavia incertas, foram as
causas pelas quais este processo se desenvolveu e
generalizou, ramificando-se, de um modo ou de outro,
por toda a Europa do tardio período feudal,
certamente em época bem dentro do século X.
COMUNA
Iniciou-se com o abrandamento das lutas feudais, a
cessação das grandes invasões do exterior, o
reflorescimento demográfico e a recuperação geral da
economia. Pode-se assinalar por toda a parte uma
certa revitalização das velhas cidades de origem
romana, acompanhada, principalmente no Norte, de
um amplo processo de criação de novos centros
urbanos de modestas ou modestíssimas proporções,
mas animados de uma vida própria, em claro contraste
com as características estáticas do sistema fundiário
medieval.
Economia de permuta em vez de uma economia
estagnante, reutilização da moeda em vez da velha
troca in natura, acentuada divisão do trabalho em vez
do indiferenciado sistema de produção antecedente. É
claríssimo o processo de retomada do intercâmbio,
que exigia novos postos de armazenagem e
permanência, bem como novos centros fixos de
contratação e comercialização. As novas cidades
surgem assim na França e na Alemanha originadas
também pelas necessidades comerciais, formam-se à
volta dos novos mercados, das feiras regionais ou
gerais, nos pontos de cruzamento e encontro do
comércio local e continental.
São cidades de modestas dimensões, que surgem
junto, quase à sombra de um castelo, de uma fortaleza
feudal, como subúrbios, como cidades novas
subordinadas ao velho centro fortificado do poder
dinástico. São novos núcleos urbanos murados,
sujeitos aos velhos núcleos feudais, mas, em contraste
com eles, animados de tensões, de ideais, de
oposições, de acordo com as novas necessidades
emergentes. Em suma, uma nova civilização. Emvirtude da sua própria organização, o novo grupo de
residentes não pode recorrer às velhas, simples e
rígidas estruturas hierárquicas: é um grupo de iguais,
de homens livres ou que depressa o serão.
A Comuna nasce assim como uma associação de
comerciantes e pequenos empresários que, não
necessitando de prover à sua defesa, garantida pelo
poder dinástico e senhorial, se sente obrigada a adotar
normas de conduta comercial, de tutela jurisdicional,
de mútua ajuda, de culto comum. Trata-se também
neste caso de uma associação horizontal, aberta,
automodificante, em contraste com o rígido regime
hierárquico vertical estabelecido até então pela
estrutura agrário-feudal predominante.
Mas o fato de esta Comuna existir separadamente
do mundo feudal e de não conseguir inserir em si
elementos fundamentais e significativos das velhas
estruturas dirigentes, é que a diferencia, conforme
dissemos, da experiência italiana, bem mais articulada
e completa. De fato, no fundo, a Comuna não italiana,
afora, em parte,
199
experiências como a provençal, a flamenga e a
hanseática, se caracteriza por sua não identificação
com a civitas. A Comuna continua sempre como uma
experiência particular dentro da nova cidade;
raramente consegue assumir a direção dos núcleos
urbanos tanto velhos como novos. É uma organização
privada dos grupos burgueses, que extorque ao
senhor, eclesiástico ou laico, um certo slatus
privilegiado, que obtém e amplia progressivamente a
própria autonomia e conseqüente autogestão, mas que
quase nunca consegue subtrair toda a cidade ao
controle feudal. Pelo contrário, deve continuar-lhe
sujeita.
De igual modo, a Comuna não italiana jamais
assume o controle do vastíssimo comitatus. O campo
é para os comunais lugar de permuta, zona de recolha
de mercadoria e venda de manufaturados, mas nunca
uma realidade a eles política e hierarquicamente
subordinada. As realidades feudais ou semifeudais do
campo permanecem essencialmente sob o controle do
comes e do chanceler, que, ao contrário, tende a
ampliar cada vez mais seu poder, chegando bem
depressa, pelo menos na Alemanha, a uma semisoberania territorial.
Em conseqüência, a Comuna dessas vastas áreas
não experimentou transformações institucionais além
de um certo nível, nem jamais surgiram de seu seio
realidades senhoriais. E e continua sendo órgão de
administração de justiça apenas para os seus membros,
colégio judicativo (escabinado), que com muita
freqüência coincide totalmente com o órgão dirigente
da própria Comuna. O dinasta autoriza e, ao mesmo
tempo, controla tal função, nomeando inclusive o
chefe do colégio judicial e comunal, nomeação que,
em virtude das respectivas forças, dependerá umas
vezes da indicação da communilas, outras, da livre
escolha do próprio dominus.
Ao dominus está também reservado, em geral, o
poder de designar o Bürgmeister, o Maire, o Major,
de toda a cidade, estabelecendo sua competência e
funções, dentro dos limites prefixados pelo espaço já
conquistado na cidade pelo grupo privilegiado dos
burgueses. Este constitui, por conseguinte, um grupo
emergente que se apoia nos outros, no domínio da
sociedade (nobreza e clero), sem contudo poder
dirigi-la, mesmo que temporária e parcialmente.
Tanto é verdade que, muitas vezes, é o próprio
dinasta territorial quem toma a iniciativa de fundar
uma ou mais cidades, incluindo a concessão de um
slalus privilegiado aos comerciantes e aos burgueses
capazes de atividades de tipo empresarial, e a plena
liberdade a quantos lá se estabelecerem ("Stadtluft
macht frei", o ar da cidade torna a gente livre, reza a
antiga fórmula).
200
COMUNICAÇÃO POLÍTICA
além da garantia de amplos privilégios, entre os quais
o de jurar a Comuna.
Assegurado e limitado o fenômeno comunal, é o
próprio dinasta, o príncipe, quem depois o promove
ou favorece, com vistas ao potenciamen-to e expansão
do seu poder pessoal: as terras de expansão germânica
no Leste, negadas à contínua pressão eslava, estão
ponteadas de novas cidades criadas pelos dinastas
feudais. Isto é prova evidente da completa sujeição
das realidades comunais aos Landesherren e de que
elas eram capazes de desempenhar uma função dentro
do novo mundo feudal-senhoril.
Naturalmente ocorrem casos bem diversos, casos
de cidades francesas, flamengas, alemãs, que
alcançaram uma mais precisa e larga autonomia. Um
exemplo quase escolástico de tal realidade nos é
oferecido pelos grandes centros costeiros da
Alemanha, pelas cidades da Hanse comercial e
marítima, centros esses que conservam até à idade
moderna papel e status de "cidades livres", isto é,
cidades não submetidas ao vínculo feudal.
Mas não são certamente muitas as exceções. O
normal é que as Comunas das cidades velhas e das
cidades novas, após uma série muitas vezes complexa
de vicissitudes bélicas e políticas, acabaram por se
encontrar perfeita e completamente inseridas nas
grandes senhorias da terra. Desempenhavam um papel
autônomo, muito vital, mas amplamente subalterno.
Não se verificou, em contraposição, aquela total
fragmentação do território que houve na Itália e que
constituiu um obstáculo gravíssimo à reconstituição de
ordenamentos estaduais de abrangência regional ou
nacional.
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italiano dagli inizi del secolo. Decimoprimo alia
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1961'; Id., Studi sulle istituzioni comu-nali a Pisa.
Sansoni, Firenze I9702.
|PAOLO COLLIVA]
Comunicação Política.
I. DEFINIÇÃO E ORIENTAÇÕES INTERPRETATIVAS. —
A Comunicação política pode ser definida como o
conjunto das mensagens que circulam dentro de um
sistema político, condicionando-lhe toda a atividade,
desde a formação das demandas e dos processos de
conversão às próprias respostas do sistema.
Metaforicamente, pode-se conceber a Comunicação
política como o "sistema nervoso" de toda a unidade
política. São três as orientações principais relativas a
esta matéria. A primeira, elaborada pela escola
estrutural-funcionalista, é a que ti ata a comunicação
como um aspecto importante, mas não essencial para a
compreensão dos processos políticos. A segunda é a
dos autores que aplicam modelos cibernéticos ao
estudo da política e que fazem, por isso, da
comunicação a unidade de análise decisiva das suas
teorias. A terceira, enfim, que está ligada, por um lado,
às pesquisas de sociolingüística e, por outro, à
sociologia das comunicações de massa, é própria das
teorias que se concentram nos efeitos de um acesso
desigual aos recursos de comunicação sobre a
distribuição do poder político dentro dos diversos
grupos organizados.
II. A COMUNICAÇÃO POLÍTICA COMO
FUNÇÃO DE INPUT E SUA INFLUÊNCIA NA
OPINIÃO PÚBLICA. — A Comunicação política é
entendida, à luz da análise estrutural-funcional de
Almond, por exemplo, como uma função de irtput,
cujo desenvolvimento constitui um requisito
indispensável para a realização de todas as atividades
relevantes do sistema político. Nesta perspectiva, a par
de todas as demais funções, ela atende, portanto, aos
COMUNICAÇÃO POLÍTICA
fins de manutenção e adaptação do mesmo sistema
político. Assim compreendida, a Comunicação política
está implícita em toda a forma de contato humano. Os
contatos informais de pessoa a pessoa são seu veículo
mais comum. Como salientaram os estudiosos da
formação da opinião pública, esse tipo de canais de
comunicação, particularmente o que é constituído
pelos líderes de opinião, é fundamental na transmissão
das mensagens aos membros do sistema político e,
conseqüentemente, na formação das opiniões
políticas. Nos sistemas políticos modernos, a
Comunicação política passa, além disso, através de
canais especializados: os meios de comunicação de
massa. A qualidade dos mass media, o tipo de
mensagens transmitidas e a freqüência das próprias
mensagens são decisivos para a formação das atitudes
da opinião pública e, conseqüentemente, para o tipo de
pressões que ela exerce sobre os centros decisórios do
sistema político. Segundo Richard Fagen (1966), as
diferenças mais relevantes nos fluxos de comunicação
estão ligadas sobretudo ao tipo de regime político. Nos
regimes democráticos, a comunicação tende a ser
constante entre a elite a a opinião pública. As
mensagens vão, quer da elite às massas para lhes
solicitar apoio, quer, se bem que com maior
dificuldade, das massas à elite através dos múltiplos
canais que transmitem a instância política. Nos
regimes autoritários, o fluxo de comunicação é
constante entre as elites e os círculos governativos; é
igualmente constante entre a elite e a massa dos
cidadãos; mas são raros os canais que transmitem as
mensagens na direção oposta. Finalmente, nos regimes
totalitários, a característica principal é a comunicação
maciça fluindo da elite para as massas. "Todos os
mecanismos humanos e tecnológicos controlados pela
leadership são usados para obter o máximo de apoio
popular e de eficiência. O esforço é constante,
coerente e eficaz. É claro que existem aqui outros
fluxos importantes: verticalmente, da base para o
vértice, sob a forma de informações e de críticas
moderadas; horizontalmente, entre a elite e os centros
decisórios, no modo típico de todos os sistemas
burocráticos complexos. Mas o fluxo dominante é o
descendente" (Fagen, 1966).
III. A TEORIA DAS COMUNICAÇÕES. — A
Comunicação política, entendida como instrumento
analítico, é central numa teoria, ad hoc, a teoria das
comunicações. À luz deste particular esquema de
interpretação dos fenômenos políticos, a política é
entendida como conjunto de processos de guia e
coordenação das atividades de um sistema social, em
ordem à consecução dos fins a que
20!
tende o sistema. O processo de decision-making é, por
isso, o mais importante. A Comunicação política é,
pois, para a cibernética, o conjunto de mensagens
capaz de gerar decisões políticas. A luz do conceito
de comunicação, qualquer sistema dotado "de um
considerável grau de organização, de comunicação e
de controle, independentemente da diversidade dos
processos particulares de transmissão das mensagens
e dos modos de desempenho das suas funções" (K. W.
Deutsch, 1972), é concebido como uma rede de
comunicação, ou melhor, como uma rede de
conhecimento. Do mesmo modo é entendido também
o sistema político.
Um modelo de comunicação é composto, em sua
forma mais simples, de um conjunto de dispositivos
receptores, através dos quais são introduzidas as
informações do ambiente externo (inputs) e aos quais
competem, além disso, as operações de seleção das
informações e de sua interpretação, com base num
código apropriado, ou conjunto de regras
interpretativas, que varia de sistema para sistema e
depende dos valores predominantes, da qualidade e
tipo de canais de comunicação e, principalmente, dos
fins que o sistema político pretende atingir. A seguir, a
informação assim elaborada chega ao centro decisório, que a confronta com os dados anteriormente
memorizados — valores, expectativas, lembranças de
experiências análogas, etc. A este processo segue-se o
ato fundamental para a vida do sistema político, a
decisão.
Na óptica da teoria das comunicações, a decisão é
entendida como uma manifestação do poder político.
É essencialmente o poder político que permite à
vontade do centro decisório pôr em execução as
decisões estimuladas pela informação vinda de fora.
Esta perspectiva permite, em particular, de acordo
com seu mais importante teórico, Karl Deutsch, uma
redefinição, em termos probabilís-ticos, do poder
político, feita uma distinção entre poder bruto e poder
líquido. O poder bruto é "a probabilidade que um
sistema tem de realizar seu programa interno,
impondo um certo número de mudanças ao ambiente".
O poder líquido, ao invés, deriva do poder bruto
"como diferença entre a probabilidade dessas
mudanças impostas ao mundo externo e a
probabilidade de um número crítico ou relevante de
mudanças verificadas na estrutura interna" (Deutsch,
1972).
IV. PROCESSOS DE FEEDBACK NEGATIVO E DE
— A interpretação do processo
político não pode, porém, ficar por aqui. O modelo
até agora proposto é, de fato, uma
FEEDBACK POSITIVO.
202
COMUNICAÇÃO POLÍTICA
representação estática do tipo E-R (estímulo-resposta), incapaz de explicar os fenômenos de mudança
do sistema político. O conceito de feedback (negativo
e positivo) é o instrumento analítico fundamental,
oferecido pela teoria das comunicações, para a
compreensão da dinâmica do processo político.
O feedback negativo diz respeito aos processos
mediante os quais chegam até ao centro decisório as
informações relativas às conseqüências de decisões
anteriores, permitindo-lhe avaliar se essas mesmas
decisões o aproximaram ou o afastaram dos objetivos
almejados, e modificar, em conseqüência. O processo
de feedback negativo constitui, portanto, para o
sistema político, um instrumento de controle sobre o
ambiente externo. Como diz Deutsch, o feedback
negativo "é o controle do comportamento, passo a
passo, estádio por estádio, não baseado nas boas
intenções, mas nos resultados reais do estádio
precedente" (Deutsch, 1970).
Aos processos do feedback negativo estão
estreitamente ligados os conceitos de carga, demora,
vantagem e antecipação. A carga indica a velocidade
e a quantidade da mudança que intervém na posição
do objetivo que o sistema tenta alcançar. A demora é
o espaço de tempo existente entre o momento em que
se põe em execução uma ação e o momento em que a
informação sobre as suas conseqüências refluem ao
centro decisório. A vantagem é a quantidade de
mudança efetivamente introduzida pela ação do
sistema. A antecipação, enfim, indica a capacidade de
distinguir a posição exata do objetivo em movimento,
no momento em que a decisão se transforma em ação.
Deutsch observa, em especial, que "as
probabilidades de sucesso na consecução do objetivo
são sempre inversamente proporcionais ao grau de
carga e de demora. Até um certo ponto, podem ser
positivamente correlatas à medida da vantagem, se
bem que a relação possa inverter-se quando a
vantagem atinge altos níveis; são sempre
positivamente correlatas à medida da antecipação"
(Deutsch, 1972). Na óptica da teoria das
comunicações, o mau funcionamento do processo de
feedback é a razão principal da ineficiência, ou
incapacidade de criar decisões políticas capazes de
favorecer a consecução dos objetivos, de muitos
sistemas políticos.
O feedback positivo é um processo oposto ao que
acabamos de descrever. Agora a informação sobre as
conseqüências de uma decisão política anterior
provoca o fortalecimento do comportamento do
sistema na mesma direção. As situações de conflito
são geralmente explicáveis nos limites
do feedback positivo (ou retroação amplificante).
Igualmente, são os fenômenos de desabe e mudança
dos sistemas políticos. O ponto crucial, que é preciso
verificar a tal propósito, é se o sucessivo
revigoramento do comportamento, provocado pelo
feedback positivo, é crescente ou decrescente. No
primeiro caso, "... a reação total está destinada a
crescer até os limites do sistema, acabando, de algum
modo, em ruína" (Deutsch, 1972); a reação é
assimilável a um processo de escalation. No segundo
caso, estaremos, pelo contrário, em presença de um
processo de de-escala-tion, porquanto todo o
sucessivo reforço do comportamento será menos
intenso que o precedente e o sistema tenderá a
avizinhar-se do seu nível máximo de rendimento e
eficiência.
O feedback é, além disso, um conceito fundamental
para a compreensão dos fenômenos de mudança dos
sistemas políticos. A mudança é, com efeito,
provocada, em geral, por um feedback modificador de
objetivos, isto é, por um fenômeno de retroação, que
intervém modificando os fins intentados por um certo
sistema político até um determinado momento da sua
história. Isto pode acontecer, ou porque o fim
anteriormente almejado foi alcançado e o sistema
político tem de procurar um novo fim, ou porque
sobrevieram mudanças nos valores do sistema, na
estrutura dos seus canais de comunicação, ou nos
elementos constitutivos do centro decisório. É
justamente o processo de feedback que, neste caso,
fazendo afluir novas informações do ambiente
externo, provoca a redefinição dos objetivos do
sistema.
V. OS FLUXOS DE COMUNICAÇÃO
POLÍTICA ENTRE os SUBSISTEMAS POLÍTICOS. — O
funcionamento e a própria natureza dos canais de
comunicação, a que estão ligados os processos de
feedback, dependem, segundo Fagen (1966), de quatro
tipos diferentes de fatores: 1) econômicos; 2) sócioculturais; 3) políticos; 4) históricos.
O nível de desenvolvimento econômico influi de
diversos
modos
na
Comunicação
política,
determinando sobretudo a maior ou menor difusão dos
mass media. Nas sociedades tradicionais, onde os
meios de comunicação de massa são inexistentes ou
raros e predominam os contatos cara a cara, os
processos
de
feedback
revelam
diferenças
significativas, por exemplo, quanto ao "tempo"
necessário para os ajustamentos impostos pelas novas
informações, em relação às sociedades modernas
onde, tanto as massas, quanto as elites, estão
completamente expostas à influência dos mass media.
Analogamente, no que toca aos fatores sócio-culturais,
o nível de alfabetização, o grau de instrução e o tipo
de cultura política
COMUNICAÇÃO POLÍTICA
implicam diferenças significativas nos canais de
comunicação, na estrutura das mensagens, etc. O
mecanismo dos processos de Comunicação política
varia também, se é a elite que controla diretamente os
meios de comunicação, ou se os seus adversários têm
possibilidade de formular críticas públicas capazes de
influenciar, a opinião pública e, por isso, de provocar
reações por parte da elite. Finalmente, o mecanismo
dos processos de comunicação é influenciado pelas
tradições históricas da sociedade, variando, por
exemplo, nos países há pouco independentes, se a
rede de comunicações é ainda a criada pela potência
colonial ou não, e, num sistema político moderno, se
as "regras do jogo" que presidem aos contatos entre as
diversas
estruturas
políticas,
historicamente
consolidadas, se protraem no tempo ou são
substituídas por outras regras.
Segundo Fagen, o que importa verificar para se
avaliar a eficiência dos sistemas políticos é se a rede
de comunicações é funcional para o sistema,
especialmente se o mecanismo dos processos de
comunicação que ocorrem nos subsistemas, ou
unidades singulares de comunicação, facilita ou
dificulta o funcionamento de qualquer subsistema e do
sistema político global. Para verificá-lo, é preciso não
só considerar a distribuição e o tipo de canais de
comunicação presentes em cada subsistema, mas
também levar em conta o fato de que todo subsistema
tende a ser condicionado em sua atividade mais por
umas comunicações do que por outras, isto é, torna-se
necessário ter presente o tipo de especialização dos
subsistemas.
Depois, analisam-se as características dos vínculos
que unem os diversos subsistemas, porque o modo e
freqüência com que a comunicação atravessa os seus
limites ajudam a determinar as características do
sistema político global. Em parte, isto está ligado ao
grau de controle e coordenação que possui o
subsistema decisório em relação aos outros
subsistemas, já que "todos os sistemas políticos
podem ser concebidos como sistemas que possuem
estruturas mais ou menos apropriadas de
comunicação-coordenação-controle, que unem entre
si, não o conseguindo por vezes, os subsistemas"
(Fagen, 1966). Os grupos étnicos ou tribais
apresentam, amiúde, exemplos de subsistemas em que
a comunicação interna circula facilmente, mas a
externa só a custo consegue penetrar e, o mais das
vezes, através de dispositivos receptores que
contribuem para a distorcer e para oferecer dela uma
"imagem" deformada aos membros do subsistema.
Quando tal acontece, os processos de feedback são
negativamente influenciados e a capacidade de
controle e coordenação por parte do subsistema
decisório fica reduzida
203
ao mínimo, com conseqüências nocivas para o
funcionamento de todo o sistema político, bem como
para a consecução dos seus fins fundamentais.
VI. MANIPULAÇÃO DA COMUNICAÇÃO. — Uma
abordagem alternativa das até aqui analisadas é a dos
autores que estudam os efeitos da manipulação dos
sistemas de Comunicação política operantes nas várias
sociedades, a serviço de grupos politicamente
privilegiados. É em Mueller que encontramos uma das
melhores formulações de tal abordagem. Para
Mueller, as condições de integração e conflito nas
sociedades de capitalismo avançado são o resultado da
combinação de um desenvolvimento diferenciado dos
sistemas lingüísticos e da capacidade cognitiva dos
vários grupos sociais — o que favorece a articulação
de certas demandas e a exclusão de outras —, com a
manipulação centralizada das mensagens políticas. O
ponto de partida de Mueller é o papel dos sistemas
lingüísticos na determinação das formas de
comunicação política, bem como na determinação, daí
decorrente, do processo político mais geral dentro de
qualquer sociedade. Existe uma relação íntima entre o
tipo de linguagem que os indivíduos interiorizam nos
processos de socialização e a capacidade cognitiva
que esse tipo de linguagem permite desenvolver: o
indivíduo só poderá se empenhar eficazmente na
Comunicação política quando sua capacidade
lingüística e cognitiva estiver suficientemente
desenvolvida. Mas a efetiva comunicação, para ser
realmente tal, também requer, por seu turno, estar
suficientemente livre de embaraços e distorções.
A tese de Mueller é que, nas sociedades de
capitalismo avançado, em que se concentra a sua
análise, a persistência de fortes desigualdades
políticas (de acesso ao poder e de seu controle) é
devida à impossibilidade/incapacidade de os grupos
não privilegiados se empenharem numa Comunicação
política eficaz, por via da ação de um conjunto de
mecanismos de distorção. Ele estuda três tipos de
comunicação distorcida: a diretamente manipulada, a
bloqueada e a indiretamente manipulada.
O primeiro caso é próprio dos regimes totalitários,
onde tanto o sistema de comunicação de massa como
as políticas educativas postas em prática pelo
Governo estão totalmente permeados pela propaganda
e a ela subordinados. O segundo caso, o da
comunicação bloqueada, é mais complexo; ocorre
principalmente nos processos de socialização
primária. Há aqui uma decisiva diferenciação entre os
indivíduos, segundo a classe a que pertençam: o
ambiente social em que se dá
204
COMUMISMO
a socialização regula o desenvolvimento do sistema
lingüístico e, em conseqüência, o da capacidade
cognitiva dos indivíduos. Como o demonstraram
diversas
pesquisas
empíricas,
existe
uma
estratificaçõo social da linguagem, pela qual, à
medida que se vai descendo a pirâmide social, a
linguagem vai se tornando menos rica e menos
articulada. Isso predispõe à interiorização de valores
diversos, em vinculação com as diferenças de código
lingüístico e de capacidade cognitiva: maior
predisposição à aceitação da autoridade, ao
conformismo de grupo, etc. (heterodireção), nas
classes inferiores, maior predisposição ao
desenvolvimento de uma personalidade mais
autônoma e mais concentrada sobre si mesma
(autodireção), nas classes média-altas. A estrutura
dos valores tende, pois, a vincular-se à estrutura dos
sistemas lingüísticos, desigualmente desenvolvidos,
e, desse modo, í. robustecer e a reproduzir as
desigualdades Econômicas e políticas fundamentais.
O terceiro tipo de distorção é o devido à
manipulação indireta da comunicação de massa por
parte do Governo e dos grupos privados que a
controlam. Nas sociedades de capitalismo avançado,
esta manipulação implica o tratamento dos diversos
problemas em termos de uma "paraideo-logia"
científica (Habermas) que reduz as questões da
distiibuição do poder a problemas técnicos de
maximízação da eficiência, com uma linguagem
concentrada exclusivamente nos meios e não nos fins
(com uma passagem definitiva, nos termos de
Weber, da racionalidade substancial à racionalidade
formal).
Retomando uma tese inicialmente apresentada por
Mannheim sobre o papel dos intelectuais, _e
aproximando-se das mais recentes teorizações sobre
a "nova classe" (Daniel Bell; Alvin Gould-ner),
Mueller crê que, enquanto se assiste hoje à integração
política das classes inferiores, particularmente do
proletariado, já conquistadas para a causa do status
quo, a oposição a um sistema distorcido de
Comunicação política, sobre o qual se apoiaria
inteiramente a estrutura de domínio, só pode surgir,
nos países de capitalismo maduro, do "estrato
cultural", da área de profissionais da comunicação
cujo papel político é hoje ampliado, quer pelo
desenvolvimento da instrução, quer pela expansão
dos mass media. É à atitude deste estrato cultural,
que se recusa a legitimar ideologicamente as novas
formas de domínio, que se deveria atribuir, segundo
Mueller, a crise de autoridade de que sofrem os
regimes políticos ocidentais e a sua incapacidade de
tirar total proveito do uso da moderna tecnologia das
Comunicações políticas na defesa do status quo.
BIBLIOGRAFIA. – K. W. DEUTCHE, I nervi del potere
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York 1973; L. PYE, Communications and political
development, Pnnceton University Press. Princeton 1963.
[ANGELO PANEBIANCO]
Comunismo.
I. AS ORIGENS DO IDEAL COMUNISTA: PLATÃO
E O COMUNISMO EVANGÉLICO. — Costuma-se fazer
remontar a Platão a primeira formulação orgânica de um
ideal político comunista. Na República, de fato, onde traça
o modelo da cidade ideal, ele prevê a supressão da
propriedade privada, a fim de que desapareça qualquer
conflito entre o interesse privado e o Estado, e a supressão
da família, a fim de que os afetos não diminuam a devoção
para o bem público. O acasalamento dos sexos deve ser
temporário e os filhos devem ficar desconhecidos aos pais:
o Estado provera a sua educação e criação.
Lembre-se, porém, que Platão, ao traçar este modelo,
não se refere à totalidade do povo, mas somente às classes
superiores ou aos dirigentes do Estado: os guerreiros e os
guardiães. Para as classes inferiores, ao invés, isto é, para
aqueles que são destinados à agricultura, aos serviços
manuais e ao comércio, ele prevê a organização
econômica e familiar tradicional. Como frisa Gom-perz,
na República, a emancipação destas classes não se
questiona; a elas não somente incumbe a obrigação de
fornecer às classes superiores os meios de subsistência,
mas são colocadas perante estas últimas numa relação de
rigorosa dependência.
É no âmbito da civilização cristã que florescem os
primeiros ideais comunistas, dirigidos, não a cada grupo
ou classe da população, mas a todos os homens. Nos
Evangelhos não faltam passagens nas quais a riqueza é
considerada má em si (Mateus, VI, 19-21) e os pobres são
proclamados os únicos que poderão entrar no reino de
Deus (Lucas, VI, 20); analogamente, em Marcos (X,
21,25) se afirma que é preciso despojar-se de tudo aquilo
que se possui e dá-lo aos pobres, porque "é mais fácil um
camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico
entrar no reino de Deus".
É verdade que, na formulação paulina, estes motivos de
crítica social próprios do cristianismo primitivo são
notavelmente alternados e
COMUNISMO
temperados: "cada um fique na condição que o senhor
lhe fixou" — lê-se na 1 Coríntios, VII. 20-24 — e o
escravo não tente mudar o próprio estado, porque
"perante o Messias todo escravo é um liberto e todo
homem livre é um escravo"; e em Efésios, VI, 5-8, se
proclama: "Escravos, obedecei a vossos patrões com
devoção e temor e servi-os com cuidado, como se se
tratasse do próprio Senhor e não de homens". Apesar
dessas colocações, o ideal de vida em comum, vivida
na pobreza e na caridade, e do conseqüente desapego
dos bens terrenos, operará potentemente no
cristianismo dos primeiros séculos, encontrando
concreta manifestação nas ordens monásticas e em
formulações doutrinais do tipo daquela de Santo
Ambrósio: "a natureza colocou tudo em comum para
uso de todos; ela criou o direito comum; a usurpação
criou o direito privado". Ideais e posições que, com o
mundanizar-se da Igreja e com o seu progressivo
identificar-se com as instituições sociais e políticas
dominantes, são assumidos pela espiritualidade
popular e pelos movimentos heréticos: assim, os
Cátaros (séculos XII-XIII) exaltam a pobreza e a
castidade, proclamam a necessidade de pôr tudo em
comum e de viver do próprio trabalho; do mesmo
modo os Valdenses repudiam a propriedade privada,
etc. Também na pregação de Joaquim de Fiore (século
XII) e na sua profecia de um iminente advento do
reino do Espírito Santo, estão presentes ideais de
pobreza e de castidade. de fraternidade e de comunhão
universais, sem mais lutas para o meu e o teu.
Influências joaquinianas atuaram sobre os franciscanos intransigentes, que proclamavam a proibição
de possuir, e sobre o movimento comunista de frei
Dolcino (1304-1307).
Mas a conexão entre espiritualidade cristã e
reivindicações sociais em perspectiva comunista não
percorre somente toda a Idade Média, mas chega até a
época moderna: basta pensar no papel desempenhado
pelos anabatistas na guerra dos camponeses (15241525) e na pregação de Thomas Münzer para um
retorno à comunhão e à igualdade do cristianismo das
origens.
II. UTOPIAS COMUNISTAS DA IDADE MODERNA: MORE
E CAMPANELLA. — Não é por acaso que as primeiras
grandes utopias comunistas, formuladas por eminentes
pensadores, apareçam nos séculos XVI e XVII, isto é,
numa época que assiste à progressiva decadência dos
modos de produção e de vida pré-burgueses e ao
afirmar-se das classes burguesas. E também não é por
acaso que a primeira grande utopia dos tempos
modernos — que deu nome a todas as sucessivas —
seja obra de um inglês, Thomas More (1478-1535).
Na Inglaterra, de fato, já no século XV, se verifica
205
uma profunda transformação econômico-social:
inteiras comunidades rurais são expulsas dos campos
que cultivavam há tempo imemorável, transformados
em pastagens para as ovelhas, a fim de fornecer lã
para as manufaturas têxteis. Parte destes camponeses
expulsos dos campos entram a trabalhar como
assalariados, em condições terríveis nas novas
manufaturas; parte constitui bandos de vagabundos
famintos, entregues à rapina e às pilhagens: uma
gravíssima calamidade social, que as autoridades
sociais enfrentam com energia e dureza inflexível.
É neste quadro que tem que ser analisada a Utopia
(1516) de More, a qual contém esta clara afirmação:
"Parece-me que em todo lugar em que vigora a
propriedade privada, onde o dinheiro é a medida de
todas as coisas, seja bem difícil que se consiga
concretizar um regime político baseado na justiça e na
prosperidade"... De fato, na ilha da Utopia, a
propriedade privada e o dinheiro são abolidos e todos
os bens imóveis (terras, matérias-primas, oficinas,
etc.) pertencem ao Estado. Os cidadãos são
igualmente laboriosos e felizes: cada um deles não
trabalha mais do que seis horas por dia e isto é
suficiente para satisfazer as necessidades de todos,
porque na Utopia não há ociosos que devem ser
sustentados pelos outros. Cada família é livre de
retirar do fundo comum os bens necessários; isto não
aumentará o consumo, porque na Utopia não existem
gêneros de luxo e ninguém tem interesse em acumular
bens em excedência, porque todos sabem que o
necessário não vai faltar nunca.
Além disso, More prevê para a Utopia uma
organização política e administrativa de tipo
abertamente democrático, em que todas as
magistraturas responsáveis de superintender a
aplicação das leis são eletivas, enquanto os negócios
econômicos e sociais (duração do trabalho e sua
distribuição, quantidade e qualidade de produção, etc.)
são geridos por uma assembléia eleita por todos os
utopistas. Na Utopia, porém, não é abolida a
escravidão: aos escravos — constituídos por cidadãos
responsáveis por algum crime punido com um período
de escravidão, por prisioneiros de guerra, etc. — são
destinados os trabalhos mais humildes e repugnantes.
A convicção de que, se se regula racionalmente o
trabalho e se produz, não para o lucro e o
enriquecimento dos indivíduos, mas imediatamente
para as necessidades da comunidade, esta terá bens em
abundância, volta a estar presente também na obra do
monge Tommaso Campanella (1568-1639). Na
Cidade do Sol (publicada postu-mamente em 1643), o
autor descreve uma ilha organizada em forma
comunista, onde não existem ociosos, tanto que quatro
horas de trabalho por
206
COMUNISMO
habitante são mais do que suficientes para as
exigências da comunidade, e onde a produção e a
distribuição dos bens são administrados pelas
autoridades estatais. Além disso, Campanella prevê a
abolição da família, porque ele acha que somente
assim é possível abolir também a propriedade privada.
Analogamente ao que acontece na República de
Platão, os acasalamentos entre os sexos são
planificados pelas autoridades estatais, que cuidarão
também da educação das crianças. O chefe do Estado
é eleito pelo sufrágio universal e ele, em seguida,
nomeia os próprios colaboradores ou ministros.
III. IDEAIS COMUNISTAS NA REVOLUÇÃO INGLESA. —
Na Idade Moderna, os ideais comunistas não são
propugnados somente por personalidades eminentes e
por pensadores de profissão, mas emergem também
do íntimo de grandes movimentos revolucionários
populares. É este o caso dos "verdadeiros
niveladores", que constituem a ala esquerda dos
"niveladores", isto é, do movimento radicaldemocrático surgido de 1647 a 1650 nas fileiras do
exército de Cromwell. De acordo com as palavras de
Sabine, pode-se dizer que enquanto os niveladores são
um primeiro exemplo de democracia burguesa radical
com objetivos essencialmente políticos (soberania
popular manifestada pelo sufrágio universal
masculino, parlamento, república, tolerância religiosa,
etc), os verdadeiros niveladores ou cavadores podem
ser considerados, antes, os primeiros representantes
do Comunismo "utópico", pelo fato de que
consideram todas essas formas políticas como
superficiais, porque não corrigem as desigualdades do
sistema econômico.
Enquanto
os
niveladores
são
expressão
especialmente da pequena burguesia, os cavadores
pertencem a classes e grupos reduzidos à miséria
total. Ambos partem mais ou menos das mesmas
premissas ou princípios ideais (os direitos naturais),
mas deles tiram conseqüências muito diferentes.
Os cavadores aparecem pela primeira vez em 1649,
quando um grupo deles entrou a cultivar terreno
público (de onde, exatamente, o nome de cavadores)
para distribuir seu produto aos pobres. O experimento
durou apenas um ano, porque seus promotores foram
dispersos. A doutrina do movimento pode ser
reconstruída através dos opúsculos de seu principal
expoente, Ge-rard Winstanley. Enquanto os
niveladores acham que a lei de natureza se expressa
numa série de direitos naturais, de que o direito de
propriedade é um dos mais importantes, os cavadores,
ao invés, entendem a lei da natureza como a
afirmação de um direito comum aos meios de
subsistência. Por'anto, eles propugnam a abolição da
propriedade privada — fonte de todas as injustiças e
de todos os males — e especialmente da propriedade
fundiária, sua expressão mais significativa. A terra,
dada por Deus a todos os homens em comum, deve ser
cultivada em comum, de modo que cada um possa
conseguir produtos dela de acordo com suas
necessidades.
IV. REVOLUÇÃO FRANCESA E BABUVISMO.
INFLUÊNCIA DE ROUSSEAU E MORELLY. — Os ideais
comunistas emergem também no seio da grande
Revolução Francesa e encontram no movimento
babuvista uma expressão, não somente teórica e
literária, mas também concretamente política.
A formação de François-Noêl Babeuf (1760-1797)
foi influenciada profundamente pela leitura de
Rousseau e de Morelly. É verdade que Rousseau,
diferentemente de Morelly, não tinha pregado o
Comunismo dos bens (embora no Projeto de
constituição para a Córsega tivesse previsto uma
ampla socialização de propriedade, em contraste com
a preferência, expressada nas outras suas obras, pela
pequena propriedade independente: "Longe de desejar
que o Estado seja pobre, prefiro, ao contrário, que ele
seja o dono de tudo e que os indivíduos repartam em
comum a riqueza somente em proporção com o seu
trabalho"), todavia, no Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens,
Rousseau tinha visto na instituição da propriedade
privada o ponto culminante de um fatal processo de
degeneração, que tinha afastado os homens do estado
de natureza e tinha lançado as premissas para aquele
iníquo contrato social, verdadeiro ardil arquitetado
pelos ricos, do qual surgiram as sociedades civis
modernas.
Também Morelly tinha considerado a propriedade
privada como a origem de todos os males ("tirem a
propriedade cega e o interesse cruel que a acompanha
.. . não haverá mais paixões furiosas, nem ações
ferozes, nem noções ou idéias de mal moral") e, mais
radical do que Rousseau, tinha pioclamado a sua
supressão. A sociedade perfeita se configura, então,
aos olhos de Morelly, como uma sociedade
integralmente planificada, na qual todos os cidadãos
teriam levado os próprios produtos aos armazéns
públicos, que seriam distribuídos de acordo com as
necessidades.
Análoga planificação Morelly previa para a esfera
intelectual c espiritual. A comunidade estabeleceria o
número daqueles que se dedicassem às ciências e às
artes e não se teria ensinado outra filosofia moral a
não ser aquela que constitui a base das leis. "Haverá
uma espécie de código público de todas as ciências,
ao qual, no que concerne à metafísica e à ética, nunca
será
COMUNISMO
acrescentado nada além dos limites prescritos pelas
leis: serão acrescentadas somente as descobertas
físicas, matemáticas e mecânicas confirmadas pela
experiência e pela razão".
Estas idéias se encontram no babuvista Manifeste
des plébéiens (1975), onde se proclama que, já que a
propriedade privada introduz a desigualdade e de
outro lado a "lei agrária" — isto é, a divisão da
propriedade fundiária em partes iguais —, não poderia
"durar mais que um dia" ("já imediatamente após sua
instituição voltaria a surgir a desigualdade"); fica só
uma via a percorrer: "instaurar a administração
comum; suprimir a propriedade privada; destinar cada
um de acordo com suas aptidões e a profissão que
conhece; obrigá-lo a depositar o fruto in nalura no
armazém comum e criar uma administração de
subsistência que, registrando todos os indivíduos e
todas as coisas, fará dividir estas últimas dentro da
mais escrupulosa igualdade".
Conforme frisou G. Lefebvre, o programa
babuvista é essencialmente um Comunismo distributivo, embora Babeuf advirta, às vezes, sobre a
necessidade de uma organização coletiva no trabalho
da terra. Além disso, como ressaltou Saboul, as
condições da época, a saber, o fraco grau da
concentração capitalista e a ausência de qualquer
produção de massa, fazem com que o programa
babuvista esteja baseado essencialmente nas formas
econômicas artesanais, mais do que nas industriais, e
insista mais na fraqueza e estagnação das forças
produtivas, do que na expansão e desenvolvimento
destas.
É, todavia, .evidente a grande importância do
programa de Babeuf e de seus companheiros (Antonelle, Buonarroti, Darthé, Félix Lepeletier, Syl-vain
Marechal): ele não se reduz a uma expressão
doutrinária, mas com a "Conjuração dos iguais" entra
na história política. Além disso, ele introduz na
tradição comunista duas idéias muito importantes,
destinadas a um desenvolvimento de grande
relevância: a instauração da democracia direta e o
domínio da minoria iluminada. Na concepção de
Babeuf e de Buonarroti, de fato, o corpo legislativo
deve ser submetido ao mais rigoroso controle por
parte do povo e ao seu direito de veto; na prática, o
legislativo, embora eleito pelo povo, tem somente o
direito de propor as leis, enquanto a decisão definitiva
cabe só e exclusivamente ao próprio povo. De outro
lado, segundo Babeuf e Buonarroti, a grande maioria
do povo é dissuadida do caminho do bem e da virtude,
é obcecada pelos interesses particulares e enganada
pelas astúcias dos reacionários e dos intrigantes. Daí a
tarefa insubstituível de uma minoria iluminada que
leve a revolução ao seu fim: "Esta difícil tarefa pode
caber somente a
207
alguns cidadãos sábios e corajosos, que,
profundamente imbuídos de amor pelo país e pela
humanidade, sondaram já longamente as causas dos
males públicos, se libertaram dos preconceitos e dos
vícios comuns de sua idade, e superaram a
mentalidade dos contemporâneos"... A propósito do
papel e das funções dessa minoria iluminada. Babeuf
fala de "ditadura da insurreição", querendo significar
que os revolucionários não devem hesitar em adotar
medidas políticas extremas para garantir o sucesso da
própria obra. Está aqui o primeiro germe de uma idéia
que terá tanta importância na concepção de Marx e
Engels.
V. FOURIER, OWEN, CABET E OS
SANSIMONISTAS. — As escolas socialistas e
comunistas, que floresceram no período entre o fim da
Revolução Francesa e o ano de 1848, se distinguem
claramente do programa babuvista pela diversa
maneira de conceber a passagem da velha para a nova
sociedade: uma passagem não violenta mas pacífica,
isto é, baseada essencialmente na força da convicção e
do exemplo de novas comunidades harmoniosas,
fundadas na cooperação e na fraterna união de seus
componentes.
Charles Fourier (1772-1837) teoriza os famosos
falanstérios: pequenas comunidades não mais
dilaceradas pela concorrência e pelo conflito dos
interesses; nelas, os indivíduos levam vida
comunitária e executam todo o trabalho juntos. No
interior dessas comunidades substancialmente
autárquicas (o comércio exterior deve ser reduzido ao
mínimo), os trabalhadores evitam também a
escravidão da divisão do trabalho, passando
periodicamente de uma para outra ocupação, e isto
não por imposição superior, mas por livre opção. O
trabalho perde, assim, todo o caráter construtivo e se
torna gratificante, como o jogo das crianças.
A concepção de Robert Owen (1771-1858)
apresenta algumas analogias com a de Fourier.
Também Owen, de fato, planeja as comunas, isto é,
vilas fundadas na cooperação, constituídas de
desempregados, aos quais serão dados lotes de terra
para cultivar. Tais comunas são, portanto,
fundamentalmente, agrícolas, ainda que Owen não
exclua determinadas atividades industriais. Além
disso, as comunas trocam os produtos em excedência,
e isto permitirá superar a economia de mercado.
(Owen tentou efetivamente realizar os projetos
próprios e, em 1825, fundou, nos Estados Unidos, a
colônia de New Har-mony; outras foram fundadas
pelos seus seguidores. Mas, em poucos anos, tais
experimentos faliram.)
208
COMUNISMO
Se Fourier e Owen baseiam seus projetos de
regeneração
da
sociedade
sobre
pequenas
comunidades, Etienne Cabet (1788-1856) projeta, ao
invés, uma organização em escala nacional. Além
disso, ele é rigorosamente comunista, porque a
diferença de Fourier e de Owen exclui qualquer
forma, também mínima, de propriedade pessoal. Na
sua imaginária Icária, Cabet prevê não somente a
supressão de todas as diferenças sociais mas até das
diferenças no modo de vestir. Os meios de produção
devem ser de propriedade comum da coletividade, a
qual elege os funcionários encarregados de elaborar
os planos de produção anuais. Cada cidadão dá à
coletividade uma quantidade igual de trabalho e
recebe de um armazém público o necessário para a
própria vida.
Também Cabet, enfim, não obstante a sua atitude
de fundo muito severa e rígida (ele considera a
imprensa como suspeita e não admite os partidos
políticos), tem, como Fourier e Owen, uma concepção
essencialmente evolucionista: a nova sociedade deve
ser realizada, não através da revolução, mas através da
educação, da convicção e do exemplo.
No que diz respeito a estes autores, a escola
sansimonista realiza um passo à frente essencial:
conjuga estritamente os ideais socialistas e
comunistas com a organização industrial do mundo
moderno. Falamos de "escola sansimonista", porque
na obra de Saint-Simon não existem traços de
antagonismos entre operários e empresários, tanto que
ele os indica indiferentemente com uma só palavra:
les industrieis. Cabe a alguns seguidores de SaintSimon (especialmente a Bazard e Leroux) a tarefa de
retomar algumas das formulações fundamentais do
mestre, colocando-as, porém, dentro de um esquema
sócio-político claramente classista. Acentua-se, dessa
forma, o contraste entre a propriedade privada c o
funcionamento perfeito do sistema industrial: porque,
enquanto a grande indústria está em condições de
produzir uma quantidade enorme de riquezas, a
organização social fundada sobre a propriedade
privada dos meios de produção faz com que as
vantagens da indústria venham sendo usufruídas
somente por poucos. Daí a firme condenação, por
parte dos mais radicais dos sansimonistas, da
"exploração do homem pelo homem" (uma
formulação que será retomada, ipsis literis, por Marx
e Engels). Afirma Bazard: "Se o gênero humano está
se movendo para uma condição em que todos os
indivíduos serão avaliados segundo suas capacidades
e remunerados segundo seu trabalho, é evidente que o
direito de propriedade, como é atualmente, deve ser
abolido, porque, dando a uma certa classe de
indivíduos a possibilidade
de viver do trabalho dos outros e em completa
passividade, isto perpetua a exploração da parte mais
útil da população, aquela que trabalha e produz, em
favor daqueles que somente consomem". Trata-se,
portanto, de transferir ao Estado, transformando em
associação de trabalhadores, aquele direito de herança
que constitui o fundamento da propriedade privada,
de modo que terra e capital se tornem
verdadeiramente instrumentos de trabalho e dos
produtores.
VI. O COMUNISMO MARXISTA. — Também a
concepção comunista de Marx (1818-1883) e de
Engels (1820-1895) é estritamente conexa e tem como
fundamento essencial a organização industrial do
mundo moderno. De fato, uma das características
básicas da concepção marxista é que ela não faz
nenhuma condenação moralista da burguesia, antes,
pelo contrário, celebra e exalta em tons ditirâmbicos
sua função histórica. Isto é bem evidente no Manifesto
do partido comunista (1848), onde se afirma que há
uma diferença fundamental entre a burguesia e as
classes pré-burguesas que dominaram nos séculos
passados: enquanto a condição de existência das
classes pré-burguesas era a imutável conservação do
antigo modo de produção, a burguesia, ao invés, não
pode existir sem revolucionar continuamente os
instrumentos de produção; e por conseqüência as
relações de produção e, também, todo o conjunto de
relações sociais. Esta ação incessante dissolve, quer as
estáveis e enferrujadas condições de vida, quer as
opiniões e idéias tradicionais, enquanto as novas
envelhecem antes de terem conseguido formar os
ossos.
Além disso, a burguesia mostrou, pela primeira
vez, de que é capaz a atividade humana; criou
maravilhas superiores às das pirâmides do Egito, dos
aquedutos romanos e das catedrais góticas; realizou
expedições maiores do que as migrações dos povos e
as Cruzadas. Ela modificou a face da Terra numa
medida que não tem precedentes na história humana.
Realizou pela primeira vez uma verdadeira unificação
do gênero humano e criou um mundo à própria
imagem e semelhança. A necessidade de mercados
cada vez mais amplos para os seus produtos a levou
para todo o globo terrestre.
Aperfeiçoando rapidamente todos os instrumentos
da produção, tornando infinitamente mais rápidas as
comunicações, impeliu para a civilização também as
nações mais bárbaras. Os módicos preços de suas
mercadorias foram a artilharia pesada com que ela
derrubou todas as muralhas chinesas.
Com a criação do mercado mundial, a burguesia
tornou cosmopolitas a produção e o consumo
COMUNISMO
de todos os países; aniquilou as antigas indústrias
nacionais e as suplantou com novas indústrias, que
não transformam mais matérias-primas indígenas, mas
matérias-primas provenientes das regiões mais
remotas, e cujos produtos não se consomem mais
somente num país mas em todos os países do mundo.
Cessa, dessa forma, qualquer isolamento local e
nacional e é substituído por um comércio universal, e
por uma dependência universal das nações umas às
outras.
Mas a burguesia, que suscitou como que por
encanto tão potentes meios de produção e de
intercâmbio, assemelha-se ao feiticeiro, que não
consegue mais dominar as potências subterrâneas por
ele evocadas. As modernas forças produtivas se
revoltam contra as modernas relações de produção,
aquelas relações de propriedade que são as condições
de existência da burguesia e de seu domínio e que
condenam a grande maioria da população a uma
extrema indigência e a uma progressiva exclusão dos
benefícios da enorme riqueza material produzida. Este
contraste se manifesta nas crises comerciais, que em
seus ciclos periódicos colocam em perigo, de forma
cada vez mais ameaçadora, a existência de toda a
sociedade burguesa. Nas crises explode uma epidemia
social, que em qualquer outra época teria parecido um
contra-senso: é a epidemia da superprodução. As
forças produtivas se tornaram potentes demais e as
relações burguesas demasiado estreitas para consumir
as riquezas produzidas.
A burguesia supera as crises, de um lado,
destruindo à força uma grande quantidade de forças
produtivas e, por outro lado, conquistando novos
mercados e explorando mais intensamente os
mercados já existentes.
Desta maneira, porém, ela prepara crises mais
extensas e mais violentas c reduz os meios para
prevenir as crises futuras. As armas com que ela
derrubou o feudalismo agora estão voltadas contra ela
e a levam inexoravelmente para a decadência e a
morte.
Esta é, em grandes linhas, a parábola traçada no
Manifesto, a propósito da evolução histórica da
burguesia. A sentença, que c pronunciada contra esta
classe, de fato não tem nada de moralista, não está
absolutamente baseada sobre uma opção de tipo ético,
sobre um "ter que ser", mas é vista como o resultado
inevitável de um processo objetivo, material-social,
em tudo e por tudo semelhante a um processo de
história natural.
A análise marxista da evolução burguesa ficaria,
porém, muito incompleta se não se tivesse presente o
esquema dicotômico (isto é, baseado somente em
duas classes sociais), que constitui
209
um de seus elementos mais essenciais. Segundo
Marx, o capitalismo, na sua ascensão, aniquila
progressivamente as classes intermediárias e as
proletariza: o número dos operários está, assim,
destinado a aumentar constantemente e, no estádio
mais alto do desenvolvimento capitalista, se
defrontam somente duas classes: burguesia e
proletariado.
É este um ponto nevrálgico da teoria marxista: se
de fato, como Marx dá por demonstrado, a classe
burguesa se distingue de todas as precedentes classes
dominantes, porque não está em condições de
assegurar aos seus escravos nem a existência dentro
dos limites da escravidão, já que é obrigada a deixálos cair em condições tais de modo a ter de alimentálos em vez de ser por eles alimentada; e se é
igualmente verdade que a classe operária é destinada
a se tornar, por causa da proletarização das classes
intermediárias, a grande maioria da população, então
a desapropriação dos desapropriadores será um fato
absolutamente necessário e inevitável. "Todos os
movimentos que se verificaram até agora — lê-se no
Manifesto — foram movimentos de minoria — ou no
interesse de minorias. O movimento proletário é o
movimento independente da enorme maioria no
interesse da enorme maioria".
Este caráter largamente majoritário do movimento
proletário assegura, segundo Marx, que a revolução
socialista e a fase da "ditadura do proletariado", que a
ela se seguirá, embora caracterizadas por medidas
violentas e coercitivas (em primeiro lugar da
destruição da máquina estatal burguesa, instrumento
da ditadura da burguesia: v. MARXISMO), serão
sustentadas pela grande maioria da população; c que
as próprias medidas coercitivas terão uma área de
aplicação, restrita em termos gerais, c serão, portanto,
temporárias. Por isto, Marx foi sempre um crítico
firme e resoluto das concepções jacobino-blanquistas:
para ele a revolução proletária pode realizar uma
transformação comunista da sociedade somente
quando a evolução capitalista tiver atingido seu cume;
qualquer tentativa de apressar arbitrariamente os
tempos da revolução levaria somente ao insucesso ou
à
adoção
de
medidas
terroristas,
que
descaracterizariam a própria revolução.
Mas o desenvolvimento capitalista plenamente
generalizado constitui o pressuposto essencial da
concepção marxista também sob outro aspecto:
segundo Marx, de fato, somente a grande indústria
realiza aquele enorme aumento de riqueza social que
pode tornar possível a aplicação da regra — de cada
um segundo suas capacidades e a cada um segundo as
necessidades.
210
CONCILIARISMO
É preciso ter presente, a este propósito, que Marx
considera uma característica negativa da literatura
socialista e comunista que o antecedeu o fato de que
ela propugna "um ascetismo universal e uma
rudimentar tendência a igualar tudo". Este tema, já
desenvolvido nos Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, percorre todas as obras de Marx até a Crítica
do programa de Gotha: o direito igualitário burguês é
abstratamente nivelador, porque aplica a todos os
homens uma medida igual, sem ter em conta suas
diferenças físicas, familiares, intelectuais, etc. Na
sociedade comunista, o augusto direito burguês será
superado e cada um dará segundo as próprias
capacidades e receberá segundo suas necessidades.
Para atingir este objetivo é, porém, necessário que as
forças produtivas atinjam o máximo desenvolvimento
e as fontes da riqueza social produzam com toda sua
plenitude.
VII. KAUTSKY E A POLÊMICA COM OS BOLCHEVIQUES. — A crítica lançada por Kautsky contra Lenin
e os bolcheviques que "forçaram" o processo
histórico, apressando arbitrariamente suas etapas e
encaminhando o processo revolucionário num país
atrasado, é, portanto, uma crítica fiel à inspiração mais
profunda do marxismo. Segundo Kautsky, quanto
mais capitalista é um Estado e quanto mais
democrático, tanto mais ele se encontra próximo ao
socialismo: quer porque uma indústria capitalista
altamente desenvolvida significa alta produtividade,
trabalho socializado, proletariado numeroso, quer
porque quanto mais um Estado é democrático, tanto
melhor organizado e treinado é o seu proletariado.
Os bolcheviques, ao contrário, têm segundo
Kautsky uma concepção essencialmente jacobinoblanquista da ditadura do proletariado, concepção que
se manifesta no fato de que eles baseiam seu projeto
revolucionário,
não
sobre
um
adequado
desenvolvimento econômico-industrial e político, mas
sobre um voluntarismo abstrato. O domínio dos
bolcheviques se configura, assim, necessariamente,
como uma ditadura de minoria, e seu êxito será
inevitavelmente um regime fundado nos meios de
controle democráticos e policiais.
Para Kautsky, ao contrário, a ditadura proletária
deve ser o poder do proletariado conseguido através
da conquista da maioria parlamentar: essa maioria não
deve suprimir nem limitar as liberdades civis e
políticas, deve verificar periodicamente as bases do
próprio consenso através de livres eleições e pode
recorrer a meios coercitivos só e exclusivamente
contra aqueles movimentos e grupos minoritários que
eventualmente se oponham com a violência ao
Governo legal
da maioria socialista. Desta forma, Kautsky retorna e
aprofunda a inspiração antijacobina e antiblanquista
(v. BLANQUISMO) do pensamento de Marx, embora o
inove num ponto essencial: enquanto Marx sempre
achou necessária a superação da democracia
representativa ou delegada, e a sua substituição por
uma democracia direta, Kautsky acha, por sua vez,
que a democracia representativa seja um instrumento
fundamental a ser fortalecido, mas não substituído por
elementos de democracia direta ou participativa.
Asperamente combatida por Lenin c pelos
bolcheviques, como, também, pelos partidos baseados
no leninismo, a concepção do "renegado" Kautsky
conseguirá uma revanche histórica vários decênios
mais tarde, quando alguns partidos comunistas da
Europa ocidental se afastarão do leninismo e da URSS
e indicarão, no rigoroso respeito às liberdades civis e
políticas, no livre confronto parlamentar e nas regras
de uma sociedade pluralista, o quadro essencial e
insubstituível interno de onde encaminhar e concluir
um processo de transformação socialista e comunista
da sociedade.
Mas, para a evolução do movimento comunista a
partir da revolução russa e da Terceira Internacional
até os nossos dias, vejam-se os verbetes: LENINISMO,
ESTALINISMO,
TROTSKISMO,
MAOÍS-MO,
EUROCOMUNISMO.
BIBLIOGRAFIA. - Il socialismo prima di Marx. por
G. M. BRAVO. Editon Riuniti. Roma 1970: G. D. H.
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precursori. 1789-1850 (1955). Laterza. Bari 1967:
Puritanesimoeliberta. Dibattiti e libetti. por V.
GARRIILI. Einaudi. Torino 1956: K-KORSCH. Karl
Marx (1938). Laterza. Bari 1969; G. LICHTHEIM. Le
origini del socialismo (1969). Il Mulino. Bologna
1970; Id., Il Marxismo (1969). Il Mulino. Bologna
1971. R. MONDOLFO, Comunismo, in "Enciclopédia
Italiana", Istituto Enciclopédia Italiana. Roma 1929.
vol. XI; M. L. SALVADOR, Kattsky e la rivoluzione
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SITTIMBRINI. Due ipotesi per il socialismo in Marx ed
Engels. Laterza, Bari 1973; J. L. TALMON. Polítical
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1960; Id. The originis of totalitarian democran (1952)
Il Mulino. Bologna 1967; E. TROILTSCH. Die
Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen
(1912). La Nuova Itália. Firenze 1941-1969.
[GIUSIEPPE BEDESCHI]
Conciliarismo.
I. DEFINIÇÃO. — Na sua acepção mais restrita, o
Conciliarismo pode ser definido como
CONCILIARISMO
uma doutrina eclesiológica que, no Ocidente, afirma a
superioridade do concilio geral sobre o papa. Mas a
medida dessa superioridade, os casos em que se aplica
e os títulos em que se baseia a superioridade do
concilio foram entendidos de formas diferentes. Se,
por uma parte, a doutrina conciliar chegou ao seu
apogeu «ntre 1378 e 1512, ou, "se se prefere" (Black,
What was conciliarism?, p. 213), entre a metade do
século XII e a Reforma, por outra parte, é certo que as
relações entre os concílios e os Papas foram
entendidas de maneira muito diversa a partir dos
tempos da África de São Cipriano até a época
contemporânea. Consideraremos, aqui, somente c
Conciliarismo em sentido estrito, aquele que surgiu
durante a "crise conciliar" dos séculos XIV-XV.
II. PREMISSAS. — Três são as premissas que é
preciso pôr em evidência: a complexidade das
relações Papa-concílio; a jurisdição sobre o Papa
herege; as doutrinas de Marsílio de Pádua e de
Guilherme de Ockham sobre a Constituição da Igreja.
a) Relações Papa-concílio. — No decorrer do
primeiro milênio, os concílios, e os próprios concílios
gerais, não se apresentam como órgãos do Governo
pontifício; nem as decisões conciliares procuraram
sempre obter o aval da autoridade romana. Em 991, o
concilio de São Basílio afirmava a superioridade dos
cânones conciliares sobre os decretais e o eco desta
tese se encontra, no final do século XI, em Ivo de
Chartres. Por outro lado, ao papado faltava
freqüentemente a autoridade necessária para impor as
próprias opções, e as relações entre Roma e as igrejas
locais eram muito difíceis para permitir um estreito
controle pontifício sobre os concílios.
Uma nova atitude se manifesta quando se
proclamou a solene afirmação da autoridade romana:
os Dictalus papae, que expressam a doutrina de
Gregório VII (1073-1086), ou de seus mais íntimos
colaboradores, declaram que "somente o Papa pode
convocar concílios gerais e nenhum sínodo pode ser
considerado válido sem o consentimento pontifício".
Roma se aterá sempre a esta doutrina. Os progressos
da monarquia pontifícia, sempre mais acentuados
desde o fim do século XI até o papado de Avinhão
(1305-1378), não podiam evitar de suscitar protestos e
críticas. Entre estes há exatamente o Conciliarismo.
b) A jurisdição sobre o Papa herege. — Esta
questão, que poderia parecer uma hipótese escolástica,
fornece um novo argumento para os que sustentam a
superioridade conciliar. Quem, de fato, se não o
concilio geral, poderia pronunciar-se sobre a heresia
do Papa e tirar as conclusões jurídicas? O Papa
Gelásio, em 495, afirmara que o Papa não podia ser
julgado por ninguém e esta doutrina reaparece nas
Diciatus papae. Mas um texto atribuído a São
Bonifácio, reproduzido em 1140 pelo-Decreto de
211
Graciano, introduz uma ressalva: "exceto o caso de
heresia" (Dist. XL, C. 6). Esta doutrina é aprovada por
Inocêncio 111 (1198-1216) e desenvolvida pelos
canonistas do século XIII. É nesta base que os
Colonna, em 1297, apelam para o concilio contra
Bonifácio VIII, acusando-o de heresia; e o assunto é
retomado, em 1303, por Guilherme de Nogaret, em
relação ao conflito entre Filipe, o Belo e Bonifácio
VIII. Por sua vez, Ludovico, o Bávaro, utilizando-se
das formulações de Filipe, o Belo, apela, em 1324,
para o concilio contra loão XXII.
c) A nova filosofia política: Marsílio de Pádua
11275/1280-1343) e Guilherme de Ockham
(1295/1300-1349/1350). — Ambos, sob o signo da
filosofia política de Aristóteles, o professor da Faculte
des Arts de Paris e o franciscano de Oxford, propõem
doutrinas eclesiológicas que, diferentes sob vários
aspectos, têm em comum a característica de pôr em
discussão a autoridade pontifícia, (á Guilherme
Durand, o Jovem, num escrito elaborado para o
concilio de Viena de 1311 (o De modo generalis
concilii celebrandi), propunha uma limitação do poder
do pontífice e um fortalecimento das funções do
concilio. E no concilio geral, que se deve reunir pelo
menos cada dez anos, que o Papa exerce o poder
legislativo. Marsílio expressa no Defensor Pacis
(1324) a concepção segundo a qual na Igreja, como no
âmbito civil, a autoridade pertence ao povo. Na Igreja,
os fiéis delegam essa autoridade ao concilio geral.
Ockham, diversamente de Marsílio, não nega a
origem divina do Primado romano. A doutrina por ele
anunciada no seu Dialogus (ca. 1343) é mais sutil,
mais vaga, talvez difícil de ser identificada. Sem
proclamar a superioridade do concilio, pretende
libertar-se da autoridade pontifícia. Segundo a
doutrina tradicional, ela atribui ao concilio o direito de
julgar o Papa herege, mas reconhece o mesmo poder
para o colégio dos cardeais, ou também para o bispo
do eventual lugar onde reside um Papa herege. E se,
de um lado, contesta a infalibilidade pontifícia, do
outro lado, não é por isto que é mais segura a do
concilio ou de qualquer outro órgão eclesial. Ockham,
como Marsílio, considera a Igreja muito mais como
uma congregatio fidelium do que como uma
sociedade hierárquica, da qual o Papa é o chefe
supremo. Não tendo condições de exercer
pessoalmente seu poder, os fiéis o delegam ao
concilio.
212
CONCILIARISMO
Dessa forma, para sustentar o movimento conciliar,
se aliavam as reservas a respeito de um papado
sempre mais poderoso, a doutrina canô-nica que
confiava ao concilio a jurisdição sobre o Papa herege
z as novas concepções da sociedade eclesial. É preciso
acrescentar que as exigências financeiras do papado
avinhonês, o modo com que dispunha livremente, em
favor de seus familiares, dos benefícios eclesiásticos,
que eram o verdadeiro patrimônio das igrejas locais, o
apelo que desde o fim do século XIII continuamente
se repetia em favor de uma "reforma da Igreja na
cabeça e nos membros" induziam muitos espíritos a
ver no concilio o único órgão capaz de recompor a
ordem na Igreja.
III. O CISMA NA IGREJA. O.S REMÉDIOS
NECESSÁRIOS. — Em 1378, as duas eleições de
Urbano VI e de Clemente VII dividem a cristandade. O
cisma está na Igreja e na sua cabeça. Como acabar com
isso? Esse dramático incidente permitirá ao
Conciliarismo manifestar-se em toda a sua extensão.
As idéias sugeridas por |oão de Paris, Guilherme
Durand, Marsílio e Ockham. sobre o lugar do concilio
na Igreja, como também as doutrinas canónicas
relativas ao julgamento sobre o Papa herege, oferecem,
de fato, uma possibilidade para terminar com o cisma
bicípite e, logo, tricípite. Cabe ao concilio arbitrar e
restabelecer a paz e a unidade. Esta é a tese, sustentada
pelas quatro Faculdades da Universidade de Paris, aos
20 de maio de 1380, que é expressada por um de seus
mestres, Conrado de Gelnhauscn, numa carta a Carlos
VI (Epístola concordiae, maio, 1380). Pode-se
considerar esta carta como o primeiro grande
manifesto do Conciliarismo. Enquanto os canonistas
clássicos, seguindo Uguccione {Summa. ad. D. 93 c.
24). teorizavam que "a Igreja da cidade de Roma e a
Igreja do mundo inteiro são uma coisa só". Conrado
distingue a Igreja universal (congregaiia lidelium) e a
Igreja romana, constituída pelo Papa e pelo colégio dos
cardeais. Não é porsível atribuir a infalibilidade a este
colégio, porque isto eqüivaleria a colocá-lo mais alto
do que os Apóstolos, cuja fé falhou no momento da
Paixão. Ao contrário, a Igreja universal, da qual Cristo
é o cabeça, não pode errar.
Seguindo as análises de Ockham. Conrado afirma
que a esta pertence o poder e que ela é representada
pelo concilio geral. Se o Papa e o colégio dos cardeais
incorrerem em erro. é preciso recorrer ao concilio
geral. No ano seguinte, um outro teólogo parisiense.
Henrique de Lan-genstein. numa Epístola concilii
pacis destinada a ter gnmde divulgação, apoia
vivamente o apelo ao concilio. Ele pode ser
convocado pelo
Imperador sem a intervenção do Papa em quatro
casos: heresia do Papa, a morte de todos os cardeais
após a do Papa, erro na fé por parte do Papa e do
colégio dos cardeais, a privação de liberdade dos
cardeais devida à má vontade ou à tirania daqueles
que rejeitam eleger o Papa. A recepção que tiveram
estas teses, porém, é moderada; de fato, no concilio de
Pisa (1409), o Conciliarismo ficou numa posição
minoritária.
IV. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA. — A partir do fim do
século XIV e nos primeiros decênios do século XV, os
sustentadores da superioridade do concilio se tornaram
mais numerosos e mais insistentes. Em 1398, em seu
comentário das Decretais, o jurista perugino Baldo
degli Ubaldi não vê outra solução para o cisma do que
o concilio geral. A argumentação é desenvolvida dez
anos depois pelo seu discípulo Francesco Zabarella,
bispo df Florença. O seu Tractatus de schismate per
imperatorem tollendo (1408) afirma a plenitude do
poder do concilio, porque este representa a Igreja
considerada como a comunidade dos fiéis. É nessa
comunidade que reside o poder. A autoridade do Papa
não é justificada senão quando ele administra bem.
Cabe à comunidade manifestar seu julgamento sobre
tal condição. Quanto à superioridade do concilio geral
sobre o Papa, Zabarella a admite em dois casos: em
questões de fé e em tudo o que diz respeito ao
"estatuto da Igreja universal". Se o Papa e os cardeais
não podem ou não querem convocar o concilio, cabe
ao Imperador convocá-lo, enquanto representante do
povo cristão, já que "a ele foi conferido o poder sobre
o mundo inteiro". Na França. Pedro d"Ailly — que
será chanceler da Universidade, esmoler de Carlos VI
e, em 1412, cardeal —. desde os anos 80 do século
XIV, é fautor do Conciliarismo. Por ocasião do
concilio de Pisa, um outro universitário parisiense,
loão Gerson, no De unitate ecclesiastica (1409),
reconhece, para a Igreja universal reunida em concilio,
o direito de depor o Papa. Mas o concilio de Pisa se
refere simplesmente à velha teoria canônica do
julgamento por parte do concilio sobre o Papa herege,
quando depôs a 5 de maio de 1409 os dois papas rivais
como "cismá-ticos e hereges notórios". No dia 26 de
junho, os cardeais elegem Alexandre V. Mas, já que os
dois papas depostos tinham ainda muitos
sustentadores. o cisma se torna tricípite.
V. O CONCILIARISMO NO CONCÍLIO DE
CONSTANÇA (1414-1418). — Exigido pelo
imperador germânico Sigismundo a fim de resolver o
cisma, mas convocados por (oão XXIII, que sucedeu
a Alexandre V em 1410, o concilio de Constança
CONCILIARISMO
faz o Conciliarismo passar do debate doutrinai para a
aplicação jurídica. Os teólogos franceses que tinham
desenvolvido a doutrina conciliar, Pedro d'Ailly, João
Gerson, Guilherme Fillastre, desempenharam nesse
concilio um papel preponderante, freqüentemente em
função moderadora. Não é este o lugar para reevocar
os debates sobre a solução do cisma, a condenação de
Wicliff e de Huss, as providências visando à reforma
da Igreja, mas será suficiente lembrar as sessões quarta
e quinta (30 de março e 6 de abril de 1415).
Os_decretos promulgados nessas sessões declaram que
o concilio geral, já que representa a Igreja militante,
detém o seu poder diretamente de Cristo. É
proclamada a superioridade do concilio sobre o Papa
também no que concerne à fé e à "reforma da Igreja na
sua cabeça e em seus membros" (decreto Haec saneia
synodus). A sessão trigésima nona (9 de outubro de
1417), mediante o cânon Frequens, prevê a reunião de
um concilio geral cada dez anos; a sessão quadragésima terceira (21 de março de 1418), sobre "a
reforma da Igreja na sua cabeça e em seus membros",
instaura um controle dos impostos pontifícios. Durante
o concilio, em 1417, Pedro d'Ailly compõe o seu
Tractatus de ecclesiae, condiu generalis, romani
pontificis et cardinalium auetoritate, em que limita a
monarquia pontifícia através da aristocracia do colégio
dos cardeais e da base mais ampla (freqüentemente,
mas impropriamente chamada democrática) do
concilio geral, que representa a comunidade dos fiéis.
Também em Constança, -Gerson redige a sua obra
principal, o De poteslale ecclesiastica et origine júris
(1417), em que propõe, como regime melhor para a
Igreja, uma política mista de três componentes: a
realeza de Moisés, a aristocracia dos setenta e dois
anciãos e a participação do povo. Quanto ao concilio,
pode reunir-se em caso de morte (natural ou jurídica)
do Papa ou de injustificada recusa de convocá-lo.
VI. Novos ESCRITOS CONCILIARES. — Se é verdade
que o Concilio de Constança corresponde, pelos
decretos que produziu no apogeu do Conciliarismo,
este último continua a ser ativo também depois de
1415. Sem dúvida, desaparece uma das razões do
apelo ao concilio. O cisma tricípite, de fato, acaba com
a destituição, por parte do Concilio de Constança, de
(oão XXIII (29 de maio de 1417), com a abdicação de
Gregório XII, e deposição de Benedito XIII (26 de
julho), e a eleição (11 de novembro de 1417) de
Martinho V, que reconstitui a unidade da Igreja.
A superioridade conciliar tinha sido proclamada
com violência por volta do ano de 1410 por Dietrich
von Niem, no seu De modo uniendi
213
ac re/ormandi ecclesiam in concilio universali.
Discípulo de Marsílio, Dietrich recusa ao Papa o
direito de convocar e de presidir ao concilio ou de
definir nele algo a respeito do estado em que se
encontra a Igreja. "O concilio pode limitar o poder do
Papa, porque representa a Igreja universal. Pode eleger
o Papa e pode depô-lo."
Esta concepção democrática do poder, transferida
da doutrina aristotélica do Estado para a constituição
da Igreja, se encontra, com menor vigor, no De
concórdia catholica libri três de Nicolau de Cusa
(1433).
Um pouco mais tarde, o último grande cano-nista
da Idade Média, Nicolau de Tudeschis, chamado o
Panormita, sem invocar a origem divina do poder
pontifício, declara que "a Igreja universal recebeu,
também ela, o poder de Deus, e é um poder maior,
porque todo poder eclesiástico está na Igreja tanquam
in fundamento", e Pedro não a recebeu senão como "o
principal ministro". O concilio, que representa a
Igreja, dela deriva seu poder.
VII. O CONCILIARISMO NO CONCILIO DE
BASILÉIA (1431-1437). — As tumultuosas reuniões
do concilio de Basiléia, que acabaram por desacreditar
a assembléia, lembram com que veemência o
Conciliarismo ainda é apoiado. Eugênio IV se opôs a
ele através de uma luta tão difícil que, às vezes, o
obrigou a pactuar. Em 1437 foi violentamente atacado
pelo Panormita e o concilio o depôs em junho de
1439. André Escobar (Guber-naculum conciliorum,
1435) e João Alfonso de Segovia (Gesta concilii
Basiliensis) se conservam fiéis às teses de Marsílio e
Ockham, enquanto outros "conciliaristas", desiludidos
pelo concilio — assim o cardeal legado luliano
Cesarini, Enéias Silvio (o futuro Pio II), Antônio de
Rosellis —, aderiam à monarquia pontifícia. Nicolau
de Cusa, apesar das teses de seu De concórdia, teria
também se aproximado de Eugênio IV.
VIII. EPÍLOGO. — O Concilio de Ferrara —
Florença (1438-1442), condenando as doutrinas de
Basiléia, rompe as relações com o Conciliarismo. A
bula Etsi non dubitemus (20 de abril de 1441) condena
a tese conciliar. Para Eugênio IV, a autoridade do
concilio decorre do Papa. Uma nova geração de
canonistas e de teólogos, em grande parte italianos e
espanhóis, se torna sustentadora da monarquia
pontifícia. Através da bula Execrabilis, Pio Il proíbe
os apelos ao concilio (janeiro, 1460). Sixto IV anula
os decretos de Constança. No concilio de Latrão, de
1512, as teses de Caetano em favor de uma monarquia
pontifícia onipotente conseguem a maior aceitação.
Após ter sido afirmada no Título I da
214
CONCILIARISMO
"Pragmática Sanção de Bourges", a doutrina conciliar
não aparece mais na Concordata de 1516. Estas
confutações e condenações não farão, todavia,
desaparecer completamente a doutrina conciliar. De
fato, não somente a velha doutrina ca-nônica, que
reconhece ao concilio geral a capacidade de julgar e
de depor o Papa herege ou cismático, será retomada
por grandes teólogos, tais como Torquemada,
Caetano, Suarez e Belar-mino, como também os
reformadores do século XVI apelarão para a própria
arma do concilio. Todavia, após o concilio de
Basiléia, a doutrina da superioridade do concilio é, em
grande parte, abandonada. Na França, porém, o
galicanismo a relaciona entre suas "liberdades". O
segundo dos Quatro Artigos de 1682, redigidos por
Bossuet, afirma ainda o valor dos decretos das sessões
quarta e quinta de Constança. As várias interpretações
do Conciliarismo, propostos pelos católicos, pelos
protestantes, pelos teóricos do parlamentarismo,
interpretações que forçam, às vezes, o sentido e a
importância dos textos concebidos para uma
sociedade diferente, atestam todavia a importância da
doutrina.
IX. INTERPRETAÇÕES. — Um pouco esquecida até
algum tempo atrás, a história conciliar e a reflexão
sobre o lugar que os concílios tiveram na vida da
Igreja foram estimuladas pelo acontecimento que foi o
Concilio Vaticano Segundo. O interesse que se quis
dedicar às doutrinas medievais do poder (na Igreja ou
na sociedade civil, cujas relações são muito íntimas na
Idade Média) chamou a atenção, por sua parte, sobre
os escritos dos séculos XIV e XV, que debateram as
relações entre o Papa-e o Concilio. Daí, a abundância
da recente literatura sobre o Conciliarismo. Para além
das minuciosas análises das teorias antigas, nelas se
podem revelar opções mais recentes. Daí as diferenças
das posições entre um autor e outro. Alguns avistaram
no Conciliarismo um movimento doutrinai que
prenuncia a eclesiolo-gia reformada; daí o interesse
pelo Conciliarismo manifestado por alguns
historiadores protestantes. Em contrapartida, o fato de
que os teóricos conciliares colocaram em dúvida o
poder absoluto e a infalibilidade, que serão
proclamadas solenemente pelo Concilio Vaticano
Primeiro e por numerosas declarações do magistério
eclesiástico no século XIX e no início do século XX,
não podia deixar de suscitar as críticas e a
desconfiança de muitos historiadores católicos, que
focalizam a ineficácia prática e o fracasso definitivo
do Conciliarismo. Sobre este aspecto é sintomático o
fato de que, nem o Dictionnaire de théologie
catholique, nem o Dictionnaire de droit canonique
inseriram o verbete "Conciliarismo". E, no Lexikon \ür
Théologie und Kirche, o verbete "Konziliarismus" (H.
Jedin). embora rico em referências, é muito breve para
poder tentar a análise das doutrinas.
Também os politólogos e os constitucionalistas
foram atraídos por aquelas doutrinas, nas quais
pretenderam encontrar as primeiras referências à
teoria da representação, do parlamentarismo, da
procura de antídotos contra o absolutismo
monárquico.
O risco de tentativas semelhantes é evidente. Não é
possível interpretar o pensamento medieval com base
nas nossas concepções e nas nossas estruturas
institucionais modernas, como também seria
imprudente querer utilizar suas fórmulas para
solucionar os problemas de nossa época. Por outro
lado, é evidente que as sociedades políticas seculares
são substancialmente diferentes das sociedades
religiosas, É possível encontrar entre elas elementos
de confronto ou de analogia, mas é muito arriscado
falar de elementos mutuados ou de casos de
identidade.
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infallibilitate concilii generalis" (Ockham-exzerpte)
des Pariser Theologen Jean Courtecuisse (+ 1423),
Schoening, Paderborn 1975, t. II..
215
aparece no alvorecer do século XII, com a Concordata
de Worms, que assinala a vitória definitiva do Papa
sobre o Império na luta das investiduras. Tornou-se,
depois, no século XV, um meio freqüente, se não o
meio usual de conciliação, nas contendas entre a
Igreja e o Estado. Mas este instituto finca suas raízes e
se desenvolve em época antiqüíssima, provindo de
condições histó-rico-políticas certamente assaz
diferentes daquelas que hoje conhecemos como
causas das Concordatas atuais.
A partir dos séculos XII e XIII, começa a ser
superado o princípio da recíproca independência entre
o papado e o Império, cuja formulação remonta ao
Papa Gelásio I (fim do século V d.C.). Assiste-se
então ao conseqüente e claro choque, quer no plano
efetivo das demonstrações de força, quer no plano
teórico, entre o poder espiritual e o poder temporal. As
doutrinas jurídicas da época são sintomáticas. Por um
lado está a tradição anticurial que, iniciada pelos
glosadores com a teoria da igualdade dos dois poderes
e da existência de duas jurisdições distintas, chegará,
no século XIV, se não diretamente à doutrina da
subordinação da Igreja ao Estado (Marsílio de Pádua),
pelo menos ao conceito da origem divina direta do
poder imperial e, conseqüentemente, da independência
do Império em relação ao papado (Cino de Pistoia,
Dante). Por outro lado, no âmbito curial, vemos
sempre confirmada a teoria da supremacia papal, se
bem que com intensidade diversa no. decorrer dos
tempos: assim, à fórmula canônica da potestas
Ecclesiae directa in temporalibus — teoria da
dependência absoluta dos Estados em relação a uma
Igreja, que se limitava a delegar em outra instituição o
exercício do poder temporal — se chegou numa época
cm que a Santa Sé experimentou talvez um domínio
[JEAN GAUDEMET] tão incohtestado como nunca (pontificado de
Bonifácio VIII, século XIV); à chamada polestas
Concordata Eclesiástica.
Ecclesiae indirecta in temporalibus — teoria que. em
substância, condicionaria a autonomia da potestas
I. DEFINIÇÃO. ESBOÇO HISTÓRICO: A CONCORDATA NA política, separada da potestas ecclesiastica, à
ÉPOCA ANTIGA. — Concordata é o termo com que
consecução de objetivos não opostos aos da Igreja —
habitualmente se define, em linguagem técnico- se chega, pelo contrário, já apagados há tempo os
jurídica, a convenção bilateral entre a Santa Sé e os últimos resultados do Cisma do Ocidente, quando o
Estados, com vistas à regulamentação das atividades papado procurava alianças favoráveis que lhe
eclesiásticas neles realizadas e à solução dos conflitos permitissem deter as conseqüências da Reforma
eventualmente surgidos entre o poder eclesiástico e o (século XVI).
poder civil.
Ora, perante esta problemática histórica, legis-tas e
Mas tal definição, se não é já lacunar em relação ao
canonistas encaram o estudo do instituto
complexo e heterogêneo das Concordatas atuais,
concordatário segundo perspectivas particulares, às
resulta certamente inadequada, quando nela queremos
vezes contrastantes. É, porém, interessante observar a
abranger o instituto concorda-tário em toda a sua
este propósito que, enquanto toda a doutrina canônica
dimensão histórica. Prescindamos dos pacta
conceitua a Concordata como ato pontifício de caráter
carolingica — segunda metade do século VIII d.C. —
privilegiado, sem julgar possível uma vontade
, atos pelos quais, não obstante a permuta formal de
hierarquicamente superior
concessões pontifícias por dádivas recebidas pelas
Santa Sé, não é lícito falar de Concordata por causa da
inex-tricável trama entre poder religioso e poder
temporal, num regime rigidamente teocrático, como o
carolíngio. O instrumento concordatário
216
CONCORDATA ECLESIÁSTICA
ou, quando menos, igual sob todos os aspectos à do
pontífice, a doutrina anticurial, ao contrário, nem
sequer trata especificamente da matéria concordatária,
ou então parece considerar a Concordata como um
instituto exclusivo do direito ca-nônico.
Isto vem corroborar ainda mais as conclusões a que
chegou a historiografia muitas vezes no passado e,
particularmente, em época mais recente, segundo as
quais o instituto concordatário não foi, nos tempos
antigos, em termos de direito, "convenção bilateral",
mas sim um ato pontifício unilateral (D'Avack, 1961).
Numa análise acurada de cada uma das
Concordatas, observou-se que a Santa Sé, quando
tinha que ceder aos soberanos, se servia da forma dos
privilegia apostólica; pelo contrário, para assinalar os
sucessos obtidos nas relações com o poder secular,
utilizava as Concordata ou pacta convento. Não
haveria aí, portanto, encontro de vontades, mas,
fundamentalmente, só uma iniciativa da parte
pontifícia, como o demonstram os prepotentes
exemplos da Concordata de Worms, bem como a de
Viena (século XIV) e a de Bolonha (século XVI), que
assinalam formalmente os limites das vitórias da
Igreja Católica contra as tendências autonomistas dos
alemães e franceses. De resto, é igualmente
importante ressaltar, em apoio desta tese, que o
documento em que se sanciona a convenção é sempre
unicamente uma bula pontifícia e que, neste ato
interno do ordenamento eclesiástico, a concordância
das duas vontades soberanas apenas é mencionada,
quando não é totalmente silenciada (D'Avack, 1961).
Este caráter unilateral acompanhou, durante
séculos, o instituto concordatário. Considerando que,
ainda em pleno século XVIII, se encontram vários
testemunhos doutrinais contrários à Concordata como
instrumento de prepotência pontifícia, diríamos —
feita uma distinção conquanto sumária e
indevidamente esquemática — que só nos fins do
século XVIII. com a atuação do Estado moderno no
Ocidente europeu, é que a Concordata assume
realmente a forma jurídica de "convenção bilateral"
ou de "negócio transacional".
II. A CONCORDATA DEPOIS DO SÉCULO
XVIII. — Depois do século XVIII, eliminados todos
os resíduos do poder de caráter feudal e burocrático, o
Estado, inspirado em concepções racio-nalistas, como
o laicismo e o agnosticismo, chama a si toda a esfera
dos direitos e obrigações dos súditos, afirmando a sua
competência na própria regulamentação do fenômeno
religioso. Invertidos os termos, é agora o Estado que se
arroga a chamada competência das competências ou a
autoridade de definir o que é próprio das suas
atribuições e o que eventualmente poderá caber à
Igreja.
Tal forma de Estado, que encontrará no
hegelianismo sua culminação teórica e que, na
realidade política, se concretizará em expressões
antitéticas como, por exemplo, o Estado autoritário e o
Estado democrático, esbarrou com a oposição
terminante e incondicional do pensamento teológico
católico e da ciência jurídica canô-nica. É
precisamente o instrumento concordatário, que antes
representava para a Santa Sé o reconhecimento formal
da sua posição de primazia, que agora é invocado
como obstáculo à usurpação dos Estados. Com base
neste secular instituto e em sua tradicional validade, se
contesta com veemência a afirmação que fazia do
Estado o único valor, a única fonte do direito, e se
reivindica a autonomia e independência da ordem
eclesiástica, ou a absoluta liberdade da Igreja na
matéria que lhe e própria.
Tais proposições, desenvolvidas no seio do mundo
católico, acabaram depois por ser aceitas no próprio
âmbito estatal, em nova formulação da relação
Estado-Igreja, assente em razões políticas facilmente
releváveis: o Estado, embora com prejuízo da
limitação da própria soberania, pode contar, se não
com o aval, ao menos com o respeito da Igreja
relativamente à sua linha de Governo; a Igreja, se bem
que numa posição que a impede de se opor
substancialmente às opções do executivo estatal,
obtém a intangibilidadc num campo onde poderá
desempenhar concrctamente sua missão.
É, pois, já em época recente que a autoridade civil e
a Santa Sé conciliam as respectivas competências e se
põem de acordo sobre os respectivos campos de ação;
ambas são iguais em soberania, iguais na condição dos
ordenamentos jurídicos primários, ambas foram
dotadas originaria-mente de independência e
autonomia. Veio assim a criar-se uma situação que
remete aos esquemas do direito internacional, mas que
conserva entretanto particularidades tão essenciais que
numerosos mestres se sentiram autorizados a falar de
um "ordenamento especial concordatário". É de
sublinhar a tal propósito que a Concordata, embora,
fonte anômala de um direito que não é inter nationes
(o que, na verdade, seria em si irrelevante, não sendo
estranhas ao direito internacional relações partilhadas
por sujeitos de caráter funcional, isto é, privados dos
limites da territorialidade e da nacionalidade) e que,
em algumas das suas expressões, parece contradizer a
lógica do direito internacional, é um instituto que
legitimamente podemos enquadrar entre os
instrumentos pactícios da ordem entre as nações,
CONCORDATA ECLESIÁSTICA
tanto por sua semelhança formal com os tratados
internacionais, como pelo tipo fundamental de
regulamentação, que se torna efetiva e que obriga
igualmente os contracntes ao princípio internacional
de que pacta sunt servanda.
Nesta problemática histórico-jurídica mais chegada
a nós, são levadas em conta as numerosas
Concordatas estipuladas entre a Igreja e os Estados,
desde os anos imediatamente posteriores à Primeira
Guerra Mundial até mais além da metade do nosso
século. Entre elas estão os Pactos de Latrão, assinados
a 11 de fevereiro de 1929 pelo Governo italiano e pela
Santa Sé; eles põem termo à "questão romana";
aceitos pela Constituinte republicana de 1946,
conseguiram manter seu vigor e eficácia até os nossos
dias.
III.
A
CONCORDATA
HOJE:
DESENVOLVIMENTO
DA
SUA
PROBLEMÁTICA OU CRISE DO SISTEMA? — O
instituto concordatário, que, vistas assim as relações
entre o Estado e a Igreja, constitui o melhor meio de
conciliar os interesses eclesiásticos e civis, não podia
deixar de ser posto em discussão na profunda crise a
que está sujeito o universo jurídico contemporâneo.
Os próprios termos do problema — Estado e Igreja —
já não são os de outros, tempos; de qualquer modo,
não há dúvida de que se vão modificando em suas
mais íntimas e efetivas razões. A individualidade do
poder de um Estado do século XIX, fortemente
fechado em seu território para a firme defesa do
elemento nacional, desaparece quando, com a
facilidade das comunicações, ocorre um fortíssimo
incremento dos intercâmbios internacionais. De fato,
a
conseqüente
formação
de
organismos
supranacionais, dotados de poder efetivo e exercendo
funções concretas, tornou evidente a posição
subsidiária do Estado, obrigando não raro a
subordinar suas próprias decisões governamentais a
opções econômicas e desígnios políticos que lhe são
externos. Ao conceito de Estado-pessoa sucede,
afinal, o conceito de Estado-comunidade, uma forma
de Estado não já rigorosamente centralizada nem
abrangente de todos os fenômenos que surgem dentro
dos seus limites territoriais, mas tendente, por uma
mais ampla participação popular, a um pluralismo
comunitário, onde atuem complementarmente
instituições não estatais.
A Igreja, aliás, já adotou oficialmente uma nova
concepção de relacionamento com o poder civil, um
relacionamento que lhe permite maior autonomia e,
conseqüentemente, irais ampla possibilidade de crítica
em face dos rumos políticos assumido* pelo Estado.
As previdentes intuições de uma teologia que,
nascendo fora do ambiente italiano, havia afirmado,
algumas décadas antes do segundo conflito mundial, a
necessidade de uma
217
ação da Igreja voltada diretamente para a consciência
dos fiéis e independente de acordos efetuados a nível
de cúpula com os Governos temporais, parecem hoje
juntas nas declarações do Concilio Vaticano Segundo.
Lembremos, a tal propósito, que, pela leitura dos
documentos conciliares, nos convencemos, por um
lado, da ausência do vocábulo Concordata e, por
outro, da presença de um novo conceito: o da
colaboração entre a Igreja e a comunidade política.
Parece evidente que, com isso, se quis formular, no
tocante às relações entre o temporal e o espiritual, não
um critério estreitamente coagente, obrigatoriamente
caracterizável dentro de esquemas jurídicos préconstituídos, mas, ao contrário, um critério mais geral,
mais amplo, porque pertencente ao domínio da moral,
da ajuda positiva que as realidades temporais e
espirituais de algum modo mutuamente se devem.
Note-se, além disso, que a terminologia eclesiástica,
tal como se revela nas declarações conciliares,
também mudou no concernente ao fenômeno estatal,
paralelamente á evolução do conceito de Estado a que
se aludia: não é ao Estado que a Igreja diz referir-se,
mas à comunidade política (Gaudium et Spes, n.° 76).
Na linguagem do direito público laico, ela não se
refere já ao Estado-aparelho, mas ao Estadocomunidade. A Igreja, em suma, tenderia a apelar à
vontade popular, sem qualquer mediação dos poderes
governativos do Estado.
A superação da tradicional potestas indirecta in
temporalibus, teoria incapaz de exprimir este rápido
voltar-se da Igreja para as bases da sociedade,
assinala, segundo o parecer de uma parte do
pensamento eclesiástico, o fim da época das
Concordatas; o futuro da Igreja estaria numa
perspectiva puramente escatológica, no total
abandono de qualquer concepção legalista. Contra tais
afirmações, tem sido não raro acentuado seu
excessivo utopismo: a Igreja, como sociedade que se
insere no contexto histórico, está ontologica-mente
impossibilitada de renunciar ao uso de instrumentos
jurídicos em geral e, em particular, ao uso da
Concordata como forma específica de colaboração,
quando a violência política estatal justifique uma
atitude de defesa; pense-se, por exemplo, num Estado
totalitário, num Estado que reprime a liberdade de
culto. Neste sentido, a Concordata continuaria sendo
um instrumento jurídico atual, mas numa nova
perspectiva, a da tutela do bem inalienável da
liberdade religiosa, e não da conquista de uma
situação de privilégio. Então, acrescentam alguns, a
Igreja católica deveria estipular com o Estado, não só
a livre exteriorização do próprio culto, como também,
218
CONFEDERAÇÃO
paralelamente, a do culto das demais confissões
religiosas.
É certo que a Concordata, como tudo o que
pertence ao domínio jurídico, é um instituto
estreitamente ligado às razões históricas que lhe
deram origem. Hoje, perante um Estado não mais
decidido a usar a religião como instrumento unificador da nação, perante uma Igreja que já não aspira
a um confessionalismo estatal, mostrando, com isso,
não desejar qualquer discriminação que diferencie a
vida dos vários grupos religiosos dentro do Estado,
parece poder julgar-se definitivamente virada aquela
página da história do século passado em que se
baseou a florescência das Concordatas. No futuro,
este velho instituto moderador dos encontros e
desencontros do poder temporal e espiritual só poderá
continuar a existir, pensamos, se sofrer uma total e
completa reestruturação.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR.. Il contordalo alla prova.
Bologna 1979: A D'AVACK. Concordata ecclesiastico.
in Enciclopedia del diritto". vol. VIII. Giuffrè. Milano
1961: A. C. JEMOLO. La Chiesa post-conciliare e la
Stato. in "I problemi di Ulisse". XII. fase, LXVI, 1969;
A. MERCATI. Raccolta di concordati su materie
ecclesiastiche tra la Santa Sede e le autorità civili,
Città del Vaticano 1954.
[MASSIMO JASONNI]
Confederação.
I. CONFEDERAÇÃO E FEDERAÇÃO. — Na linguagem
política, o termo Confederação tem duas
significações, uma genérica, a outra específica. Na
acepção genérica. Confederação é quase sinônimo de
associação, como ocorre, por exemplo, no caso do
sindicato designado Confederação Geral Italiana do
Trabalho (C.G.I.L.). Na acepção específica, de que
nos ocuparemos aqui, o termo indica, ao contrário,
uma união de Estados.
Como os Estados dificilmente se podem manter
isolados, suas relações estão muitas vezes marcadas
por formas de cooperação e de associação
internacional que não excluem, entretanto, a divisão
política e a possibilidade de cada Estado poder
rescindir cm qualquer momento os vínculos que o
ligam, dada a situação de anarquia que caracteriza as
relações internacionais. Entre as formas de
associação, a mais elementar é a aliança, que não
exige que os Estados contraentes criem órgãos
comuns para a execução dos seus acordos. O que
distingue a Confederação de uma simples aliança
entre Estados é que os Estados
confederados instituem um órgão político de caráter
diplomático, composto de representantes de cada
Estado, com a incumbência de tomar decisões de
interesse comum.
Ora, entre as associações de Estados dotadas de
órgãos comuns, há algumas, as federações, cuja
coesão se baseia no fato de que uma parte da
soberania dos Estados-membros, a referente à política
externa e econômica, é transferida a um centro
superior de decisão política. É que o controle separado
de tais setores, sendo incompatível com a unidade
política, seria causa de anarquia internacional e de
desordem econômica. Ká outras associações, as
Confederações, cujos órgãos centrais, carecendo de
uma autoridade própria e respeitando a absoluta
independência dos Estados associados, não
representam qualitativamente outra coisa senão a
soma de seus componentes políticos, sendo por isso
obrigados a suportar a dinâmica dos interesses dos
Estados, sem a poderem controlar, e refletir as
contradições que deveriam, ao invés, superar. Por isso,
no sistema confederativo, onde os Estados, não
reconhecendo qualquer poder superior, mantêm toda a
sua soberania, as pressões centrífugas, expressas pelos
interesses particulares dos Estados, tendem a
prevalecer sobre as centrípetas, expressas pelos órgãos
confederativos.
A existência de um poder superior ao dos Estados,
autônomo, mas de tal modo limitado que garanta a
independência dos mesmos, é, pois, o critério que
distingue a federação das outras formas de associação
entre Estados, nas quais, indistintamente, os fatores da
divisão política tendem a prevalecer sobre os da
unidade. Este critério é fundamental. Ele nos permitirá
superar as dificuldades oriundas do fato de as palavras
Confederação e federação serem freqüentemente
usadas nos textos constitucionais de modo confuso e,
o mais das vezes, de forma diversa da de uma
linguagem política mais rigorosa. Com base em tal
critério, pode-se dizer, por exemplo, que a Suíça é,
desde 1848, uma federação, embora a Constituição
helvética continue a definir a sua estrutura política
como confederativa. De fato, o Governo central tem
em suas mãos o controle exclusivo do exército, o
poder exclusivo da representação diplomática, o
sistema aduaneiro e monetário e um poder de
tributação próprio.
A Confederação é uma instituição muito mais
antiga que a federação. No mundo antigo, nas cidadesEstados da Grécia, se formaram as ligas anfictiônica e
aquéia, ambas dotadas de órgãos comuns de caráter
confederativo. Também o antigo império germânico e
as Províncias Unidas dos Países-Baixos eram
associações tipicamente confederativas. A união dos
Cantões suíços e os
CONFEDERAÇÃO
Estados Unidos da América, antes de se fundirem
numa federação, eram Confederações.
219
decisões tomadas pelos órgãos comuns é deixada aos
Estados, que as respeitarão apenas na medida em que
as julgarem consentâneas com seus interesses. Em
II. ESTRUTURA E FUNÇÃO. — O princípio político última instância, o poder de decisão está nas mãos dos
em que se baseia a Confederação é o da subordinação Estados. Por este motivo, as decisões tomadas a nível
do órgão central ao poder dos Estados. O critério-guia confederativo não possuem caráter vinculatório.
da conduta dos membros desse órgão é, por isso, o da
As Confederações não têm um Governo
defesa dos interesses dos Estados que eles democrático. Seus órgãos emanam dos Governos ou
representam. O funcionamento da Confederação está, Parlamentos dos Estados. O povo é completamente
portanto, sujeito ao direito de veto de cada um dos excluído da escolha dos representantes nos órgãos
Estados. Daí que as únicas decisões comuns a que se confederativos e da participação nas decisões que eles
pode chegar, as únicas, portanto, com possibilidades tomam. A participação eleitoral dos cidadãos se
efetivas de ser cumpridas, são as tomadas por circunscreve aos limites do Estado. A Confederação
unanimidade, isto é, as julgadas aceitáveis por todos.
há de, pois, ser definida mais como uma associação
Já que o vínculo confederativo não modifica a entre Governos do que como uma associação entre
estrutura das relações entre os Estados, uma vontade povos, porquanto as relações entre os Estados ficam
política unitária só se forma quando o equilíbrio restringidas à mais alta esfera da política externa, que
político impele nessa direção; mas não impede graves não é expressão de democracia, mas do seu oposto,
conflitos e profundas divisões em caso contrário. das exigências de segurança e poderio dos Estados. Se
Podem-se apresentar três situações típicas. Em se pode afirmar que há um Governo da Confederação,
primeiro lugar, se existe uma perfeita convergência de ele resulta do equilíbrio nas relações de força entre os
interesses entre os Estados, é possível chegar Estados que dela fazem parte. Pelo que respeita às
facilmente a decisões comuns. Em segundo lugar, decisões, esse Governo não pode passar do
como acontece mais freqüentemente, se existem compromisso entre as decisões e os interesses
divergências, as decisões não podem ficar senão em nacionais.
compromissos entre interesses contrastantes. Esta
situação torna evidente que o regime confederativo,
III.
CONDIÇÕES
HISTÓRICAS
QUE
como qualquer sistema internacional de Estados FAVORECEM
A
FORMAÇÃO
DAS
independentes, é regulado por relações de força CONFEDERAÇÕES. — Depois de descrevermos o
material estabelecidas entre os componentes; dada a funcionamento das instituições confederativas, é
desigual distribuição do ppder político entre os necessário ainda mostrar quais as principais condições
Estados, a integração política das Confederações se históricas que favorecem sua criação. Os fatores mais
baseia na hegemonia política e militar de um ou mais importantes que numa área geográfica pluriestatal
Estados sobre os outros. Em terceiro lugar, se as concorrem para a formação de uma Confederação são
posições dos Estados são inconciliáveis, isto é, tão a necessidade de segurança ou as exigências do
distantes que não permitam um compromisso, então desenvolvimento econômico. Para uma solução em
nenhuma decisão será possível. Se tal situação tender a comum dos problemas relativos, a Confederação
repetir-se, estará aberto o caminho para a paralisia ou assume a forma de uma união defensiva ou de uma
até mesmo para a dissolução da união confederativa. união aduaneira. Em conseqüência disso, a
Por via' das exigências contraditórias — assegurar a competência geralmente atribuída às instituições
unidade, mantendo a total soberania dos Estados — confederativas se refere ao âmbito da política externa e
que não consegue conciliar, a Confederação é uma militar, ou a aspectos da política econômica, quando
fórmula política instável, condenada a dissolver-se ou não a ambas.
consolidar-se, podendo transformar-se num Estado
Em geral, o fator histórico que está na base dos
tutelar da autonomia das unidades componentes se fenômenos integrativos das comunidades políticas
tiver uma estrutura federativa.
ligadas entre si é a evolução do modo de produção,
De qualquer modo, as decisões dos órgãos centrais que tende a estender as relações sociais a áreas cada
da Confederação possuem mais o caráter de vez mais vastas e, conseqüentemente, a acentuar a
recomendações que de leis, uma vez que, por um lado, dependência entre os Estados. Os problemas de que
eles não são formados mediante a luta política, com a depende o destino de tais comunidades vão adquirindo
participação direta das forças que operam no seio dos dimensões mais amplas que os poderes políticos
Estados ,e com o consenso da população, e, por outro, organizados. Os Estados, incapazes de dar uma
não dispõem de meios de poder direto sobre os resposta por si sós a tais problemas, têm de colaborar
com os seus vizinhos; por isso, suas razões de Estado
cidadãos. A execução das
220
CONFESSIONALISMO
hão de convergir, para que se possa chegar a soluções
comuns. A convergência das razões de Estado é, pois,
outra condição indispensável para a formação e
manutenção das Confederações. Mas sua fragilidade
constitucional, sua dificuldade de contenção das
diversas razões de Estado tornam instáveis e
precárias, como se tem visto, suas condições de
existência, condenando-as à dissolução, caso não
consigam consolidar-se mediante a instituição de um
poder supra-estatal.
Em resumo, as Confederações se formam quando
existe entre Estados confinantes uma relativa
necessidade de união. As Confederações permitem
alcançar um certo grau de unidade e garantem, em
certa medida, a segurança e o desenvolvimento
econômico, sem que os Estados tenham de ceder sua
soberania. A experiência histórica ensina que, em
geral, as Confederações são criadas justamente para
defender a independência dos Estados cuja fragilidade
impõe a colaboração com os vizinhos, e para
salvaguardar e manter a ordem interna e internacional
existente.
IV. O MÉTODO CONFEDERATIVO NO
MUNDO CONTEMPORÂNEO. — As Confederações
do passado tiveram predominantemente um caráter
militar. No mundo contemporâneo, sob impulso da
Revolução Industrial, que levou a uma crescente
integração de vários aspectos da vida social mais além
das fronteiras dos próprios Estados, o sistema
confederativo serviu de base à formação de numerosas
organizações internacionais especializadas, como, por
exemplo, o Fundo Monetário Internacional (F.M.I.) e a
Comunidade Européia do Carvão e do Aço
(C.E.C.A.), que têm por incumbência controlar tais
processos de integração e permitir que os Estados
tomem decisões unitárias sobre problemas que
alcançaram dimensões internacionais, ou mesmo
mundiais em determinados casos. Esta multiplicação
de organizações internacionais e - o aumento das suas
funções fizeram com que surgisse um novo fenômeno:
o da formação de verdadeiros e autênticos aparelhos
burocráticos,
constituídos
por
funcionários
internacionais, com funções similares às da
administração pública dos Estados, e o do
desenvolvimento de órgãos confederativos cada vez
mais complexos e articulados. O propósito, pqr
exemplo, de transformar no futuro a Comunidade
Econômica Européia (CEE) num Estado inspirou aos
seus fundadores a idéia de instituir um Parlamento
europeu, uma Comissão executiva e uma Corte de
justiça, conquanto o poder de decisão tenha ficado por
ora fundamentalmente concentrado num quarto órgão,
o Conselho de Ministros, que constitui uma sólida
garantia para a soberania dos Estados.
Entre as organizações de tipo confederativo hoje
existentes, há algumas com marcada tendência ao
universalismo, como a ONU e as organizações
especializadas a ela unidas. Estas organizações,
embora não atentem de modo algum contra a
soberania absoluta dos Estados, são um indício da
tendência histórica à unificação do planeta. Outras
organizações
confederativas
atingem
apenas
dimensões regionais. Adquiriram grande relevo as que
se formaram na Europa ocidental depois da Segunda
Guerra Mundial. É que, neste continente, existe uma
contradição particularmente aguda entre as dimensões
nacionais do poder político e as internacionais do
desenvolvimento econômico. Em conseqüência disso,
a solução de um número cada vez maior de problemas
foi transferida dos Estados para os órgãos
confederativos europeus. Em setores bem definidos
(regulamentos da comunidade), houve uma verdadeira
delegação de poderes às autoridades européias, que
impõem diretamente suas decisões aos indivíduos,
sem a intermediação dos Estados. Não se trata
evidentemente da transferência da soberania, porque
as decisões políticas fundamentais continuam a ser
tomadas pelos Governos nacionais, através do
Conselho de Ministros. Mas, diversamente do que
ocorre com as instituições internacionais como a
ONU, que têm a mera incumbência de organizar a
cooperação entre os Estados, a CEE tem por objetivo
realizar uma verdadeira e perfeita integração
econômica. As características institucionais das
comunidades européias baseiam-se no fato de que a
integração da Europa representa o estádio mais
avançado de um processo mais amplo de integração da
atividade humana, um processo de dimensões
mundiais; elas esclarecem as transformações por que
hão de passar as instituições confederativas do mundo
contemporâneo para se ajustarem a tal processo.
BIBLIOGRAFIA. - A. HAMILTON, J. JAY, J. MADISON, Il
federalista (1788), Il Mulino, Bologna 1980; L. LE
FUR, État fédéral e confédération d'États, Marchal et
Billiard, Paris 1896; J. B. WESTERKAMP, Staatenbund
und Bundesstaat. Untersuchungen über die Praxis und
das Recht der Modernen Bünde. Brockhaus, Leipzig
1892; K. C. WHEARE, Del governo federale (1945),
Comunità, Milano 1949.
[LUCIO LEVI]
Confession alismo.
O termo derivado de confissão, aparece na segunda
metade do século XIX como reação às
CONFESSIONALISMO
posições do teólogo e historiador alemão D. Strauss,
acusado de racionalismo; as Igrejas, então, convidam
a retornar às grandes declarações de princípio contidas
nas Confissões, como garantia de fidelidade
doutrinária; garantia no sentido de que a pura volta às
Confissões evitava qualquer passagem intermediária,
fonte de impuridade doutrinária.
Em seguida, o termo teria assumido um significado
completamente diferente, conservando, porém, alguns
aspectos de sua origem e, em particular, a recusa das
mediações. Hoje o termo Confessionalismo indica
uma atitude específica do Estado em matéria religiosa,
que se manifesta privilegiando um grupo ou uma
confissão religiosa, assumindo seus princípios e sua
doutrina e incorporando na própria legislação ou nos
próprios comportamentos aspectos
doutrinais
decorrentes diretamente daquela doutrina, superando
também qualquer mediação das consciências
individuais.
Pelo contrário, o Estado é considerado não
confessional quando se recusa a dar sanção jurídica
aos preceitos ético-religiosos de uma determinada
confissão religiosa, dando às próprias leis um
conteúdo puramente humano ou ético-racio-nal, isto é,
inspirado pelos princípios de justiça natural tais como
são percebidas pela consciência comum num
determinado período histórico. É logicamente possível
— observou N. Morra — que a consciência comum
possa chegar à descoberta de tais princípios também
graças à inspiração religiosa, nem é necessariamente
confessional um Estado que reconheça a existência
das instituições religiosas e a importância dos
princípios e do espírito religioso para a vida da
comunidade política.
Dois são os elementos significativos dessa
definição, que tiveram um lento e progressivo
caminho histórico: o esclarecimento das relações entre
Igreja e Estado e o debate sobre a origem e a fonte do
valor dos princípios étnicos em que se inspira o
Estado na elaboração das próprias leis.
O cristianismo se difunde no interior de culturas
fundadas na compenetração entre o poder político e o
poder religioso: situação que, de acordo com o
contexto, produz ora regimes teo-cráticos, ora
hierocráticos, ora várias formas de Igrejas de Estado.
Com a proclamação, de origem cristã, da separação
entre os dois poderes se inicia também uma
controvérsia típica em todas as Igrejas cristãs: a do
poder sobre matérias mistas. Isto é, admitido que o
Estado atue no âmbito político e a Igreja no âmbito
religioso, ficam amplas margens de dúvidas, quando
se trata de definir as respectivas competências em
setores que podem ser considerados de origem
221
política ou de origem religiosa. O debate sobre estes
setores determina outras situações análogas às
anteriores, alternando-se regimes cesaropapistas ou
jurisdicionalístas, que levam freqüentemente às
Igrejas de Estado, e regimes curialistas ou
confessionais, quando a Igreja impõe ao Estado o
próprio domínio, levando-o a introduzir na sua
legislação os próprios desideratos.
O Confessionalismo se manifesta, então, de várias
formas: um Estado rigidamente confessional chega até
a reprimir no seu interior cultos e crenças que se
opõem ao culto oficial e reconhecido; ou a declarar a
obrigatoriedade da religião oficial para gozar dos
direitos civis (é o caso, por exemplo, da constituição
napolitana e dos estatutos dos Estados Pontifícios em
1848). Outros regimes, embora afirmando a existência
de uma religião de Estado, lembram que os demais
cultos são somente tolerados (o estatuto albertino
afirma no artigo primeiro: "A religião católica
apostólica romana é a única religião do Estado. Os
outros cultos ora existentes são tolerados de acordo
com as leis"); ou concedem às outras Igrejas uma
perfeita liberdade e igualdade.
O problema se coloca em termos radicalmente
diferentes quando a cultura filosófica elabora novos
princípios sobre o valor moral dos atos realizados pelo
Estado, como expressão da sociedade civil. Lembremse, por exemplo, a política eclesiástica italiana após a
unificação da Itália, quando a Igreja considera
inimigos e excomungados os representantes do
Governo que tirou do Vaticano o seu domínio
temporal: a classe dirigente, freqüentemente
anticlerical, não é porém anti-religiosa; sente, antes, a
dificuldade em superar uma identificação prática entre
religião e moralidade. Por isto, para solenizar certos
acontecimentos políticos, pede que seja realizado um
rito religioso. A classe dirigente sabe que esta é a
maneira para que a consciência coletiva atribua valor
moral ao evento político e, portanto, o convalide.
Com a difusão do positivismo, e, na Itália, com o
influxo do pensamento de Ardigó, difunde-se também
a consciência da inutilidade da religião para o viver
social e desaparece a identificação entre religião e
moralidade. O Estado tem que, portanto, encontrar
alhures a fonte da própria eticidade. São as premissas
para novas relações entre Estado e Igreja. Esta
procurará, então, criar uma situação de fato que
corresponda à anterior, impondo com maneiras
sempre diferentes as próprias normas à sociedade civil
e pedindo ao Estado de dar a elas valor jurídico (é o
comportamento que definimos de confessional); o
Estado, através da afirmação de si mesmo como fonte
de eticidade, cairá, às vezes, na tentação de dar vida a
um Confessionalismo às avessas, isto é,
222
CONFISSÕES RELIGIOSAS
impondo como norma as concepções sociais da classe
dirigente e encaminhando-se, dessa forma, para o
totalitarismo.
O confronto entre os dois poderes, o estatal e o
eclesiástico, se torna, às vezes, também, choque: para
evitá-lo, recorre-se, então às concordatas, pactos
bilaterais nos quais são indicadas e delimitadas as
competências recíprocas e os setores de intervenção.
Ao Estado confessional se opõe, hoje, o Estado
concordatário (que, às vezes, porém é somente uma
variante do Estado confessional: de fato não são
poucos os que julgam que este seja o caso da Itália,
onde vigora ainda a concordata de 1929), ou o Estado
separatista
(v.
SEPARATISMO) em
situações
freqüentemente um tanto diferentes, que variam de
formas de laícidade clara e evidente a formas também
de repressão religiosa. Hoje é ainda muito difundida a
identificação prática entre Estado laico e Estado não
confessional e também entre Estado confessional e
Estado clerícal: identificações nem sempre privadas de
ambigüidades. Para L. Salvatorelli, por exemplo,
"Estado laico significa exatamente Estado não
confessional"; outros são mais pessimistas no que diz
respeito à efetiva neutralidade de um Estado em
matéria religiosa, mesmo quando se proclama Estado
laico; assim como são pessimistas no que diz respeito
à efetiva renúncia, por parte da Igreja, a qualquer
tentação de Confessíonalis-mo, também depois das
precisas tomadas de posição, no que concerne à Igreja
Católica, expressadas pelo Concilio Vaticano Segundo
sobre a liberdade religiosa (veja também
ANTICLERICAUSMO,
CONCORDATA
ECLESIÁSTICA,
LAICISMO).
BIBLIOGRAFIA. - A. DI NOLA, Confessione e
Confessionalismo, in Enciclopedia delle Religioni.
Vallecchi, Firenze 1970; N. MORRA. Laicismo, in
Novissimo Digesto Italiano. UTET, Torino 1963; M.
PIACENTINI. Confessionismo, Ibid.. F. RUFFINI,
Relazioni tra Stato e Chiesa. Lineamenti storici e
sistematici, ao cuidado de F. MARGIOTTA BROGLIO. II
Mulino. Bologna 1974.
[MAURILIO GUASCO]
Confissões Religiosas.
A Constituição italiana, seguindo a evolução dos
tempos e adequando-se à estrutura da sociedade
contemporânea, deu importância aos interesses e às
relações daquelas formações sociais, que a própria
carta constitucional chama de "Confissões religiosas".
Dessa forma, a competência de
regulamentar os interesses espirituais foi reconhecida,
dentro de certos limites, não somente a cada
indivíduo, mas também a determinadas formações
sociais para a tutela dos interesses coletivos.
O fenômeno, em certo sentido novo embora não
exclusivo do mundo religioso, levanta uma serie de
questões: primeiramente, entre estas, o relativo à
extensão de autonomia reconhecida às coletividades
confessionais, a tal ponto de pensar (embora com
muitas perplexidades) que exista uma tutela, perante o
juiz italiano, de todos os interesses referentes ao
mundo religioso, não somente quando originam
situações subjetivas cons-titucionalmente garantidas,
mas também quando situações, nunca previstas pelas
disposições legislativas estatais, sejam assumidas
como pretensões tuteláveis dentro das Confissões
religiosas. É, ainda, oportuno perguntar-se até onde e
em que sentido pode ser reconhecida às Confissões
religiosas uma representação de interesses dos
próprios fiéis obviamente não uli singuli, mas como
coeius, isto é, daqueles interesses relativos, não tanto à
Confissão religiosa como entidade com sua
subjetividade, mas dos interesses comuns à
generalidade dos membros de um dado grupo social.
Em todo caso, com a Constituição republicana a
posição jurídica das Confissões religiosas não
católicas — sejam consideradas ou não formações
sociais de acordo com o art. 2." da Constituição —
adquiriu uma relevância anteriormente nunca tida. O
artigo oitavo não somente as considera "igualmente
livres perante a lei", mas lhes reconhece o "direito de
organizar-se segundo os próprios estatutos desde que
não contrastem com a ordem jurídica italiana" e
permite que suas relações com o Estado sejam
regulamentadas "por lei com base em entendimentos
com as respectivas representações". A Constituição
reconhece, assim, as Confissões católicas, com sua
estrutura, sua organização e seu regulamento, com os
órgãos de representação, etc.
luntamente com a liberdade individual voltada para
garantir, aos cidadãos, a máxima diferenciação no
campo das ideologias religiosas, foi-se afirmando a
importância jurídica de uma organização, necessária
para criar uma plataforma, na qual se podem encontrar
todos os fiéis de um culto, como membros de uma
coletividade, sempre variável em seus componentes,
mas cuja unidade social é tutelada pela Constituição.
Dessa forma, a trama de relações jurídicas se
alargou: posição do fiel na ordem jurídica estatal;
relações relativas à confissão, vista como sujeito
unitário; situações jurídicas que se baseiam na
religiosidade de cada fiel e que se resolvem em
pretensões ou deveres para com a coletividade cultural
ou para com outros fiéis ou ainda para
CONFISSÕES RELIGIOSAS
com as autoridades confessionais, não tanto como
órgãos da comunidade organizada, mas como
expressão do poder espiritual.
A própria inovação da Constituição de dar
importância a certas formas de entidades sociais e de
discipliná-las para determinados fins leva à
necessidade de definir as Confissões religiosas, isto é,
a identificar a quais organismos sociais o constituinte
quis se referir. Também nesta hipótese o legislador se
limita a uma mera referência ao id quod plerum que
accidit (= ao que costuma acontecer), a um conceito
social: as Confissões religiosas não são criações de
ordem jurídica ex nihilo; elas, antes ainda de existirem
na ordem jurídica, existem na própria estrutura da vida
social. Todavia, essa realidade meta-jurídica tem que
ser avaliada, definida e classificada pelo jurista, todas
as vezes que se encontra na necessidade de aplicar as
normas relativas a essa realidade, especialmente pelo
fato de que esta não apresenta em todos os casos
características homogêneas e não é sempre fácil traçar
as fronteiras entre Confissões religiosas e movimentos
filosóficos, entre coletividades organizadas de fiéis e
sociedade religiosa em sentido amplo, entre grupos de
pessoas unidas numa mesma fé e associação de leigos
com características confessionais.
As definições dadas pela doutrina têm
freqüentemente mero caráter descritivo e nem sempre
concordam entre si (chega-se, até, a negar a
necessidade da própria definição, afirmando que
somente no momento de estipular um acordo, o
Governo e o Parlamento avaliarão a "oportunidade'' de
definir uma disciplina especial com uma coletividade
que presume ter os requisitos de Confissão religiosa).
Às vezes, se fala de grupos sociais, formados pelos
indivíduos que professam uma mesma fé, mas que
precisam da presença de outros dois elementos: um
conjunto de princípios concernentes às relações entre
o homem e Deus e um conjunto de ritos que
caracterizam o grupo. Outras vezes se acentua a
peculiaridade do fim perseguido pelo grupo social no
campo religioso, ou se definem as Confissões
religiosas como comunidades sociais estáveis (sem
caráter institucional, mas sempre qualificáveis dentro
da ordem jurídica), que têm uma concepção própria e
original do mundo baseada na existência de um Ser
transcendente em relação aos homens. Às vezes ainda
se estaria perante uma confissão somente quando uma
comunidade, que tem exclusiva finalidade religiosatranscendental, se dá uma organização e uma
regulamentação escrita própria pela qual possam
surgir seus representantes e se tenha consolidado
(mais do que na opinião pública) na tradição italiana.
Ou, enfim, conforme diz Jemolo:
223
"As confissões não católicas dão vida — para usar um
termo menos empenhativo — a organizações
extremamente diferentes entre elas: unidade
eminentemente histórica que afunda suas origens num
passado remoto, que, embora não sendo uma unidade
tangível rica de institutos, diríamos assim, jurídicos,
não pode facilmente ser delimitada dentro dos nossos
conceitos quer de associação, quer de fundação, quer
de ordem jurídica e que é a mais antiga religião do
Deus único. E uma associação de pessoas unidas
somente por uma crença comum, que não gostam de
vínculos jurídicos, que afirmam o império da livre
vontade, a única que deveria dominar no mundo
religioso, perdendo valor perante Deus qualquer ato
não absolutamente livre, como ocorre em alguns
cultos
protestantes;
verdadeiras
estruturas
hierárquicas, que lembram as da Igreja católica, são
outros cultos protestantes, que na Reforma não
rejeitam todo O sólido tecido do direito canônico ... A
nossa Constituição. .. reconhece de um lado as
Confissões religiosas, mas do outro parece ignorar
(embora garantindo uma liberdade de associação para
todos os fins que não são atingidos pela lei penal) que
existem nelas orientações coletivas decorrentes das
próprias verdades especulativas e morais que as
confissões perseguem, orientações que não são
movimentos religiosos", porque as Confissões
religiosas são "também as mais evanescentes quanto a
ritos e organização, realidades sociais tangíveis, ao
passo que uma orientação filosófica, embora
exercendo no mundo do pensamento uma eficácia
incomensuravelmente superior à de certas minúsculas
confissões, não pode ser da mesma maneira definida e
identificada. Além disso, as Confissões religiosas
como realidade social postulam um mínimo de ritos,
de ministros e relativas exigências de respeito, de
proteção contra ofensas adversárias, que nenhuma
tendência ou escola filosófica exige".
Perante essa variedade de opiniões e de destaques
descritivos do fenômeno, não parece fora de propósito
afirmar que a definição de Confissão religiosa choca
contra uma dupla ordem de dificuldades: a primeira é
a de saber quando o conjunto de pessoas ligadas por
um certo interesse ou ideal comum adquire no seu
complexo uma certa individualidade, de tal maneira
que pode ser considerado um todo unitário que opera
no seio da sociedade; a segunda consiste em
especificar quando uma coletividade persegue fins
religiosos: e isto exige uma definição de religião.
Considerando o primeiro dos elementos em que se
articula a expressão "Confissão religiosa", aparece
claro que a coletividade que ela postula deve ser
distinta quer na sociedade religiosa quer da simples
associação.
224
CONFISSÕES RELIGIOSAS
Quando se fala de sociedade religiosa (em oposição
a sociedade civil), se faz referência a um conjunto de
pessoas que desempenham uma atividade definível
em alguma forma religiosa, mas, embora ele possa
estar sob a direção de indivíduos e distintas
coletividades organizadas, se apresenta sempre como
grupo "informal", "inorgânico", e, portanto, como
expressão de pessoas que perseguem fins
homogêneos, mas não necessariamente unitários;
tratar-se-á sempre de uma pluralidade de homens,
cujas atividades não são organizadas, mas que se
apresentam como um simples "grupo de interesses" e
de interesses totalmente genéricos.
As Confissões religiosas são, ao invés,
coletividades concretas, entidades sociais, com
manifestações bem visíveis das quais se conhecem as
normas e as funções no seio da sociedade, os
princípios inspiradores, os seus membros, os ritos, as
cerimônias e, em geral, os costumes e os
comportamentos culturais pelos quais o sentimento
religioso se expressa. Segue-se daí (embora haja vozes
discordantes) que o elemento necessário para que um
conjunto de pessoas possa constituir uma Confissão
religiosa é a estrutura orgânica que aquela coletividade
adquire exatamente como conjunto organizado,
comportando-se como um único sujeito (conjunto
organizado capaz — de acordo com uma corrente
doutrinai respeitabilís-sima — de se constituir em
ordem jurídica originária). É uma realidade social que
externamente tende a representar e tutelar um interesse
próprio (que pode não coincidir com o de cada fiel),
enquanto internamente surgirá uma série de relações e,
portanto, de direitos e deveres, interesses direta ou
indiretamente tutelados, status, etc. Em suma, não é
qualquer pluralidade de pessoas, que se inspiram nos
mesmos princípios religiosos, que constitui uma
Confissão religiosa; é preciso que a pluralidade se
torne tão coesa até projetar-se como unidade; teremos,
assim, uma entidade social — expressão de uma
comunidade de ideais e de regras — na qual cada um
tenderá a satisfazer às próprias exigências espirituais e
em cujo âmbito se entrelaçará um conjunto de
relações. Essa será, portanto, uma unidade orgânica,
organizada para representar externamente os interesses
da coletividade e para permitir internamente o
desenvolvimento, através de uma série de relações. de
todos os efeitos conseqüentes do vínculo que liga os
membros ao grupo.
As Confissões religiosas, portanto, são distintas (de
acordo com a doutrina prevalecente) das associações
com finalidade de culto e, em geral, voltadas para
satisfazer uma exigência religiosa particular e para dar
o máximo desenvolvimento a um aspecto da vida
religiosa.
A Confissão religiosa pretende representar um
número indefinido (possivelmente cada vez mais
amplo) de pessoas, que se reconhecem ligadas não por
este ou por aquele interesse específico, ou ainda por
uma soma de interesses particulares, mas por uma
totalidade de interesses. A confissão se prospecta
como um grupo de uma latitude tal que possa incluir a
inteira vida de seus membros, vida que, em
conseqüência, poderá ser vivida plenamente no seio
dela.
A associação com finalidade de culto, ao contrário,
é constituída ou por um grupo de pessoas que levam
vida em comum ou por um grupo organizado para a
consecução de um ou mais interesses comuns. Esta
não é mais uma comunidade, em cujo âmbito o
indivíduo desenvolve inteiramente sua vida religiosa,
até satisfazer todas as exigências espirituais; nem na
hipótese de associação com vida em comum, porque a
própria atividade dos que pertencem ao grupo, mesmo
que seja atividade puramente ascética e separada do
resto do mundo, estará sempre em íntima relação com
a vida de todo o grupo confessional, do qual os
membros da associação têm a consciência de
participar.
A associação, sejam quais forem suas
manifestações, é sempre uma organização no seio da
confissão, é um elemento da estrutura desta, que, por
isto mesmo, na quase totalidade dos casos se
apresenta, do ponto de vista organizacional, como uma
reunião de muitos grupos ligados e coordenados entre
eles. A admissão na associação com finalidade de
culto não somente pressupõe já a posição de fiel (isto
é, a adesão a certos princípios e a intenção de fazer
parte da Confissão religiosa), mas implica a específica
vontade de unir-se e colaborar intimamente com
outros para atingir uma determinada finalidade de
culto ou um conjunto de finalidades — mutáveis e
nem sempre predeterminadas — decorrentes das
grandes finalidades da Confissão religiosa. Essa
vontade de constituir uma associação com fins
religiosos pressupõe, como se destacou, a outra opção
de fazer parte da coletividade mais ampla que
compreende todos os fiéis de uma dada religião.
Na definição de Confissão religiosa não se pode
prescindir de fixar a noção de religião; ou, mais
exatamente, o que interessa e a extensão do conceito
de religião a respeito da matéria em questão. Mas
acontece que quem procura olhar panorami-camente
as religiões descobre tamanha variedade de dúvidas
que possa existir entre elas um denominador comum,
de modo que — para os fins do presente trabalho — é
preferível considerar as funções que ela pretende
desempenhar; isto permite excluir uma avaliação total
do fenômeno
CONFLITO
religioso como fenômeno do espírito humano e limitar
a indagação de uma definição descritiva ou de
conteúdo: o que aqui interessa é a religião como fato
histórico e social, único dado que o legislador e o
jurista podem captar.
Por esse motivo, para os fins do presente estudo, a
religião é, antes de tudo, um fenômeno social:
portanto terão que ser excluídos desta con-ceituação
de religião as ideologias pessoais e as crenças comuns
a um conjunto de indivíduos, quando estes não se
apresentam na fenomenologia social como grupo. Isto
é suficiente para impedir um uso indiscriminado do
termo religião através de suas indevidas
generalizações típicas de certo ideologismo moderno:
religião da liberdade, do trabalho, de humanidade. E é
também suficiente para negar que no conjunto das
religiões entre o ateísmo, enquanto ele é sempre a
expressão de uma convicção individual, que nunca
gera relações de grupo e que nunca se apresenta à
consciência social como fenômeno religioso.
Não é possível, aqui, analisar os vários elementos
da religião, como também uma descrição de todas as
suas manifestações resultaria extremamente extensa e
levaria à abstração individual do fenômeno sem ter em
conta que o legislador (especificamente a
Constituinte) não quis operar na base de uma
configuração abstrata de comunidade religiosa,
embora historicamente realizável, mas sobre uma
realidade que se exprime dentro de um ambiente
socialmente limitado. Decorre daí que, pelo direito
positivo italiano, se terá uma Confissão religiosa todas
as vezes que uma comunidade se afirma como grupo
com finalidades religiosas perante a opinião pública
que se formou na sociedade italiana. Somente quando
os cidadãos, seguindo um conceito difundido na
generalidade deles, julgarem que um certo grupo deu
origem a uma religião, então aquela coletividade
adquirirá, para o Estado jurídico, importância. Dessa
forma, se exclui qualquer avaliação baseada num
critério quantitativo, não existindo um número exato
de fiéis que pode elevar um grupo à condição de
Confissão religiosa. No máximo, o número dos fiéis
poderá ser um dos elementos que orientarão a
consciência social para um determinado sentido assim
como para formá-la concorrerão a tradição, a atividade
desenvolvida pela comunidade, as cerimônias e as
funções de que participam os membros da
coletividade, a obra de proselitismo e os contrastes
que esta encontra perante as outras religiões, a
qualificação que as várias ciências darão ao grupo ou
ao movimento, e assim por diante.
Para determinar esta realidade que se manifesta na
sociedade, participarão diversos fatores: ao lado de
um elemento material (multiplicidade
225
de indivíduos) com a estrutura organizacional que o
acompanha, haverá um elemento imaterial constituído
pela opinião social de que aquele grupo, seja qual for
seu tamanho, integra uma comunidade que deve ser
qualificada de religiosa.
[DOMINKO BARILLARO]
Conflito.
I. PARA UMA DEFINIÇÃO DO CONCEITO E DE SEUS
COMPONENTES. — Existe um acordo sobre o fato de
que o Conflito é uma forma de interação entre
indivíduos, grupos, organizações e coletividades que
implica choques para o acesso e a distribuição de
recursos escassos. Esta proposição, porém, suscita
imediatamente diferenciações e divergências atinentes
à maior parte dos problemas ligados ao conceito de
Conflito e à sua utilização. Neste estudo, antes de
tudo, não se falará de Conflitos entre indivíduos em
sentido psicológico, mas se focalizará o Conflito
social e o Conflito político (de que o Conflito
internacional pode ser considerado uma importante
categoria (v. GUERRA).
Obviamente o Conflito, é apenas uma das possíveis
formas de interação entre indivíduos, grupos,
organizações e coletividades. Uma outra possível
forma de interação é a cooperação. Qualquer grupo
social, qualquer sociedade histórica pode ser definida
em qualquer momento de acordo com as formas de
Conflito e de cooperação entre os diversos atores que
nela surgem. Mas só uma perspectiva deste tipo
introduz já diferenciações relevantes entre os autores
que se ocuparam da análise do Conflito, como
veremos.
Antes de abordar essa problemática, é oportuno
analisar os componentes do Conflito. Dissemos que
seu objetivo é o controle sobre os recursos escassos.
Prevalentemente estes recursos são identificados no
poder, na riqueza e no prestígio. É claro que, de
acordo com os tipos e os âmbitos do Conflito, poderão
ser identificados outros recursos novos ou mais
específicos. Por exemplo, nos casos de Conflitos
internacionais, um importante recurso será o território;
nos casos de Conflitos políticos, o recurso mais
ambicionado será o controle dos cargos em
competição; no caso de Conflitos industriais, como
salienta Dah-rendorf, objeto do Conflito e, portanto,
recurso em jogo serão as relações de autoridade e de
comando. A estas anotações se acresce que, enquanto
alguns recursos podem ser procurados como fins em
si mesmos, outros recursos podem
226
CONFLITO
servir para melhorar as posições em vista de novos
prováveis Conflitos.
Os Conflitos — como se disse — podem acontecer
entre
indivíduos,
grupos,
organizações
e
coletividades.
Naturalmente
existem
também
Conflitos que contrapõem indivíduos a organizações
(um Conflito pela democracia interna no partido entre
um discordante e os dirigentes), grupos a
coletividades (um Conflito entre uma minoria étnica e
o Estado), entre organizações e coletividades
(Conflitos entre a burocracia e o Governo como
representante da coletividade). Existem então,
diversos níveis nos quais podem ser situados os
Conflitos e seus diversos tipos, de modo que seria
possível centrar somente a atenção sobre os Conflitos
de classe (esquecendo os conflitos étnicos) de um lado
ou sobre os conflitos internacionais (esquecendo os
Conflitos políticos internos dos Estados, como os
contrastes entre maioria e oposição ou as guerras
civis) do outro lado.
Os vários tipos de Conflitos podem ser distintos
entre eles com base em algumas características
objetivas: dimensões, intensidade, objetivos. Quanto à
dimensão, o indicador utilizado será constituído pelo
número dos participantes, quer absoluto, quer relativo
à representação dos participantes potenciais (por
exemplo, uma greve na qual participam todos os
trabalhadores das empresas envolvidas). A intensidade
poderá ser avaliada com base no grau de envolvimento
dos participantes, na sua disponibilidade a resistir até
o fim (perseguindo os chamados fins não negociáveis)
ou a entrar em tratativas apenas negociáveis. A
violência não é um componente da intensidade; ela, de
fato, não mede o grau de envolvimento; mas assinala a
inexistência, a inadequação, a ruptura de normas
aceitas por ambas as partes e de regras do jogo
(obviamente, no caso de conflitos internacionais o
assunto é diferente, mesmo quando nos encontramos
perante a violência "controlada", como na tentativa de
codificar até as várias possibilidades de uma guerra
atômica). A violência pode ser considerada um
instrumento utilizável num Conflito social ou político,
mas não o único e nem necessariamente o mais eficaz.
Distinguir os Conflitos com base nos objetivos não
é fácil, se não se faz referência a uma verdadeira
teoria que atualmente não existe. É possível
compreender e analisar os objetivos dos Conflitos
somente na base de um conhecimento mais profundo
da sociedade concreta em que os vários Conflitos
emergem e se manifestam. Portanto, a distinção
habitual entre Conflitos que têm objetivos de
mudanças no sistema e os que se propõem mudanças
do sistema é substancialmente insuficiente. Nada
impede, de fato, que uma série de
mudanças no sistema provoque uma transformação do
sistema; nem que tentativas de mudanças do sistema
acabem por cooperar para reforçar e melhorar o
sistema que se visava destruir, derrubar ou
transformar estruturalmente. Analisemos, portanto, as
necessárias teorias do Conflito e da mudança social.
II. INTERPRETAÇÕES DOS CONFLITOS SOCIAIS
POLÍTICOS.
— Sociólogos e politólogos
E
se
questionaram seriamente sobre o Conflito social e, de
acordo com suas teorias implícitas ou explícitas,
forneceram interpretações diferentes. O continuum
parte daqueles que vêem qualquer grupo social,
qualquer sociedade e qualquer organização como algo
de harmônico e de equilibrado; harmonia e equilíbrio
constituiriam o estado normal (Comte, Spencer,
Pareto, Durkheim, e entre os contemporâneos, Talcott
Parsons). Todo o Conflito, então, é considerado uma
perturbação; mas não é somente isso; já que o
equilíbrio e uma relação harmônica entre os vários
componentes da sociedade constituem o estado
normal, as causas do Conflito são meta-sociais, isto é,
devem ser encontradas fora da própria sociedade, e o
Conflito é um mal que deve ser reprimido e eliminado.
O Conflito é uma patologia social.
Na posição oposta ao "continuum" estão Marx,
Sorel, John Stuart Mill, Simmel e entre os
contemporâneos Dahrendorf e Touraine, que
consideram qualquer grupo ou sistema social como
constantemente marcados por Conflitos porque em
nenhuma sociedade a harmonia ou o equilíbrio foram
normais. Antes, são exatamente a desar-monia e o
desequilíbrio que constituem a norma e isto é um bem
para a sociedade. Através dos Conflitos surgem as
mudanças e se realizam os melhoramentos. Conflito é
vitalidade. Naturalmente, uma clara dicotomia não
pode fazer esquecer que alguns autores não podem ser
simplesmente classificados entre uns ou outros, como
Kant, Hegel ou Max Weber, que analisaram e
identificaram quer as condições da ordem ou do
movimento, quer os fatores que levam à harmonia
como os que produzem os Conflitos.
Na posição intermediária se encontram também
aqueles estudiosos — e são muitos — que aderem,
numa forma ou noutra, à metodologia funciona-Iista.
É indicativa a maneira como eles se interessaram pela
problemática dos Conflitos e como chegaram a
considerá-los como o produto sistemático das
estruturas sociais. Apesar disso, a metodologia destes
autores os conduziu, na melhor das hipóteses, a
considerar os Conflitos como algo que traz mal-estar
para o funcionamento de um sistema, isto é em
síntese, uma disfunção. Para os estudiosos
funcionalistas mais atentos,
CONFLITO
como Robert Merton, o Conflito é disfuncional em
dois sentidos: é produto do não ou do mau
funcionamento de um sistema social e produz por sua
vez obstáculos e problemas, strains and síresses no
funcionamento do sistema.
Não é preciso acrescentar muita coisa a quanto foi
escrito pelos estudiosos da harmonia e do equilíbrio
social.
Dahrendorf
(1971:256-57)
resumiu
lucidamente as posições destes em quatro hipóteses:
1) toda
a
sociedade
é
uma
estrutura
("relativamente") estável e duradoura de elementos
(hipótese da estabilidade);
2) toda a sociedade é uma estrutura bem
equilibrada de elementos (hipótese do equilíbrio);
3) todo o elemento de uma sociedade tem uma
função, isto é, contribui para o funcionamento dela
(hipótese da funcionalidade);
4) toda a sociedade se conserva graças ao
consenso de todos seus membros em determinados
valores comuns (hipótese do consenso),
Os expoentes de uma visão conflitual da vida social
se baseiam habitualmente em duas correntes de
pensamento: de um lado, a corrente marxista, do
outro, a corrente liberal descendente de John Stuart
Mill. No centro da reflexão marxista está um tipo
particular e notório de Conflito: a luta de classes ("A
história de toda a sociedade que existiu até o presente
é história de luta de classes", do Manifesto do partido
comunista, 1948). Mas, paradoxalmente, a concepção
marxista é menos "conflitual" do que se pensa. Se, de
fato, é verdade que a luta de classes é a principal força
motriz da história e que a luta ( = Conflito) entre
burguesia e proletariado é a grande alavanca da
mudança social, Marx concebe este Conflito como o
Conflito para acabar com todos os Conflitos. Abolida
a divisão entre as classes, o Conflito,
conseqüentemente, acabará.
Embora nem todos aqueles que se consideram
"liberais" e descendentes de John Stuart Mill
consigam manter-se fiéis a uma concepção conflitual
da sociedade, é fora de dúvida que é entre os
sociólogos e politólogos fautores de uma concepção
semelhante (às vezes acompanhada por uma revisão
das teorias marxistas) que se encontram as
contribuições mais importantes para a análise dos
Conflitos sociais e políticos (e também internacionais)
que não privilegiam acriticamente as bases
econômicas dos Conflitos e que não levam ou não têm
uma visão teleológica (os conflitos como força para
realizar um sistema social definido antecipadamente).
É ainda Dahrendorf que formula as hipóteses com
base na teoria alternativa acima mencionada,
227
isto é, a teoria da coerção da integração social
(1917:257):
1) toda a sociedade e cada um de seus elementos
estão sujeitos, em qualquer período, a um processo de
mudança (hipótese da historicidade);
2) toda a sociedade é uma estrutura em si
contraditória e explosiva de elementos (hipótese da
explosividade);
3) todo o elemento de uma sociedade contribui
para a mudança da mesma (hipótese da
disfuncionalidade ou produtividade);
4) toda a sociedade se conserva mediante a
coerção exercida por alguns de seus membros sobre
outros membros (hipótese da constríção).
Em aberta polêmica com as interpretações
funcionais e com Parsons e seus discípulos,
Dahrendorf daí conclui que "uma teoria aceitável do
Conflito social pode ser criada somente se assumimos
como plataforma a teoria da coerção da integração
social" (1971:258). Em polêmicas igualmente
explícitas com a maior parte das interpretações de
origem marxista e com algumas formulações do
próprio Marx, que deixam entender um conflito com
raízes de natureza econômica, Dahrendorf afirma
drasticamente que "Conflito de classe indica qualquer
conflito de grupo derivado da estrutura de autoridades
de associações coordenadas por normas imperativas e
relativo a elas" (1963:413). Ele, portanto, coloca no
centro do Conflito de classes o problema das relações
de autoridade, de subordinação e de superorde-nação.
Dessa forma tenta oferecer uma explicação para a
persistência do Conflito de classes também nas
sociedades pós-industriais (ou caracterizadas como
tais), nas quais os Conflitos sobre a distribuição dos
recursos parecem (pareciam) se ter atenuado. Esta
observação conduz à análise de causas e
conseqüências do Conflito social.
III. CAUSAS E CONSEQÜÊNCIAS DO CONFLITO. —
Para efeito de clareza é oportuno fazer novamente
referência a Dahrendorf a fim de definir as causas dos
Conflitos:
"todas
as
sociedades
produzem
constantemente em si antagonismos que não nascem
casualmente nem podem ser arbitrariamente
eliminados" (1976:239). Embora dentro de um quadro
teórico diferente, à mesma conclusão chega Touraine
(1975) que sublinha a importância das tensões, dos
desequilíbrios, dos contrastes entre os diversos níveis
da realidade social. Ambos os autores acentuam a
necessidade de analisar, para compreendê-los, os
conflitos no âmbito de sociedades históricas.
O aspecto importante é que é rejeitada qualquer
causa exógena, meta-social do Conflito. O mesmo
228
CONFLITO
desenvolvimento técnico, às vezes considerado motor
relevante do Conflito social, é considerado causa
marginal. Somente se explorado pelas forças em
campo, pelos autores sociais e se inserido no contexto
social, o desenvolvimento técnico pode ser causa de
Conflitos. Para compreender, porém, o Conflito que
daí decorre, será, contudo, indispensável focalizar a
configuração da sociedade.
Num sentido bem definido, portanto, não existem
causas específicas do Conflito, nem do Conflito de
classes. De fato, todo Conflito é ínsito na mesma
configuração da sociedade, do sistema político, das
relações internacionais. Ele resulta em elemento
ineliminável que conduz à mudança social, política,
internacional. Ineliminável a longo prazo, porque a
curto e a médio prazo, o Conflito pode ser sufocado
ou desviado. É nesta fase que intervém os
instrumentos políticos através dos quais os sistemas
contemporâneos procuram abrandar o impacto dos
Conflitos sobre suas estruturas.
Partindo de uma determinada configuração social,
em
presença
de
determinados
Conflitos,
condicionados em larga medida pelos próprios
sistemas sociais, se produz uma situação na qual os
atores têm uma certa discricionariedade em seus
comportamentos quer no modo de ampliar o número
daqueles que estão envolvidos ou de reduzi-lo quer no
modo de aumentar a intensidade do conflito ou de
moderá-lo quer no modo de institucionalizar o
Conflito ou de mantê-lo fora e além das regras
precisas e aceitas por todos.
Um conflito social e político pode ser suprimido,
isto é, bloqueado em sua expressão pela força,
coercitivamente, como é o caso de muitos sistemas
autoritários e totalitários, exceto o caso em que se
reapresente com redobrada intensidade num segundo
tempo. A supressão dos conflitos é, contudo,
relativamente rara. Assim como relativamente rara é a
plena resolução dos Conflitos, isto é, a eliminação das
causas, das tensões, dos contrastes que originaram os
Conflitos (quase por definição um Conflito social não
pode ser "resolvido").
O processo ou a tentativa mais freqüente é o de
proceder à regulamentação dos Conflitos, isto é, à
formulação de regras aceitas pelos participantes que
estabelecem determinados limites aos Conflitos. A
tentativa consiste não em pôr fim aos Conflitos mas
em regulamentar suas formas de modo que suas
manifestações sejam menos des-trutíveis para todos os
atores envolvidos. Ao mesmo tempo a regulamentação
dos Conflitos deve garantir o respeito das conquistas
alcançadas por alguns atores e a possibilidade para os
outros atores de entrar novamente em Conflito. O
ponto crucial é que as regras devem ser aceitas
por todos os participantes e, se mudadas, devem ser
mudadas por recíproco acordo. Quando um Conflito
se desenvolve segundo regras aceitas, sancionadas e
observadas, há sua institucionalização.
A real ou presumida atenuação do Conflito de
classes deve-se, em parte, à recíproca aceitação dos
atores em campo e, em parte, à consciência de que,
não podendo proceder à eliminação da parte contrária,
o procedimento melhor consiste na estipulação e na
observância de regras explícitas e precisas. O mesmo
discurso vale para o Conflito político: uma vez
esclarecido que os custos da destruição das minorias e
das oposi-ções por parte da:, maiorias e dos Governos
são demasiado altos, as vantagens extraídas de regras
explícitas para a gestão do poder, para a expressão das
divergências, para a rotatividade e a troca nos cargos
são o passo sucessivo que institucionaliza a
democracia política. No decorrer do processo se
apresenta também a possibilidade de expressar os
Conflitos políticos de maneira produtiva, canalizandoos dentro de estruturas apropriadas e sem deixá-los
explodir improvisa-damente e sem saídas previsíveis.
IV. O FUTURO DO CONFLITO. — As sociedades
organizadas procuram diluir o Conflito, canalizá-lo
dentro de formas previsíveis, submetê-lo a regras
precisas e explícitas, contê-lo e, às vezes, orientar para
o sentido preestabelecido o potencial de mudança.
Talvez os dois fenômenos mais relevantes das
sociedades, que somente por brevidade e comodidade
podem ser definidos de pós-industriais, são, de um
lado, o declínio da intensidade e, em geral, uma
melhor regulamentação do Conflito de classes (que,
prescindindo das razões de Dahrendorf, se apresenta
com conotações bem diferentes daquelas que foram
focalizadas por Marx) e, de outro lado, o aparecimento
de novos Conflitos cujos veículos nas sociedades pósindustriais têm sido os movimentos coletivos e sociais
(v. MOVIMENTOS SOCIAIS).
A ligação entre Conflitos e mudanças, quer na
esfera social quer na esfera política e internacional, é
clara e indiscutível. Naturalmente, daí não se segue
absolutamente que todas as mudanças decorrentes dos
Conflitos
tenham
sinal
positivo,
indiquem
melhoramentos e produzam maior adesão aos valores
da liberdade, da justiça e da igualdade. Todavia, onde
os Conflitos são suprimidos ou desviados ou não
chegam a se realizar, a sociedade estagna e enfraquece
e sua decadência se torna inevitável. Sem precisar
concordar plenamente com a conclusão de
Dahrendorf, baseada no iluminismo, segundo a qual
"no Conflito se esconde o germe criativo de toda a
sociedade e
CONFLITO
a possibilidade da liberdade, mas ao mesmo tempo a
exigência de um domínio e controle racional das
coisas humanas" (1971: 280), fica claro que as
sociedades conflituais sabem acionar mecanismos de
adaptação, da auto-regulagem e de mudança de que as
sociedades consideradas consensuais (com consenso
conformista ou coacto) são carentes, carência que é
gravemente prejudicial para elas.
[GIANFRANCO PASQUINO]
V. O CONFLITO INDUSTRIAL. ALGUNS
RESULTADOS DAS PESQUISAS EMPÍRICAS. —
Na casuística dos Conflitos adquire uma importância
particular, no quadro da moderna civilização
industrial, o Conflito industrial ao qual se dedicam os
parágrafos finais do presente verbete.
A experiência mostra que o Conflito, embora
constitua uma das formas fundamentais das relações
sociais, nem sempre está em ato, como também não
necessariamente se desenvolverá abertamente
naquelas situações que dentro de uma visão ingênua
aparentam um potencial mais conflitual.
Uma das questões mais importantes que está no
centro da reflexão teórica e da pesquisa empírica no
âmbito das ciências sociais diz respeito à identificação
das condições em presença das quais se passa de uma
situação de Conflito latente para uma de Conflito
manifesto (problema análogo à não solucionada
questão marxista da passagem de classe em si para a
classe por si).
Para que se tenha Conflito aberto e manifesto, cuja
forma principal é a greve (v. GREVE), é necessário
antes de tudo que no grupo de trabalhadores se tenha
estabelecida alguma forma de organização. Quer se
trate de um recurso orga-nizativo estável (sindicato)
quer da presença de uma liderança natural ou
carismática interna ao grupo, os estudos empíricos
sobre casos de greve puseram claramente a
necessidade de sua preexistência, por ocasião da
manifestação de conflitos abertos. A greve é, então,
um Conflito organizado.
Por outra parte, as formas de Conflito organizado
não esgotam todas as manifestações conflituais no
trabalho.
Elevada
rotatividade,
absen-teísmo,
sabotagem, indisciplina, todos estes comportamentos
considerados freqüentemente como "desafeição ao
trabalho" constituem formas, embora freqüentemente
ambivalentes, de Conflito individual ou não
organizado (Hyman, 1972).
Baseando-se nas conclusões de várias pesquisas,
parece poder sustentar-se que Conflitos organizados e
Conflitos não organizados têm funções alternativas.
Assim Knowles (1952) afirma que,
229
no caso dos mineiros por ele estudados, greves e
absenteísmo aparecem "intercambiáveis". Tur-ner
(1967), no estudo sobre as empresas automobilísticas,
observa que nos lugares onde os mais combativos
líderes sindicais se demitiram, se registrou uma
diminuição de greves, mas um aumento de
absenteísmo, de roiatividade e de acidentes. Pelo
contrário, em outros casos se destacou que a uma
redução das precedentes taxas normais de
rotatividade, devida à deterioração do mercado de
trabalho, corresponde uma improvisada onda de
Conflito organizado (Hyman, 1970).
Uma diferença fundamental entre Conflitos
organizados e Conflitos não organizados (individuais)
consiste no fato de que, no primeiro caso, a
insatisfação poderá ser traduzida em objetivos
reivindicáveis e negociáveis e poderá, portanto, ser
composta, enquanto que, no segundo caso, a situação
conflitual não desemboca em negociações. Para que a
mediação de negociação (v. CONTRATAÇÃO COLETIVA)
possa ter lugar é necessário em geral que exista um
agente reconhecido como representante do grupo de
trabalhadores (v. ORGANIZAÇÕES SINDICAIS).
VI. A TEORIA DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONFLITO
INDUSTRIAL. — Durante os anos 50, perante o
desenvolvimento da contratação coletiva em todos os
países industrializados do Ocidente e perante uma
tendência de diminuição da intensidade do Conflito
industrial organizado, foi elaborada por diversos
estudiosos pertencentes a tradições de pensamento
também não homogêneas (Karnhauser, Dubin, Ross,
Kerr, Dunlop, Coser, Dahrendorf, etc.) uma teoria
sobre a institucionalização do Conflito nos países
industriais.
Institucionalizar o Conflito significa que, através da
definição de normas e regras aceitas pelas partes que
se contrapõem, normas que habitualmente se
traduzem na prática de contratação coletiva, o
potencial antagenístico não será voltado para a
tentativa de destruir o outro, mas para o esforço de
obter do outro o maior número possível de
concessões.
Segundo alguns autores, o Conflito, se
institucionalizado, de fenômeno destruidor se toma
"parte integrante do modo de funcionar quotidiano da
sociedade", a partir do momento em que ele
desempenha as funções de "tornar explícitas as razões
que dividem os grupos que se contrapõem", de "pôr
em claro as reivindicações, expondo-as às pressões da
opinião pública e ao controle social", de "apressar
uma rápida solução das controvérsias", de "concorrer
para estabilizar a estrutura social, fazendo emergir a
identidade dos grupos detentores de poder nos pontos
230
CONFORMISMO
estratégicos da sociedade" (Kornhauser, Dubin, Ross,
1954, 16-7). O Conflito, então, não é eliminado, mas
canalizado e transformado em fator de estabilização.
Outros autores chegam, até, a prospectar um
provável desaparecimento da necessidade de recorrer
ao Conflito baseando-se no andamento decrescente da
conflitualidade industrial observada em alguns países
(Ross e Hartman, 1960). De resto, parece bastante
plausível imaginar que quanto mais os sindicatos são
reconhecidos, tanto menos lhes será necessário fazer
uso do Conflito, como meio tático de pressão para
conseguir benefícios das partes contrárias.
Vil. LIMITES DA TEORIA DA INSTITUCIONALIZAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO RECENTES. — O Ciclo
imprevisto de lutas operárias que interessou muitos
países industriais do Ocidente entre o fim dos anos 60
e o início dos anos 70 colocou em crise a tese de uma
progressiva diminuição do conflito. Assim como não
parece ter sido confirmada a hipótese de Dahrendorf
(1959) sobre uma tendência ao isolamento do Conflito
industrial e a sua separação da esfera política, do
momento em que o andamento das relações industriais
nos últimos dois decênios indicam mais o contrário:
isto é, o envolvimento dos poderes públicos na solução
dos conflitos de trabalho e o envolvimento dos
sindicatos nas opções negativas à política econômica
dos Governos. O surgimento, enfim, de conflitos não
completamente controlados pelos sindicatos, indicou
que a regulação do Conflito não acontece uma- vez por
todos, isto é, não tem uma evolução unilinear.
Recentemente foi proposta uma teoria mais complexa
sobre os efeitos quer da estabilização das relações
industriais e, portanto, da contenção do Conflito, quer
da desestabilização e, portanto, de instigação para a
reativação do conflito, que decorrem da ação sindical
(Pizzorno, 1977). Se é verdade, como afirmaram os
teóricos da institucionalização do Conflito, que um
sindicato quanto mais goza do apoio da base e do
reconhecimento e da aceitação das partes contrárias,
tanto mais tenderá a moderar e a conter o Conflito em
troca de vantagens, também é verdade que, se
mudarem aquelas condições, mudarão também as
bases para o cálculo das conveniências. Em caso de
perda do consenso de base ou de partes dessa ou de
diminuição do reconhecimento das empresas ou dos
Governos, poderá aparecer mais conveniente uma
linha de intensificação do Conflito e de intransigência
reivindicativa em relação a uma linha de moderação. A
tendência à desestabilização da ordem das relações
industriais anteriores prevalecerá até que o
refortalecimento
das relações de representação de base, o maior
reconhecimento por parte das empresas, um ul-terior
envolvimento no mercado político favorecerem uma
nova estabilização do sistema. Mas isto não significa
que o novo equilíbrio será mais firme do que o
anterior.
[IDA RIGALIA]
BIBLIOGRAFIA - Sul conflitto in generale: P. M.
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industrial conflict. Wiley. New York 1960; H. A.
TURNER. G. CLACK e G ROBERTS. Labour relations in
the motor industry, Allen and Unwin. London 1967
Conformismo.
I. ALGUNS TIPOS DE CONFORMISMO. — O
Conformismo pode ser convenientemente definido
como a aceitação passiva das idéias, das normas, dos
valores ou dos comportamentos da maioria do grupo a
que pertencem e/ou o alinhamento passivo às opiniões
e às diretrizes da autoridade oficial quer política quer
religiosa quer de outra natureza, à qual se está
submetido. A análise empírica mais aproximada e
pertinente do
CONFORMISMO
Conformismo assim entendido, ou melhor, de alguns
tipos de Conformismo, foi realizada, no âmbito da
psicologia social; tanto que uma breve exposição de
alguns entre os mais eficazes desses estudos será útil
para uma compreensão mais direta da natureza e da
problemática do Conformismo.
a) Alinhamento ao juízo da maioria. Trata-se de
estudos voltados para medir a força da pressão de
grupo sobre o juízo individual. O experimento mais
conhecido é o que foi introduzido por S. Asch em
1951. Submete-se ao julgamento de grupos de sete ou
nove pessoas um par de cartões brancos; sobre um
deles é traçada uma linha enquanto que no outro são
traçadas três linhas de comprimento diferente, das
quais uma igual à linha do primeiro cartão. O
experimentador chama uma pessoa de cada vez,'do
grupo experimental, pedindo publicamente a cada uma
delas que indique a linha do segundo cartão igual à do
primeiro. Na realidade, porém, todos os membros do
grupo experimental com exceção de um (o sujeito
"ignaro") entraram em acordo precedentemente com o
experimentador no sentido de dar respostas erradas a
determinadas questões. Além disso o grupo está
disposto de tal forma que o sujeito "ignaro" responda
por último.
Qual foi o resultado destes experimentos de Asch?
37% dos juízos expressados pelos sujeitos "ignaros"
resultou errado, coincidindo com o juízo proposital e
unanimemente errado dos outros membros do grupo.
Portanto, em um número elevado de casos, o sujeito
prefere alinhar-se ao juízo comum dos outros
membros do grupo, mesmo quando lhe parece errado
(como de fato foi demonstrado por sucessivas
entrevistas) e também na presença de uma pressão
somente implícita e indireta. Outros estudos
sucessivos do mesmo tipo, mas modificados em
diversos detalhes ou na organização complexiva do
experimento, como especialmente os de R. S.
Crutchfield, detectaram um grau de Conformismo (em
termos de alinhamento passivo ao juízo do grupo) não
inferior ao encontrado por Asch. E quando o juízo
solicitado se refere a termos mais difíceis e complexos
do que o adotado por Asch, o grau de Conformismo
tende a crescer ulteriormente.
b) Submissão à autoridade. A obediência
conformística às diretrizes da autoridade foi estudada
especialmente através de um tipo de experimento
introduzido por S. Milgram em 1965. Duas pessoas
foram convidadas ao laboratório de Psicologia com o
pretexto de fazer parte de um estudo sobre "a memória
e a aprendizagem''. A uma (o sujeito "ignaro") foi
confiado o papel de "professor"; a outra (que está de
acordo com
231
o experimentador) o de "aluno". O aluno foi
conduzido a uma sala onde lhe foram atadas as mãos e
lhe foi fixado um eletrodo no pulso. Por sua vez o
professor, após ter observado o aluno amarrado no seu
lugar, foi conduzido para outra sala e mandado sentar
perante um enorme gerador de corrente, em que se
destacavam trinta interruptores em fila, graduados de
15 a 450 volts e acompanhados de escritas
explicativas que iam de "choque leve" a "choque
perigoso". O aluno tinha que decorar uma lista de
associações verbais e o professor, na outra sala, o
submetia ao teste de aprendizagem. Quando o aluno
respondia corretamente às perguntas do professor, este
último prosseguia com as perguntas sucessivas;
quando porém, o aluno errava, o professor, de acordo
com as instruções recebidas pelo experimentador,
tinha que ministrar ao aluno um choque elétrico cada
vez mais intenso (15, 30, 45, etc. volts): choque que
naturalmente, sem o sujeito "ignaro" o saber, o aluno
não recebia.
Em que grau os "professores" se dispuseram a
infligir aos "alunos" uma punição dolorosa e cada vez
mais perigosa, enquanto que obedecessem à
autoridade do experimentador? Mais de 60% dos
sujeitos "ignaros" apertaram até o último botão (450
volts), quer quando não escutavam nenhuma reação
do aluno na outra sala, quer quando este último emitia
gemidos e expressões de intensidade crescente até
chegar a um estertor dilacerante. Portanto, em um
número elevadíssimo de casos o sujeito prefere se
submeter passivamente e sem limites às diretrizes da
autoridade, também quando elas contrastam numa
forma muito grave com o seu juízo pessoal, como de
fato foi demonstrado por sucessivas entrevistas com
sujeitos "ignaros".
Com base nestes dois casos, a natureza do
Conformismo parece, então, consistir na submissão
passiva dos indivíduos à pressão social lateral,
exercida pelos outros membros do grupo, e/ou à
influência social vertical, exercida por uma figura de
autoridade. No primeiro caso, a pressão lateral é
somente implícita; no segundo, a influência vertical é
explícita; mas o que importa é que em ambos os casos
temos uma submissão passiva. O caráter passivo da
submissão reside no fato de que ela se verifica ou é
aumentada sem limites pura e simplesmente porque a
maioria é maioria e/ou a autoridade é autoridade,
independentemente de uma própria adesão pessoal ao
conteúdo da opinião ou das diretrizes.
Nesses dois tipos de experimento, o caráter passivo
da submissão é demonstrado de modo evidente pelo
contraste entre o próprio juízo e o da maioria, com
cujo juízo o indivíduo se alinha, e pelo contraste entre
uma obediência
232
CONFORMISMO
racional à autoridade e a obediência "exasperada" de
muitos dos sujeitos estudados. Esse contraste é claro
no experimento de Asch, no qual o indivíduo prefere
expressar em juízo que tem consciência (pelo menos
inicialmente) de estar errado, conquanto que se
conforme com a opinião do grupo. E é claro também
no experimento de Milgram, embora aqui ocorra um
discurso mais articulado.
Lembre-se, a respeito, que quando uma autoridade
é aceita como legítima, aqueles que a aceitam como
tal tendem a obedecer às suas diretrizes de forma
incondicionada: isto é, independentemente da própria
avaliação do conteúdo de cada diretriz (v.
AUTORIDADE). Esta aceitação de pacote fechado, por
assim dizer, da autoridade é todavia limitada pela
condição de que o detentor da autoridade se mantenha
dentro da esfera de atividades em relação às quais a
autoridade foi aceita: aquela que poderíamos chamar,
sensu lato, a "competência" da autoridade. Ora, o
caráter conformista da obediência à autoridade
estudada por Milgram consiste exatamente nisto: na
ampliação da esfera de aceitação da autoridade além
de todo o limite racional. O experimento mostra, nas
palavras de Milgram, "a vontade exasperada, por parte
de pessoas adultas, de chegar até o extremo grau de
obediência à autoridade''. Portanto, não no caráter
incondi-cionado da obediência, em si considerado, que
é um aspecto normal de toda relação de autoridade
legítima; mas nessa "exasperação" da obediência, isto
é, na ampliação além dos limites racionais da
"competência" da autoridade, deve ser procurada a
particular "passividade" da submissão à autoridade,
que faz do caso estudado por Milgram um exemplo
típico de Conformismo.
É preciso, todavia, notar-se que estes contrastes —
entre o juízo próprio e aquele ao qual a pessoa se
alinha, entre obediência racional e obediência
exasperada à autoridade — se de um lado servem nos
dois experimentos citados para demonstrar, de forma
particularmente evidente, a existência de uma atitude
conformística, do outro lado não constituem um
requisito geral e necessário do próprio Conformismo.
Há Conformismo também quando faltam um ou outro
de tais contrastes, desde que o indivíduo se submete ao
juízo da maioria ou às diretrizes da autoridade de
modo passivo. E naturalmente, não é necessário para
que haja Conformismo, que a submissão passiva
produza resultados "negativos" como aqueles que
caracterizam os dois experimentos mencionados: erro
de juízo, prejuízo de outras pessoas. Através do
Conformismo, o indivíduo pode adotar também juízos
corretos ou condutas úteis (e/ou que ele mesmo
julgaria tais, se se
submetesse a uma avaliação consciente). Mas,
exatamente porque as opiniões e as condutas são
adotadas de modo conformístico, a sua exatidão ou
inexatidão, sua utilidade ou nocividade independe
totalmente de uma avaliação do conformista.
II. UNIFORMIDADE, CONFORMIDADE, CONFORMISMO.
— Até agora foi proposta uma definição geral de
Conformismo e foi ilustrada através de dois tipos de
pesquisas experimentais de psicologia social. Agora
procurar-se-á esclarecer, em seus vários aspectos, o
conceito, mostrando as relações que existem entre
Conformismo, de um lado, e uniformidade e
conformidade, do outro.
A relação que intercorre entre Conformismo e
uniformidade é estreita e de grande importância
prática, e pode ser resumida nestes termos: o
Conformismo é um poderoso fator de uniformidade
social. Do ponto de vista dos efeitos sociais realizados
na forma mais direta, o Conformismo se traduz, de
fato, na uniformidade das idéias, dos valores e dos
comportamentos difundidos no âmbito de um
determinado grupo social. Quanto mais intensa é a
atitude conformística entre os membros de um
determinado grupo, mais alto é o grau de uniformidade
dos modelos de crenças e de comportamentos.
Exatamente ao seu efeito de uniformidade social
devem ser atribuídos os poucos casos nos quais a
expressão "Conformismo", que, de costume, tem uma
evidente conotação negativa, foi usada com uma
valoração mais ou menos moderadamente positiva. O
raciocínio aproximadamente é o seguinte: um certo
grau de uniformidade social, entendida como aceitação
generalizada dos valores e das praxes sociais
dominantes, é cimento insubstituível para o
funcionamento regular e para a persistência de todo
sistema social ou político concreto; e para a
manutenção dessa uniformidade social é útil e, talvez,
necessário algum grau de Conformismo.
De outro lado, considerando cada indivíduo, se
poderia dizer que ele, ao perseguir seus objetivos e
seus valores particulares, usa suas energias e sua
atenção de modo altamente seletivo; tanto que sua
disponibilidade e capacidade de empenho e valoração
pessoal diminuem ao se afastar paulatinamente de
suas esferas de interesse, até converter-se exatamente
numa disposição conformística, a qual por sua vez
contribui para a manutenção das uniformidades
sociais em cujo quadro ele pode continuar a exercer
suas atividades específicas.
Além disso, observe-se que o Conformismo não
pode ser simplesmente reduzido à uniformidade
social, nem esta pode ser reduzida àquela. De um
lado, a uniformidade produzida pelo
CONFORMISMO
Conformismo pode ser circunscrita a um grupo
limitado (por exemplo, um grupo étnico, religioso ou
comunitário) e converter-se numa específica
diversidade social no âmbito do grupo mais amplo de
que o primeiro é parte (por exemplo, a sociedade
política). De outro lado, nem sempre e nem toda a
uniformidade social é fruto do Conformismo. Em
alguns casos, atitudes e crenças comuns podem ser
originadas por opções autônomas de cada membro do
grupo, que adota aquelas atitudes ou crenças sem a
presença independentemente de pressões ou
influências sociais que forcem para a ortodoxia. Mais
freqüentemente a uniformidade social é realmente o
resultado da influência social, lateral ou vertical, mas
as atitudes e os comportamentos dos membros do
grupo, de acordo com essas influências, decorrem de
fontes diferentes da submissão passiva à maioria ou à
autoridade: por exemplo, de uma aceitação consciente
dos valores e das crenças objeto da influência. No
primeiro caso, a uniformidade é produzida por opções
autônomas de cada um, na ausência não só de uma sua
disposição conformística mas também de uma
conformidade subjetivamente entendida; no segundo
caso, é produzida por uma conformidade que não é,
porém, Conformismo.
De fato, se por conformidade se entende, em geral,
toda a forma de adequação de um agente à influência
de um outro, isto é, qualquer tipo de conduta
conforme a uma diretiva explícita ou implícita de
outras, então o Conformismo outra coisa não é senão
uma espécie do gênero conformidade. Os tipos de
conformidade diferentes do Conformismo são
numerosos. A conformidade motivada pelo temor de
uma sanção não é, de per si. Conformismo;
igualmente, não é Conformismo a conformidade
motivada pela promessa de uma recompensa. E não
são Conformismos todas as formas de conformidade
motivadas por uma crença favorável às diretrizes ou a
qualquer outro aspecto do poder. O Conformismo,
como submissão passiva e acrítica à maioria e à
autoridade, se contrapõe especialmente à adesão
espontânea, deliberada e consciente às diretrizes de
quem exerce influência. Em outros termos, o
Conformismo é uma forma de aquiescência, não de
consenso. O conformista segue as opiniões da maioria
ou faz próprias sem restrições as diretrizes da
autoridade, pelo simples fato de serem opiniões da
maioria ou diretrizes da autoridade. Ao contrário, no
caso do consenso, a opinião da maioria é adotada
porque se assume como próprio o seu conteúdo; e a
obediência às diretrizes da autoridade é motivada —
como foi visto acima — pela aceitação de sua
legitimidade no âmbito de uma dada esfera de ação.
233
Disto, porém, não se segue que o Conformismo
seja sempre e necessariamente um fenômeno exterior,
relacionado com as opiniões e os comportamentos em
público. Existe um Conformismo "externo", por
exemplo, quando um indivíduo aceita passivamente
uma dada opinião da maioria quando está em público,
mas discorda em privado. Existe, também, um
Conformismo "interno", quando um indivíduo aceita
passivamente uma dada opinião da maioria quer em
público quer em privado. O fato de que uma crença ou
um valor seja "interiorizado" pelo sujeito não exclui o
Conformismo, desde que a aceitação de crença ou do
valor seja passiva e acrítica. O Conformismo interno
não somente é possível, mas é um fenômeno de
grande importância prática nas relações sociais e
políticas. Diversas formas de Conformismo interno
foram detectadas nos estudos sobre os efeitos dos
meios de comunicação de massa. O Conformismo
interno é um conceito--chave em algumas importantes
interpretações da sociedade de massa; e ao
Conformismo interno podem ser reduzidas uma parte
das pesquisas psicossociais sobre a chamada
persuadibilidade, nas quais se empenhou de modo
particular C. I. Hovland e sua escola. A
"persuadibilidade", definida como sendo a disposição
de um sujeito a aceitar mensagens persuasivas, é uma
forma de Conformismo interno quando se traduz
numa espécie de "aquiescência à persuasão": quando o
sujeito está disposto a aceitar mensagens persuasivas
em geral ou mais freqüentemente aquelas emanadas
de determinadas fontes, não porque esteja de acordo
com o seu conteúdo ou com a argumentação
persuasiva, mas unicamente porque elas têm a forma
de mensagens persuasivas.
III. CONFORMISMO, PERSONALIDADE E SOCIEDADE.
— Foi mencionado que, no uso mais difundido, a
palavra "Conformismo" tem uma conotação negativa.
A avaliação negativa diz respeito normalmente à
própria natureza ou às conseqüências sociais do
Conformismo ou a ambos os aspectos. Por uma parte,
o assunto é que a submissão passiva e acrítica às
influências externas, que constitui a substância do
Conformismo, contrasta com a liberdade individual e
com o desenvolvimento da personalidade do
indivíduo: liberdade e desenvolvimento que exigem,
pelo contrário, independência de juízo e autonomia de
opção e de ação. Por outra parte, a verdade é que um
excesso de uniformidade social produzida de modo
passivo pelo Conformismo, pode destruir ou reduzir
ao mínimo a crítica e a criatividade e, dessa forma,
atrofiar ou enfraquecer gravemente as capacidades de
inovação e de mudança social e política.
234
CONFORMISMO
Mas seja qual for o resultado dessa avaliação, de
fato, o Conformismo é um fenômeno muito difundido
e generalizado tanto que aparece, de algum modo,
"natural". Poucos resultados das ciências sociais são
tão unívoca e repetidamente confirmados como os que
mostram a vulnerabilidade dos indivíduos perante a
influência do grupo e/ou da autoridade. De modo
particular, a submissão passiva às pressões laterais do
grupo é tão tenaz e poderosa que em certas condições,
como mostrou o psicólogo social Kurt Lewin parece
mais fácil e econômico mudar ou tentar mudar as
crenças e os comportamentos de um só membro do
grupo.
Pode-se então questionar: por que o Conformismo?
Quais as causas que permitem sua existência ou as
condições que favorecem seu surgimento? Não faltam
tentativas de explicação de conjunto, que apontam ora
o medo do isolamento, ora a procura da aprovação
social, ora o impulso para evitar conflitos abertos, ora
a exigência de não perturbar a própria pertinência ao
grupo como condição que facilita a consecução dos
próprios objetivos. Todos estes elementos de
explicação, que podem ser variadamente combinados
entre eles, esclarecem sem dúvida o fenômeno do
Conformismo, embora num sentido muito geral.
Outras pesquisas ou interpretações visam, mais
especificamente, identificar as variáveis psicológicas
relativas aos traços da personalidade dos indivíduos
que favorecem o Conformismo; ou determinar as
variáveis sociais relativas à colocação dos indivíduos
na sociedade ou à própria estrutura da sociedade, que
igualmente favorecem o Conformismo.
Quanto às indagações de tipo psicológico, lembrese que o alinhamento ao juízo da maioria (entendido
de acordo com os resultados dos experimentos de
Asch e de seus continuadores) resultou muito
declaradamente relacionado com alguns traços da
personalidade: uma franca integração psicológica e
afetiva, um baixo grau de inteligência, um baixo
autoconceito, insegurança e preocupação com a
aprovação dos outros além de rigidismo, dogmatismo
e autoritarismo. Quanto à submissão à autoridade
(entendida de acordo com o resultado dos
experimentos de Milgram), não existem dados
disponíveis acerca dos traços da personalidade que
favorecem essa submissão. Quanto à persuadibilidade,
se detectaram correlações, embora muito leves, em
alguns traços da personalidade também nos estudos de
Asch e Crutchfield: marcadamente com o baixo
autoconceito e uma forma mais incerta, com o
isolamento psicológico e afetivo e com o
autoritarismo. Deve-
se, porém, lembrar a respeito que somente uma parte
das formas de persuadibilidade pode ser reconduzida
ao conceito de Conformismo.
Entre as poucas indagações sociológicas relativas à
posição social dos indivíduos mais inclinados ao
Conformismo, lembre-se aquela de M. L. Kohn, o qual
sustenta que o Conformismo está mais difundido entre
as classes inferiores e menos difundido entre as classes
superiores e médias e atribui esta distribuição desigual
da atitude conformista à ação combinada da instrução
e da posição ocupada na atividade profissional: de um
lado, o baixo grau de instrução que é característico das
classes inferiores reduz a flexibilidade intelectual, a
amplitude das perspectivas e a capacidade de
raciocínio articulado; de outro lado, o caráter
subordinado e construtivo da atividade do trabalho,
próprio das classes inferiores, tende a embotar a
capacidade de juízo independente e de opção também
fora do ambiente de trabalho. Entre as indagações ou
interpretações que procuram relacionar um grau mais
ou menos elevado de disposição conformista com
determinados tipos de estrutura da sociedade, devem
ser lembrados especialmente aqueles que interpretam o
Conformismo, ou melhor, uma forma particularmente
intensa de Conformismo, como uma componente ou
uma conseqüência específica da "sociedade de massa".
A este tipo de aproximação podem ser referidos, entre
outros, o conceito de "homem-massa" de Ortega y
Gasset, o de "homem heterodirigido" de D. Riesman e
a noção de Conformismo como "fuga da liberdade" e
perda do próprio eu genuíno proposta por E. Fromm.
Mas para uma análise completa destas e outras
interpretações do Conformismo na sociedade de
massa, veja-se o verbete SOCIEDADE DE MASSA.
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[MARIO STOPPINO]
CONSELHOS OPERÁRIOS
Conscrição. — V. Forças Armadas.
235
política corrente, essa expressão não indica apenas a
pluralidade contemporânea de tais organismos, mas,
implicitamente, tende a acentuar o significado da
Conselhos Operários.
associação da noção de democracia "não delegada",
subjacente às características do conselho, e da junção
I. ORIGEM E SIGNIFICADOS DO TERMO. — Por produtiva própria dos operários, vindo por isso a
Conselhos operários se entendem, segundo o conotar um sistema de organização e/ou de
significado literal da expressão, os organismos representação, definido com base na distribuição e
representativos colegiais que reproduzem as concentração das forças de trabalho industrial nas
características formais do "conselho" como órgão de diversas unidades de produção (fábricas, repartições,
poder revolucionário, ou seja: a) referência a oficinas, grupos), capaz de permitir aos trabalhadores
coletividades concretas — neste caso os operários o direto exercício de um papel de direção, tanto no
ocupados nas diversas empresas que lhes determinam sistema econômico como no político.
o corpo eleitoral e a composição; b) formação baseada
É precisamente este significado metafórico — um
no princípio da delegação por parte de tais significado que resume genericamente o sentido de
coletividades, em geral a modo de mandato imperativo elaborações teóricas clássicas (cf. particularmente
e revogável; c) fusão, no âmbito dos seus poderes, das Estado e revolução de Lenin, assim como vários
funções legislativa e executiva. Levado em conta o escritos de Gramsci, R. Luxemburg, A. Pannekoek, K.
significado original da noção de "conselho" e a sua Korsch) — que explica o sucesso do termo no
composição operária, o termo refere-se, pois, em patrimônio ideal do movimento operário e, o que é
primeiro lugar, a um fenômeno histórico definido, que mais importante, as repetidas referências aos
coincide substancialmente com o ciclo de lutas Conselhos operários, tanto no contexto de contínuas
operárias iniciado em 1915-16 nos principais centros iniciativas de insubordinação operária, quanto na
industriais da Europa e transformado em aberto forma de processos de inovação institucional, como,
conflito político durante a crise revolucionária do sobretudo, o sistema de autogestão levado a efeito na
primeiro pós-guerra.
Iugoslávia e, só quanto às estruturas sindicais, a
A constituição específica dos Conselhos operários recente reorganização do sistema de representação a
remonta aos Sovietes, instituídos pela primeira vez nível de empresa, na Itália.
durante a revolução russa de 1905 e fortalecidos
depois na de 1917 (a palavra russa soviele significa
II. CONSELHOS OPERÁRIOS E CONSELHOS DOS
exatamente "conselho"), conquanto a expressão DELEGADOS DOS OPERARIOS. — Contudo, na noção
corrente derive da língua alemã (Arbei-terràle), onde genérica de Conselhos operários, acha-se implícita
apareceu como denominação própria dos organismos uma confusão fundamental, muitas vezes subestimada
formados na Alemanha no decorrer dos levantamentos pela literatura corrente, entre dois níveis distintos de
revolucionários de 1918-19, e a sua difusão coincida aparecimento dos conselhos no primeiro pós-guerra: a
com a expansão do movimento insurrecional aos fábrica e a comunidade urbana, ou entre Conselhos
demais países da área central da Europa (Hungria, operários de empresa (organismos colegiais eleitos no
Áustria, Tchecoslováquia). Em todo caso, já desde o âmbito de cada uma das empresas) e conselhos dos
início da década de vinte se fala de Conselhos delegados dos operários, ou conselhos centrais
operários para indicar genericamente várias iniciativas (assembléias eleitas exclusiva ou predominantemente
de organização operária realizadas em quase todos os pelos trabalhadores de várias empresas — em todo
países
envolvidos
no
conflito
mundial, caso, na época, tendiam a englobar também delegados
independentemente das denominações específicas que de outros grupos sociais como soldados, camponeses,
pudessem ter recebido em outros contextos etc, sem mudar por isso de denominação — no âmbito
lingüísticos nacionais: conselhos de fábrica na Itália, territorial de uma cidade industrial). Segundo o
comitês de oficina (work-shop committees) na esquema apresentado pelas revoluções russas de 1905
Inglaterra, etc.
e 1917 e pela revolução alemã de 1918-19, os dois
Este alargamento do significado denotativo do tipos de organismos coexistiam, às vezes a par, outras
termo corresponde também à sua progressiva fixação vezes integrados numa única estrutura de tipo
na acepção genericamente conotativa que o caracteriza piramidal, onde os vários conselhos de empresa eram
hoje e que se justifica quanto ao particular sentido a base predominante e os conselhos dos delegados dos
figurado permitido pela própria estrutura semântica da operários, o vértice. Daí a tendência a apresentar a
expressão Conselhos operários. Com efeito, na versão distinção entre eles em termos puramente
plural, que lhe define a abrangência significativa na morfológicos.
linguagem
236
CONSELHOS OPERÁRIOS
Contudo, se se examinarem todas as experiências
de conselhos deste período, tornar-se-á evidente que é
diversa a matriz dos dois níveis de organização. Por
um lado, os conselhos nasceram de um conjunto difuso
de iniciativas espontâneas de organização operária nos
lugares de trabalho, postas em movimento já a partiu
de 1915, em resposta a uma situação de insuficiência
e/ou de crise de legitimidade dos organismos de
representação sindical (fragmentação de um sindicato
ainda baseado na profissão e sua integração no sistema
do poder constituído, como aconteceu exatamente no
caso da "colaboração" sindical durante a guerra
mundial). Foi daí que derivou o princípio da
democracia das assembléias operárias e o sistema de
representação por meio de delegados de seção (v. a
formação dos shop-stewards committees na indústria
bélica inglesa em 1915 e das comissicmi interne
italianas, aliás surgidas já em 1906). Mas, por outro
lado, os conselhos têm sua origem nos movimentos
insurrecionais provocados pela crise política e
institucional subseqüente aos lances do conflito
mundial (queda dos Impérios Centrais e Revolução de
Fevereiro na Rússia), como meio de organização das
iniciativas revolucionárias e, ao mesmo tempo, como
sistema alternativo de representação democrática, em
continuidade com a tradição radical evocada na
história das revoluções européias, a que remonta
precisamente a origem do "conselho" como instituição
típica de democracia não delegada, expressão dos
interesses políticos e ideais de coletividades concretas
revoltadas contra a autoridade constituída (v. os
conselhos municipais da primeira fase da Revolução
Francesa de 1789 e, sobretudo, o conselho geral da
Co-mjna de Paris, 1871).
Nestas últimas situações, só então, os dois
momentos da organização dos conselhos acabaram por
se sobrepor, até se confundirem num único sistema de
diversos níveis de delegados, tendo por base a
empresa; nas demais, a organização manteve-se
circunscrita ao âmbito empresarial, mostrando com
isso que é justamente este o nível que determina o
denominador comum do chamado "movimento
consiliário"
do
primeiro
pós-guerra.
Se
acrescentarmos que todas as experiências sucessivas,
convencionalmente referidas ao modelo dos
conselhos, reproduziram aproximadamente o esquema
do primeiro processo acima esboçado, se
compreenderá por que é que a noção de Conselhos
operários é hoje indissociável da idéia de uma
instituição nos lugares de trabalho.
Todavia, importa salientar que, a este nível, o
princípio da representação por meio de delegados
assume um significado e uma especificidade diversos
dos que possui a nível territorial. No
contexto da proximidade espacial e da continuidade
temporal que caracterizam a coletividade operária de
uma fábrica, ele se traduz, de fato, mais num sistema
de organização dos trabalhadores do que num sistema
de representação (acabando o conjunto dos
trabalhadores de uma dada empresa por constituir a
"base" da organização, o conselho o "vértice" e os
delegados os "funcionários"). Neste sentido, enquanto
que as características formais do conselho
(imperatividade do mandato, fusão do poder legislativo
e executivo) são essenciais para definir o sentido da
alternativa institucional do sistema dos conselhos
territoriais dos delegados como organismos de
representação política que, à medida que se consolida
o "antipoder" que exprimem, assumem também
funções de governo, o caráter específico da
organização dos conselhos de fábrica está mais na
capacidade de envolver todos os trabalhadores
ocupados numa determinada empresa; não é por acaso
que a generalização do eleitorado ativo e passivo,
independentemente de critérios de filiação sindical,
tenha constituído muitas vezes o momento crucial da
sua formação. Esta diferença é posta em relevo pelas
próprias denominações desses organismos de fábrica
que, até 1918, não foram nunca designados com o
termo "conselho". Por outras palavras, se a
característica genérica da organização consiliária se
pode encontrar na imediação e difusão dos processos
decisórios em relação às coletividades que lhes
permitem a eficácia como efeito comum do sistema de
representação por delegação (v. DEMOCRACIA, VI), isso
depende, quanto aos seus dois níveis de ocorrência, de
características estruturais e responde a exigências
funcionais diversas, origem das complexas alternativas
que envolve a problemática dos Conselhos operários.
Como quer que seja, o significado mais relevante e
atual da noção de Conselhos operários está certamente
ligado ao sentido de sistema de organização operária
que esta instituição assume a nível de fábrica e que o
distingue claramente das outras formas históricas de
organização próprias do movimento operário (partido
e sindicato). Na realidade, os conselhos de fábrica,
mesmo não sendo associações voluntárias, expressam
um poder efetivo, decorrente da função social dos
operários como "produtores"; por isso possuem a
característica exclusiva de permitir a autonomia das
decisões que objetivam tal poder, ao contrário do
partido e do sindicato, cuja importância política é, em
larga medida, função da amplitude da própria
organização, que implica necessariamente uma
estrutura hierarquizada. Com isto se há de relacionar,
no plano da elaboração política, a repetida teorização
dos
CONSELHOS OPERÁRIOS
Conselhos operários como instrumento privilegiado da
ação operária, capaz de coordenar as lutas econômicas
e a iniciativa política; e, no plano fatual, a constante
ocorrência da organização dos conselhos em contextos
sociais e políticos diversos, mas todos eles
caracterizados pelo emergir de uma insubordinação
operária que, tanto pelo conteúdo das suas
reivindicações, como, sobretudo, por fatores externos,
adquire uma imediata relevância política. Exemplo
disso são os conselhos criados, mais ou menos no fim
do segundo conflito mundial, na Polônia,
Tchecoslováquia e Itália; as iniciativas ensaiadas
repetidamente, a partir dos anos 50, nos países
socialistas da Europa oriental; e as Comissiones
obreras espanholas durante o regime franquista.
III. DIMENSÃO GERENCIAL DA ORGANIZAÇÃO DOS
CONSELHOS DE FÁBRICA. — No plano funcional, o
aspecto mais relevante da descontinuidade entre o
período empresarial e o período territorial do
movimento consiliário do primeiro pós-guerra é o da
identificação do primeiro com uma ação operária
voltada para a reivindicação de objetivos gerenciais.
Este processo foi demonstrado em todas as situações,
mas tornou-se particularmente evidente nas
vicissitudes dos conselhos de fábrica italianos, que
atingiram o ponto culminante no episódio da ocupação
das fábricas em 1920, e, sob um outro aspecto, no
movimento consiliário da Alemanha, onde, depois do
insucesso das tentativas revolucionárias, os conselhos
de empresa continuaram a subsistir até ao seu
reconhecimento pela Constituição de Weimar, sob a
insígnia ideológica da "comunidade de trabalho". Hoje
existe a tendência a pôr a explicação de tal fenômeno
não só na gravíssima situação de crise econômica da
época, como também na particular composição da
classe operária de então, caracterizada pelo
predomínio de operários "de ofício", cuja autonomia
profissional e decisória lhes fortalecia a consciência de
produtores, muito mais em contraste com a autoridade
patronal dentro do sistema concreto da empresa do que
com o poder capitalista como mecanismo econômico
global. Tanto é assim que alguns autores viram nesta
orientação o motivo fundamental da própria formação
dos conselhos de empresa.
Em todo caso, a coincidência da função de
organização, específica do nível empresarial do
sistema consiliário, com objetivos gerenciais foi
aceita, em termos políticos, em duas perspectivas
diversas, que desde então continuaram a articular a
problemática do movimento operário até aos nossos
dias: a proposta "reformista" da co-geslão, ou seja, da
atribuição aos trabalhadores, por meio da organização
de delegados de seção, do direito
237
de tomar parte nas decisões relativas ao
funcionamento da empresa, para que fosse
ultrapassado o mero horizonte das reivindicações
salariais no quadro de uma nova ordem das relações
industriais; a proposta "revolucionária" do controle
operário, isto é, da reivindicação de um direito de
informação sobre elementos em que se baseiam as
decisões empresariais respeitantes à gestão técnica e
econômica da empresa, a fim de ampliar os objetivos
e radicalizar os termos do conflito social e permitir, ao
mesmo tempo, a preparação dos operários para o
futuro papel de gestores principais da economia (v.
origem do conceito gramsciano de "classe
hegemônica"). A convergência mais lógica de tal
perspectiva está na idéia da AUTOGESTÃO (V.) — de
cuja possibilidade de realização os conselhos de
empresa têm constituído condição e estímulo
essenciais — ou seja, da assunção direta, por parte das
coletividades dos trabalhadores das várias empresas,
das funções diretivas e, em conseqüência, das
decisões relativas ao destino da mais-valia produzida.
Esta idéia, já antecipada por alguns teóricos do
movimento consiliário no âmbito do debate sobre a
"socialização" da economia (v. especialmente K.
Korsch), foi aceita no início da década de 50 como
alternativa prática e ideal do sistema da planificação
centralizada e da identificação autoritária das
instâncias operárias com o Estado, próprias do regime
soviético. É neste quadro que se situa, além da
experiência iugoslava, uma difusão mais ampla da
problemática consiliária nos países da Europa oriental,
relativa a um sistema de organização nos lugares de
trabalho capaz de permitir uma liberalização do
sistema econômico e uma democratização do sistema
político que fossem compatíveis com o caráter
socialista do sistema (v. levantamentos operários de
Berlim em 1953, do "Outubro" húngaro e polonês em
1956, e as reivindicações apresentadas durante o
"novo curso" tchecoslovaco de 1968).
IV. Os
CONSELHOS OPERÁRIOS COMO INSTITUIÇÕES
— A revolução soviética configura a única
situação de institucionalização dos conselhos
operários depois da fase de "dualismo de poderes" em
que se traduzira a sua função de órgãos de
representação política e de Governo local. A
Constituição de 1918 organizou-os num sistema de
forma piramidal, de base territorial (distrito,
circunscrição governamental, república), com eleição
indireta das instâncias superiores (o eleitorado ativo e
passivo das instâncias inferiores limitava-se aos
trabalhadores "produtivos"), caracterizado pela fusão
dos poderes legislativo e executivo.
POLÍTICAS.
238
CONSELHOS OPERÁRIOS
Esta constituição, que constituiu o ponto de
referência do movimento revolucionário do primeiro
pós-guerra, partia de um pressuposto que parecia
resolver de modo definitivo o problema da
organização do Estado revolucionário: a aceitação dos
Conselhos operários como elemento portador de uma
reestruturação do sistema político que superaria a
distinção entre "econômico" e "político" e a sua
configuração
como
conjunto
de
aparelhos
administrados por políticos de profissão, típicas da
democracia parlamentar.
Contudo, esta concepção incluía os termos de um
contraste fundamental. Enquanto na perspectiva
leninista (independentemente dos acontecimentos da
guerra civil, que impuseram uma brusca reviravolta
centralizadora no sistema soviético, deixando a muitos
textos da constituição um valor puramente simbólico)
os Sovietes possuíam um significado mais pelas
classes cuja representação permitiam do que pelas
suas características formais (no fundo constituíam a
resposta prática ao problema da organização do
Estado socialista e da qualificação democrática da
"ditadura do proletariado"), para os teóricos de
"esquerda" do movimento consiliário (R. Luxemburg,
A. Panne-koek, H. Goerter) os Conselhos operários
tinham, pelo contrário, não o valor de instrumento do
processo revolucionário, mas o de fim da sua própria
realização, isto é, identificavam a condição exclusiva
do ordenamento socialista.
Para além do problema da diversa avaliação do
nível de desenvolvimento alcançado pelas "forças
produtivas" e da possibilidade de uma "transição"
imediata para o socialismo, esse contraste
corresponde, em termos formais, a uma diferente
concepção do próprio sistema dos Conselhos
operários. Para a primeira concepção tal sistema é
entendido apenas como um conjunto de organismos
territoriais cujo mecanismo de formação não tem
qualquer relação com as organizações análogas dos
lugares de trabalho; a segunda, pelo contrário,
estabelece um nexo constitutivo entre o nível
territorial e o nível empresarial da organização dos
conselhos pelo qual este último, cumprindo
simultaneamente a função de gestão das unidades
econômicas e a de formação das opções políticas,
permitiria absorver todo o funcionamento da
organização social no sistema de "autogo-verno dos
produtores".
Para a teoria consiliária "pura" a função política dos
Conselhos operários é, em suma, inseparável da
econômico-gerencial. Com efeito, nos anos 50, a
«apresentação da alternativa consiliária como opção
em confronto com o modelo soviético se desenvolveu
justamente a partir do problema da reorganização do
sistema de plani-ficação, envolvendo, em seguida, o
da reestrutu-
ração do Estado. Contudo, foi precisamente a
experiência iugoslava que pôs em evidência o duplo e,
em aspectos, contraditório significado que acabou por
assumir, nesta perspectiva, o princípio da "democracia
consiliária".
Por
um
lado,
ela
significa
desestruturação das atividades
sociais
em
comunidades "orgânicas" onde todos possam decidir
com competência no respeitante a problemas que
sejam do interesse direto e da própria alçada; mas a
própria descentralização do sistema administrativo em
âmbitos delimitados requer necessariamente a criação
de instâncias superiores de coordenação das suas
interdependências, em relação às quais a referência ao
princípio consiliário não significa senão a instituição
de um sistema de representação funcional.
V. A ESTRATÉGIA CONSILIÁRIA COMO
IDEOLOGIA. — Os Conselhos operários têm sido,
pois, objeto de um debate onde se entremisturam
questões fundamentais da ideologia do movimento
operário. A mais importante, a que na conjuntura do
primeiro pós-guerra marcou de modo particularmente
significativo a rearticulação interna das posições
políticas na passagem da Segunda à Terceira
Internacional, concerne ao problema da relação entre
espontaneidade e consciência política, vanguardas e
massas.
Se os Conselhos operários constituíram a referência
essencial na definição de uma estratégia
revolucionária alternativa da concepção institucional
dos partidos social-democráticos, onde se via o
insurgir espontâneo de um antagonismo operário que
afrontava diretamente a questão do poder capitalista, a
absolutização desta sua eficácia levou às críticas da
"esquerda" tanto contra a concepção socialdemocrática como contra a concepção leninista da
organização. Imputando-se à última a instauração de
uma relação de delegação permanente das massas a
uma entidade delas separada (o partido) e,
conseqüentemente, os pressupostos para uma
deformação "jacobina" e burocrática da revolução
socialista, os Conselhos operários foram teoricamente
apresentados como autêntico e exclusivo instrumento
de emancipação do proletariado, um instrumento que
permitiria ao movimento espontâneo das massas a
conquista de uma dimensão política, livre da direção e
controle de um aparelho que lhe definisse os objetivos
desde fora. Daqui a concepção da revolução como
processo social onde não se distingue uma fase de
"destruição" (conquista do poder ou do Estado) de
uma fase sucessiva de "construção" do socialismo,
uma vez que a "transição" para essa nova formação
social ocorreria já no próprio seio do ordenamento
capitalista, com o gradual robustecimento de
instituições e
CONSELHOS OPERÁRIOS
formas de organização operária que prefigurariam as
suas específicas estruturas econômicas e políticas.
Estes elementos mostram com evidência que o
motivo dominante da proposta consiliária é a
preocupação democrático-libertária de assegurar a
constante identificação das massas com os fins
últimos do projeto revolucionário, a fim de lhe
garantir o êxito contra toda a involução de tipo
autoritário. Neste sentido, a teoria consiliária
apresenta uma clara relação de continuidade com
temáticas anteriores de inspiração anárquica,
desenvolvidas nos princípios deste século:
sindicalismo revolucionário, unionismo industrial
americano, socialismo ghildista. Mais genericamente
se pode afirmar que, no âmbito da evolução do
pensamento socialista, esta teoria tem sido o terreno
de encontro das ideologias antiautoritárias e
espontâneas tradicionais e das concepções marxistas,
ou, mais exatamente, o lugar onde se realizou a sua
transformação no moderno radicalismo marxista, isto
é, na tendência teórico-polí-tica que, em oposição
tanto com o revisionismo social-democrático como
com a ortodoxia leninista, tem reivindicado a
inspiração não determinista do pensamento marxista.
VI. DESENVOLVIMENTOS RECENTES DA TEMÁTICA
DOS CONSELHOS. — É precisamente em relação aos
recursos da organização dos conselhos de empresa
acima explicados que a temática dos Conselhos
operários experimentou, a partir dos fins dos anos 50,
um significativo retorno no movimento operário
ocidental. Levada em conta a evidente capacidade dos
sistemas capitalistas manterem altos níveis de
desenvolvimento e controlarem a conflituosidade
operária mediante políticas de intervenção estatal, a
nova proposta nasceu da necessidade de redefinir o
próprio significado da alternativa socialista e da idéia
difusa de que a contradição fundamental de tais
sistemas devia ser buscada na lógica dos processos de
racionalização tecnológica e organizacional que, se
são condição do seu desenvolvimento, levam a uma
crescente subordinação dos trabalhadores na esfera
produtiva, nutrindo neles a conseqüente intolerância
para com o "despotismo" intrínseco ao capitalismo.
É baseado nisto que o significado estratégico da
temática dos conselhos se vem definindo
essencialmente como alternativa do papel tradicional
das organizações sindicais, quer pela progressiva
perda de influência dos partidos nos conflitos
operários, quer, ao contrário, pela crescente
importância dos sindicatos nesse terreno, importância
reforçada pelo reconhecimento institucional do
contrato coletivo. Por um lado, tal alternativaestá
vinculada à proposta de controle operário sobre a
gestão das empresas, mas dentro de uma nova
perspectiva, a da contestação da racionalidade que
239
informa a divisão' hierárquica do trabalho e os
sistemas de organização da produção, e, por
conseguinte, a da imposição ao poder deci-sório
patronal de novos parâmetros de referência que
correspondam à necessidade de uma plena
"valorização" do trabalho operário. Por outro lado, é
uma alternativa que se tem ido progressivamente
caracterizando em relação à estrutura orgânica do
sindicato, robustecida pela difusão de formas de
conflito "autônomo", expressas em diversas situações
mediante esquemas organizacionais análogos ao
modelo consiliário. Mas a longa duração desta
perspectiva acabou por caracterizar substancialmente
a recente referência à proposta consiliária como uma
tentativa de reforma da prática das organizações
sindicais e de inovação das suas estruturas, para fazer
delas novos sujeitos políticos, capazes de dar à nova
identidade dos trabalhadores como produtores uma
importância institucional que exprima o "ponto de
vista operário" sobre a condução do conjunto dos
assuntos sociais (v. evolução da idéia dos conselhos
na Itália nas décadas de 60 e 70, até à sua
identificação com a problemática do "sindicato dos
conselhos").
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Consenso.
O termo Consenso denota a existência de um acordo
entre os membros de uma determinada unidade social
em relação a princípios, valores, normas, bem como
quanto aos objetivos almejados pela comunidade e aos
meios para os alcançar. O Consenso se expressa,
portanto, na existência de crenças que são mais ou
menos partilhadas pelos membros de uma sociedade.
Se se considera a extensão virtual do Consenso, isto é,
a variedade dos fenômenos em relação aos quais pode
ou não haver acordo, e, por outro lado, a intensidade
da adesão às diversas crenças, torna-se evidente que
um Consenso total é um tanto improvável mesmo em
pequenas unidades sociais, sendo totalmente
impensável em sociedades complexas. Portanto, o
termo Consenso tem um sentido relativo: mais que de
existência ou falta de Consenso, dever-se-ia falar de
graus de Consenso existentes em uma determinada
sociedade ou subunidades. É evidente, além disso, que
se deveria atender principalmente às questões
relativamente mais importantes e não a aspectos de
pormenor.
Do ponto de vista político, podemos em seguida
distinguir o Consenso referente às normas
fundamentais que regem o funcionamento do sistema,
denominadas pelos anglo-saxões rules of the game do
Consenso, que têm por objeto certos fins ou
instrumentos particulares. Assim, em regimes
democráticos, a aceitação em larga escala das normas
que regulam as relações entre poder legislativo e
executivo entra no primeiro tipo de Consenso,
enquanto o acordo sobre algumas orientações da
política interna e externa entra no segundo. No regime
republicano do pós-guerra, por exemplo, os partidos
políticos italianos aceitaram — pelo menos como
enunciado e, em alguns casos, talvez sem renunciar a
propor sua modificação futura — algumas regras
fundamentais expressas na Constituição republicana,
tais como a legitimidade dos corpos legislativos
manifestos por meio dos mecanismos eleitorais, a
tutela da existência organizada de forças políticas de
oposição, a garantia das liberdades individuais de
expressão e associação, etc. Ao mesmo tempo, os
acontecimentos da época nos oferecem amplo
testemunho das profundas dissensões que dividiram as
forças políticas, por exemplo, em numerosas questões
de política econômica. É claro que, para a
sobrevivência e funcionamento do sistema político, o
primeiro tipo de Consenso é muito mais importante
que o segundo. Com efeito, o Consenso sobre as regras
fundamentais que regem o desenvolvimento da vida
política é elemento quase que indispensável para o
andamento mais ou menos ordenado do debate,
quando falta, como ocorre com freqüência, o Consenso
do segundo tipo. Como é natural, a distinção acima
apresentada não é sempre clara. Pode haver questões
de orientação política tão controvertidas e de
implicações tão gerais, que acabem por comprometer
as regras fundamentais do funcionamento do sistema e
por transformar um conflito político numa verdadeira e
autêntica crise do regime.
Nas sociedades democráticas, que permitem, de
maneira mais ou menos ampla, a expressão de opiniões
e pontos de vista, o Consenso aflora bem menos que os
elementos de discrepância. Isto depende em parte das
características dos meios de comunicação de massa —
porque, em breves palavras, a dissensão é sempre
maior notícia que o Consenso — e, em parte, do fato
de que os princípios realmente fundamentais têm raízes
tão profundas que, muitas vezes, nem se lhes presta
atenção. Assim, o respeito devido aos mortos, o direito
do acusado à defesa, a condenação do homicídio são,
sem dúvida, "universais" que se encontram nas
sociedades mais diversas, se bem que não em todas;
mas a sua própria universalidade e o seu caráter
incontroverso lhes minimizam a relevância. Daí que a
análise superficial e relativa aos problemas mais
controversos tenda a subestimar o grau de Consenso
existente. Corre-se o perigo oposto, quando se trata de
regimes autoritários ou totalitários. Nestes regimes,
seja porque é vedada a expressão de opiniões
contrárias aos princípios fundamentais do regime, seja
porque é negada a legitimidade às forças da oposição
que estimulam e solidificam posições discordantes,
seja, enfim, porque os diversos sub-sistemas possuem
escassa autonomia e o regime invade, por assim dizer,
toda a sociedade, as divergências de opinião
sobrevivem apenas clandestinamente, aparecem pouco
externamente, levando o observador a superestimar o
êxito do sistema em conseguir a adesão de amplos
estratos sociais.
Ao considerarmos o grau de Consenso existente
numa dada sociedade, é também importante distinguir
o Consenso a nível dos enunciados gerais, das
posições assumidas sobre questões específicas. Em
geral, o Consenso em relação aos primeiros é
CONSENSO
muito mais amplo. Pesquisas feitas nos Estados
Unidos demonstraram, por exemplo, que, enquanto a
aceitação do princípio da liberdade de expressão é
quase universal, se genericamente afirmado, sua
aplicação a casos específicos — como, por exemplo, a
aceitabilidade e conveniência de conferências
proferidas por oradores que assumem uma atitude
demasiado crítica quanto às instituições políticas do
país — não encontra grande Consenso entre o público.
É provável que as diferenças de Consenso a nível da
enunciação dos princípios e da sua aplicação a
situações particulares sejam devidas ao fato de que os
princípios são expressos de forma bastante genérica e
abstrata, prestando-se a interpretações diversas, ao
passo que, em sua aplicação, eles são inseridos, por
assim dizer, nas situações e experiências particulares
dos protagonistas, aí incluídas as divergências táticas
derivadas da oposição das forças políticas.
Já que o grau de Consenso varia de uma sociedade
para outra e de época para época, um dos quesitos
mais importantes refere-se aos fatores que
provavelmente nele influem. No breve esboço que
segue, identificam-se sumariamente os elementos
mais gerais, atentando-se principalmente para a
formação e manutenção do Consenso nas sociedades
pluralistas.
O primeiro elemento de realce é o grau de
homogeneidade da sociedade sob .o aspecto sóciocultural. Neste sentido, a presença de grupos étnicos,
lingüísticos e religiosos escassamente integrados no
sistema nacional, possuidores de uma cultura política
própria e mantendo uma adesão essencialmente formal
aos princípios e normas do regime, constitui um claro
fator de oposição à formação de um amplo Consenso.
Naturalmente isto vale na medida em que é necessário
haver-se com "ilhas culturais" verdadeiras e
autênticas, que se diferenciam notavelmente sob o
ponto de vista político ou em aspectos indiretamente
ligados à política. A presença de grande variedade de
grupos
étnicos,
com
culturas
grandemente
heterogêneas, não impediu nos Estados Unidos a
formação de amplíssimas faixas de Consenso em
assunto de princípios políticos; mas, tenha-se presente
que a aculturação das diversas levas de imigrantes se
efetuou dentro dos termos da cultura política
dominante de origem anglo-saxônica, levando a uma
larga aceitação das suas normas. Um segundo fator
que talvez tenha ainda maior importância é a sucessão,
em um dado país, de regimes políticos
fundamentalmente diversos no que toca às regras
essenciais do funcionamento do sistema, como ocorre
quando se passa de um sistema autoritário para outro
de tipo pluralista.
241
Então, os indivíduos não só são sujeitos a experiências
diversas, como vêem também, em curto lapso de
tempo, aplicados e abandonados princípios diferentes e
até mesmo opostos. Além disso, a instauração de um
novo regime leva amiúde à tentativa de criar novo
Consenso; e, quando o regime muda, com a difusão e
interiorização dos novos princípios se mantêm muitas
vezes vivos os resíduos do sistema anterior. Isto chama
a atenção, em terceiro lugar, para mecanismos de
socialização, isto é, para veículos que conduzem à
formação e persistência de orientações e à adesão a
certos valores entre os membros da população. Pelo
que se sabe, estes instrumentos ou agentes funcionam
tanto melhor como mecanismos de transmissão do
Consenso às novas gerações, quanto mais
congruentemente operarem, isto é, sem discrepâncias;
mas a presença de subeulturas heterogêneas entre si e a
existência de experiências políticas contrárias fazem
com que os mecanismos de socialização estejam
freqüentemente caracterizados pela descóntinuidade e
incongruência. Do ponto de vista da formação e
manutenção do Consenso, a socialização política, é
bom lembrar, é uma espada de dois gumes: transmite a
bagagem cultural das gerações precedentes; porém, se
o grau de Consenso for baixo e a cultura política
fragmentária, transmitir-se-ão e perpetuar-se-ão,
também, e principalmente, elementos de discrepância:
Outro fator negativo é a existência de ideologias
rigorosamente contrapostas umas às outras e de visões
sistemáticas e exclusivistas do mundo, que não
toleram — ou toleram só de forma contingente,
principalmente por razões táticas — coabitar com
outros esquemas muitas vezes também exclusivistas e
intolerantes. Flexibilidade e pragmatismo são, do
ponto de vista de tais posições, fraqueza; quando essas
ideologias se tornam dominantes, as forças delas
derivadas tentam forjar o Consenso sobre as regras do
jogo, mais com a imposição e doutrina-mento que com
o acordo. Mais: as mudanças econômico-sociais de
relevo, as transformações estruturais em larga escala e
as inovações tecnológicas não são certamente de
transcurar; elas criam condições novas, submetem
amplos estratos da população a experiências novas,
criam novas necessidades ,e acentuam os limites das
instituições e usos em vigor. Todavia, ao considerar o
papel destes fatores, consideram-se ao menos como
tão importantes os padrões de interpretação, os
esquemas mentais com que tais experiências são
vividas, dando-se-lhes um significado. E é sob este
aspecto que se torna crucial o papel dos grupos,
geralmente restritos, de intelectuais, divulgadores e
profetas, normalmente os primeiros
242
CONSERVADORISMO
a notar e a evidenciar a maturação de exigências
novas. É precisamente nestes grupos que se inicia
muitas vezes a crítica às instituições e às idéias
dominantes. É por isso que a sua função como fatores
de ruptura do Consenso não pode ser subestimada.
Não se esqueça, por último, a importância da interação
entre as diversas forças políticas, mormente onde seu
sucesso depende, em grande parte, da habilidade em
obter a adesão e apoio de grandes massas. É claro, por
exemplo, que os partidos políticos não se limitam
simplesmente a refletir em suas posições as divisões
existentes na sociedade, mas se apresentam, outrossim, como fatores ativos de Consenso ou dissen-são,
na medida em que operam, por meio das suas
estruturas organizacionais diretas ou indiretas, como
mecanismos independentes ou semi-independentes de
canalização, isto é, como veículos de formação e de
transformação das opiniões. Afastado do âmago da
luta política por sua pouca importância ou por falta de
popularidade,
um
partido
político
pode,
conscientemente ou não, orientar diretamente sua ação
à polarização do sistema, isto é, cavar um sulco entre
as diversas formações, onde as circunstâncias
favoreçam tal estratégia. O caso mais claro é o das
formas de "transposição", para a direita ou para a
esquerda, do eixo político, geradas muitas vezes pelas
reações em cadeia.
Que significado tem j>ara uma sociedade a
existência de um elevado ou baixo grau de Consenso?
Podemos imaginar rapidamente as conseqüências de
um baixo grau de Consenso, pensando nos resultados
de uma situação em que as motivações do
comportamento de cada um se baseassem
exclusivamente no temor da coerção ou na busca dos
interesses particulares. A existência de valores
largamente compartilhados se apresenta, portanto,
como um elemento fundamental de solidariedade,
constituindo, por assim dizer, um aspecto importante
do tecido conectivo de uma sociedade. Uma outra
função do Consenso é a de conter ou reduzir o uso da
violência como nieio de solução das controvérsias.
Finalmente, o Consenso pode ser considerado como
fator de cooperação e como elemento fortalecedor do
sistema político; ajudará uma sociedade a superar
momentos de dificuldade como, por exemplo, casos de
guerra ou de crise econômica.
BIBLIOGRAFIA — J. BUCHANAN e G. TULLOCK, The
calculus of consent, Michigan University Press. Ann
Arbor 1962; Political oppositions in western
democracies. ao cuidado de R. A. DAHL, Yale
University Press. New Haven 1966; H. McCLOSKY,
Consensus and ideology in american politics, in
"American Political Science Review", 2, LVIII (junho,
1964); H. PARTRIDGE, Consent and consensus. Pall
Mall, London 1971; D. W. RAE, The limits of
consensual decision, in "American Political Science
Review", LX1X (dezembro, 1975); R. ROSE,
Governing without consensus. an irish perspective.
Beacon Press. Boston 1971.
[GIACOMO SANI]
Conservadorismo.
I. EM TORNO DE UMA DEFINIÇÃO. — O substantivo
Conservadorismo implica a existência de um conceito;
o adjetivo conservador qualifica simplesmente atitudes
práticas ou idéias. O fato de se usar muito mais o
adjetivo que o substantivo é devido à variedade de
significados atribuídos ao primeiro e à dificuldade de
determinar a natureza e fins do segundo. Tanto é assim
que se chegou a negar sem mais que tal termo existisse
como conceito autônomo e unitário.
A inexistência de uma teoria política comum a que
se possam referir todos aqueles que se autodefinem ou
são definidos como conservadores, a pouca propensão
dos conservadores a sistematizar as próprias idéias e o
abuso que se faz desse termo na linguagem quotidiana,
política ou não, fizeram com que se reduzisse o
Conservadorismo a uma atitude e se estudasse desde o
ponto de vista psicológico, na busca das motivações
que impelem certos indivíduos a assumir posições
consideradas na prática política como conservadoras.
Tal modo de proceder, porém, se é útil no campo da
sociologia política ou da psicologia social, tem sua
origem, no tocante aos conteúdos do Conservadorismo,
na prática política, que dissemos extremamente
confusa e não pode ser tida como prova da existência
ou não existência do conceito. Tem maior interesse a
posição da ciência política, para a qual o termo
Conservadorismo designa idéias e atitudes que visam à
manutenção do sistema político existente e dos seus
modos de funcionamento, apresentando-se como
contraparte das forças inovadoras. Neste caso, porém,
toda atenção se concentra na função do
Conservadorismo, de tal modo que seu conteúdo se
coloca e se limita dentro dos termos dessa mesma
função. Se, pois, a ciência política realça no
Conservadorismo o caráter universal, fazendo dele
uma constante necessária da política, perde de vista a
especificidade do termo. Trata-se, com efeito, de um
resultado intencional, porquanto é preocupação comum
aos psicólogos, sociólogos e politólogos evitar a forte
carga emotiva a ele ligada, onde se vê, não sem razão,
a causa primeira da sua ambigüidade, se não
verdadeiramente o elemento que, reunindo os vários
CONSERVADORISMO
significados com que o termo é usado, lhe dá uma
vida unitária fictícia.
O reconhecimento da existência desta carga emotiva
é, no entanto, de importância não des-curável;
ultrapassa os abusos de linguagem da crônica política
para mostrar a polaridade de que está impregnada toda
a civilização moderna. Invertendo a preocupação dos
politólogos, é possível partir dessa realidade e servir-se
dela como de um sinal, para chegar a uma
interpretação que identifique o Conservadorismo por
seu conteúdo, e não apenas pela função. A polaridade a
que acima nos referimos se revela na constante
relação, implícita ou não, pouco importa, em que se
põe, no uso comum, o Conservadorismo com outro
termo extremamente ambíguo e complexo, que
poderíamos
indicar
simbolicamente
como
"progressismo". À primeira vista, este último
evidenciaria uma atitude otimista quanto às
possibilidades de aperfeiçoamento e desenvolvimento
autônomo da civilização humana e do indivíduo. Na
relação que se estabelece entre progressismo e
Conservadorismo, este é sempre apresentado como
negação, mais ou menos acentuada, daquele; aparece
como tal, mostrando assim seu caráter alternativo;
existe só porque existe uma posição progressista. Daí a
conhecida tendência dos conservadores a não
sistematizar o próprio pensamento que, sendo
alternativc, nunca poderá ser concluído e fixado de
uma vez para sempre; tem de acompanhar de perto a
natureza dinâmica e a contínua tendência expansiva do
progressismo. Se, portanto, do ponto de vista
progressista o Conservadorismo se confunde com o
imobilismo, isso se deve necessariamente à
perspectiva; mas. a uma visão global, não poderá
escapar
a
natureza
dinâmica
da
relação
Conservadorismo-pro-gressismo,
bem como a
impossibilidade de determinar analiticamente o
conteúdo eminentemente histórico dos termos que a
compõem.
II. ORIGENS HISTÓRICAS DO CONCEITO. — Estudada
a natureza do Conservadorismo na alternância com o
progressismo, é necessário remetê-lo à sua origem
concreta, aliás, correr-se-á o risco de dar vida a uma
dialética absoluta, Conserva-dorismo-progressismo,
tão imprecisa quão abstrata e improvável.
Conservadorismo e progressismo não são, de fato. de
natureza especulativa, mas podem ser usados como
símbolos de complexas tendências da história
ocidental. O conteúdo do Conservadorismo só se pode
explicar, portanto, com base na história, tido em conta
seu ser alternativo em relação ao progressismo e a
natureza dinâmica deste. Em sua origem histórica,
ambos os termos são inseparáveis do processo de
laici-zação do pensamento político europeu que,
243
fazendo da sociedade o lugar da completa autorealização do homem, transformou a ação política em
instrumento libertador da humanidade. O pensamento
cristão que o precedera jamais se havia proposto a
alternativa Conservadorismo-progressismo, uma vez
que a sua perspectiva histórica era, sob o ponto de
vista dos valores, inteiramente estática. lá que o fim
último do homem era ultraterreno, as vicissitudes
humanas na história não tinham senão um objeto, o de
tentar, por meios estruturalmente idênticos, adequar-se
individualmente aos imperativos impostos por tal fim.
Nesta visão, termos como Conservadorismo e
progressismo seriam insensatos, porquanto supõem
uma inversão de valores absolutos na história. Aliás,
tampouco o pensamento político clássico se havia
proposto essa alternativa. Não podia. Situando os fins
humanos, dentro da sociedade, como fins políticos,
portanto, possuía uma visão estática da natureza do
homem e, se se detinha na história, não via nela senão
um desenvolvimento cíclico, racionalização dos mitos
do passado sobre o tempo sagrado. As sociedades
políticas tinham de acompanhar, então, o mesmo ritmo
e, se em suas variadas formas podiam alcançar uma
certa perfeição na estrutura interna, não podiam
escapar à necessidade de uma posterior decadência;
mas, acima de tudo, não podiam atingir fins humanos
absolutos para alem dos respei-tantes à própria
perfeição formal. A mudança social não se convertia,
pois, em conflito com significado de valor, como
numa visão histórica aberta e ascendente rumo a uma
perfeição sempre maior.
O Conservadorismo surge só como resposta
necessária às teorias que, a partir do século XVIII, se
distanciaram da visão antropológica tradicional, para
reivindicar para o homem a possibilidade, não só de
melhorar o próprio conhecimento e seu domínio sobre
a natureza, como também de alcançar, por meio de
ambos, uma autocompreen-são cada vez maior e,
conseqüentemente, a felicidade. O resultado a que
tendiam estas teorias era o de fazer da história humana
um processo aberto e ascendente, baseado numa
antropologia revolucionária, onde o indivíduo fosse
núcleo ativo, capaz de se tornar melhor tornando-se
cada vez mais racional. Isto implicava o rompimento
com a tradição, o que provocou fendas na consciência
européia, quer a nível cultural, quer a nível político.
Não foi uma cisão em duas partes: pensamento
tradicional de um lado, ligado a modelos em que o
poder político tinha raízes transcendentes e se inseria
em uma visão da vida tendente a depreciar o mundo, e
pensamento progressista do outro. Se assim tivessem
andado as coisas, não se teria assistido ao despontar de
244
CONSERVADORISMO
qiíalquer dialética, já que ambas as posições se
excluem reciprocamente e sua defrontação levou
praticamente ao desaparecimento da primeira,
identificável não com o Conservadorismo, mas com as
teorias reacionárias. Isto explica a natureza diversa da
reação e do Conservadorismo, freqüentemente
considerada aquela, sem razão, radicalização deste.
Houve, na realidade, uma tríplice cisão, porque o
progressismo se distanciou resolutamente — e foi sso
que deu lugar ao Conservadorismo — de uma série de
posições filosóficas, políticas e científicas que, embora
sem romper o núcleo mais íntimo da tradição cultural
européia, a referência a valores transcendentes e à
dupla natureza do homem, modificaram alguns dos
seus elementos essenciais. Isto torna-se particularmente
visível no pensamento do mais clássico e eminente
representante do Conservadorismo, Edmund Burke
(1729-1797). Sua investida contra o iluminismo, não
fortuitamente provocada pela explosão da Revolução
Francesa, não foi uma investida como filosofia que,
mediante o esvaziamento sensacionista da metafísica,
tinha feito do mundo exterior a agulha do equilíbrio
espiritual do homem e via, por isso, na ação social, o
lugar da autoconsciência humana, porque tal filosofia
também fazia parte do seu mundo cultural; a sua reação
era mais contra a idéia ativa que os iluministas tinham
da razão individual, uma idéia que fazia da razão a
medida do real; em conseqüência disso, ela não só se
desenvolveria no mundo social, mas se tornaria
também seu juiz, podendo exigir que ele fosse
modificado em nome dos valores autônomos da razão
(v. ILUMINISMO). Burke representa as posições daqueles
que, sendo intérpretes e protagonistas das profundas
mudanças sociais, econômicas e culturais ocorridas no
cenário europeu a partir do século XVI, haviam dado
início à mundanização da vida, sem, contudo, se afastar
do ideal de um universo moral estável e ligado a um
sistema de valores transcendentes. Firme adversário do
radicalismo ilu-minista como revolução imanentista e,
conseqüentemente, de todo tipo de progressismo,
Burke participa, no entanto, da sua orientação para o
mundo, crê que o homem se realiza na sociedade e que
esta tem leis e exigências próprias, determinadas por
técnicas independentes das usadas para conhecer os
imperativos de ordem transcendente. É devido à
existência desse terreno comum que se desenvolve a
dialética
do
Conservadorismo-progressismo,
correspondente a duas diversas interpretações da
função política, causadas pelo diverso acento dado ao
valor do conhecimento científico e ao significado da
progressiva desintegração da ordem hierárquica na
sociedade. Enquanto a tese radical fazia do homem
uma criatura
exclusivamente histórica e capaz de se amoldar, na
vida prática, a níveis de conhecimento cada vez mais
elevados e, correspondentemente, a formas sempre
novas e mais frutíferas, porque racionais, de
convivência social, a tese conservadora considerava a
natureza humana não modificável pela ação prática,
porquanto mergulhava suas raízes em uma realidade
sobre-humana, a vontade divina, não podendo, por
conseguinte, nem o conhecimento, nem a ação política
serem totalmente liberatívos.
Determinada assim a origem e natureza do
Conservadorismo, não parece vir aqui a propósito
acompanhar
pormenorizadamente
seu
desenvolvimento histórico, vinculado à dinâmica do
progressismo. Esta vinculação é tão verdadeira que, no
decorrer dos séculos XIX e XX, quando o
progressismo se cindiu em várias tendências e
movimentos políticos antagônicos entre si, o
Conservadorismo lhe seguiu de tal maneira os passos
que se torna tarefa demasiado árdua acompanhar suas
intrincadas vicissitudes. Mas isto não significa que ele
tenha perdido suas características fundamentais,
mesmo que a dinâmica do progressismo, cada vez mais
radical, o haja levado a abandonar os conteúdos
clássicos ligados ao pensamento de Burke e a apropriar
elementos cada vez mais numerosos do próprio credo
progressista. Isto ocorreu sobretudo por causa da
dificuldade de manter, no campo político e cultural, a
credibilidade da vinculação da moral com a
transcendência e da hierarquia com a ordem moral, em
face dos resultados da ciência e das conseqüências
materialistas e racionalistas daí inferidas. A contínua
influência
dos
temas
fundamentais
do
Conservadorismo se revela, porém, em um elemento
constante, o que nos permite identificá-lo como tal
também no século XIX, isto é, a interpretação das
posições assumidas pelo progressismo como
momentos de conseguida estabilidade e não de
desenvolvimento.
No decorrer do século XIX, o progressismo se foi
construindo baseado em três hipóteses fundamentais: a
científica, que fez das ciências naturais modelos a
imitar no desenvolvimento das ciências humanas e do
próprio homem; a democrática, que viu na extensão do
poder de decisão política a todos os indivíduos o
melhor resultado a que se poderia chegar; a históricomaterialista, que fez da luta de classes o pré-requisito
do necessário progresso humano. Combinadas entre si
dos modos mais variados, estas hipóteses foram
usadas como modelos ínterpretativos e como ideologia
nas grandes transformações do século passado. Sua
dinâmica tornou impossível a estabilização de
qualquer novo equilíbrio de poder, sempre
desmascarado como insuficientemente
CONSERVADORISMO
racional ou ligado a interesses egoístas de classe, e
suplantado por tendências mais radicais. O
Conservadorismo se apresentou, de quando em
quando, como defensor desses equilíbrios, vistos como
pontos de chegada, capazes, quando tornados estáveis,
de satisfazer às aspirações humanas. É típica a este
propósito a história de movimentos como o
liberalismo, o nacionalismo e o socialismo, nascidos
da teorização de um elemento progressista e
individualista particular, mas que, institucionalizados
em sistemas políticos ou em partidos, deram vida, sob
o impulso dos detentores do poder, a teorias que já não
constituíam momentos de um processo dialético de
crescimento, mas sim expressões imutáveis do próprio
progresso, capazes de o realizar com a sua existência e
organização. Nestes casos, não obstante, o
Conservadorismo parece ter aceito a tese do constante
desenvolvimento da humanidade; mas, para contrariar
os propósitos do progressismo, entendeu esse
desenvolvimento como progresso evolutivo, mediante
a acumulação de conhecimentos e experiências — e
não como superação dialética do passado —, ou então
como resultado de um sistema comunitário onde a
sociedade, fonte da existência individual, daria ao
poder político o direito de conduzir os indivíduos pelas
vias do progresso. Em ambos os casos se nega o ponto
mais essencial do progressismo, que é a autonomia
histórica do indivíduo, e se tenta estabilizar o universo
moral de cada um, subtraindo-lhe a responsabilidade e
o poder de o desenvolver e nele influir.
Conservadores, não em termos de juízo de valor, mas
de contraposição à dinâmica do progressismo, foram
também, às vezes, a filosofia do Estado de Hegel, o
positivismo de Auguste Comte, o evolucionismoliberalista de Herbert Spencer e o nacionalismoautoritário de inspiração romântica ou imperialista.
Todos, na verdade, quiseram fazer da hipótese comum
do progresso da humanidade e da subtração dos fins do
homem a um Deus transcendente um processo
necessário, conduzido de fora, o que, como já vimos,
contradiz as mais profundas exigências e mitos do
progressismo.
III. CONSERVADORISMO E PODER POLÍTICO. —
Alternativo do progressismo, contrário a uma
colocação radical dos problemas políticos, incerto
sobre a possibilidade de um desenvolvimento
autônomo da humanidade, o Conservadorismo pensou
e aprofundou muito mais o problema do poder político
que o progressismo. È como que um fio vermelho que
une toda a história do Conservadorismo e cuja
importância é fundamental para a sua compreensão. A
perspectiva histórica aberta pelo progressismo é, de
fato, propensamente
245
apolítica, uma vez que ele acredita que o homem,
como ser fundamentalmente livre e racional, é
virtualmente capaz de criar comunidades onde não
exista a coação e prevaleça a cooperação espontânea.
O poder político converte-se assim em limite que é
preciso superar, em momento repressivo que não
possui realidade própria e cujas formas hão de ser
buscadas em interesses egoístas e na exploração,
ligados ao estado ainda imperfeito da sociedade. O
Conservadorismo, ao contrário, partindo da
consciência dos limites inerentes ao homem, limites
distantes e distanciáveis, mas sempre presentes,
reconhece no poder, na coação política, um fator
importante e necessário na sociedade, intimamente
ligado à finitude humana. Profundamente ambíguo e
demoníaco, o poder político é, para o
Conservadorismo, o cimento da sociedade que, seja
qual for a sua estrutura, sem ele, cairia na anarquia. Ao
mesmo tempo, porém, confiado ao homem, o poder é
intrinsecamente tirânico, se não controlado. Daí a
constante preocupação pelos mecanismos políticos de
limitação do poder e, principalmente, pela supremacia
da lei, que o Conservadorismo muitas vezes erige em
tabu intangível, como instrumento primário de
estabilização dos processos sociais. Na defesa do
poder político, condição indispensável à convivência
social que é necessário controlar, mas não destruir, o
Conservadorismo encontrou meio de reagir ao
contínuo e rápido avanço do progressismo.
Não obstante, trata-se de uma reação que raramente
levou a um desafio concreto, porque incapaz de
desenvolver, após a conhecida rendição do
Conservadorismo aos reclamos do cientismo, a
herança dos limites do homem e, portanto,
impossibilitada de se opor eficazmente ao
messianismo imbuído de cientismo e historicismo do
progressismo. Assim, o Conservadorismo perdeu a
priori, no terreno moral e emotivo, sua batalha política
contra uma democratização cada vez mais radical da
sociedade, tornando estéril até a própria contribuição
para o estudo do poder, indubitavelmente sua parte
mais vital. Limitando-se, de fato, a defender, como
definitivos, sistemas políticos cuja única justificação
era sua abertura à mudança, os conservadores,
privados de uma articulada visão do homem que se
opusesse à dos adversários, não acharam meio de
preservar a substância do poder contra a sua redução a
interesses egoístas ou ao poder de organização, como
fez o progressismo.
IV. O CONSERVADORISMO NO SÉCULO XX. — Com
o advento da sociedade de massa no curso do século
XX, os termos do problema se modificaram de tal
modo que a antítese
246
CONSTITUCIONALISMO
Conservadorismoprogressismo até aqui estudada,
conquanto ainda presente na linguagem política, se
poderia considerar em crise. A entrada das massas na
cena política constituiu, na primeira parte deste século,
o principal pesadelo do Conservadorismo — veja-se,
por exemplo, o pensamento de José Ortega y Gasset —,
que não podia considerá-las senão como incapazes de
raciocínio e de uma ação independente. Daí os apelos
conservadores ao individualismo, com sua mais alta
expressão no neoconservadorismo estadunidense, de
inspiração burkeana. Com um tom otimista
desconhecido na Europa, ele surge pelos anos 50 em
resposta à crescente despersonalização da sociedade de
massas, a que o próprio progressismo, com seu mito da
planificação social do desenvolvimento, não parece
capaz de pôr remédio. Uma dialética assim, em anos
tão recentes, representa um caso extremo muito
singular, provocado pelas condições particulares dos
Estados Unidos, mas não modifica substancialmente a
impressão de que existe uma crise, tanto no
Conservadorismo, como no progressismo. Este
acreditou por muito tempo ser capaz de obviar aos
problemas materiais causados pela sociedade de massa
e pelos desequilíbrios de consumo que isso trouxe, bem
como poder continuar no novo ambiente com seu
discurso libertário, servindo-se da contribuição das
ciências naturais, da técnica e das novas ciências
sociais e organizacionais. O Conservadorismo, por sua
vez, acabou por ver nelas um meio de educar as massas
na ordem. Mas a ciência se foi impondo cada vez mais,
por si mesma, provocando a crise dos valores políticos
do Conservadorismo e do progressismo e a
convergência de ambos no terreno comum do
desenvolvimento econômico-social.
O progressismo se identificou com as regras da
organização do desenvolvimento, aceitando-as como
objetivas e dotadas de uma lógica própria e
insuperável, se bem que de tipo probabilista. Mas,
desta maneira, adotou a tendência conservadora de
rejeitar o avanço rápido e constante e de fixar os
contornos da dinâmica social; conseqüentemente, o que
o Conservadorismo pretendia obter, servindo-se do
poder político, é agora pedido à objetividade das
normas de organização. O Conservadorismo, seduzido
pela aparente objetividade dos valores da ciência, não
saiu vitorioso com tais progressos; tendo trocado seu
ontolo-gismo filosófico pelos valores práticos oriundos
das ciências naturais, traiu sua razão de ser. que era a
de defender a estabilidade social em nome de uma
filosofia das limitações humanas, adotando, de maneira
indireta e ambígua, o secularismo e a visão histórica
aberta a que se queria opor.
Considerada a origem histórica da oposição
Conservadorismo-progressismo, não seria dê admirar
que estivéssemos assistindo ao seu ocaso, pelo menos
nos moldes que o conhecemos, e à sua substituição por
uma forma política autojustifica-tiva, dominada pela
coação objetiva das regras do desenvolvimento
econômico-social. Em contraste com esta já não se
poderia erguer uma oposição conservadora qual freio
político; tal função já foi assumida pela nova ordem
científica como uma variável própria — disso é
exemplo o que foi dito pela ciência política. Caberia
sim um Conservadorismo que, recuperada a inspiração
original, continuasse a ser reflexão sobre a relação
liberdade-limite no homem e crítica ao finalismo laico
da idéia de progresso.
BIBLIOGRAFIA. R. BLAKE, The conservative party from
peel to Churchill. Eyreand Spottiswoode, London 1970;
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Demokratisierung und Gewaltenteillung, Verlag C. H.
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VOEGELIN. La nuova scienza politica (1952), Borla.
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Staats-Wissenschaft (1816-34), restaur. anastát.,
Scientia Verlag. Aalen, 1964; trad. ital. parcial La
restaurazione della scienza política, UTET, Torino
1963.
[TIZIANO BONAZZI]
Constitucionalismo.
I.
CONSTITUIÇÃO,
CONSTITUCIONAL,
CONSTITUCIONALISMO. — Constitucionalismo é um
termo bastante recente no vocabulário político italiano
e o seu uso não está ainda totalmente consolidado. Para
uma primeira definição, convém partir do significado
que possuem as palavras "Constituição" e
"constitucional" na ciência jurídica continental e
inglesa.
CONSTITUCIONALISMO
Na esfera do velho e do novo positivismo jurídico só
é possível um conhecimento certo, e, se não universal,
pelo menos intersubjetivo, se, na pesquisa, se
prescindir de todo o juízo avaliatório, se se desprezar
toda a premissa jusnaturalista ou de valor, estranhos à
ciência. Por conseguinte, tanto na escola normativa, que
tem seu máximo expoente em Hans Kelsen, como na
institucional, que tem na Itália seu mestre em Santi
Romano, o termo Constituição possui um significado
meramente descritivo, perfeitamente igual ao que
possui nas ciências naturais. Esse significado científico
é absolutamente independente e autônomo de qualquer
relação com o conteúdo concreto da Constituição que,
por sua vez, seria político e axiológico. A Constituição
é, de fato, a própria estrutura de uma comunidade
política organizada, a ordem necessária que deriva da
designação de um poder soberano e dos órgãos que o
exercem. Deste modo, sendo a Constituição imanente
a qualquer sociedade, é necessário distinguir o juízo
científico sobre as características próprias de cada
Constituição, tanto sob o aspecto formal como sob o
aspecto material, do juízo ideológico acerca do caráter
constitucional ou não constitucional de um regime.
Para o jurista, todos os Estados — portanto, também
os absolutistas do século XVII e os totalitários do
século XX — têm uma Constituição, uma vez que existe
sempre, tácita ou expressa, uma norma básica que
confere o poder soberano de império; que se
imponham depois limites a esta soberania ou que seu
exercício seja repartido por diversos órgãos pouco
importa: ubi societas, ibi ius. Seria assim função do
Constitucionalismo traçar os princípios ideológicos,
que são a base de toda a Constituição e da sua
organização interna. Todavia, dado que a ciência não
se pode limitar a afirmar tautologias, para ordenar seu
material empírico é preciso lançar mão das
classificações e tipologias; apresenta-se assim, de
novo, o problema da distinção entre as diversas
Constituições e, com isso, reintroduzem-se os juízos de
valor que os critérios de distinção pressupõem.
A ciência jurídica usa também em suas tipologias
o adjetivo "constitucional" contrapondo-o a "absoluto"
e "parlamentar", para distinguir três formas diversas
de monarquia; designa um sistema de Governo em
que os ministros, conquanto governem baseados em
um Estatuto ou Carta, são apenas responsáveis perante
a Coroa, enquanto perante o Parlamento não têm senão
responsabilidade penal — não política — por traição
ou violação da Constituição. "Constitucional" designa,
em outros termos, uma forma de Estado baseada na
separação dos poderes, onde o poder é quase de
parceria (para alguns.
247
trata-se ainda de uma monarquia "dualista", para outros
de um passo mais além) entre o rei e o Parlamento:
uma forma de Estado que, historicamente, sucede ou,
melhor, substitui a monarquia absoluta, onde o poder
está totalmente concentrado nas mãos do rei, prossegue
ou, antes, evolve na monarquia ou na república
parlamentar, em que o poder está nas mãos do povo,
que elege a assembléia ou assembléias representativas,
as quais, por sua vez. escolherão o Governo. Mas
também aqui se admite a divisão dos poderes, na
medida em que o chefe do Estado, rei ou presidente,
embora não responsável, conserva ainda uma margem
mais ou menos grande de poder, aquele poder
indispensável à manutenção do equilíbrio entre os
diversos órgãos constitucionais. Deste modo, é
monarquia constitucional a forma de Estado instaurada
na Inglaterra depois da Gloriosa Revolução de 16881689, na França da época da Restauração, na Bélgica
com a Revolução de 1830, na Itália com o Estatuto de
1848, na Alemanha de Bismarck, na Rússia após a
Revolução de 1905. Esta definição, embora apresente
indubitáveis vantagens no plano tipológico, corre o risco
de ser escolástica e extrínseca, na medida em que,
definindo tão restritamente o termo constitucional,
menos amplamente que o de Constituição, acaba por
colher apenas o que é acidental nestes regimes,
deixando fugir o que lhes é essencial.
Se atendermos ao significado concreto que tiveram
no século passado as palavras Constituição e
constitucional, notaremos que a ciência jurídica
realizou uma obra de lenta mas inflexível depuração
dos valores nelas originariamente implícitos,
esvaziando-as assim de alcance político, para garantirlhes um uso neutro na pesquisa científica. Contudo, a
hodierna definição de Constituição é demasiado ampla,
a de constitucional demasiado restrita, para nelas
basearmos o significado que hoje possui o termo
Constitucionalismo no pensamento e na ciência
política, ou, melhor, naquela parte da ciência política
que se preocupa com os problemas da técnica
constitucional. Constitucionalismo não é hoje termo
neutro de uso meramente descritivo, dado que engloba
em seu significado o valor que antes estava implícito
nas palavras Constituição e constitucional (um
complexo de concepções políticas e de valores
morais), procurando separar as soluções contingentes
(por exemplo, a monarquia constitucional) daquelas
que foram sempre suas características permanentes.
Foi dito. usando uma expressão bastante abrangente,
que o Constitucionalismo é a técnica da liberdade, isto
é, a técnica jurídica pela qual é assegurado aos
cidadãos o exercício dos seus
248
CONSTITUCIONALISMO
direitos individuais e, ao mesmo tempo, coloca o
Estado em condições de não os poder violar. Se as
técnicas variam de acordo com a época e as tradições
de cada país, o ideal das liberdades do cidadão
continua sendo sempre o fim último: é em função deste
que se preordenam e organizam as técnicas. Dentre
estas podemos citar especialmente duas. Afirmou-se,
por um lado, que o Constitucionalismo consiste na
divisão do poder, de modo que se impeça todo o
arbítrio; mas, se a aversão ao arbítrio constitui o fim
último do Constitucionalismo, os modos de "divisão do
poder" parecem, no entanto, não ser apenas
historicamente diversos, como também seguir lógicas
assaz distantes: temos a divisão do poder horizontal, a
famosa separação dos poderes, e a divisão vertical, o
FEDERALISMO (V.). Por outro lado, afirmou-se também
que o Constitucionalismo representa o Governo das
leis e não dos homens, da racionalidade do direito e
não do mero poder; mas também aqui são diversas as
soluções históricas de "limitação do poder". Assim,
para definir o termo, é necessário, antes de tudo,
aceitar o valor que nele se acha implícito, um valor que
poderemos resumir na defesa dos direitos da pessoa, do
indivíduo, do cidadão (v. DIREITOS DO HOMEM). Em
segundo lugar, é preciso definir tipologicamente, com
base na história, as diversas soluções que, na qualidade
de meios, têm sido oferecidas para alcançar tal fim e
foram formalizadas mediante conceitos outros que não
o de Constitucionalismo, como o de separação dos
poderes, garantia, Estado de direito ou Rechtsstaat e
Rule of law. Trata por isso de saber se o
Constitucionalismo hoje, sem negar estas experiências
do passado, tem um significado particular e específico.
II. SEPARAÇÃO DOS PODERES E GOVERNO MISTO — A
definição mais conhecida de Constitucionalismo é a
que o identifica com a divisão do poder ou, de acordo
com a formulação jurídica, com a separação dos
poderes. A favor desta identificação existe um
precedente assaz respeitável. La déclaration des droits
de 1'homme et du citoyen de 1789, que tão grande
influência havia de ter nas mudanças constitucionais
da Europa no século XIX, preceituava no artigo 16:
"Toda sociedade, em que não for assegurada a garantia
dos direitos e determinada a separação dos poderes.
não tem Constituição". De acordo com tal definição,
ainda hoje é habitual, na ciência jurídica como
política, identificar o Constitucionalismo com a
separação dos poderes, com o sistema de freios e
contrapesos e com a balança dos diversos órgãos.
Tome-se, por exemplo, a obra já clássica de Carl
Friedrich, Constitutional government and
democracy, onde se poderá ler: "O absolutismo, em
qualquer das suas formas, prevê a concentração do
exercício do poder; o Constitucionalismo, pelo
contrário, prevê que esse exercício seja partilhado".
Diz, ainda, mais em pormenor: "Com a divisão do
poder, o Constitucionalismo garante um sistema eficaz
de freios à ação do Governo. Para estudá-lo, é
necessário examinar os métodos e técnicas que
permitem estabelecer e manter estes freios (a fim de
garantir) o fair-play e tornar assim o Governo
responsável". O Constitucionalismo coincide, deste
modo, para muitos com a separação dos poderes. A
tentação de aceitar esta identificação é muito forte, se
não for por outros motivos, ao menos pelo prestígio
das pessoas que a corroboraram: baste citar os nomes
de Locke, Montesquieu e Kant.
Contudo, o princípio jurídico da separação dos
poderes, tão freqüentemente proclamado e exaltado
pela ciência jurídica, se não for aprofundado, corre o
risco de se tornar um dogma ambíguo e misterioso por
duas razões: de um lado, pela diversidade de maneiras
como juridicamente se concretizou até hoje a exigência
da divisão do poder e, do outro, pela impossibilidade
de explicar, de modo suficientemente realista, a
dinâmica do poder nos nossos sistemas democráticoparlamentares, partindo deste dogma, formulado no
século XVIII com vistas a regimes monárquicos,
quando a aristocracia ainda constituía poder político.
Não só isso: é um dogma perigoso, porque não garante
eficazmente a liberdade do cidadão.
No princípio da separação dos poderes vão
desembocar essencialmente duas soluções, que
poderemos ilustrar melhor com uma referência ao
pensamento de Montesquieu e de Kant. Montesquieu
iniciara o famoso capítulo do Esprit des lois (1748)
sobre a Constituição inglesa, separando os poderes
legislativo, executivo e judiciário. Afirmara ainda:
"Tudo estaria perdido se uma só pessoa, ou um só
corpo de notáveis. de nobres ou de povo, exercesse
estes três poderes: o de fazer as leis, o de executar as
decisões públicas e o de punir os delitos ou contendas
entre os particulares".
Contudo, depois de afirmar este princípio, à medida
que se vai adentrando no exame da Constituição
inglesa, o problema ou a solução vão mudando. Na
técnica da separação dos poderes é introduzido um
novo elemento: a divisão do poder legislativo — "o
que representa a vontade geral do Estado" — entre as
classes ou os Estados medievais do reino. Na
realidade, o Parlamento inglês é constituído pelo rei,
pela nobreza temporal e espiritual, e pelo povo.
Montesquieu,
CONSTITUCIONALISMO
para obter o equilíbrio efetivo entre os diversos
poderes, introduz em sua construção o ideal clássico
do Governo misto, que fora buscar ao próprio
pensamento político inglês. Assim, acrescentando ao
novo princípio da separação dos poderes o velho tema
do Governo misto, isto é, a divisão do poder
legislativo, chega a esta conclusão: "Estando o corpo
legislativo dividido em duas partes, mutuamente se
refrearão uma à outra com o recíproco poder
impeditivo. Ambas estarão vinculadas ao poder
executivo, ligado, por sua vez, ao legislativo." Mais
que a teoria da clara distinção das funções do Estado,
Montesquieu apresenta a teoria de um Governo
balançado, em que os diversos órgãos, num sistema de
pesos e contrapesos, realizam um equilíbrio
constitucional capaz de obstar à consolidação de um
poder absoluto. Mas, se examinarmos bem este
equilíbrio, notaremos que se trata mais de um
equilíbrio social que de um equilíbrio constitucional:
confundindo o poder de sentido jurídico com o poder
de sentido sociológico, Montesquieu identifica um
órgão do Estado com uma classe ou camada social.
Esta, que é a mais antiga versão da divisão dos
poderes, é a que teve maior sucesso na Europa, na
primeira metade do século XIX, por garantir, em uma
fase histórica de transformações políticas, a
manutenção de um certo equilíbrio social entre as
classes: Por outras palavras, o poder estava dividido
entre o rei, a nobreza e a burguesia, e era constitucional
o regime que experimentava sua harmônica cooperação
na formação da vontade do Estado. Além disso, o
poder legislativo estava dividido, mas não limitado:
podia fazer tudo o que queria, quando existia a
harmonia e concerto de vontades. O Estatuto
Albertino de 1848, por exemplo, graças a uma
interpretação extensiva cada vez mais liberal e
democrática, que correspondia, não obstante, à
mudança das relações de força, permitiu a
transferência do equilíbrio constitucional: o poder
executivo, antes responsável só perante o rei, tornou-se
responsável perante a Câmara dos Deputados.
Poderíamos agora legitimamente perguntar o que é
que ficou da fórmula de Montesquieu após o advento
da democracia, que vê emanar todo o poder do povo.
Menoscabada a identificação entre órgão do Estado e
classe social, ficou apenas o conceito do equilíbrio
constitucional, que impõe modos diversos e normas
complexas à manifestação da vontade da maioria. Mas
simples normas só podem frear, não limitar
efetivamente tal vontade. A Constituição republicana
italiana, ao estabelecer um sistema bicameral e manter
diversas prerrogativas do chefe do Estado, é uma
249
espécie de Constituição balançada, porquanto a
vontade da maioria, tal qual resulta das eleições, é
contida e refreada por complexos procedimentos, os
únicos que lhe permitem expressar exigências válidas
e legítimas. Quer-se uma Constituição balançada, pelo
temor de que, concentrando todos os poderes numa
única assembléia, isso traga o caos ou a tirania de uma
maioria parlamentar.
III. SEPARAÇÃO DOS PODERES:
SENTENÇAS. — A outra versão
LEIS, DECRETOS,
do princípio da
separação dos poderes foi teorizada por Kant, mais ou
menos reproduzida pela Constituição francesa de
1791. A Kant não interessava o empírico, complexo e
enredado equilíbrio dos órgãos do Estado. Em
Metaphysik der Sitten (1797), ele prefere antes
compreender em sua natureza particular ou "dignidade"
as diversas funções do Estado: legislativo, executivo,
judiciário, "condições essenciais da formação do
Estado (da Constituição), necessariamente derivadas
da idéia deste, são dignidades políticas". Para Kant,
estes três poderes hão de ser autônomos e
independentes em sua própria esfera. Devem, por isso,
ser exercidos por pessoas distintas. Têm de ser
coordenados e reciprocamente subordinados, "de tal
maneira que um não possa usurpar as funções do
outro ao qual oferece ajuda, mas tenha seu próprio
princípio, isto é, ordene em qualidade de pessoa
particular, embora sob a condição de respeitar a
vontade de uma pessoa superior".
Mas esta versão, que separa radicalmente a função
legislativa da executiva, foi de escassa utilidade
prática, como o demonstraram as Constituições
francesas de 1791, 1795 e 1848, onde um poder
acabou por destruir o outro, ou serviu apenas, como
escreveu Kelsen, para "reservar ainda ao monarca,
reduzido à metade da sua autoridade pelo movimento
democrático, a possibilidade de exercer sua influência
no campo executivo", isto é, no campo da diplomacia,
das forças armadas e da burocracia. Todavia, com o
advento das repúblicas democráticas, enquanto na
América a nítida separação entre o executivo e o
legislativo encontrou no regime presidencial uma
aplicação
totalmente
original,
nos
regimes
parlamentares europeus perdeu importância a
distinção das pessoas que exercem as duas funções, na
medida em que o Governo se compõe de deputados,
que respondem pela sua ação, diretamente perante a
assembléia ou assembléias e, só indiretamente,
perante as eleições.
Poder-se-ia, porém, sustentar que a distinção entre
poder executivo e poder legislativo não assenta tanto
nas pessoas que desempenham uma ou outra dessas
funções, quanto sobretudo na
250
CONSTITUCIONALISMO
sua particular natureza jurídica: tais funções seriam
radicalmente diversas. Afirmou-se juntamente com
Rousseau e Kant que a distinção entre poder
legislativo e poder executivo coincide com a de lei e
decreto. Para Kant, a lei possui um valor universal,
porquanto não exprime a vontade empírica da
maioria, mas a vontade unitária do povo em que "cada
um decide a mesma coisa para todos"; o decreto, pelo
contrário, é um ato particular para casos particulares.
Se aceitarmos o rigor filosófico e jurídico desta
distinção, teremos de concluir que hoje existe uma
perigosa confusão entre lei e decreto, uma vez que a
distinção não depende do conteúdo do ato, mas só da
sua fonte. Com leis formais, isto é, aprovadas pelo
Parlamento, se estatui sobre conteúdos particulares
que deveriam antes ser regulados por atos
administrativos: é o fenômeno das leis singulares ou
leis-provisões, melhor conhecidas pelos italianos sob o
nome de leggine, leis que não são gerais e abstratas,
mas dizem respeito a este ou àquele indivíduo, a esta
ou àquela categoria de indivíduos facilmente
identificáveis. Por outro lado, a lei é cada vez menos o
resultado de uma iniciativa autônoma do Parlamento, já
que, na maioria dos casos, as assembléias
representativas se limitam a votar os projetos de lei
propostos pelo Governo. Em resumo, hoje se esqueceu
a distinção entre direito e política, entre o legislar e o
governar; na realidade, hoje se administra e governa
por meio de leis, não segundo as leis. Assim, o
Parlamento não é mais um órgão de controle do poder
executivo, mas um órgão de Governo. Por sua vez, a
ciência jurídica parece secundar esta tendência. Kant fez
distinção entre leis, decretos e sentenças; era uma
distinção qualitativa, pois correspondia às três
essências diversas das funções do Estado. Mas a
ciência jurídica moderna, ao contrário, estabelece uma
distinção meramente quantitativa; para ela, leis,
decretos e sentenças são normas jurídicas que apenas
se diferenciam hierarquicamente no âmbito da ordem
jurídica.
O princípio da divisão dos poderes parece, assim,
tanto na versão de Montesquieu como na de Kant,
pouco útil para a compreensão do funcionamento dos
nossos sistemas parlamentares, onde perdeu valor toda
distinção entre executivo e legislativo e existe, em
lugar disso, a continuidade do poder ou um processo
político que começa nas eleições e termina na ação do
Governo. Esse princípio era certamente mais
adequado a um sistema social onde havia dois ou três
poderes, o do rei, o da nobreza e o do povo, do que ao
nosso, baseado no Governo da maioria. Além disso, o
Governo da maioria pode suportar complexos
procedimentos, tais como o
sistema bicameral e as prerrogativas do chefe do
Estado; mas tais procedimentos não constituem uma
verdadeira divisão do poder. De fato, o partido que
obtiver a maioria nas eleições a terá também em ambas
as Câmaras e, muito provavelmente, o chefe do Estado
sairá das suas fileiras. Em uma palavra, existe um só
poder, o poder político da maioria que governa. É
como escreve Mirkine-Guetzévitch: "A essência do
parlamentarismo moderno consiste na aplicação
política do princípio majoritário ou da sua tradução
em termos de Governo. O povo vota, os eleitos se
reúnem, nomeiam e formam um Governo; é assim que
o povo elege, mediante a assembléia, o próprio
Governo". Mas tal poder, mesmo se baseado no
consenso, mesmo se disciplinado por complexas
normas, pode tornar-se sempre arbitrário.
IV. As GARANTIAS. — Ao princípio da separação
dos poderes, ou melhor, às duas versões que dele
apresentaram Montesquieu e Kant, se juntaram no
século XIX duas teorias que Hoje é freqüente
identificar com o Constitucionalismo: referimo-nos à
teoria das garantias, na França, e ao Estado de direito
ou Rechtsstaat, na Alemanha.
A teoria das garantias, que tem seu principal teórico
em Benjamin Constant, acentua sobremaneira, em
polêmica com Rousseau e com a interpretação jacobina
da vontade geral, a necessidade de tutelar, no plano
constitucional, os direitos fundamentais do indivíduo,
ou seja, a liberdade pessoal, a liberdade de imprensa, a
liberdade religiosa, e, finalmente, a inviolabilidade da
propriedade privada. Deste modo, o problema da
organização do Estado se subordina à necessidade de
garantir a todos os indivíduos a liberdade do poder
político, entendida aqui, seja a instauração de uma via
legal no exercício do poder, seja a afirmação de urna
esfera de autonomia do indivíduo que o Estado não
poderá legalmente violar. Isto leva a uma
reinterpretação do conceito de soberania, cujo
conteúdo, nos sistemas representativos, onde a
soberania do povo é exercida em realidade por seus
deputados, só pode ser definido de modo negativo.
"Soberania", como afirma Constant em seu Cours de
polemique constitutionnelle (1818-1820), não significa
que o rei ou o povo possam fazer qualquer coisa, mas
que "nenhum indivíduo, nenhuma facção, nenhuma
associação particular se pode arrogar a soberania, se
esta não lhe for delegada. Mas daí não se segue que a
universalidade dos cidadãos, ou aqueles que estão
investidos da soberania, possam dispor soberanamente
da existência dos indivíduos''.
CONSTITUCIONALISMO
Contudo, esta soberania limitada é ainda posta em
ato no plano jurídico com a velha separação dos
poderes, ou com a combinação dos diversos interesses
dos depositários do poder, embora se comece a
pressentir que, quando os poderes divididos formam
coalizão, então o despotismo é inelutável. Por isso a
separação dos poderes se apresenta bem mais
complexa: temos o. poder executivo, politicamente
responsável perante o Parlamento; o poder legislativo,
em mãos das duas Câmaras (isto é, o "poder
representativo durável" do Senado e o "poder
representativo da opinião" da Câmara dos Deputados);
o poder judiciário, cuja independência se tenta
robustecer com a inamovibilidade dos juizes. A
novidade está num "poder neutro", de que está
investido o rei, que tem a exclusiva função de ver que
os outros operem em harmonia, cada um no seu
âmbito peculiar, eliminando e resolvendo os possíveis
desencontros e conflitos, mas sem participar nas suas
funções específicas. Além disso, temos um "poder
municipal" (das comunas e dos distritos), que não
depende do poder central: em oposição ao princípio da
república "una e indivisível'', se reafirma a tradição
federalista que reclama centros de autogoverno e,
conseqüentemente, de resistência às ambições do
poder central. Como fundamento desta complexa
oscilação entre órgãos e poder, como garantia dos
direitos do indivíduo, coloca-se, por fim, a liberdade
política: ela deriva da liberdade religiosa, torna-se
atuante através da liberdade de imprensa, tem como
objetivo sensibilizar a opinião pública e, por meio
desta, a assembléia, que registra suas tendências e, com
ela, participa na formação da vontade do Estado.
V. O RECHTSSTAAT. — A idéia de liberdade política
falta, ao invés, no ideal do Estado de direito alemão:
um ideal que teve sua origem na Prússia do século
XVIII, sob a influência de diversas experiências
culturais e políticas. Antes de tudo, o despotismo
iluminado afirmava a impessoalidade do poder:
soberano não é o rei, nem é o povo, mas só e
exclusivamente o Estado, que os sintetiza e supera a
ambos. Todos, do rei ao mais ínfimo funcionário, são
servidores do Estado, contra o qual os cidadãos não
podem opor os próprios direitos originários,
porquanto sua soberania não conhece limites. Por
outro lado, a codificação promovida por Frederico Il
difunde o ideal da certeza da lei, justamente quando a
formação de uma complexa máquina burocrática põe
cotidianamente o cidadão em contato com a
administração pública e, portanto, com seus possíveis
abusos.
Segundo esta teoria, já que o Estado persegue
251
seus fins só dentro das formas e limites do direito, ele
deve garantir aos cidadãos a certeza da sua liberdade
jurídica, uma liberdade sempre concedida pelo
Estado. Por um lado, portanto, o Estado só pode
interferir nos direitos subjetivos dos indivíduos se
justificar sua ação com uma lei geral; por outro, deve
manter como rigorosamente distinta a função executiva
da função legislativa, operando aquela por meio de
decretos que têm de estar conformes com as leis
gerais: daí a necessidade de um controle constante da
ação do executivo, isto é, da administração, para não
serem violadas as normas abstratas e gerais impostas
pelo legislativo.
O controle da atividade da administração pública é
mantido, às vezes, para garantir a subordinação de um
órgão do Estado a outro (ou, como ocorre na França,
para garantir a obediência do executivo ao povo
soberano), pela fiscalização do cumprimento da lei;
outras vezes, para garantir e tornar eficaz a liberdade
jurídica do cidadão. Esta finalidade vária repercute no
órgão que há de exercer o controle: deve ser um órgão
administrativo dependente do poder político, ou um
órgão judiciário verdadeiramente independente nos
conflitos entre o Estado e o cidadão? Quem resolveu
esta controvérsia foi Rudolf von Gneist: em Der
Rechtsstaat (1872), questionando a jurisprudência do
Conselho de Estado francês, onde a política
prevalecia sobre o direito, defendeu a necessidade de
tribunais, administrativos sim, mas independentes,
capazes de unir a competência, no enfrentar os
delicados e complexos problemas da administração, a
uma real liberdade de juízo. Sua obra contribuiu
grandemente para a evolução da jurisprudência
administrativa do continente.
O conceito do Estado de direito, ou da justiça na
administração, possui ainda uma grande atualidade,
uma vez que o Estado moderno vê multiplicarem-se
enormemente suas tarefas administrativas, sobretudo
no campo econômico, como conseqüência da
necessidade cada vez mais ampla de uma política
social. A este propósito é preciso lembrar que a teoria
do Rechtsstaat nunca afirmou o princípio liberal de
que o Estado há de limitar-se a aplicar o ordenamento
jurídico, sem intuitos administrativos, ou apenas a
tutelar os direitos dos indivíduos. Contudo, ao limitar
a "justiça" ao campo administrativo, excluindo-a do
constitucional, esta teoria apresenta o grave
inconveniente de não opor outros limites ao poder do
Estado, senão os de caráter processual: os direitos
individuais, teoricamente expostos por Georg Jellinek
em seu System der subjektiven öffentlichen Rechte
(1892), são só o resultado de uma autolimitação por
parte do Estado. Em
252
CONSTITUCIONALISMO
resumo: se o Estado de direito é só um modo de
exercer o poder, o direito não constituirá um verdadeiro
e eficaz limite a tal poder, mas será apenas o modo
dele se externar, podendo-se chegar assim, sem
paradoxos, a uma forma de despotismo jurídico. Na
verdade, a concepção do Rechtsstaat foi amadurecendo
dentro do clima do positivismo jurídico, que une seu
místico respeito pela lei a um modo de a conceber
absolutamente voluntarista, para o qual a lei outra
coisa não é senão a imposição do soberano. O direito
torna-se assim mera força, eliminando-se a fecunda
antítese, fundamental em toda a história do
Constitucionalismo, entre o poder e os direitos
individuais. Outras culturas, ao invés, como aconteceu
com a inglesa, distinguiram sempre na lei, além do
fator formal, também o fator material, a ratio e não só a
voluntas. Além disso, hoje, a própria justiça
administrativa corre o risco de ser lograda pela
maioria parlamentar: ao perder importância a distinção
entre legislação e execução, entre leis e decretos, é
sempre possível promulgar leis de conteúdo
administrativo, a lex in fraudem legis, que priva o
cidadão de toda a tutela jurídica eficaz.
VI. O "RULE OF LAW". — Muito diferente e
totalmente singular é a experiência constitucional
inglesa, toda ela centralizada no princípio do rule of
law, conceito tão difícil de definir como de traduzir:
Governo da lei, regra do direito? Esta expressão fixase na Inglaterra no século XVII, mas assenta
claramente em motivos medievais, para afirmar a
igualdade dos cidadãos ingleses perante a lei e para
combater todo o arbítrio do Governo que lesasse seus
direitos legais. Na base do rule of law está uma
experiência cultural e política do direito que é típica
da Inglaterra. Enquanto a cultura alemã e a cultura
continental eram levadas pelos próprios pressupostos
teóricos a unir o Estado e o direito (ordenamento
jurídico), a cultura inglesa desconhecia o conceito de
Estado, usando antes o de Governo, que engloba as
três funções clássicas, ou, pelo menos, a executiva e a
legislativa. Além disso, ela afirmou sempre a
autonomia do direito junto ou acima do Governo, ou a
necessidade de subordinar o Governo ao direito.
Isto foi possível, não só pela independência dos
juizes em relação ao poder político, como também e
sobretudo pelo caráter particular do direito inglês, que
ainda hoje considera, junto com as normas de origem
legislativo-parlamentar, o common law, um direito de
que os juizes são conservadores e depositários: eles
continuam a julgar, referindo-se aos precedentes
judiciários, ou interpretando as leis do Parlamento
dentro do espírito
e segundo os princípios gerais do direito contidos no
common law. Com a afirmação da onipotência
parlamentar no século XVIII, ficou restringida a
supremacia do common law, que, no início do século
anterior, ainda autorizava os juizes a declararem nulas
e sem efeito as leis do Parlamento contrárias ao direito
e à razão. Contudo, ele revela ainda sua eficácia na
autolimitação que o Parlamento põe à sua onipotência.
O maior teórico do rule of law é A. V. Dicey: em
The law of the Constitution (1885), ao impugnar o
direito e os tribunais administrativos franceses, mostra
como esse princípio fundamental da Constituição
inglesa supõe a exclusão de todo poder discricionário
ou arbitrário, implicando, por isso, a igualdade dos
cidadãos com o Governo perante os tribunais
ordinários e afastando, desse modo, a possibilidade de
um direito e de tribunais administrativos de tipo
francês. Faz ainda uma afirmação teórica interessante:
as leis constitucionais inglesas, as normas que em
outros países estão contidas em uma Constituição
escrita, não são fonte, mas conseqüência dos direitos
subjetivos dos indivíduos, tais como são definidos e
garantidos pelas Cortes judiciárias; a Constituição
deriva das normas ordinárias do país. Contudo, no
nosso século, com a expansão das atividades
econômicas e sociais dos Governos laboristas, veio a
verificar-se que o princípio do rule of law, tal qual
havia sido formulado por Dicey, não estava sendo de
fato observado, precisamente porque inaplicável a
sociedades desenvolvidas. Deste modo, não obstante
sua luta a favor do rule of law, o que Dicey fez foi
contribuir para o atraso no desenvolvimento de
instituições que pudessem sujeitar a máquina
burocrática a um efetivo controle.
VAI. GOVERNO LIMITADO NA ANTIGÜIDADE E NA
IDADE MÉDIA. — A limitação do Constitucionalismo ao
princípio da separação dos poderes revela-se, como já
vimos, inadequada e errada: inadequada, se se quiser
compreender a dinâmica política real das nossas
instituições parlamentares; errada, se se buscam novos
princípios constitucionais capazes de impedir o
arbítrio da maioria governativa. Na realidade, a
separação dos poderes foi ideada e articulada para
uma sociedade ainda aristocrática, com um regime
político monárquico; hoje, ao invés, vivemos em
sociedades democráticas, de sufrágio universal, quase
sempre republicanas, ou onde a monarquia já não
conserva os antigos poderes. A formação da orientação
política do Estado não tem mais sua origem na
colaboração dos diversos órgãos institucionais que
representam os interesses das classes sociais; nasce da
agregação da demanda
CONSTITUCIONALISMO
política constituída pelos partidos. Assim, a atual
divisão de órgãos pode obstar ou refrear os desígnios
de um partido forte ou de uma maioria estável, mas é
absolutamente insuficiente para garantir os direitos
das minorias e para defender os cidadãos do abuso do
poder, uma vez que esses órgãos podem estar nas
mãos do mesmo partido. Por outro lado, dada a
extrema complexidade da vida moderna, que exige
rápidas e tempestivas intervenções do Governo na
economia e na sociedade, uma excessiva divisão do
poder pode criar-lhe obstáculos no cumprimento das
suas legítimas e indispensáveis funções.
Mais: esta limitação do Constitucionalismo à
separação dos poderes é imperfeita sob o ponto de
vista histórico, dado que compreende apenas um dos
seus aspectos, o Estado misto, dando realce à sua
versão mais moderna, a divisão dos poderes. Entre os
gregos, por exemplo, quando Platão e Aristóteles
punham o critério da distinção entre formas corretas e
degeneradas de Governo na supremacia da lei,
apresentavam outro aspecto do Constitucionalismo
que, na história do pensamento político ocidental, teria
uma importância não inferior à do ideal do Estado
misto, que remonta igualmente ao mundo clássico. Em
seu livro das Leis, ao investir contra as formas
degeneradas da democracia, escreve Platão: "Segundo
as leis antigas, o povo não era senhor, mas, de certa
maneira, um servo voluntário das leis". E Aristóteles
repetia, em seu livro Política, que há democracias
onde é soberana a lei e outras onde, ao contrário, é
soberana a massa: "Isto ocorre, quando a autoridade
suprema concerne antes às deliberações das
assembléias populares que à lei. E isso é obra dos
demagogos. Nos Estados democráticos onde a lei é
soberana, não há demagogos e quem ocupa os mais
altos cargos são os melhores dentre os cidadãos; mas
onde as leis não são soberanas, surgem os demagogos.
Um povo assim, tal qual monarca, procura governar
por si, sem se sujeitar à lei; torna-se despótico; tal
democracia corresponde ao que, entre as monarquias,
é tirania".
Em termos modernos, o que era constitucional para
os gregos eram as formas de Governo — monarquia,
aristocracia, democracia — onde o poder não
estivesse legibus solutus, mas fosse limitado pela lei.
Foi no princípio do Governo limitado, mais que no
do Governo misto, na soberania das leis, mais que na
separação dos poderes, que se inspirou o maior
historiador e teórico do Constitucionalismo europeu, o
americano Charles Howard McIlwain. Num ensaio
escrito um dia depois da deflagração da Segunda
Guerra Mundial, vendo já inadiável a escolha "entre as
ordenadas
253
normas do direito e os sistemas baseados na força,
aparentemente muito mais rápidos e eficientes",
McIlwain define assim o Constitucionalismo: "É
oportuno insistir que o mais antigo, o mais persistente
e duradouro dos caracteres essenciais do verdadeiro
Constitucionalismo continua sendo o mesmo do início,
a limitação do Governo mercê do direito". Mais
sinteticamente: "Todo Governo constitucional é, por
definição, um Governo limitado". Igual observação
pode ser encontrada nas páginas de outro
constitucionalista americano, Edward Corwin, que,
referindo-se a Aristóteles, escreve: "A antítese entre o
impulso do homem que governa e a racionalidade da
lei constitui, na realidade, um dos fundamentos sobre
que se baseia a doutrina americana em matéria de
separação de poderes e, conseqüentemente, todo
sistema americano do direito constitucional".
McIlwain tinha certamente razão ao afirmar que o
princípio da limitação do Governo mercê do direito
era a característica mais antiga e autêntica do
Constitucionalismo. Dessa tese ele parte para uma
revalorização do pensamento político medieval, que a
muitos poderá parecer desconcertante. Escreve: "Quem
tentar relacionar o termo 'medieval' com algo de
reacionário, como se habituaram a fazer hoje pessoas
desmioladas, que medite bem antes. O absolutismo
político é fruto dos tempos modernos; a Idade Média
não queria saber disso". Na Idade Média,
encontramos, de fato, não só as mais claras apologias
do Governo limitado, como também, em consonância
com elas, a mais explícita reivindicação do primado
da função judiciária. A base sacral do poder do rei
consiste unicamente no dever de administrar aos seus
súditos "uma justiça reta e imparcial", porquanto "a
tarefa de julgar pertence a Deus, não ao homem";
neste sentido, o rei, juiz supremo, era apenas um
ministro e servo de Deus. Assim escrevia um bispo do
século IX, Jonas de Orléans: "Por isso foi colocado no
trono real para proferir juízos justos, para prover
pessoalmente e cuidar com atenção que ninguém se
afaste, ao julgar, da verdade e da eqüidade".
O rei era, pois, a fonte da justiça, o soberano juiz do
seu povo, a pessoa em que os direitos dos súditos
podiam encontrar sua tutela natural e a necessária
garantia. Mas a consciência desta altíssima função, que
faz do rei um vigário de Deus, está aliada ao
conhecimento da profunda diferença que existe entre o
rei e o tirano, entre o servo de Deus e o ministro do
diabo. Basta pensar na ampla e duradoura aceitação de
que gozou durante a Idade Média a célebre afirmação
254
CONSTITUCIONALISMO
de Isidoro de Sevilha, um bispo que viveu entre os
séculos VI e VII: "Os reis são assim chamados por sua
função de governar, Como o sacerdote é assim
chamado por sacrificar, é também o rei por reger. Mas
não rege quem não corrige. Portanto, agindo
retamente, conservará o nome de rei; pecando, o
perderá. Daí este dito entre os antigos: 'Serás rei, se
procederes com justiça, do contrário não o serás' ". E
o critério para julgar a retidão do comportamento do
rei era seu respeito pela lei. João de Salisbury, por
exemplo, escrevia, no século XII, em Policraticus:
"Entre um tirano e um príncipe existe esta única, ou,
melhor, esta capital diferença: o príncipe obedece às
leis, governando segundo seus preceitos o povo de
que se considera servidor. Na verdade, a autoridade
do príncipe deriva da autoridade do direito: e, mais
que o poder, importa submeter às leis o poder
supremo. Por isso, que o príncipe não pense que lhe é
lícito o que se aparta da eqüidade e da justiça".
Alguém podia observar, não sem razão, que tais
afirmações, muito comuns e assaz freqüentes na
cultura medieval, pertencem à esfera teológica ou
moral e não à esfera política ou jurídica. De fato, tratase sobretudo de severas e respeitáveis admoestações,
dirigidas por clérigos aos príncipes, com o propósito de
lhes recordar os deveres morais e religiosos que têm
para com seu soberano, que é Deus, antes do que para
com seu povo. Na história medieval, não é raro o
contraste entre os princípios éticos ou religiosos e a
realidade do exercício do poder. A observação seria
indubitavelmente justa e pertinente. Contudo, são
precisamente esses princípios éticos que são aceitos na
Inglaterra, desde o século XIII, quer para descrever a
natureza particular do direito inglês, bem diferente do
romano, quer para diferenciar o sistema de Governo
britânico do francês. Tome-se, por exemplo, Henry de
Bracton, um juiz da corte do rei, que escreveu na
primeira metade do século XIII um tratado
monumental sob o título De legibus et
consuetudinibus angliae, obra que se tornaria bem
depressa texto clássico e seria a base da formação dos
legistas ingleses até os fins do século XVII. Pois bem,
Bracton afirma que "não há rei onde governa a
vontade e não a lei", "que o rei não possui outro poder
sobre a terra senão aquele que lhe confere o direito",
"que o seu poder é o do direito, não o da injustiça". E é
interessante cotejar este princípio, que Bracton
recalcou nos mais diversos pontos do seu tratado, com
as afirmações dos glosadores bolonheses, bem
conhecidas do Regista inglês. Bracton afirmou
claramente que "o rei está subordinado à lei, porque é
a lei que faz o rei". Um século antes, em Roncaglia, o
arcebispo de Milão, dirigindo-se a
Frederico Barba-Roxa, dizia, inspirando-se nos
mestres bolonheses: "Tua voluntas ius es", a tua
vontade é direito, colocando assim o imperador acima
da lei, segundo a afirmação do Digesto: "O que
aprouve ao príncipe, tem força de lei".
Trata-se, como vemos, de duas concepções
radicalmente opostas da natureza do poder, pois uma
realça a lei, que limita o poder real, a outra realça a
vontade do rei, criadora da lei. São duas concepções
jurídicas de onde evolveram duas formas diversas de
Estado, que hoje denominamos monarquia limitada e
monarquia absoluta. Um jurista francês, Adhémar
Esmein, explica a consolidação do absolutismo na
França, no século XVI, pelo sucesso que alcançou em
sua pátria a obra dos glosadores bolonheses e do
maior de todos eles, Accursio, no qual se encontra,
tirada de Ulpiano, a famosa máxima do príncipe
legibus solutus.
Esta diferença entre a monarquia "limitada" inglesa
e a monarquia "absoluta" francesa era já evidente para
o último grande constitucionalista inglês da Idade
Média, John Fortescue. Provinha da mesma categoria
de Bracton, da dos legistas, que tinham elaborado o
sistema jurídico inglês do common law. Ao
conhecimento do direito e da Constituição inglesa unia
uma notável experiência política, por ter participado na
Guerra das Duas Rosas, no séquito dos Lancaster, e por
ter acompanhado Eduardo, príncipe de Gales, no exílio
de Paris. Todas as obras de Fortescue insistem e
tornam a insistir sobre a mesma distinção: a distinção
entre a monarquia absoluta e a monarquia limitada ou,
para usar suas expressões, entre o dominium regale e o
dominium politicum et regale. Atrás destas definições
é muito fácil descobrir a França e a Inglaterra. O
critério de distinção entre os dois sistemas de Governo
foi assim esboçado em De laudibus legum angliae: "O
primeiro rei — o francês — pode governar seu povo
com as leis que ele próprio faz; por isso, pode impor
aos seus súditos, sem o seu consenso, os tributos e
gravames que ele quiser. O segundo rei — o inglês —
não pode governar o seu povo com leis diversas
daquelas em que ele consente; não pode, por isso,
impor aos seus súditos qualquer ônus sem seu
consentimento".
Ora, pode-se agora perguntar o que é, para os
ingleses, essa lei, tão freqüentemente invocada e
proclamada, que o rei não pode de modo algum mudar
sem se expor a converter-se em tirano. Não é
certamente a lei no sentido moderno da palavra, isto é,
a prescrição do legislador, exatamente porque, na
Idade Média, era em grande parte desconhecida a
redução do direito a mero preceito: a lei não era criada,
mas declarada, não era feita, mas lembrada;
finalmente, as leis que
CONSTITUCIONALISMO
eram declarações por parte de órgãos ad hoc (o rei só,
ou o rei no Parlamento) eram pouquíssimas. Na Idade
Média, a palavra lei tem um significado bastante mais
vasto. Para Fortescue, por exemplo, é lei, antes de
tudo, a lei natural "que é a mãe de todas as leis
humanas"; são lei, em segundo lugar, os costumes
antiquíssimos da Inglaterra, que são ótimos, porque
mais antigos que as leis de Roma; e são também,
finalmente. as leis em sentido estrito, os estatutos
aprovados "com o consenso de todo o Reino", presente
no Parlamento. Mas, se atentarmos bem, a verdadeira
lei é a segunda, ou seja, o costume, que, na medida em
que resistiu por longo tempo, obtendo o consenso de
contínuas gerações, demonstrou ser justa; a ela se hão
de adequar, portanto, as diversas leis do Parlamento,
meramente declarativas do direito. Em suma, o valor
das leis consuetudinárias reside no fato de que, como
escreveu Glanvill, Regista do século XII, elas são mores a
populo conservai, costumes conservados pelo povo, ou,
como repetiria mais tarde Bracton, são approbatae
consensu utentium, são aprovadas pelo consenso dos
que as usam.
É dentro desta cultura político-jurídica que vai
amadurecendo o princípio do rule of law, do Governo
limitado ou da supremacia do direito, daquele direito
que não é expressão da exata vontade do legislador,
mas é sobretudo costume, o costume dos direitos
legais dos cidadãos ingleses. O tema do Governo
limitado, da supremacia do direito, é outra das idéias
centrais da história do Constitucionalismo, mais
antiga e mais moderna que o tema do Governo misto
e da separação dos poderes: não se trata de dividir o
poder, mas de o limitar, opondo ao demonismo da
política a racionalidade do direito.
VIII. O GOVERNO LIMITADO DOS MODERNOS.
— O primado da lei é um tema comum ao Governo
limitado da Idade Média e às modernas democracias
constitucionais. Não podemos, porém, perder de vista as
profundas diferenças existentes entre a vida jurídica
medieval, hoje ainda viva e presente nos países do
common law, e o direito das modernas democracias
do continente: então, o direito era uma espontânea e
livre expressão da sociedade, evoluindo de há séculos,
onde não podia intervir o arbítrio criador do
legislador; hoje o direito é expressão da exata e
consciente vontade soberana do povo, explicitada por
meio de um órgão ad hoc, a assembléia representativa.
Outrora, o direito era parte integrante de uma vida
social espontânea; hoje, é um instrumento com que o
Estado democrático intervém na sociedade, para manter
a paz social e prevenir as necessidades futuras. Enfim,
outrora, o direito
255
era quase um fato natural e espontâneo, hoje é uma
criação consciente; outrora o direito era também
justiça, hoje é sobretudo imposição da maioria. A
diferença é, como se vê, enorme; entretanto, o mundo
moderno sentiu a necessidade de manter, ou de voltar
ao princípio medieval do primado da lei,
reinterpretando-o de forma mais apropriada às
exigências dos novos tempos.
O princípio da primazia da lei, a afirmação de que
todo poder político tem de ser legalmente limitado, é a
maior contribuição da Idade Média para a história do
Constitucionalismo. Contudo, na Idade Média, ele foi
um simples princípio. muitas vezes pouco eficaz,
porque faltavam um instituto legítimo que controlasse,
baseando-se no direito, o exercício do poder político e
garantisse aos cidadãos o respeito à lei por parte dos
órgãos do Governo. A descoberta e aplicação concreta
desses meios é própria, pelo contrário, do
Constitucionalismo moderno; deve-se particularmente
aos ingleses, em um século de transição como foi o
século XVII, quando as Cortes judiciárias
proclamaram a superioridade das leis fundamentais
sobre as do Parlamento, e aos americanos, em fins do
século XVIII, quando iniciaram a codificação do
direito constitucional e instituíram aquela moderna
forma de Governo democrático, sob o qual ainda
vivem.
É o momento de esboçar sucintamente as três
características principais que distinguem a aplicação
atual do princípio do Governo limitado, a fim de que
se torne mais claro o que o diferencia da herança
medieval. O princípio do Governo limitado torna-se
hoje atuante, em primeiro lugar, mediante uma
Constituição escrita, que contém variadas normas
jurídicas organicamente vinculadas entre si: estas
normas não só regulam o funcionamento dos órgãos
do Estado, como consagram sobretudo os direitos dos
cidadãos, postos como limite ao poder do Estado. A
Constituição baseia sua legitimidade em um duplo
fundamento: no próprio conteúdo das suas normas,
que se impõem por sua intrínseca racionalidade e
justiça, e em sua fonte formal, isto é, em sua emanação
da vontade direta e soberana do povo, manifesta por
meio de uma Assembléia Constituinte e/ou
referendum. Se entre o século XVII e o X V II I, época
do jusnaturalismo, prevaleceu o primeiro fundamento,
hoje, com a redução do direito a mera prescrição,
tornou-se predominante o segundo. Em segundo lugar,
a Constituição moderna possui um caráter rígido e
inelástico, no sentido de que suas normas não podem
ser nem modificadas nem interpretadas pela vontade
legislativa normal, uma vez que são hierarquicamente
superiores às normas ordinárias, porquanto o poder
constituinte é superior ao legislativo. Portanto,
256
CONSTITUCIONALISMO
para modificar a Constituição, há um procedimento
específico a cumprir, que requer uma maioria
qualificada. Existe uma terceira característica, a mais
importante de todas, pois é a que torna eficaz a
supremacia da lei ou, melhor, da Constituição. Trata-se
do poder judiciário em conjunto, como na América, ou
de um órgão ad hoc, como na Itália; em suma, de uma
corte judiciária que, além de dirimir os eventuais
conflitos entre os diversos órgãos do Estado, zela pela
justiça das leis, isto é, pela sua conformidade com as
normas fundamentais. A existência deste órgão é
essencial, porque, de outro modo, não existiria qualquer
outro remédio contra a violação da Constituição por
parte do Governo-maioria, afora o direito abstrato à
revolução ou uma hipotética possibilidade de recorrer à
força.
Convém ainda determo-nos um pouco em uma nova
definição do Constitucionalismo, não muito freqüente
na nossa literatura política, que se baseia na oposição
entre direito e poder, racionalidade e força. Parte de
uma clara distinção entre Constituição e Governo. A
Constituição, por ser anterior e superior ao Governo,
pode limitar seu poder; quando violada, o Governo se
torna anticonstitucional, arbitrário, ilegítimo. O
conceito de Governo limitado é diferente do da
separação dos poderes. Como já vimos, o princípio da
separação dos poderes se reduz hoje a simples normas
de procedimento como meio legítimo de expressão do
poder da maioria. Mas, sempre que as regras são
respeitadas e existe concordância entre os vários
órgãos do Estado, a vontade da maioria do Parlamento
é onipotente e não há leis que a possam limitar.
Enquanto o Estatuto Albertino só punha em ato este
aspecto do Constitucionalismo, a Carta fundamental da
república italiana atende também ao outro, o do poder
limitado pela lei, dado que não estabelece apenas
regras processuais para a formação da vontade
legislativa, mas lhe impõe também limites legais bem
determinados, tornando-os eficazes através de um
órgão não político, que tem a função judiciária de
vigiar e ver se a vontade da maioria, expressa em lei,
está ou não conforme com a Constituição, e, caso não
o esteja, de declarar nula e sem efeito essa lei.
Assim, em um sistema político representativo, que
realize o princípio do Governo limitado, a função
judiciária acabará por adquirir um peso bastante maior
no equilíbrio constitucional do que em um sistema
baseado na mera separação dos poderes. Voltamos
assim ao outro grande tema de Montesquieu, que
acompanha o da divisão do poder político entre os
Estados do reino: o da independência da magistratura.
Esta só poderá ser verdadeiramente efetiva em um
Governo
limitado; isso porque o primado do direito ou da
jurisdictio sobre o poder exige o robustecimento da
função que visa justamente à defesa do mesmo direito.
Esta transposição do equilíbrio constitucional do
legislativo para o judiciário, esta nova relação entre o
poder e o direito indicam certamente uma ruptura com
a nossa tradição política mais recente, uma ruptura que
não é ainda plenamente clara para a nossa cultura
política. Isto era necessário para o advento da
democracia. No passado, a garantia contra o poder
arbitrário se achava sobretudo nos corpos
representativos que controlavam o Governo. Hoje, ao
contrário, os corpos representativos exercem uma
função de controle bastante mais reduzida, porque é
através dos deputados que o povo escolhe o Governo:
as assembléias são assim parte integrante do próprio
Governo. Para se encontrar uma nova garantia contra o
poder arbitrário, para tutelar os direitos dos cidadãos, é
mister, portanto, recorrer à função judiciária, a única
capaz de tornar efetiva a supremacia da lei sobre o
Governo.
É justamente na perspectiva de pôr novos limites ao
poder de Governo que a temática constitucionalista
adquiriu novo vigor no âmbito do Welfare State, ou
ESTADO ASSISTENCIAL (V.). Tem-se em vista o Estado,
gestor da economia da grande família pública: levada
em conta a relação entre impostos e gastos, entre
receita e despesa, quer-se uma Constituição fiscal para
impedir uma excessiva apropriação pública dos
rendimentos, para se obter um balanço equilibrado,
para combater a inflação, uma Constituição fiscal que
prescreva amiúde em tais matérias, a necessidade de
maiorias qualificadas.
IX. CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA POLÍTICA.
— Parece, à primeira vista, não ser possível identificar
o Constitucionalismo com a democracia, se bem que,
depois, seja difícil imaginar em concreto uma
democracia não constitucional. Na realidade, o
pensamento democrático teve um só problema
essencial: o de mostrar como a soberania é um direito
inalienável e imprescritível do povo. Como
conseqüência, buscou ou fomentou formas de
convivência onde se conferisse ao povo não só a mera
titularidade, como também o concreto exercício do
poder soberano. Impossível em um grande Estado, a
democracia direta sonhada por Rousseau se traduziu
em institutos particulares, como a iniciativa legislativa
popular e o referendum. Se os democratas deram maior
atenção à fonte do poder soberano, os
constitucionalistas puseram mais em evidência
sobretudo o problema dos limites e dos modos de
exercício de tal poder, que não podemos adjetivar de
"soberano",
CONSTITUCIONALISMO
justamente porque uma soberania limitada é quase
uma contradição nos termos.
Deste modo, se a democracia é o Governo da
maioria, poder-se-ia paradoxalmente afirmar que essa
forma de Constitucionalismo torna efetivo o Governo
da minoria. Para fazer uma lei, bastam 51 votos contra
49; e, na democracia, a minoria tem o dever de se
sujeitar à vontade da maioria. Mas, em um sistema
constitucional, onde vigore o princípio do Governo
limitado, há normas, precisamente as da Constituição,
que uma simples maioria de 51 votos não poderá
mudar, exigindo-se para tanto uma maioria de 67%
dos votos; e, em certos Estados, há também normas, as
que sancionam os direitos do homem e do cidadão,
que nenhuma maioria pode ab-rogar. Desta vez parece
ser a vontade da maioria a ter de ceder à vontade da
minoria; mas, se se pensar que com a Constituição o
povo soberano entende pôr limites ao poder que, com
as eleições, delega normalmente em seus
representantes, compreender-se-á que esta é só uma
limitação aparente do princípio democrático. Trata-se,
de preferência, de uma limitação funcional à própria
existência da democracia, como acentuou Luigi
Einaudi em um ensaio aparecido em janeiro de 1945:
"Estes freios têm por fim limitar a liberdade de legislar
e de atuar dos grupos políticos governantes, escolhidos
pela maioria dos eleitores. Aparentemente, viola-se o
princípio democrático que dá o poder à maioria; na
realidade, limitando-lhe os poderes, os freios
defendem a maioria da tirania de quem, de outro
modo, agiria em nome próprio; fazendo assim, fica
implicitamente salvaguardada a maioria".
Há outra diferença que se pode observar, quando se
tenta determinar com exatidão o conteúdo da palavra
liberdade, tão repetida nas páginas tanto dos
constitucionalistas como dos democratas. Para aqueles,
a palavra liberdade tem um significado
essencialmente jurídico; seria, por isso, mais acertado
falar de liberdades no plural, liberdades juridicamente
amparadas contra o poder da maioria. Para os
democratas, ao invés, a liberdade é, em primeiro
lugar, um valor ético: é a liberdade para o indivíduo,
que se converte em ato através do Estado, ou seja,
através da direta participação na coisa pública. Por
outras palavras: os constitucionalistas reivindicam
para o indivíduo uma ampla esfera de liceidade,
impondo conseqüentemente ao Estado o dever de não
impedir o exercício desses direitos; os democratas,
pelo contrário, querem a participação de toda a
comunidade na formação da vontade do Estado, de
sorte que esta coincida com a própria vontade do povo.
Deste modo, obedecendo ao Estado, os cidadãos
obedecem apenas a si mesmos: tal é a
257
mística da vontade geral que nos vem da tradição
jacobina francesa.
Trata-se, portanto, de doutrinas diversas, facilmente
separáveis no plano puramente conceptual; mas não
são doutrinas contraditórias, porque, embora tenha
havido no passado regimes constitucionais não
democráticos, não conhecemos hoje outra forma
possível de democracia senão a constitucional. De
fato, a liberdade positiva de participar na formação da
vontade do Estado exige, como condição necessária, a
liberdade negativa, isto é, que o Estado não tolha os
direitos da liberdade de expressão, da liberdade de
imprensa, de associação, de religião, etc; aliás,
diminuiriam as próprias condições de uma participação
autônoma na formação dessa mesma vontade, como
acontece nos regimes totalitários, onde os grupos que
estão no poder organizam desde cima, sob lista única,
a presença das massas no Estado. Mais: a democracia
foi definida como Governo da maioria; mas, se essa
maioria tivesse um poder absoluto e ilimitado, ela
poderia subverter as regras do jogo e destruir assim as
próprias bases da democracia, coisa sempre possível,
se pensarmos que, em um grande Estado, a própria
representatividade, ao limitar o princípio democrático,
acarreta o perigo de que a vontade da maioria dos
deputados não se ajuste sempre à vontade da maioria
dos
eleitores.
Por
conseguinte,
hoje
o
Constitucionalismo não é outra coisa senão o modo
concreto como se aplica e realiza o sistema
democrático representativo.
Contudo, o uso desta nova óptica no exame dos
modernos sistemas representativos, que realizam o
princípio do Governo limitado, implica a reorganização
ou a eliminação de dois conceitos fundamentais que
ainda dominam profundamente a cultura política
européia. Referimo-nos aos conceitos de soberania e de
povo, e, conseqüentemente, ao de Estado, em cujo
âmbito o Constitucionalismo não tem como se
desenvolver. Uma soberania verticalmente dividida,
como nos sistemas federais, ou limitada por
procedimentos que garantem a supremacia da
Constituição, é uma contradição nos termos, se
definirmos a soberania, segundo é tradicional, como
summa legibusque soluta potestas. É que esta definição
ainda identifica poder e direito, ou concebe a soberania
como uma força, se bem que como uma força que não
pode agir senão de forma jurídica. O mesmo conceito
de povo, próprio de grande parte da tradição
democrática, parece uma abstração desencaminhada,
dado que, na realidade, a vontade do povo se expressa
por meio dos PARTIDOS (v.), que têm exatamente a
função de conjugar e transmitir a demanda política e
de a traduzir em orientação. Em um sistema
representativo,
258
CONSTITUIÇÃO
teremos, portanto, um complexo processo de
formação da vontade política que, partindo dos
cidadãos, passa pelos partidos e pelas assembléias e
culmina na ação do Governo, limitada pela lei
constitucional. Resulta assim mais correto e útil
definir estes sistemas políticos como sistemas
constitucional-pluralistas.
BIBLIOGRAFIA. — O. BRUNNER, Per una nuova storia
costituzionale e sociale (1968), Vita e Pensiero, Milano
1970; J. M. BUCHANAN e R. E. WAGNER, Democracy in deficit.
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London 1951; F. D. WORMUTH, The origins of modern
constitutionalism. Harper, New York 1949.
[NICOLA MATTEUCCI]
Constituição.
I.
PRESSUPOSTOS
CONTEMPORÂNEAS. —
DAS
CONSTITUIÇÕES
Todo ordenamento estatal
possuiu sempre um conjunto peculiar de princípios
orgânicos característicos, que o distinguia dos demais,
mas só em tempos relativamente recentes se estendeu
e consolidou a convicção de que tais princípios
deveriam, em geral, ser reunidos em um documento
formal, definido como Constituição. As primeiras
Constituições se inseriram no quadro de um processo
de limitação e fragmentação do poder absoluto, tal
como o que se consolidou nas monarquias européias.
Por isso ainda hoje o próprio conceito de Constituição
é
freqüentemente considerado como coincidente com o
de poder político repartido entre diversos órgãos
constitucionais, sendo reconhecidas aos cidadãos,
além de uma série de direitos fundamentais, adequadas
garantias contra os abusos cometidos pelos titulares
dos órgãos do poder político.
Esta concepção da Constituição como garantia das
liberdades fundamentais tinha razão de ser, enquanto o
modelo dos ordenamentos políticos estava, sobretudo,
decalcado na concepção própria do Estado liberal,
primeiro em sua versão oligárquico-censitária e, depois,
na versão democrática. Mas, com o despontar deste
século, o modelo liberal foi contestado e
freqüentemente superado pelo surgimento do Estado
dos sovietes e do Estado autoritário fascista e, a seguir,
pelos modelos ecléticos apresentados pelos Estados de
recente independência. Nenhum destes Estados renegou
abertamente o princípio da Constituição como garantia,
embora por toda a parte se lhe acrescentasse um
profundo corretivo, prevendo-se que a segurança só
seria garantida a quem compartilhasse a ideologia
oficial, de cunho diverso, de que, por toda a parte, se
torna portador um partido único.
Além disso, a par da função mencionada,
consolidaram-se e impuseram-se outras funções da
Constituição, todas elas já presentes nas próprias
Constituições liberais. Uma é a função propriamente
"constitutiva" do documento constitucional: a
Constituição
atesta,
dentro
da
comunidade
internacional, o surgir de um novo componente, que se
afirma como um dos seus membros de pleno direito.
Isto explica por que, depois da independência, todos
os novos Estados se apressem em se apresentar de
modo formalmente inobjetável na cena internacional
como dotados de uma Constituição própria.
Intimamente vinculada à função constitutiva está a da
estabilização e racionalização de um determinado
sistema de poder. A Constituição é um ponto firme,
uma base coerente e racional para os titulares do poder
político, que visam, mediante ela, dar estabilidade e
continuidade à sua concepção da vida associada.
Com a Constituição são então fixadas múltiplas
garantias para defesa da ideologia dominante e dos
institutos constitucionais fundamentais. Diversas
modalidades, que vão da proibição da revisão
constitucional às garantias oferecidas pelas sanções
penais, a um sistema orgânico de controles
jurisdicionais e à organização da administração militar
e civil.
A par da função constitutiva legitimadora de um
novo Estado, a Constituição pode ter a função mais
limitada da legitimação de um novo titular do poder
político. Isso explica que, especialmente
CONSTITUIÇÃO
nos Estados novos, a cada reviravolta interna
decorrente de um golpe de Estado, suceda a adoção
de uma nova Constituição, nem sempre com
conteúdos profundamente diversos da Constituição
anterior, então ab-rogada.
A Constituição possui, finalmente, uma função de
propaganda e de educação política. Isso se verifica
facilmente nas Constituições de elevado conteúdo
ideológico — como as francesas da Revolução, as
socialistas e as das repúblicas islâmicas —, cujos
textos contêm, não só normas organizativas, mas
sobretudo princípios de orientação e estímulos de
ativação das massas.
Se são estas as funções constantes que preenchem
as Constituições, seus conteúdos podem ser
profundamente variados, na medida em que, na
realidade concreta, a concepção que serve de base a
toda forma de Estado ou regime político acaba por
influenciar de modo determinante o texto
constitucional.
II. INSUFICIÊNCIA DO CONCEITO FORMAL DE
CONSTITUIÇÃO. — Segundo a doutrina jurídica,
entende-se por Constituição aquele conjunto de
princípios que se situam no vértice de qualquer sistema
normativo, relativos a um número variado de entes, tais
como os Estados, as organizações internacionais, a
comunidade internacional. Qualquer ser, público ou
privado, tem seus princípios básicos indispensáveis e,
por isso, uma Constituição própria; mas só os seres
chamados originários (isto é, autolegitimados) se
consideram portadores de uma Constituição, que vale e
opera também para todos os seres derivados que se
justificam por ela, estando diversamente vinculados ao
ordenamento do ser originário e dependendo dele. Isto
vale especialmente para os entes públicos abrangidos
pelo ordenamento estatal.
Limitando nossa atenção à Constituição do Estado,
logo ressaltará a extrema dificuldade de definir com
clareza os princípios normativos essenciais já referidos,
embora abstratamente se afirme que estes hão de ser os
logicamente prioritários, superiores a outros princípios
não indispensáveis, capazes de se revelar como
permanentes. Representariam as opções essenciais
referentes à forma de Estado ou regime, à organização
e junções dos poderes públicos, e aos direitos e
deveres dos cidadãos. Alguém observou, com razão,
que a essencialidade dos princípios está estreitamente
ligada a um juízo de valor, diversamente condicionado
por aspectos históricos e políticos que tornam difícil
sua enunciação em termos absolutos. Isso seria
possível onde fosse aceita a hipótese normativista, que
quer como princípio último condicionante do sistema a
chamada norma acima das normas, isto é, a que
condiciona a produção
259
de normas gerais, especialmente através da legislação;
mas, como já tem sido observado, essa norma acaba
por fazer supor uma ordem já constituída, sem
explicar qual a sua base.
Em geral, existe uma certa concordância sobre a
insuficiência do recurso ao critério formal para a
identificação dos princípios essenciais. De fato, sendo
normal a tendência a adotar a forma escrita como
expressão da Constituição, procurou-se definir como
constitucionais as disposições que vieram à luz
seguindo procedimentos reforçados, isto é, diversos
dos seguidos na legislação normal, e são da
incumbência de órgãos dotados do poder constituinte.
Mas a tendência a uma particular formalização dos
preceitos constitucionais não significa que estes se
limitem necessariamente aos que se acham inseridos
num texto ad hoc, nem que os formalmente enunciados
mantenham sempre sua importância original. É
indubitável que o recurso a formas mais solenes pode
fazer supor que elas encerram conteúdo de princípios
realmente essenciais em um determinado ordenamento.
A forma escrita — que é a que se impôs claramente,
não obstante a permanência de Constituições
predominantemente consuetudinárias, como inglesa, e
a presença de costumes constitucionais em todo o tipo
de ordenamento — responde a evidentes razões de
técnica organizativa dos ordenamentos políticos, na
medida em que tende a assegurar a estabilização das
estruturas, embora ainda hoje sofra os efeitos do
aspecto de fiança que lhe imprimiram as teorias do
constitucionalismo, no que respeita à estabilidade e
conservação dos valores ideológicos e políticos e dos
interesses individuais e coletivos. Além disso, a forma
escrita parece ter sempre um significado mais ou
menos instrumental para as ideologias que um
ordenamento traz consigo, quer no caso das chamadas
Constituições-balanço, onde, em confronto com o
passado, se definem os resultados obtidos sob o
aspecto político, quer, sobretudo, no caso das
chamadas Constituições-programa, que exprimem, de
modo particularmente explícito, um sistema orgânico
de diretrizes a cumprir a breve, médio e longo prazos.
Esta tendência propagandística tem levado a uma
progressiva ponderação dos textos constitucionais,
especialmente os que ampliaram as disposições em
matéria econômica e social, indo mais além das simples
disposições organizativas respeitantes à distribuição e
uso do poder político (contraposição entre
Constituições longas e Constituições breves).
III. CONTRASTE ENTRE ESTÁTICA E DINÂMICA DE UM
ORDENAMENTO:
O
CONCEITO
MATERIAL
DE
CONSTITUIÇÃO. —
A formalização é, por
260
CONSTITUIÇÃO
conseguinte, uma tentativa de cristalização dos
princípios essenciais, mas, como tentativa, está
geralmente destinada a dar resultados frustrantes. Na
realidade, se é natural que o poder constituinte tente
impor aos órgãos diretivos de um ordenamento linhas
de ação concordes com sua concepção das relações
políticas e sociais, ninguém disse que o sistema possa
limitar-se a modelar seu próprio desenvolvimento por
princípios conservadores. Em grau mais ou menos
acentuado, são de prever evoluções e involuções. De
resto, as próprias diretrizes queridas pelo constituinte
produzem não raro conseqüências que são
inconciliáveis com os princípios de base.
Estes breves traços mostram como uma das
características inevitáveis de todo ordenamento é a
busca da conciliação entre o sistema tendencialmente
estático das normas originais e as orientações fixadas
pelos rumos políticos, que os órgãos constitucionais
formulam sob o impulso dinâmico das forças sociais.
Esta dinâmica provoca um constante estado de tensão,
que submete a intensas solicitações os princípios
articulados na Constituição. Além da hipótese do
progressivo distanciamento da realidade constitucional
dos princípios formulados, observa-se, mais
genericamente, que os princípios formais representam
uma parte da Constituição e que esta só poderá ser
compreendida acentuando os princípios substanciais.
Isto é assaz evidente, quer na hipótese em que não
exista Constituição escrita contida em documento
unitário — como no caso tantas vezes apresentado
como exemplo da Grã-Bretanha e de Israel —, quer
quando nos apercebemos da não correspondência entre
os princípios formais preexistentes e a realidade
constitucional subjacente — como no caso do último
período de vigência do ordenamento estatutário
italiano, após a consolidação do fascismo.
A doutrina da Constituição em sentido material se
interpõe, oferecendo uma justificação para as relações
entre os aspectos formal e substancial da Constituição.
Na sua formulação mais persuasiva, ela realça, de
forma determinante, o papel desempenhado pelas
forças políticas na fixação dos princípios organizativos
e funcionais basilares para a vida de um ordenamento.
Dessa maneira, há uma clara reavaliação do papel
exercido pela realidade social, não mais confinada no
pré-jurídico. O elemento social do Estado se apresenta
como já ordenado em torno a um núcleo de princípios
que contribuem para que ele adquira uma configuração
política própria. Em seu seio, pode delinear-se um
elemento dominante, titular e gestor do poder,
diferenciado do elemento dominado, ou então — nos
ordenamentos democráticos, onde se tende a negar,
pelo menos teoricamente, um
contraste tão rígido — uma participação necessária de
toda base social no poder político, buscando-se a
maior correspondência possível entre Estadocomunidade e Estado-aparelho. Em ambos os casos,
são as forças políticas que caracterizam o
ordenamento representado pelos princípios e fins
constitutivos da Constituição material.
Com base nesta tendência, observa-se como existem
em todos os ordenamentos normas constitucionais —
geralmente formuladas num texto ad hoc, mas também
contida em textos diversos, de caráter meramente
consuetudinário ou convencional —, relativas às
opções fundamentais no que toca à organização do
Estado-aparelho (particularmente, uso do princípio de
concentração e de separação na distribuição das
competências, do princípio paritário e do princípio
gradativo na utilização das mesmas), no que toca à
organização do Estado-comunidade (regime das
autonomias públicas e privadas), no que toca às
relações entre aparelho e comunidade (regime das
relações autoridade-liberdade) e no que toca às
relações entre Estado-ordenamento e comunidade
internacional, e similares. Estas normas têm sua
origem e condicionamento em um princípio original,
que constitui, ao mesmo tempo, o núcleo efetivo de
toda organização constitucional. Este princípio é a
resultante do jogo das forças políticas que se movem
dentro do ordenamento, a opção fundamental que
condiciona todos os demais princípios da vida social e
jurídica (segundo alguém, são as próprias forças
políticas dominantes que se apresentam diretamente e,
enquanto tais, como princípio).
Pelas razões expostas, a doutrina da Constituição
material demonstra que o princípio normativo que
origina e justifica um ordenamento, isto é, a
Constituição por excelência, consiste na força normativa
da vontade política, com aplicação realista do princípio
de efetividade (princípio que, se bem que com
perspectiva diversa, é também usado, em última
instância, pela própria doutrina normativista, ao
procurar encontrar, voltando atrás, uma justificação
última para as normas gradualmente dispostas em um
sistema). A Constituição material tem, portanto,
condições de se apresentar como a real fonte de
validade do sistema (e, conseqüentemente, também da
Constituição formal), de lhe garantir a unidade como
fundamento de avaliação ínterpretativa das normas
existentes e de preencher suas lacunas, de permitir
identificar os limites da continuidade e mudanças do
Estado, sendo ela o parâmetro de referência. São,
portanto, os princípios constitucionais fundamentais, a
que aludimos, que revestem essencial importância na
compreensão de uma Constituição. É a estes que
havemos de fazer referência.
CONSTITUIÇÃO
para distinguir a sua essência íntima. As normas
constitucionais formais, quando existentes, constituem
geralmente o ponto de partida necessário do processo
interpretativo, mas seria absurdo pretender nos basear
exclusivamente nelas, uma vez que muitos institutos
formalmente inalterados no curso do tempo acabam
por ter ainda um significado útil, apenas quando se
leva em conta o valor substancial efetivo que foram
adquirindo.
IV. ALTERAÇÕES DA CONSTITUIÇÃO. — O complexo
de opções resultantes das determinações, tanto
explícitas como implícitas, das forças políticas que
zelam pelo ordenamento legal constitui a sua
Constituição, apenas essa. Tomando esta Constituição
como parâmetro, poderemos falar do problema da sua
alteração e, transformação, na medida em que os
processos evolutivos permitam ou não admitir a
permanência dos elementos identificadores acima
referidos. Tecnicamente se afirma que, no segundo
caso, nos encontramos diante da ação de um poder
constituinte e, no primeiro, de um simples poder de
revisão.
De fato, a característica do poder constituinte é a de
não estar vinculado em suas determinações a um
sistema jurídico previamente vigente: ele é
completamente livre na escolha dos seus objetivos. Não
acontece o mesmo com o poder de revisão, limitado,
quando menos, pela obrigação de não renegar das
linhas características do sistema jurídico vigente,
consideradas como termo do seu uso concreto:
reconhece-se que o poder de revisão está estreitamente
ligado à necessidade de garantir a Constituição, visando
a adaptá-la mediante procedimentos formalmente
compatíveis com a mesma e com as novas exigências,
conservando-a em seus traços essenciais e evitando
recorrer a expedientes extrajurídicos estranhos ao
ordenamento em questão, que seriam, em última
instância,
expressão
do
poder
constituinte.
Logicamente, portanto, o poder de revisão está
subordinado ao poder constituinte, o único em
condições de dispor e de mudar radicalmente a
Constituição em sentido material. Por conseguinte,
sempre que se encontrem modificações que
desrespeitem as linhas essenciais do ordenamento, isto
é, da Constituição material que, conforme se indicou, é
o seu núcleo, a sua superconstituição, não é de discutir
o reconhecimento do ordenamento anteriormente
existente, mas sim o de um novo ordenamento,
preparado pelo respectivo poder constituinte. Há, pelo
contrário, identidade quando as modificações não lesam
a Constituição material. Assim entendidas, as
modificações podem apresentar variadas formas.
Desempenham um papel importante as modificações
que se seguem a uma evolução lenta, mas
progressivamente operada ao
261
longo do tempo, entre a apreciação que os órgãos
constitucionais, a magistratura e o elemento social
fazem dos princípios constitucionais. É possível que
se cheguem a formar costumes contra e praeter
constituição, ou à formação de convenções sobre a
Constituição, derivadas de acordos entre órgãos
titulares do poder político.
As modificações sancionadas por procedimentos
formais constituem o núcleo dos processos de revisão
que, em alguns ordenamentos, não requerem formas
diversas das usadas na adoção das leis (Constituições
flexíveis), enquanto em outros requerem formas mais
complexas, diversas das comumente usadas para grande
parte das leis; neste caso, os procedimentos dizem-se
agravados ou reforçados, dando-se maior importância
às modificações da Constituição formal (Constituições
rígidas, como a italiana em vigor). Por vezes, as
modificações formais não são de alcance geral, mas
circunscrevem-se a casos singulares: o caráter
derrogatório das mesmas está implícito na expressão
rupturas da Constituição com que são designadas.
Todas as hipóteses esboçadas são expressão de
modificações tendentes a perdurar. A de suspensão da
Constituição é diferente; trata-se de uma modificação
apenas temporânea, justificada, em geral, pela
necessidade de manter a Constituição material, como
acontece quando se instauram regimes de emergência
interna e externa (estado de sítio e estado de guerra).
Neste caso, as modificações concernem à organização e
ao funcionamento dos órgãos constitucionais,
especialmente
ao
regime
das
liberdades
constitucionalmente garantidas. A cessação do regime
derrogatório de emergência tira a razão de ser da
suspensão; o retorno à normalidade significa a
restituição da plena vigência à Constituição, que
entretanto se havia mantido formalmente válida.
V.
A ASSEMBLÉIA
CARACTERÍSTICAS DA NOVA
CONSTITUINTE E AS
CONSTITUIÇÃO. — A
Constituição italiana que entrou em vigor a 1.° de
janeiro de 1948 substituía o Estatuto albertino que,
não obstante as profundas modificações introduzidas
nas instituições constitucionais durante o fascismo e
após o período de transição subseqüente aos fatos de
25 de julho de 1943, tinha constituído a base do
ordenamento italiano durante um século.
A Assembléia Constituinte eleita pelo método
proporcional chegara à aprovação da nova Constituição
mediante um pacto constitucional, a que haviam dado
sua contribuição expoentes partidários ligados a linhas
ideológico-programáticas entre si divergentes: a
inspiração liberal, católica, so-
262
CONSTITUIÇÃO
cialista é mais ou menos fácil de identificar nas várias
normas que compõem o texto constitucional,
emergindo, em geral, do conjunto estrutural da
Constituição. Do compromisso constituinte —
inevitável desde que se quisesse evitar o risco da
imposição unilateral e autoritária de uma Constituição
facciosa — nascera um mecanismo institucional que,
em boa parte, remetia a posteriores atuações e remates e
que, justamente por sua origem compromissória,
possuía um caráter polivalente, prestando-se a
interpretações potencialmente divergentes dos preceitos
formais da Constituição. A espera das ulteriores
decisões do Governo e do Parlamento implicava,
portanto, a dilatação temporária de opções
fundamentais e prorrogava a necessidade de acordos
entre os partidos políticos, já verificada a nível
constituinte. A exigência da co-presença de todos a
todos os níveis levava à generalização do princípio
proporcionalista, tanto como elemento fundamental da
legislação eleitoral, quanto como base da formação das
decisões orientadoras dos órgãos eletivos. A nova
Constituição não podia deixar de estar em contraste
com o regime antecedente, fundando-se numa forma de
Estado republicana, confirmando o banimento do
fascismo e afirmando a sua natureza democrática.
Segunde a interpretação que parece mais segura, o
significado da qualificação democrática está na
tendência a identificar comunidade e aparelho —
mediante a valorização do corpo eleitoral pelo sufrágio
universal a nível nacional e local, o referendum, a
iniciativa particular, o direito de petição e o apelo ao
povo a seguir à eventual dissolução antecipada do
Parlamento — e na tutela das minorias — mediante a
garantia indiscriminada dos direitos de liberdade e,
sobretudo,
do
associonismo
político,
do
pluripartidarismo, da indefectibilidade da oposição
parlamentar e do reconhecimento da potencial
alternância de forças políticas antagônicas no poder.
A fórmula de organização do funcionamento do
Estado-aparelho que se escolheu foi a do Governo
parlamentar: admite um Governo nomeado pelo Chefe
do Estado, mas que é expressão da maioria
parlamentar de cuja confiança precisa gozar
constantemente. Existem numerosíssimos exemplos de
sistemas definidos como Governos parlamentares, mas
parece não existir um Governo parlamentar-tipo que
se possa tomar como ponto de referência para uma
definição. Afirma-se, em geral, que a Constituição quer
uma república de Governo parlamentar atípico, uma
vez que se reconhece ao chefe do Estado uma posição
que vai além da do simples mediador imparcial entre o
Parlamento e o Governo; além do poder de dissolução
antecipada da Câmara, tem o do veto suspensivo em
relação à promulgação das leis do Parlamento; além
do poder de autorizar a apresentação dos projetos de
lei do Governo, ele tem também o da mensagem, o da
nomeação de senadores e juizes constitucionais, e o da
presidência de importantes órgãos colegiais. Todos
estes poderes lhe atribuem um papel autônomo no
desenvolvimento da vida constitucional.
Segundo uma interpretação comum, a função de
orientação política — ou seja, o complexo de
atividades que apropriam, dia após dia, os princípios
constitucionais às mutáveis necessidades do Estado —
concerne, antes de tudo, ao corpo eleitoral, depositário
da soberania, o qual, ajuizando do valor dos
programas dos partidos, escolhe, pelo processo
eleitoral, os próprios representantes no Parlamento.
Sendo que a intervenção do corpo eleitoral é
esporádica por natureza, devido à complexidade das
possíveis consultas, o núcleo dos poderes de
orientação assenta no Parlamento, de estrutura
bicameral; mas também este é um corpo demasiado
amplo; é por isso que nele, após a aprovação de um
programa político, se designa um colégio restrito, da
confiança da maioria parlamentar. É o Governo,
formado pelo Presidente do Conselho e pelos
ministros, postos à frente de cada um dos
departamentos administrativos. É ele o órgão de
direção por excelência, constantemente responsável
perante o Parlamento. Ao seu Presidente reserva a
Constituição um papel particular: é ele o supremo
coordenador e centro de estímulo da orientação
política e administrativa.
Governo e maioria parlamentar se encontram
ligados por vínculos de colaboração constantes, uma
vez que uma parte significativa dessa orientação se
expressa em leis parlamentares, originadas na
iniciativa governamental. Nesse sentido, a direção é
uma direção política da maioria, porquanto ligada
necessariamente ao Governo e à maioria que a
exprime. Mas existe outro tipo de direção que não se
pode confundir com esta e que se crê tenha como fim
essencial tornar efetivo e tutelar o respeito pela
Constituição. Esta direção, que não se há de sobrepor
à da maioria, especialmente no que respeita à
consecução dos objetivos contingentes, é definida
como constitucional, cabendo ao chefe do Estado e à
Corte Constitucional ser garantes da Constituição, o
primeiro inserido no processo político que tem por
protagonistas os demais órgãos constitucionais, a
segunda a ele extrínseca. Obviamente, se levarmos em
conta o que acima ficou escrito sobre a extensão dos
poderes presidenciais, nem sempre será fácil reduzir o
papel do chefe do Estado ao de simples guardião da
Constituição.
Além dos órgãos de direção, a Constituição prevê
também órgãos auxiliares: o Conselho de
CONSTITUIÇÃO
Estado e o Tribunal de Contas, provenientes do
ordenamento anterior, e o Conselho Nacional da
Economia e do Trabalho, numa instituição nova,
destinada a assegurar ao Parlamento e ao Governo a
colaboração dos representantes dos interesses
econômicos e sociais. Teve particular importância a
criação de um Conselho Superior da Magistratura,
garante da independência do judiciário e do executivo.
Fizemos referência ao papel abonatório atribuído ao
chefe do Estado e à Corte Constitucional. Na realidade,
quase todos os critérios organizativos seguidos na
estruturação de comunidade e aparelho respondem à
necessidade da tutela geral do sistema, a fim de se
evitar, sobretudo, riscos análogos àqueles em que
incorreu a democracia parlamentar pré-fascista. A
necessidade de garantir as novas instituições levou à
redação de uma longa Constituição, que tentasse
disciplinar, do modo mais preciso possível, a
distribuição do poder e seu uso em relação à
autonomia privada e pública. Por isso, ao lado das
referências à sucessiva regulamentação de caráter
legislativo, mediante numerosas ressalvas à lei,
encontramos na Constituição normas analíticas de
alguns institutos, com o fim de se evitar riscos de
desvio por parte do poder político.
A esta mesma necessidade de garantias corresponde
também a ampla articulação do poder político no seio
da comunidade e do aparelho estatal. Como indivíduo
ou como participante de associações, o cidadão é posto
em condições de escolher, quer no plano local, quer no
plano nacional. Ao lado do Estado-aparelho, que é o
mais importante gestor do poder político e expressão de
toda a coletividade nacional, se apresentam numerosas
entidades representativas das coletividades territoriais
menores, entre as quais se destacam por sua
importância as regionais. O poder se reparte entre o
Estado e as entidades territoriais e, entre estas últimas,
segundo critérios que implicam também a reserva
exclusiva de áreas de decisão às entidades menores, se
bem que dentro do princípio do respeito à unidade
nacional que exige que o Estado continue sendo a
entidade soberana, embora diversamente condicionado
pelas autonomias locais.
Outra das garantias se baseia no caráter rígido da
Constituição, que requer na revisão das suas normas,
da qual se hão de excluir os princípios essenciais, um
procedimento reforçado (dupla votação parlamentar e
maioria qualificada). A rigidez constitui um obstáculo
para modificações ousadas, mas, ao mesmo tempo,
permite as revisões que se afiguram indispensáveis, a
fim de se obter mudanças legais e não transformações
radicais contrárias à Constituição. Por fim, foi
263
instituído um órgão apropriado que garantisse, de
modo uniforme, a conformidade da legislação com os
princípios constitucionais: a Corte Constitucional,
destinada a manifestar seu parecer por processos de
tipo jurisdicional. Seu juízo negativo implica a
anulação, para todos os efeitos, das leis do
Parlamento e de atos equiparados.
Para concluir este esboço, lembremos a atitude do
constituinte no que concerne às relações com
ordenamentos extrínsecos aos do Estado: é de
separação e recíproca independência quanto ao
ordenamento da Igreja católica, aceitos, no entanto, os
chamados Pactos de Latrão: de inserção do
ordenamento italiano no da comunidade internacional
e de adequação aos costumes que se reconhecem nele
vigentes. Em oposição à política de prestígio do
regime passado e de acordo com as firmes orientações
da política internacional e constitucional, repelem-se as
tendências expansionistas nas relações entre os Estados
e se afirma corajosamente a concepção pacifista, que só
aceita o recurso à guerra de defesa onde haja agressão,
permitindo a limitação da soberania do Estado em
condições de reciprocidade, com o fim de promover a
ordem e a paz, mesmo mediante a criação de
organismos internacionais.
De
não
pouca
importância,
conquanto
inorganizadas e fragmentárias, são, finalmente, as
normas que visam a garantir a subordinação da
organização militar à organização civil —
personificada pelo chefe do Estado, a quem está
confiado o comando simbólico das Forças Armadas
—. assegurando a conformidade do seu ordenamento
ao previsto pela Constituição democrática.
VI. SEU DESENVOLVIMENTO. — As opções do poder
constituinte nem sempre tiveram correspondência na
aplicação da Constituição; por isso, é conveniente fazer
uma referência aos traços essenciais da Constituição
material, tal qual se esboçou nestes últimos trinta anos.
A classe política demonstrou pouco entusiasmo no
cumprimento das diretrizes do poder constituinte, o
que é facilmente compreensível, se se levar em
consideração a rápida passagem pelos chamados
partidos antifascistas de boa parte da velha classe
dirigente. Isto tez com que se tornassem formais ou
fruto de veleidade muitas das afirmações da
Constituição, aliás já marcadas por compromissos que
levaram a soluções normativas polivalentes. Foi com
muito atraso que se criaram órgãos de importância,
como a Corte Constitucional (1956), o C.N.E.L. (1957).
o Conselho Superior da Magistratura (1958). e se
aprontou o sistema operativo das autonomias regionais
— iniciado ao mesmo tempo que a elaboração da
264
CONSTITUIÇÃO
Constituição, no tocante às regiões de estatuto
especial, e completado recentemente (1970), no tocante
às de estatuto ordinário —, bem como se pôs em
prática a previsão constitucional relativa ao referendum
(1970). Faltou um reexame sistemático da legislação
anterior à Constituição, com o fim de se eliminar
explicitamente normas em claro contraste com ela,
como as contidas nos códigos penais e na lei da
segurança pública. O enorme atraso com que se
decidiu pôr a funcionar a Corte Constitucional foi
causa do agravamento dessa situação, dado que a
magistratura, que se tornara árbitro das decisões
respeitantes à constitucionalidade das leis, embora com
efeitos limitados ao caso examinado, começou a fazer
distinção
entre
as
normas
constitucionais
imediatamente preceptivas e as normas preceptivas de
eficácia diferida ou simplesmente programática,
restringindo sensivelmente o número daquelas e
reduzindo praticamente a letra morta boa parte da
Constituição, mormente no que concerne aos direitos
da liberdade, uma vez que a não perceptividade das
normas não seria capaz de provocar a ab-rogação das
normas em conflito com a Constituição. Em manifesto
contraste com esta orientação, a Corte, desde a sua
primeira sentença, afirmou o princípio da
ilegitimidade constitucional das leis que estavam em
conflito com as próprias leis ditas programáticas da
Constituição.
Melhor se poderá compreender o real funcionamento
das instituições italianas nas décadas passadas se se
levar em conta a influência que teve o sistema
partidário na vida da Constituição e a impossibilidade
de se obter a alternância entre partidos do Governo e
partidos de oposição no controle do aparelho estatal,
tal como ocorre em outros ordenamentos de Governo
parlamentar.
Em primeiro lugar, como acontece afinal em todos
os ordenamentos pluralistas contemporâneos, a
aplicação prática dos preceitos constitucionais
relativos à forma de Governo tem-se revelado como
condicionada pelo papel determinante dos partidos
políticos. De acordo com o previsto pela Constituição,
parece que os partidos deveriam representar o ponto de
ligação entre comunidade e aparelho, sendo
significativo o papel desempenhado pelos seus
programas na seleção da representação parlamentar
por parte do eleitorado; os programas dos partidos (de
maioria) exercem, além disso, um papel
importantíssimo na definição da plataforma
programática do Governo, em fase de confiança.
Escolhida a representação, esta deveria desvincular-se
do eleitorado (proibição de mandato imperativo) e,
portanto, teoricamente, também dos partidos. Logo
que investido de confiança, o Governo deveria levar
avante seu programa com o apoio da maioria, dado
como existente enquanto não lhe for retirada a
confiança, ou por voto parlamentar expresso, ou por
uma evidente e repetida rejeição de iniciativas
governamentais. Nessa ação de estímulo deveria ser
decisivo o papel do Presidente do Conselho, dotado de
amplos poderes de direção e coordenação e em posição
de clara preferência em relação aos ministros que
integram o Gabinete.
De fato, os partidos — que deveriam ser o meio
pelo qual os cidadãos contribuem "democraticamente
para a fixação da política nacional", mas que escapam,
na realidade, a todo controle no que se refere à sua
democracia interna e aos seus modos de financiamento,
tendo-se revelado freqüentemente como instrumento
do poder de restritas e sólidas oligarquias burocráticas
fortemente centralizadas — têm-se manifestado como
os maiores centros de controle, não só da comunidade
como do aparelho estatal. Seria, porém, inexato
pensar, fora de certos limites, que tal situação contrasta
com as opções da Constituição, que vê nos partidos o
elemento motor do sistema político. A Constituição
oferece aos partidos uma ampla gama de
possibilidades, que foram usadas e aproveitadas na
realidade, mas se desviaram do espírito com que
haviam sido concebidas como
válidas e
indispensáveis: em vez de pô-las ao serviço dos
interesses gerais da coletividade, orientando-as a uma
"política nacional" definida, os partidos fizeram delas
muitas vezes um instrumento para a satisfação de
interesses predominantemente setoriais.
É particularmente importante o papel que
desempenharam os partidos na escolha da
representação parlamentar, por eles condicionada não
só através dos programas apresentados, como,
sobretudo, através do incontrolável poder de seleção e
designação dos candidatos propostos em lista aos
votantes. Formada a representação, deputados e
senadores ficam subjugados à disciplina do partido —
mais ou menos rígida conforme a organização interna do
mesmo — que restabelece a favor do partido, não dos
eleitores, o mandato imperativo. O respeito pela
disciplina do partido é condição indispensável para a
reconfirmação do eleito por parte dos eleitores, após
sua reinscrição na lista de que só o partido é árbitro.
Ainda a propósito das relações entre maioria
parlamentar e Governo, é preciso chamar a atenção
para a importância do papel dos partidos de maioria,
que tira significação a muitas das normas sobre o poder
de direção do Presidente do Conselho.
Na realidade italiana, a participação de vários
partidos no Governo acentuou a tendência à
negociação cotidiana sobre decisões importantes entre
as direções partidárias — não apenas em
CONSTITUIÇÃO
matéria de diretrizes, mas, com freqüência, em
matéria simplesmente administrativa — e aumentou de
forma cada vez mais preocupante a instabilidade do
ministério.
Contrariamente à necessidade de coesão do Conselho
imposta pela Constituição e ao papel decisivo do
Presidente também por ela vigorosamente sublinhado, o
Gabinete se tem revelado como centro de registro das
opções partidárias e o Presidente, mais como mediador
e conciliador de contrastes entre os ministros de
diversos partidos e das suas inumeráveis correntes, do
que como centro de orientação visando à realização do
programa do Governo.
Tem-se revelado particularmente perigosa a ação dos
dirigentes de partido pelo papel que a Constituição
atribui à oposição parlamentar. O entendimento, que
tende a radicar-se, faz deles os árbitros indiscutíveis
da decisão sobre a oportunidade de apresentar o
pedido de demissão do Governo. Não só isso. As
crises, agora sempre extraparlamentares, tendem a
apresentar-se de tal maneira, que tiram às oposições o
poder de crítica e censura da ação do Governo no
Parlamento.
Tratemos agora da questão da falta de alternância
entre os partidos no desempenho dos respectivos
papéis de Governo e oposição.
Em contraste com o que se verifica em outros
ordenamentos de Governo parlamentar, a falta de
rotatividade nos papéis partidários é efetivamente um
dos aspectos mais significativos do funcionamento da
Constituição italiana. Isso deriva do caráter
heterogêneo da sociedade, que deu origem a partidos
políticos entre si não substituíveis no controle do
Estado, por causa da insuficiente legitimação dos
partidos de esquerda, como conseqüência da criação
de acordos que tendiam a excluí-los da formação dos
Governos.
Procurou-se pôr remédio a esta situação, que, se
pusermos de lado rodízios parciais nas alas extremas
da coalizão majoritária, comporta certa tendência à
imobilidade nos papéis da maioria e da oposição,
associando a oposição na formação das decisões
políticas, pelo menos nas de nível parlamentar, ao
mesmo tempo que se ampliava a área da intervenção
das assembléias e das comissões, em prejuízo das
competências do Governo. Foi assim que se chegou à
contestação da regra da decisão política autosuficiente da maioria governamental, para a substituir
ou completar com um método de decisão que
envolvesse o concurso de todos os partidos —
excetuada a direita chamada "arco constitucional" —,
com base em seu peso parlamentar. Este método
levava, pois, à introdução do princípio da transação ou
do compromisso entre os diversos partidos da maioria
e da oposição, em vez ou a par do princípio
265
majoritário.
Como foi posto em relevo pelos estudiosos, que
nestes últimos anos se dedicaram à análise do
funcionamento
do
Parlamento
italiano,
as
características constantes do sistema em relação ao
passado são: o uso do modelo majoritário só na
assembléia, onde existe a tendência a manter-se a
confrontação Governo e maioria-oposição; o uso do
modelo proporcional-pactício nas comissões. Mas o
último só se dá em casos de legislação marginal,
havendo uma certa tendência a remeter à assembléia as
decisões mais importantes, sempre que se torne
problemático para a maioria impor seu ponto de vista
e ela não esteja disposta a transigir.
Existe já abundante documentação para comprovar
o que acabamos de afirmar. A demonstração da falta
de auto-suficiência da maioria e da importância das
iniciativas parlamentares e oposicionistas deriva destes
dados. Nas quatro primeiras legislaturas (1948-1968),
foram aprovados 84% dos projetos governamentais e
18% dos projetos parlamentares. No total, um quarto
da legislação aprovada é de origem parlamentar e,
desta, 14% proveio do P.C.I. As propostas
parlamentares que obtiveram maior sucesso são as
apresentadas conjuntamente pela D.C., P.C.I. e outros
(um terço das propostas de origem parlamentar). As
emendas possuem um papel de grande importância,
evidenciando a contribuição da oposição na criação das
leis. Especialmente nas comissões deliberativas, a
influência efetiva das emendas do P.C.I. tem sido de
grande relevância na modificação das iniciativas
governamentais. No período de 1948-1971, conforme
cálculos, um quinto das emendas propostas (unidade =
artigo de texto) passou.
Tem sido importante a contribuição das oposições
na aprovação das propostas do Governo. No que se
refere às cinco primeiras legislaturas, as leis
aprovadas obtiveram, em média, 75% dos votos, ou
seja, maiorias mais amplas que as do Governo.
Segundo uma amostra examinada, neste período, dois
entre três projetos de origem governamental foram
aprovados com votos do P.C.I.
A insuficiência da maioria levou o Governo a usar,
de maneira cada vez mais maciça, os decretos-leis: 222
no período da primeira à quarta legislatura (19481968); 193 no período da quinta à sexta (1968-1976);
143 nos quase três anos da sétima (1976-1979). O
decreto-lei tornou-se, pois, uma iniciativa de lei
reforçada. Mas o outro aspecto do problema é a
incidência das manipulações parlamentares durante as
discussões: 70% dos decretos da quinta e sexta
legislaturas sofreram emendas; nas quatro primeiras só
40%.
Considerado o acordo compromissório entre
266
CONSTITUIÇÃO
maioria e oposição no Parlamento, é preciso dizer, no
entanto, que tal acordo concerne, em regra, a matérias
não controversas, suscetíveis de uma mais fácil
concordância (medidas setoriais, disciplina referente
ao status e à posição econômica dos adscritos à
administração pública, incentivos, etc), quer sejam de
iniciativa parlamentar ou governamental. A legislação
fundamental não entraria nesse acordo.
A experiência italiana mostra o risco que encerram
as soluções constitucionais de compromisso que levam
a Constituições programáticas de atuação retardada.
O confronto ideológico entre os partidos mais
importantes e a sua recíproca desconfiança tornam mais
difíceis as possibilidades de escolha, gerando o
imobilismo nos papéis do Governo e da oposição. Esta
não se resigna a ser excluída da possibilidade da
alternância no poder e tende a condicionar o Governo,
no âmbito parlamentar onde está presente, com atos
constitucionais. O modelo decisório de maioria
mantém-se, em geral, como modelo básico, mas, na
prática, no Parlamento, tende a ser suplantado pelo
modelo proporcional em que cada grupo presta a sua
contribuição por meio de propostas, emendas e votos.
As comissões parlamentares deliberativas são o lugar
ideal para o método pactuai, enquanto que, na
assembléia, subsiste o confronto dos papéis e a
aplicação da regra majoritária. A indefinição em torno
da legitimação do Governo conduz à indefinição das
regras decisórias, bloqueando e diferindo as decisões
mais importantes, enquanto se chega ao compromisso
sobre decisões marginais.
Neste quadro, caracterizado por uma notável
precariedade, é compreensível a revalorização do papel
do chefe do Estado e da Corte Constitucional, não
porque estes órgãos estejam totalmente desvinculados
dos partidos, mas porque a Constituição previu
dispositivos de organização que auxiliam, onde quer
que seja, o desejo de desenvolver uma ação
independente dos interesses particulares e mais
concorde com as necessidades de toda a coletividade
nacional.
Fixando nossa atenção no papel do chefe do
Estado, lembraremos que a Constituição continha os
germes da sua possível evolução, quer num sentido
neutro (do Presidente como mediador, como
equilibrador e garante do sistema, dotado de poderes de
limitação e reflexo meramente negativos), quer no
sentido qualificado, reconhecendo-lhe uma direção
própria, conquanto distinta da da maioria (a do
Presidente dotado de poderes de veto, de mensagem,
de direção de importantes órgãos colegiais,
interpretados não apenas negativa, mas também
positivamente). Parece que o poder constituinte era
pela primeira alternativa.
mas tal propensão estava ligada à convicção de que a
estrutura organizativa do Estado havia de estar
solidamente baseada no funcionamento de um
Governo parlamentar, que considerasse o Governo
como detentor de reais e eficazes instrumentos de
direção. Em vez disso, a instituição governamental tem
sofrido uma profunda e cada vez mais acentuada
involução: perdeu progressivamente credibilidade,
revelando-se sobretudo sujeita a uma crônica
instabilidade e a um preocupante enfraquecimento do
seu poder de governar.
Em tal situação, tornou-se evidente a importância
da estabilidade setenial do chefe de Estado, compatível
com a alternância, mesmo profunda, do equilíbrio das
maiorias parlamentares e com a renovação integral
dos órgãos do Parlamento no fim das legislaturas. Nem
mesmo vale o argumento da sua eleição parlamentar,
sem uma base popular direta, para diminuir sua
posição e sua força, uma vez que a base eleitoral de
que precisa, mais ampla que a maioria governativa,
lhe realça a representatividade. Esta importância é
confirmada pela experiência. A primeira tendência
revela-se no período em que os Governos
monocolores e estáveis davam ao Presidente do
Conselho, apoiado pelo seu partido, um papel efetivo
de chefia; a segunda tendência se consolida com a
instauração de Governos de coalizão, governos débeis
e instáveis (presidência de Gronchi), e se manifesta na
negação da tese da titularidade presidencial de poderes
meramente negativos e na revalorização dos poderes
que podem ser desempenhados independentemente da
participação de outros órgãos constitucionais.
VII.
TENDÊNCIAS
CONSTITUCIONAIS
CONTEMPORÂNEAS. — Restringindo nossa observação
às linhas gerais da tendência atual, veremos que o
quadro das experiências constitucionais apresenta
vários tipos distintos: as dos Estados comumente
definidos como "de democracia clássica", inspirados
nos princípios da democracia liberal, as dos Estados
socialistas, as dos Estados autoritários e, finalmente,
as dos Estados de independência recente.
Podemos considerar o período imediatamente
posterior ao primeiro conflito mundial como o
momento inicial de notáveis divergências acerca do
modelo constitucional clássico, desenvolvido na
esteira das primeiras Constituições do século XVIII, a
francesa e a americana, e influenciado pela
experiência constitucional britânica. Nessa altura,
enquanto muitos ordenamentos tentavam adequar,
mediante ampla inovação e racionalização, os textos
constitucionais às novas exigências
CONSTITUIÇÃO
políticas e sociais, outros enveredavam pelas
experiências constitucionais do Estado autoritário e
socialista. As Constituições democráticas elaboradas e
sancionadas na Europa depois de 1918 procuraram,
quase sempre, adaptar às necessidades peculiares as
experiências do Parlamento britânico e francês, dando
algumas preferências à assembléia, outras ao Governo,
em especial ao chefe do Estado. Entre as numerosas
Constituições apresentadas pelos países da Europa
centro-oriental, báltica e balcânica, mereceram sempre
um interesse particular a alemã, de 1919 (Constituição
de Weimar), a austríaca e tchecoslovaca, de 1920, e,
mais tarde, na península ibérica, a Constituição
republicana espanhola, de 1931. Muitas dessas
Constituições tentavam, não só oferecer uma
disposição
"racionalizada"
da
organização
constitucional, como também garantir, ao lado dos
tradicionais direitos à liberdade, os chamados direitos
sociais.
Terminado o segundo conflito mundial, uma nova
série de Constituições veio confirmar a fidelidade
substancial de muitos ordenamentos ao conceito
liberal-democrático do Estado. Preocuparam-se em
ampliar as garantias sociais, bem como as das
autonomias territoriais. Exemplos desta fase são a
Constituição francesa de 1946, a italiana de 1947, a
alemã de 1949. Mais tarde, a Constituição gaullista de
1958 introduzia uma ordem institucional que
conciliava a forma de Governo parlamentar com a
forma presidencial, pondo em ato a tendência, comum
em alguns ordenamentos europeus de Governo
parlamentar, a um claro robustecimento do executivo.
Da corrente do constitucionalismo clássico se
afastou abertamente a experiência constitucional da
Rússia soviética, com o texto de 1918 e, em particular,
com o texto federal de 1924 e os de 1936 e 1977,
tendentes a estabelecer os pressupostos necessários à
realização dos princípios do socialismo, que haviam
de levar à consolidação da sociedade comunista. A
Constituição stalinista de 1936 — especialmente
depois de uma primeira fase caracterizada por textos
constitucionais provisórios, num período que vai de
1945 a 1948, e viu sobreviver precariamente institutos
próprios de ordenamentos precedentes — tornou-se o
modelo das Constituições adotadas pelos países da
Europa oriental pertencentes à esfera de influência
russa.
Afora o caso particular da Tchecoslováquia que. na
Constituição
de
1948,
mantinha
soluções
aparentemente contraditórias, entre 1947 e 1954, a
Bulgária, a Hungria, a Polônia, a Alemanha oriental e
a Romênia amoldaram-se fielmente ao modelo russo
de 1936, enquanto no período pós-staliniano surgiam
novos textos a adaptar os prin-
267
cípios do socialismo às exigências nacionais. Há,
enfim, experiências particulares em outros países,
como a Iugoslávia que, desde 1946, vem atualizando
com freqüência as suas Constituições, de acordo com
o mudar das exigências políticas internas, e a China
que, após a lei orgânica do Governo popular de 1949 e
a Constituição de 1954, muito próxima do modelo
russo de 1936, adotou, em 1975 e 1978, novas
Constituições.
Enquanto as Constituições dos países socialistas se
opõem claramente ao constitucionalismo clássico,
tanto aos princípios, como às soluções organizativas, o
mesmo não se pode afirmar invariavelmente das dos
Estados autoritários, bem como das dos Estados há
pouco independentes.
Geralmente
se
evocam
ás
experiências
constitucionais da Itália fascista e da Alemanha
nacional-socialista como típicas do Estado autoritário.
A elas se juntam as dos Estados da Península Ibérica e
as de mais alguns Estados europeus anteriores ou
contemporâneas ao segundo conflito mundial.
Estas experiências, que se caracterizavam por uma
certa forma de reação em relação a uma temida
democratização dos ordenamentos liberais, e tendiam
a prevenir a instauração de ordenamentos socialistas,
tinham por base o partido único, portador da ideologia
oficial, única legal. Encontraram sua orgânica
sistematização num único texto constitucional, na
Constituição portuguesa de 1933.
As experiências da maior parte dos Estados de
recente independência do chamado Terceiro Mundo
estão marcadas por soluções acentuadamente
autoritárias: as numerosíssimas Constituições
adotadas estão, muitas vezes, inspiradas, não só em
opções originais, como também na ideologia liberal
ou socialista; mas as soluções orgânicas previstas dão
vantagem ao critério da concentração do poder num
líder nacional, que é ao mesmo tempo chefe do
executivo e chefe do partido único, imposto quase por
toda a parte. As formas de garantia da autonomia
individual e coletiva, quando previstas, estão
destinadas a manter-se meramente nominais.
BIBLIOGRAFIA. — AUT. VAR., Raccolta di scritti sulla
Costituzione, Giuffrè, Milano 1958, vol. 5; Id., Studi
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Vallecchi, Firenze 1969, vol. 6; Id., Il sistema delle
autonomie: rapporti fra Stato e società civile, Il Mulino.
Bologna 1979; A. AMORTH, La Costituzione italiana.
Commento sistematico. Giuffrè, Milano 1948; P.
BARILE, La revisione della Costituzione e potere
costituente. in Scritti di diritto costituzionale, Cedam,
Padova 1967; G. BASCHIERI, L. BIANCHI D'ESPINOSA e C.
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analitico, Noccioli, Firenze 1949; Commentario della
268
CONTENÇÃO
Costituzione, ao cuidado de G. BRANCA. Zanichelli, Bologna
1975; P. CALAMANDREI e A. LEVI, Commentario sistematico alla
Costituzione italiana, Barbera, Firenze 1960; E. CHELI,
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1978; V. CRISAFULLI, La Costituzione e le sue disposizioni di
principio. Giuffrè, Milano 1952; Id., Lezioni di diritto
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Cedam. Padova 1976; V. FALZONE, F. PALERMO e F.
COSENTINO, La Costituzione della repubblica italiana. ilustrada
com os trabalhos preparatórios (1948), reedição, Mondadori,
Milano 1976; V. GUELI, Diritto Costituzionale provvisorio o
transitorio. Soc. Ed. Il Foro Italiano, Roma 1950; C. LAVAGNA,
Costituzione e socialismo. Il Mulino, Bologna 1977; F.
MODUGNO, Il conceito di Costituzione. in Scritti Mortati. I,
Giuffrè, Milano 1977; C. MORTATI, La Costituzione in senso
materiale, Giuffrè, Milano 1940; Id., Costituzione. dottrine
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del diritto, vol. XI, Giuffrè, Milano 1962; G. U. RESCIGNO,
Costituzione italiana e Stato borghese. Savelli, Roma 1975.
[GIUSEPPE DE VERGOTTINl]
Contenção.
I. DEFINIÇÃO. — Por Contenção entendemos a ação
desenvolvida por um Estado ou grupo de Estados
tendente a impedir a expansão ideológica, política,
econômica e estratégica de outro Estado para além da
sua concordada ou presumível "esfera de influência".
Manifesta-se através de providências e iniciativas de
caráter ideológico, político, econômico e estratégico
contrárias às do Estado cuja ação se deseja conter nas
zonas onde, graças ao surto de fenômenos de crise,
podem criar-se vácuos de poder que atraiam tal ação e
acelerem seu dinamismo natural ou calculado. As
ajudas econômicas aos países em vias de
desenvolvimento, a formação de sistemas de alianças
coletivas, a intensificação da propaganda ideológica, a
intervenção armada onde for necessário, são os
principais instrumentos de apoio da política de
contenção. Para se dar, a Contenção pressupõe a
existência de um antagonismo e, conseqüentemente, de
um conflito latente, de natureza ideológica, política,
econômica e estratégica entre duas potências
propensamente hegemônicas, ou entre grupos de
potências igualmente divididas por rivalidades dessa
mesma natureza, que poderiam explodir, ultrapassado
um certo ponto de ruptura estabelecido por ambos os
campos, em guerra hostil. Ela requer, portanto, a.
divisão do mundo, ou de particulares zonas de
interesse estratégico, em "esferas de influência"
explícita ou tacitamente convencionadas, dentro das
quais cada potência (ou grupo de potências) exerce
com
exclusividade sua ação hegemônica e põe em ato sua
própria política de Contenção em relação às
eventuais intromissões da outra.
II. PERFIL HISTÓRICO. — A política de Contenção
teve seu auge, no plano histórico, desde o surgimento
do Estado bolchevista na Rússia pós-revolucionária até
à deflagração da Segunda Guerra Mundial, com a
ação das democracias ocidentais a tentar impedir a
difusão pelo mundo dos seus princípios ideológicos,
mas, sobretudo, desde o fim da Segunda Guerra
Mundial e início da chamada guerra fria, com a ação
dos Estados Unidos tendente a obstruir a expansão
político-ideológico-estratégica da União Soviética na
Europa. Conseqüência natural, primeiro, do estado de
desconfiança
de
um
grupo
de
Estados
ideologicamente hostis ao comunismo, e do conflito
de poder entre dois Estados com tendências
hegemônicas depois, a política de Contenção
representa, por conseguinte, um dos aspectos mais
significativos da forma como se expressou o
antagonismo entre a ideologia comunista —
identificada com o Estado soviético e, posteriormente,
também com o Estado chinês — e o mundo
capitalista a nível de confronto de poder. A
"doutrina" da Contenção foi formulada primeiro pelo
diplomata G. Kennan num famoso artigo de "Foreign
Affairs", sendo oficialmente definida em 12 de março
de 1947, quando o presidente dos Estados Unidos, H.
S. Truman, pediu ao Congresso autorização para um
programa de ajuda à Grécia, devastada pela guerra
civil, e à Turquia, sujeita a pressões por parte da
União Soviética, que queria comparticipar no
controle dos estreitos. "Creio — disse na altura
Truman, fixando as condições da política americana
de Contenção — que a política dos Estados Unidos
deve ser a de assistência aos povos livres que lutam
contra as tentativas de opressão oriundas de minorias
armadas ou de pressões externas". O presidente
americano prefigurava desta maneira quer os
sucessivos programas de ajuda dos Estados Unidos aos
países não comunistas, quer a formação de sistemas
de alianças coletivas sob a leadership de Washington,
quer, enfim, a direta intervenção militar
estadunidense onde necessário. Sob o aspecto
histórico, a "doutrina Truman" da Contenção pode ser
definida como uma ampliação da "doutrina Monroe"
(limitada à América) ao outro lado do Atlântico, à
Europa não comunista, que enfrentava a União
Soviética, e, depois, como corolário lógico, ao outro
lado do Pacífico, à Ásia não comunista, que
enfrentava a República Popular da China. A ação de
rígido controle político-ideológico exercida pela União
Soviética sobre os Estados "satélites" (v. SATÉLITE) da
Europa central e oriental,
CONTRATO COLETIVO
baseada na chamada "doutrina da soberania limitada"
dos países comunistas (que dá como certo o direito de
intervenção da URSS nos negócios internos dos
próprios "satélites", quando a ordem marxista-leninista
foi, a seu juízo, perturbada), obedece, em termos
comunistas e antiocidentais, à mesma lógica da política
de Contenção usada pelo Ocidente em relação à Rússia
e à China comunista.
III. TEORIA E PRÁTICA DA CONTENÇÃO. — A política
de Contenção responde, em teoria, a certos postulados:
oposição entre as diferentes concepções filosóficas e
relativo convencimento da sua indivisibilidade;
necessidade conseqüente de agrupar todos aqueles que
professam o mesmo tipo de ideologia, em sistemas de
segurança coletiva, e de isolar os que professam uma
ideologia contrária; convicção de que a manutenção do
status quo é a única condição da paz, acima e à
margem das organizações mundiais internacionais
encarregadas de dirimir as controvérsias entre as
nações e de zelar pela conservação da paz; rejeição da
ideologia adversária como verdadeira e autêntica
ideologia autônoma. O conceito da indivisibilidade da
ideologia, isto é, a negação da possibilidade de
existirem interpretações pluralistas da doutrina comum
dentro dos grupos opostos, exigia um mundo antes
rigidamente dominado pelas ideologias do que
dividido pelos interesses. Mas o acentuar-se do conflito
sino-soviético, o desaparecimento de Mao Tsé-Tung
(setembro de 1976), o abandono, por parte dos
chineses, da política de apoio aos movimentos
insurrecionais do Terceiro Mundo, o restabelecimento
das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a
China (janeiro de 1979) e, sobretudo, a convergência
de interesses dos dois países no tocante à necessidade
de uma política de Contenção diante do dinamismo
internacional da URSS, acabaram por conferir, no
plano teórico, à política de Contenção uma conotação
estratégica mais especificamente anti-soviética do que
genericamente anticomunista.
A necessidade da criação de sistemas de segurança
coletiva entre os que professam o mesmo tipo de
ideologia leva ao surgimento de organismos políticomilitares multinacionais, onde o aspecto puramente
militar tende muitas vezes a sobrepor-se a qualquer
outra consideração ético-política, por causa do caráter
totalitário que tais organismos acabam por assumir do
ponto de vista estratégico; resulta daí a confusão entre
os fins (afirmação dos valores comuns) e os meios
(aliança político-militar), com o predomínio destes,
mediante
sua
"finalização",
sobre
aqueles.
Conseqüências análogas, isto é, aceitação das regras
da
269
Realpolitik, a expensas das motivações ético-políticas,
traz também a manutenção do status quo como única
condição da paz, e a adoção como ideologia autônoma,
mas não por isso qualificante, da negação pura e
simples da ideologia adversária. Deste modo, torna-se
aspecto secundário da política de Contenção,
encontrando sua justificação histórica e política, a
teoria, de origem marxista-leninista, do isolamento de
um Estado (ou de um grupo de Estados) por obra de
um cordão de Estados ligados entre si quer pela
ideologia comum, quer pelo simples objetivo de não
deixar ao Estado (ou grupo de Estados) isolado
qualquer possibilidade de expansão territorial, política,
estratégica, econômica e ideológica.
[PIERO OSTELLINO]
Contrato Coletivo.
I. DEFINIÇÃO. — Contrato coletivo é o processo
mediante o qual, em grande parte dos países
industrializados do Ocidente, são ajustadas de comum
acordo as condições de emprego da força de trabalho.
Os atores desta "regulação conjunta'' (Flanders, 1968)
são os empregadores, individual mente ou através das
suas associações (v. ASSOCIAÇÕES PATRONAIS), e os
sindicatos dos trabalhadores (v. ORGANIZAÇÕES
SINDICAIS). Pressupõe o reconhecimento dos sindicatos
por parte das empresas: quanto maior for o
reconhecimento e aceitação, tanto mais intensa (em
termos de quantidade) e extensa (em termos de áreas e
matérias abrangidas pelo acordo e de número de
trabalhadores envolvidos) será a atividade contratual.
O recurso principal de que se v;,le o sindicato para
forçar a direção das empresas a negociar o preço e
condições de trabalho (em vez de o decidir
unilateralmente) é a sua capacidade de organizar a
suspensão da atividade dos trabalhadores (v. GREVE):
em face da efetivação ou da ameaça de greve, as
direções aceitarão pactuar em troca de uma retomada
regular do trabalho, associando o sindicato na
regulamentação das condições de emprego. O Contrato
coletivo, lembrou recentemente Pizzorno de acordo
com o pensamento de Flanders, se caracteriza,
portanto, como um "processo normativo mediante o
qual os sindicatos, juntamente com a direção, agem de
modo semelhante ao de um Governo privado"
(Pizzorno, 1977, 409).
II. CONDIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO DO CONTRATO
COLETIVO. — Se a contratação constitui
270
CONTRATO COLETIVO
hoje uma função central da ação dos sindicatos nos
países desenvolvidos do Ocidente, o seu incremento é
relativamente recente. Por outro lado, ela não é o
único modo de regular as condições de emprego dos
trabalhadores dependentes. Como já observavam os
Webb, outras vias utilizadas são a da regulamentação
unilateral por parte das organizações dos trabalhadores
e a da regularização por via legislativa, mediante ação
política.
Chamberlain e Kuhn documentaram amplamente a
prática da regulamentação unilateral na época do
florescimento dos sindicatos de ofício. Neste caso, é a
associação da profissão que estabelece, mediante pacto
subscrito por todos os associados, as condições da
prestação de trabalho; são condições que se procurará
impor às empresas, sob a recusa de trabalhar por
menos. Isso pressupõe evidentemente que nenhum
trabalhador do ofício aceite condições inferiores ou,
dito de outra forma, requer um controle rigoroso da
oferta no mercado de cada profissão. É por isso que os
sindicatos de ofício desenvolveram sistemas de sanções
contra quem infringe o acordo, de subsídios a quem se
encontra temporariamente desempregado e, sobretudo,
de fiscalização do ingresso na profissão mediante
monopólio do aprendizado (Chamberlain e Kuhn,
1965).
Se a via da regulamentação unilateral está
estreitamente ligada ao sindicalismo de ofício em
condições de mercado favoráveis à oferta (e disso
encontramos ainda hoje vestígios principalmente nos
procedimentos das associações profissionais) (Clegg,
1980), a via da regulamentação por intervenção
legislativa, decorrente de pressões a nível político,
constituiu por longo tempo a única possibilidade de
estabelecer normas gerais destinadas à tutela das
condições de trabalho dos operários não profissionais;
e isso tanto mais quanto maiores as suas condições de
debilidade no mercado.
A partir dos grandes movimentos de reforma social,
aí por meados do século passado, e a seguir, após a
criação dos sindicatos de indústria que organizam
também as grandes massas de operários sem
qualificação, até aos nossos dias, o recurso à ação
política, tanto direto como indireto (com o apoio dos
partidos socialistas), se vai tornando predominante,
sempre que se afigura mais vantajoso ou menos
desfavorável que a ação econômica (Pizzorno, 1976).
O desenvolvimento dos Contratos coletivos torna-se
possível quando o sindicato se transforma numa
organização estável, capaz de durar, e a sua
sobrevivência não está sujeita às flutuações do ciclo
econômico. Isso ocorre graças a uma forte expansão da
indústria em condições de mercado do trabalho
substancialmente favoráveis à oferta, como acontece
nos Estados Unidos desde
o fim do século passado, ou graças ao apoio de
legislações favoráveis aos sindicatos, como acontece
em muitos países nos períodos de guerra, quando os
sindicatos aceitam ser garantes do bom funcionamento
da produção em troca de reconhecimento.
III. OS DIVERSOS SISTEMAS CONTRATUAIS. —
Em harmonia com a posição ocupada na divisão
internacional do trabalho, com as características do
mercado de trabalho interno, com o grau de
diversificação da base produtiva e com a idade e tipo
de sindicalismo conseqüentemente criado, em cada um
dos países industrializados foram-se definindo sistemas
contratuais específicos (Pizzorno, 1976).
O que caracteriza um sistema contratual são o nível
ou níveis a que se dá o contrato, o quadro de normas
que regulam os procedimentos e o conjunto de
matérias que podem ser negociadas, a totalidade dos
trabalhadores a que se aplicam os acordos e as práticas
previstas na administração do contrato.
Pelo que respeita aos níveis de contratação, temos
dois extremos: por um lado, aquele em que se negocia
quase exclusivamente a nível nacional, entre os
sindicatos nacionais e as associações dos empresários,
sendo de escasso peso a contratação a nível local
(como na Itália pelos anos 50 e como na França
durante muito tempo); por outro, aquele em que a
contratação se dá em níveis descentralizados, mediante
contrato de empresa (como nos Estados Unidos). São
numerosíssimas as soluções intermédias onde, a par de
contratações centralizadas sobre algumas matérias
gerais (como a fixação dos salários mínimos e do
horário de trabalho); podem existir contratações
descentralizadas de nível regional, local, de empresa,
ou até mesmo de seção.
Pode-se afirmar em linhas gerais que quanto mais
centralizada for a contratação, tanto mais se
empenharão os sindicatos em encontrar estratégias
gerais de coordenação e equiparação das condições de
emprego (sindicatos "de classe"); quanto mais se der a
níveis descentralizados, tanto mais o sindicato se
mostrará sensível à evolução econômica de cada uma
das empresas (como no chamado business unionism
americano).
O próprio quadro normativo, dentro do qual se
verifica
o
processo
de
negociação,
varia
consideravelmente de país para país. Há casos como o
da Alemanha Federal em que o Contrato coletivo
identificava perfeitamente, para homens como peita
aos níveis em que é possível negociar as diversas
matérias, aos procedimentos a que é obrigatório ater-se,
às circunstâncias em que é legítimo
CONTRATO COLETIVO
ou não recorrer à greve, e aos casos em que se
interpõe a mediação arbitrai pública ou privada.
Em outros países como a Grã-Bretanha (antes das
leis referentes às relações industriais, década de 70), as
normas e procedimentos que regulam o Contrato
coletivo baseiam-se principalmente nos costumes,
livremente aceitos pelas partes e consolidados na
prática. Na Itália, a legislação prevê uma grande
liberdade de iniciativa das partes sociais, limitando-se
a estender erga omnes a validade dos Contratos
coletivos estipulados pelos sindicatos representativos;
o próprio recurso à mediação pública na solução dos
conflitos de trabalho, tornado mais freqüente no
decorrer dos anos 70, manteve-se no plano da iniciativa
voluntária, não obrigatória. Em geral, os sindicatos
italianos têm rejeitado até agora uma regulamentação,
mesmo que negociada com as partes opostas, da
atividade contratual. Neste sentido, o sistema italiano
parece um dos menos institucionalizados.
A matéria central da contratação é, direta ou
indiretamente, o salário, mediante a definição do
horário, dos cargos de trabalho, dos sistemas de
incentivação, do enquadramento das categorias, e da
carreira. É freqüente distinguir entre reivindicações
salariais e reivindicações de controle das condições de
trabalho, ou, talvez melhor, entre reivindicações que
implicam um melhoramento imediato do salário e
reivindicações que implicam um melhoramento
diferido e/ou um aumento do poder de intervenção dos
representantes sindicais (que ampliam a área e a
necessidade da mediação contratual). Outra possível
distinção é entre reivindicações cujos benefícios se
aplicam de modo igual a todos os trabalhadores a que
se refere o acordo e que reduzem as diferenças
salariais (objetivos igualitários), e reivindicações cujos
benefícios levam em conta as diferenças, profissionais
ou de status, que existem entre os trabalhadores (como
os aumentos percentuais).
A especificação dos objetivos contratuais que hão
de ser negociados com as outras partes e o modo de o
fazer (por consulta ou não aos trabalhadores, por
decisão da cúpula ou então por decisões periféricas)
constituem um dos aspectos centrais da atividade das
direções sindicais e um dos principais indicadores do
tipo de estratégia seguida pelos sindicatos. A
preferência em apoiar antes um objetivo do que outro,
um objetivo expresso em uma determinada forma e
não em outra, dependerá em cada caso da necessidade
de criar solidariedade entre diversos estratos da classe
operária, ou então de atender às solicitações de que são
portadores certos grupos específicos, de buscar
consenso e adesão, ou ainda de moderar as exigências
para alcançar maior reconhecimento junto das partes
opostas e para poder entrar com
271
maior confiança na negociação política com o
Governo.
Pelo que respeita à amplitude dos contratos, não é
só o quadro de matérias sobre as quais parece legítimo
intervir contratualmente, é também o número de
trabalhadores cujas condições de emprego são
reguladas por acordos, que têm aumentado
consideravelmente em todos os países do Ocidente. Na
Itália da década de 70, passou-se da contratação
mesmo minuciosa de muitos dos aspectos das
condições de trabalho à reivindicação de direitos de
informação e fiscalização sobre os planos de
desenvolvimento das empresas do setor industrial.
Mas, além da indústria, o método contratual estendeuse rapidamente à agricultura, aos serviços e ao setor
terciário privado e público em geral, na prática a toda
a economia. Contudo, na realidade, escapa à
capacidade de controle sindical a determinação das
condições de emprego dos trabalhadores ocupados na
chamada economia "invisível", ou setor não protegido
da economia.
Esta observação nos leva ao ponto final: os
contratos, além de negociados, são aplicados. O grau
de desenvolvimento de técnicas e procedimentos para
a gestão dos contratos é um dos traços que mais
diferenciam entre si os vários sistemas contratuais. É
provável que, sob este aspecto, a eficiência e eficácia
do sistema sejam função da antigüidade da
implantação sindical. Há casos, como o norteamericano e o sueco, em que o sistema dos processos
de
queixa
(grievance
procedure)
parece
minuciosamente regulado pelos acordos, cuja
aplicação constitui uma das atividades principais dos
representantes sindicais. São muito mais informais
outros sistemas, como o britânico, onde, por outro
lado, o sistema de controle levado a efeito pela ação
dos representantes de seção possui longa tradição e
está, de fato, muito desenvolvido, ou como o italiano,
onde a uma escassa tradição (até fins dos anos 60, o
sindicato não estava presente nos lugares de trabalho
— v. REPRESENTAÇÃO OPERÁRIA) se associa um
baixíssimo grau de formalização: a possibilidade de
controlar a aplicação do contrato será então
principalmente resultado de relações de força.
BIBLIOGRAFIA. - N. W. CHAMBERLAIN e J. W. KUHN, Collective
bargaining. McGraw Hill, New York 19652; H. CLEGG,
Sindicato e contrattazione collettiva (1976), F. Angeli, Milano
1980; Conflitti in Europa, ao cuidado de C. CROUCH, A.
PIZZORNO, Etas Libri. Milano 1977; A. FLANDERS, Bargaining
theory: The classical mudei reconsidered, in Industrial relations:
Contemporary issues, ao cuidado de B. ROBERTS, Macmillan,
London 1968; A. PIZZORNO, Osservazioni comparate sulle
rappresentanze del
272
CONTRATUALISMO
lavoro nei paesi capitalistici avanzati. in Problemi del movimento
sindacale in Italia. Feltrinelli, Milano 1976; Id., Scambio
politico e identità collettiva nel conflitto di classe. in Conflitti in
Europa, cit.; A. REES, The economics of trade unions. Oxford
University Press. Oxford 1962; S. e B. WEBB, La democrazia
industriale (1902), UTET, Torino 1912.
[IDAREGALIA]
Contratualismo.
I. PARA UMA DEFINIÇÃO DO CONTRATUALISMO.
— Com o Contratualismo tornou-se comum identificar
teorias muito diversas entre si. Por isso, a
possibilidade de definir, de modo adequado, corrente
tão complexa do pensamento ocidental depende quer
da adoção de perspectivas e ângulos diversos, quer do
seu confronto com as soluções dadas ao problema da
ordem política por outras correntes de pensamento.
Em sentido muito amplo o Contratualismo
compreende todas aquelas teorias políticas que vêem a
origem da sociedade e o fundamento do poder político
(chamado, quando em quando, potestas, imperium,
Governo, soberania, Estado) num contrato, isto é, num
acordo tácito ou expresso entre a maioria dos
indivíduos, acordo que assinalaria o fim do estado
natural e o início do estado social e político. Num
sentido mais restrito, por tal termo se entende uma
escola que floresceu na Europa entre os começos do
século XVII e os fins do XVIII e teve seus máximos
expoentes em J. Althusius (1557-1638), T. Hobbes
(1588-1679), B. Spinoza (1632-1677), S. Pufendorf
(1632-1694), J. Locke (1632-1704), J.-J. Rousseau
(1712-1778), I. Kant (1724-1804). Por escola
entendemos aqui não uma comum orientação política,
mas o comum uso de uma mesma sintaxe ou de uma
mesma estrutura conceituai para racionalizar a força e
alicerçar o poder no consenso.
É igualmente necessário fazer uma distinção
analítica entre três possíveis níveis explicativos; há os
que sustentam que a passagem do estado de natureza
ao estado de sociedade é um fato histórico realmente
ocorrido, isto é, estão dominados pelo problema
antropológico da origem do homem civilizado; outros,
pelo contrário, fazem do estado de natureza mera
hipótese lógica, a fim de ressaltar a idéia racional ou
jurídica do Estado, do Estado tal qual deve ser, e de
colocar assim o fundamento da obrigação política no
consenso expresso ou tácito dos indivíduos a uma
autoridade que os representa e encarna; outros ainda,
prescindindo totalmente do problema antropológico da
origem do homem civilizado e do problema filosófico
e jurídico do Estado racional,
vêem no contrato um instrumento de ação política
capaz de impor limites a quem detém o poder.
Três níveis diversos de explicação. O primeiro
engloba uma verdadeira série de dados antropológicos:
parte-se da origem do homem para demonstrar as
necessidades que o impelem a buscar pelo consenso
uma vida social, ou para explicar a passagem da horda
primitiva ou da sociedade tribal a uma forma de vida
social mais complexa e organizada, com o monopólio
do poder político baseado no consenso. Neste terreno o
Contratualismo se encontra com outras teorias que, no
plano histórico, se revelam bastante mais aguerridas. O
terceiro nível, ao invés, está estreitamente ligado à
história política e às vicissitudes constitucionais deste
ou daquele país; à menor coerência teórica destes
contratualistas corresponde uma maior eficácia prática
na efetiva organização do poder político.
No segundo nível, aquele em que se move de
preferência o. Contratualismo clássico, predomina, mas
não é exclusivo, o elemento jurídico como categoria
essencial da sintaxe explicativa: é que se vê
precisamente no direito a única forma possível de
racionalização das relações sociais ou de sublimação
jurídica da força. Isto se explica com base numa
tríplice ordem de considerações: a influência
contemporânea da escola do direito natural, com a qual
o Contratualismo está estreitamente aparentado; a
necessidade de legitimar o Estado, seja suas imposições
(as leis), num período em que o direito criado pelo
soberano tende a substituir o direito consuetudinário,
seja seu aparelho repressivo, num período em que o
exercício da força era por ele monopolizado;
finalmente, uma exigência sistemática, a de construir
todo o sistema jurídico — aí compreendido o público e
o internacional — usando uma categoria tipicamente
privada que evidencia a autonomia dos sujeitos, como
é o contrato, e colocando assim como base de toda a
juridicidade o pacta sunt servanda. Tudo isto se
desenrola dentro de um novo clima cultural que vê
cada vez mais o Estado como máquina, isto é, como
algo que pode e deve ser construído artificialmente,
em oposição à concepção orgânica própria da Idade
Média.
Foram três as condições para a consolidação na
história do pensamento político das teorias
contratualistas, no âmbito de um debate mais amplo
sobre o fundamento do poder político. Em primeiro
lugar, que um processo bastante rápido de
desenvolvimento político tirasse dos gonzos a
sociedade tradicional — a sociedade que sempre
existiu e que recebe, por conseguinte, sua legitimidade
do peso do passado — e instaurasse novas formas e
novos processos de Governo: como exemplo, a
passagem, na Grécia, da sociedade
CONTRATUALISMO
gentilícia à polis e, na Europa, a consolidação do
Estado moderno sobre a sociedade feudal, baseada nas
castas. Em segundo lugar, que houvesse uma cultura
política secular, isto é, disposta a discutir
racionalmente a origem e os fins do Governo, não o
aceitando passivamente por ser um dado da tradição
ou de origem divina. Em terceiro lugar, que a
sociedade não só conhecesse o instituto privado do
contrato, mas soubesse usá-lo de forma analógica:
entre os gregos, por exemplo, a palavra koinonía
indicava tanto uma associação econômica como
política, enquanto, entre os romanos, a sponsio
(promessa), usada na antiga compra-venda, servia
também para legitimar a lex, que assim se tornava
convenção de todos os indivíduos, sendo o povo a fonte
da lei: lex est communis rei publicae sponsio. A
finalidade é sempre a de dar uma legitimação racional
às ordens do poder, mostrando que ele se fundamenta
no consenso dos indivíduos.
Estas premissas tendem a excluir a possibilidade do
Contratualismo das sociedades cuja cultura política
está profundamente impregnada de motivos sagrados e
teológicos, como, por exemplo, a hebraica e a
medieval. É forçoso, todavia, reconhecer que o termo
"pacto" é elemento central, muito elaborado, na
teologia hebraica e na teologia da aliança dos
puritanos; ele serve, no entanto, não para instaurar um
Governo, mas para indicar uma aliança sagrada entre
Deus e o povo eleito ou o pacto de graça do novo
Israel; é um pacto que tem como única finalidade a
salvação ultraterrena, entre dois contraentes que se
acham em condições de incomensurável disparidade.
Com isto não se pretende, contudo, negar a influência
da teologia da aliança, baseada no covenant, sobre o
moderno constitucionalismo.
É mais complexo falar da temática contratualista
que assoma do pensamento político medieval,
dominado, de um lado, pelo princípio teológico do non
est potestas nisi a Deo e por um conceito orgânico da
sociedade, mas, do outro, imbuído de forte senso do
direito. Como veremos no último parágrafo, esta
temática contratualista consegue progredir com a
distinção de João de Paris entre a causa formal do
poder, que é Deus, e a causa material da pessoa do
poder, que é o povo. Porém, tal temática, se bem que
desse origem ao Contratualismo clássico, pertence antes
à história do constitucionalismo como processo
político.
Devido exatamente à necessidade de definir o
Contratualismo partindo de perspectivas e ângulos
diversos, será oportuno agora não tanto desenvolver
uma história sintética das venturas e desventuras do
Contratualismo, quanto precisar, quer no plano
antropológico (§2), quer no plano jurídico (§ 4),
alguns dos passos necessários ou
275
elementos característicos do Contratualismo, bem
como cotejar a solução por ele dada ao problema da
ordem política com outras, para ver até que ponto está
implícito nas modernas teorias da sociedade (§ 3), e,
finalmente, ressaltar melhor a função que o
Contratualismo, em sentido muito lato, exerceu na
história do constitucionalismo (§5).
II. O ESTADO DE NATUREZA, AS
NECESSIDADES DO HOMEM E A DIVISÃO DO
TRABALHO. — Um
dos elementos essenciais da estrutura da doutrina
contratualista é o estado de natureza, que seria
justamente aquela condição da qual o homem teria
saído, ao associar-se, mediante um pacto, com os
outros homens. É difícil dizer em que consiste, para os
contratualistas, esse estado de natureza, em virtude do
escasso interesse por eles mostrado (excetuado
Rousseau) quanto ao conhecimento das reais
condições do homem em suas origens; tal situação é
apresentada quase sempre apenas como hipótese
lógica negativa sobre como seria o homem fora do
contexto social e político, para poder assentar as
premissas do fundamento racional do poder. Daí, por
um lado, a hesitação dos diversos contratualistas em
definir a que estádio da evolução da humanidade
corresponde o estado de natureza, dado que ele é
definido apenas negativamente (se define o que falta
ao estado de natureza em relação ao estado de
civilização), e, por outro, a contraditória avaliação
dessa situação humana, que para Hobbes e Spinoza é de
guerra, para outros (Pufendorf, Locke) é de paz, se
bem que precária, e, para Rousseau, de felicidade.
Contudo, para situar convenientemente a
problemática
diversamente
aprofundada
pelos
contratualistas, é mister inserir suas observações no
debate mais amplo do problema antropológico das
origens do homem. Sempre houve, desde a época grega
até aos nossos dias, diversidade de opiniões entre os
pensadores, quando se tratava de ponderar o caráter
positivo ou negativo do abandono da antiga condição
natural: para uns, ele representa uma queda, um
afastamento da perfeição original; para outros, um
progresso, a vitória do homo faber ou do homo sapiens
sobre o homem animal. É preciso lembrar a exaltação
entre os antigos de uma mítica idade de ouro, repetida
no Renascimento juntamente com o mito dos homines
a Diis recentes; depois, logo a seguir ao descobrimento
da América e dos homens que ali viviam segundo a
natureza, surgiu o mito do bom selvagem; finalmente,
na época romântica, houve um retorno ao homem
primitivo, ao Urmensch. Encontramos nesta linha de
pensamento, que combate a civilisation, ou seja, a
indústria
274
CONTRATUALISMO
e o comércio que tornam mais aprazível a vida dos
homens, os críticos da sociedade, tal qual se
apresentava a seus olhos ou, melhor, os que expressam
todo o mal-estar conseqüente do trauma da
modernização, da rápida transformação da ordem
social e política, da não inserção do indivíduo nos
novos papéis que a sociedade oferece.
O mito do estado de natureza, que é, em realidade,
regressivo, porque fundamentalmente nostálgico de
uma idade perdida em que o viver feliz coincidia com a
comunhão dos bens e das mulheres, foi reinterpretado
em tempos mais recentes, com intuitos revolucionários
ou como proposta de total libertação do homem, mas
tendo sempre em vista fins políticos, pelo marxismo e
pela psicanálise, depois que o mito ou lenda do bom
selvagem havia entrado na crítica histórica com J. J.
Bachofen (Mutterrecht, 1861), E. B. Tylor (Primitive
culture, 1871) e L. H. Morgan (Ancient society, 1877).
F. Engels (Der Ursprung der Familie, des
Privateigentums und des Staats, 1884) vê na formação
da sociedade gentilícia da família monogâmica a
origem do primeiro antagonismo de classe, como
conseqüência do aparecimento da propriedade privada
(e, portanto, da divisão do trabalho), o que levaria à
criação do Estado como órgão de repressão em mãos da
classe economicamente dominante. Para a psicanálise
da esquerda, atenta às inibições e repressões da
civilização contemporânea, é igualmente necessário
reencontrar a espontânea felicidade da sociedade
matriarcal, uma idade de' paz, sem repressões, toda
permeada da religião da terra-mãe, uma sociedade
destruída pela revolta dos homens, que construíram um
mundo de guerra baseado no domínio do culto
autoritário dos deuses celestes. Em ambas as
interpretações, a família monogâmica, a propriedade
privada e a repressão do Estado aparecem
contextualmente, isto é, não há aí distinção entre poder
social (família e propriedade) e poder político. Nisto
não há nenhum desvio dos motivos patentes nos
nostálgicos da idade de ouro, a idade, segundo eles, da
comunidade de bens e de mulheres; só que, neste caso,
tais motivos são revividos olhando ao futuro, e os
conceitos de revolução e de libertação pareciam
satisfazer a uma função análoga àquela que teve o
contrato em épocas precedentes.
Os contratualistas, ao contrário, querendo legitimar
o Estado de sociedade (a civilisation) ou modificá-lo
com base nos princípios racionais onde o poder não
assenta no consenso, opõem-se necessariamente a esta
corrente de pensamento e vêem no contrato a única
forma de progresso; o próprio Rousseau, inimigo das
letras e das artes, foi obrigado a reconhecer no pacto
social um fato deontologicamente necessário a partir
do
momento em que "tal estado primitivo já não pode
subsistir e o gênero humano pereceria, se não
modificasse as condições da sua existência" (Du contraí
social, I, 6); é que, após ter surgido a linguagem, a
família e a propriedade privada, só é possível o estado
de guerra, ou o despotismo, expressão última da
desigualdade, que iguala, contudo, os súditos sob a
vontade do senhor. Todos os contratualistas vêem assim
no contrato um instrumento de emancipação do
homem, emancipação política apenas, que deixa
inalterada e até garante a estrutura social, baseada
precisamente na família e na propriedade privada,
mantendo uma clara distinção entre o poder político e o
poder social, entre o Governo e a sociedade civil. É
impossível dizer a que estádio da evolução da
humanidade corresponde, para os contratualistas, o
estado de natureza: se corresponde ao do homo ferus
primaevus (Hobbes, Rousseau), ou ao que conhece
algumas formas embrionárias de organização social. É
que o seu pensamento se move num plano políticojurídico ou psicológico e não no plano antropológico.
Aqueles que com maior coerência levaram até às
últimas conseqüências sua análise do estado de
natureza foram, de um lado, o filósofo Hobbes, que
estuda a dinâmica das paixões do homem em estado
puro (a disputa pela vantagem, a desconfiança pela
segurança, a glória pela reputação), causadoras do
estado de guerra de cada um contra todos, e, do outro,
o antropólogo Rousseau (o Rousseau do Discours sur
1'origine et les fondements de l'inégalitê parmi les
hommes), que examina a formação do homem e mostra
como nas origens não havia senão uma felicidade
instintiva sem paixões. Assim, para Hobbes, no estado
de natureza existe apenas "o domínio das paixões, a
guerra, o medo, a pobreza, a desídia, o isolamento, a
barbárie, a ignorância, a bestialidade" (De cive, X, I), e
"a vida do homem é solitária, mísera, repugnante,
brutal, breve" (Leviathan, XIII). Para Rousseau, ao
contrário, é no estado de natureza que se encontra "o
homem livre, com o coração em paz e o corpo de boa
saúde" (Discours), o homem que satisfaz facilmente as
poucas necessidades elementares e "não respira senão
sossego e liberdade; quer apenas viver e ficar ocioso".
Contudo, a oposição que existe entre Hobbes e
Rousseau está mais na apreciação que na descrição do
estado de natureza ou, melhor, do homem animal, que
vive seguindo os próprios instintos, possui a razão só
em potência e está aquém de qualquer relação moral ou
jurídica com o próprio semelhante. A moderna
Zoologia, ao estudar no primata a origem do homem,
comprovou, diluindo-lhe os excessos, a tese de Hobbes e
de Rousseau: a inocência e a felicidade do homemprimata é uma
CONTRATUALISMO
insecuritas sem história, onde as paixões e a guerra são
ocasionais, sempre motivadas pela comida ou pela
posse da fêmea, ao passo que a pobreza, o isolamento e
a ignorância não são verdadeiramente percebidas como
um mal. Estado de natureza e estado de civilização se
contrapõem assim, na lógica contratualista, como se
contrapõe o reino animal, em que cada ser segue seus
próprios instintos e impulsos, ao reino humano, mundo
regido pela razão, onde, pelo contrato, é possível
unificar as vontades singulares. A maior parte dos
contratualistas (Spinoza, Pufendorf, Locke, por
exemplo) põem, ao contrário, entre o estado de
natureza puro e o estado político, um estado social, em
que os homens convivem segundo a razão, já que são
seus próprios interesses que os tornam sociáveis. Esta
sociedade é caracterizada por algumas instituições
jurídicas de origem pactuai, tais como a família, a
propriedade e a compra-venda, mediante os quais o
homem ultrapassa os limites da comunidade das
mulheres e dos bens, e que constituem a premissa
lógica, primeiro, do pactum societatis e, depois, do
pactum subiectionis. Trata-se de um "estado de paz,
benevolência, assistência e conservação recíprocas"
(Locke, Two treatises of Government, II, 19).
Continua, todavia, sendo um estado imperfeito de
sociedade, pois a paz é relativa, podendo a natureza
racional e social do homem entrar a cada instante em
conflito com o seu instinto de autoconservação. Os
direitos naturais dos indivíduos são, deste modo,
imperfeitos, isto é, não são garantidos por uma coação
superior e extrínseca. O Estado, nascido de um
contrato, não acrescenta nada à racionalidade e
sociabilidade da sociedade civil: é só um instrumento
coativo cuja função é não tanto criar quanto executar o
direito que a sociedade racionalmente expressou. A
este propósito convém fazer um duplo tipo de
observações. Em primeiro lugar, o problema que o
jusnaturalismo, de que o Contratualismo depende
estreitamente, achava haver eliminado com a completa
racionalização das relações sociais por meio do direito
natural, o problema da força, desponta de um poder
consensualmente instituído, tendo nele sua exclusiva
solução. Em segundo lugar, enquanto para Spinoza,
Hobbes e Rousseau, o pacto, ao instaurar o poder
legislativo, cria também o órgão autor do Direito (ius
quia iussum), quer ele se chame mens unica, soberano
ou vontade geral, para outros, sobretudo para Locke, a
sociedade civil tende a garantir sua própria
racionalidade jurídica, já participando diretamente do
poder legislativo, já opondo a este como limite o
direito ou direitos naturais (ius quia justum).
275
Pode-se dizer, em resumo, que os contratualistas
não podem deixar de concordar com algumas
proposições claramente enunciadas por Hobbes: o
estado de natureza é caracterizado negativamente pela
ausência de um poder legal, constituído por contrato,
capaz de controlar e obrigar os membros da sociedade,
caracterizado, portanto, pela falta de monopólio legal
da força. Por tal motivo, o estado de natureza é um
estado de igualdade, em que a superioridade física ou
intelectual não conferem especial direito ao poder,
podendo
contrabalançar-se
no
plano
dos
acontecimentos; é também um estado de liberdade,
onde liberdade equivale a uma condição de
independência, ao domínio de si próprio. No estado de
natureza não há, pois, nem soberanos nem súditos,
nem senhores nem servos, mas uma força eternamente
potencial e em estado difuso.
Voltando ao exposto inicialmente, precisamos ver
agora por que é que, para os contratualistas, se há de
passar do estado de natureza ao de sociedade, tendo,
todavia, presentes as principais teorias antropológicas
que explicam a passagem do primata ao homem
político, do animal ao homo faber, identificadas as
necessidades particulares que favoreceram tal
passagem. Note-se, entretanto, que se trata para todos
de uma lenta evolução, devida à peculiar natureza do
homem ao acaso, ao passo que, na lógica
contratualista, tal passagem é entendida às vezes como
um verdadeiro e autêntico salto da natureza para a
sociedade.
As respostas ao problema da origem do homem são
essencialmente duas, uma delas já formulada desde
tempos antigos. De um lado estão os que acentuam a
natureza particular do homem como homo faber,
porque incompleto em relação às próprias
necessidades. Protágoras, por exemplo, realça a
diversidade do homem dos animais: enquanto estes
possuem uma só faculdade e órgãos específicos
conforme a lei geral do equilíbrio, o homem, ao
contrário, está "inerme". Privado de aptidões naturais,
está dotado, contudo, de perícia técnica que lhe
permite adaptar-se a qualquer ambiente e transformálo com o intuito de alcançar os objetivos da vida. Mas,
não obstante o saber técnico, a convivência não era
ainda possível, porque o homem não possuía a
sabedoria política (o "Respeito" e a "Justiça") que
depois seria distribuída por Zeus a todos os homens,
não de forma discriminante como as artes técnicas. É
de notar como a divisão do trabalho não coincidia com
a divisão política, porquanto a sabedoria política se
achava em todos os homens. Lucrécio, retomando e
desenvolvendo este célebre mito, indicou o pacto como
expressão concreta desse saber político (De rerum
natura, V, 1023).
276
CONTRATUALISMO
Platão não se afasta substancialmente desta mesma
linha: a sociedade nasce da multiplicidade das
necessidades do homem; tendo necessidade de uma
infinidade de coisas, não se pode bastar a si mesmo;
daí a necessária divisão do trabalho, que atingirá um
nível tanto mais alto, quanto mais elevado for o teor de
vida. Mas, diversamente do que ocorria na visão de
Protágoras, aqui a divisão do trabalho implica também,
para a boa ordem da cidade, a formação de um novo
múnus, o do guardião, e, conseqüentemente, uma clara
separação entre governados e governantes, com base
no especial saber que só estes possuem.
Por outro lado, uma visão mais pessimista — tratase de uma teoria moderna e contemporânea — coloca
a origem do poder político não na capacidade técnica
do homem em relação aos animais, mas na
desproporção existente entre as suas necessidades e os
meios de as satisfazer. Foi Hobbes quem apresentou
este novo motivo. Antecipando-se a Freud (Die
Zukunft einer Illusion, 1927, e Das Unbehagen in der
Kultur, 1929), centralizou tudo na desproporção entre
as paixões e apetites humanos, que são ilimitados, e os
meios de os satisfazer, que são limitados (De cive, I), o
que leva à guerra de cada um contra todos. O homem
troca assim a independência e a liberdade originais (o
viver segundo o princípio do prazer), de que
dificilmente e por pouco tempo podia gozar, pela
segurança e pela paz (diferindo e limitando a
satisfação do próprio prazer), mediante a instauração
legal de um poder irresistível, mais forte que o
indivíduo. A concordância com o soberano coincide
com a aceitação do princípio da realidade e da
repressão, seu elemento constitutivo, ou com a
formação do superego, nova forma de vontade geral em
que as vontades particulares conseguem sublimar-se.
Estes temas continuam em grande parte estranhos
aos demais contratualistas, mesmo se as suas
considerações jurídicas e políticas partem da aceitação
e defesa do alto teor de vida que o homem havia
conquistado pela técnica e, portanto, pela divisão do
trabalho e pela propriedade privada. Estes vêem na
origem da sociedade aquela colaboração necessária a
que o homem se viu impelido pela urgência de
satisfazer suas próprias necessidades, e na origem do
Governo apenas uma necessidade política claramente
mil it arista, a da garantia da coexistência, exigência
que vai de um mínimo, o da ordem e da paz social, a
um máximo, o da maior segurança na tutela dos
próprios direitos. A exceção de que em Rousseau e em
Kant, em que a lógica utilitarista está ausente, a
passagem ao estado civil se apresenta como um
verdadeiro e autêntico dever moral. Posta de parte a
divisão do trabalho, visto o
homem ser um animal que trabalha, todos aceitam
também, menos Rousseau, a divisão entre quem exerce
diretamente o poder político e quem não o exerce,
entre governantes e governados, ou a função platônica
dos guardiães. Existe, porém, uma diferença: os
magistrados deduzem a legitimidade do seu poder não
do particular saber em que são especializados, mas do
consenso dos associados, na medida em que, segundo
Protágoras, todos os homens possuem a arte política. O
único que tentou superar esta alienação do poder
político foi Rousseau, que, entretanto, põe de lado o
problema da divisão do trabalho bem presente no
segundo Discours: é o próprio povo que se
autogoverna outorgando-se diretamente as leis, sem a
mediação de representantes; o Governo, em sentido
estrito, tem a mera função de aplicar as leis e de dar
força assim à vontade de outros.
III. TRÊS TEORIAS SOBRE A ORIGEM DO PODER POLÍTICO.
— O Contratualismo não é a única teoria sobre a
origem do poder político, como não é a única marcada
pelo elemento voluntarista; não é a única em que a
ordem política é expressão de um ato de vontade, uma
construção artificial portanto. Na própria origem do
debate político já secular acerca da natureza do estado,
a encontramos, se bem que em posição minoritária,
junto com outras duas, com as quais aparecerá sempre
entretecida na história do pensamento político.
No diálogo que abrange os dois primeiros livros da
República de Platão, são expostas, personificadas por
sete interlocutores, as quatro principais teorias sobre a
origem da polis. Servem de fundo as opiniões
tradicionalistas dos hóspedes Céfalo e Polemarco, que
defendem velhos conceitos mitológicos. Vêm depois as
teses dos sofistas Trasímaco e Clitofonte, que
observam, de maneira realista, que a Justiça outra
coisa não é senão a ordem imposta por quem tem o
poder de se fazer obedecer: é o que apraz a quem
ordena, ao poder constituído, a quem é mais forte.
Glaucão e Adimanto, irmãos de Platão, expõem, para
incentivar Sócrates, a tese contratualista de uma parte
da sofistica (Calicles): partindo da oposição entre
nomos (lei) e physis (natureza), afirmam que os
homens, usando e sofrendo da violência (o que é justo
por natureza), crêem, num certo momento, ser útil
porem-se de acordo para instaurar a paz, estabelecendo
leis e pactos recíprocos, que são justos por convênio. É
nesta altura que Sócrates (na realidade, Platão) expõe
sua concepção do Estado entendido como um
organismo, que será sadio quando cada um, baseado na
divisão do trabalho, desempenhar convenientemente o
próprio mister e interiorizar a necessidade desta sua
função particular para o bem do
CONTRATUALISMO
todo: a justiça é, deste modo, consciente e viva
harmonia.
Esta teoria, ao acentuar que a sociedade é um fato
natural (o homem só poderia viver numa situação asocial, isto é, no estado de natureza, se fosse um bicho
ou um deus) e que o poder é uma função social
necessária, converte-se em antítese radical das outras
duas concepções voluntaristas, que entendem ter
surgido o Estado ou da força, ou do consenso. Será
organicamente desenvolvida por Aristóteles no
primeiro livro de Política, que parte do princípio de
que o homem é, por natureza, um animal político e
social. Baseado neste princípio, expõe uma interessante
teoria sobre o desenvolvimento político, desde a
família, que atende às necessidades elementares e
imediatas da vida, ao povoado de estrutura gentilícia,
que visa a uma utilidade mais complexa, e à polis, a
única auto-suficiente, que se basta a si mesma por ter
como fim viver bem: a polis é a única estrutura
política que emancipa o indivíduo da autoridade
doméstica e o torna protagonista da vida política.
Esta concepção orgânica da sociedade, para a qual
o todo é mais que a soma das partes e cada uma das
partes cumpre uma função peculiar na vida do todo,
será apresentada em versões diversas na história do
pensamento político; é certamente a teoria dominante.
Na Idade Média é constante a comparação da
sociedade política com o corpo humano; na Idade
Moderna, não obstante a difusão das teorias
contratualistas, a concepção aristotélica não perdeu
certamente a sua força e o seu prestígio. Finalmente,
no século XX, como reação à Revolução Francesa e
ao racionalismo, se difundem por toda a Europa as
teorias organicistas; unidas, tentam demonstrar a
insuficiência do individualismo e do Contratualismo
para alicerçar a ordem social. Burke aplica ao Estado
o conceito orgânico da sociedade civil próprio do
pensamento inglês (Hume, Ferguson), enquanto
Hegel combate incessantemente a idéia de contrato
social, por basear o poder do Estado num princípio de
direito privado. Esta tendência anticontratualista
receberia
grande
reforço
da
antropologia
evolucionista que, com Taylor e Morgan, havia de
excluir a hipótese de existência de um pacto entre os
homens nas origens da vida social.
A concepção orgânica, dando ênfase ao caráter
natural da sociedade, transforma-se logicamente na
antítese radical do Contratualismo, mas não exclui,
de fato, elementos contratualistas. O próprio Platão
(Leis, III, 684) se refere à troca de juramentos
efetuadas entre o rei e os súditos dos Estados dóricos.
Na Idade Moderna, o aristotelismo foi enriquecido
com elementos
277
contratualistas: para Grotius, por exemplo, a sociedade
pacífica e ordenada existe naturalmente graças ao
próprio appetitus societatis do homem e só a forma de
Governo, não o Estado, é de origem contratual. A
verdadeira oposição advém do fato de que as teorias
contratualistas se mantêm predominantemente no
plano prescritivo e as orgânicas, no descritivo. Estas
correm muitas vezes o risco de eludir o problema
central do Contratualismo, o da legitimação do poder
no consenso. Se viver numa sociedade politicamente
organizada é um fato natural e necessário, se o
Governo é uma função social, então todas as formas de
Governo são iguais e se ordenam sobre um mesmo
plano, recebendo todas a legitimidade da sua condição
efetiva, do próprio fato de existirem: assim é difícil, no
plano prescritivo, ocupar-se da forma concreta de
organizar o Governo legítimo. Contudo, no próprio
plano descritivo, urge uma distinção e o problema é
resolvido das mais variadas maneiras. Para Aristóteles,
por exemplo, há uma diferença qualitativa entre o
povoado e a polis, único lugar onde existe vida
política; a par das formas corretas de Governo, existem
as degeneradas em que a classe do poder age em
função dos próprios interesses e não dos da
comunidade; isto sem pensar no despotismo asiático,
que é antítese do Governo helênico. Para Cícero, nem
toda a sociedade é respublica; é o tão-só aquela em
que o povo é "iuris consensu et utilitatis communione
sociatus" (De republica, I, 25), aquela em que o
elemento discriminante e legitimante é justamente o
direito. Na Idade Média é geral a distinção entre rei e
tirano.
No âmbito das teorias voluntaristas, se contrapõem
ao Contratualismo todos aqueles que põem o elemento
constitutivo do estado na força: é Trasímaco o
intérprete desta posição no diálogo de Platão. Mas
possuem um elemento em comum com o
Contratualismo: o do estado de natureza que se olha
com nostalgia, na medida em que o Estado surge de
um ato de violência. Na história do pensamento
político moderno, esta teoria não alcançou grande
sucesso, embora dois grandes contratualistas, Spinoza e
Hobbes, pondo no consenso a origem do Estado,
considerem depois seu fundamento a capacidade
coercitiva de obter a obediência dos súditos por meio
de sanções, vindo assim o direito a coincidir com a
força. Em época mais recente, após os primeiros
estudos antropológicos, esta teoria recebeu um novo
impulso: lembremos o sociólogo Ludwik Gumplowicz
que vê surgir o Estado do domínio das hordas
violentas dos nômades sobre populações pacíficas
dedicadas à agricultura. O sucesso desta teoria e sua
difusão na cultura devem-se à sociologia de Comte, ao
marxismo e à psicanálise. Para Comte a
278
CONTRATUALISMO
sociedade é governada pela força, a força do número
ou da riqueza, à qual é mister contrapor o poder
espiritual, exigência permanente da sociedade. Engels,
revelando a origem contemporânea da família, da
propriedade e do Estado, reforça a tese marxista
segundo a qual o Estado é sempre e de qualquer modo,
seja qual for a forma da sua manifestação, um
instrumento de opressão nas mãos da classe
economicamente dominante. A psicanálise ora
interpreta como simbólicos alguns mitos e lendas da
Antigüidade, segundo os quais o' Estado nasce com o
homicídio de um irmão (Rômulo e Remo, Caim e
Abel, Osíris e Seth), ora vê o fim da pacífica
sociedade matriarcal na revolta dos homens, ora, de
forma mais articulada, põe como fundamento de toda a
civilização o complexo de Édipo. É a rebelião dos
filhos contra o pai, chefe indiscutível da horda
primordial, e seu assassínio que marcam a origem do
Estado; mas, e eis aqui o elemento contratualista, os
irmãos são depois obrigados a contrair um pacto entre
si, visando ao mútuo respeito das mulheres.
O limite de todas estas teorias está no fato de que
não admitem qualquer real alternativa, a não ser a
nostalgia de uma idade de ouro perdida ou a utópica
perspectiva de uma libertação absoluta; no presente só
existe a força, o domínio, a repressão, e qualquer
Estado, como tal, é sempre uma ditadura. O
pensamento contratualista não nega certamente a
existência da força, mas vê-a operar de modo diverso
no estado de natureza e no estado social. De fato, no
primeiro, o homem está exposto ao constante risco de
ser agredido tanto quanto à tentação de agredir: para
evitar esta situação de insegurança, onde a força age
em estado difuso e cada um é livre de decidir seu uso
ou não, sendo ao mesmo tempo parte e juiz, é que os
indivíduos, mediante contrato, instauraram o
monopólio da força, confiando-o a um Governo. O
Estado é, por conseguinte, para os contratualistas
também uma força, mas uma força diversificável: se o
monopólio for instituído por um contrato, isto é, pelo
consenso dos associados, se falará então de "poder"; se
apenas se der de fato, tendo como única justificação a
própria eficácia, se falará de "força". No âmbito
contratualista é preciso ainda fazer uma outra distinção
entre quem concebe, como Spinoza e Hobbes, a
soberania como mera capacidade de obter, por meio
do consenso ou da coação, obediência às próprias
normas, e quem, em vez disso, exige um consenso
indireto, expresso por meio de representantes, como
Locke e Kant, ou direto do povo, como Rousseau, às
normas de comportamento do soberano, deixando sua
aplicação a um órgão subalterno (o executivo) do
legislativo, que é o verdadeiro soberano.
Na teoria sociológica contemporânea, em virtude da
sua acentuada tendência descritiva, predominam as
concepções inspiradas no organicismo e conflitualismo,
enquanto o Contratualismo, devido à carga prescritiva
que continha, parece ter desaparecido da cena. A estas
perguntas: como é possível a ordem e a coesão social?,
o que é que mantém unidos os homens?, o que é que
conduz à limitação dos impulsos e instintos
individuais, ao controle da violência?, se responde
ainda fundamentalmente com as velhas teses. De um
lado estão os que sustentam que a sociedade é um fato
natural tornado possível graças a uma consideração
utilitarista (os homens não podem satisfazer suas
necessidades sem colaborar com os outros), ou à
própria cultura (comum consenso em torno de certos
valores) interiorizada no curso da educação social; do
outro estão os que afirmam que a sociedade se baseia
na coerção e na cominação de sanções. No século XIX,
a teoria orgânica procurou apropriar-se de elementos
contratualistas, mas colocou o contrato no fim e não no
início do processo histórico: Spencer (1820-1903) vê a
solidariedade social como harmonia espontânea de
interesses individuais, expressos nos contratos
singulares; H. S. Maine (1822-1888) considera a
evolução histórica como passagem progressiva de um
regime de status a um regime de contrato; A. Fouillée
(1838-1912) explica teoricamente a sociedade como um
organismo contratual. Uma apologia descritiva da
ordem liberal hoje fatualmente inverificável.
Estes ressaibos contratualistas já não aparecem de
modo algum naquela corrente que, partindo de E.
Durkheim (1855-1917), terminaria em T. Parsons, no
nosso século. A ordem social é possível graças à
solidariedade que se baseia na divisão do trabalho; é
daí que surge a harmonia social. Existe um consenso
natural sobre os valores últimos de que deriva o
equilíbrio social: a sociedade é um todo integrado e o
indivíduo nada; toda a divisão de autoridade, prestígio
e ganho responde a necessidades funcionais. O
problema dos contratualistas acaba por desaparecer: o
poder é sempre exercido em função da sociedade,
nunca contra ela, e é expressão do interesse geral por
valores comuns, a que contribuem os próprios
transviados e anômicos; há um equilíbrio com
circuitos internos de poder pelo qual cada parte
desempenha sua função particular em ordem à
conservação da totalidade.
Na vertente oposta estão os marxistas e
psicanalistas, bem como a ciência política alemã (C.
Schmitt e R. Dahrendorf). Ensinam que a política
(com o Estado, que é uma das suas manifestações
transitórias) é essencialmente hostilidade, luta e
conflito entre rivais, e que, portanto,
CONTRATUALISMO
soberano é aquele que, sendo mais forte, pode indicar
quem é o hostis e determinar o estado de exceção,
suspendendo o direito. Recordam ainda que a
sociedade se mantém pela coerção exercida pelo grupo
mais forte, que o poder consiste na possibilidade de
dispor do instrumento de controle das sanções e que o
exercício da autoridade suscita inevitavelmente
resistências e tensões: as instituições não são
monumentos do consenso, mas bastiões para garantir a
paz.
Com o século XIX, o Contratualismo parece ter
saído de cena. Isso se deve a uma dupla ordem de
motivos. Por um lado, a hipótese da origem, de um
estado de natureza do qual os homens teriam saído
mediante um contrato, se revelou totalmente abstrata e
irreal após estudos antropológicos. Por outro, o
Contratualismo oferecia escassas possibilidades teóricas
a quem quisesse apenas explicar a ordem (a orgânica) e
a mudança social (a devida dos conflitos). O
Contratualismo é, acima de tudo, uma teoria
prescritiva acerca da melhor ordem política; sua
influência sobre a cultura contemporânea deve buscarse, por isso, no constitucionalismo, nas diversas
engenharias constitucionais que nascem do fecundo
encontro da experiência teórica com a experiência
prática, do Contratualismo clássico com o
Contratualismo como fato histórico. Saiu de cena
precisamente quando na sociedade civil ia ganhando
vulto uma dimensão não institucional que afiançava
mais o Governo baseado no consenso, objetivo do
Contratualismo. Referimo-nos à formação da opinião
pública, esfera que medeia entre os indivíduos e o
poder político e submete as decisões deste à
apreciação crítica.
IV. SINTAXE DO CONTRATUALISMO CLÁSSICO.
— O contrato é uma relação jurídica obrigatória entre
duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, em virtude
da qual se estabelecem direitos e deveres recíprocos:
são elementos essenciais, portanto, os sujeitos e o
conteúdo dos contratos, isto é, as respectivas
prestações a que são obrigados sob pena de sanção. O
Contratualismo clássico se apresenta como uma
escola, pois todos aceitam a mesma sintaxe: a da
necessidade de basear as relações sociais e políticas
num instrumento de racionalização, o direito, ou de
ver no pacto a condição formal da existência jurídica
do Estado. Mas os autores se diferenciam notavelmente
na determinação dos sujeitos e conteúdo do contrato,
bem como na especificação das possíveis sanções a
aplicar aos transgressores.
Antes de tudo, há uma distinção preliminar entre
dois tipos de contrato, que foi especialmente
aprofundada pelos juristas Althusius e Pufendorf:
temos, por um lado, o "pacto de associação"
279
entre vários indivíduos que, ao decidirem viver juntos
passam do estado de natureza ao estado social; por
outro, o "pacto de submissão" que instaura o poder
político e ao qual se promete obedecer. O primeiro cria
o direito, o segundo instaura o monopólio da força;
com o primeiro nasce o direito privado, com o segundo
o direito público. É óbvio que a posição dos contraentes
é diversa em cada um dos dois pactos: no primeiro, os
contraentes encontram-se em posição paritária, cada um
deles comprometendo-se perante os demais e sendo
livre, por conseguinte, de aceitar ou não; o segundo cria
uma relação de subordinação e o indivíduo não pode
deixar de aceitar, se um dos contraentes é o povo
entendido como universitas ou como persona ficta,
dado que, em tal caso, vige a lei da maioria. Por outros
termos: no primeiro pacto, temos o princípio fraterno
da igualdade e cada um se obriga para com os demais;
no segundo, o princípio paterno da dominação e a
relação dá-se entre governantes e governados.
Alguns contratualistas alemães incluem entre os
dois pactos um terceiro, relativo à forma de Governo e
à constituição do Estado (o pactum ordinationis sive
lex fundamentalis); a maior parte, porém, ou só realça
o pacto de submissão nas diversas construções
jurídicas ou vê no pacto de associação a premissa
lógica daquele, que será depois o verdadeiro pacto. Só
Hobbes e Rousseau, numa atitude coerente e original,
se servirão exclusivamente do pacto de associação,
pelo qual, segundo Hobbes, os indivíduos associados se
submetem incondicionalmente a um soberano que não
é parte no contrato, ou constituem, segundo Rousseau,
uma "vontade geral" em que cada um obedece apenas a
si próprio. Em qualquer dos casos há uma renúncia
completa aos direitos que o indivíduo possuía no
estado de natureza, e a impossibilidade lógica de que o
soberano ou a vontade geral violem o contrato.
Os sujeitos da relação jurídica no pacto de
associação são sempre as pessoas físicas. Excetuam-se
as construções federalistas mais complexas, como a de
Althusius; este vê o Estado como uma organização
complexa que parte do indivíduo, mas deriva seus
poderes de uma série de associações intermédias
(família, corporações, comunas) de base contratual: a
sociedade não consta só de indivíduos, mas também de
personae fictae. No pacto de submissão encontramos
às vezes os indivíduos como sujeitos; mas o mais
comum é a persona ficta, talvez instituída pelo
primeiro pacto: de um lado está o povo como
universitas, isto é, agindo como indivíduo, e, do outro,
o Governo, que nem sempre coincide com o supremo
magistrado ou com o rei, podendo ser
280
CONTRATUALISMO
também uma assembléia. Isto é claramente visível, por
exemplo, em Pufendorf e Locke, onde a ruptura do
pacto de submissão não implica a ruptura do de
associação: dissolve-se o Governo, mas não a
sociedade.
Estes dois contratos criaram, mormente na cultura
alemã, o difícil problema de conciliar, na superior
unidade do Estado, o povo e o rei, a maiestas realis e a
maiestas personalis, que acabam por entrar em
conflito, quando se trata de determinar quem, em
última instância, é juiz do bem comum e do interesse
do Estado, ou da violação do contrato: se o rei ou o
povo. No primeiro caso temos um contrato não
plenamente bilateral, no segundo o magistrado é um
simples mandatário e nos encontramos com uma
relação de trustee, segundo Locke. O problema, em
realidade, é político antes de ser teórico; por isso foi
muitas vezes resolvido, como em Pufendorf, de modo
contraditório em relação às premissas, ou seja,
negando ao povo qualquer personalidade jurídica que
seria apenas privativa dos indivíduos, ou permitindo
ao povo exprimir parecer meramente consultivo em
certas matérias e reservando ao príncipe o juízo em
última instância. O problema da unidade do Estado
encontrará em Kant sua mais coerente solução com o
conceito da separação dos poderes: na superior
unidade do Estado, o rei e o povo (este por meio de
assembléias) desempenham funções diversas mas
coordenadas, a executiva e a legislativa.
Pelo que se refere ao conteúdo do pacto, é mister
fazer uma distinção prévia entre os contratualistas
mais coerentes e rigorosos como Hobbes, Locke,
Rousseau e Kant, que o consideram racionalmente
necessário e, conseqüentemente, indisponível, isto é,
subtraído à determinação arbitrária por parte das
partes contraentes, e os contratualistas mais ligados à
realidade jurídica e política concreta, que deixam a
determinação dos direitos e deveres recíprocos à
vontade dos contraentes. Nos primeiros prevalece o
peso da ratio, nos segundos o da voluntas.
Enquanto o conteúdo do pacto de associação não
ultrapassa a manifestação de um genérico desejo de
viver juntamente, isto é, de formar um só corpo político,
regulando de comum acordo tudo quanto se refere à
segurança e conservação dos associados, o pacto de
submissão apresenta através dos tempos os conteúdos
mais diversos. Na época medieval e moderna, antes do
Contratualismo clássico, se estabelecia, nos juramentos
de coroação como no panfletismo antimonárquico, a par
da obrigação da obediência por parte dos ' súditos, uma
completa série de deveres que respeitavam ao rei;
depois, com a elaboração do conceito jurídico de
soberania, o pacto servia
para estabelecer quem havia de exercer o poder
legislativo (o rei, uma assembléia, ou o rei e a
assembléia conjuntamente) e se tal poder legislativo
era legibus solutus ou limitado pelo bem comum, pelas
leis fundamentais ou pelos direitos dos cidadãos.
Mesmo os absolutistas mais coerentes, como Hobbes,
impõem ao soberano, conquanto fora do contrato, a
obrigação de garantir a paz; deixam ao súdito o direito
à vida. Com o jusnaturalismo moderno, personificado
principalmente por Locke e Kant, se acentua mais a
defesa dos direitos naturais, inatos e racionais do
homem, para cuja tutela se formou, pelo pacto, o
Governo. A defesa dos direitos do indivíduo, do
direito à vida, em primeiro lugar, mas, depois, também
à liberdade e propriedade, é desconhecida nas épocas
anteriores, que insistem mais nos deveres para com os
outros, ignorando o individualismo próprio da Idade
Moderna.
Se o contrato é uma relação obrigatória entre as
partes, é necessário também saber quais as sanções
previstas para quem o infringe: o problema se apresenta
sobretudo em relação a quem, detendo o poder, tem o
monopólio da força, não tanto a quem, com o pacto,
renunciou ao exercício privado da sua. As soluções são
as mais diversas. De um lado estão os que seguem
Grotius, como Pufendorf, para quem o pacto,
estabelecido pela vontade, se torna depois necessário;
os povos não o podem revogar. Do outro, estão as teses
políticas dos monarcômacos, que fazem reviver teorias
medievais sobre o tiranicídio, reelaboradas depois por
Althusius: cabe ao povo e, em seu nome, aos éforos,
que hão de agir colegialmente, o jus resistentiae et
exauctorationis contra o monarca ou magistrado
republicano que houvesse violado o contrato. Este
direito de resistência ao Governo e de sua deposição,
quando, no uso do poder, desrespeitar a lei, foi
elaborado depois principalmente pelo pensamento
político inglês, nomeadamente por Milton e Locke.
Para Locke, o povo conserva um direito em relação
tanto ao príncipe como ao poder legislativo: o de julgar
se eles procedem contrariamente à confiança que neles
se depositou; não havendo na terra um juiz superior às
partes, só resta o apelo ao céu, isto é, o direito à
revolução, para mudar de Governo ou instituir novo
legislativo. Kant, ao invés, adota uma posição
contraditória: por um lado defende a Revolução
Francesa; por outro, exclui, incondicionalmente, o
direito de resistência, já que a sua defesa da legalidade
conflita com seu conceito de constituição como idéia a
priori.
Por razões diversas, este problema não se apresenta,
nem pode apresentar-se dentro das coerentes
concepções de Hobbes (ou Spinoza) e Rousseau. Para
Hobbes, o soberano, estabelecido
CONTRATUALISMO
para manter a paz, há de gozar de impunidade em tudo
o que fizer, uma vez que só ele, e não os indivíduos,
possui o direito de julgar sobre o que é bom ou é mau
para o Estado; a única sanção cabível neste caso
depende da sua incapacidade de manter a ordem, isto
é, não da quebra da legitimidade do seu poder, mas da
sua efetividade. Resta, contudo, a cada um dos
indivíduos, mesmo se legitimamente condenado à
morte, o direito de salvar a própria vida. Para
Rousseau, a vontade geral também é sempre justa e
visa exclusivamente ao bem público; mas, divergindo
de Hobbes, ele pensa que a punição dos indivíduos,
que violam as leis gerais do soberano, possui um
significado pedagógico, na medida em que os
constrange a tornarem-se livres, ou seja, a amoldaremse à vontade geral.
Se a estrutura do pensamento dos contratualistas
usa a mesma sintaxe, as soluções políticas a que eles
chegaram são profundamente diversas; é possível
indicar três correntes claramente diferençadas. Temos,
em primeiro lugar, a corrente absolutista (Hobbes,
Spinoza, Pufendorf); trata-se de um absolutismo que
pretende ser claramente diferente do despotismo, pois
vê nas ordenações do Estado, não a expressão de uma
vontade caprichosa e arbitrária, mas a conseqüência de
uma lógica necessária, enquanto racional, relativa aos
fins, visando ao bem de cada cidadão. Na vertente
oposta, encontramos a corrente liberal (Locke, Kant)
que propõe o controle e limitação do poder do
monarca pelas assembléias representativas, às quais é
confiado o poder de legislar. A corrente democrática é
minoritária; teoricamente aprofundada apenas por
Rousseau, apresenta uma solução que, em certos
aspectos, está muito mais próxima da absolutista que
da liberal, porquanto tende a conformar os indivíduos
com a racionalidade da soberana vontade geral.
V. CONTRATUALISMO E
CONSTITUCIONALISMO.
— O Contratualismo não é apenas uma teoria global,
conceptualmente elaborada, sobre as origens da
sociedade e do poder político e, por conseguinte, sobre
a natureza racional do Estado. Na história medieval e
moderna, o contrato é amiúde também um fato
histórico, ou seja, parte integrante de um processo
político que leva ao CONSTITUCIONALISMO (v.) e, em
especial, à necessidade de limitar o poder do Governo
por meio de um documento escrito que estabeleça os
respectivos e recíprocos direitos-deveres.
No Contratualismo medieval cruzam-se diversas e
variadas influências. Vemos nele a permanência de
elementos românicos: a lex regia de imperio, com que
o povo romano conferia
281
ao príncipe o imperium e a potestas, representa para
alguns uma alienatio total, é válida para outros só na
medida em que o príncipe age dentro dos limites da
delegação (H. Bracton, por exemplo), para outros
ainda é um pacto bilateral, revogável sempre que o
príncipe menosprezar suas obrigações (Manegoldo de
Lautenbach, por exemplo, fala de pacto e de
deposição). Vemos também nele o enxerto de
elementos germânicos, oriundos de populações que
tinham uma estrutura política bastante primitiva,
depois desenvolvidos com o feudalismo: a eleição do
rei ou sua confirmação e o reconhecimento da sucessão
se efetuam mediante simples promessa mútua, depois
sancionada pelo juramento da coroação, em que o rei
se compromete a respeitar a lei e a governar com o
conselho dos "anciãos", a quem incumbe a função da
vigilância. O sistema feudal se apresenta mais tarde
como um complexo sistema de relações
sinalagmáticas (ou contratuais) entre senhor e vassalo,
pelo qual, se o vassalo gozava de direitos, também era
obrigado, em troca, à fidelitas para com o senhor; a
violação do pacto tornava justa a rebelião ou a
repressão. A coroar tais elementos, se encontrava a
cultura estóica que afirmava ser a relação política uma
relação bilateral de direitos e deveres recíprocos. Servia
de fundamento o aforismo de Sêneca (De benejiciis)
que diz: "Ad reges enim potestas omnium pertinet, ad
singulos proprietas".
Numa sociedade profundamente imbuída do senso
do direito e sempre pronta a discutir o problema do
Governo, estas teses, por sua mesma finalidade prática,
levam não tanto a uma rigorosa elaboração conceptual
do Contratualismo como teoria da vida social, mas a
colher e evidenciar os traços característicos do tirano,
aquele que não é mais representante de Deus mas
instrumento do diabo, e a legitimar as sanções que o
povo pode aplicar contra ele, sanções que vão da
deposição ao tiranicídio. As teses dos pensadores da
tardia Idade Média, como as de Marsílio de Pádua
(1275-1342), Ockam (1290-1349), Bartolomeu de
Sassoferrato (1317-1357), Nicolau de Cusa (14011464), reproduzirão temas do século XI (Manegoldo
de Lautenbach) e do século XII (João de Salisbury) e
não estarão muito longe do que defenderiam os
monarcômacos protestantes, como G. Buchanan (15061582), F. Hotman (1523-1590), o autor anônimo (talvez
Ph. Duplessis-Mornay) de Vindictae contra tyrannos
(1579), J. Milton (1608-1674), ou os teólogos da
Segunda Escolástica, como L. de Molina (1535-1600),
R. Belarmino (1542-1621), J. de Mariana (1536-1623),
F. Suarez (1548-1617). Mas esta vasta literatura,
conquanto importante para a história do
Contratualismo, não pode dele fazer parte em
282
CONTRATUALISMO
sentido estrito, por diversos motivos: é motivada por
interesses
imediatamente
práticos,
é
nela
predominante o elemento religioso, não é expressão de
um ensaio de racionalização integral da vida política
(demonstra-o a ausência do estado de natureza, por um
lado, e, por outro, a sólida presença de um direito
natural não secular), não há nela a concepção
individualista da vida que caracteriza o Contratualismo
clássico, nem a concepção do utilitarismo, que é sua
conseqüência direta, salvo em Rousseau e Kant.
O Contratualismo, como fato histórico, demonstra
sua vitalidade, com características novas e originais, na
Idade Moderna. Demonstra-a na experiência
democrática da Nova Inglaterra, onde o pacto é o
instrumento concreto na formação de um real estado
de natureza para novas sociedades que hão de
enfrentar os duros e dramáticos problemas da fronteira
e do wilderness (espaços desertos); demonstra-a
igualmente na experiência aristocrático-liberal da
Inglaterra em busca de uma codificação do novo
equilíbrio constitucional entre a Coroa e o Parlamento.
O primeiro de tais documentos, o mais conhecido,
mas não o mais importante, é o pacto assinado a 11 de
novembro de 1620 no Mayflower, chegado às costas
de Cape Cod, por quarenta e dois puritanos
separatistas: com este pacto tinha início uma nova
comunidade política, o assentamento de Plymouth, que
se autogovernou até 1683, sob o regime de uma
democracia direta, com assembléias gerais em que
participavam todos os colonos. Histórica e
politicamente mais importante foi a experiência das
novas cidades fundadas depois de 1636, nas regiões
que depois serão chamadas Rhode Island e
Connecticut: vemos, na realidade, surgir em terras
desertas, à margem de qualquer jurisdição política,
novas e pequenas cidades, que baseiam sua existência
num covenant ou agreement, subscrito por todos os
proprietários livres com o intuito de constituir um
"body politic incorporated" ou um "civil body
politicke". Com este pacto se quer instituir um
Governo democrático e popular, aceitando-se a
submissão à vontade da maioria. Todo o poder residia
na assembléia dos freemen; os magistrados, poucos,
eram escolhidos anualmente. Com o tempo, devido ao
aumento da população, que levou à instauração de um
Governo representativo, e à necessidade da defesa, que
obrigou as diversas cidades a federarem-se entre si,
foram redigidos documentos muito mais elaborados,
todos eles de origem pactuai: os Fundamental Orders
do Connecticut (1639), o Frame of Government de
New Haven (1643). Em 1643, também com base num
instrumento pactício, nasce a confederação denominada
"Colônias Unidas da Nova
Inglaterra", a que só Rhode Island não aderiu por
motivos religiosos. Desta experiência — uma
experiência mais vivida por amplos estratos da
população do que determinada por influências
culturais — surgiu a necessidade de elaborar um
documento escrito que não proviesse de um poder
estranho à comunidade, mas fosse sua própria
expressão. Isto conduzirá logicamente a um documento
de caráter pactuai, Artigos da Confederação, em 1777,
e à Constituição dos Estados Unidos da América, em
1787.
O outro documento escrito, de inspiração
contratualista, é o que pôs fecho à Gloriosa Revolução
de 1688-89: o Parlamento Convenção de 1689 elegeu
para o trono da Inglaterra Guilherme e Maria,
impondo-lhes condições bem claras. Rejeitava-se assim
a teoria do direito divino dos reis. O famoso Bill of
rights contém claras limitações ao poder real e
constitui um verdadeiro e autêntico contrato entre o rei
e o povo, este representado pelo Parlamento, embora o
conteúdo seja bem pouco inovador em relação à velha
praxe constitucional inglesa. Chamou-se a este
documento Declaração dos Direitos só porque a
palavra contrato parecia demasiado revolucionária.
As vias do constitucionalismo continental foram, em
certos aspectos, diversas das do constitucionalismo das
nações anglo-saxônicas e menos influenciadas pela
temática contratualista: a constituição não foi nem um
pacto original subscrito por todos os cidadãos que
queriam viver em sociedade, nem o encontro entre a
vontade do povo e a vontade do rei. As constituições do
continente são ou concessões do monarca (cartas
octroyées) ou expressão da vontade de uma assembléia
constituinte que representava a vontade do povo. Mas,
se a legitimação destas constituições é diversa da
contratualista, elas vão buscar, não obstante, à
experiência histórica anglo-saxônica a necessidade de
um documento escrito que regule e limite os poderes do
Governo e ao Contratualismo a legitimação do
Governo através do consenso.
VI. O NEOCONTRATUALISMO CONTEMPORÂNEO.
— O Contratualismo, parecendo haver saído de cena,
tem ocupado recentemente um lugar central no campo
da filosofia política: partindo do pacto social, ou seja,
das regras de jogo que hão de ser estabelecidas antes do
seu início, procura-se encontrar um fundamento para a
obrigação política e para o cumprimento da lei.
Contudo, os principais expoentes desta corrente não
chegam a conclusões políticas idênticas: John Rawls
visa a uma maximização da igualdade; (ames
Buchanan a readequar os princípios liberaldemocráticos ao Welfare State; Robert Nozick a
CONTROLE SOCIAL
reapresentar de modo tão radical a liberdade
individual que acaba por defender a anarquia.
Rawls pretende chegar à definição racional de um
princípio universal de justiça (da justiça distributiva
entendida como eqüidade). Para isso parte do contrato
social, a um nível de abstração bem mais alto que o de
Rousseau e de Kant. Mediante a ficção da "posição
original" (isto é, o estado de natureza), quer
compreender a condição hipotética pré-social em que
os indivíduos livres e racionais podem escolher os
princípios de justiça da futura sociedade política.
Podem
escolher
de
modo
verdadeiramente
"autônomo", ser deveras legisladores universais,
expressar o homem numênico e não o fenomênico,
porque, na posição original, existe um "véu de
ignorância" não sobre problemas da sociedade e sobre
valores morais, mas sobre os próprios dotes naturais e
sobre a própria posição social futura. Deseja-se fazer
cessar a tensão entre vontade geral e interesses
particulares, fazer ver que a justiça também é utilidade
(não soma de utilidades individuais), e estabelecer o
princípio do "maximin", já que os homens, antes do
salto para a sociedade, querem a justiça, ou seja,
maximizar as posições mínimas. E assim que são
formulados os dois princípios de justiça: "Cada
indivíduo possui direito igual à mais ampla liberdade
possível, compatível com a igual liberdade dos
outros"; "As desigualdades sociais e econômicas hão
de ser estruturadas de modo que sejam razoavelmente
geradoras de vantagens para todos e ligadas a posições
e cargos igualmente abertos a todos".
Buchanan distingue a opção fundamentalconstitucional (ou contrato), que estabelece as regras
do jogo, das opções pós-constitucionais de caráter
operativo que visam fins contingentes. É em
conseqüência disso que distingue o "Estado protetor"
ou "Estado-árbitro" — um poder neutral que, com o
monopólio da sanção, impõe o cumprimento das
normas jurídicas — e o "Estado produtivo" ou "Estado
jogador", que fornece os bens públicos e cujos poderes
discricionários deviam manter-se dentro da esfera do
primeiro, que o limita. As novas regras do jogo teriam
de obstar às preferências radicalmente individualistas,
pois alimentam o conflito sem maximizar a utilidade
individual, e favorecer, ao invés, o jogo e o
intercâmbio cooperativos, para fomentar uma
convivência construtiva. Nozick, pelo contrário, é
fautor de um "Estado mínimo'', um Estado que teria
uma única função, a de proteger os direitos individuais
contra toda e qualquer forma de violação. Nasceria do
campo do direito privado, como desenvolvimento da
autoproteção que os vizinhos de moradia a si mesmos
se dão associando-se, ou como aperfeiçoamento de
283
agências que protegem quantos obtêm tal proteção: a
ordem política, instaurada pelo Estado mínimo, é
assim explicada em termos não políticos.
Não se trata de mera discussão acadêmica de
filosofia política, porque as diferentes soluções são
logo traduzidas numa maior ou menor interferência do
Estado na vida social e econômica, sugerindo assim
novos
limites
constitucionais
(v.
CONSTITUCIONALISMO) na época da crise do Estado
assistencial ou do bem-estar (v. ESTADO DO BEMESTAR).
BIBLIOGRAFIA. — F. ATGER, Essai sur 1'histoire des
doctrines du contrai social, Alcan. Paris 1906; N.
BOBBIO e M. BOVERO, Società e Stato nella filosofia
política moderna. Il Saggiatore, Milano 1979: J. M.
BUCHANAN, Freedom in constitutional contract. Texas
University Press. College Station 1977; Id., The limits
of Liberty, The University of Chicago Press. Chicago
1975; M. D"ADDIO, L'idea del contratto sociale dai
Sofisti alla Riforma e il' De principatu di Mario
Salomonio. Giuffrè, Milano 1954; G. DEL VECCHIO,
Contributi alla storia del pensiero giuridico e filosofico
(1906),Giuffrè, Milano 1963; R. DERATHÉ, J. -J.
Rousseau et la science politique de son temps, Presses
Universitaires de France, Paris 1950; O. VON GIERKE,
C. Althusius e lo sviluppo delle teorie politiche
giusnaturalistiche (1880). Einaudi, Torino 1943; Id.,
Dos deutsche Genossenschajtsrecht (1881 s.),
Akademische Drück und Verlagsanstalt. Graz 1954; J.
W. GOUGH, The social contract. Clarendon Press.
Oxford 1936; T. H. GREEN, Lectures on the principies
of political obligation. Longmans. London 1888; O.
JASZI e J. D. LEWIS. Against the tyrant. Free Press.
Glencoe 1957; S. LANDUCCI, I filosofi e i selvaggi.
1580-1780. Laterza, Ban 1972; C. B. MACPHERSON.
Libertà e proprietà alle origini del pensiero borghese
(1962). Isedi, Milano 1973; R. NOZICK, Anarchia.
Stato, Utopia (1975), Le Monnier. Firenze 1981; J.
RAWLS, Theory of Justice, Harvard University Press.
Cambridge 1971; G. SOLARI, Individualismo e diritto
privato, Giappichelli, Torino 1939; J. TUSSMAN,
Obligation and the Body Politic, Oxford University
Press. New York 1960.
[NICOLA MATTEUCCI]
Controle Social.
Por Controle social se entende o conjunto de meios
de intervenção, quer positivos quer negativos,
acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de
induzir os próprios membros a se conformarem às
normas que a caracterizam, de impedir e desestimular
os comportamentos contrários às mencionadas
normas, de restabelecer condições de conformação,
também em relação a uma mudança do sistema
normativo.
284
CONTROLE SOCIAL
Podem ser identificadas duas formas principais de
Conlrole social de que se serve um determinado
sistema para conseguir o consenso: a área dos
controles externos e a área dos controles internos.
Através do primeiro termo se faz referência àqueles
mecanismos (sanções, punições, ações reativas) que se
acionam contra indivíduos quando estes não se
uniformizam com as normas dominantes. Neste nível
nos encontramos perante uma gama de sanções,
extremamente variada e de peso punitivo diferente,
entre as quais mencionamos, além do caso extremo da
morte, os da privação de determinadas recompensas e
direitos, as formas de interdição e de isolamento, as de
reprovação social, de admoestação, de intriga e de
sátira.
Fazem parte, ao invés, dos controles internos,
aqueles meios com que a sociedade procura mentalizar
os indivíduos — especialmente durante a socialização
primária — sobre as normas, os valores e as metas
sociais consideradas fundamentais para a própria
ordem social. Os controles internos são, portanto,
como afirma Berger, aqueles que não ameaçam uma
pessoa externamente, mas por dentro de sua
consciência: "os controles internos dependem de uma
socialização bem sucedida; se esta última foi realizada
adequadamente, então o indivíduo que pratica certas
transgressões contra as regras da sociedade será
condenado pela sua própria consciência que na
realidade constitui a interiorização dos controles
sociais."
O objetivo do controle não é somente perseguido
pelo sistema social ou pelos grupos nele dominantes,
mas também por grupos que numa sociedade parecem
marginais e reacionários. De fato, as dinâmicas e os
processos que caracterizam os grupos reacionários
aparecem regulados por normas específicas e
consolidadas, em relação às quais se determinam
claros mecanismos de controle. Esta é, de fato, uma das
condições indispensáveis ao grupo reacionário para
que sua ação não seja prejudicada na sociedade.
O conceito de Controle social, embora
indiretamente, está presente nas obras dos clássicos da
filosofia política que abordaram os temas do Estado,
do poder, do fundamento do direito de mandar, a
partir da relação entre o agir individual e a história e o
agir coletivo.
O conceito de Controle social, entendido como
limitação do agir individual na sociedade, se encontra,
por exemplo, na teoria do Estado de Hobbes. Segundo
este autor, o fim do Estado é salvaguardar a paz,
protegendo a vida dos indivíduos que a ele pertencem.
O Estado se constitui quando os homens renunciam a
fazer uso da força individual — segundo o estado de
natureza — que produz situações de anarquia, para se
entregarem a um poder coletivo ao qual se reconhece
o direito de impor as próprias ordens, recorrendo —
nos casos extremos — também à força.
Também Rousseau se interessou pelo problema da
justificação do poder. No Contraio ele critica o direito
do mais forte, a superioridade do forte e do rico,
julgando-os privados de legitimidade. Como
fundamento do direito ele identifica a vontade do
povo, o ser coletivo que nasce da livre associação de
todos os homens que renunciam dessa forma "a
exercer a própria vontade particular".
O conceito de Controle social está também
indiretamente presente no debate que se desenvolveu
no século XIX entre os estudiosos interessados pelos
temas sobre o curso geral da história, em particular
sobre o conceito de previsão destacado por Comte e a
proposição determinista de Spencer.
Sucessivamente no contexto americano alguns
autores retomaram e reformularam o conceito de
previsão. Entre estes recordamos L. F. Ward, que
considera a previsão como capacidade de controle, F.
H. Giddings, para o qual a história representa um
processo de construção da sociedade, e F.
Oppenheimer, que trata dos processos de
autocivilização das sociedades.
Numa forma explícita o conceito de Controle social
é formulado pelo sociólogo americano E. A. Ross, no
fim do século passado, em duas importantes acepções
que dominaram por muito tempo o debate sociológico:
pela primeira acepção se entendem todos os processos
que, ao determinar na interação as relações entre os
vários indivíduos, levam a regular e a organizar o
comportamento do homem e estabelecem condições de
ordem social; pela segunda acepção se entende o
controle exercido por um grupo sobre os próprios
membros ou por uma instituição ou grupos de pressão
e classes sociais sobre a população de uma sociedade
ou parte dela.
A primeira acepção do conceito, embora confirmada
nas obras de W. G. Summer, preocupado em
evidenciar o controle do comportamento por parte dos
"costumes dos grupos", e de C. H. Cooley e analisada
também na obra de G. Gurvitch, não está isenta de
fortes limitações, entre as quais a da genericidade da
formulação, de acordo com a crítica de muitos autores.
De fato, L. Von Wiese, após ter maturado a
convicção de que a ordem social se determina somente
na presença de imposições externas, opta pelo conceito
de constrição social, procurando dessa forma superar a
indeterminação em que incorre Ross de fazer derivar
da interação a ordem interna de uma sociedade. Outra
limitação desta acepção se encontra no fato de que
enfatiza
CONVENÇÃO
os processos de socialização como elementos de
controle social, com prejuízo de outros fatores, e do
mesmo êxito imprevisível e ambivalente dos
processos sociais.
Também a segunda acepção não aparece isenta de
limitações, porque na formulação mais extensa parece
se sobrepor a outros conceitos, tais como os de poder e
de autoridade.
No curso de sua história cada sociedade ou grupo
tende a modificar os mecanismos de controle social a
que faz recurso para garantir o consenso. A este
propósito, se podem delinear — embora
esquematicamente — as mudanças que os sistemas de
Controle social sofreram numa sociedade industrial.
Enquanto na formação econômico-social do
capitalismo liberal o próprio objetivo do Controle
social era confiado às leis de mercado, desde o
momento em que se determinara um amplo consenso
baseado na lógica de tipo meritocrático que tornava
plausível a diferenciação das recompensas, com a crise
da ideologia liberal se determina — embora
paralelamente ao sistema anterior — um tipo de
Controle social em que a intervenção estatal adquire
sempre maior peso. Nesta fase o controle é confiado,
em particular, às intervenções do Estado assistencial,
que visa realizar uma situação generalizada de bemestar social. Neste período em que se emprega uma
grande quantidade de recursos públicos para realizar
uma situação de segurança social, em que se alarga a
esfera de competência e de intervenção do Estado
(quer na direção para incrementar a ocupação no setor
terciário quer no apoio dado ao setor secundário quer
no campo assistencial) se determina paralelamente, e
exatamente em relação com a forte intervenção no
setor público, uma situação de delegação e de menor
participação social dos cidadãos e a consolidação dos
interesses dos vários grupos que acentuam cada vez
mais seu caráter de pressão. Se de um lado o mito da
sociedade do bem-estar parece capaz de polarizar as
aspirações das massas e de determinar suas
necessidades, de outro lado uma realidade de expansão
econômica e produtiva garante a multiplicidade dos
recursos e torna mais concreta a possibilidade de
realizar a sociedade do bem-estar.
Não obstante estas condições favoráveis,
verificaram-se em alguns contextos sociais, como no
da Itália dos anos 60, fenômenos contrários àquela
situação de Controle social. Referimo-nos à ausência
de uma política de planejamento e a toda aquela série
de intervenções de tipo assistencial, produzidas por
uma lógica de clientela visando ampliar o campo de
segurança social sem criar as condições econômicas e
produtivas
285
capazes de legitimá-la, através das quais, juntamente
com as leis de mercado, o poder público procurava a
base do consenso.
Numa situação como a atual, que é de crise de
recursos, se torna, porém, impossível para o Estado
manter o tipo e a quantidade de intervenções acionadas
anteriormente para sustentar a economia e garantir o
Welfare State. A crise (da economia e de legitimação),
de fato, rachou esse modelo de Governo. A carência de
recursos públicos, o maior controle de determinadas
forças sociais, o agravamento dos desequilíbrios
sociais e produtivos, a maior dificuldade na
competição internacional tornam, no momento atual,
impossível repropor a atuação de uma política de
assistência e de clientela acionada anteriormente e de
uma política de apoio às empresas em período de crise.
Na carência de amplas perspectivas políticas, na
diversificação de interesses já consolidados, na crise
de representação de grupos de referência, o problema
do Controle social se torna um problema de regulação
de interesses e de pressões dos vários grupos, por
parte do Estado e da afirmação de uma situação de
neocorporativismo na qual resultam mais fortes os
grupos que ocupam as posições centrais da estrutura
social e produtiva.
BIBLIOGRAFIA — A. ARDIGÒ, Crisi di governabilità e
mondi vitali, Cappelli, Bologna 1980; A. K. COHEN,
Controllo sociale e comportamento deviante (1966), Il
Mulino, Bologna 1970; G. GURVITCH, Le controle
social, in G. GURVITCH e W. Z. MOORE, La sociologie
au XXº siècle. vol. I: "Les grands problèmes de la
sociologie". P. U. F., Paris 1947; R. T. LA PIERE, A
theory of social control. McGraw-Hill, London 1954.
[FRANCO GARELLI]
Convenção.
Entendido como assembléia política, este termo
possui fundamentalmente dois significados, sendo o
segundo típico do vocabulário político norteamericano; significa: 1) assembléia de representantes
do povo reunida para criar um novo Estado e formar
suas instituições, ou para substituir ou modificar a
forma de Governo existente; 2) assembléia de
delegados de um partido convocada para designar os
candidatos a cargos eletivos, fixar programas ou
preparar campanhas eleitorais.
Incluir-se-iam no primeiro caso as Convenções
revolucionárias e constitucionais, de que são
286
COOPTAÇÃO
exemplo a Convenção francesa de 1792, a que se
deveu a primeira Constituição da República francesa, e
a de Filadélfia de 1787, que elaborou a Constituição
Federal dos Estados Unidos. A principal diferença
entre os dois tipos está em que a Convenção
constitucional é convocada de modo legalmente válido
pelo Governo legítimo, ao invés da revolucionária.
Mas não se pode dizer que seus propósitos sejam
qualitativamente diversos; tanto é assim que, muitas
vezes, poderá ser difícil, se não artificioso, distinguir
entre ambas.
As Convenções dos partidos norte-americanos podem
realizar-se a nível local, estatal ou federal; neste último
caso, o mais conhecido e importante, a Convenção
serve para nomear os candidatos do partido aos cargos
de presidente e vice-presidente dos Estados Unidos.
O sistema das Convenções foi criado em oposição a
um sistema próprio dos fins do período colonial e da
época revolucionária, o caucus, considerado
antidemocrático, porquanto a nomeação dos
candidatos era feita em reuniões dos líderes do partido,
sem participação das bases. A Convenção cujos
membros eram escolhidos pelos órgãos locais do
partido, mediante consulta aos inscritos, constituiu um
instrumento político inovador, mas só foi usado
inicialmente na escolha dos candidatos ao Congresso;
na época jacksoniana, findo o monopólio do poder dos
grandes leaders parlamentares e do caucus
congressional do partido, de que dependia a nomeação
do candidato presidencial, esta passou também a
realizar-se de acordo com o novo método. Surge
assim, após 1830, a national convention, usada pelos
dois maiores partidos americanos para a escolha dos
candidatos à presidência e vice-presidência. Quase
imune das acusações dirigidas, no fim do século
passado, contra os outros tipos de Convenção, culpados
de se haver tornado instrumentos antidemocráticos e
máquinas corruptas de partido — o que levou, depois
de 1900, à criação legal, em muitos Estados, das
"eleições primárias diretas" para a escolha dos
candidatos entre os inscritos de cada partido — a
national convention se tem revelado como momento
fundamental e característico da vida política dos
Estados Unidos.
A importância das national conventions dos
partidos americanos reside, antes de tudo, no fato de
serem quase o único momento em que esses partidos
atuam como organismos políticos nacionais. A sua
estrutura, bem diversa da estrutura centralizada dos
partidos europeus, se assemelha, de fato, a uma
confederação de partidos estatais, dominados muitas
vezes por interesses e idéias divergentes, com escassa
vinculação a nível federal, para os quais o candidato
presidencial é
como que o símbolo necessário da unidade, sendo a
sua escolha um ensejo para fazer aceitar, a nível
nacional, atitudes, programas e interesses locais.
[TIZIANO BONAZZI]
Cooptação.
Denomina-se assim o sistema de integração de um
corpo colegial, diretivo ou consultivo, pelo qual um
ou mais membros são escolhidos, sob a indicação dos
membros já efetivos. Em sentido mais lato, este termo
é usado também para designar o acolhimento, por
parte de um grupo dirigente em funções, de idéias,
orientações e programas políticos propostos por grupos
da oposição, com o fim de eliminar ou reduzir as
conseqüências dos ataques vindos de fora.
Na linguagem democrática, o termo Cooptação tem
geralmente significado pejorativo, porquanto os
mecanismos de escolha de tipo cooptativo se prestam
facilmente a favorecer a permanência no cargo de
dirigentes que não gozam do consenso, ou são até
mesmo contrários aos desejos da base. Em geral, os
regulamentos internos das associações voluntárias que
prevêem eleições partindo da base como forma normal
de escolha dos dirigentes, proíbem ou limitam
consideravelmente o recurso a formas de Cooptação.
Habitualmente só são admitidas em casos restritos, não
podem ultrapassar um certo percentual de postos, ou só
são admitidas quando é necessário proceder com
urgência à reintegração de um organismo dirigente e
não há tempo de cumprir as formalidades usuais.
Freqüentemente a escolha de dirigentes por Cooptação
tem de ser depois ratificada mediante o recurso aos
mecanismos normais da eleição.
A par das formas explícitas de Cooptação, existem
as formas indiretas e encobertas. Ocorrem quando a
escolha dos novos dirigentes se realiza formalmente
segundo as normas dos regulamentos internos, mas a
decisão é, em grande parte, preordenada, sendo tomada
com a aprovação e incitamento da direção em funções,
que utiliza largamente a sua posição de poder para
influir de forma decisiva na escolha dos novos
membros. Esta forma de Cooptação é assaz difícil de
identificar, uma vez que o cumprimento das normas
prescritas é formalmente respeitado e os acordos
ocultos são difíceis de documentar e, além disso,
difíceis de erradicar.
Não é fácil dizer na prática qual a incidência das
formas de Cooptação e quais são os fatores que a
tornam mais provável. Podemos, contudo,
CORPORATIVISMO
aventar a hipótese de que a Cooptação é mais comum
nas organizações caracterizadas por uma escassa
participação das bases, pela falta de articulação interna
de grupos que compitam pelo acesso aos cargos de
direção, e pela homogeneidade dos que detêm o
mando. Do ponto de vista dos dirigentes que estão no
poder, o recurso a formas de Cooptação não só lhes
permite debilitar os eventuais grupos de oposição ou
impedir sua formação, como também incorporar ao
próprio
programa
orientações
e
iniciativas
apresentadas pela oposição emergente, subtraindo-lhe
assim os pontos de apoio e os motivos de propaganda
junto da base.
287
relação hierárquica paternalista entre o "mestre", ou
seja, o chefe da empresa, e o aprendiz, ou seja, o
dependente. Isto pressupõe a imobilidade tecnológica
das coletividades medievais, correspondendo, portanto,
a sociedades de tipo tradicional, com níveis de
produção estáticos e tendentes à auto-suficiência.
O desmantelamento do aparelho corporativo é
contemporâneo aos começos da Revolução Industrial.
As Combination LAWS britânicas são de 1799. A lei Le
Chapelier francesa remonta a 1791. Por um lado,
reconhece-se no ordenamento corporativo, segundo as
teses da ciência econômica clássica, um obstáculo ao
adequado funcionamento da economia de mercado.
Adam Smith afirma: "gente do mesmo ofício
raramente se encontra, mesmo que só seja por
[GIACOMOSANI]
passatempo e diversão, sem que a conversa acabe em
conspiração contra o público ou em qualquer manobra
para aumentar os preços". Por outro lado, tem-se em
Corporativismo.
vista remover todo o interesse intermediário entre o
I. DEFINIÇÃO E PREÂMBULO. — O Corporativismo é interesse particular do indivíduo e o interesse geral do
uma doutrina que propugna a organização da Estado e considera-se o espírito de corporação
coletividade baseada na associação representativa dos incompatível com o processo de modernização do
interesses e das atividades profissionais (corporações). sistema político. Trata-se, em última análise, de
Propõe, graças à solidariedade orgânica dos interesses incompatibilidade com a INDUSTRIALIZAÇÃO (v.) que,
concretos e às fórmulas de colaboração que daí podem para realizar-se, exige a ruptura prévia da rígida textura
derivar, a remoção ou neutralização dos elementos de corporativa, impermeável ao dinamismo produtivo e
conflito: a concorrência no plano econômico, a luta de às inovações tecnológicas.
As novas formas associativas que surgem com a
classes no plano social, as diferenças ideológicas no
Revolução Industrial baseiam-se não na conciliação dos
plano político.
Segundo os apologetas do Corporativismo, "houve interesses de categoria, na sua acumulação encastoada
no passado da humanidade muitas sociedades em uma ordem institucional orgânica, mas no conflito
corporativas e muitos teóricos do Corporativismo, a dos interesses e na luta de classes (v. SINDICALISMO).
O modelo corporativo se apresenta, pois, como
começar por Platão, por Aristóteles e por Santo
Tomás. Mais: poder-se-ia dizer que todas as fórmula contraposta ao modelo sindical, que seria o
sociedades históricas foram corporativas; todas menos gestor do conflito subjacente à sociedade
as sociedades democráticas surgidas no século XIX, industrializada ou em vias de desenvolvimento e o
porque a Revolução Francesa, ao destruir os quadros transformaria, de quando em quando, em uma
corporativos, reduziu a sociedade ao pó dos eventual relação de força entre trabalho e lucro. O
indivíduos'' (Manoilescu, 1934). Com efeito, deixados modelo corporativo, pelo contrário, impediria
de lado alguns precedentes longínquos e vagos no justamente a formação de elementos de conflito,
mundo clássico, o Corporativismo idealiza a comuna articulando as organizações de categoria em
medieval italiana, onde a corporação não é apenas uma associações entre classes e prefixando normas
associação de indivíduos que exercem a mesma obrigatórias de conciliação para os dissídios coletivos
atividade profissional: ela monopoliza a arte ou ofício do trabalho. O modelo corporativo defende a
e, conseqüentemente, a produção, vedando-a aos colaboração entre as classes no âmbito das categorias.
estranhos, detém poderes normativos em matéria de Sua interpretação da dialética social é otimista, ao
economia (determinação das normas de comércio e passo que as premissas em que se baseia o modelo
preços) e constitui por vezes um canal obrigatório de sindical são conflitantes e pessimistas.
representação política.
No plano político, o modelo corporativo se
O sistema corporativo medieval, baseado na apresenta como alternativa do modelo representativo
autonomia semi-soberana das categorias (v. SOCIEDADE democrático. Preconiza a realização de uma
POR CATEGORIAS), envolve a transmissão por via familiar
democracia orgânica, onde o indivíduo não terá
da atividade profissional e uma
288
CORPORATIVISMO
valor como entidade numérica, mas como portador de
interesses precisos e identificáveis.
Seu caráter contrário aos conflitos, de união entre as
classes, otimista, torna o Corporativismo menos odioso
para aqueles que, no processo de industrialização,
admitem como dado prioritário a eficiência da ordem
político-econômica. Como fator de estagnação
econômica e tecnológica, como obstáculo real à
industrialização, o modelo corporativo se apresenta
como instrumento apto a consolidar a eficiência e
concentração do sistema e a destruir as forças
centrífugas ideológicas e classistas- Os teóricos do
Corporativismo não são, de resto, unânimes quanto a
tal conclusão. Sobrevive em alguns a desconfiança em
relação à sociedade industrial e a nostalgia de uma
sociedade descentralizada, baseada nos corpos
intermédios, que vão da família à sociedade local e à
associação profissional, e trazem ao indivíduo remédio
para a sua solidão, assegurando-lhe, em um quadro
pluralista, dentro de um equilíbrio de poderes e
oposições, um mais profundo sentido de participação
política.
Dadas estas premissas, podemos distinguir um
Corporativismo "contra-revolucionário" ou tradicional
do Corporativismo "dirigista", enquanto, na prática e
na teoria, está-se delineando a terceira figura do
Corporativismo "tecnocrático".
II. O CORPORATIVISMO CONTRA-REVOLUCIONÁRIO
OU TRADICIONAL. — O Corporativismo nasce, ou
melhor, renasce com o desenrolar da Revolução
Industrial, como protesto contra a empresa capitalista,
mas se transforma em protesto contra todo o sistema,
contra a Revolução Industrial e contra a revolução
política. O princípio da igualdade e o individualismo
comprimiram e isolaram o indivíduo, expondo-o ao
abuso dos poderosos, à cruel relação da força, quer no
trabalho, quer na sociedade política. O ideal
corporativo é constituído precisamente por orientações
legitimistas e católicas, à margem da modernização
política e econômica, que tentam encontrar, por meio
de articulações solidárias, a união com todos os
excluídos do sistema: as categorias subalternas.
Antiliberalista, o Corporativismo se apresenta como
contestação absoluta do sistema, como um ideal
restaurador.
Vários autores e políticos católicos, principalmente
franceses (Ozanam, Le Play, De Mun, La Tour du Pin)
e alemães (Ketteler, Hitze), e o padre Luigi Taparelli
d'Azeglio, na Itália, propugnam a "reconstrução
orgânica da sociedade", tornando-se este um tema que
se repete na doutrina social católica. A nostalgia de uma
sociedade tradicional estagnante e imóvel, mas orgânica
e hierárquica, sem conflitos nem antagonismos,
eticamente orientada a um fim, é também muito viva
nos primeiros documentos pontifícios dedicados ao
problema social. Em 1878, na Quod apostolici muneris,
Leão XIII manifestava esse desejo: "Torna-se oportuno
favorecer as sociedades artesanais e operárias que, ao
amparo da Religião, habituam seus sócios a manteremse contentes com a sua sorte, a suportarem com
merecimento a fadiga e a levarem uma vida sempre
quieta e tranqüila". Em 1892, na encíclica Rerum
novarum do mesmo Pontífice, o modelo corporativo
adquire uma configuração doutrinária mais precisa e
menos nostálgica: afirma-se textualmente que, "para a
solução da questão operária, muito poderão contribuir
os capitalistas e os próprios operários, com instituições
ordenadas a oferecer oportuna ajuda aos necessitados e
a aproximar e unir as duas classes entre si". Entre tais
instituições, Leão XIII coloca em primeiro lugar "as
corporações de artes e ofícios", acrescentando, depois
de haver lembrado as vantagens "claríssimas junto dos
nossos maiores" de tais corporações: "vemos com
agrado formarem-se por toda parte tais associações, seja
só de operários, seja conjuntamente de operários e
patrões". As indicações do texto pontifício foram
examinadas em vários encontros organizados por
católicos (basta pensar no Congresso de Vicenza
realizado nesse mesmo ano) e submetidas a ulterior
desenvolvimento doutrinário pelo economista e
sociólogo católico Giuseppe Toniolo. Das duas vias
indicadas pelo Papa Leão XIII, associação só de
operários e associação mista de operários e dadores de
trabalho da mesma categoria, a segunda parece, à
primeira vista, a mais consentânea com o solidarismo
do ideal corporativo; mas a falta de correspondência
do mundo empresarial e patronal católico, por um
lado, e, por outro, a pressão do sindicalismo de classe
determinaram o progressivo abandono, por parte dos
organizadores católicos, do princípio de união mista. A
corporação torna-se uma meta a alcançar por meio das
associações de base, desligadas dos dadores de
trabalho e dos prestadores de obra, ou seja, por meio
das organizações de classe. Os católicos admitem
assim a existência da luta de classes e aceitam o
princípio de uma organização autônoma das categorias
operárias, embora se afirme a necessidade da
subordinação dos interesses de classe ao bem comum.
O acantoamento do modelo corporativo, a opção
pelo modelo sindical, se bem que com reservas de
caráter geral, são coevos, para os católicos, da
aceitação do modelo democrático-representativo.
Desde então, o princípio da união entre as classes, que
se mantém ainda como aspecto essencial e
característico dos movimentos políticos
CORPORATIVISMO
de inspiração católica, se projetará mais na ação
ideológica e política que na ação social e sindical das
forças católicas. A exigência corporativa de uma
revisão do sistema representativo baseada na
representação profissional foi corrigida: no primeiro
pós-guerra, o Partido Popular italiano reivindica a
admissão na segunda câmara de representantes das
"classes organizadas". Segundo os sindicalistas
católicos da época, a colaboração de classe se realiza
mantendo o caráter classista dos sindicatos.
Esta orientação foi também aceita, no segundo pósguerra, pelo movimento político e sindical católico. O
princípio da representação dos interesses, último
resíduo corporativista arduamente defendido por vasto
setor da cultura política católica, foi também
reconhecido, se bem que de forma marginal, na
Constituição da república italiana, ao ser criado o
Conselho Nacional de Economia e Trabalho,
assembléia, como se sabe, de caráter meramente
consultivo e hoje bastante apagada, apesar das suas
atribuições em matéria de ação legislativa.
Arruinado pelo abandono da linha tradicionalista e
restauradora do movimento político católico, o
Corporativismo foi mantido pela corrente legitimista
conservadora. Encontramo-lo em programas de grupos
monárquicos, como a Action Françaíse e o carlismo
espanhol (Comunión Tradicionalista); teve também um
começo de atuação parcial em alguns sistemas políticos
de inspiração conservadora, como no Portugal de
Salazar e na Espanha de Franco. Na Espanha, embora
não se haja adotado o termo corporação, aceitou-se o
princípio dos sindicatos mistos, que abrangiam tanto os
dadores de trabalho como os dependentes e peritos,
enquanto as Cortes e as assembléias locais admitiam
uma cota fixa de representantes de categoria. É de
observar que a organização corporativa portuguesa
funcionou dentro da óptica de uma política
antiindustrial, isto é, preocupada em preservar, quanto
possível, as modalidades econômicas e sociais de uma
sociedade tradicional. Em Portugal como na Espanha,
a adoção de uma política de rápida industrialização
levou a uma progressiva redução e fragmentação da
organização corporativa.
Curiosa utopia de restauração laical do
Corporativismo medieval foi o "plano de uma nova
organização do Estado livre de Fiume", apresentado
em 27 de agosto de 1920 por Gabriele D'Annunzio,
com a colaboração do sindicalista A. De Ambris. A
Regência italiana de Carnaro proclamava, "amplia e
exalta, acima de qualquer outro direito, os direitos dos
produtores, suprime e reduz o centralismo excessivo
dos poderes constituídos, distribui as forças e cargos,
de modo
289
que, com o jogo harmonioso das diversidades, se torne
cada vez mais vigorosa e rica a vida comum"
(D'Annunzio, 1943). O caráter efêmero e estetizante
do microcorporativismo de Fiume faz da experiência
dannunziana uma sugestão literária de fraca densidade
política.
III. O CORPORATIVISMO DIRIGISTA. — O Corporativismo
dirigista teve sua concretização no Corporativismo
fascista. Alguns teóricos tendem a não reconhecer as
diferenças existentes entre o Corporativismo católico e
o fascista ou a referi-las apenas à perspectiva ética do
primeiro (supremacia do amor e do bem comum sobre
os interesses particulares) e à perspectiva política do
segundo (supremacia do interesse nacional) (Guglielmi,
1972). Na realidade, a diversidade é bastante mais
profunda e radical. Vallauri afirma que o
Corporativismo fascista "nasce como exigência das
classes dirigentes de uma sociedade que, com o passar
de um estágio agrícola a um estágio de maior empenho
industrial, sentem necessidade de controlar a marcha
da evolução e de juntar em um fascio as energias do
país, a fim de alcançar resultados mais eficazes, com
menor dispêndio de meios, e poder competir com os
mais poderosos organismos produtivos estrangeiros".
Observa ainda o mesmo autor que "o Corporativismo
fascista representa uma tentativa autoritária de resposta
ao esfacelamento do mundo liberal que permite pôr
em ação instrumentos mais modernos e adequados às
necessidades do sistema" (Vallauri, 1971).
Enquanto o Corporativismo tradicional é
essencialmente pluralista e tende à difusão do poder, o
Corporativismo fascista é monístico (não é por acaso
que está filosoficamente ligado ao idealismo), tenta
reduzir à unidade, àquela unidade dinâmica que é
ambição do sistema (v. FASCISMO), todo o complexo
produtivo. No Corporativismo tradicional, as
corporações se contrapõem ao Estado; no
Corporativismo fascista, as corporações estão
subordinadas ao Estado, são órgãos do Estado.
O Corporativismo fascista teve sua origem na
concepção nacionalista elaborada por Alfredo Rocco.
Subordinando o bem-estar das categorias e os próprios
interesses concretos ao objetivo geral do
desenvolvimento econômico, tal concepção prevalece
às confusas elaborações doutrinárias que, sob a égide
de Bottai, serão apresentadas pelos corporativistas
puros, pelos defensores do "Corporativismo integral".
A corporação proprietária, defendida por Ugo Spirito
no encontro de Ferrara, é mais compatível com as
disposições jurídicas privatizantes conservadas pelo
regime fascista do que com o programa de
290
CORPORATIVISMO
expansão econômica que Rocco, tal como Spirito, mas
dentro de uma óptica mais realista, considerava
objetivo prioritário. Em seu relatório à Câmara, a 18 de
novembro de 1925, o chanceler fascista defende "um
sindicalismo nacional que faça lembrar que existe,
entre as categorias e os grupos sociais da Itália, uma
razão de solidariedade que supera as razões de
contraste, uma solidariedade que une todos os grupos,
todas as categorias, todas as classes de um povo pobre
mas exuberante de homens e de vontade, um povo que
há de caminhar em direção ao seu futuro como um
exército em ordem de batalha". Para Rocco, o
problema social é principalmente um problema de
incremento da riqueza e da produção nacional e não
tanto o da sua distribuição.
A fórmula de Rocco foi aceita pelo próprio
Mussolini que, em novembro de 1933, apresentou ao
Conselho Nacional das Corporações uma ordem do dia
em que as corporações eram definidas como
"instrumento que, sob a égide do Estado, torna real a
disciplina integral, orgânica e unitária das forças
produtivas, com vistas ao desenvolvimento da riqueza,
do poder político e do bem-estar do povo italiano."
Nessa mesma ocasião, Mussolini via no
Corporativismo uma fórmula de economia guiada e
dirigida: "O Corporativismo — acrescentou — é a
economia disciplinada e, por isso, controlada, pois não
se pode pensar em disciplina que não tenha controle.
O Corporativismo supera o socialismo e o liberalismo,
cria uma nova síntese." Comentário de Pellizzi: "Tinhase, portanto, uma economia predominantemente
'dirigida', uma ordem social em que o fim coletivo
tinha preferência, sempre que parecesse contrastar
com interesses e razões particulares ou privadas"
(Pellizzi, 1948).
A rígida subordinação das corporações ao Estado é
constantemente proclamada pelos expoentes do
fascismo. Farinacci afirma que "o Corporativismo não
pode ter primazia sobre o que constitui as funções do
Estado''. E explica, por sua vez, Bottai, ministro das
corporações: "O Estado cria a corporação, chama a ela
quantos trabalham e produzem em um determinado
ramo da produção, fá-los discutir, organiza-os,
disciplina-os e orienta-os".
O Corporativismo se contrapõe ao sindicalismo
como fórmula unitária e aglutinante. "O sindicalismo,
afirma Mussolini, a 21 de abril de 1930, não pode
constituir um fim em si mesmo: ou se exaure no
socialismo político, ou na corporação fascista. Só na
corporação se realiza a unidade econômica em seus
diversos aspectos: capital, trabalho, técnica; só com a
colaboração, isto é, com a colaboração de todas as
forças que concernem
a um mesmo fim, se assegura a vitalidade do
sindicalismo".
A
conciliação
entre
Corporativismo
e
industrialização foi amplamente desenvolvida por Ugo
Spirito que, em polêmica com Arrigo Serpieri, fautor
de uma orientação "ruralista", antiurbana e
antiindustrial, defende o processo de industrialização a
todo o transe. Para Spirito, o verdadeiro obstáculo ao
desenvolvimento industrial na Itália está na
fragmentação das estruturas empresariais, em um
"hábito individualista e anárquico de antepor a
empresa familiar e semifamiliar à grande empresa
moderna". "O Corporativismo é, por conseqüência, a
fórmula apta a garantir a unificação e organização das
forças produtivas, uma grande experiência de
unificação industrial e comercial".
Em seu aspecto teórico, o Corporativismo "integral"
de Spirito representa a exacerbação do princípio
monístico e configura, em substância, um Estado
burocrático-totalitário. Rejeita os resíduos sindicalistas
ou classistas que ainda sobreviviam no sistema
corporativo fascista, mas, com o sindicato de classe,
rejeita também a propriedade individual, propondo a
instituição da corporação "proprietária". Para ele, o
Corporativismo é "um comunismo hierárquico, que
nega o Estado nivelador e o indivíduo anárquico, nega
a gestão burocrática que burocratiza toda a Nação,
fazendo de cada cidadão um funcionário, e nega a
gestão privada ao reconhecer a cada indivíduo um
valor e uma função de caráter público". Fim último do
Corporativismo integral é superar o dualismo entre
política e economia, garantir o primado das hierarquias
técnicas e racionalizar o mundo econômico, de modo
que se torne possível "uma economia programada, a
única capaz de superar o caos do liberalismo
tradicional" (Spirito, 1970).
Na realidade, o Corporativismo fascista só aceitou
parcialmente tais ilações doutrinais. Na prática foi
assumindo constantes compromissos que, do mesmo
modo que permitem a convivência entre os apologistas
do "ruralismo" e os da industrialização a todo o transe,
alimentam até ao fim do vintênio a polêmica entre os
defensores do Corporativismo integral e os do
sindicalismo populista, antiburguês e, pelo menos,
embrionariamente classista.
As organizações dos trabalhadores mantêm-se, na
realidade, como distintas das organizações dos
dadores de trabalho, gozando de uma aparente
autonomia. A estrutura, contudo, é estritamente
hierárquica e unitária, o sindicalismo está subordinado
à corporação e esta ao Estado.
As diversas etapas de regulamentação das
corporações durante o vintênio demonstram que o
CORRUPÇÃO
Corporativismo fascista evoluiu em um sentido
dirigista e totalitário. Pela lei de 3 de abril de 1926, a
corporação é um simples órgão de coligação entre os
sindicatos dos dadores de trabalho e os dos
trabalhadores. Com a lei de 5 de fevereiro de 1934, as
corporações se transformam em algo emanado do
Estado, são criadas por decreto do chefe do Governo,
são presididas por um ministro ou subsecretário de
Estado, ou então pelo secretário do P.N.F. Os
membros do Conselho de cada corporação são
designados pelas associações coligadas, mas tal
designação há de ser aprovada pelo chefe do Governo.
Às corporações assim formadas é atribuída uma função
normativa em matéria de regulamentação coletiva das
relações econômicas e de disciplinamento unitário da
produção (leis corporativas). As normas assim
emanadas estão sujeitas, de resto, ao prévio
beneplácito do chefe do Governo e à aprovação do
Conselho Nacional das Corporações. Às corporações
são também atribuídas funções consultivas em matéria
econômica e funções conciliatórias em matéria de
dissídios coletivos de trabalho. Com a substituição da
Câmara de Deputados pela Camera del Fasci e delle
Corporazioni, em 19 de janeiro de 1939, realizava-se a
etapa final da inserção das corporações no Estado
fascista.
O caráter espúrio e pragmático da experiência
corporativa fascista explica por que, no pensamento
do pós-guerra, os próprios que haviam sido antes seus
arautos renunciaram à sua defesa doutrinai ou o
refutaram acerbamente. Não obstante, é recorrendo a
fórmulas semelhantes que em alguns países em vias de
industrialização se procurou e procura, se bem que por
meio de expedientes empíricos e momentâneos e com
menor aparato teórico, controlar desde cima as
organizações sindicais ou fazer das organizações de
categoria correias de transmissão da vontade de
desenvolvimento que promana do vértice. Nesses
países, aceitou-se igualmente, de forma mais ou
menos consciente, o esquema de Rocco, da prioridade
do crescimento econômico sobre a da redistribuição da
renda.
Em todo caso, o Corporativismo dirigista, embora
não seja difícil construir sua genealogia fazendo-o
derivar, por meio do nacionalismo, do Corporativismo
tradicional, constitui, em relação a este, uma ruptura
radical. Ora é usado de preferência como fórmula
capaz de fortalecer um pluralismo de base na
qualidade de agente de organização do vértice, ora
como fórmula capaz de garantir uma paz produtiva
sem contrastes nem antagonismos, quando agente de
mobilização e aceleramento da industrialização.
(Sobre o
291
neocorporativismo do segundo pós-guerra veja-se o
respectivo vocábulo).
Vários estudiosos norte-americanos, em face da
existência de estruturas de controle e de organização
social de tipo corporativo em diversos países latinoamericanos, presumiram como uma categoria à parte,
com origens históricas próprias, o Corporativismo
ibérico, distinguindo-o do Corporativismo dirigista de
tipo fascista (Wiarda, 1974; Newton, 1974; Malloy,
1974). De resto, o Corporativismo, tal como tem sido
posto em prática nos países em vias de
desenvolvimento, apresenta características não
diversas das do Corporativismo dirigista de modelo
fascista; basta, aliás, pensar que o ordenamento
corporativista brasileiro do Estado Novo de Vargas se
inspirava diretamente na Carta do trabalho fascista.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., Verso il
corporativismo democrático. Laterza. Bari 1951; A.
AQUARONE, L'organizzazione della Stato totalitario,
Einaudi, Torino 1965: G. BOTTAI, Verso il
corporativismo democratico o verso una democrazia
corporativa? in "11 Diritto del Lavoro", 3-4, 1952 ;G.
D'ANNUNZIO, Per la più grande Italia. Il Vittoriale degli
Italiani, Mondadori, Roma 1943; S. LA FRANCESCA, La
politica economica del fascismo. Laterza, Bari 1972; N.
GUGLIELMI, Il corporativismo como alternativa, in
"Intervento", 2, 1972; J. M. MALLOY, Authoritarianism,
corporatism and mobilization in Peru, in "The Review
of Politics" 1, janeiro, 1974; M. MANOILESCU, Le siècle
du corporativism. Fèlix Alcan, Paris 1934; R. C.
NEWTON, Natural corporatism and the passing of
populism in Spanish America. in ""The Review of
Politics" cit.; C. SCHWARZENBERG, Il sindacalismo
fascista, Mursia, Milano 1972; U. SPIRITO, Il
corporativismo, Sansoni, Firenze 1970; C. VALLAURI,
Le radici del corporativismo. Bulzoni, Roma 1970; H.
J. WIARDA, Corporatism and development in the ibericlatin world: persistem strains and new variations. in
"The Review of Politics", I, janeiro, 1974.
[LUDOVICO INCISA]
Corrupção.
Assim se designa o fenômeno pelo qual um
funcionário público é levado a agir de modo diverso
dos padrões normativos do sistema, favorecendo
interesses particulares em troco de recompensa.
Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem
desempenha um papel na estrutura estadual. Podemos
distinguir três tipos de Corrupção: a prática da peita
ou uso da recompensa escondida para mudar a seu
favor o sentir de um funcionário público; o nepotismo,
ou con-
292
CORRUPÇÃO
cessão de empregos ou contratos públicos baseada não
no mérito, mas nas relações de parentela; o peculato
por desvio ou apropriação e destinação de fundos
públicos ao uso privado. A Corrupção é considerada
cm termos de legalidade e ilegalidade e não de
moralidade e imoralidade; tem de levar em conta as
diferenças que existem entre práticas sociais e normas
legais e a diversidade de avaliação dos
comportamentos que se revela no setor privado e no
setor público. Por exemplo: o diretor de uma empresa
privada que chamasse o seu filho para um posto de
responsabilidade não cometeria um ato de nepotismo,
mesmo que o filho não possuísse os requisitos
necessários; mas cometê-lo-ia o diretor de uma
empresa pública.
Corrupção significa transação ou troca entre quem
corrompe e quem se deixa corromper. Trata-se
normalmente de uma promessa de recompensa em
troca de um comportamento que favoreça os
interesses do corruptor; raramente se ameaça com
punição a quem lese os interesses dos corruptores.
Esta reciprocidade negativa é melhor definida como
coerção. A Corrupção é uma alternativa da coerção,
posta em prática quando as duas partes são bastante
poderosas para tornar a coerção muito custosa, ou são
incapazes de a usar.
A Corrupção é uma forma particular de exercer
influência: influência ilícita, ilegal e ilegítima.
Amolda-se ao funcionamento de um sistema, em
particular ao modo como se tomam as decisões. A
primeira consideração diz respeito ao âmbito da
institucionalização de certas práticas: quanto maior for
o âmbito de institucionalização, tanto maiores serão as
possibilidades do comportamento corrupto. Por isso, a
ampliação do setor público cm relação ao privado
provoca o aumento das possibilidades de Corrupção.
Mas não é só a amplitude do setor público que influi
nessas possibilidades; também, o ritmo com que ele se
expande.
Em
ambientes
estavelmente
institucionalizados, os comportamentos corruptos
tendem a ser, ao mesmo tempo, menos freqüentes e
mais visíveis que em ambientes de institucionalização
parcial ou flutuante. A Corrupção não está ligada
apenas ao grau de institucionalização, à amplitude do
setor público e ao ritmo das mudanças sociais; está
também relacionada com a cultura das elites e das
massas. Depende da percepção que tende a variar no
tempo e no espaço.
Se a Corrupção é um modo de influenciar as
decisões públicas, quem dela se serve procurará
intervir a três níveis. Usará da Corrupção, antes de
tudo, na fase da elaboração das decisões. Algumas
atividades dos grupos de pressão, aquelas
que tentam influir nos deputados, nos membros das
comissões parlamentares, nos peritos, podem ser
englobadas na categoria da Corrupção. Recorrem, em
geral, a este tipo de Corrupção aqueles grupos que, não
gozando de uma adequada representatividade, não
possuem bastante acesso aos decision-makers. A
Corrupção pode também ser tida como tentativa para
a obtenção de um acesso privilegiado. O segundo
nível da Corrupção é o da aplicação das normas por
parte da administração pública e de suas instituições.
O objetivo, neste caso, é o de obter uma isenção ou
uma aplicação de qualquer modo favorável. Serão
tanto maiores as probabilidades de êxito, quanto mais
elástica e vaga for a formulação das normas. A
Corrupção pode ainda ser usada, quando se faz valer a
lei contra os transgressores. Neste caso, a Corrupção
visa a fugir às sanções legalmente previstas. São objeto
da Corrupção, aos três níveis, os parlamentares, o
Governo e a burocracia, e a magistratura.
Nas sociedades fragmentadas e heterogêneas, em
que existem discriminações em relação a determinados
grupos, é provável que os grupos discriminados
tendam a agir de forma solapada, para não tornar mais
aguda a discriminação de que se fizeram objeto,
mediante uma clara atividade de pressão. O fenômeno
da Corrupção acentua-se, portanto, com a existência de
um sistema representativo imperfeito e com o acesso
discriminatório ao poder de decisão. A última variável
assenta no grau de segurança de que goza a elite que
está no poder. Quanto mais esta se sentir segura de
conservar ou reconquistar o poder por meios legais ou
recear ser punida usando meios ilegais, tanto menor
será a Corrupção. Quanto mais ameaçada se sentir,
tanto mais a elite recorrerá a meios ilegais e à
Corrupção para se manter no poder.
São notáveis os efeitos da Corrupção no
funcionamento de um sistema político. Se a Corrupção
está largamente espalhada e é ao menos parcialmente
aceita pelas massas e nas relações entre as elites, suas
conseqüências podem não
ser
inteiramente
disfuncionais. Se, porém, a Corrupção servir tão-só
para que a elite mantenha o poder e, além disso, os
corruptores forem elementos externos ao sistema
político nacional, como no caso do colonialismo e
neocolonialismo, é provável que seu uso em larga
escala crie, por um lado, tensões no seio das elites e,
por outro, provoque reações nas massas, reações ativas
como demonstrações, ou passivas como apatia e
alheamento. De um modo geral, portanto, a Corrupção
é fator de desagregação do sistema. Em um sistema
jurídico profundamente formalista e burocratizado, a
Corrupção pode, todavia, contribuir
COSMOPOLITISMO
para melhorar o funcionamento do sistema e para o
tornar mais expedito ao desbloquear certas situações.
Momentaneamente funcional, principalmente quando
os obstáculos de ordem jurídico-formal impedem o
desenvolvimento econômico, a Corrupção é apenas um
paliativo; mesmo neste setor, sua influência a longo
prazo será negativa, acabando por favorecer umas
zonas em prejuízo de outras. Em conclusão: a
Corrupção, ora surja em um sistema em expansão e
não institucionalizado, ora atue em um sistema estável
e institucionalizado, é um modo de influir nas decisões
públicas que fere no íntimo o próprio sistema. De fato,
este tipo privilegiado de influência, reservado àqueles
que possuem meios, muitas vezes só financeiros, de
exercê-la, conduz ao desgaste do mais importante dos
recursos do sistema, sua legitimidade.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Cosmopolitismo.
I.
COSMOPOLITISMO,
INTERNACIONALISMO. — Como
UNIVERSALISMO,
indicam os étimos
gregos, cosmos e polis, Cosmopolitismo (inglês,
cosmopolitism; francês, cosmopolitisme; alemão,
Kosmopolitismus) é a doutrina que nega as divisões
territoriais e políticas (pátria, nação, Estado),
afirmando o direito do homem, particularmente do
intelectual, a definir-se como cidadão do mundo.
Neste sentido, pode ser elucidativo distinguir
Cosmopolitismo dos dois termos que lhe parecem mais
chegados: universalismo e internacionalismo. O
primeiro compreende genericamente qualquer doutrina
antiparticularista, anti-individualista; acentuando
principalmente os elementos morais e espirituais que
os homens possuem em comum, não se contrapõe tão
claramente às realidades políticas antes mencionadas
(pátria, nação, Estado). O segundo termo,
internacionalismo, indica, em um sentido mais geral,
sobretudo a necessidade de uma unidade jurídica
supranacional, mesmo que em uma das suas últimas e
mais
significativas
acepções
históricas
(o
internacionalismo socialista) questionasse claramente
as organizações políticas nacionais, como documenta a
clássica afirmação do Manifesto, de que o proletariado
não tem pátria. Mas só de uma reconstrução mais
ampla das doutrinas implícitas no termo poderá
emergir um significado mais concreto da definição
inicial, um significado que permita entender com maior
precisão o que é comum e o que é específico em
relação aos
293
termos com que o Cosmopolitismo foi confrontado.
II. COSMOPOLITISMO
E TENDÊNCIAS UNIVERSALISTAS
DOS SOFISTAS À CRISE DA SOCIEDADE GREGA.
— Não é por acaso que os primeiros vestígios de uma
doutrina cosmopolita surgem na Grécia, com os
primeiros sintomas de uma crise irreversível nas
democracias das cidades. Os antecedentes podem ser
encontrados na exigência de uma lei universal presente
em Anaximandro, na razão universal de Heráclito, uma
realidade que se contrapõe aos diversos modos do
devir, na lei cósmica de Pitágoras, na filallelia de
Demócrito, que torna possível a vida dos homens em
comum, e na tentativa dos sofistas em encarar de
forma nova a relação entre a norma dos costumes e
das leis e a justiça.
É no âmbito da filosofia cínica que Diógenes se
define a si mesmo como cidadão do mundo (Diógenes
de Laertes, VI, 63). A relação destas doutrinas com a
rejeição da polis e com a nova afirmação de um poder
universal se torna mais evidente, quando se considera
que algumas correntes cínicas (Onecrisito) viram em
Alexandre um novo Hércules, o soberano que
encarnava seus ideais políticos. O Cosmopolitismo
converteu-se em uma das constantes fundamentais da
doutrina histórica, baseada em Zenão de Cício, em
torno do ano 300 a.C. Reprovando não só os elementos
municipalistas típicos da história grega, como também
a distinção mais ampla entre gregos e bárbaros, Zenão
já acentuava que os homens pertencem a uma única
grei e estão sujeitos, acima de tudo, a uma lei comum.
A crise política da Grécia e sua passagem à cultura
helenística favoreceram a difusão dos ideais
cosmopolitas em uma sociedade em que a língua grega
deixara de ser expressão de um Estado, ou de uma
nação, para ser koiné, um meio de comunicação de
algum modo universal. Além disso, os intelectuais,
pelo próprio predomínio que exercem neles as formas
absolutas, que tornam menos significativa sua relação
direta com os problemas políticos, tendem a afirmar o
primado do problema moral, não só sobre as questões
teóricas, como também sobre as ocupações da vida
cotidiana e a própria política. Não foi por acaso que o
epicurismo, o cepticismo e o estoicismo conceberam a
filosofia antes de tudo como vida contemplativa. O
estoicismo, em especial, apoiava o seu Cosmopolitismo
em dois elementos fundamentais: na idéia de uma razão
universal que regula todas as coisas segundo uma
ordem necessária; na consciência de que a razão
fornece ao homem normas infalíveis de ação que
constituem o direito natural. Além disso, o estoicismo,
ao exaltar
294
COSMOPOLITISMO
os valores intelectuais, fazia consistir a distinção entre
o sábio e os demais homens justamente na consciência
da caducidade dos ideais da pátria e do Estado.
III.
A
HERANÇA
HELENÍSTICA,
O
ESTOICISMO E O UNIVERSALISMO JURÍDICO
DOS ROMANOS. — No
mundo romano, a presença de uma doutrina
cosmopolita está ligada à crise da cultura política
republicana e aos vínculos com o mundo grego e
helenístico. É, de fato, no ambiente grecizante de
Lucílio (148-102 a.C.) que amadurece entre os
intelectuais romanos a consciência da autonomia da
literatura em relação ao Estado e a tentativa de traduzir,
em um discurso mais complexo, o que havia sido dito
trinta anos antes por Terêncio: "Homo sum, nihil
humani a me alienum pulo", e que havia de reaparecer
como um dos mais firmes estereótipos do
Cosmopolitismo literário na própria época moderna. O
intermediário entre a doutrina estóica e Roma foi o
filósofo Panécio, chegado à Urbe na época de
Emiliano, e mestre da sua geração bem como da
seguinte. Em Panécio, a filosofia estóica não
apresentava a rigidez antiga; ele levava em
consideração elementos platônicos e aristotélicos. O
que conhecemos do ensino de Panécio em Roma provém
quase exclusivamente do De officiis de Cícero, mas é
conveniente distinguir o que este lhe quis atribuir do
que constituía seu verdadeiro pensamento. Trata-se, de
qualquer modo, de uma filosofia moral concreta, que
insere os elementos universais e comuns a todos os
homens na vida real da sociedade. Neste sentido, o
Cosmopolitismo de Panécio podia harmonizar-se com a
realidade política de Roma e até com sua hegemonia.
Assim o havia entendido principalmente Cícero, que
tentou dar uma resposta aos complexos problemas do
seu tempo, opondo os ideais da humanitas, da
concordia ordinum e do papel das leis à crise que
estava ameaçando insidiosamente a existência da
própria república. Não é casualidade que os ideais
cosmopolitas se apresentem sobretudo na última fase da
sua experiência, após haver fracassado na tentativa de
fazer reviver a república, baseando-se no direito e na
humanitas. Em Tusculanae disputationes (V, 37), ele
atribuía a Sócrates e a si próprio o "Patria est
ubicumque bene est", acrescentando que o filósofo
grego se definia como cidadão do mundo e só a este
considerava como sua pátria e cidade. Seria inútil
insistir na deformação que aqui sofre o pensamento de
Sócrates, anunciador de uma moral universalista, mas
substancialmente fiel às leis da polis, tanto que não
recusou a morte. Cícero estendia a Sócrates o
estereótipo cínico já visto em Diógenes de Laertes.
A pax augusta reservou momentaneamente um papel
importante aos intelectuais na ideologia do principado
de Otaviano, mas o equilíbrio foi rompido. Quem o
tentou reconstruir, baseando-se na filosofia estóica e nos
ideais cosmopolitas, foi Sêneca, durante o reinado de
Nero. O De clementia é um verdadeiro programa que
visa a renovar o principado à luz dos valores de
humanidade, de filantropia e Cosmopolitismo,
ensinados pela filosofia estóica. Mas tal tentativa
adoece de uma debilidade intrínseca, que a história
sucessiva havia de descobrir claramente, dando razão a
Pérsio, o estóico, que recusara o compromisso. A
clementia, único modo de conciliar a paz, a liberdade e
a felicidade públicas, era o sentimento de amor que
deveria ligar o príncipe aos próprios súditos, sem
distinção, na qualidade de homens. Mas ela revelava a
intrínseca debilidade do compromisso de Sêneca de
fazer prevalecer seus ideais filantrópicos e
cosmopolitas. Na realidade, não havia outro vínculo no
princeps, legibus solutus a não ser o puramente moral
e filosófico, a convencê-lo aos ideais da justiça e da
felicidade comum. O uso do poder por parte de Nero
deve ter demonstrado bem depressa a profunda
fragilidade da tentativa. Não foi a última, porquanto a
época dos Antoninos parece ter realizado mais de uma
vez, mormente com Marco Aurélio, a velha aspiração
platônica do poder supremo entregue a um filósofo.
Marco Aurélio experimentou, além disso, a dificuldade
em transformar o pensamento estóico em um programa
político para a renovação efetiva do império. Então, os
ideais cosmopolitas eram sobretudo reflexo da recusa
cada vez mais acentuada dos intelectuais em ficar
sujeitos ao império. O último eco importante das
aspirações cosmopolitas dos estóicos está ligado aos
juristas que prepararam a Constitutio antoniniana de
212, que acabava definitivamente com a distinção
entre os cidadãos romanos e os outros e afirmava a
igualdade de todos os homens perante a lei. Papiniano,
prefeito do pretório de 203 a 212, ao estender a
igualdade da cidadania a todos dentro do império, tinha
em vista a oikumène pregada pelos estóicos. Mas sua
morte, decretada por Caracala, veio demonstrar a
insuficiência desta última grande tentativa, tendente a
identificar o império romano com a cosmópole estóica.
Não foi por acaso que Papiniano se tornou o herói
intelectual de uma das mais significativas tragédias de
G. V. Gravina, o maior "romanista" da primeira
metade do século XVIII. É assim que foi possível ao
direito romano, principalmente depois da complexa
codificação de Justiniano (Corpus juris civilis),
apresentar-se como a realidade jurídica mais próxima,
na história humana, do próprio
COSMOPOLITISMO
direito natural. Um assunto que teria mais tarde um
importante significado com a retomada do direito
romano, ligada à escola de Bolonha.
IV. RES PUBLICA CHRISTIANA E IDADE MÉDIA. —
Depois da divisão do império, da desaparição do
Império do Ocidente, e das invasões bárbaras, o tema
de uma comunidade supranacional se inspirou de
preferência nos ideais religiosos, no universalismo de
uma res publica christiana, onde os homens eram
iguais, porque todos filhos de Deus. Mas, para um
cristianismo triunfante e já capaz de assumir, com sua
força organizadora e hegemônica, toda sociedade,
tornando-se progressivamente um notável elemento de
unificação, é melhor falar antes de universalismo que
de Cosmopolitismo. Desde o princípio, o cristianismo
nascente teve de escolher entre limitar-se a ser uma
heresia do mundo hebraico ou dirigir-se ao mundo
inteiro, superando os limites "nacionais" do povo de
Israel. O conflito entre Pedro e Paulo, o fariseu
helenizante, terminou com a vitória de Paulo; ele
significava desde o início a opção universalista. Foi
esta opção que inspirou todo o relacionamento político
do cristianismo, que passou da indiferença ou total
oposição ao reconhecimento dos dois poderes e até
mesmo aos ideais teocráticos, muitas vezes surgidos na
luta secular entre o papado e o império. Neste conflito,
ambos os contendores afirmavam a dimensão
universal dos próprios poderes, mas reconhecendo
implicitamente o mesmo caráter, se bem que
subalterno, ao antagonista. Tinha-se obscurecido, pelo
contrário, a consciência do direito individual a uma
escolha. A própria sociedade feudal, com os seus
complexos vínculos de dependência dos indivíduos,
contribuía para tornar já distantes e cada vez mais
nebulosos os ideais cosmopolitas que a podiam ligar à
Antigüidade.
V. ONOVOUNIVERSALISMOLAICODOSHUMANISTAS.
— Esses ideais haviam de reflorescer plenamente com o
humanismo e com a redescoberta do mundo antigo.
Não é fortuito que o humanismo europeu preceda e
determine de algum modo a divisão da res publica
christiana. Ao lado das grandes interpretações
medievais de Aristóteles e Platão, emerge um
conhecimento da cultura clássica, agora direto, ligado
ao estudo do grego e à polêmica contra as mediações
patrísticas, árabes e escolásticas. Neste contexto,
enquanto os ideais universalistas da Idade Média,
papado e império, caminhavam irremediavelmente
para a crise, enquanto a própria oikumène cristã se
preparava para enfrentar a maior cisão jamais sofrida,
o estudo do passado traz à luz as doutrinas e ideais
estóicos e epicuristas. O
295
individualismo e o universalismo contam agora com
uma justificação diversa da oferecida tradicionalmente
pelo cristianismo. Descobria-se diretamente na leitura
dos textos a filia de Aristóteles. O próprio
jusnaturalismo era aliviado das excrescências
escolásticas e devolvido aos seus elementos mais
puros e essenciais.
Nesta investigação do passado pelo presente,
redescobriam-se lentamente os ideais cosmopolitas,
que justificavam, em face do duplo processo de
fortalecimento dos Estados absolutos e do fechamento
das fronteiras religiosas, os esforços de resistência dos
intelectuais humanistas. Um típico representante desta
experiência foi Erasmo, que viveu a fundo o projeto de
recompor a cisão que se tornava cada dia mais grave,
transformando e renovando, com os ideais da tolerância
e da caridade, a res publica christiana, que ele
desejaria ver unida. Este propósito de mediação não
teve êxito, antes suscitou polêmicas e aversões, tanto
no campo católico como no protestante; mas o seu
cristianismo "razoável" foi ponto de partida para uma
política de tolerância. Sua afirmação: "Cristo habita em
toda a parte; a religião usa qualquer veste, desde que
não faltem os bons sentimentos", dava início a uma
forma de pensar que teria amplo desenvolvimento na
segunda parte do século XVI, século XVII e sobretudo
no XVIII. Foi justamente Huizinga quem observou,
em seu breve e sugestivo perfil de Erasmo (talvez o
primeiro herói daquela indulgente res publica dos
intelectuais cosmopolitas que ele teria oposto ao
nazismo), que, se os magistrados holandeses foram os
menos duros e cruéis da Europa na condenação das
bruxas, tanto é assim que esses horrores cessaram na
Holanda um século antes que nos demais países da
Europa, isso deveu-se não tanto aos pregadores
calvinistas, partícipes da crença popular que incitava à
perseguição, quanto aos magistrados, herdeiros do
espírito de Erasmo.
Os ideais universalistas e, mais precisamente, os
cosmopolitas não eram ameaçados apenas pela grande
divisão em diversas confissões e pelo endurecimento
dogmático de cada uma delas, o que levaria aos
primeiros mártires da tolerância e do universalismo
cristão. O próprio processo de fortalecimento dos
Estados tendia fatalmente a subordinar os intelectuais,
reduzindo cada vez mais a relação com o poder a um
serviço, que o Estado da Contra-Reforma tornava diaa-dia mais rígido e burocrático. Neste sentido, o
reaparecimento do pensamento estóico e céptico está
quase sempre ligado à polêmica contra as Cortes, e
contra os próprios Estados de que elas são expressão,
por tenderem a estabelecer férreas relações de
subordinação no próprio campo da
296
COSMOPOLITISMO
cultura. É nesta linha de confusa mistura do
individualismo com a nostalgia dos momentos
comunitários que se situa o cepticismo aristocrático de
Montaigne e Charron, origem do libertinismo francês.
VI. O COSMOPOLITISMO MODERNO (POSTEL,
LIPSIUS, GROTIUS). — O Cosmopolitismo moderderno
possui, como é natural, diversas matrizes, umas mais
próximas, outras mais remotas. Uma delas é a herança
erasmiana, continuada por aqueles que, rejeitando a
guerra religiosa, tentaram arquitetar um ideal políticoreligioso de tipo racionalista. Outra é a corrente
jusnaturalista, de Grotius a Pufendorf. Ainda uma
terceira é, como já foi dito, o libertinismo. Estes
componentes têm uma clara relação com o seu tempo e,
concomitantemente, raízes mais antigas que
mergulham na redescoberta e uso do passado,
característicos do humanismo. Não é casual o fato de
uma das primeiras definições de um Cosmopolitismo
esclarecido pertencer a um importante expoente do
irenismo e nicodemismo do tardio século XVI. Foi
Guillaume Postei que se definiu cosmopolite, ao
oferecer ao Delfim da França suas observações De la
république des Turcs. .. 1560. Nesta obra. Postei
ligava conscientemente o termo à vontade de alcançar
a paz universal e a unidade de todos os cristãos sob a
guia da França. O longo período de silêncio que o
termo experimentou na França, depois deste primeiro
esforço por libertá-lo do uso comum, não foi fortuito.
Eram os anos das guerras religiosas, em que os ideais
irênicos foram destroçados, sobrevivendo apenas,
quando muito, nas linhas programáticas dos politiques.
Internacionalismo e Cosmopolitismo, ligados à herança
de Erasmo, à volta ao humanismo e à longa luta contra
a Espanha, primeiro, e, depois, contra a hegemonia
econômica inglesa e francesa, reapareceram na Holanda
durante a âge d'or da república batava. A figura mais
significativa é certamente Huig van Groot, latinizado
como Grotius, um grande teólogo, jurista e historiador
holandês. As opções políticas e culturais foram
extremamente coerentes. Jusnaturalista e teórico do
direito internacional, defendeu os interesses da
Holanda e da liberdade internacional, respeitante aos
mares e ao comércio, contra o ponto de vista inglês do
mare clausum, representado por John Selden. No plano
religioso, propugnou também os ideais de um
cristianismo razoável onde o irenismo e socinianismo
se acomodavam (De veritate religionis christianae).
Foi por isso perseguido pela ortodoxia calvinista,
tendo de se refugiar em Paris. O jusnaturalismo de
Grotius tinha como ponto de referência a herança
humanística (de Erasmo a Scaliger e Casaubon), o
pensamento estóico e
universalista de Justus Lipsius (De constantia), e o
racionalismo religioso de Arminio. Aprofundando o
tema já iniciado com De veritate, no De jure ele
baseia no consensus gentium os quatro dogmas
racionais da sua religião do gênero humano: existência
de um só Deus, sua espiritualidade, providência e
onipotência.
Entre fins do século XVI e princípios do XVII, o
termo cosmopolita foi usado no campo das doutrinas
alquímicas. Assim se definia, por exemplo, Alexander
Sethon, ou Sidon, um escocês que asseverava fabricar
ouro e foi encarcerado por Cristiano II, eleitor da
Saxônia, que lhe queria extorquir o segredo. Depois da
sua morte, Miguel Sendivogio, um nobre polonês que
o libertara e se fizera seu discípulo, publicou suas
obras, traduzidas para o francês (três edições entre
1669 e 1691). A evocação de Sendivogio e do
hermetismo poderia parecer estranha e apenas
pitoresca. Na realidade, não só demonstra as várias
vicissitudes do termo, que assim alcançava o limiar do
século XVIII, mas especifica também algumas das
características que lhe ficarão vinculadas e se tornarão
essenciais no iluminismo: a idéia da luz-verdade,
contraposta às trevas do erro, e a internacionalidade
dos philosophes, os que já sabem distinguir a verdade
do erro.
Em um mundo em que a divisão das confissões era
ainda significativa e a afirmação do poder dos Estados
absolutos não sofria contradição da estratégia do poder
"iluminado", os ideais cosmopolitas sobreviviam nos
juristas holandeses e alemães, nos cépticos e
"libertinos" franceses, e nas grandes correntes místicoherméticas que se situavam à margem da cultura
oficial, abrindo de quando em quando uma passagem,
até chegar ao iluminismo. Trata-se, pois. de uma
aspiração bastante vaga de oposição aos conflitos
religiosos e às brutais imposições da política
absolutista. Os intelectuais "libertinos" foram buscar na
Antigüidade os materiais usados na resistência a
processos que visavam a sujeitá-los, e organizaram
minuciosamente, como ocorreu na França de Colbert e
Luís XIV, a própria política cultural.
Uma outra forma de Cosmopolitismo, que merece
ser considerada nesse mesmo período, é a que nos
oferece a função internacional dos quadros políticos e
intelectuais italianos. O Cosmopolitismo prático dessa
emigração italiana, que fornecerá durante vários
séculos à Europa o pessoal político especializado, já foi
acentuado por Gramsci. É uma função claramente
vinculada à presença do papado na Itália e ao caráter
internacional de boa parte da cultura "romana" então
predominante na península. Não foi casual a crise que
começou a atingir este Cosmopolitismo de funções pela
segunda metade do século XVII; começavam
COSMOPOLITISMO
então a formar-se as grandes burocracias nacionais,
ciosas dos estrangeiros.
VII. ORIGENS DO COSMOPOLITISMO DO SÉCULO
XVIII: TOLERÂNCIA, UNIVERSALISMO
RELIGIOSO,
CRISTIANISMO
RAZOÁVEL.
— Nas origens do
Cosmopolitismo do século XVIII, reúnem-se todas. as
linhas de pensamento até agora esboçadas, formando
um complicado equilíbrio. Nos processos de
resistência aos Estados absolutos, às guerras de
religião e às fronteiras ideológicas ou religiosas, os
intelectuais europeus tinham construído um ideal
como ponto comum de referência: a república das
letras. A cidade de Deus transformava-se de algum
modo na cidade dos homens. Em pugna com as
instituições que eram constrangidos a aceitar, eles
partiam da base jusnaturalista para se reconhecer como
iguais, todos filhos de uma mesma natureza, de uma
moral comum e de uma religião natural. O próprio
relativismo e pirronismo histórico, conquanto
tendessem a minar os fundamentos do jusnaturalismo,
contribuíram para uma compreensão das diferenças de
costumes, que não permitia justificar facilmente a
superioridade de uma civilização em relação a outra.
Estava-se formando o mito do bom selvagem, um dos
componentes essenciais daquela "crise de consciência"
européia que dará origem à cultura cosmopolita do
iluminismo.
As guerras religiosas e hegemônicas da Europa
foram outro fator que contribuiu para a difusão dos
ideais pacifistas, com que lentamente se ia formando o
pensamento cosmopolita do século XVIII. Tolerância,
universalismo religioso, cristianismo razoável, direito
internacional, foram os fundamentos escolhidos nos
fins do século XVII para a república das letras. Nela
participaram homens tais como Locke, Leibniz, J. F.
Turretini, W. Wake, J. Barbeyrac, P. Bayle, J. Leclerc.
Embora se malograsse a tentativa de formar uma única
experiência religiosa, o cristianismo universal, com a
contribuição de todas as confissões, do anglicanismo e
luteranismo ao próprio catolicismo, os ideais de
tolerância,
ao
se
laicizarem,
impuseram-se,
convertendo-se em um dos componentes essenciais do
filantropismo iluminístico. Leibniz, que foi um dos
protagonistas do diálogo com os católicos com vistas
ao cristianismo universal, havia de estabelecer a
diferença entre o Cosmopolitismo e o universalismo
eclesiástico tradicional. Um dos seus discípulos,
Christian Wolf, teorizaria o jus cosmopoliticum, dentro
do direito internacional. Ao mesmo tempo, na Europa e
na França, na oposição a Luís XIV, amadureciam as
esperanças de uma paz perpétua. Em 1712, prestes a
findar a Guerra de Sucessão espanhola, o abade Irénée
Castel de Saint-Pierre escrevia a sua
297
primeira redação de um projeto de paz perpétua. A
segunda redação é contemporânea da paz de Utrecht.
Esta complicada obra atravessou o século XVIII, dada
a conhecer por Mably e reapresentada por Rousseau
em Extrait du projet de paix perpétuelle de M. l'abbé de
Saint-Pierre. Para a manutenção da paz se auspiciava a
união européia de 24 nações; criticava-se a teoria do
equilíbrio e afirmava-se que essa união favorecia o
despertar de estruturas similares até na Ásia. Tal como
foi reapresentado por Mably, mas principalmente por
Rousseau, este assunto estava destinado a penetrar
profundamente no iluminismo mais amadurecido.
VIII. ILUMINISMO E COSMOPOLITISMO. — Quais são
as relações entre as primeiras afirmações do
iluminismo e o Cosmopolitismo? Seria difícil definir,
em termos puramente doutrinais, um comportamento
que se achava presente e difundido como referência,
como clima de opinião, como sentimento, como
realidade mental feita mais de um acervo de intuições
que de um raciocínio facilmente distinguível. Se os
eruditos racionalistas do século XVII tinham criado
uma república das letras, a que grandes jornalistas
como Bayle e Leclerc deram voz e poder real, os novos
philosophes, bem diferentes dos alquimistas a que se
referia Sendivogius, sentiam profundamente a
solidariedade
internacional
dos
intelectuais
empenhados na política das reformas. Os vínculos com
o próprio Estado e pátria tinham sentido, enquanto se
justificavam pela participação no uso racional do
poder, em uma política iluminada e na felicidade
pública. É claro que a tensão ideal que chegava até à
rejeição das instituições políticas nacionais e locais,
quando estas entravam em conflito com a razão ou com
a consciência do indivíduo, não só não se pode traduzir
facilmente em doutrina, como possui graus e matizes
diversos. Na fase em que os philosophes tentaram um
acordo com o absolutismo monárquico para o iluminar,
o Cosmopolitismo foi menos acentuado; torna-se mais
significativo nos momentos de ruptura entre o poder e
as coteries iluminísticas. É típica a opção de Voltaire.
Partindo da thèse royale e da apologia da monarquia
reformista de Henrique IV (onde agia o sonho de paz
interna e internacional de Sully), buscou, pode-se dizer
toda a vida, relacionar-se com o absolutismo
iluminado, desde o de Luís XV ao de Frederico Il e ao
de Catarina da Rússia. Estas referências já indicam
como o centro dos seus interesses era, não a pátria, mas
o poder, que ele queria usado racionalmente, quer fosse
exercido na França, na Prússia, na Rússia ou em
Genebra. Mais: Voltaire nunca quis estar a
298
COSMOPOLITISMO
serviço do despotismo iluminado, mesmo quando o
escolheu como interlocutor. A própria permanência
em Ferney, nos confins da França, mas em território
suíço, demonstra sua determinação em travar as
próprias batalhas sem se identificar com uma pátria.
Tem-se afirmado com insistência que o Cosmopolitismo do século XVIII era um ideal, uma
aspiração, um sentimento, uma maranha de doutrinas
mais que uma doutrina definida. Demonstra-o bem o
atraso e rejeição semântica com que a lingüística
oficial recebeu o termo na França de Voltaire. Depois
dos usos incertos do século XVI e do seu uso na
alquimia do século XVII, o vocábulo não foi
reconhecido no Dictionnaire de l'Académie de 1694.
Aparece na edição de 1721 do Dictionnaire de
Trévoux, mas seu significado oscila ali entre "un
homme qui n'a pas de demeure fixe, ou bien qui nulle
pari n'est étranger". Há depois uma referência exata à
doutrina cínica e ao uso do termo no campo
alquímico. Os autores do Dictionnaire são favoráveis,
devido à analogia, à forma cosmopolitain; mas, na
edição de 1771, assinalam o predomínio já inequívoco
de cosmopolite.
IX. PÁTRIA E FILANTROPIA NA ENCYCLOPÉDIE.
Que acontecera neste lapso de tempo em que o
iluminismo se consolidara na Europa e a Encyclopédie
estava a ponto de ser concluída? Enquanto os
múltiplos ideais que procuramos esboçar eram quase
comuns, o termo que os devia expressar, talvez pela
herança inquietante e misteriosa do mundo alquímico
que arrastava consigo, tinha dificuldade em impor-se,
embora já começasse a ser usado com maior
freqüência.
Em 1751, quando a Encyclopédie estava em fase de
organização, apareceu um pequeno livro de Fougeret
de Monbron, Le cosmopolite ou le citoyen du monde,
que fazia alusão, no subtítulo, à já citada expressão das
Tusculanae (V, 37): Pátria est ubicumque est bene. A
condenação do patriotismo é muito clara neste diário
de viagens. Monbron se inspira nos cínicos. Como
afirma na primeira frase do seu relato, que, na época do
romantismo, seria tomada como mote de Child Harold
por Byron, o universo é uma espécie de livro de que
apenas se leu a primeira página, quando se conhece só
o próprio país. Folheando as suas numerosas páginas,
tudo quanto se pode aprender é que todas as pátrias são
igualmente cruéis. Fougeret de Monbron, homem de
coeur velu, que adotou como divisa "contemni et
contemnere", foi tomado como exemplo do cínico e do
apátrida por Diderot em Neveu de Rameau, quando
este afirma a vacuidade de toda a defesa da pátria, já
que, como tal, ela não existe mais.
Embora este Cosmopolitismo neocínico não fosse o
dos philosophes, mas antes o que caricaturalmente
pretendiam atribuir-lhes antiiluministas como Palissot
(1760), é provavelmente a esta opereta que se deve o
sucesso do termo, pouco depois incluído na
Encyclopédie, se bem que com um vocábulo não muito
significativo. Deriva do vocábulo do Dictionnaire de
Trévoux já citado, transcrito quase à letra no que toca
aos significados en plaisantant. Depois de referir-se ao
episódio atribuído a Diógenes de Laertes, também
mencionado no Trévoux, a Encyclopédie acrescenta a
declaração de outro filósofo que dizia: Prefiro "ma
famille à moi, ma patrie à ma famille. e le genre
humain à ma patrie. . ,". Remetia, além disso, ao
vocábulo philosophe, célebre artigo diversamente
atribuído (de Diderot a Dumarsais), onde, evocada
uma notável frase de Terêncio, se fazia insistência no
elemento racional, ressaltando o vínculo do philosophe
com a sociedade civil e a humanidade. Na realidade, o
pensamento dos philosophes sobre o Cosmopolitismo e
o patriotismo se encontra, com todos os seus matizes,
de preferência sob outros vocábulos, como patrie, de
Jaucourt, onde se estabelece a relação pátria-liberdaderazão já citada, économie, de Rousseau, e fanatisme, de
A. Deleyre, artigo magnífico que contém um
significativo comentário sobre fanatisme du patriote.
Não obstante esta presença ainda não relevante, é a
partir de 1760 que o termo cosmopolita começa a
coincidir com o de philosophe, como mostra a
polêmica de Palissot contra Dortidius-Diderot, a quem
se faz exclamar: "Le véritable sage est un
cosmopolite" (Les philosophes, III, sect. 4). Em 1762,
o termo era incluído na quarta edição do Dictionnaire
de l'Académie, mas em um sentido ainda bastante
negativo: "Celui qui n'adopte point de patrie. Un
cosmopolite n'est pas un bon citoyen". Nesse mesmo
ano, Rousseau, que tinha levado a cabo seu amargo
afastamento do grupo, usava o termo em sentido
pejorativo, em polêmica contra os philosophes (Émile,
I). Parece significativo que Voltaire não tenha inserido
o termo no Dictionnaire philosophique. Na realidade,
era de patrie que se tratava. Como verdadeiro
cosmopolita, Voltaire, em perfeita oposição a
Rousseau, tentou desmistificar, ou melhor, mostrar os
limites do amor à pátria. Declara que é triste que
muitas vezes, "para ser bom patriota, seja necessário
tornar-se inimigo do resto dos homens". Citando o
exemplo de Catão, mostra como "ser bom patriota
significa desejar que a própria cidade se enriqueça
com o comércio e se torne poderosa por meio das
armas. Mas é claro que um país não pode ganhar se o
outro não perde, não se pode vencer sem aumentar os
COSMOPOLITISMO
infelizes. É tal a condição humana que desejar a
grandeza do próprio país é desejar o mal dos
vizinhos". Conclui Voltaire: "O homem que desejasse
que a sua pátria não fosse nem a maior nem a mais
pequena, nem a mais rica nem a mais pobre, seria um
cidadão do mundo".
Na mesma época (1765), Diderot definia como vrai
cosmopolite o freqüentador ideal das reuniões de
Holbach, o membro da coterie. Poucos anos depois
(1767), Mercier de la Rivière, expondo a doutrina
política da fisiocracia, podia falar de industrie
cosmopolite. Desde 1770, como documenta P. Hazard,
o termo tornou-se comum e, perdendo toda a conotação
irônica ou negativa, identificava perfeitamente, para
homens como d'Alembert (que o usou em 1775) e
Bernardin de Saint-Pierre (1784), aquela faixa de
aspirações que a Encyclopédie caracterizara melhor
sob o vocábulo fanatisme du patriote de Deleyre, que
sob o mais genérico de cosmopolite.
Então a politique dos philosophes já havia sido
avaliada em acontecimentos internacionais, como a
Guerra dos Sete Anos, a instabilidade da Córsega, a
divisão da Polônia e a revolução americana. O
Cosmopolitismo se acentuara à medida que os
philosophes iam perdendo as ilusões de uma política
de reforma dos absolutismos iluminados. Um corolário
importante do Cosmopolitismo iluminístico é a opção
que matura, por exemplo, em torno à Historie
philosophique et politique des deux Indes de Raynal,
de combatei a escravatura e o colonialismo; ela
arrastou a própria coterie, com a colaboração de
Diderot.
299
Pietro Verri, que repelia "as mesquinhas rivalidades
nacionais", afirmava, em 1775, a coincidência entre
cosmopolita e- patriota. Era assim que se definiam as
características essenciais do reformador, correlato
italiano do philosophe. É claro que estes termos,
nascidos no mesmo clima e usados momentaneamente
de forma convergente, estavam destinados a assumir
significados opostos, uma vez que, com a Revolução
Francesa, sobreveio a crise dos espaços reformistas
em que eles se fundaram.
XI.
REVOLUÇÃO FRANCESA. OS IDEAIS NACIONAIS E
"LA GRANDE NATION". — Os ideais da revolução —
liberdade, fraternidade, igualdade — são os mesmos do
Cosmopolitismo. P. Hazard documenta até como nasce
um jornal, Le Cosmopolite (1791-92). Mas, com mais
força que os próprios direitos do homem fixados em
1789,
nos
bastidores
do
internacionalismo
revolucionário o que se organizava era la grande
Nation. Sua progressiva expansão e sua política
cultural nos países conquistados provocaram, por
antítese, o fortalecimento do patriotismo, que se vinha
estruturando desde a segunda metade do século XVIII.
Isso ocorre principalmente na Alemanha, na Itália, na
Suíça e na Áustria. Os próprios ideais cosmopolitas se
estavam transformando. Os antigos membros das lojas
maçônicas, na Itália por exemplo, acabaram por se
reencontrar nas primeiras seitas secretas patrióticas.
Um homem, Filippo Buonarroti, que tinha participado
ao lado de Paoli na defesa da Córsega contra os
franceses, que esteve com Babeuf na Conjuração dos
Iguais, que será protagonista de todos os movimentos
revolucionários dos primeiros trinta anos do século
X. O NOVO COSMOPOLITISMO DOS REFORMADORES XIX, liga uma época à outra e mostra como existe um
vínculo, mesmo físico, entre o Cosmopolitismo e o
ITALIANOS. — Na Itália, como já se disse, havia uma
certa tendência ao Cosmopolitismo, ligada à falta de um primeiro internacionalismo revolucionário. Tal como
Estado unitário e, principalmente, à tradição da Igreja. os homens, também as idéias se transformam com eles.
Mas, no século XVIII, a esta tradição, que possuía até Com o abade Piattoli, em sua longa viagem pela Europa,
uma linguagem oficial, o latim (entre outras coisas os ideais cosmopolitas acabam por terminar no confuso
também tomado de empréstimo pela res publica dos internacionalismo autoritário de Alexandre I e da Santa
doutos), sucede-se outro tipo de Cosmopolitismo, Aliança.
relacionado com as novas opções políticas e morais, e
O CONCEITO DE NAÇÃO E A CRISE DO
com os novos valores de que é portadora a nova XII.
civilização das luzes. A Itália é invadida pelas modas: COSMOPOLITISMO NA ALEMANHA. — Também entre os
alemães
a Revolução Francesa havia acelerado o
galomania e anglomania, que são os termos com que a
consciência romântica tentava descrever, de forma já processo iniciado em 1770 pelos Stürmer, sob a
limitativa, tais fenômenos, refletem uma nova relação influência de Rousseau. Se Lessing representa, com
da sociedade civil italiana com a Europa. A Maçonaria, Nathan der Weise e os diálogos sobre a Maçonaria, o
particularmente viva e organizada em Florença, cume mais alto do Cosmopolitismo alemão, o
Nápoles e Roma, também contribuiu para o universalismo de Herder e da geração que se lhe
Cosmopolitismo italiano. Para os reformadores, Verri, seguiu é muito mais confuso e com plexo.
Beccaria, Genovesi, Filangieri e outros, o
Cosmopolitismo era uma arma no combate à opressiva
herança da Contra-Reforma. É neste sentido que o
próprio
300
COSMOPOLITISMO
Se Kant, depois da Revolução Francesa, podia
proclamar a sua fé de antigo Aufklärer, considerando o
Cosmopolitismo como uma tendência natural e
necessária da humanidade (1798), os primeiros
românticos tendiam mais facilmente a transformar os
ideais cosmopolitas em uma espécie de universalismo
religioso, onde as individualidades nacionais
desempenhavam um papel preponderante. Foi assim
que, na primeira cultura romântica, como aliás Herder
já havia intuído, se dava maior valor aos momentos em
que predominaram personagens heróicos (época dos
patriarcas,
época
medieval)
e
tendências
universalistas. Em F. Schlegel, a herança cosmopolita
se transformava em exigência de um império universal,
baseado na moral e na religião, que devia opor-se ao
império artificioso e criado pela avidez do domínio, o
império napoleônico. Schlegel parecia particularmente
coerente com os ideais da Santa Aliança: "O império,
com uma Constituição baseada na clara distinção das
castas, e a hierarquia respondem à dupla exigência da
divisão e da união das nações" (Lições, 1804-1806).
Também em Fichte se vê claramente o propósito de
conciliar os dois termos, Cosmopolitismo e
patriotismo, com predomínio do segundo, sobretudo
desde 1807, até aos discursos à nação alemã (Reden
an die deutsche Nation), embora o filósofo tivesse
polemizado sempre contra os ideais reacionários e
catolicizantes de um universalismo como o de Novalis
ou Schlegel. Com a Restauração, formam-se à volta
de homens como Stein e Humboldt, de um lado, e
Müller-Niebuhr, do outro, duas concepções do Estado
que dominariam a cultura alemã e européia até o
século XX: a concepção liberal e a românticoconservadora.
XIII. A HERANÇA DO INTERNACIONALISMO
SOCIALISTA. — Como se sabe, o século XIX, definido
muitas vezes pelos historiadores como século dos
nacionalismos, viu mergulhar em estranha crise os
ideais cosmopolitas. Desde a segunda metade,
sobretudo, isso equivale, para os grandes países da
Europa, a um processo de robustecimento das
estruturas econômicas e à formação de um Estado
industrial que tem necessidade de um mercado
nacional. Em um processo assim, em uma cultura que
reflete principalmente as preocupações da unificação
nacional, não há muito lugar para ideais
internacionalistas e universalistas que não conservem
vestígios confusos da Santa Aliança. Mas o Estado
industrial moderno não favorece apenas a hegemonia e
o poder das burguesias nacionais. Cria também o seu
antagonista natural, o proletariado, para o qual o apelo
ao internacionalismo é algo profundamente
significativo. Não se afirmou à toa que Filippo Buo-
narroti une o Cosmopolitismo do século XVIII aos
primeiros
movimentos
do
internacionalismo
revolucionário. Se a causa da liberdade é igual para
todos e por ela lutarão todos os convênios na França,
Grécia, Itália, Hungria e Polônia, muito mais comum
e internacional é a do proletariado, que não tem pátria e
que vê no Estado um instrumento de exploração.
XIV. OS INTELECTUAIS E O COSMOPOLITISMO
ENTRE AS DUAS GUERRAS MUNDIAIS. — Os
ideais cosmopolitas não sobreviveram só nesta acepção,
agora, totalmente autônoma. Reaparecem também, nos
mesmos termos do século XVIII, como aspiração de
uma política dos intelectuais au dessous de la mêlée,
nos começos deste século, diante do primeiro conflito
mundial. A dificuldade e, principalmente, a fragilidade
de tal opção, que reunia à sua volta homens e posições
muito diferentes (desde Croce, na Itália, a R. Rolland, na
França), revelaram-se amplamente no debate que se
seguiu à publicação de La trahison des clercs, de
Julien Benda (1926). Este defendia a teoria de que o
intelectual tinha de ser, como no século XVIII, um
mau patriota. A fidelidade a tal programa e a
reconstrução de uma branda res publica de
intelectuais, que opunham seu internacionalismo ao
fascismo
e
ao
nazismo,
que
invadiram
progressivamente a Europa, sobretudo na década de 30,
coincidiam com o retorno da cultura ocidental aos
valores do iluminismo; se não se converteram
imediatamente em uma alternativa vitoriosa,
constituíram de alguma maneira a primeira resistência,
uma resistência frágil mas significativa, à "destruição
da razão".
BIBLIOGRAFIA. - Sobre a antigüidade: H. C. BALDRY, The
Unity of mankind in greek throught Cambridge Univ. Pres...
1965; R. W.-A. J. CARLYLE. Il pensiero político medievale(
1950). trad. it., Laterza. Bari 1956-1967. 3 vols.: FOUGERET
DE MONBRON, Le cosmopolite ou le citoyen du monde introd. e
notas de R. TROUSSON. Ducros. Bordeaux 1970: A. GRAMSCI.
Gli intellettuali e 1'organizzazione della cultura Einaudi.
Torino 1953: P. HAZARD, Cosmopolite in Mélanges
d'histoire littéraire et comporte offerts à f Baldensperger 2
vols.. I. Champion. Paris 1930: I. LANA. Studi sul pensiero
politico classico Guida. Napoli 1973 (principalmente os
ensaios: Trace di dottrine cosmopolitiche in Grecia 1951:
Tendenze universalistiche nella letteratura di Roma antica
1959: Introduzione a Seneca 1966). Sobre a época medieval
e moderna: F. MEINECKE. Cosmopolitismo e Stato nazionale
(1907). trad. it., La Nuova Italia, Firenze 19752: M. MUEHL,
Die antike Menschenheitsidee in ihrer geschichtlichen
Entwicklung Dieterich. Leipzig 1928: R. POMEAU. L'Europe des
Lumiéres. Cosmopolitisme et unité européenne au XVIIIº
siècle
CRIMES DE GUERRA
301
Stock, Paris 1966; A. SAITTA, Dalla "respublica christiana" agli leges" — entre as armas silenciam as leis), o pensamento
Stati uniti d'Europa Ed. St. e Lett., Roma 1948: T A. renascentista ("os golpes não incidem sobre os
SINCLAIR, Storia del pensiero político greco (1951). trad. ital., pactos"), Kant ("a guerra não decide do direito"), até
Laterza, Bari 19732; M. UNTERSTEINER. I Sofisti. Einaudi, às correntes modernas e contemporâneas que negam a
Torino 1949: F. VENTURI. Les idèes cosmopolites en Italie au juridicidade do chamado direito bélico e do direito
XVIII' siècle Perspectives européennes du cosmopolitisme au internacional, de um modo genérico.
XVIII' siècle. cicl do Centre Européen Universitaire, Nancy
III.
As NORMAS TRADICIONAIS E AS INOVAÇÕES
1957
OCORRIDAS COM O TRATADO DE VERSALHES. — Por
[GIUSEPPE RICUPERATI]
tradição, o direito bélico concede ao Estado
beligerante a faculdade de punir diretamente soldados
e civis dos países inimigos que se tornarem réus de
Crimes de Guerra.
Crimes de guerra, sempre que eles caírem em seu
poder durante o conflito, o que constitui derrogação do
I. DEFINIÇÃO DOS CRIMES DE GUERRA. — Na doutrina
princípio geral do direito internacional que veda a um
corrente, os Crimes de guerra são definidos como
Estado exercer sua jurisdição sobre órgãos de outro
violações das normas do direito internacional que
Estado.
apresentam especial gravidade, por envolverem ações
Até à Primeira Guerra Mundial se admitia, tácita ou
desumanas e cruéis e serem de qualquer modo
desproporcionadas ao fim que o beligerante que as explicitamente, com uma cláusula apropriada chamada
de
anistia inserta nos tratados de paz, que essa
pratica preestabeleceu. Pelos Crimes de guerra são
tidos como responsáveis não só os Estados em nome e faculdade se extinguia com o fim do conflito. O
no interesse dos quais eles são cometidos, mas Tratado de Versalhes introduziu em 1919 um princípio
também, pessoal mente, os indivíduos que os novo segundo o qual o fim das hostilidades não trazia
executam. Deve-se ainda acrescentar que, incluindo consigo a anistia dos Crimes de guerra, cabendo ao
normalmente os Estados em seus ordenamentos vencedor o direito de punir os crimes do inimigo
jurídicos normas análogas às do direito bélico, a mesma vencido. Os artigos 228 e 229 deste tratado
reconheciam, de fato, às potências vitoriosas o direito
ação configurará reato não só em face da lei do Estado
a que pertence o criminoso de guerra, mas também de julgar as pessoas culpáveis de "atos contrários às
perante a do Estado contra o qual o crime foi leis e costumes de guerra" e obrigavam a Alemanha a
entregá-las. O art. 227 declarava o chefe do Estado
perpetrado.
alemão réu de "suma ofensa contra a moral
II.
ASPECTOS PROBLEMÁTICOS. — A existência de internacional e a autoridade sagrada dos tratados". As
normas internacionais que regulam o modo de exercer pretensões apresentadas pelas potências vitoriosas na
a violência bélica é resultado de um compromisso entre Primeira Guerra Mundial caíram praticamente no
o reconhecimento do caráter inevitável ou mesmo vazio, porque os Países-Baixos se recusaram a
lícito da guerra e o crescente embaraço da consciência entregar o Kaiser, Guilherme II, refugiado no seu
humana em face dela. Compromisso ambíguo, porque território. Pelo que respeita aos outros criminosos de
essas normas, pertencentes ao chamado direito guerra alemães, eles foram favorecidos pela recusa do
internacional de guerra ou direito bélico, ao distinguir novo Reich em sujeitar-se à obrigação de os entregar,
entre violência bélica lícita e ilícita, correm o risco de não obstante o compromisso assumido com o tratado
justificar, sob certas condições, os massacres de paz. Um compromisso posterior estabelecia que as
organizados que ocorrem durante as guerras, e de pessoas acusadas fossem julgadas por um tribunal
ofender sobretudo a mesma consciência moral que alemão, a Corte Suprema de Leipzig; mas esta
absolveu a quase totalidade dos imputados, cominando
pretendem fazer calar.
a alguns deles penas levíssimas, bem depressa
O definir os Crimes de guerra como ações totalmente perdoadas.
desumanas e cruéis parece sugerir que nem todos os
sofrimentos infligidos aos exércitos e populações IV.
PROCESSO DE NUREMBERG. — Foi no segundo
inimigos sejam desumanos e cruéis. Controvertidas no pós-guerra que se afirmou o direito do vencedor a
plano moral, as normas do chamado direito bélico não julgar os Crimes de guerra do vencido. Em outubro de
o são menos no plano jurídico, como testemunham 1941, Roosevelt e Churchill pro clamaram que "a justa
repetidas contestações, desde a sabedoria jurídica punição dos Crimes de guerra era um dos objetivos
romana ("inter arma silent
mais importantes do conflito"; um mês depois, se
associava a esta
302
CRIMES DE GUERRA
declaração o soviético Molotov. Passado um ano, sob
iniciativa anglo-americana, se criava uma comissão das
Nações Unidas para os Crimes de guerra
(U.N.W.C.C.). Terminado o conflito, em 8 de agosto
de 1945, Estados Unidos. URSS, Reino Unido e França
firmaram um acordo pelo qual se instituía um tribunal
militar internacional para julgar os maiores criminosos
de guerra. O processo teve início em Nuremberg a 20
de novembro de 1945. Os acusados eram 22, dos quais
um (M. Bormann) foragido; estavam aí incluídos, à
exceção de Hitler que se suicidara, todos os máximos
dirigentes políticos e militares da Alemanha nazista. Os
crimes contra eles provados foram classificados em:
crimes contra a paz, Crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Doze dos acusados foram condenados à
morte por enforcamento, três à prisão perpétua, quatro
a penas de detenção menor e três foram absolvidos.
A este veredicto têm sido feitas inúmeras restrições
por parte dos internacionalistas ortodoxos que se
opõem a que, em tal ocasião, as potências vitoriosas
figurassem ao mesmo tempo como juizes e partes
lesadas, pois violavam o princípio segundo o qual
nemo judex in re sua. A observação é justa, mas não
havemos de esquecer que todas as condenações por
Crimes de guerra, até então aplicadas pelos Estados
beligerantes no decorrer do conflito, violavam o
mesmo princípio. Também foi justamente ressaltado
que, depois da Segunda Guerra Mundial, foram
condenados unicamente os crimes cometidos contra as
potências vencedoras, enquanto ficavam impunes os
crimes cometidos contras potências vencidas. A
exatidão deste ressalto vem corroborar o fundamento
da asserção kantiana acima citada: a guerra não decide
do direito.
Paralelamente ao que ocorrera na Europa, também
na Ásia foi instituído depois da guerra, em Tóquio, um
tribunal para o Extremo Oriente, com a declaração
solene de MacArthur em 19 de janeiro de 1946.
Foram chamados a participar, como juizes,
representantes de 11 Estados. Os acusados eram 25.
Sete destes foram condenados à pena capital,
dezesseis à prisão perpétua e dois a penas de detenção
menor. As sentenças foram executadas a 23 de
dezembro de 1948, mais de três anos depois do fim do
conflito.
Além dos processos de Nuremberg e de Tóquio,
muitos outros processos menores tiveram lugar na
Europa, levados a efeito por tribunais militares de
várias nacionalidades, que julgaram os acusados umas
vezes com base no direito alemão, outras com base no
direito do território onde os crimes foram cometidos,
outras, enfim, com base no próprio código penal
militar.
V. CRIMES
DE GUERRA, CRIMES CONTRA A PAZ, CRIMES
CONTRA A HUMANIDADE. — Como vimos no parágrafo
precedente, aos chefes nazistas e japoneses foram
atribuídos, nos processos de Nuremberg e Tóquio, não
só Crimes de guerra, como também crimes contra a paz
e crimes contra a humanidade. Estas três categorias de
crimes foram assim definidas pelo tribunal militar
internacional de Nuremberg: 1) Crimes de guerra:
"Violações das leis e costumes de guerra. Tais
violações compreendem, mas não exclusivamente, o
assassínio, os maltratos e deportações forçadas dos
trabalhadores ou de outros elementos da população dos
países ocupados; o assassínio e os maltratos dos
prisioneiros de guerra ou das pessoas do mar, a
matança de reféns, o saque de propriedades públicas e
privadas, a destruição injustificada de cidades e
aldeias, as devastações não justificadas por
necessidades militares"; 2) Crimes contra a paz:
"Planejamento, preparação, início e condução de uma
guerra de agressão ou de uma guerra violadora de
tratados, acordos e garantias internacionais;
participação em plano, conspiração ou conflito ligado a
qualquer dos delitos supramencionados"; 3) Crimes
contra a humanidade: "Assassínio, extermínio, redução
à escravidão, deportação e outros atos inumanos
cometidos contra a população civil antes e durante a
guerra; perseguições por motivos religiosos, raciais ou
políticos...".
Uma resolução da Assembléia Geral da ONU
aprovava em 13 de dezembro de 1946 "os princípios
de direito internacional reconhecidos em Nuremberg e
a decisão do seu Tribunal" e encarregava a comissão
para o direito internacional de preparar um projeto de
"código de crimes contra a paz e a segurança da
humanidade". O projeto definitivo ficou pronto em
julho de 1951. Estabelece o princípio da
responsabilidade individual direta para os atos do
Estado contra a paz e a segurança da humanidade (art.
1.°); define como ato ilícito internacional toda a
agressão ou ameaça de agressão (art. 2°); não admite
que seja circunstância eximente o fato de haver agido
como chefe do Estado, como funcionário público, ou
de haver agido por ordem superior, desde que
houvesse a possibilidade de uma escolha moral (arts.
3.° e 4.°). O projeto afirma além disso a primazia do
direito internacional, declarando que "o fato de o
direito interno não punir um ato que constitui delito de
direito internacional não isenta da responsabilidade
perante esse mesmo direito quem o cometeu". Como
se vê, o projeto da comissão metia o dedo num vespeiro
de gravíssimos problemas jurídicos e políticos, como o
da soberania dos Estados, da personalidade
internacional dos indivíduos, da anarquia
CRISE
internacional, da força obrigatória das normas de
direito internacional e da efetiva juridicidade do
mesmo. Este projeto ainda não foi aprovado pela
Assembléia Geral das Nações Unidas.
BIBLIOGRAFIA. - V. E. ORLANDO, IL processo al Kaiser, in Scritti
vari di diritto pubblico. Milano 1940; Q. WRIGHT, War
Criminals, in "The american Journal of International Law".
1945; H. KELSEN. Will the judgement in the nurenberg trial
constitute a precedem in International Law?. in "International
Law Quarterly", 1947; Law reports of trials of war
criminais, ao cuidado da U. N. War Crimes Commission. 15
vols., London 1949; I. S. NEUMANN, A bibliography of the
european war crimes trials. New York, 1951; V. MAUGHAM, U.
N. O. and war crimes. London 1951.
[GIORGIO BIANCHI]
Crise.
I. DEFINIÇÃO. — Chama-se Crise a um momento de
ruptura no funcionamento de um sistema, a uma
mudança qualitativa em sentido positivo ou em sentido
negativo, a uma virada de improviso, algumas vezes
até violenta e não prevista no módulo normal segundo o
qual se desenvolvem as interações dentro do sistema em
exame. As Crises são habitualmente caracterizadas por
três elementos. Antes de tudo, pelo caráter de
subitaneidade e por vezes de imprevisibilidade. Em
segundo lugar, pela sua duração normalmente limitada.
E, finalmente, pela sua incidência no funcionamento do
sistema. A compreensão de uma Crise se funda sobre a
análise de três fases do estado de um sistema; a fase
precedente ao momento em que se inicia a Crise, a fase
da Crise propriamente dita e, por fim, a fase depois que
a Crise passou e o sistema tomou um certo "módulo"
de funcionamento que não se identifica mais com o que
precedeu a Crise. Para uma conceptualização mais
precisa, é necessário, além disso, ter em vista mais três
aspectos: a identificação do início e das causas do
acontecimento que deu origem à Crise 'e, em
particular, se se trata de acontecimento interno ou
externo ao sistema, recente ou longínquo no tempo; a
disponibilidade de tempo para a resposta à situação de
Crise e, em particular, se limitada, média ou ampla; e a
importância relativa da colocação em jogo para os
atores políticos e para os membros do sistema.
É possível conceptualizar, deste modo, até as crises
econômicas. Mais; freqüentemente até as Crises
políticas e as Crises econômicas estão
305
intimamente ligadas, tanto em sentido positivo, quando
a solução de uma das duas leva elementos benéficos
para a solução da outra, como em sentido negativo,
quando a incapacidade de resolver a Crise de uma
esfera se repercute sobre a outra esfera. Estas
interações podem ser estudadas, quer a nível
governamental, quer a nível do sistema político
nacional, quer a nível do sistema internacional. O
último exemplo de Crise econômica internacional de
graves repercussões sobre os sistemas políticos
nacionais e sobre o sistema internacional foi a grande
depressão de 1929 a 1932. Recentemente, na
bibliografia científica, foi introduzido o conceito de
Crise de desenvolvimento. O termo Crise é usado,
neste caso, num sentido não-técnico para indicar
mudanças de grande porte, que necessitam de longos
períodos para uma recomposição e que culminam na
criação do Estado moderno, com alta participação
política e está comprometido com a produção e com a
distribuição dos principais bens econômicos (v.
MODERNIZAÇÃO).
Todo o sistema se funda num conjunto de relações
mais ou menos estreitamente coligadas entre os vários
componentes, de tal forma que a mudança num dos
componentes do sistema gera mudanças em todos os
outros componentes. Todavia, enquanto nos sistemas
mecânicos é possível avaliar cuidadosamente o efeito e
a amplitude de semelhantes variações e até medi-las,
no âmbito dos sistemas sociais se está ainda longe
disso. Para avaliar, em sentido lato, a incidência de uma
Crise sobre um sistema social, entretanto, é preciso,
antes de mais nada, definir o estado de equilíbrio deste
sistema. O sistema pode encontrar-se em equilíbrio
estável, de tal maneira que tende a voltar à mesma
posição, logo que passar a perturbação ou pode estar
em equilíbrio instável, de tal maneira que tende a
alcançar um novo tipo de equilíbrio após as
perturbações e as Crises por que passou" (v. SISTEMA
POLÍTICO).
Existem vários tipos de Crises. As Crises podem ser
internas ao sistema, quando surgem de contrastes entre
os componentes do sistema, ou externas ao mesmo,
quando o estímulo vem de fora. Podem ser genéticas,
quando se apresentam no momento mesmo em que o
sistema inicia sua existência, e funcionais quando se
verificam no curso do funcionamento mesmo do
sistema. Podem ser fisiológicas, quando dizem respeito
ao funcionamento do sistema e provocam a adaptação
do mesmo, e patológicas quando dizem respeito à
estrutura do sistema e provocam sua mudança. As
Crises funcionais podem, por sua vez, ser Crises de
sobrecarga quando o sistema deve fazer frente a mais
problemas e questionamentos do que aqueles a que é
capaz de responder ou
304
CRISE
Crises de carestia quando o sistema não consegue
extrair de dentro de si mesmo ou do ambiente recursos
suficientes para seu funcionamento. A sobrecarga pode
derivar do simples número de questões, da intensidade
das questões, da força dos componentes portadores
das questões e do tempo disponível para a resposta. A
carestia está estreitamente ligada com o tipo de
sustentação que o sistema consegue comandar,
sustentação que representa o índice principal com o
qual prevê o total de recursos que o sistema pode
alocar e mobilizar. Outras Crises de funcionamento
estão relacionadas com o modo como o sistema
seleciona as informações, procura mudar seus fins ou
tenta mudar o ambiente interno ou externo. O estádio
em que o sistema alcançou um novo equilíbrio estável
ou instável assinala o término da Crise, mas não
necessariamente a sua solução. A Crise pode ser
simplesmente acalmada, retraída mas latente, e
manifestar-se depois, de novo, numa fase sucessiva.
Segundo alguns autores, as Crises se apresentam
com uma curva de distribuição unimodal, com um só
vetor que representa o auge da Crise; segundo outros,
ao contrário, as Crises podem ter dois ou mais auges.
Esta tese admite ainda a possibilidade de uma Crise na
Crise; por isso a uma Crise de uma certa intensidade e
de uma certa duração pode sobrepor-se uma nova
Crise de maior intensidade, e, presumivelmente, de
menor duração. Isto acontece sobretudo nos casos de
conflitos bélicos, mas não é de excluir em Crises de
tipo diferente.
Segundo o tipo de sistema em que se manifestam,
podemos distinguir três espécies de Crises: Crise do
sistema político; Crise governamental e Crise
internacional.
II. CRISE DO SISTEMA. — As Crises do sistema
político têm duas dimensões principais: de um lado,
podem envolver apenas os mecanismos e os
dispositivos jurídicos e constitucionais do sistema, ou
seja, o regime político. Assim, a passagem de uma
monarquia absoluta para uma monarquia constitucional,
assim como a passagem de uma monarquia
constitucional para uma república e a passagem de
uma república parlamentar para um república
presidencial são todas Crises que implicam apenas
mudanças de regime. A outra dimensão de Crise do
sistema político diz respeito, por sua vez, ao
ordenamento sócio-econômico e inclui elementos como
as relações sociais de produção, a distribuição da
propriedade e a estrutura da família. Raramente, este
segundo tipo de Crise pode ter lugar sem provocar
mudanças no regime político. Quando as mudanças no
regime são acompanhadas de mudanças no
ordenamento só-
cio-econômico, a crise diante da qual nos encontramos é
uma Crise revolucionária (v. REVOLUÇÃO).
De modo menos preciso se fala hoje, na bibliografia
publicada sobre o assunto, de Crise de
desenvolvimento do sistema. Esta Crise atinge não
apenas o modo como o sistema se comporta frente aos
desafios que surgem da sua interação com outros
sistemas, mas também o modo como reage aos
desafios vindos de dentro, como é o caso, quando há
uma cisão da elite política. Estas Crises que podem
durar, também, por muito tempo mas que apresentam
momentos individuáveis de maior intensidade, se
verificam sobretudo por ocasião de importantes
mudanças nos setores econômico, social, religioso e
cultural, que exigem do sistema político o
enfrentamento de novos questionamentos e de novas
necessidades (v. MODERNIZAÇÃO). O modo como as
Crises são enfrentadas e resolvidas influencia, de
notável forma, tanto as modalidades em que se
apresentarão as outras Crises como a capacidade (v.
CAPACIDADE POLÍTICA) do sistema em resolvê-las.
III. CRISE GOVERNAMENTAL — As Crises
governamentais dizem respeito ao funcionamento do
subsistema Governo e podem ser geradas por fatores
internos ao contexto governamental ou por interações
da estrutura governamental com a sociedade. As Crises
que se originam dentro da estrutura do Governo
dependem, de maneira relevante, da natureza da
estrutura. A estrutura governamental pode ser
homogênea ou heterogênea, composta por poucos ou
por muitos partidos e formada por uma sólida maioria
de deputados ou por uma leve minoria. A isto se
juntam os problemas da presença de uma oposição
unitária ou fragmentada, orientada para a aceitação do
sistema ou para sua transformação revolucionária.
Quanto mais a coligação governamental for homogênea
e
não
dividida
pelos
eixos
dicotômicos
laicismo/confessionalismo,
cidade/campo,
indústria/agricultura, composta por poucos partidos e
formada por uma sólida maioria, e quanto mais a
oposição estiver fragmentada e orientada para a
aceitação do sistema, menos prováveis serão as Crises
governamentais. As Crises governamentais, porém,
dependem também das relações que a classe política
estabelece com a sociedade e pelos tipos de respostas
que ela dá aos questionamentos provenientes da
sociedade. A estrutura governamental pode, na
verdade, dar a preeminência às respostas que
minimizam o conflito interno em relação às respostas
que dão a máxima satisfação à sociedade. Nestes casos,
se assiste ao conhecido fenômeno do imobilismo,
emblema dos regimes multipartidários da IV República
Francesa. As
CRISE
decisões tomadas podem, entretanto, levar a fraturas
na coligação governamental, de tal modo que alguns
Governos podem desenvolver apenas o papel de
Governos para a "liquidação" de alguns problemas e
cair imediatamente depois. Em geral, o elemento
determinante da Crise de Governo se acha a nível das
relações entre classe política e sociedade e pode
depender da falta de representatividade da classe
política no poder (para a qual o Governo vem a ser
considerado "comitê executivo da burguesia",
representante dos interesses de uma parte apenas da
comunidade política), da falta de legitimação do
sistema que é rejeitado por fortes grupos da
comunidade e pela falta de eficácia em responder aos
questionamentos da comunidade.
Diferentemente das Crises sistêmicas e das Crises
internacionais, as Crises de Governo, sobretudo nos
regimes parlamentares, porquanto imprevisíveis no
que toca ao seu começo, são, as mais das vezes,
reguladas e institucionalizadas pelo que diz respeito às
suas modalidades de desenvolvimento e de eventual
solução. A institucionalização dos procedimentos para
a solução das Crises governativas serve para
circunscrever seu âmbito e para impedir que as
mesmas possam pôr em perigo a existência do próprio
regime político.
IV. CRISE INTERNACIONAL. — O conceito de Crise
foi adotado particularmente no setor das relações
internacionais e a este propósito é especificamente
relevante a definição de Lasswell e Kaplan (1969,
259): "Uma Crise é uma situação de conflito de
intensidade extrema (existem altas expectativas de uso
da violência)". Além dos aspectos relacionados com o
conflito violento, deve sublinhar-se a incidência da
situação de Crise no processo decisional e a urgência
conjunta de tomar decisões, urgência que comporta
variações no iter normal decisional e o recurso a
medidas excepcionais.
Uma Crise internacional pode ser analisada do ponto
de vista dos atores internacionais que se chocam e do
ponto de vista de seus processos de decisão. Do ponto
de vista do choque entre atores internacionais, pode
observar-se, antes de mais nada, o número dos atores
envolvidos na Crise. Todavia não dizemos que as
Crises que implicam a participação de apenas dois
atores sejam de mais fácil solução do que as Crises de
que participam numerosos atores. Além disso, no
primeiro caso, o processo de composição e mediação
da Crise parece facilitado pela presença de um
limitado número de atores que simplifica os problemas
de comunicação das informações e de conciliação dos
interesses. Em segundo lugar,
5Ü5
é necessário olhar a potência relativa dos atores
envolvidos na Crise. No atual sistema internacional, as
Crises que envolvem atores munidos de armamento
nuclear são potencialmente mais perigosos do que os
que vêem em jogo atores privados de armas atômicas.
Em terceiro lugar, importa prestar atenção ao locus da
Crise. A divisão em esferas de influência faz com que
as Crises que se verificam dentro das esferas de
influência e que não envolvem as superpotências rivais
sejam menos perigosas do que as Crises que se
desenvolvem em áreas contestadas pelas duas
superpotências ou que ameaçam a intervenção das
superpotências nos campos opostos. Em geral, agora,
pela vasta rede de alianças e de pactos de assistência,
até os conflitos em áreas afastadas daquelas que são de
estrito "interesse nacional" podem traduzir-se
rapidamente em Crise de alcance mundial.
As Crises internacionais procedem de maneira
característica de uma erupção repentina para um
conflito breve até uma complexa obra de composição
que na maior parte das vezes não leva a um
desaparecimento permanente e definitivo das causas
da Crise, mas a uma trégua mais ou menos longa e a
uma institucionalização de novas formas de conflito.
Quando os contendentes acham que a Crise não
poderá ter outro fim a não ser uma mediação, a Crise é
muitas vezes provocada para conquistar uma posição
melhor na mesa de negociações.
Do ponto de vista do processo decisional, qualquer
tipo de Crise provoca uma centralização do poder nas
mãos de poucos indivíduos, restringe as alternativas
possíveis na medida em que exclui o recurso a
alternativas mais complexas e requer um
procedimento mais rápido, mais informal e menos
controlável. Deste ponto de vista, os momentos-chaves
para cada um dos decision-makers concernem ao fluxo
de informações, ao recurso a informações já
conhecidas e à seleção das informações mais relevantes
em relação à Crise em ato. Nestas fases, algumas
fontes de informações podem emergir como fontes
privilegiadas e provocar graves distorções no processo
de aquisição e de seleção das informações. Sobretudo
nas Crises internacionais, a qualidade, a quantidade e
o tipo de informação que chegam aos decision-makers
são importantes.
Uma vez que toda a crise é um momento de ruptura
inesperada no normal funcionamento de um sistema,
ela requer respostas rápidas que tendem a reportar o
sistema no seu módulo de funcionamento anterior ou a
institucionalizar um novo módulo. A condição
essencial para que isto aconteça é que o sistema seja
bastante aberto aos vários fluxos de informação de
modo a extrair
30b
CULTURA POLÍTICA
daí as informações suficientes para os processos de
resposta e de adaptação requeridos e seja bastante
forte para poder afetar opções precisas entre os vários
fluxos. Portanto, toda a Crise pode ser superada por um
sistema que disponha de uma pluralidade de fontes de
informação, de capacidade de escolher entre vários
fluxos e de adotar novos módulos de funcionamento
sem perder as suas características essenciais.
BIBLIOGRAFIA. — Crisis, choice and change. Historical
studies of political Development, ao cuidado de G. A. ALMOND,
S. C. FLANAGAN e R. J. MUNDT, Little Brown and Co., Boston
1973; L. BINDER e L. COLEMAN ET ALII, Crises and sequences in
political development. Princeton University Press. Princeton
1971; H. D. LASSWELL e A. KAPLAN, Potere e società (1950),
Etas Libri, Milano 1969; La crise de 1'État. Presses
Universitaires de France, ao cuidado de N. POULANTZAS, Paris
1976; J. A. ROBINSON, Crisis, IN International encyclopedia of the
social sciences. Collier-McMillan, New York 1968. vol. 3; C E.
RUSCONI. La crisi di Weimar. Crisi di sistema e sconfitta
operaia. Einaudi, Torino 1977; O. YOUNG, The politics of force.
Princeton University Press. Princeton 1968.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Cultura Política.
Ao refletirem sobre as características de sociedades
diversas, estudiosos, observadores e pensadores de
todos os tempos têm com freqüência acentuado não só
a multiplicidade de práticas e instituições políticas
existentes, como também as crenças, os ideais, as
normas e as tradições que dão um peculiar colorido e
significação à vida política em determinados
contextos. O interesse por tais aspectos, talvez menos
tangíveis, mas nem por isso menos interessantes da
vida política de uma sociedade, tem aumentado nos
recentes estudos de ciência política, vindo a difundir-se
paralelamente o uso da expressão Cultura política, para
designar o conjunto de atitudes, normas, crenças, mais
ou menos largamente partilhadas pelos membros de
uma determinada unidade social e tendo como objeto
fenômenos políticos Assim, poderemos dizer, a modo
de ilustração, que compõem a Cultura política de uma
certa sociedade os conhecimentos, ou, melhor, sua
distribuição entre os indivíduos que a integram,
relativos às instituições, à prática política, às forças
políticas operantes num determinado contexto; as
tendências mais ou menos difusas, como, por exemplo,
a indiferença, o cinismo, a rigidez,
o dogmatismo, ou, ao invés, o sentido de confiança, a
adesão, a tolerância para com as forças políticas
diversas da própria, etc; finalmente, as normas, como,
por exemplo, o direito-dever dos cidadãos a participar
da vida política, a obrigação de aceitar as decisões da
maioria, a exclusão ou não do recurso a formas
violentas de ação. Não se descuram, por último, a
linguagem e os símbolos especificamente políticos,
como as bandeiras, as contra-senhas das várias forças
políticas, as palavras de ordem, etc.
Num estudo bastante conhecido publicado em 1963,
dois estudiosos norte-americanos particularizaram três
tipos de Cultura política de certo interesse. Depois de
haverem definido a Cultura política como "conjunto de
tendências psicológicas dos membros de uma
sociedade em relação à política", distinguem três tipos
de tendências, isto é, três posições que o indivíduo
pode assumir ou três modos segundo os quais ele pode
encarar os fatos e as relações sociais. A tendência
cognitiva se revela no conjunto dos conhecimentos e
crenças relativos ao sistema político, aos papéis que o
compõem e aos seus titulares; a tendência afetiva se
revela nos sentimentos nutridos em relação ao sistema,
às suas estruturas, etc; finalmente, a tendência
valorativa compreende juízos e opiniões sobre
fenômenos políticos e exige a combinação de
informações, sentimentos e critérios de avaliação. As
tendências distinguem-se depois segundo seu objeto: o
sistema político em sua globalidade, ou as estruturas
de imissão, no sistema político, de instâncias e
demandas presentes na sociedade, ou ainda as
estruturas de tipo executivo e administrativo mediante
as quais se executam as decisões, e, enfim, a relação
existente entre indivíduo e sistema. O primeiro tipo de
Cultura política — também designado por parochial
political culture — ocorre principalmente em
sociedades simples e não discriminadas, onde os papéis
e as instituições de cunho especificamente político não
existem ou coincidem com os papéis e estruturas de
caráter econômico e religioso. O segundo tipo,
chamado de Cultura política de "sujeição", existe
quando os conhecimentos, os sentimentos e avaliações
dos membros da sociedade estão voltados
essencialmente para o sistema político em seu
conjunto, mas atentos principalmente aos aspectos de
output, ou de saída, do sistema, isto é, na prática, ao
aparelho administrativo incumbido da execução das
decisões. Aqui as tendências são de tipo
acentuadamente passivo e esta cultura corresponderia
principalmente aos regimes políticos autoritários.
Finalmente, no terceiro tipo de Cultura política —
chamada de cultura "de participação" — existem
tendências específicas que não visam apenas
CULTURA POLÍTICA
ambos os aspectos do sistema, mas supõem também a
posição ativa de cada um. Dentro desta mesma
colocação, são depois usados os conceitos de adesão
(allegiance), apatia e alienação para caracterizar a
relação de congruência ou incongruência entre cultura e
estrutura políticas. Existe adesão, quando os
conhecimentos são acompanhados de tendências
afetivas e juízos positivos; alienação e apatia, quando a
atitude predominante dos membros de uma sociedade
em relação ao sistema é, respectivamente, de hostilidade
ou de indiferença. Congruência ou incongruência entre
Cultura política e estrutura política se dariam, portanto,
quando as tendências predominantes são adequadas ou
não às estruturas e costumes existentes: por isso, uma
Cultura política "de participação" inserida num sistema
de estruturas autocráticas seria bem pouco congruente e
certamente menos adequada que uma Cultura política
"de sujeição". O mesmo se diga da relação entre uma
Cultura política em que o cidadão não é considerado
como participante e estruturas políticas de participação.
Naturalmente não é preciso dizer que os tipos acima
esboçados são meros tipos, figuras totalmente teóricas,
só possíveis em caso de absoluta homogeneidade da
Cultura política. Em lugar disso, na prática só se
encontram Culturas políticas de tipo misto, resultantes
da combinação das diversas tendências acima descritas.
Deste modo, nas sociedades em que existem faixas
bastante amplas de sujeitos "participantes", se acham
também segmentos bem claros de "súditos" e de
parochials. Embora não isento de dificuldades a nível
conceituai, este esquema interpretativo possui uma
certa utilidade, porque permite pôr em evidência ou ver
à nova luz certos problemas que são de grande
interesse para o estudioso dos fenômenos políticos.
Assim, por exemplo, o surgir de novas unidades
políticas resultantes do agrupamento de comunidades
antes separadas pode ser considerado como um caso de
transição que exigiria a passagem duma Cultura
política de tipo parochial a uma Cultura política "de
sujeição"; analogamente, os problemas da transição de
um regime autoritário para um regime democrático
podem ser vistos como problemas relativos à reação,
transformação e difusão de uma Cultura política de tipo
"participante".
Segundo alguns autores, a Cultura política da Itália
contemporânea seria uma cultura política mista, com
predomínio de elementos de apatia e de alienação. Os
resultados de uma pesquisa levada a efeito de 19591960 em cinco países (Alemanha Ocidental, Itália,
México, Grã-Bretanha e Estados Unidos) mostram
que, em geral — isto é, tomada a população como um
todo —, a Itália se caracteriza pela existência de uma
307
fraca vinculação e identificação com o regime
democrático, por escassa difusão e aceitação do dever
cívico de participação na vida política, por um raro
interesse e baixo nível de informação e conhecimento
de assuntos políticos, por um generalizado sentimento
de impotência nos indivíduos quanto à possibilidade
de influir nas decisões políticas, quer a nível local quer
a nível nacional, por uma grande polarização entre os
sequazes das diversas forças políticas, por uma
acentuada suspeita e desconfiança em relação à
política, por um sentimento assaz comum de
alheamento emotivo em face dos acontecimentos
políticos, por minguada confiança no recurso a
mecanismos sociais (grupos, associações, etc.) como
meios de influir na política, e por um típico recurso a
meios e iniciativas pessoais.
O fato de se poder legitimamente falar, a nível de
macroanálise, de uma sociedade global e de a
podermos caracterizar de um modo geral não deve, no
entanto, levar-nos ao erro de pensar na Cultura política
como em algo homogêneo. Muito pelo contrário.
Podemos pensar que a Cultura política de uma dada
sociedade é normalmente constituída por um conjunto
de subculturas, isto é, por um conjunto de atitudes,
normas e valores diversos, amiúde em contraste entre si.
Em sociedades complexas, articuladas em estruturas
bastante diferenciadas e resultantes da agregação de
comunidades com história e tradições diversas, a
presença destas conformações chamadas subculturas
não causa admiração; a sobrevivência de divisões
étnicas e de diferenças lingüísticas constitui sua prova
exterior mais evidente. Do ponto de vista político, as
diferenciações mais óbvias da Cultura política são as
dependentes da existência de correntes de pensamento,
símbolos e mecanismos de organização que
desembocam nas forças políticas. Assim, na sociedade
italiana do último pós-guerra, é possível identificar
algumas subculturas principais que correspondem,
grosso modo, à tradição laico-liberal, à socialista, à
católica e à de direita. É claro que estas nem são
totalmente homogêneas em si, nem constituem
verdadeiras autênticas ilhas culturais; poderiam ser
antes representadas por uma série de círculos
parcialmente interseccionados, isto é, contendo núcleos
de valores comuns a duas ou mais subculturas.
Existem, além disso, outras diferenciações, muitas vezes
de base geográfica, ligadas ao desenvolvimento
histórico de certas forças políticas: temos, por isso, uma
tradição socialista de tipo industrial e outra de tipo
agrário, tradições reformistas e maximalistas, etc.
Outra distinção importante é a da Cultura política
das elites e a da Cultura política de massas.
308
CULTURA POLÍTICA
Do ponto de vista da interpretação dos acontecimentos
políticos, a análise da Cultura política de elites no
poder e de elites na oposição tem uma importância
absolutamente desproporcionada à sua força
numérica. Basta pensar no papel que desempenham as
elites na definição dos temas do debate político, em
conduzir nesta ou naquela direção a opinião pública e,
sobretudo, em tomar decisões de grande importância
para a estruturação do sistema como, por exemplo, na
formação de coalizões e, mais ainda, nas fases de
reestruturação do sistema, quando ele se acha, por
assim dizer, em estado fluido, como ocorre nos
momentos de passagem de um regime a outro, antes
que novas instituições e novos grupos se consolidem.
BIBLIOGRAFIA. - G. ALMOND e S. VERBA, The civi
culture. Political attitudes and democracy in five
nations. Princeton University Press. Princeton 1963;
The civic culture revisited. ao cuidado de G. ALMOND e
S. VERBA. Little Brown and Co., Boston 1980; Political
culture and political change in communist states. ao
cuidado de A. BROWN e J. GRAY, Holmes and Meier,
New York 1977; J. P. NETTL, Political mobilization.
Faber and Faber. London 1967; R. D. PUTNAM, The
beliefs of politicians. Ideology. conflict and democracy
in Britain and Italy, Yale University Press. NewHaven-London 1973; Political culture and political
development, ao cuidado de L. W. PYE e S. VERBA,
Princeton University Press. Princeton 1965.
[GIACOMO SANI]
Decisões Coletivas, Teoria das.
I. DEFINIÇÕES. — A Teoria das decisões coletivas
ocupa-se de problemas que têm profundas raízes na
história do pensamento político ocidental. A sua
novidade não está tanto nos conteúdos quanto no
método com que é novamente apresentado o estudo de
questões antigas respeitantes às condições de
funcionalidade e estabilidade de formas de Governo
democrático. Em sua expressão mais rigorosa a nível
analítico, a Teoria das decisões coletivas apresenta
uma estrutura lógico-dedutiva que, partindo de alguns
axiomas referentes ao comportamento na escolha
individual, estabelece uma série de teoremas relativos
ao problema da agregação das preferências individuais
numa escolha coletiva. Para o seu desenvolvimento
têm contribuído numerosas achegas de outras
disciplinas, da teoria econômica à teoria dos jogos, da
economia do bem-estar à teoria das finanças públicas.
O ponto de partida desta teoria é o da noção das
decisões coletivas. Esta noção nasce da distinção entre
as decisões provenientes de uma coletividade e as
decisões individuais. Aquelas são decisões subtraídas
à competência de cada indivíduo como tal. Se por
decisão individual se entende que cada indivíduo
"decide por si", então as decisões coletivas são
decisões não-individuais. A esta distinção se acrescenta
outra. Não se pode dizer que a decisão coletiva não
possa ser tomada por uma só pessoa. Se essa. pessoa
"decide por todos", quer dizer, se a sua decisão
vincula toda a coletividade que é tida em mira, nesse
caso se há de falar ainda de decisão coletiva. Com isso
se definem como decisões coletivas aquelas decisões
em que o sujeito que decide não é o singular, mas o
"coletivo" ou, melhor, o "grupo". No âmbito desta
teoria, não existe uma definição unívoca de grupo. Os
grupos podem ser órgãos de vastas dimensões, como
os corpos eleitorais, ou órgãos de pequeno tamanho,
como uma comissão parlamentar. Na realidade, parte
dos escritores prefere falar de decisões coletivas só
quando se trata de
grupos em que a relação entre os membros é do tipo
"face a face". Ordinariamente estes grupos são
definidos como "comitês". Daí o uso que muitas vezes
se faz da expressão "teoria dos comitês", em vez de
"Teoria das decisões coletivas". Observemos, no
entanto, a tal propósito que, no que toca ao problema
da agregação das preferências individuais numa
decisão coletiva, o que conta, sobretudo para a
aplicação dos resultados mais gerais da teoria, não é
tanto a relação face a face entre os membros do grupo
quanto a existência de um grau mínimo de
interdependência entre eles. Mas é preciso acrescentar
em seguida que existem certamente diferenças de
funcionamento entre os pequenos e os grandes grupos.
Basta pensar nas possibilidades de cooperação que
apresentam os primeiros em relação aos segundos, em
virtude precisamente da relação face a face.
II. REGRA DA MAIORIA E TEOREMA DA IMPOSSIBILIDADE
— As decisões individuais não apresentam o
problema das regras de decisão. E isto também é
verdadeiro no tocante às decisões que respeitam a
órgãos monocráticos. Não é assim com as decisões
coletivas. Quando o poder decisório é confiado a um
grupo e não a um simples indivíduo, torna-se
necessário estabelecer as regras que hão de ser
seguidas para reunir as preferências (opiniões ou
interesses) de cada um numa decisão coletiva. Quem
formulou com mais rigor este problema foi Kenneth
Arrow. Arrow parte do pressuposto de que toda a
regra decisória (função do bem-estar social) usada na
tomada de decisões coletivas tem de satisfazer a
determinados critérios, uns de caráter técnico, outros
de caráter ético. Distingue cinco critérios ou
condições na sua obra fundamental Social choice and
individual values (1963). Quando as alternativas de
escolha enfrentadas pelo grupo forem apenas duas, só
a regra que satisfaça tais condições e produza, ao
mesmo tempo, resultados estáveis (não contraditórios),
é que será a regra da maioria simples. No caso em
que, em vez disso, as alternativas forem mais de duas,
essa regra
GERAL.
310
DECISÕES COLETIVAS, TEORIA DAS
satisfará de algum modo as condições de Arrow, mas
não produzirá necessariamente um resultado estável,
ou seja, não permitirá determinar sempre, de maneira
unívoca, qual a vontade do grupo. As preferências
individuais poderão ser, de fato, tão diversas entre si
que não se possam associar, dando assim lugar àquele
fenômeno que os autores definem como das "maiorias
cíclicas", ou até de nenhuma maioria. É esse o sentido
do conhecido "teorema da impossibilidade geral"
(Arrow, 1963).
Partindo da fundamentação dada por Arrow ao
problema das decisões coletivas, os autores têm
procurado investigar em que condições a regra da
maioria funciona e como, isto é, com que resultados na
distribuição dos benefícios ou custos do processo
decisório. Observou-se, em primeiro lugar, que ela
funciona sem dúvida quando, dentro do grupo que
decide, "a metade mais um" dos membros tem a mesma
preferência sobre a alternativa que deve ser escolhida
como decisão vinculadora de todo o grupo. Fala-se,
neste caso, de maioria hegemônica (ou maioria
predominante). Mas a existência de uma situação
decisória deste tipo tem implicações negativas do
ponto de vista da "eqüidade" dos resultados do
processo resolutivo. Ela permite o predomínio, dentro
do grupo que decide, de uma parte sobre outra, ou,
mais precisamente, da maioria sobre uma ou mais
minorias. O perigo é que a maioria possa assegurar
todo o resultado do jogo à custa da minoria. Com o
tempo, um sistema decisório que funcione nestes
termos não poderá subsistir. Em vez de ser um
instrumento de composição pacífica nos conflitos, a
regra majoritária acaba por exasperá-los, mesmo onde
os direitos formais das minorias são respeitados. Numa
situação destas, a regra majoritária está destinada a
perder sua legitimidade. De fato, para além do
reconhecimento dos direitos formais das minorias,
existem benefícios fundamentais que só podem ser
distribuídos com eqüidade se a regra majoritária
funcionar com resultados "de soma positiva", o que
pressupõe que todos possam lucrar alguma coisa. Não
é esse o caso quando existe uma maioria hegemônica.
Então a decisão coletiva poderá ser "de soma zero", no
sentido de que uma parte ganha o que a outra perde.
A regra da maioria não funciona só quando existe
uma maioria hegemônica. Pode funcionar também se,
não existindo tal maioria, as preferências e interesses
dos membros do grupo são suficientemente
homogêneos. Então o resultado não só é estável, mas
é também mais eqüitativo num certo sentido, na
medida em que a decisão coletiva tende a refletir
medianamente as preferências da totalidade dos que
decidem. Os autores
identificaram várias condições que asseguram o
funcionamento da regra majoritária, com base numa
certa forma de homogeneidade das preferências
individuais. A mais famosa é a proposta por Duncan
Black (1958) que requer que as curvas de preferência
individuais tenham apenas um máximo. Essas
preferências podem então ser dispostas numa só escala
e a decisão coletiva tomada por maioria corresponderá
à preferência de condição ótima do indivíduo
mediano, ou seja, do indivíduo que ocupa o centro da
distribuição das preferências. Em suma, esta condição
requer que as preferências dos membros do grupo sejam
redutíveis a um só denominador comum que
represente a dimensão única do conflito e, portanto, da
escolha. Isso implica a existência de um acordo dentro
do grupo que decide sobre o fato de que as
preferências de cada um em torno de um determinado
problema de escolha difiram apenas quanto a um
único parâmetro.
Esta relação específica entre consenso e dissenso,
esta espécie de concordia discors, reduz notavelmente
a área de conflito, permitindo assim que a regra da
maioria funcione de maneira apta a distribuir
eqüitativamente os benefícios ou os custos do
processo decisório. Resultado análogo se dá quando a
homogeneidade entre as preferências individuais se
baseia não no fato de ter um único máximo, mas de ter
só um mínimo ou então de concernir a alternativas
divisíveis em dois grupos, de sorte que as pertencentes
a um sejam sempre preferidas às pertencentes ao outro,
em qualquer escala de preferência individual, e viceversa (Inada, 1964). Outra condição de homogeneidade
ainda mais geral é a definida com base nas hipóteses de
que (1) os membros do grupo não são indiferentes a
respeito da escolha entre as diversas alternativas de
solução (isto é, "interessam-se") e de que (2) as suas
preferências são tais que, em relação a cada conjunto
de três alternativas de escolha (nenhuma das quais
classificada como "melhor", "pior" ou "intermédia"
relativamente ao conjunto, isto é, tendo um certo
"valor"), existem uma alternativa e um "valor" que são
de tal ordem que essa alternativa não assumirá nunca
esse valor em qualquer escala de preferência individual
(condição das preferências de valor restrito, Sen,
1970).
A análise da regra da maioria não avançou só pelo
caminho
da
pesquisa
de
"condições
de
homogeneidade" cada vez mais aprimoradas, capazes
de garantir a possibilidade de escapar às implicações
negativas do teorema da impossibilidade geral. A
Teoria das decisões coletivas se desenvolveu também
em outra direção, a do estudo dos mecanismos de
compensação. Onde os grupos de decisão forem
comitês, isto é, grupos
DECISÕES COLETIVAS, TEORIA DAS
institucionalizados e de pequenas dimensões, chamados
a decidir sobre um fluxo constante de questões, a regra
majoritária poderá funcionar agindo sobre a
disponibilidade dos membros do comitê na busca do
acordo "questão por questão", fazendo com que
troquem seu assentimento a uma decisão de hoje, pela
obtenção da satisfação dos próprios interesses amanhã.
Trata-se, na prática, de pôr em ação um sistema de
compensações recíprocas diferidas. Graças a isso, é
possível chegar a decisões coletivas, mesmo quando,
não havendo condições de homogeneidade nas
preferências individuais, existe uma "cultura
transativa". Entre outras coisas, este mecanismo
possui uma importante característica que é a sua
capacidade de julgar a diversa intensidade com que
são sentidos os problemas pelos vários componentes do
grupo. Quem "cede" ou concede hoje é aquele que
sente menos intensamente um determinado problema
do que quem "pede". É baseado nesta lógica transativa
que o mecanismo das compensações recíprocas
diferidas permite que a regra da maioria funcione,
mesmo quando isso não seria possível, dada a
heterogeneidade dos interesses e das preferências
individuais.
III. UNANIMIDADE E PROPORCIONALIDADE. — A
regra da maioria não é o único instrumento de
formação das decisões coletivas. Além do mais, ela
pode funcionar, como se observou, "com soma zero",
ou seja, beneficiando exclusivamente uma parte em
prejuízo da outra ou das outras. Para evitar este risco, é
preferível recorrer, em determinadas circunstâncias, a
maiorias qualificadas, ou até a outras regras que
ofereçam maiores garantias substanciais às minorias.
Dentre estas vale a pena recordar a regra da
unanimidade e o sistema proporcional. O elemento
característico da regra da unanimidade está no fato de
ela atribuir a todos os membros do grupo um peso
decisório. Nenhum voto é inútil ou anulado. Todo o
voto conta, na medida em que só se pode decidir
coletivamente com o consenso de todos. Na prática,
com esta regra, todo e qualquer membro do grupo vem
a dispor de um poder de veto que lhe permite bloquear
toda a decisão contrária aos seus interesses ou, quando
menos, obter compensação adequada pelas decisões
que o prejudicam ou por aquelas em que não seja de
algum modo beneficiário. É assim que se explica o
recurso ao uso desta regra nos contextos em que os
interesses em jogo são de tal modo importantes e/ou
potencialmente tão divergentes que têm de ser
defendidos a qualquer custo, ou seja, mesmo à custa da
interrupção do processo decisório. Não é por acaso que
a unanimidade é a regra adotada nas decisões dos
organismos coletivos de caráter
311
supranacional. Mas, justamente por isso, seu uso se acha
sumamente limitado, mesmo que, a nível teórico, conte
com denodados defensores, tanto entre os politólogos
como entre os economistas. É que ela garante sempre a
obtenção de soluções coletivas que obedecem ao
critério de Pareto, uma vez que todos vêm a lucrar
alguma coisa com o seu funcionamento ou, em todo
caso, ninguém sofrerá danos ou suportará custos não
previstos.
A regra proporcional assemelha-se, em certos
aspectos, à regra da unanimidade. Mas, ao contrário
desta, ela quase nunca é aplicada nos pequenos grupos;
é usada principalmente quando quem decide por todos
são grupos representativos de coletividades de vastas
dimensões. Seu funcionamento é teoricamente
simples: cada indivíduo ou subgrupo de indivíduos
possui o direito de influir nas decisões a tomar, em
grau proporcional à importância dos interesses que
representa ou ao seu valor numérico. Portanto, como
acontece com a regra da unanimidade, aqui também se
acaba por atribuir, na prática, um poder de veto a cada
um dos componentes do grupo. Restringe-se assim o
universo das soluções possíveis no processo decisório e
se amplia, ao mesmo tempo, a gama de preferências e
interesses que devem ser tidos em conta. Por isso, a
regra proporcional dá bom resultado mais como regra
de distribuição de cargos e de eleição dos componentes
de organismos representativos do que como regra de
formação de políticas ou decisões coletivas. Mas,
enquanto é fácil dividir e atribuir encargos em base
proporcional, é muito mais difícil distinguir e separar
as políticas que visam ao bem de todos, de modo que se
satisfaçam os interesses em jogo de forma proporcional
ao seu valor. A despeito desses limites, o sistema
proporcional encontrou e encontra larga aplicação nos
sistemas políticos que os autores definem como
"democracias consociativas". A existência, nestes
sistemas, de divisões de caráter étnico, lingüístico ou
religioso, torna problemático ou mesmo impossível o
uso de mecanismos de decisão de tipo majoritário. Daí
o recurso a regras de decisão mais maleáveis, de regras
que, em tais circunstâncias, se prestem melhor a
conciliar eqüitativamente interesses divergentes.
IV. CONCLUSÕES. — O desenvolvimento da Teoria
das decisões coletivas presta-se a um duplo tipo de
considerações. Por um lado, é possível afirmar que ela
constitui hoje o núcleo de uma moderna teoria da
democracia. O uso de uma linguagem rigorosa e de
instrumentos analíticos de molde lógico-dedutivo
contribuiu para tornar mais precisos e sistemáticos os
nossos conhecimentos no que respeita às condições de
funcionamento
312
DEFESA
da democracia, à participação política e à competição
eleitoral. Por outro lado, a atenção que esta teoria
mereceu dos cultores da ciência política é ainda muito
relativa. Fundamentalmente se pode afirmar que ela é
patrimônio apenas de uns poucos; daí resulta que as
suas potencialidades estão ainda em grande parte
inexploradas.
BIBLIOGRAFIA. - K. ARROW, Scelte sociali e valori individuali
(1963), Etas Libri, Milano 1977; D. BLACK, The theory of
committees and elections. Cambridge University Press.
Cambridge 1958; J. M. BUCHANAN e G. TULLOCK, The
calculus of consent. Ann Arbor, The University of Michigan,
1962; R. D'ALIMONTE, Regola di maggioranza, stabilità e
equidistribuzione, in "Rivista Italiana di Scienza Política", 4,
1974; A. DOWNS, An economic theory of democracy. Harper &
Brothers, New York 1957; K. INADA, A note on the simple
majority decision rule, in "Econometrica", 32, 1964; P. K.
PATTANAIK, Voting and collective choice. Cambridge
University Press. Cambridge 1971; G. SARTORI, Tecniche
decisionali e sistema del comitati, in "Rivista Italiana di Sciena
Política", 4, 1974; A. K. SEN, Collective choice and social
welfare, Holden-Day, San Francisco 1970.
(ROBERTOD'ALIMONTE]
Defesa.
I.AEXIGÊNCIADECONSERVAÇÃO:SEGURANÇA
E DEFESA. — O conceito de Defesa de um ordenamento
político é, freqüentemente, confundido com sua
organização militar, estabelecendo-se uma equação
entre Defesa e Forças Armadas. Acompanharemos esta
orientação no exame da atual organização italiana da
Defesa e formularemos algumas considerações de
fatores que parecem ser os caracteres mais importantes
da tutela de um ordenamento.
Cada ordenamento deve enfrentar o problema de
sua permanência. A Defesa, entendida em seu sentido
lato, é estritamente condicionada a uma exigência de
conservação das estruturas políticas e jurídicas que
reveste uma importância não menor do que a atribuída
à sua afirmação originária, idealmente colocada no
momento em que se realiza a concretização dos
chamados elementos constitutivos do Estado, que
conforme as doutrinas tradicionais identificam-se com
o território, com o povo e com o poder organizado e
soberano.
O momento conservativo está estritamente conexo
com a própria essência do Estado, que não pode
renunciar a acautelar-se contra fenômenos de
subversão das próprias instituições.
A situação de estabilidade do sistema institucional
e de desenvolvimento ordenado da coletividade
nacional no quadro dos princípios constitucionais,
orginariamente englobados num ordenamento,
identifica-se com a sua segurança. Esta, enquanto
síntese de conservação e de desenvolvimento,
conforme os princípios constitucionais, é o máximo
valor jurídico tutelado. Em relação a ela, o conceito de
Defesa assume um significado estritamente
instrumental, que compreende todas as modalidades
organizativas e funcionais destinadas a garantir os
valores essenciais sintetizados no conceito de
segurança. Entende-se, então, que seja impróprio
afirmar que a Defesa pode ser causa e fim do Estado,
desde que seja verdade o contrário: somente a
exigência da segurança pode ser posta como origem dos
fenômenos associativos entre indivíduos e coletividade
— como é ainda evidente nos casos da constituição de
Estados federais, que derivam do desenvolvimento de
confederações — e constitui sempre um dos fins
essenciais
da
entidade
estatal,
dependente
exclusivamente deste, enquanto implica no recurso
aos atributos de soberania.
O conjunto de aparelhos destinados em primeiro
lugar e de maneira exclusiva à tutela da segurança, no
âmbito das relações internacionais, qualifica-se como
organização da Defesa ou, simplesmente, como a
Defesa. Neste caso, a Defesa coincide prevalentemente
com a organização das Forças Armadas do Estado.
Sempre no sentido instrumental, fala-se, propriamente,
de Defesa em relação à atividade desenvolvida para
garantir a segurança. Quando nos referimos à atividade
globalmente desenvolvida pelo Estado, defrontamonos com uma função pública, a menos que o aparelho
defensivo não seja utilizado para finalidades
consideradas anômalas com relação às finalidades
primárias, como a intervenção em caso de
calamidades naturais, caso típico de um serviço
público.
II. LIMITES DA INTERDEPENDÊNCIA ENTRE DEFESA E
USO DA FORÇA ARMADA. — Existe uma tendência
bastante difundida a individualizar, no plano
organizativo, uma relação necessária entre Defesa e
força armada, assim como no plano funcional uma
relação semelhante entre Defesa e agressão,
proveniente da parte externa do ordenamento
interessado. Tal orientação parece superada pela
realidade política e pelos modernos contributos da
literatura especializada.
Não existe uma necessária inter-relação entre
Defesa e uso da força armada, embora seja exato que,
nos casos limites, o recurso ao seu emprego pareça ser
a última alternativa que um Estado possa utilizar para
garantir-se de agressões,
DEFESA
mesmo quando a organização militar deva ter como
único e exclusivo fim a Defesa armada.
Em caso de efetiva agressão, as finalidades de
segurança são obtidas também através de diversas
modalidades do uso da força armada, especialmente
mediante a ação diplomática. Além disso, em caso de
emprego da força armada, podem ser chamados a
colaborar, de forma integrativa, outros aparelhos
organizativos do Estado, mesmo que não sejam
destinados em primeiro lugar e de maneira exclusiva
para este fim, como no caso das administrações
econômicas, técnicas, financeiras e sempre no setor dos
negócios estrangeiros.
Em caso de simples perigo de agressão, as finalidades
de segurança podem ser tuteladas mediante a
predisposição sem emprego da força armada, que
pode provocar a dissuasão de potenciais atos hostis e
utilizando também o recurso a atividades substitutivas
das militares, em primeiro lugar a diplomática. O que
foi dito acima prova a extrema importância do papel
representado pela administração dos negócios
exteriores em se tratando da tutela e da segurança das
relações internacionais, seja como elemento auxiliar,
seja substituindo a ação das administrações militares.
Apresentam-se, porém, situações particulares quando
a agressão se processa no interior do ordenamento
interessado, mesmo se ligada a iniciativas de outro
Estado. Diante de tal hipótese a. Defesa, além do
recurso à força armada, pode apelar para expedientes
preventivos e repressivos, cujo uso não é habitual:
declaração de estado de sítio, proclamação da lei
marcial, instituição de jurisdições d,e exceção, recurso
ao endurecimento das normas penais e das medidas
policiais, adoção de medidas propagandísticas e
psicológicas que aumentem a vontade de resistência das
populações.
São múltiplas as administrações que desempenham
um papel, pelo menos complementar, com relação às
administrações militares em matéria de Defesa. Além
da área dos negócios exteriores, a da propaganda
assume importância de primeiro plano, por causa do
progressivo incremento da componente ideológica dos
conflitos, daquelas que controlam os setores
econômicos, cuja eficiência é premissa indispensável
para um funcionamento satisfatório da máquina
militar, assim como daquelas que lidam com a
pesquisa
científica
e
tecnológica,
cujo
desenvolvimento condiciona o das técnicas militares e
das doutrinas estratégicas.
Uma justificação do relevo relativo a muitas
administrações no tocante à Defesa não pode ser
achada num exame sumário das competências
setoriais. Temos que considerar, antes de mais nada, o
caráter unitário e global da Defesa de um ordenamento
que pressupõe, a nível operativo,
313
o concurso de todas as administrações interessadas e,
a nível de orientação direta, a intervenção dos órgãos
constitucionais: o caráter global da Defesa é paralelo
ao total dos grandes conflitos internacionais da era
contemporânea, teorizado pelas doutrinas estratégicas.
Temos uma confirmação formal do concurso
necessário dos ramos mais diversificados da
administração que concerne à Defesa, na difundida
utilização do esquema organizativo de comitê ou
conselhos de Defesa, que hoje quase todos os
ordenamentos contemporâneos conhecem. Trata-se de
organismos interdepartamentais especializados nas
questões que se relacionam com a Defesa, geralmente
com atribuições preparatórias e consultivas, às vezes
de orientação, e que têm em comum a característica de
serem sedes de representação colegiada de múltiplos
interesses confiados às repartições administrativas do
Estado, a fim de permitir, mediante oportuna
coordenação, uma harmonização das intervenções em
matéria defensiva. Como exemplo lembramos que no
Conselho Supremo de Defesa da Constituição italiana,
a lei que o instituiu previu, entre outras coisas, a
participação necessária dos ministros do Exterior, do
Interior, da Fazenda, da Defesa, da Indústria e
Comércio e do presidente do Conselho de Ministros,
além da participação facultativa de outros ministros.
III. LIMITES DA INTERDEPENDÊNCIA ENTRE DEFESA E
AGRESSÃO DO EXTERIOR. — Outro aspecto que merece
maior especificação é o da suposta necessária
interdependência entre Defesa e agressão proveniente
do exterior. A doutrina tradicional insiste sobre este
ponto, mas devemos recordar que a Defesa cuida
também de agressões vindas do interior, ou seja,
geradas no seio do próprio ordenamento atingido.
Na realidade, toda a distinção clara entre as duas
formas de agressão é problemática porque, muitas
vezes, a agressão interna é estimulada e dirigida por
um outro Estado. O fenômeno é especialmente
encorajado por dois fatores: pela extrema
periculosidade do recurso ao conflito internacional,
especialmente depois das mudanças das técnicas
bélicas que permitem apelar para o recurso às armas
nucleares, expondo ao risco de retorsão o próprio
agressor, e pelas possibilidades oferecidas pela ação
desagregadora das ideologias. Estes dois componentes
desaconselham o Estado agressor a expor-se,
preferindo formas de ação mediata, utilizando o
elemento social do Estado que se pretende agredir. A
estas formas de agressão indireta, unem-se as que são
geradas espontaneamente no seio da estrutura do
Estado. A
314
DEFESA
Defesa deve, portanto, seriamente considerar ambos os
fatores.
Com a exposição acima concluímos que a Defesa
deve levar em consideração também duas diferentes
hipóteses de agressão interna, conforme tenha que
enfrentar ataques de cima ou de baixa, isto é,
provenientes do vértice organizativo do Estado ou de
sua base social.
Tomando como ponto de referência um determinado
sistema constitucional as tentativas de modificação
antijurídica do mesmo — com ou sem recurso à força
armada, com ou sem ligações com ordenamentos
externos — podem ser provenientes dos órgãos
constitucionais de cúpula (seria o chamado golpe de
Estado) ou da coletividade nacional (seria então a
chamada ação subversiva ou revolução).
Todas estas tentativas têm como meta final a
mudança do ordenamento existente, seguindo uma
orientação totalmente em oposição insanável com este
(se a ação é bem sucedida provoca a revolução no seu
sentido técnico). Nas duas hipóteses, a Defesa fica por
conta do elemento estatal que se define fiel ao sistema
constitucional. No caso de ação agressiva partindo da
cúpula, podem intervir alguns dos órgãos
constitucionais ou então a própria coletividade
nacional, quando queira exercitar o chamado direito
de resistência. No caso de ação agressiva partindo da
base, é, geralmente, o aparato de cúpula que utiliza os
instrumentos repressivos colocados legalmente à sua
disposição.
IV. AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS COMO
OBJETO
DE DEFESA. — Do acima exposto acerca das
modalidades através das quais opera a Defesa e acerca
da possível proveniência da ação agressiva, podemos
chegar a entender a determinação dos valores que são
objeto de Defesa.
Existe uma concordância em relação a dois destes: o
território e a população. Especialmente a integridade
territorial recebe ampla tutela nas constituições, na
legislação penal e na legislação específica de Defesa,
nos tratados internacionais e, em particular, nos que
tratam da segurança coletiva. O objeto essencial da
Defesa, porém, é constituído pelo poder organizado, ou
melhor, pelas instituições políticas que caracterizam um
ordenamento. Território e população colocam-se como
pressupostos objetivos e como dimensões espaciais e
pessoais no seio dos quais se move o poder
organizado, que é poder soberano, enquanto última
instância de decisão, com poderes para impor-se às
diversas vontades individuais e coletivas que ele
controla. Tudo que colocamos em relevo até aqui
coincide somente em parte com a afirmação, segundo a
qual a Defesa tem como
primeiro objetivo a independência do Estadoordenamento. Trata-se da constatação de um
fenômeno parcial porque considera apenas a chamada
dimensão externa do poder soberano, aquela que
emerge nas relações interestatais. A esta devemos
juntar a dimensão interna relativa aos relacionamentos
que se desenvolvem no seio do ordenamento.
Especialmente neste último caso é fácil constatar
como a identificação da Defesa com a defesa do
Estado-ordenamento encerra uma simulação jurídica. A
tutela das forças políticas dominantes representadas
pelos órgãos constitucionais é objeto primário de todo
o sistema de Defesa.
A noção de Defesa do Estado-ordenamento,
globalmente entendido como abrangendo a totalidade
dos elementos constitutivos, significa um passo
ulterior através do qual tenta-se operar uma síntese
entre defesa das forças políticas dominantes e sua
organização e defesa da inteira coletividade nacional e
relativa organização. Deste modo, a Defesa do Estadoaparelho conjuga-se com a do Estado-comunidade.
Este processo é individualizado sempre nas relações
interestatais, nas quais cada Estado mostra clara
tendência a apresentar-se como unidade de todos os
seus componentes, mas, nos ordenamentos de um
único partido, tal simulação opera também nas
relações internas, enquanto é conhecido o postulado
político da necessária coincidência entre a base e a
cúpula, entre comunidade e aparelho.
Se o objeto da Defesa é dado pelas forças políticas
que caracterizam um ordenamento, significa que a ela
pode pressupor uma notável fragmentação dos valores
e dos interesses a ser tutelados, fragmentação esta que é
proporcional ao número dos centros de poder, mais ou
menos institucionalizados, entre os quais são
repartidas, efetivamente, autoridade e influência num
determinado sistema político: chefe do Estado,
Governo, Parlamento, partidos, sindicatos, corpo
eleitoral, entidades territoriais e funcionais,
administrações
públicas.
Forças
Armadas,
organizações econômicas. Igrejas e similares, com uma
tendência para uma subdivisão atomística nos
ordenamentos democráticos pluralísticos e uma
tendência à concentração na síntese partido-Governo, a
transformar-se em sistemas autocráticos de um único
partido. Um papel particular cabe à Defesa da
ideologia, suporte e componente necessário do poder
junto ao sistema das instituições do Estado, elemento
motor do ordenamento, tanto de sua base social como
da organização de Governo, a qual é, por vezes,
considerada como sustentáculo organizativo desta
mesma ideologia.
Ideologias e instituições ficam assim intimamente
ligadas, enquanto o sistema político, para
DEFESA
315
visa metas expansionistas, como no caso do antigo
ordenamento estatutário fascista.
Estas diretrizes colocam-se no quadro das tentativas
conduzidas a nível de convenções internacionais e a
nível constitucional com o fim de limitar o recurso à
violência bélica nas relações internacionais. Exemplo:
Pacto da Sociedade das Nações (1920), Pacto de Paris
(1928), Carta das Nações Unidas (1945) e outros
numerosos textos constitucionais.
Os princípios de organização são similares aos
seguidos nos ordenamentos democráticos com
separação de poderes. Quanto à tutela da segurança
predomina o princípio de separação, considerado uma
segura garantia das liberdades constitucionais:
separação entre órgãos titulares dos poderes diretivos,
separação entre os órgãos diretivos e os órgãos
técnico-executivos, separação mesmo entre os órgãos
técnico-executivos.
A organização técnica das Forças Armadas destinadas
à Defesa deve considerar-se absolutamente isenta de
atributos de orientação política, tanto nas suas linhas
gerais, quanto em se tratando de ,matéria específica que
esteja ligada à tutela da segurança. Tradicionalmente,
expressa-se tudo isso no princípio da subordinação do
chamado poder militar ao poder civil ou político,
expressão com a qual se afirma que somente órgãos
estranhos à organização militar podem ser titulares de
poderes de direção política, enquanto os órgãos
militares assumem uma posição subordinada de
consultoria técnica de preparação e de mera execução
V. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DEFESA NO física.
Da subordinação militar ao poder civil derivam
ORDENAMENTO ITALIANO. — A Constituição italiana
vigente refere-se de forma marginal aos problemas da outros princípios organizadores:
Defesa. É, todavia, possível enunciar seus princípios a) o comando presidencial das Forças' Armadas (art.
essenciais considerando algumas disposições formais e 87, 9.° c. da Constituição italiana) que não comporta,
a realidade política na qual se enquadra o sistema no sentido técnico, o comando hierárquico das Forças
italiano. Também, em matéria de segurança, é útil Armadas pelo Chefe do Estado, mas que pretende
contrapor os princípios constitucionais básicos — que afirmar a subordinação das Forças Armadas ao poder
nós distinguimos como princípios de ação e princípios civil, com a escolha do órgão que é investido de uma
de organização — (aspecto estático) aos objetivos representatividade bem mais ampla do que a
políticos seguidos pelos órgãos constitucionais, quando governativa, goza de uma sólida estabilidade e deveria
fazem funcionar os primeiros (aspecto dinâmico). estar acima dos interesses contingentes da maioria;
Quanto aos primeiros, notamos que o princípio de ação b) a total isenção política das Forças Armadas que
mais importante, no atual ordenamento, é o princípio comporta o afastamento do seu emprego para fins
defensivo, homologado na primeira parte do art. 11 da partidários e a proibição das mesmas de exercerem
Constituição italiana: "A Itália repudia a guerra como influência na vida política, enquanto "corpo
instrumento de ofensa à liberdade de outros povos e organizado". A isenção pode comportar também a
como
meio
de
solução
das controvérsias interdição de inscrição em partidos, conforme previsto
internacionais". Assim foi fixada, de maneira no art. 92, 3.º c. da Constituição italiana, para militares
constitucional, uma diretriz vinculante para os órgãos de carreira em serviço ativo e para funcionários e
constitucionais em relação às suas futuras escolhas de agentes da polícia;
diretrizes de segurança, contrastando com os Estados
que adotavam ou ainda adotam, o princípio agressivo, c) a escolha, por parte do poder político civil, dos
princípios reguladores da organização militar
que
sua maior eficácia, institucionaliza a própria ideologia.
Com esta perspectiva, a Defesa do poder não
comportará a simples defesa das instituições', mas
também a Defesa contextual e implícita da ideologia
que as caracteriza.
Resumindo as considerações desenvolvidas até aqui,
a Defesa tem como objetivo primordial a segurança de
um ordenamento que se identifica com as próprias
instituições políticas. Estas são freqüentemente
expostas a riscos de agressão, provenientes do exterior
e do interior, conforme as mais variadas modalidades.
O uso dos aparelhos militares e o emprego da força
armada constitui apenas um dos perfis das
modalidades defensivas, na medida em que se recorre,
de forma complementar ou substitutiva, a muitas
outras administrações públicas. Além disso, é preciso
acentuar que, onde se identifiquem forças políticas que
caracterizem um ordenamento como último objetivo da
Defesa, existem muitos outros perfis da tutela da
segurança.
É conveniente não descuidar os expedientes
mediante os quais distribui-se o poder entre as várias
instâncias, são previstos órgãos de garantia
constitucional, regulam-se mecanismos de revisão,
instituem-se aparelhos administrativos e de jurisdição,
dita-se uma normativa também penal de tutela
específica, estipulam-se alianças defensivas e pactos
de segurança coletiva, atuam-se e afirmam-se regimes
de exceção visando à tutela coletiva em caso de crise.
316
DEFESA
que comporta a subtração do ordenamento das Forças
Armadas isoladas do ordenamento geral do Estado,
figura no art. 52 da Constituição que estabelece: "o
ordenamento das Forças Armadas deve adaptar-se ao
espírito democrático da República", isto é, aos
princípios constitucionais do Estado, e a lei de 11 de
julho de 1978, n.° 382, estabelece uma série de
princípios que condicionam o ordenamento militar
interno, afirmando sua subordinação à Constituição e
à lei;
d) a intervenção da força armada unicamente a
pedido do poder político e não de espontânea iniciativa
dos órgãos militares, tanto para as relações
internacionais, como para as questões internas (neste
último caso, v. R.D. 3 de março de 1934, n.° 183, art.
19, 6.° c).
A organização técnico-executiva que constitui a força
armada do Estado pode ser somente estatal, enquanto o
Estado tem o monopólio dos poderes de coerção, seja
no plano interno, seja no internacional. Disto resulta a
proibição de organização de milícias de partido — art.
18, 2.º c. da Constituição que interdita as associações
que perseguem finalidades políticas "mediante
organizações de caráter militar" — e a de milícias
locais estritamente conexa com o caráter unitário do
Estado (v. para esse caráter o art. 5.°, 1." parte da
Constituição).
A força armada estatal é subdividida em várias
seções a fim de evitar os riscos de uma concentração
da disponibilidade desta a favor de um único centro
de comando.
Temos uma primeira divisão entre força
prevalentemente: destinada à Defesa nas relações
internacionais (Forças Armadas no sentido estrito) e
força armada destinada à tutela da segurança das
relações internas (outros corpos armados, por exemplo,
as forças de polícia, até à entrada em vigor da Lei n.°
121, de l.°-4-1981).
As Forças Armadas se subdividem por sua vez em
três Armas: Exército, Marinha e Aeronáutica militar. As
funções de polícia são exercidas pelos guardas de
segurança pública — que dependem do Ministro do
Interior — e também podem depender das Forças
Armadas — pelos Carabineiros — que dependem do
Ministro da Defesa, em paridade com os que
pertencem às três Armas, mas que ficam à disposição
do Ministro do Interior.
O delicado setor que compreende os serviços
secretos, destinados a velar pela segurança interna e
externa, foi reordenado pela Lei n.° 801, de 24 de
outubro de 1977, que prevê um serviço de informações
e de segurança militar, dependente do Ministério da
Defesa, e um serviço de informações e de segurança
democrática, dependente do Ministério do Interior,
ambos subordinados, no entanto, com outros órgãos
novos de
coordenação interministerial, às diretrizes do
Presidente do Conselho.
Os que pertencem às Forças Armadas estão sujeitos
à disciplina militar, conjunto de regras não facilmente
harmonizáveis com os preceitos constitucionais em
matéria de liberdades fundamentais, tradicionalmente
confiado ao poder de regulamentação do Governo,
mas hoje objeto da Lei n.° 382, de 11 de julho de
1978, que estabeleceu uma série de princípios
fundamentais relativos ao estado jurídico dos militares
e reconheceu, entre outras coisas, certas formas de
representação aos membros das Forças Armadas
(D.P.R. n.° 691, de 4 de novembro de 1979). Eles
estão, além disso, sujeitos à jurisdição militar,
considerada como jurisdição penal especial (art. 103,
3.º c. da Constituição).
A participação dos cidadãos na defesa é obrigatória
e traz consigo a prestação do serviço militar (art. 52,
1.º e 2.º c. da Constituição). Esta obrigação está hoje
atenuada pelo reconhecimento da objeção de
consciência (Lei n.° 772, de 15 de dezembro de 1972)
e pela disciplina que regula o voluntariado civil no
quadro da cooperação com os países em vias de
desenvolvimento e que pode, dentro de determinadas
condições, permitir a dispensa do serviço militar (Lei
n.° 38, de 19 de janeiro de 1979). Junto com a massa
dos que prestam serviço obrigatório por um breve
período, existem elementos profissionais que prestam,
de modo continuado e, em regra, permanente, um
serviço voluntário, destinado especialmente a
assegurar a existência dos quadros organizativos.
VI. O MINISTÉRIO E O CONSELHO SUPREMO
DA DEFESA. — As Forças Armadas dependem do
Ministério da Defesa, que, como parte do Governo, é
politicamente responsável perante o Parlamento, o qual,
de acordo com a Constituição, também nesse setor
desenvolve uma orientação e controle próprias,
conquanto no passado quase sempre nominais. As
citadas leis n.° 801, de 1977, e n.° 382, de 1978,
parecem denotar a tendência a valorizar a reserva de
lei parlamentar no delicado setor da tutela da segurança
por meio da organização militar — afirmando a
preferência da lei parlamentar aos atos normativos do
Governo — ao mesmo tempo que reforçam as formas
de controle político do Parlamento sobre as orientações
postas em ato pelo Governo.
O Ministério da Defesa foi criado após o segundo
conflito mundial unificando os Ministérios prepostos
às três Armas e assegurando a unidade das normas
político-administrativas, antes carentes de melhor
organização. A reorganização dos vários setores foi
realizada recentemente através
DEFESA
de uma série de decretos em 1965, adotados em virtude
de uma delegação legislativa.
A organização do Ministério comporta o habitual
departamento de Direção Geral, mas existem também
órgãos centrais, subordinados a um secretariado geral,
que depende diretamente do ministro. Estes são os
chamados órgãos de coordenação e direção das
atividades das chefias. O órgão de consultoria geral —
militar, técnica e administrativa — do Ministério é o
Conselho Superior das Forças Armadas, articulado
em três seções, uma para cada Arma (Lei n.° 167 de 91-1951). As máximas responsabilidades técnicooperativas são confiadas ao Estado-Maior da Defesa,
do qual dependem os Estados-maiores das três Armas.
O Chefe do Estado-Maior da Defesa é o outro
consultor técnico-militar do ministro, mas ele tem
também importantes poderes de iniciativa em matéria
organizativa e estratégica. Suas atribuições o colocam
numa posição organizativa proeminente em relação
aos Chefes de Estado-maior das três Armas, mesmo
quando se aplica a recente lei do Comitê dos Chefes de
Estado-maior, que reconhece a estes últimos
particulares atribuições consultivas (Lei n.° 200 de 83-1968).
O Conselho Supremo de Defesa, previsto pela
Constituição (art. 87, 9.º c.) é independente da
organização do Ministério e é regulado por uma lei de
1950, provavelmente inconstitucional. Realmente,
enquanto a Constituição limita-se a prever que o
Conselho deve ser presidido pelo Presidente da
República, a lei atribui ao Conselho competências de
notável relevo enquanto "examina os problemas gerais
políticos e técnicos relativos à Defesa nacional e
determina os critérios e fixa as normas para a
organização e a coordenação das atividades que lhe
dizem respeito". Trata-se de uma disposição que
pareceria determinar atribuições de normas políticas
quanto à Defesa, com uma evidente incongruência com
relação aos princípios gerais fixados pela Constituição
e que prevêem implicitamente o Governo como autor e
responsável também pelas normas em matéria
defensiva.
Estes princípios contrastam com a participação do
Chefe do Estado e do Chefe do Estado-maior da
Defesa, enquanto partes do colégio, na formação da
escolha de normas.
Particularmente complexa é a posição que se quer
reconhecer ao Chefe do Estado, enquanto se pretende
dar maior relevo à atribuição constitucional de alto
comando para justificar os poderes anômalos visando
normas que derivariam da presidência do Conselho. É,
todavia, certo que o reconhecido comando do Chefe do
Estado não pode ser nem comando militar, em senso
técnico — de
317
competência dos órgãos de cúpula das Forças
Armadas — nem poder de emanar normas políticas
para a Defesa — enquanto em contraste com os
princípios do Governo parlamentar.
Em matéria de Defesa, cabem ao Chefe do Estado
os poderes normais de moderação e equilíbrio unidos
aos de garantia constitucional que lhe são
reconhecidos em todos os setores nos quais operam os
poderes públicos.
A atribuição de comando, que textualmente lembra
o conteúdo de uma superada prerrogativa régia, serve
para individualizar o poder político civil do Estado,
entendido globalmente, enquanto considerado acima
do chamado poder militar.
É notório que, tradicionalmente, o Chefe do Estado
é parte do poder executivo, do qual dependem as
Forças Armadas, mas é excluído da área da maioria
governativa e não é envolvido nos problemas
contingentes das normas desta. Também não sofre da
instabilidade típica do Governo e se baseia numa
ampla maioria política que o aproxima de uma vasta
área da comunidade nacional, transformando-o em
representante único da sua unidade. Estes elementos e
sua pretensa imparcialidade parecem ter aconselhado a
maioria a personalizar nele o princípio da supremacia
dos poderes constitucionais do Estado sobre a
organização das Forças Armadas.
Estas considerações deveriam permitir uma certa
propensão para reconhecer a inconstitucionalidade da
atribuição de poderes normativos ao Conselho, mesmo
sabendo que muitos, ignorando o texto da lei, pensam
que o Conselho seja um órgão de mera consultoria e
coordenação.
Do ponto de vista prático, muitas das questões que
se levantam acerca dos poderes do Conselho e, muito
especialmente, acerca dos poderes presidenciais, têm
pouca
importância,
enquanto
as
escolhas
determinantes em matéria de defesa são atributos
específicos da NATO, segundo as orientações
sugeridas por um dos Estados-membros da
Organização que, dispondo de arsenais nucleares,
desempenha o papel de potência hegemônica. Neste
quadro, as normas nacionais — visto que a maioria
delegou esses poderes à NATO, através de lei que
autoriza e ratifica a execução do tratado do Atlântico
Norte, a parte substancial da soberania nacional
quanto à segurança (art. 11 da Constituição) —
interessam, especialmente, às questões organizativas
de atuação, de escolhas adotadas à margem do
ordenamento italiano. Deste modo, o Ministério da
Defesa, através dos Estados-maiores, transformou-se
no verdadeiro centro de conexão com o sistema
organizativo de defesa, no qual o Estado participa.
Neste caso parece irrelevante o papel dos órgãos
constitucionais do país e nulo o papel do Conselho
Supremo.
318
DEMAGOGIA
BIBLIOGRAFIA. — AUT. VÁR.,, Forze Armate e democrazia, in
"Città e Regione", 2,2, 1976; V. BACHELET, Disciplina militare e
ordinamento giuridico statale. Giuffrè, Milano 1962; S.
CARBONARO. Le responsabilità militari nell'ordinamenio
costituzionale italiano. Barbera, Firenze 1957; G. FERRARI,
Guerra (Stato di) in Enciclopedia del diritto. Giuffrè, Milano
1970, vol. XIX; G. GIACOBBE, Forze Armate e diritto di
associazione, "Diritto e Società", 2, 1979; P. G. GRASSO, I
problemi giuridici dello "stato d'assedio" nell'ordinamento
italiano, Studi sulle scienze giuridiche e sociali. Università di
Pavia, Pavia 1959, vol. 37; S. LABRIOLA, Il Consiglio Supremo di
Difesa nell'ordinamento costituzionale italiano, Giuffrè, Milano
1973; G. LANDI, Forze Armate. in Enciclopedia del diritto,
Giuffrè, Milano 1969, vol. XVIII; G. MOTZO, Assedio (stato di)
in Enciclopedia del diritto, Giuffrè, Milano 1958, III; Id.,
Comando Forze Armate in Enciclopedia del diritto, Giuffrè,
Milano 1960, vol. VII; Id., Consiglio Supremo di Difesa, in
Enciclopedia del diritto. Giuffrè, Milano 1961, vol. VIII; F.
PIERANDREI, Le Forze Armate in Italia, in Annali del Seminario
Giuridico della R. Università di Palermo. Palermo 1944, vol.
XIX; F. PINTO, Forze Armate e Costituzione, Marsilio, Padova
1979; A. PREDIERI. La difesa e le Forze Armate, in Commentario
Sistematico alla Costituzione italiana. Barbera, Firenze 1950, I;
Id., Il Consiglio Supremo di Difesa e i poteri del Presidente della
Republica, in Studi sulla Costituzione, Giuffrè, Milano 1958,
III; G. DE VERGOTTINI, Indirizzo político della difesa e sistema
costituzionale. Giuffrè, Milano 1971; Id., La modificazione delle
competenze costituzionali in tema di difesa. in "Rivista
trimestrale di diritto pubblico", XXIV, 2. 1974; Id., Art. 87,
IX comma (prima parte) in G. Branca (ao cuidado de)
Commentario della Costituzione. Il Presidente della Repubblica.
arts. 83-87, ao cuidado de G. BRANCA, Zanichelli, Bologna
1978.
[GIUSEPPE DEVERGOTTINI]
Demagogia.
A Demagogia não é propriamente uma forma de
Governo e não constitui um regime político, é, porém,
uma praxe política que se apóia na base das massas,
secundando e estimulando suas aspirações irracionais e
elementares, desviando-a da sua real e consciente
participação ativa na vida política. Este processo
desenvolve-se mediante fáceis promessas impossíveis
de ser mantidas, que tendem a indicar como os
interesses corporativos da massa popular ou da parte
mais forte e preponderante dela coincidem fora de toda
lógica de bom Governo, com os da comunidade
nacional, tomada em seu conjunto. Assim, era
chamado demagogo (de dhmoz, povo e agw, guia),
na antiga Grécia, aquele que, sendo homem de Estado
ou hábil orador, sabia conduzir o povo. É
com Aristóteles que o termo adquire um significado
negativo em teoria política.
A ação demagógica pode desenvolver-se de duas
maneiras, mesmo considerando bastante árduo
distinguir de modo claro e preciso os momentos quase
sempre concomitantes das duas ações. Um tipo de
ação é o utilizado por alguém que, explorando
particulares situações histórico-políticas, dirigindo-as
para os próprios fins, incita e guia as massas
populares, subjugando-as graças a particulares
capacidades oratórias e psicológicas, freqüentemente
instintivas, que lhe permitem interpretar os humores e
as exigências mais imediatas, juntando a essas
qualidades dotes carismáticos incomuns.
No desenvolvimento deste tipo de política não se
levam em consideração, a não ser numa forma
extremamente superficial e grosseira, os reais
interesses do país e os resultados finais a que pode
levar no tempo a ação demagógica, dirigida antes de
tudo para a conquista e manutenção de um poder
pessoal ou de um grupo.
Com o termo Demagogia, podemos também nos
referir a uma situação política correspondente àquela
descrita, mas na qual dominam as massas, que agitam
a praça pública e que se impõem sobre o legítimo
poder constituído e sobre a lei, fazendo valer suas
próprias solicitações imediatas e incontroláveis. Neste
caso, Polibio fala mais propriamente de oclocracia
(Historiae, VI, 3,5-12; 4,1-11).
Na história das doutrinas políticas se faz necessário
remontar a Aristóteles, que primeiro individualizou e
definiu a Demagogia indicando-a como aquela prática
corrupta ou degenerada da politeia, pela qual
se chega a instituir um governo despótico das classes
inferiores ou de muitos que governam em nome da
multidão (Política, IV, 5, 1292, a). Quando, porém,
nos Governos populares a lei está subordinada ao
arbítrio de muitos, surgem os demagogos, que
abrandando e adulando as massas, exasperando seus
sentimentos destruidores, distraindo-as do seu
compromisso político, acabam indicando os opositores
do regime despótico instaurado como inimigos do povo
e da pátria. Conseguem assim consolidar o próprio
poder com a eliminação de toda e qualquer oposição.
Aristóteles define, portanto, o demagogo como um
"adulador do povo" (Política, V, 11, 1313 b).
A Demagogia, segundo Platão (Rep., 562-64) e
Aristóteles (Pol. 1304 b-;305 a), pode determinar,
como crise da democracia extrema, duas diferentes
situações políticas que levam sempre à instauração de
um regime autoritário oligárquico ou tirânico. O
primeiro surge de uma exasperação do clima
anárquico ao qual os demagogos levaram
DEMOCRACIA
o Estado, provocando uma reação das pessoas
influentes que então derrubam a maioria, quase
sempre com apoio militar e, muitas vezes, com apoio
externo, instaurando um Governo forte. O segundo
nasce, e é caso bem mais freqüente, como última e
lógica conseqüência da prática demagógica, eliminando
toda a oposição. Nestas condições, os demagogos
arrogam-se o direito de interpretar os interesses das
massas, chamando a si todo o poder e a representação
das massas, instaurando uma tirania ou ditadura
pessoal.
O
fenômeno
da
Demagogia
acentuou-se
particularmente no nosso século com o advento e o
desenvolvimento da sociedade industrial e com o
conseqüente aparecimento na cena política do papel
determinante das massas e a crise das democracias
liberais.
A era tecnológica, tendendo à massificação do
homem e à sua transformação em máquina, fez com
que este tendesse facilmente a desorientar-se e a
perder a própria individualidade. O homem sente-se de
tal maneira isolado que é levado a buscar refúgio
contra a própria angústia e insegurança que o aflige.
Passa então a adequar seu comportamento social e
político ao da massa. Trata-se, na realidade, de um
círculo fechado, do qual dificilmente ele pode sair
porque, tanto externa como internamente, existem no
indivíduo certos condicionamentos que objetivamente
impedem qualquer outra escolha.
Diante deste quadro, a instrumentalização das
massas, graças às novas técnicas de persuasão e de
manipulação das consciências, torna tudo fácil. Assim
sendo, através de ligações que, por merecimento
sobretudo da psicologia contemporânea se realizaram
entre psicanálise e comportamento político, o termo
Demagogia carregou-se de novos significados e
enriqueceu-se de novas conotações. Assim, veio à luz a
existência de relações sadomasoquistas que presidiriam
a ligação entre demagogo e massa, ligações que
tenderiam a ajudar o homem-massa a fugir da solidão,
da impotência, da alienação e da apatia política, às
quais está sujeito na sociedade industrial
contemporânea. O caráter autoritário, mesmo não
explícito, que como fundo vincula ambos, solidifica
esta correlação, tanto que, da parte da massa, verificase uma real identificação com o líder em momentos de
exaltação individual e coletiva e, conseqüentemente,
uma exagerada aceitação e submissão. Os fenômenos
de fanática exaltação em relação aos campeões do
esporte ou aos personagens do mundo do espetáculo,
mesmo se nos levam até à área da identificação com o
sucesso
do
astro,
provocam
mecanismos
substancialmente parecidos aos que presidem a relação
líder-massa.
319
Hoje é possível falar de Demagogia moderna em
contraposição à demagogia clássica, não somente
como possível momento detonador de um processo
revolucionário e, portanto, como elemento constitutivo
de uma fase pré-revolucionária (v. REVOLUÇÃO), mas
também como comportamento de um líder político que
não precisa de levar necessariamente as massas até a
revolução, mas consegue sujeitá-las aos próprios fins
pessoais até levar a cabo, depois de obter seu largo
consenso, não mais um processo de democratização
ou de subversão do sistema sociopolítico, mas a
instauração de um regime autoritário, do qual o
demagogo é o incontestável e despótico chefe
(Führer). Ele pode também chegar a um acordo com
as autoridades e as instituições existentes, sempre que
estas reconheçam nele uma função carismática
insubstituível. Assim sendo, os mecanismos
repressivos acentuam, no lugar de diminuir, as
características autoritárias do Governo e da sociedade,
impedindo a tomada de consciência libertadora da
massa popular.
BIBLIOGRAFIA. — G. FASSÒ, La democrazia in Grecia
(1959), Il Mulino, Bologna 19671.
[GIAMPAOLO ZUCCHINI]
Democracia.
I. NA TEORIA DA DEMOCRACIA CONFLUEM TRÊS
TRADIÇÕES HISTÓRICAS. — Na teoria contemporânea da
Democracia confluem três grandes tradições do
pensamento político: a) a teoria clássica, divulgada
como teoria aristotélica, das três formas de Governo,
segundo a qual a Democracia, como Governo do povo,
de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que
gozam dos direitos de cidadania, se distingue da
monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia,
como Governo de poucos; b) a teoria medieval, de
origem "romana, apoiada na soberania popular, na
base da qual há a contraposição de uma concepção
ascendente a uma concepção descendente da soberania
conforme o poder supremo deriva do povo e se torna
representativo ou deriva do príncipe e se transmite por
delegação do superior para o inferior; c) a teoria
moderna, conhecida como teoria de Maquiavel,
nascida com o Estado moderno na forma das grandes
monarquias, segundo a qual as formas históricas de
Governo são essencialmente duas: a monarquia e a
república, e a antiga Democracia nada mais é que uma
forma de república (a outra é a aristocracia), onde se
origina
320
DEMOCRACIA
o intercâmbio característico do período prérevolucionário entre ideais democráticos e ideais
republicanos e o Governo genuinamente popular é
chamado, em vez de Democracia, de república. O
problema da Democracia, das suas características, de
sua importância ou desimportância é, como se vê,
antigo. Tão antigo quanto a reflexão sobre as coisas da
política, tendo sido reproposto e reformulado em todas
as épocas. De tal maneira isto é verdade, que um
exame do debate contemporâneo em torno do conceito
e do valor da Democracia não pode prescindir de uma
referência, ainda que rápida, à tradição.
II. A TRADIÇÃO ARISTOTÉLICA DAS TRÊS
FORMAS DE GOVERNO. — Uma das, primeiras
disputas de que se tem notícia em torno das três
formas de Governo é narrada por Heródoto (III, 8083). Otane, Megabizo e Dario discutem sobre a futura
forma de Governo da Pérsia. Enquanto Megabizo
defende a aristocracia e Dario a monarquia, Otane
toma a defesa do Governo popular, que segundo o
antigo uso grego chama de Isonomia, ou igualdade das
leis, ou igualdade diante da lei, com o argumento que
ainda hoje os defensores da Democracia têm como
fundamental: "Como poderia a monarquia ser coisa
perfeita, se lhe é lícito fazer tudo o que deseja sem o
dever de prestar contas?" Igualmente clássico é o
argumento com o qual o fautor da oligarquia e, em seu
encalço o fautor da monarquia, condenam o Governo
democrático: "Não há coisa... mais estulta e mais
insolente que uma multidão incapaz". Como pode
governar bem "aquele que não recebeu instrução nem
conheceu nada de bom e de conveniente e que
desequilibra os negócios públicos intrometendo-se sem
discernimento, semelhante a uma torrente caudalosa"?
Das cinco formas de Governo descritas por Platão
na República, aristocracia, timocracia, oligarquia,
Democracia e tirania, só uma delas, a aristocracia, é
boa. Da Democracia se diz que "nasce quando os
pobres, após haverem conquistado a vitória, matam
alguns adversários, mandam outros para o exílio e
dividem com os remanescentes, em condições
paritárias, o Governo e os cargos públicos, sendo estes
determinados, na maioria das vezes, pelo sorteio"
(557a) e é caracterizada pela "licença". O mesmo
Platão, além disso, reproduz no Político a tradicional
tripartição das formas puras e das formas degeneradas
e a Democracia é aí definida como o "Governo do
número" (29ld), "Governo de muitos" (302c) e
"Governo da multidão" (303a). Distinguindo as
formas boas das formas más de Governo com base no
critério da legalidade e da ilegalidade, a Democracia é,
nesse livro,
considerada a menos boa das formas boas e a menos
má das formas más de Governo: "Sob todo o aspecto é
fraca e não traz nem muito benefício nem muito dano,
se a compararmos com outras formas, porque nela
estão pulverizados os poderes em pequenas frações,
entre muitos. Por isso, de todas as formas legais, é esta
a mais infeliz, enquanto que entre todas as que são
contra a lei é a melhor. Se todas forem desenfreadas, é
na Democracia que há mais vantagem para viver; por
outro lado, se todas forem bem organizadas, é nela
que há menor vantagem para viver" (303 a e b). Nas
Leis, na tripartição clássica entra a bipartição (que
depois de Maquiavel nos habituamos a chamar de
moderna) entre as duas "matrizes das formas de
Governo", que são a monarquia cujo protótipo é o
Estado persa e a democracia cujo protótipo é a cidade
de Atenas. Ambas são, se bem que por razões opostas,
más; uma, por excesso de autoridade e outra pelo
excesso de liberdade. Até na variedade das
classificações, a Democracia, uma vez mais, é
objurgada como o regime da "liberdade bem
desenfreada" (7016).
Na tipologia aristotélica, que distingue três formas
puras e três formas corruptas, conforme o detentor do
poder governa no interesse geral ou no interesse
próprio, o "Governo da maioria" ou "da multidão",
distinto do Governo de um só ou do de poucos, é
chamado "politia", enquanto o nome de Democracia é
atribuído à forma corrupta, sendo a mesma definida
como o "Governo de vantagem para o pobre" e
contraposta ao "Governo de vantagem para o
monarca" (tirano) e ao "Governo de vantagem para os
ricos" (oligarquia). A forma de Governo que, na
tradição pós-aristotélica, se torna o Governo do povo
ou de todos os cidadãos ou da maioria deles é no
tratado aristotélico governo de maioria, somente
enquanto Governo de pobres e é portanto Governo de
uma parte contra a outra parte, embora da parte
geralmente mais numerosa. Da Democracia entendida
em sentido mais amplo, Aristóteles subdistingue cinco
formas: 1) ricos e pobres participam do Governo em
condições paritárias. A maioria é popular unicamente
porque a classe popular é mais numerosa. 2) Os cargos
públicos são distribuídos com base num censo muito
baixo. 3) São admitidos aos cargos públicos todos os
cidadãos entre os quais os que foram privados de
direitos civis após processo judicial. 4) São admitidos
aos cargos públicos todos os cidadãos sem exceção. 5)
Quaisquer que sejam os direitos políticos, soberana é a
massa e não a lei. Este último caso é o da dominação
dos demagogos ou seja, a verdadeira forma corrupta
do Governo popular.
Salvo poucas exceções, a tripartição aristotélica foi
acolhida em toda a tradição do pensamento
DEMOCRACIA
ocidental, pelo menos até Hegel, ao qual chega quase
extenuada, e tornou-se um dos lugares comuns da
tratadística política. Para assinalar algumas etapas
deste longo percurso, recordamos Marsílio de Pádua
(Defensor pacis, I, 8), São Tomás de Aquino (Summa
Theologica, I-II, qu. 105, art. 1); Bodin (De la
repúblique, II, 1), Hobbes (Decive, cap. VII,
Leviathan, cap. XIX), Locke (Segundo tratado sobre o
Governo, cap. X), Rousseau (Contrato social, III, 4; 5,
6), Kant (Metafísica dos costumes. Doutrina do
direito, § 51), Hegel (Linhas fundamentais de filosofia
do direito, § 273). Não faltaram algumas variações,
entre as quais se destacam três principais: a) a
distinção entre formas de Estado e formas de
Governo, elaborada por Bodin, com base na distinção
entre a titularidade e o exercício da soberania, com o
que se pode ter uma monarquia, um Estado em que o
poder soberano pertence ao rei, governado
democraticamente, pelo fato de as magistraturas serem
atribuídas pelo rei a todos indistintamente, ou uma
democracia aristocrática, como foi Roma durante um
certo período de sua história, ou uma aristocracia
democrática, e assim por diante; b) a supressão da
distinção entre formas puras e formas corruptas, feita
por Hobbes, com base no princípio de que para um
poder soberano absoluto não se pode estabelecer
nenhum critério para distinguir o uso do abuso de
poder, e portanto o Governo bom do Governo mau; c)
a degradação introduzida por Rousseau, das três
formas de Governo nos três modos de exercício do
poder executivo, ficando firme o princípio de que o
poder legislativo, isto é, o poder que caracteriza a
soberania pertence ao povo, cuja reunião num corpo
político através do contrato social Rousseau chama de
república, não de Democracia (que é apenas uma das
formas com que se pode organizar o poder executivo).
III. A TRADIÇÃO ROMANO-MEDIEVAL DA SOBERANIA
— Os juristas medievais elaboraram a teoria
da soberania popular, partindo de algumas conhecidas
passagens do Digesto, tiradas principalmente de
Ulpiano (Democracia, I, 4, 1), onde depois da
celebérrima afirmação quod principi placuit, legis
habet vigorem, se diz que o príncipe tem autoridade
porque o povo lha deu (utpote cum lege regia, quae de
imperio eius lata est, populus et et in eum omne suum
imperium et potestatem conferat), e o de Juliano
(Democracia I,3, 32), onde, a propósito do costume,
como fonte de direito, se diz que o povo cria o direito
não apenas através do voto, dando vida às leis, mas
também rebus ipsis et factis, dando vida aos costumes.
O primeiro passo serviu para demonstrar que, fosse
qual fosse o efetivo detentor do
POPULAR.
321
poder soberano, a fonte originária deste poder seria
sempre o povo e abriu o caminho para a distinção
entre a titularidade e o exercício do poder, que teria
permitido, no decorrer da longa história do Estado
democrático, salvar o princípio democrático não
obstante a sua corrupção prática. O segundo passo
permitiu verificar que, nas comunidades onde o povo
transferiu para outros o poder originário de fazer as
leis, sempre conservara, apesar de tudo, o poder de
criar direito através da tradição. Com respeito a este
segundo tema, a tese que fautores e adversários da
soberania popular debateram era se o costume tinha
ou não força para ab-rogar a lei (como é sabido, os
textos de Justiniano sobre este ponto são
contraditórios). Por outras palavras, se o direito
derivado diretamente do povo tinha maior força ou
menor força que o direito emanado do imperador. Em
relação ao primeiro tema, a disputa entre defensores e
opositores da soberania popular se concentrou sobre o
significado que deve ser dado à passagem do poder do
povo ao imperador. Tratava-se, por outras palavras, de
estabelecer se esta passagem deve ser considerada uma
transferência definitiva, tanto do exercício como da
titularidade (uma translatio imperii, no verdadeiro
sentido) ou uma concessão temporária e revogável em
princípio, com a conseqüência de que a titularidade do
poder teria permanecido no povo e ao príncipe seria
confiado apenas o exercício do poder (uma concessio
imperii pura e simples). Entre os antigos glosadores e
mais conhecidos fautores da tese concessio está Azo,
segundo o qual o povo jamais abdicou inteiramente de
seu poder. Basta lembrar que, depois de tê-lo
transferido, o revogou em várias ocasiões, afirmando
Hugolino, abertamente, que o povo jamais transferiu o
poder ao imperador de modo tal que não ficasse algum
vestígio junto de si, porque mais do que tudo
constituiu o imperador como seu procurador.
Numa das obras fundamentais do pensamento
político medieval, certamente a mais rica de esquemas
destinados a serem desenvolvidos pelo pensamento
político, moderno, o Defensor pacis de Marsílio de
Pádua, se afirma e demonstra abertamente, com vários
argumentos, o princípio de que o poder de fazer leis,
em que se apóia o poder soberano, diz respeito
unicamente ao povo, ou à sua parte mais poderosa
(valentior pars), o qual atribui a outros não mais que o
poder executivo, isto é, o poder de governar no âmbito
das leis. De um lado, portanto "o poder efetivo de
instituir ou eleger um Governo diz respeito ao
legislador ou a todo o corpo dos cidadãos, assim como
lhe diz respeito o poder de fazer leis... Da mesma forma
diz respeito ao legislador o poder de corrigir e até de
depor o governante, onde
322
DEMOCRACIA
houver vantagem comum para isso" (I, 15, 2). Por
outro lado, enquanto a causa prima do Estado é o
legislador, o governante (a pars principans) é a causa
secundaria ou, segundo outras expressões mais cheias,
"é a causa instrumental e executiva", no sentido de que
quem governa age pela "autoridade que lhe foi
outorgada para tal fim pelo legislador e segundo a
forma que este lhe indicar" (I, 15, 4). Esta teoria,
assim já tão bem elaborada por Marsílio, segundo o
qual, dos dois poderes fundamentais do Estado — o
legislativo e o executivo —, o primeiro enquanto
pertença exclusiva do povo é o poder principal,
enquanto que o segundo, que o povo delega a outros
sob forma de mandato revogável, é poder derivado, e
um dos pontos cardeais das teorias políticas dos
escritores dos séculos XVII e XVIII. Estes são
considerados com razão os pais da Democracia
moderna. Há, apesar de tudo, entre Locke e Rousseau,
uma diferença essencial na maneira de conceber o
poder legislativo: para Locke, este deve ser exercido
por representantes, enquanto que para Rousseau deve
ser assumido diretamente pelos cidadãos.
A doutrina da soberania popular não deve ser
confundida com a doutrina contratualista (v.
CONTRATUALISMO), seja
porque
a
doutrina
contratualista nem sempre teve êxitos democráticos
(pense-se em Hobbes, para dar um exemplo comum,
mas não se esqueça Kant que é contratualista mas não
democrático), seja porque muitas teorias democráticas,
sobretudo na medida em que se caminha para a Idade
Contemporânea, prescindem completamente da
hipótese contratualista. Do mesmo modo que nem
todo o CONTRATUALISMO é democrático, assim
nem todo o democratismo é contratualista. Isto é certo
na medida em que o CONTRATUALISMO
representa, em algumas das suas mais conhecidas
expressões, um dos grandes filões do pensamento
democrático moderno. A teoria da soberania popular e
a teoria do contrato social estão estreitamente ligados,
por duas razões, pelo menos: o populus concebido
como universitas civium é ele mesmo, na sua origem,
o produto de um acordo (o chamado pactum
societatis); uma vez constituído o povo, a instituição
do Governo, quaisquer que sejam as modalidades da
transmissão do poder, total ou parcial, definitivo ou
temporário, irrevogável ou revogável, acontece na
forma própria de contrato (o chamado pactum
subjectionis). Através da teoria da soberania popular, a
teoria do CONTRATUALISMO entra de pleno direito
na tradição do pensamento democrático moderno e
torna-se um dos momentos decisivos para a fundação
da teoria moderna da democracia.
IV. A TRADIÇÃO REPUBLICANA MODERNA.
Malgrado o pensamento grego ter dado preferência à
teoria das três formas distintas de Governo, sabe-se
que ele não desconhece, como já vimos nas Leis de
Platão, a contraposição entre as duas formas opostas da
Democracia e da monarquia. O desenvolvimento da
história romana repropõe ao pensamento político, mais
do que o tema da tripartição (que foi talvez
representado na teorização da república romana como
Governo misto), o tema da contraposição entre reino e
república, ou entre república e principado. Nos
escritores medievais, a tripartição aristotélica e a
bipartição entre reino e república correm muitas vezes
de forma paralela: Santo Tomás acolhe juntamente
com a tripartição clássica a distinção entre regimen
politicum et regimen regale, fundada sobre a distinção
entre Governo baseado nas leis e Governo não
baseado nas leis.
Certamente foi a meditação da história da república
romana, unida às considerações sobre as coisas do
próprio tempo, que fez escrever a Maquiavel, no início
da obra que ele dedicou ao principado, que "todos os
Estados, todos os domínios que tiveram e têm império
sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou
principados". Se bem que a república, em sua
contraposição à monarquia, não se identifique com a
Democracia, com o "Governo popular", até porque nas
repúblicas
democráticas
existem
repúblicas
aristocráticas (para não falar do Governo misto que o
próprio Maquiavel vê como um exemplo perfeito na
república romana), na noção idealizada da república
que de Maquiavel passará através dos escritores
radicais dos séculos XVII e XVIII até à Revolução
Francesa, entendida em sua oposição ao governo real,
como aquela forma de Governo em que o poder não
está concentrado nas mãos de um só mas é distribuído
variadamente por diversos órgãos colegiados, embora,
por vezes, contrastando entre si, se acham
constantemente alguns traços que contribuíram para
formar a imagem ou pelo menos uma das imagens da
Democracia moderna, que hoje, cada vez mais
freqüentemente, é definida como regime policrático
oposto ao regime monocrático. Sobre esta linha, um
escritor, que é considerado justamente como um
precursor do democratismo moderno, Johannes
Althusius, expondo no último capítulo de sua Política
methodice digesta (1603), a diferença entre as várias
formas de Governo, distingue-as segundo o summus
magistratus por monarchicus ou poliarchicus, usando
uma terminologia que se tornará familiar para a
ciência política americana com Robert Dahl, o qual no
A preface to democratic theory (1956) elabora, de
encontro às teorias tradicionais ou que ele considera
DEMOCRACIA
tradicionais, da Democracia madisoniana e populista,
a teoria da Polyarchal democracy. Ainda uma vez, se
por Democracia se entende a forma aristotélica, a
república não é Democracia; mas no seu caráter
peculiar de "Governo livre", de regime antiautocrático,
encerra um elemento fundamental da Democracia
moderna na medida em que por Democracia se entende
toda a forma de Governo oposta a toda a forma de
despotismo.
Não obstante a diferença conceptual, as duas
imagens da Democracia e da república terminam por
sobrepor-se e por confundir-se nos escritores estudados
recentemente por Franco Venturi, os quais exaltam,
juntamente com as repúblicas antigas, as repúblicas
pequenas e livres do tempo, desde a Holanda até
Gênova, Veneza, Lucca, e Genebra do citoyen virtueux
Jean-Jacques. O Oceana de Harrington, que é um dos
pontos de referência do republicanismo inglês de
Setecentos, é exaltada pelo maior defensor da idéia
republicana da Inglaterra, John Toland, como "a mais
perfeita forma de Governo popular que jamais existiu".
Modelada sobre o exemplo das repúblicas antigas e
modernas, é, na realidade, uma democracia igualitária,
não só formalmente, fundada que é sobre a rotação das
magistraturas que acontece através das eleições livres
dos cidadãos, mas também, e substancialmente, porque
é regida por uma férrea lei agrária, que prevê a
distribuição eqüitativa de terras de modo que ninguém
seja tão poderoso que possa oprimir o outro. Das três
formas de Governo descritas por Montesquieu,
república, monarquia e despotismo, a forma
republicana de Governo compreende tanto a república
democrática como a aristocrática, quase sempre tratadas
separadamente. Quando o discurso visa os princípios de
um Governo, o princípio próprio da república, a
virtude, é o princípio clássico da Democracia e não da
aristocracia. E tanto é verdade, que, a respeito da
aristocracia, Montesquieu foi levado a afirmar que se
"a virtude é assim tão necessária no Governo
aristocrático", não o é de um modo "absoluto" (I, 3, 4).
Não se esqueça que para Saint Just e Robespierre a
nova democracia que varrerá, definitivamente, o
despotismo ou o reino do terror, será o "reino da
virtude". Se a mola do Governo popular, na paz, é a
virtude, soam as célebres palavras pronunciadas por
Robespierre no Discours sur les príncipes de la morale
politique — a mola do Governo popular na revolução é,
a um tempo, a virtude e o terror. Sem a virtude, o terror
é funesto; a virtude, sem o terror, é impotente. Mas é
sobretudo em Rousseau, grande teórico da Democracia
moderna, que o ideal republicano e democrático
coincidem perfeitamente. No Contrato social confluem,
até se fundirem, a doutrina
323
clássica da soberania popular, a quem compete,
através da formação de uma vontade geral inalienável,
indivisível e infalível, o poder de fazer as leis, e o
ideal, não menos clássico mas renovado, na admiração
pelas instituições de Genebra, da república, a doutrina
contratualista do Estado fundado sobre o consenso e
sobre a participação de todos na produção das leis e o
ideal igualitário que acompanhou na história, a idéia
republicana, levantando-se contra a desigualdade dos
regimes monárquicos e despóticos. O Estado, que ele
constrói, é uma Democracia mas prefere chamá-lo,
seguindo a doutrina mais moderna das formas de
Governo, de "república". Mais exatamente, retomando
a distinção feita por Bodin entre forma de Estado e a
forma de Governo, Rousseau enquanto chama
república à forma do Estado ou do corpo político,
considera a Democracia uma das três formas possíveis
de Governo de um corpo político, que, enquanto tal,
ou é uma república ou não é nem sequer um Estado
mas o domínio privado deste ou daquele poderoso que
tomou conta dele e o governa através da força.
V. DEMOCRACIA E LIBERALISMO. — Ao longo de
todo o século XIX, a discussão em torno da
Democracia se foi desenvolvendo principalmente
através de um confronto com as doutrinas políticas
dominantes no tempo, o liberalismo de um lado e o
socialismo do outro.
No que se refere à relação de concepção liberal do
Estado, o ponto de partida foi o célebre discurso de
Benjamin Constant sobre A liberdade dos antigos
comparada com a dos modernos. Para Constant, a
liberdade dos modernos, que deve ser promovida e
desenvolvida, é a liberdade individual em sua relação
com o Estado, aquela liberdade de que são
manifestações concretas as liberdades civis e a
liberdade política (ainda que não necessariamente
estendida a todos os cidadãos) enquanto a liberdade
dos antigos, que a expansão das relações tornou
impraticável, e até danosa, é a liberdade entendida
como participação direta na formação das leis através
do corpo político cuja máxima expressão está na
assembléia dos cidadãos. Identificada a Democracia
propriamente dita sem outra especificação, com a
Democracia direta, que era o ideal do próprio
Rousseau, foi-se afirmando, através dos escritores
liberais, de Constant e Tocqueville e John Stuart Mill,
a idéia de que a única forma de Democracia compatível
com o Estado liberal, isto é, com o Estado que
reconhece e garante alguns direitos fundamentais,
como são os direitos de liberdade de pensamento, de
religião, de imprensa, de reunião, etc, fosse a
Democracia representativa ou parlamentar, onde o
dever de fazer leis diz respeito,
324
DEMOCRACIA
não a todo o povo reunido em assembléia, mas a um
corpo restrito de representantes eleitos por aqueles
cidadãos a quem são reconhecidos direitos políticos.
Nesta concepção liberal da Democracia, a
participação do poder político, que sempre foi
considerada o elemento caracterizante do regime
democrático, é resolvida através de uma das muitas
liberdades individuais que o cidadão reivindicou e
conquistou contra o Estado absoluto. A participação é
também redefinida como manifestação daquela
liberdade particular que indo além do direito de
exprimir a própria opinião, de reunir-se ou de
associar-se para influir na política do país,
compreende ainda o direito de eleger representantes
para o Parlamento e de ser eleito. Mas se esta
liberdade é conceptualmente diversa das liberdades
civis, enquanto estas são meras faculdades de fazer ou
não fazer, enquanto aquela implica a atribuição de uma
capacidade jurídica específica, em que as primeiras
são chamadas também de liberdades negativas e a
segunda de liberdade positiva, o fato mesmo de que a
liberdade de participar, ainda que indiretamente, na
formação do Governo esteja compreendido na classe
das liberdades, mostra que, na concepção liberal da
Democracia, o destaque é posto mais sobre o mero
fato da participação como acontece na concepção pura
da Democracia (também chamada participacionista),
com a ressalva de que esta participação seja livre, isto
é, seja uma expressão e um resultado de todas as outras
liberdades. Deste ponto de vista, se é verdade que não
pode chamar-se, propriamente, liberal, um Estado que
não reconheça o princípio democrático da soberania
popular, ainda que limitado ao direito de uma parte
(mesmo restrita) dos cidadãos darem vida a um corpo
representativo, é ainda mais verdadeiro que segundo a
concepção liberal do Estado não pode existir
Democracia senão onde forem reconhecidos alguns
direitos fundamentais de liberdade que tornam
possível uma participação política guiada por uma
determinação da vontade autônoma de cada indivíduo.
Em geral, a linha de desenvolvimento da
Democracia nos regimes representativos pode figurarse basicamente em duas direções: a) no alargamento
gradual do direito do voto, que inicialmente era
restrito a uma exígua parte dos cidadãos com base em
critérios fundados sobre o censo, a cultura e o sexo e
que depois se foi estendendo, dentro de uma evolução
constante, gradual e geral, para todos os cidadãos de
ambos os sexos que atingiram um certo limite de idade
(sufrágio universal); b) na multiplicação dos órgãos
representativos (isto é, dos órgãos compostos de
representantes eleitos), que num primeiro tempo se
limitaram a uma das duas
assembléias legislativas, e depois se estenderam, aos
poucos, à outra assembléia, aos órgãos do poder local,
ou, na passagem da monarquia para a república, ao
chefe do Estado. Em uma e em outra direção, o
processo de democratização, que consiste no
cumprimento cada vez mais pleno do princípio-limite
da soberania popular, se insere na estrutura do Estado
liberal entendido como Estado, in primis, de
garantias. Por outras palavras, ao longo de todo o
curso de um desenvolvimento que chega até nossos
dias, o processo de democratização, tal como se
desenvolveu nos Estados, que hoje são chamados de
Democracia liberal, consiste numa transformação mais
quantitativa do que qualitativa do regime
representativo Neste contexto histórico a Democracia
não se apresenta como alternativa (como seria no
projeto de Rousseau rejeitado por Constant) ao regime
representativo, mas é o seu complemento; não é uma
reviravolta mas uma correção.
VI. DEMOCRACIA E SOCIALISMO. — Não é diferente a
relação entre Democracia e socialismo. Também no
que diz respeito ao socialismo, nas suas diferentes
versões, o ideal democrático representa um elemento
integrante e necessário, mas não constitutivo.
Integrante porque uma das metas que se propuseram
os teóricos do socialismo foi o reforço da base popular
do Estado. Necessário, porque sem este reforço não
seria jamais alcançada aquela profunda transformação
da sociedade que os socialistas das diversas correntes
sempre tiveram como perspectiva. Por outro lado, o
ideal democrático não é constitutivo do socialismo,
porque a essência do socialismo sempre foi a idéia da
revolução das relações econômicas e não apenas das
relações políticas, da emancipação social, como disse
Marx, e não apenas da emancipação política do
homem. O que muda na doutrina socialista a respeito
da doutrina liberal é o modo de entender o processo de
democratização do Estado. Na teoria marxistaengelsiana, para falar apenas desta, o sufrágio
universal, que para o liberalismo em seu
desenvolvimento histórico é o ponto de chegada do
processo de democratização do Estado, constitui
apenas o ponto de partida. Além do sufrágio universal,
o aprofundamento do processo de democratização da
parte das doutrinas socialistas acontece de dois modos:
através da crítica da Democracia apenas representativa
e da conseqüente retomada de alguns temas da
Democracia direta e através da solicitação de que a
participação popular e também o controle do poder a
partir de baixo se estenda dos órgãos de decisão
política aos de decisão econômica, de alguns centros
do aparelho estatal até à empresa, da sociedade
política até à sociedade civil pelo
DEMOCRACIA
que se vem falando de Democracia econômica,
industrial ou da forma efetiva de funcionamento dos
novos órgãos de controle (chamados "conselhos
operários"), colegial, e da passagem do auto-governo
para a autogestão.
Nas efêmeras instituições criadas pelo povo
parisiense por ocasião da Comuna de Paris, Marx,
como é conhecido, achou poder colher alguns
elementos de uma nova forma de Democracia que
chamou "autogoverno dos produtores". As
características distintivas desta nova forma de Estado
com respeito ao regime representativo são
principalmente quatro: a) enquanto o regime
representativo se funda sobre a distinção entre poder
executivo e poder legislativo, o novo Estado da
Comuna deve ser "não um órgão parlamentar, mas de
trabalho, executivo e legislativo, ao mesmo tempo"; b)
enquanto o regime parlamentar inserido no tronco dos
velhos Estados absolutistas deixou sobreviver consigo
órgãos não representativos e relativamente
autônomos, os quais, desenvolvidos anteriormente na
instituição parlamentar, continuam a fazer parte
essencial do aparelho estatal, como o exército, a
magistratura e a burocracia, a Comuna estende o
sistema eleitoral a todas as partes do Estado; c)
enquanto a representação nacional característica do
sistema representativo é inteiramente distinta da
proibição de mandato autoritário, cuja conseqüência é
a irrevogabilidade do cargo durante toda a duração da
legislatura, a Comuna "é composta de conselheiros
municipais eleitos por sufrágio universal nas diversas
circunscrições de Paris, responsáveis e revogáveis em
qualquer momento; d) enquanto o sistema parlamentar
não conseguiu destruir a centralização política e
administrativa dos velhos Estados, antes, pelo
contrário, confirmou através da instituição de um
parlamento nacional, o novo Estado deveria ter
descentralizado, ao máximo, as próprias funções nas
"comunas rurais" que teriam enviado seus
representantes a uma assembléia nacional à qual
seriam deixadas algumas "poucas mas importantes
funções .. . cumpridas por funcionários comunais".
Colhendo sua inspiração nas reflexões de Marx sobre
a Comuna, Lenin, em Estado e revolução e nos
escritos e discursos do período revolucionário
enunciou as diretrizes e bases da nova Democracia dos
conselhos que fizeram o centro do debate entre os
principais teóricos do socialismo na década de 20,
desde Gramsci até Rosa Luxemburg, desde Max Adler
até Korsch, para terminar em Anton Pannekoek, cuja
obra Organização revolucionária e conselhos
operários é de 1940. O que caracteriza a Democracia
dos conselhos em relação à Democracia parlamentar é
o reconhecimento de que na sociedade capitalista
houve um
325
deslocamento dos centros de poder dos órgãos
tradicionais do Estado para a grande empresa, e que
portanto o controle que o cidadão está em grau de
exercer através dos canais tradicionais da Democracia
política não é suficiente para impedir os abusos de
poder cuja abolição é o escopo final da Democracia.
O novo tipo de controle não pode acontecer senão nos
próprios lugares da produção e é exercido não pelo
cidadão abstrato da Democracia formal mas pelo
cidadão trabalhador através dos conselhos de fábrica.
O conselho de fábrica torna-se assim o germe de um
novo tipo de Estado, que é o Estado ou a comunidade
dos trabalhadores em contraposição ao Estado dos
cidadãos,- através de uma expansão deste tipo de
órgãos em todos os lugares da sociedade onde há
decisões importantes a tomar. O sistema estatal, em
seu complexo, será uma federação de conselhos
unificados através do reagrupamento ascendente,
partindo deles até aos vários níveis territoriais e
administrativos.
VII. DEMOCRACIA E ELITISMO. — A crítica que de
um lado o liberalismo faz à Democracia direta, e a
crítica, que de outro lado o socialismo move à
Democracia representativa, são conscientemente
inspiradas em certos pressupostos ideológicos
relacionados com diversas orientações ligadas aos
valores últimos. No final do século passado, contra a
Democracia, entendida exatamente em seu sentido
tradicional de doutrina da soberania popular, se
formulou uma crítica que pretendeu, ao contrário,
fundar-se exclusivamente sobre a observação dos fatos:
uma crítica não ideológica, mas científica, pelo menos
na temática, da parte dos teóricos das minorias
governamentais, ou como serão chamados mais tarde,
com um nome que fará fortuna, da parte de elites como
Ludwig Gumplowicz, Gaetano Mosca e Vilfredo
Pareto. Segundo estes escritores, a soberania popular é
um ideal-limite e jamais correspondeu ou poderá
corresponder a uma realidade de fato, porque em
qualquer regime político, qualquer que seja a "fórmula
política" sob a qual ps governantes e seus ideólogos o
representem, é sempre uma minoria de pessoas, que
Mosca chama de "classe política", aquela que detém o
poder efetivo. Com esta teoria se conclui a longa e
afortunada história das três formas de Governo, que,
como se viu, está na origem da história do conceito de
Democracia desde o momento em que, em toda a
sociedade, de todos os tempos e em todos os níveis de
civilização, o poder está nas mãos de uma minoria, não
existe outra forma de Governo senão a oligárquica. O
que não implica que todos os regimes sejam iguais,
mas simplesmente que se uma diferença pode ser
destacada, esta não pode
326
DEMOCRACIA
depender de um critério extrínseco como o do número
de governantes (um, poucos, muitos), mas dos vários
modos com que uma classe política se forma, se
reproduz, se renova, organiza e exerce o poder. O
mesmo Mosca distinguiu a respeito do modo com que
se formam as classes políticas, as que transmitem o
poder hereditariamente e as que se alimentam das
classes inferiores; a respeito do modo como exercem o
poder, aquelas que o exercem sem controle e aquelas
que são controladas a partir de baixo; nesse sentido,
contrapôs, no primeiro caso, Democracia e
aristocracia; no segundo. Democracia e autocracia,
identificando pelo menos dois tipos de regimes que,
embora tenham uma classe política dominante, podem
dizer-se democráticos de bom direito. Nesta linha, a
teoria das elites recupera muito do que de realístico e
não do que meramente ideológico contém a doutrina
tradicional da Democracia e tem, por conseqüência,
não tanto a negação de existência de regimes
democráticos mas mais uma redefinição que terminou
por tornar-se preponderante na hodierna ciência
política de Democracia. Em Capitalismo, socialismo e
Democracia (1942) Joseph Schumpeter contrapõe à
doutrina clássica da Democracia, segundo a qual a
Democracia consiste na realização do bem comum
através da vontade geral que exprime uma vontade do
povo ainda não perfeitamente identificada, uma
doutrina diversa da Democracia que leva em conta o
resultado considerado realisticamente inexpugnável
pela teoria das elites. Segundo Schumpeter, existe
Democracia onde há vários grupos em concorrência
pela conquista do poder através de uma luta que tem
por objeto o voto popular. Uma definição deste tipo
leva em conta a importância primária, não desprezível,
da liderança em qualquer formação política e ao
mesmo tempo permite distinguir um regime do outro
na base do modo como as diferentes lideranças
disputam o poder, especificando, na Democracia,
aquela forma de regime em que a contenda pela
conquista do poder é resolvida em favor de quem
conseguir obter, numa disputa livre, o maior número
de votos.
Alargando e precisando esta temática, uma
redefinição de Democracia que quisesse levar em
conta a ineliminável presença de mais classes políticas
em concorrência entre si deveria compreender, pelo
menos, o exame de três pontos: recrutamento, extensão
e fonte do poder da classe política. Com respeito ao
recrutamento, uma classe política pode chamar-se
democrática quando seu pessoal é escolhido através
de uma competição eleitoral livre e não através de
transmissão hereditária ou de cooptação. Com respeito
à extensão, quando o pessoal de uma classe política é
tão numeroso que se divide, de maneira
estável, em classe política de Governo e classe
política de oposição e consegue cobrir a área do
Governo central e do Governo local em suas diversas
articulações e não é, por outra parte, constituído de um
grupo tão pequeno e fechado que dirige um país
inteiro através de comissários ou funcionários
dependentes. Com respeito à fonte de poder, quando
este é exercido por uma classe política representativa,
com base numa delegação periodicamente renovável e
fundada sobre uma declaração de confiança, e no
âmbito de regras estabelecidas (constituição) e não em
virtude de dotes carismáticos do chefe ou como
conseqüência da tomada violenta do poder (golpe de
Estado, revolta militar, revolução, etc.) (v. também
ELITES, TEORIAS DAS).
VIII.
O
SIGNIFICADO
FORMAL
DE
DEMOCRACIA. — Considerando, de um lado, o
modo como doutrinas opostas a respeito dos valores
fundamentais, doutrinas liberais e doutrinas socialistas
consideraram a Democracia não incompatível com os
próprios princípios e até como uma parte integrante do
próprio credo, é perfeitamente correto falar de
liberalismo democrático e de socialismo democrático,
e é crível que um liberalismo sem Democracia não seria
considerado hoje um "verdadeiro" liberalismo e um
socialismo sem Democracia, um "verdadeiro"
socialismo. Olhando, por outro lado, o modo como
uma doutrina inicialmente hostil à Democracia, como
a teoria das elites, se foi conciliando com ela, pode
concluir-se que por Democracia se foi entendendo um
método ou um conjunto de regras de procedimento
para a constituição de Governo e para a formação das
decisões políticas (ou seja das decisões que abrangem
a toda a comunidade) mais do que uma determinada
ideologia. A Democracia é compatível, de um lado,
com doutrinas de diverso conteúdo ideológico, e por
outro lado, com uma teoria, que em algumas das suas
expressões e certamente em sua motivação inicial teve
um
conteúdo
nitidamente
antidemocrático,
precisamente porque veio sempre assumindo um
significado essencialmente comportamental e não
substancial, mesmo se a aceitação destas regras e não
de outras pressuponha uma orientação favorável para
certos valores, que são normalmente considerados
característicos do ideal democrático, como o da solução
pacífica dos conflitos sociais, da eliminação da
violência institucional no limite do possível, do
freqüente revezamento da classe política, da tolerância
e assim por diante.
Na teoria política contemporânea, mais em
prevalência nos países de tradição democrático-liberal,
as definições de Democracia tendem a resolver-se e a
esgotar-se num elenco mais ou
DEMOCRACIA
menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo,
ou, como também se diz, de "procedimentos
universais". Entre estas: 1) o órgão político máximo, a
quem é assinalada a função legislativa, deve ser
composto de membros direta ou indiretamente eleitos
pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau;
2) junto do supremo órgão legislativo deverá haver
outras instituições com dirigentes eleitos, como os
órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal
como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos
que tenham atingido a maioridade, sem distinção de
raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo,
devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter
voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em
votar segundo a própria opinião formada o mais
livremente possível, isto é, numa disputa livre de
partidos políticos que lutam pela formação de uma
representação nacional; 6) devem ser livres também no
sentido em que devem ser postos em condição de ter
reais alternativas (o que exclui como democrática
qualquer eleição de lista única ou bloqueada); 7) tanto
para as eleições dos representantes como para as
decisões do órgão político supremo vale o princípio da
maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas
várias formas de maioria segundo critérios de
oportunidade não definidos de uma vez para sempre;
8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar
os direitos da minoria, de um modo especial o direito
de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) o
órgão do Governo deve gozar de confiança do
Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua
vez, eleito pelo povo.
Como se vê, todas estas regras estabelecem como se
deve chegar à decisão política e não o que decidir. Do
ponto de vista do que decidir, o conjunto de regras do
jogo democrático não estabelece nada, salvo a
exclusão das decisões que de qualquer modo
contribuiriam para tornar vãs uma ou mais regras do
jogo. Além disso, como para todas as regras, também
para as regras do jogo democrático se deve ter em conta
a possível diferença entre a enunciação do conteúdo e
o modo como são aplicadas. Certamente nenhum
regime histórico jamais observou inteiramente o ditado
de todas estas regras; e por isso é lícito falar de
regimes mais ou menos democráticos. Não é possível
estabelecer quantas regras devem ser observadas para
que um regime possa dizer-se democrático. Pode
afirmar-se somente que um regime que não observa
nenhuma não é certamente um regime democrático,
pelo menos até que se tenha definido o significado
comportamental de Democracia.
IX.
ALGUMAS
DEMOCRÁTICOS. —
327
TIPOLOGIAS
DOS
REGIMES
No âmbito desta noção de
Democracia e portanto no terreno firme destas regras
é costume distinguir várias espécies de regimes
democráticos. A multiplicidade das tipologias depende
da variedade dos critérios adotados para a
classificação das diversas formas de Democracia.
Apresentaremos a lista de algumas, tomando por base
a profundidade do nível de estrutura social global em
que elas se integram.
A um nível mais superficial se coloca a distinção
fundada sobre o critério jurídico-institucional entre
regime presidencial e regime parlamentar. A diferença
entre os dois regimes está na relação diferente entre
legislativo e executivo. Enquanto no regime
parlamentar, a democraticidade do executivo depende
do fato de que ele é uma emanação do legislativo, o
qual, por sua vez, se baseia no voto popular, no
regime presidencial, o chefe do executivo é eleito
diretamente pelo povo. Em conseqüência disso ele
presta contas de sua ação não ao Parlamento mas aos
eleitores que podem sancionar sua conduta política
negando-lhe a reeleição.
Em nível imediatamente inferior se encontra a
tipologia que leva em consideração o sistema dos
partidos, o qual apresenta duas variantes. Com base no
número dos partidos (isto é, com base no critério
numérico que caracteriza a tipologia aristotélica),
distinguem-se sistemas bipartidários e sistemas
multipartidários (o sistema unipartidário, pelo menos
em suas formas mais rígidas, não pode ser incluído
entre as formas democráticas de Governo). Com base
no modo com que os partidos se dispõem uns para ou
contra os outros no sistema, isto é, com base nos
chamados pólos de atração ou de repulsa dos diversos
partidos, se distinguem regimes bipolares, em que os
vários partidos se agregam em torno dos dois pólos do
Governo e da oposição e multipolares, em que os
vários partidos se dispõem voltados para o centro e
para as duas oposições, uma de direita e outra de
esquerda. Deve advertir-se que também, neste caso,
um sistema monopolar, onde não existe uma oposição
reconhecida, não pode ser considerado entre as formas
democráticas de Governo. A segunda variante,
introduzida por Giovanni Sartori oferece, em relação à
anterior, pelo menos, duas vantagens: a) permite levar
em conta alianças de partidos com a conseqüência de
que um sistema multipartidário pode ser bipolar e,
portanto, pode ter as mesmas características de um
sistema bipartidário; b) permite uma ulterior distinção
entre sistemas polarizados e sistemas não polarizados
no caso de haver nas duas extremidades franjas que
tendam à ruptura do sistema (partidos anti-sistema).
Daí deriva a distinção
328
DEMOCRACIA
ulterior
entre
multipartidarismo
extremo
e
multipartidarismo moderado. Tendo em conta, além do
sistema dos partidos, também o sistema da cultura
política, Arend Lijphart distinguiu os regimes
democráticos com base na maior ou menor
fragmentação da cultura política em centrífugos e
centrípetos (distinção que corresponde, grosso modo,
à precedente entre regimes polarizados e não
polarizados). Introduzindo, em seguida, um segundo
critério fundado sobre a observação de que o
comportamento das elites pode estar mais inclinado
para as coligações (coalescent) ou tornar-se mais
competitivo, e combinando-o com o precedente,
especificou outros dois tipos de Democracia que
chamou de "Democracia consociativa" (consotiational)
e
"Democracia
despolitizada",
segundo
o
comportamento não competitivo das elites se junte a
uma cultura fragmentada ou homogênea. A Democracia
consociativa tem seus maiores exemplos na Áustria,
Suíça, Holanda e Bélgica e foi chamada, tendo em
vista especialmente o caso suíço, de concordante
(concordant democracy, Konkordanz demokratie) e
definida como o tipo de Democracia em que acontecem
entendimentos de cúpula entre líderes de subculturas
rivais para a formação de um Governo estável.
Descendo a um nível ainda mais profundo, que é o
nível das estruturas da sociedade inferior, Gabriel
Almond distinguiu três tipos de Democracia: a)
Democracia de alta autonomia dos subsistemas
(Inglaterra e Estados Unidos), entendendo-se por
subsistemas os partidos, os sindicatos e os grupos de
pressão, em geral; b) Democracia de autonomia
limitada dos subsistemas (França da III República,
Itália depois da Segunda Guerra Mundial e Alemanha
de Weimar); c) Democracia de baixa autonomia dos
subsistemas (México). Modelos ideais mais do que
tipos históricos são as três formas de Democracia
analisadas por Robert Dahl no seu livro A preface to
democratic theory (1956): a Democracia madisoniana
que consiste sobretudo nos mecanismos de freio do
poder e coincide com o ideal constitucional do Estado
limitado pelo direito ou pelo Governo da lei contra o
Governo dos homens (no qual sempre se manifesta
historicamente a tirania); a Democracia populista, cujo
princípio fundamental é a soberania da maioria; a
Democracia poliárquica que busca as condições da
ordem democrática não em expedientes de caráter
constitucional, mas em pré-requisitos sociais, isto é, no
funcionamento de algumas regras fundamentais que
permitem e garantem a livre expressão do voto, a
prevalência das decisões mais votadas, o controle das
decisões por parte dos eleitores, etc.
X. DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL.
— Juntamente com a noção comportamental de
Democracia, que prevalece na teoria política ocidental
e no âmbito da "political science", foi-se difundindo, na
linguagem política contemporânea, um outro
significado de Democracia que compreende formas de
regime político como as dos países socialistas ou dos
países do Terceiro Mundo, especialmente, dos países
africanos, onde não vigoram ou não são respeitadas
mesmo quando vigoram algumas ou todas as regras
que fazem que sejam democráticos, já depois de longa
tradição, os regimes liberais-democráticos e os regimes
sociais-democráticos. Para evitar a confusão entre dois
significados tão diversos do mesmo termo prevaleceu o
uso de especificar o conceito genérico de Democracia
como um atributo qualificante e, assim, se chama de
"formal" a primeira e de "substancial" a segunda.
Chama-se formal à primeira porque é caracterizada
pelos
chamados
"comportamentos
universais"
(universali procedurali), mediante o emprego dos quais
podem ser tomadas decisões de conteúdo diverso
(como mostra a co-presença de regimes liberais e
democráticos ao lado dos regimes socialistas e
democráticos). Chama-se substancial à segunda porque
faz referência prevalentemente a certos conteúdos
inspirados em ideais característicos da tradição do
pensamento democrático, com relevo para o
igualitarismo. Segundo uma velha fórmula que
considera a Democracia como Governo do povo para
o povo, a democracia formal é mais um Governo do
povo; a substancial é mais um Governo para o povo.
Como a democracia formal pode favorecer uma
minoria restrita de detentores do poder econômico e
portanto não ser um poder para o povo, embora seja
um Governo do povo, assim uma ditadura política
pode favorecer em períodos de transformação
revolucionária, quando não existem condições para o
exercício de uma Democracia formal, a classe mais
numerosa dos cidadãos, e ser, portanto, um Governo
para o povo, embora não seja um Governo do povo.
Também foi observado (Macpherson) que o conceito
de Democracia atribuído aos Estados socialistas e aos
Estados do Terceiro Mundo espelha mais fielmente o
significado aristotélico antigo de Democracia. Segundo
este conceito, a Democracia é o Governo dos pobres
contra os ricos, isto é, é um Estado de classe, e
tratando-se da classe dos pobres, é o Governo da
classe mais numerosa ou da maioria (e é esta a razão
pela qual a Democracia foi mais execrada do que
exaltada no decurso dos séculos).
Para quem como Macpherson defende que o
discurso em torno da Democracia não se resolve em
definir e redefinir uma palavra que pelo seu
DESCENTRALIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO
significado eulógico é referida a coisas diferentes, o
negócio deve ser determinado em torno de um
conceito geral de Democracia dividido em species.
Uma dessas espécies seria a Democracia liberal; a
outra, a Democracia dos países socialistas e assim por
diante. Por outro lado, porém, fica a dificuldade de
achar o que é que estas duas espécies têm de comum.
A resposta extremamente genérica que este autor foi
constrangido a dar, segundo o qual as três espécies de
Democracia têm em comum o escopo último, que é o
de "prover as condições para o pleno e livre
desenvolvimento das capacidades humanas essenciais
de todos os membros da sociedade" (p. 37) mostra a
inutilidade da tentativa. Para não nos perdermos em
discussões inconcludentes é necessário reconhecer que
nas duas expressões "Democracia formal" e
"Democracia substancial", o termo Democracia tem
dois significados nitidamente distintos. A primeira
indica um certo número de meios que são
precisamente as regras de comportamento acima
descritas independentemente da consideração dos fins.
A segunda indica um certo conjunto de fins, entre os
quais sobressai o fim da igualdade jurídica, social e
econômica, independentemente dos meios adotados
para os alcançar. Uma vez que na longa história da
teoria democrática se entrecruzam motivos de métodos
e motivos ideais, que se encontram perfeitamente
fundidos na teoria de Rousseau segundo a qual o ideal
igualitário que a inspira (Democracia como valor) se
realiza somente na formação da vontade geral
(Democracia como método), ambos os significados de
Democracia são legítimos historicamente. Mas a
legitimidade histórica do seu uso não autoriza
nenhuma ilação sobre a eventualidade de terem um
elemento conotativo comum. Desta falta de um
elemento conotativo comum é prova a esterilidade do
debate entre fautores das Democracias liberais e
fautores das Democracias populares sobre a maior ou
menor democraticidade dos respectivos regimes. Os
dois tipos de regime são democráticos segundo o
significado de Democracia escolhido pelo defensor e
não é democrático segundo o significado escolhido
pelo adversário. O único ponto sobre o qual uns e
outros poderiam convir é que a Democracia perfeita —
que até agora não foi realizada em nenhuma parte do
mundo, sendo utópica, portanto — deveria ser
simultaneamente formal e substancial.
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totalitarisme, Paris 1965; G. BURDEAU, La democrazia
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[NORBERTO BOBBIO]
Descentralização e Centralização.
I.
CENTRALIZAÇÃO
E
CONSIDERAÇÕES
INTRODUTÓRIAS.
DISTINÇÃO. — A centralização e a
DESCENTRALIZAÇÃO.
RELATIVIDADE DA
Descentralização em
geral (e também a centralização e a Descentralização
administrativas) não são instituições jurídicas únicas,
mas fórmulas contendo princípios e tendências, modos
de ser de um aparelho político ou administrativo, são,
portanto, diretivas de organização no sentido mais lato
e não conceitos imediatamente operativos. Além disso,
se for verdade que eles representam dois tipos
diferentes e contrapostos de ordenamentos jurídicos, é
também verdade que se trata de figuras encontradas na
sua totalidade somente em teoria. Se, de um lado, a
Descentralização total leva a romper a própria noção
de Estado, também de outro, foi detectado o caráter
utópico de uma centralização total no Estado moderno,
caracterizado por uma grande quantidade e
complexidade de finalidades e de funções. Isso
significa que todos os ordenamentos jurídicos positivos
são parcialmente centralizados e, em parte,
descentralizados, isto é, que, considerada a
centralização e a Descentralização como dois possíveis
valores, não existe um sistema político-administrativo
que esteja exclusivamente orientado para a otimização
de uma ou de outra. Em conseqüência do
entrelaçamento dos dois princípios, mesmo em
sistemas limitados da
330
DESCENTRALIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO
organização de um Estado, à Descentralização e
centralização muito dificilmente se encontram em
estado puro, mas aparecem como centralização e
Descentralização imperfeitas.
particular, há tempos foi esclarecida a conexão entre
administração pública e a mudança das estruturas
sociais, com a conseqüente necessidade de que o
desenvolvimento das estruturas administrativas seja
A imagem precedente tem um caráter meramente adequado a esta mudança, ativando uma inteligente
descritivo, pois em se tratando de diretivas de distribuição de funções e de tarefas, obedecendo a
organização no sentido lato, se entende que não é critérios que, à luz das transformações sociais do
correto falar de perfeição tanto num sentido como no momento, permitam que as mudanças realizadas
outro. Além disso, se um ordenamento centralizado em apresentem um substancial conteúdo e uma
estado puro se transformasse em ordenamento operacionalidade real.
Do ponto de vista do direito público, em particular,
descentralizado em estado puro, este último não teria
nenhuma relação com o primeiro: tratar-se-ia da o problema da subdivisão das funções e das tarefas não
é um problema de organização de responsabilidade
criação de um novo ordenamento.
apenas das unidades administrativas centrais e das
Na organização do Estado, o problema da
centralização e da Descentralização estão sempre outras entidades ou órgãos que destas estejam
presentes; trata-se, então, de avaliar os instrumentos separados, mas é fenômeno que engloba, em sua
jurídicos através dos quais, respectivamente, eles generalidade, a maneira de ser, as qualidades e os
podem ser valorizados. O único caminho para uma predicados de um determinado aparelho, seja ou não
transformação é, portanto, o de um movimento gradual estatal, ou a ação de um poder público. Finalmente, não
e progressivo dirigido a abrandar aquelas tendências é um problema de direito administrativo interno, que
que, num ou noutro sentido, tenham sido julgadas em esteja ligado apenas a uma coletividade pertencente ao
Estado, mas é um problema de direito público geral
desacordo com a realidade efetiva.
que pode incluir, quando assume a característica de
De um ponto de vista geral nota-se uma contínua Descentralização política, coletividades internas do
troca entre centralização e Descentralização, como Estado ou coletividades superestatais.
conseqüência de um processo de concentração e
O problema da Descentralização não surge de
desagregação, geralmente gradual e muito lento, maneira igual em todos os lugares. É indispensável
algumas vezes mais apressado, que se manifesta em colocá-lo de cada vez num ambiente social e na época
cada sociedade.
histórica nos quais consegue concreta atuação. O
Sempre que for aceita esta premissa e esclarecido problema, porém, assume características de particular
que centralização e Descentralização totais são apenas urgência e importância nos aspectos administrativos,
pólos ideais, pode também ser aceito, com objetivos nos ordenamentos, como os italianos, que reproduzem
descritivos, o critério do mínimo indispensável para o modelo organizativo centralizador do tipo francês. O
poder-se
falar
de
Descentralização.
Temos ordenamento italiano é, no seu conjunto, inspirado, até
centralização quando a quantidade de poderes das hoje, no princípio de "organização hierárquica", mais
entidades locais e dos órgãos periféricos é reduzida ao do que no princípio de "organização autônoma" em
mínimo indispensável, a fim de que possam ser evidente contraste com os princípios constitucionais
considerados
como
entidades
subjetivas
de italianos (art. 5.º da Constituição).
administração. Temos, ao contrário, Descentralização
quando os órgãos centrais do Estado possuem o
II. A DESCENTRALIZAÇÃO COMO PRINCÍPIO
mínimo de poder indispensável para desenvolver as TENDENTE
À
ORGANIZAÇÃO.
—
A
próprias atividades.
Descentralização pode afirmar sua atuação concreta
Atualmente,
o
valor
fundamental
da mediante figuras organizativas atípicas e mediante
Descentralização é amplamente reconhecido, seja no instrumentos heterogêneos. Por isso foram negadas em
seio de uma única organização administrativa, seja com linhas gerais as tentativas para identificá-la como uma
referência ao relacionamento entre múltiplas instituição histórica e juridicamente única, tendo
estruturas, que fazem parte de uma organização mais características tecnicamente constantes e bem
abrangente vista em sua totalidade. Os estudiosos da definidas. Além disso, o problema deve ser enfrentado
ciência da administração, da ciência política e do em estreita relação com as várias formas de
direito costumam afirmar que o problema da manifestação e com o grau de efetividade conseguido,
transferência das funções do "centro" para a no âmbito de determinadas estruturas, pelo princípio
"periferia" é natural em qualquer administração que oposto da centralização. Neste sentido, devemos
tenha ultrapassado certas dimensões, compreendendo considerar que centralização e Descentralização
não apenas a administração estatal, mas também a de representam dois princípios
entidades públicas menores e de grandes entidades
empresariais privadas. Em
DESCENTRALIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO
opostos de organização. Esta afirmação, porém, é
válida somente no plano conceptual, porque, na
prática, a presença de um e de outro princípio parece
essencial e estaremos assim em presença de um
fenômeno de recíproca adaptação.
Um e outro princípio não subsistem completamente
em sua totalidade, mas manifestam-se sob várias
formas, que poderíamos considerar intermédias —
tendencialmente centralizadoras ou descentralizadoras
— cujas possibilidades de concretização e de atuação
são suscetíveis de desenvolver-se em formas bastante
variadas, tornando um tanto difícil chegar a definições
mais precisas.
331
sobretudo as exigências de caráter democrático do
ordenamento.
III.
DESCENTRALIZAÇÃO
E
FEDERALISMO.
DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICA. — Com base nas
considerações até agora desenvolvidas é possível
incluir na noção de Descentralização uma série de
instituições,
considerando-as
como
diferentes
manifestações de um fenômeno qualitativamente único
em sua essência. Desta forma é possível, não somente
incluir o Estado federal e a confederação entre Estados
no âmbito dos Estados descentralizados, mas também
dar como exemplo de um ordenamento caracterizado
por uma Descentralização muito pronunciada, o
É importante afirmar que centralização e
ordenamento internacional, no qual alguns percebem
Descentralização assumem, em relação à realidade
os sintomas de uma tendência ao processo de
social, um caráter essencialmente dinâmico. Daí resulta
centralização. Com efeito, sob este aspecto, não existe
que toda a evolução da organização política ou
mais do que uma diferença no grau de diferenciação
administrativa de situações de paralisação ou de
dos vários sistemas aqui considerados, tratando-se, em
equilíbrio para outras fórmulas de organização,
resumo, de diferentes categorias lógico-teóricas com
caracteriza-se, principalmente, por um ou por outro
as quais são designadas as diversas modalidades do
destes dois princípios opostos. Assim sendo, teremos
equilíbrio que se realiza entre a centralização e a
como resultado o desprestígio daquilo que no sistema
Descentralização.
administrativo considerado assumia, sob o aspecto de
Neste sentido, uma ligação entre Estado federal e
organização, o papel de princípio fundamental.
Estado unitário descentralizado pode ser efetuada
No caso do ordenamento político-administrativo
sempre que se considere o fato de que entre ambos
italiano, no qual se traduz a concepção de um Estado
intercorra uma diferença que não é somente
fortemente centralizado, cada procedimento que visa à
"quantitativa". Deste modo podemos falar de formas
reorganização dos poderes públicos está ligado à
intermédias entre Estado federal e Estado mais ou
solução dos problemas de Descentralização,
menos descentralizado — ou seja, de Descentralização
especialmente da organização administrativa. Com
regional e de Descentralização em entidades locais, de
efeito, independentemente do problema da conexão
Descentralização administrativa no sentido mais estrito
existente entre a forma política de um Estado e seu
— mas é claro que existe uma profunda diferença
grau de centralização, qualquer Estado que atinja um
entre a Descentralização administrativa e a federal.
certo nível de desenvolvimento não apresenta apenas
Esta diferença baseia-se, principalmente, no conceito
uma administração, mas uma pluralidade de
de autonomia política e de Descentralização política.
administrações ou de estruturas administrativas
A Descentralização política distingue-se da
distintas, que não podem ser reduzidas a uma unidade,
administrativa, não apenas pelo tipo diferente de
especialmente no plano administrativo.
Finalmente, com referência ao ordenamento italiano funções exercidas, mas também pelo "título" que
e independentemente da fórmula de organização que o caracteriza o seu fundamento. A Descentralização
caracteriza concretamente, devemos enfatizar a política expressa uma idéia de direito autônomo,
importância do art. 5.° da Constituição, que enuncia enquanto na Descentralização administrativa específica
claramente o princípio da Descentralização temos um fenômeno de derivação dos poderes
administrativos que, por sua vez, derivam do aparelho
administrativa. Trata-se, realmente, de uma afirmação
não casual, mas que representa uma diretiva de político-administrativo do Estado, isto é, do Estadoorganização, que é a expressão de uma escolha precisa pessoa. A Descentralização política, porém, não
e constitui um dos princípios fundamentais do coincide com o federalismo. Um Estado federal é,
ordenamento, que vai muito além das limitadas e mais certamente, politicamente descentralizado, mas temos
modestas exigências de ordem técnica e que incide Estados politicamente descentralizados que não são
profundamente sobre toda a estrutura do Estado, federais. Somente quando a Descentralização assume
modificando-a e contribuindo, sempre que provoque os caracteres da Descentralização política podemos
uma divisão da soberania em sentido horizontal, para começar a falar de federalismo ou, a nível menor, de
uma real autonomia política das entidades territoriais.
garantir
A fim de que seja possível falar de uma
332
DESCENTRALIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO
centralização política, o que assume um relevo
especial é saber que um único centro tem a
possibilidade de fazer prevalecer, em linha geral, tanto
sob o aspecto territorial, quanto sob o das matérias que
o compõem, a própria concepção do bem público,
usufruindo para este fim do monopólio da criação do
direito positivo.
As dificuldades de distinguir entre Estado unitário,
administrativamente
descentralizado
e
Estado
politicamente descentralizado, podem ser solucionadas
através da possibilidade do exercício de uma efetiva
orientação política por parte do Estado-membro e não
da orientação político-administrativa, bem mais
limitada, que caracteriza o ordenamento italiano, por
exemplo, a autonomia dos municípios e das
províncias. Considera-se quebrada a unidade da lei na
qual se assenta a Descentralização administrativa,
quando a autonomia de que goza o ente politicamente
descentralizado pode opor-se ao legislador estatal. Esta
situação, porém, caracteriza, seja o Estado federal, seja
o Estado unitário regional. Também a competência
legislativa das regiões é idônea para concretizar aquela
idéia de "direito autônomo", considerada essencial pára
a noção de Descentralização política. O que realmente
distingue estas duas formas de Estado encontra-se na
diferente garantia constitucional: quando temos uma
Descentralização federal, impõe-se ao Estado federal a
obrigação de respeito em relação aos Estados
federados, obrigação esta que não vigora no que diz
respeito às regiões, devido à possibilidade, da parte do
Estado, de mudar, mediante o próprio órgão
legislativo, com uma lei ordinária ou constitucional, o
ordenamento precedente.
Em resumo, o nível de autonomia constitucional das
regiões é objeto de competência legislativa estatal (ou
seja, somente do Parlamento do Estado) e não existe
um poder judiciário constitucional que, com referência
às regiões, esteja em posição de real independência
com relação ao Estado.
IV.
DESCENTRALIZAÇÃO,
DEMOCRATISMO
E
PLURALISMO. — É afirmação constante e generalizada
que existe uma estreita conexão entre os conceitos de
Descentralização e de democracia, também em relação
ao fato de que a luta pela Descentralização consistiu,
principalmente, na luta pelas autonomias locais a fim
de perseguir, além da Descentralização, objetivos de
democratização.
Alguns
viram
também
na
Descentralização o instrumento através do qual podem
manifestar-se inteiramente as forças da Nação (do
Estado-comunidade, conforme a terminologia mais
recente) em contraposição às forças do Estado (do
Estado-pessoa) que é institucionalmente dominado
pelo princípio da centralização. A Descentralização
seria o meio para poder chegar, através de uma
distribuição da soberania, a uma real liberdade
política.
"A centralização é autoritária e governativa, a
Descentralização é uma força liberal e constitucional":
esta afirmação resume as posições da doutrina
predominante, pela qual as mesmas palavras
"centralização
e
Descentralização"
provocam
imediatamente polêmicas entre os escritores
progressistas contra o absolutismo e o liberalismo do
século passado. Desde aquele tempo, esta afirmação
teve sucesso, apesar de arbitrária e fundamentada na
observação de uma realidade circunscrita e
contingente. Apesar disso, ela foi mantida sem crítica
no curso dos anos até a época atual. Deste modo,
continua-se a sustentar uma estreita conexão da
Descentralização com a liberdade e com a democracia.
Deve-se isso, substancialmente, a uma interpretação
"romântica" e a uma tendência idealizadora do
conceito de Descentralização. O erro consiste no fato
de ter partido de um postulado de uma distinção
dicotômica, que foi depois rigidamente mantida, entre
centralização e Descentralização, os dois termos
entendidos como posições bem definidas e
contrapostas. Isto levou a uma polarização de valores
no sentido de considerar a Descentralização como o
pólo positivo, no qual se situam valores como a
liberdade individual e o autogoverno democrático,
enquanto a centralização é o pólo negativo, autocrático
e totalitário.
Não devemos estranhar esta posição, se for verdade
que o poder torna-se efetivo somente quando
legitimado, ou seja, somente quando se movimenta no
âmbito da ideologia que o justifica em nome da qual
este pode ser imposto do alto e pode ser aceito pelas
camadas baixas. A equivalência entre o bem e a
Descentralização — enquanto garantia de liberdade —
e o mal e a centralização — enquanto sinônimo de
Estado autocrático — situa-se perfeitamente numa
época na qual uma série de valores genericamente
sintetizáveis
no
conceito
de
democratismo,
constituíram a base de muitas transformações
institucionais. Em última análise, situa-se outro tanto
corretamente, na mesma ordem de idéias, a
possibilidade de rechaçar a Descentralização como uma
instituição antidemocrática. Sem dúvida, se ocorre ter
idéias claras sobre a noção de democratismo, é também
verdade que, na opinião de muitos, as exigências de
igualdade, que são também exigências do
democratismo, sejam bastante favorecidas pela
centralização.
Um raciocínio análogo pode ser efetuado em
relação à noção de pluralismo. A garantia relativa às
formações sociais, nas quais se desenvolve a
DESCENTRALIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO
personalidade do homem como cidadão, contida no art.
2° da Constituição italiana, pode ligar-se à
Descentralização das funções públicas junto à
entidades autônomas locais ou de outra natureza,
visando melhor assegurar o exercício de suas funções,
confiando-as àqueles que parecem mais diretamente
interessados e, portanto, que podem ser considerados
mais idôneos para conferir ao todo o máximo de
funcionalidade. Somente desta forma pode ser superada
a concepção de que o Estado é a entidade na qual a
sociedade inteira, em todos os- seus aspectos e nas
suas articulações naturais, se unifica e se personifica,
apesar de quanto de pan-estatal nela exista, a partir da
tendência para considerar equivalentes os termos
"público" e "estatal" e pela influência que até hoje
exerce na interpretação do novo ordenamento
constitucional.
Na avaliação da essência do Estado moderno
adquire, evidentemente, valor a necessidade de
considerar, além do aspecto jurídico-formal, também o
substancial ou sociológico da distribuição do poder no
âmbito da comunidade, adotando uma concepção
orgânica do Estado, que valorize as organizações
comunitárias destinadas a ampliar os interesses
individuais. Aos ordenamentos do passado, baseados
na falsa certeza que o povo permanece unido em torno
de interesses apenas gerais e indiferenciados e, por
isso, centralizados e apoiados no aparelho do Estado,
substituem-se ordenamentos nos quais, com os
interesses nacionais, se alinha uma série de interesses
próprios das comunidades menores, para cuja obtenção
predispõem-se
estruturas
autônomas
e
descentralizadas. Assim sendo, a Descentralização
parece constituir o meio jurídico mais apropriado para
a afirmação do pluralismo dos centros de poder.
A Descentralização, todavia, pode ser somente um
instrumento que visa dar consistência efetiva ao
pluralismo, mas depende da efetividade do pluralismo
a imissão nas estruturas políticas e administrativas do
conceito "de parte" e de órgão ou entidades que podem
definir-se "exponenciais" de determinadas forças que
se movimentam no âmbito do ordenamento. Neste
sentido, a afirmação de que a falta de reconhecimento
das comunidades intermédias é, necessariamente, a
centralização ou que o 'reconhecimento destas
comunidades comporta, de qualquer maneira, a
Descentralização, deve ser submetida a uma revisão
muito atenta. Ficamos assim num plano diferente em
conseqüência do reconhecimento de uma instância de
liberdade, de liberdade do Estado, paralela à afirmação
dos direitos individuais de liberdade.
333
muitos dos equívocos surgidos em relação às noções
de centralização e Descentralização, acabam fundindose com aquela polarização de valores em virtude da
qual cada um buscou encontrar na descentralização,
aprioristicamente definida como um bem, o
desenvolvimento e a defesa dos valores da própria
ideologia. O tema específico da Descentralização da
administração pública, que no início do século era
limitado aos programas dos partidos progressistas, é
hoje objeto mais ou menos constante de controvérsias
ideológicas (mas somente para os métodos de sua
atuação ou relativamente ao lugar que deve ocupar no
conjunto do ordenamento geral). A Descentralização,
por isso, se insere como meta a ser perseguida nos
programas políticos de todos os partidos. Deve-se isto
ao fato de que cada um encontra na Descentralização
aquilo que considera mais oportuno e conveniente
encontrar, conforme se verifica com freqüência
também nos nossos dias.
Como a Descentralização pode identificar-se com
várias ideologias, é importante verificar quais são estas
num determinado momento histórico, numa sociedade
com um determinado desenvolvimento social, visto que
somente deste modo será possível estabelecer se a
Descentralização se efetua ou se em seu lugar atua uma
Descentralização fictícia e aparente, cujas motivações
profundas
devem
ser
pesquisadas.
Contemporaneamente será possível apurar se a
persistência da idéia de Descentralização traduz a
permanência de valores e de ideologias do precedente
período ainda válidos na realidade atual ou se estamos
nos defrontando com algo novo que poderá trazer
possibilidades de um conflito de valores. Torna-se
assim quase inevitável a indagação se a noção de
Descentralização não constitui, freqüentemente, uma
espécie de cobertura para debates que focalizam
substancialmente, além de outros, valores bem mais
profundos que dizem respeito à vida social.
VI. A DESCENTRALIZAÇÃO DO ORDENAMENTO
ADMINISTRATIVO ITALIANO. — Com referência ao
ordenamento republicano italiano após a centralização
herdada das monarquias absolutas, cuja manutenção foi
favorecida, primeiro, pela necessidade da unificação
nacional e, depois, pelo regime fascista, o tipo de
estrutura política e o regime constitucional tendem a
favorecer as condições para um desenvolvimento da
Descentralização, tanto política como administrativa. A
Descentralização política realiza-se mediante a
introdução do ordenamento regional, enquanto a
administrativa apóia-se na valorização das entidades
locais já existentes, mediante uma efetiva obra de
V. A DESCENTRALIZAÇÃO COMO VALOR. — Descentralização interna do aparelho burocrático do
Estado.
As observações desenvolvidas até hoje mostram como
334
DESCENTRALIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO
Este último tipo de Descentralização dentro da
organização administrativa do Estado merece uma
consideração
mais
aprofundada.
Para
bem
compreender
a
noção
de
Descentralização
administrativa, ocorre remontar à adoção do esquema
das prefeituras e à legislação administrativa adotada no
momento da unificação, que ainda hoje perduram nas
suas linhas essenciais. É neste momento da política
administrativa italiana que a resposta à escolha entre
centralização
e
Descentralização
manifesta-se,
definitivamente, não somente na recusa a adotar uma
Descentralização autárquica, mas também na
valorização de uma centralização bem mais
pronunciada no interior da organização unitária do
Estado.
Não somente as liberdades locais cessaram de
existir no momento em que nasceram, mas a mesma
estrutura organizativa do Estado que, desde então,
obrigava ao desenvolvimento de uma série respeitável
de órgãos periféricos, acabaram dominadas pelo
princípio de hierarquia.
O Estado terminava assim de constituir um aparelho
periférico próprio destinado a cuidar de seus interesses
a nível local, mas suscetível de entrar em conflito com
os órgãos das entidades locais e de sobrepor-se a eles.
Mesmo assim, o Estado estruturava seus órgãos
hierarquicamente, evidenciando como seu elemento
característico, a identidade de competências com os
órgãos centrais de cúpula. Desta forma foi possível
satisfazer a exigência de que os ministros
concentrassem não o máximo, mas a totalidade dos
poderes de decisão a fim de terem condições de
responder pelo andamento da coisa pública perante o
Parlamento. Ao mesmo tempo, porém, obstruía-se,
definitivamente, toda a possibilidade de um
harmonioso
desenvolvimento
do
aparelho
administrativo no sentido de Descentralização.
Hoje a situação mudou profundamente porque na
república italiana, como conseqüência de um claro
processo histórico, de acordo com as normas e a ordem
constitucional vigentes, e como aplicação de possíveis
diretivas de reforma conexas com atuais exigências
políticas, a solução do problema da Descentralização
administrativa não pode ser confiada apenas a uma
atuação melhor das autonomias locais.
A descentralização interna corre também na
organização administrativa do Estado, que se apóia no
art. 5.º da Constituição que podemos definir
burocrático. Isto implica a transferência de uma
atividade decisória para os órgãos administrativos
periféricos, não meramente executiva ou preparatória,
e a ruptura completa do módulo hierárquico como
módulo essencial do relacionamento entre si dos
órgãos administrativos.
A Descentralização implica a existência de uma
pluralidade de níveis de decisão exercidos de forma
autônoma pelos órgãos independentes do centro; isso
resultaria em vão, quando existisse a possibilidade
jurídica, por parte de outro órgão superior, de
substituir o órgão periférico em virtude de seus
poderes hierárquicos. Nesta base estrutura-se não
somente a independência do órgão periférico, mas
também sua especialização e sua responsabilidade,
enquanto a unidade da ação administrativa pode ser
adequadamente mantida, mediante as diretivas
emanadas dos órgãos centrais e a efetuação, por parte
dos mesmos, de um controle orientado a verificar a
adesão à lei dos órgãos periféricos.
As
tentativas
dirigidas
simplesmente
ao
descongestionamento da administração pública central,
multiplicando no interior da administração do Estado
os órgãos periféricos, sem incidir de maneira
substancial sobre o poder de decisão e sem se
sobrepujar à ordem hierárquica, dão finalmente lugar a
medidas de desconcentração ou, se preferirmos, de
Descentralização hierárquica.
No ordenamento italiano até hoje, as repetidas
tentativas
de
descentralizar
a
organização
administrativa do Estado conduziram unicamente a
limitar as medidas de desconcentração.
VII.
CLASSIFICAÇÕES
E
TIPOLOGIA
DA
— No âmbito da noção de
Descentralização é comum fazer-se uma série de
distinções, algumas apenas próprias da ciência jurídica,
outras de uso mais comum. Além de diferenciar a
Descentralização
da
desconcentração,
como
lembramos acima e além da distinção entre
Descentralização
política
e
Descentralização
administrativa, consideram-se habitualmente, de
maneira diferente a atribuição de funções para
entidades separadas do Estado, definida como
Descentralização autárquica ou também institucional e
o ordenamento descentralizado do poder no âmbito de
uma única organização definido como Descentralização
burocrática, conforme uma terminologia bastante
comum. As duas hipóteses correspondem, afinal, à
existência, já lembrada, de entidades autônomas locais
e de órgãos descentralizados no interior das estruturas
administrativas do aparelho estatal.
A estas duas hipóteses temos que acrescentar o
importante setor da "Descentralização dos serviços".
Com isto temos a constituição de entidades divididas
em setores homogêneos de atividades em vez da
criação de organismos descentralizados. Como
conseqüência temos um desenvolvimento maior da
autonomia técnica e financeira, juntamente com a
organização de atividades de caráter específico.
Ao tipo tradicional de organização
DESCENTRALIZAÇÃO.
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
adminisirativa de órgãos estruturados verticalmente,
substitui-se uma divisão horizontal das funções,
distribuídas
entre
unidades
organizativas
especializadas, quase sempre dotadas de uma
personalidade jurídica autônoma. É nesta última
direção que se manifestam, principalmente, as
tendências da moderna organização administrativa,
que compreendem também os chamados órgãos
públicos instrumentais. Estes, por sua vez, aparecem
como a conseqüência do desenvolvimento da
irrefreável tendência para a Descentralização, inspirada
em razões técnicas e que visa, em alguns países como
a França, a substituir as exigências da
Descentralização política, passando estas para segundo
plano. Finalmente, vale lembrar que a noção de
Descentralização administrativa não coincide com a de
autonomia local (especialmente províncias e
municípios), mesmo quando uma entidade autônoma
local propende a apresentar uma típica expressão de
Descentralização administrativa. Se a autonomia local
é, de fato, também Descentralização administrativa, o
que a caracteriza e a coloca num plano diferente é o
fato de que a autonomia local, mesmo quando não se
manifesta como autonomia política, não aparece como
uma derivação da organização administrativa do
Estado. Ela transcende o quadro conceptual de mera
Descentralização administrativa e se liga, como já foi
sublinhado, à temática da liberdade, e, portanto,
diretamente aos diversos conceitos de democratização
e pluralismo.
[FÁBIOROVERSI-MONACO]
Desobediência Civil.
I. OBEDIÊNCIA E RESISTÊNCIA. — Para compreender o
que se entende por "Desobediência civil" é necessário
partir da consideração de que o dever fundamental de
cada pessoa obrigada a um ordenamento jurídico é o
dever de obedecer às leis. Este dever é chamado de
obrigação política. A observância da obrigação política
por parte da grande maioria dos indivíduos, ou seja a
obediência geral e constante às leis é, ao mesmo
tempo, a condição e a prova da legitimidade do
ordenamento, se weberianamente entendermos por
"poder legítimo" aquele poder cujas ordens são
obedecidas enquanto tais, independentemente de seu
conteúdo. Pela mesma razão pela qual um poder que
pretende ser legítimo encoraja a obediência e
desencoraja a desobediência, enquanto que a
obediência às leis é uma obrigação e a desobediência
uma coisa ilícita, punida de várias maneiras, como tal.
335
A Desobediência civil é uma forma particular de
desobediência, na medida em que é executada com o
fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da
lei e com o fim mediato de induzir o legislador a
mudá-la. Como tal é acompanhada por parte de quem
a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja
considerada não apenas como lícita mas como
obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas
diferentemente de quaisquer outras transgressões.
Enquanto a desobediência comum é um ato que
desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou
eliminada a fim de que o ordenamento seja reintegrado
em seu estado original, a Desobediência civil é um ato
que tem em mira, em última instância, mudar o
ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato
inovador do que destruidor. Chama-se "civil"
precisamente porque quem a pratica acha que não
comete um ato de transgressão do próprio dever de
cidadão, julgando, bem ao contrário, que está se
comportando como bom cidadão naquela circunstância
particular que pende mais para a desobediência do que
para a obediência. Exatamente pelo seu caráter
demonstrativo e por seu fim inovador, o ato de
Desobediência civil tende a ganhar o máximo de
publicidade. Este caráter publicitário serve para
distingui-la nitidamente da desobediência comum:
enquanto o desobediente civil se expõe ao público e só
expondo-se ao público pode esperar alcançar seus
objetivos, o transgressor comum deve realizar sua
ação no máximo segredo, se desejar alcançar suas
metas.
As circunstâncias defendidas pelos fautores da
Desobediência civil e que favorecem mais a obrigação
da desobediência do que a da obediência são
substancialmente três: o caso da lei injusta, o caso da
lei ilegítima (isto é, emanada de quem não tem o
direito de legislar) e o caso da lei inválida (ou
inconstitucional).
Segundo
os
fautores
da
Desobediência civil, em todos estes casos não existe
lei em seu sentido pleno: no primeiro caso não o é
substancialmente; no segundo e no terceiro não o é
formalmente. O principal argumento deles é o de que
o dever (moral) de obedecer às leis existe na medida
em que é respeitado pelo legislador o dever de produzir
leis justas (conformes aos princípios de direito natural
ou racional, aos princípios gerais do direito ou como
se lhes queira chamar) e constitucionais (ou seja,
conformes aos princípios básicos e às regras formais
previstas pela Constituição). Entre cidadão e legislador
haveria uma relação de reciprocidade: se é verdade que
o legislador tem direito à obediência, também é
verdade que o cidadão tem o direito de ser governado
com sabedoria e com leis estabelecidas.
336
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
II. VÁRIAS FORMAS DE RESISTÊNCIA. — Se é
lícito desobedecer às leis, em que casos, dentro de que
limites e por parte de quem, tornou-se já um problema
tradicional que foi objeto de infinitas reflexões e
discussões entre filósofos, moralistas, juristas, teólogos,
etc. A expressão "Desobediência civil", a que nos
referimos, bem ao contrário, é moderna e entrou no uso
corrente através dos escritores políticos anglo-saxões, a
começar pelo ensaio clássico Civil disobedience (1849)
de Henry David Thoreau, no qual o escritor americano
declara recusar o pagamento das taxas ao Governo que
as emprega para fazer uma guerra injusta (a guerra
contra o México), afirmando: "a única obrigação que
eu tenho o direito de assumir é a de eu fazer em cada
circunstância o que eu acho justo". Depois, perante a
conseqüência do próprio ato que poderia levá-lo à
prisão, responde: "Num governo que prende
injustamente qualquer pessoa, o verdadeiro lugar para
um homem justo é a prisão".
Em sentido próprio, a Desobediência civil é apenas
uma das situações em que a violação da lei é
considerada como eticamente justificada por quem a
cumpre ou dela faz propaganda. Trata-se de situações
que habitualmente são compreendidas pela tradição
dominante da filosofia política sob a categoria do
direito à resistência. Alexandre Passerin d'Entrèves
distinguiu oito modos diferentes de o cidadão se
comportar diante da lei: 1.º obediência de
consentimento; 2.º obséquio formal; 3.° evasão oculta;
4.º obediência passiva; 5.° objeção de consciência; 6.°
desobediência civil; 7.º resistência passiva; 8.°
resistência ativa. As formas tradicionais de resistência
começam na resistência passiva e terminam na
resistência ativa. A Desobediência civil, em seu
significado restrito, é uma forma intermédia. Na esteira
de Rawls, d'Entrèves define-a como uma ação ilegal,
coletiva, pública e não violenta, que se atém a
princípios éticos superiores para obter uma mudança
nas leis. Podemos distinguir as situações que entram na
categoria geral do direito de resistência, baseados em
diversos critérios calcados no tipo de desobediência
em ato: a) omissiva ou comissiva que consiste em não
fazer o que é mandado (o serviço militar, por exemplo)
ou em fazer aquilo que é proibido (é o caso do negro
que se senta num lugar público interditado a pessoas
de cor); b) individual ou coletiva, segundo é realizada
por um indivíduo isolado (é típico o caso do objetor de
consciência, que geralmente age só e em decorrência
de um ditame da própria consciência individual) ou por
um grupo cujos membros condividem os mesmos
ideais (são exemplo típico disso as campanhas de
Gandhi pela libertação da Índia do domínio britânico);
c) clandestina ou pública, ou seja preparada e realizada
em segredo, como acontece e não pode deixar de
acontecer no atentado anárquico baseado na surpresa,
ou, então, anunciada antes da execução, como acontece
habitualmente com a ocupação das fábricas, de casas,
de escolas, feita com a finalidade de obter a revogação
de normas repressivas ou impeditivas consideradas
discriminatórias; d) pacífica ou violenta, isto é,
realizada através de meios não violentos, como o sit-in
e toda a forma de greve, de uma maneira geral
(falamos tanto da greve ilegal quanto da greve lícita,
havendo sempre formas de greve consideradas ilícitas),
ou com armas próprias ou impróprias, como acontece
geralmente numa situação revolucionária (note-se que
a passagem da ação não violenta para a ação violenta
coincide muitas vezes com a passagem da ação
omissiva para a ação comissiva); e) voltada para a
mudança de uma norma ou de um grupo de normas ou
até do ordenamento inteiro. Sua natureza não é de
molde a questionar todo o ordenamento, como
acontece com a objeção de consciência em relação à
obrigação de prestar o serviço militar, muitas vezes em
circunstâncias excepcionais, como é o caso de uma
guerra considerada particularmente injusta (para
darmos um exemplo recente que colocou em discussão
com particular intensidade o problema da
Desobediência civil, lembramos a guerra do Vietnam)
nem tende tampouco a derrubar um sistema por inteiro
como acontece com a ação revolucionária. Além disso,
a desobediência pode ser, segundo uma distinção que
remonta às teorias políticas da idade da Reforma,
passiva ou ativa. É passiva aquela que visa à parte
preceptiva da lei e não à parte punitiva; por outras
palavras, é aquela que é realizada com a vontade
precisa de aceitar a pena que daí resultar e, enquanto
tal, na medida em que não reconhece ao Estado o
direito de impor obrigações contra a consciência,
reconhece-lhe o direito de punir toda a violação das
próprias leis. Ativa é a que se dirige ao mesmo tempo
para a parte preceptiva e para a parte punitiva da lei, de
tal modo que o que a realiza não se limita a violar a
norma mas tenta subtrair-se à pena de todas as
maneiras.
Combinando os diversos aspectos de cada critério
com todos os outros se obtém um número notável de
situações que não é o caso enumerar aqui. Apenas para
dar um exemplo, a objeção de consciência ao serviço
militar (nos países onde a lei não a reconhece) é
omissiva, individual, pública, pacífica, parcial e realiza
uma forma de desobediência passiva. Outro exemplo
clássico é o do tiranicídio, que é comissivo, geralmente
individual e clandestino (não declarado por
antecipação), violento e total (tende, como o dos
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
monarcômacos das guerras religiosas dos séculos XVI
e XVII ou o dos anarquistas das lutas sociais do século
XIX, para uma mudança radical do Estado em
exercício) e realiza, também, uma forma de
desobediência ativa. Voltando à Desobediência civil,
tal como é concebida habitualmente na filosofia política
contemporânea — que leva em consideração as
grandes campanhas não violentas de Gandhi ou as
campanhas para a abolição da discriminação racial nos
Estados Unidos — ela é omissiva, coletiva, pública,
pacífica, não necessariamente parcial (a ação de
Gandhi foi certamente uma ação revolucionária) e não
necessariamente passiva (as grandes campanhas contra
a discriminação racial tendem a não reconhecer ao
Estado o direito de punir os pretensos crimes de lesa
discriminação).
337
e bem delimitado entre os dois tipos extremos,
historicamente mais freqüentes e também mais
estudados, da resistência individual não violenta e da
resistência violenta de grupo. A Desobediência civil
tem o caráter de fenômeno de grupo próprio da
resistência coletiva, pelo menos em certos casos de
massa e, ao mesmo tempo, tem o caráter predominante
da não-violência próprio da resistência individual. Por
outras palavras, é uma tentativa de repelir do grupo
"sedicioso" as técnicas de luta que lhe são familiares
(o recurso às armas, próprias ou impróprias) e levá-lo
a adotar comportamentos que são característicos do
objetor individual (a recusa de porte de armas, o nãopagamento de taxas, a abstenção da realização de um
ato que repugna à própria consciência, como a
adoração de deuses falsos e mentirosos, etc).
A Desobediência civil, enquanto é uma das várias
III.
OS
CARACTERES
ESPECÍFICOS
DA formas que pode assumir a resistência à lei, é também
DESOBEDIÊNCIA CIVIL. — Com a finalidade de e sempre caracterizada por um comportamento que põe
distinguir a Desobediência civil de todas as outras intencionalmente em ação uma conduta contrária a uma
situações que entram historicamente na vasta categoria ou mais leis. Deve portanto distinguir-se de
do direito de resistência, as duas características mais comportamentos que muitas vezes a acompanham e
relevantes entre as que acima foram citadas são a ação que, embora tenham o mesmo fim de contestar a
de grupo e a não violência. A primeira característica autoridade fora dos canais normais da oposição legal e
serve para distinguir a Desobediência civil dos do protesto público, não consistem numa violação
comportamentos de resistência individual sobre os intencional da lei. A primeira distinção a fazer é entre
quais se apoiaram geralmente as doutrinas da Desobediência civil e o fenômeno recente e clamoroso
resistência na história das lutas contra as várias formas da contestação, ainda que muitas vezes a contestação
de abuso de poder. Típico ato de resistência individual termine em episódios de Desobediência civil. O melhor
é a objeção de consciência (pelo menos na maior parte modo de distinguir a Desobediência civil da contestação
dos casos em que a recusa de servir às Forças é o recurso aos dois respectivos contrários: o contrário
Armadas não é feita em nome da militância em uma de desobediência é a obediência e o contrário de
seita religiosa, como a dos Mórmons ou dos contestação é a aceitação. Quem aceita um sistema está
Testemunhas de Jeová) ou o caso hipotético aventado obedecendo a ele; mas pode-se obedecer sem o aceitar
por Hobbes daquele que se rebela contra o soberano (na verdade a maior parte dos cidadãos obedece por
que o condena à morte e lhe impõe que se mate. A força de inércia, por hábito ou por imitação ou ainda
desobediência é individual mesmo quando apela para a por um vago medo das conseqüências de uma eventual
consciência de outros cidadãos, como é o caso de infração, sem entretanto ficar convencida de que o
Thoreau em não pagar as taxas. Individual também o sistema a que obedece seja o melhor dos sistemas
caso extremo de resistência à opressão, o tiranicídio. A possíveis). Por conseqüência, a desobediência na
segunda característica — a da não violência — serve medida em que exclui a obediência constitui um ato de
para distinguir a Desobediência civil da maior parte ruptura que põe em questão o ordenamento constituído
das formas de resistência de grupo, que diferentemente ou uma parte dele, mas não o coloca efetivamente em
das individuais (geralmente não violentas) deram lugar crise. Enquanto a Desobediência civil corresponde
a manifestações de violência onde quer que foram sempre a uma ação ainda que meramente
realizadas (desde o motim à rebelião, e desde a demonstrativa (rasgar, por exemplo, o certificado de
revolução à guerrilha).
convocação para o serviço militar), a contestação é
Se portanto tomarmos em consideração os dois feita através de um discurso crítico, através de um
critérios mais característicos dos vários fenômenos de protesto verbal ou da enunciação de um slogan (não é
resistência, o que distingue resistência individual de por acaso que o lugar onde se desenvolve mais
resistência coletiva e resistência violenta de resistência freqüentemente um comportamento de contestação é a
não violenta, a Desobediência civil, enquanto assembléia, que é um
fenômeno de resistência de grupo e não violento, ao
mesmo tempo, ocupa um lugar preciso
338
DESPOJOS, SISTEMA DOS
lugar onde não se age mas se fala. O outro
comportamento
que
convém
distinguir
da
Desobediência civil é o do protesto sob a forma não de
discurso mas de ação exemplar, como jejum
prolongado ou o suicídio público mediante formas
clamorosas de autodestruição (como o pegar o fogo no
próprio corpo depois de derramar nele matérias
inflamáveis). Antes de tudo, estas formas de protesto
não são, como a desobediência, ilegais (se se pode
discutir a liceidade do suicídio, não é certamente
discutível a liceidade de jejuar na medida em que não
existe a obrigação jurídica de comer); em segundo
lugar, elas pretendem atingir como meta modificar
uma ação da autoridade pública considerada injusta,
não de uma forma direta, isto é, fazendo o contrário
daquilo que deveria ser feito, mas indiretamente,
buscando despertar um sentimento de reprovação ou
de execração contra a ação que se quer combater.
convivência. O grande teórico do direito de resistência,
John Locke, é jusnaturalista, individualista e
contratualista e considera o Estado como uma
associação surgida do consenso comum dos cidadãos
para a proteção de seus direitos naturais. Ele exprime
seu pensamento deste modo: "O fim do Governo é o
bem dos homens; e que coisa é melhor para a
humanidade: que o povo se ache sempre exposto à
ilimitada vontade da tirania ou que os governantes se
achem por vezes expostos à oposição, quando se
tornam excessivos no uso de seu poder e o usam na
destruição e não na conservação das prerrogativas do
povo?" (Segundo tratado sobre o Governo, § 229).
Uma terceira fonte de justificação é, finalmente, a
idéia libertária da perversidade essencial de toda a
forma de poder sobre o homem, especialmente do
máximo poder que é o Estado com o corolário de que
todo o movimento que tende a impedir a prevaricação
do Estado é uma premissa necessária para instaurar o
reino da justiça, da liberdade e da paz. O ensaio de
Thoreau começa com estas palavras: "Eu aceito de
bom grado o mote: O melhor Governo é o que governa
menos — ... Levado às extremas conseqüências
conduz a esta outra afirmação em que também creio:
— O melhor Governo é o que de fato não governa".
Manifesta é a inspiração libertária em alguns grupos
de protesto e de mobilização de campanhas contra a
guerra do Vietnam nos Estados Unidos dos anos 60,
que teve no livro de Noam Chomsky, Os novos
mandarins, 1968, uma das expressões culturais mais
sábias.
IV. A DESOBEDIÊNCIA CIVIL E AS SUAS
JUSTIFICATIVAS. — A Desobediência civil é, como
se disse no início, um ato de transgressão da lei que
pretende ser justificado e que acha nesta justificação,
portanto, a razão da própria diferenciação de todas as
outras formas de transgressão. A fonte principal de
justificação é a idéia originariamente religiosa e,
posteriormente laicizada na doutrina do direito natural,
de uma idéia moral, que obriga todo o homem
enquanto homem e que como tal obriga
independentemente de toda a coação, e por
conseguinte em consciência, distinta da lei
promulgada pela autoridade política, que obriga
apenas exteriormente e se alguma vez obriga em
consciência é apenas na medida em que é conforme à
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., Civil di sobedience.
lei moral. Ainda hoje, os grandes movimentos de Theory and practice. New York 1969; S. GENDIN,
Desobediência civil, desde Gandhi até Luther King, Governamental toleration of civil disobedience. in
registraram uma forte conotação religiosa. Gandhi Philosophy and political action. Oxford University
disse certa vez a um tribunal que devia julgá-lo por um Press. London 1972 (e bibliografia citada); A.
ato de Desobediência civil: "Ouso fazer esta PASSERIN D'ENTRÈVES, Obbedienza e resistenza in una
declaração não certamente para subtrair-me à pena que società democratica, Edizioni di Comunità, Milano
deveria ser-me aplicada, mas para mostrar que eu 1970; Id., Obbligo politico e libertà di coscienza. in
desobedeci à ordem que me havia sido dada não por "Riv. int. fil. dir", 1973; R. POLIN, L'obligation
falta de respeito à autoridade legítima, mas para politique, P. U. F., Paris 1971; M. WALZER,
obedecer à lei mais alta do nosso ser — a voz da Obligation: Essays on disobedience, war and
consciência" (Autobiography, V Parte, cap. XV).
citizenship, Harvard University Press. Cambridge Mass.
A outra fonte histórica de justificação é a doutrina 1970.
de origem jusnaturalista, transmitida depois à filosofia
[NORBERTO BOBBIO]
utilitarista do século XIX, que afirma a supremacia do
indivíduo sobre o Estado e de que deriva a dupla
afirmação de que o indivíduo tem alguns direitos
originários e inalienáveis e que o Estado é uma Despojos, Sistema dos.
associação criada pelos próprios indivíduos através do
Spoils system é uma expressão que entrou na gíria
consenso comum (contrato social) para proteger seus
direitos fundamentais e assegurar a sua livre e pacífica política dos Estados Unidos nos meados do século
XIX e que foi depois canonizada pelo uso até se tornar
um termo técnico, para indicar uma das características
do emprego público
DESPOTISMO
americano; precisamente a de que muitas funções em
todos os níveis, seja no âmbito da administração
central, seja no da administração local, não são dadas
a pessoas de carreira, mas distribuídas, como se
fossem verdadeiros despojos de guerra, a membros do
partido vitorioso nas eleições.
As origens do sistema dos Despojos remontam aos
primeiros tempos da República, embora fosse com a
chegada de Andrew Jackson à presidência, em 1828,
que ele teve início, segundo a tradição. O seu
momento de maior esplendor, embora infausto, foi nos
decênios após a Guerra Civil, altura em que a
administração pública, inteiramente controlada . pelos
partidos, conheceu um período de profunda corrupção.
O Pendleton Act de 1883 tentou pôr fim nisso,
estabelecendo a obrigatoriedade do concurso público
para uma série de empregos federais. Mas os seus
efeitos não foram imediatos, e mesmo levou a uma
inversão de tendências que se tornou particularmente
forte entre as duas guerras mundiais. O Hatch Act de
1939 proibiu, depois, toda forma de atividade política
aos empregados públicos contratados por concurso.
Depois de 1945, não obstante o retrocesso assinalado
pela presidência de Eisenhower, durante a qual mais de
100 mil lugares sujeitos a concurso se tornaram
Despojos do partido republicano, a profissionalização
da administração federal quase se completou,
particularmente
nos
postos
intermediários,
permanecendo à disposição dos partidos — além de
uma parte dos empregos nos Correios, reserva
tradicional dos Despojos —, sobretudo uma série de
postos de níveis mais altos da administração federal e
agências coligadas, onde as funções de policy making
são relevantes, como numerosos outros de níveis mais
baixos e não qualificados. O spoils system não é
portanto hoje uma característica importante da
burocracia americana, embora esta não tenha ainda
alcançado a rigidez da administração central de muitas
nações européias. O sistema entretanto está bastante
difundido a nível estadual e local, onde em muitos
casos faltam leis correspondentes ao Pendleton Act e
onde, de qualquer forma, abundam empregos de todo
tipo, por vezes simples sinecuras, à disposição das
máquinas dos partidos que deles se servem para
manter os próprios ativistas e funcionários.
O spoils system é portanto essencial para manter
em funcionamento a máquina dos partidos, função
que é tida por muitos como irrefutável, uma vez que é
tirada dele a parte vital da administração federal. Um
juízo de conjunto sobre o sistema dos Despojos é
talvez impossível. De qualquer maneira, é necessário
ter presente a aversão inveterada do povo pelo
executivo — não foi em vão que a profissionalização
da burocracia se deu
339
sobretudo a nível federal e se desenvolveu pari passu
com a ampliação dos poderes do Presidente e com a
sua desvinculação de muitos dos controles do
legislativo —, aversão que se reflete no grande
número de cargos
administrativos eletivos,
semelhantes por sua vez aos Despojos, e na grande
confiança dada aos partidos, tidos como mediadores da
vontade popular. Este último fato, que torna os
próprios partidos organismos descentralizados e
complexos, destinados a refletir e a proteger idéias e
interesses imediatos dos seus eleitores, pode fazer
parecer justificada a mudança de muitos empregados
públicos em cada mudança eleitoral. Se a escassa
diferenciação entre os partidos, sobretudo a nível
local, faz com que as mudanças devidas aos Despojos
não provoquem disfunções administrativas, fica porém
a verdade de que através do spoils system os partidos
são indiretamente financiados pela comunidade, se
tornam instrumentos de poder a nível público nas
mãos de boss locais que controlam os Despojos e
ficam ligados a uma ética privada na gestão da coisa
pública, que destoa sempre mais da complexidade
organizativa da sociedade americana contemporânea.
[TIZIANO BONAZZI]
Despotismo.
I. CONSIDERAÇÕES GERAIS. — 'Despotismo' significa,
em sentido específico, a forma de Governo em que
quem detém o poder mantém, em relação aos seus
súditos, o mesmo tipo de relação que o senhor (em
grego"despotes") tem para com os escravos que lhe
pertencem. Como se sabe, Aristóteles distingue, desde
as primeiras páginas de Política, três tipos de relação
de domínio: o conjugai, ou do marido sobre a mulher;
o paterno, ou do pai sobre os filhos; e o patronal ou
despósitos, que é o do senhor sobre os escravos. Com
base nesta distinção, desde a Antigüidade se vem
chamando despótica a forma de Governo em que a
relação entre governantes e governados pode ser
comparada à existente entre senhor e escravos Em
sentido genérico, mormente na linguagem política
moderna que esqueceu o siginficado etimológico da
palavra. Despotismo é polemicamente usado para
indicar qualquer forma de Governo absoluto, sendo
muitas vezes sinônimo de tirania, ditadura, autocracia,
absolutismo e outras formas semelhantes. Só quando
se tem em conta o significado originário da palavra e o
uso técnico que dela se fez na tradição da filosofia
política, é que o termo
540
DESPOTISMO
Despotismo indica uma forma de Governo diferente
das outras com que no discurso polemicamente
genérico se confunde. Despotismo, ditadura,
autocracia têm de comum serem formas de Governo
em que o detentor do poder o exerce sem limites de
leis naturais, consuetudinárias, impostas por órgãos ad
hoc, etc, isto é, detém um poder absoluto, ou legibus
solutus, e arbitrário, ou exclusivamente dependente da
própria vontade. Mas as diferenças não são menos
relevantes: enquanto o caráter absoluto do poder
despótico está estreitamente ligado ao caráter dos
súditos, naturalmente dispostos à obediência e
incapazes de se governar por si próprios (segundo a
tradição aristotélica, assim como há indivíduos que são
escravos por natureza, também há povos naturalmente
escravos), o absolutismo do poder tirânico depende da
natureza do governante, que despreza as leis
estabelecidas e governa segundo o seu capricho;
enquanto o absolutismo do déspota depende mais de
circunstâncias locais (povos dispostos por tendência à
escravidão, consoante a tradição que se prolongou até
às famosas observações de Montesquieu sobre o
Despotismo e até mais longe ainda, são os povos que
habitam as grandes regiões da Ásia, os "bárbaros" para
os gregos), o absolutismo do ditador depende, antes de
tudo, de circunstâncias temporais, ou seja, da
ocorrência de circunstâncias excepcionais, como, por
exemplo, uma guerra, que impõem, embora
temporariamente, a suspensão das garantias
constitucionais e a instituição de um poder que possa
agir à margem das leis estabelecidas ou com leis
excepcionais. Só o termo "autocrata", no significado
daquele que governa por si mesmo, é um termo
genérico, conquanto historicamente usado para
designar principalmente o Governo do czar da Rússia,
uso hoje obsoleto, possuidor às vezes de um
significado meramente polêmico que pode substituir,
segundo os diversos contextos, tanto déspota como
tirano e ditador (mas no sentido moderno, também
genérico, e não no sentido antigo e específico da
palavra). Mais: enquanto a tirania é uma forma
degenerada de Governo, tanto na sua forma ilegal de
governar (tirania quanto ao modo de exercício do
poder), quanto na sua forma ilegítima (tirania no
respeitante ao título de aquisição do poder, ou
usurpação), o Despotismo, como aliás a ditadura, foi
sempre considerado como uma forma de Governo
perfeitamente legítima, enquanto apropriada a
determinadas circunstâncias de lugar e à natureza de
certos povos particulares que se pretendia ou presumia
ser incapazes de viver coletivamente, se não fosse em
estado de absoluta sujeição e de obediência
incondicionada, semelhante à escravidão. Finalmente,
enquanto a ditadura, aliás como a tirania,
é uma forma de Governo de breve duração (a ditadura,
por princípio, desde que o ditador romano era
nomeado por um período de seis meses, e a tirania, de
fato, uma vez que o tirano está geralmente destinado a
sucumbir em conseqüência dos próprios excessos), o
Despotismo é uma forma de Governo durável, até
talvez a forma de Governo que tem tido mais longa
duração, como há bem pouco sustentou quem, como
Wittfogel, analisou as condições, as formas e os modos
do chamado "despotismo oriental".
II. O DESPOTISMO EM ARISTÓTELES. — Em
seu significado técnico e, portanto, restrito e específico,
o conceito de Despotismo nasce, como de resto grande
parte dos conceitos de teoria política do Ocidente, da
Política de Aristóteles. No livro terceiro, ele distingue
várias formas de monarquia. Uma delas é a "que é
própria de muitos povos bárbaros". Logo a seguir
especifica que estes povos bárbaros são os povos
asiáticos. A razão por que tais monarquias são
diferentes das que têm dominado desde os tempos
heróicos e ainda dominam na Grécia (na Esparta, por
exemplo), é que, "sendo esses povos bárbaros mais
servis dos que os gregos.... suportam sem dificuldade o
poder despótico exercido sobre eles" (1285 a). O que
caracteriza, portanto, esta forma de Governo é que, pela
própria índole dos povos sobre os quais se estende e,
conseqüentemente, por uma razão objetiva, a relação
entre governante e governados é da mesma natureza
que a existente entre senhor e escravo. O próprio
Aristóteles tem o cuidado de advertir dentro do mesmo
contexto que, embora suscetível de se confundir com a
tirania pelo modo como é exercido o poder (com efeito,
é perfeitamente correto dizer que o tirano governa de
modo despótico), a monarquia despótica é uma forma
de Governo diferente. A diferença verdadeiramente
essencial está no fato de que a tirania constitui uma
forma ilegal ou ilegítima, tanto pelo título como pelo
exercício do poder. Tanto é assim que é descrita
noutras passagens da obra (1279 b) como uma das
formas degeneradas ou corrompidas, ao passo que a
monarquia despótica, como monarquia, pertence às
formas não deturpadas. Eis palavras de Aristóteles:
"Esta [a monarquia despótica] possui um poder muito
semelhante ao das tiranias, se bem que seja legítima e
transmitida por direito hereditário". E pouco mais à
frente: "... estes reinos são tirânicos, embora seguros,
pois estão baseados na lei e na transmissão
hereditária". Mais adiante, ao resumir a tipologia das
monarquias, volta a definir a monarquia "bárbara" com
estes três atributos: "legal, despótica e hereditária"
(1285 b). Enquanto legal, ela se distingue da
DESPOTISMO
tirania; enquanto despótica, das monarquias antigas e
modernas da Grécia; enquanto hereditária, tanto da
tirania — especialmente da tirania por falta de título,
ou por usurpação — quanto do governo dos eximnetai,
que é um Governo despótico, mas eletivo. Finalmente,
na passagem dedicada à descrição das várias formas de
tirania, volta ao tema das monarquias que são tirânicas
pelo modo como é exercido o poder (as monarquias
bárbaras ou orientais e o reino dos eximnetai),
distinguindo-as da verdadeira e autêntica tirania, que é
a forma de Governo em que quem detém o poder o
exerce não só despoticamente, mas também sem a ele
ter direito, ou porque é um usurpador (e pode-o ser nas
monarquias hereditárias, não sendo o herdeiro segundo
a lei que regula a sucessão no trono, e nas monarquias
eletivas, não tendo sido eleito segundo as normas que
regulam o processo da eleição), ou porque governa
sobre povos livres como se fossem escravos. A forma
mais característica de tirania é, pois, aquela em que o
senhor domina "sobre melhores e iguais" e se exerce,
portanto, "contra a vontade dos súditos, já que
nenhum homem livre suportaria um domínio assim"
(1295 a). A monarquia despótica, pelo contrário,
reinando sobre povos naturalmente escravos, exerce o
poder sobre sujeitos que se submetem voluntariamente
a esse poder absoluto e arbitrário.
O que é ainda importante observar nesta tipologia
aristotélica é isto: como degeneração de uma
monarquia legítima e legal, a tirania não possui um
lugar histórico e geográfico próprio, mas toda a
monarquia se pode corromper e degenerar, dando
lugar a uma forma deturpada de Governo. Podem darse tiranias em todo o tempo e lugar. O Despotismo, ao
invés, é uma forma de Governo histórica e
geograficamente bem determinada, que corresponde a
certas condições de tempo e de lugar e, como tal,
conquanto os não bárbaros a possam julgar
desfavoravelmente, pertence ao número das formas
puras e não adulteradas de Governo. Em conclusão, o
Despotismo é a forma de Governo (mais precisamente
de monarquia) que possui as seguintes características:
a) a relação entre governantes e governados é
semelhante à relação entre senhor e escravos, b) dá-se
onde existem povos naturalmente escravos; c) estes
povos são os povos bárbaros, especificamente os da
Ásia.
Com esta descrição das monarquias asiáticas,
Aristóteles introduziu na teoria política uma categoria
destinada a gozar de grande sucesso no decorrer dos
séculos (chegou até aos nossos dias), a do Despotismo
oriental. Na tradição aristotélica dos grandes
escritores medievais, após a redescoberta da Política,
o tema é retomado sem
341
significativas variações. Veja-se o comentário de S.
Tomás a essa obra: depois de haver exposto o
conceito aristotélico segundo o qual "os bárbaros
suportam a monarquia despótica (principatus
dominativus) sem se lamentar por isso, por serem
inclinados a suportá-la", especifica: "O que é segundo
a inclinação é natural e voluntário" (In libros
politicorum Aristotelis expositio, ed. Marietti, n.° 478,
p. 170), recalcando assim o caráter de naturalidade e,
por conseguinte, de legitimidade da monarquia
despótica em determinadas circunstâncias de tempo e
de lugar. Ptolomeu de Lucca, no De regimine
principum, distingue o principatus politicus do
principatus dispoticus e explica que o segundo "é
próprio do senhor em relação ao servo" (Livro II, c.
VIII). No Defensor pacis, Marsílio de Pádua escreve,
parafraseando Aristóteles: "Outro modo é o de como
reinam certos monarcas asiáticos, que recebem o
domínio por sucessão hereditária, de acordo com a lei;
mas esta lei é quase como a dos déspotas, porque está
mais voltada para o proveito do monarca do que para
o completo interesse da comunidade. Os habitantes
dessa região suportam tal Governo sem tristeza, devido
à sua natureza bárbara e servil e à força do costume.
Mas, no entanto, este Governo á régio, porque é
originário do país e se exerce sobre súditos
voluntários, quiçá em virtude de que os antepassados
do monarca foram os primeiros habitantes da região.
Mas, num certo sentido, é também tirânico, na medida
em que as suas leis não estão absolutamente voltadas
para o benefício comum, mas antes para o do
monarca" (I, 9, 4).
III. DE MAQUIAVEL A HOBBES. — A teoria das
formas de Governo teve, depois de Aristóteles, como
todos sabem, seu maior autor em Maquiavel. Para
Maquiavel são duas as principais formas de Governo:
o principado ou monarquia e a república. Duas são
também as espécies de principado: o de um príncipe
onde todos os demais são servos que, por soa graça e
concessão, ajudam, como ministros, a governar o
reino; e o de um príncipe e barões que, "não por graça
do senhor, mas pela antigüidade do sangue, possuem
esse grau". Entre as formas de Governo monárquico,
Aristóteles distinguira cinco; todos os aristotélicos o
seguiram. Maquiavel é um inovador, não só no que
respeita à distinção fundamental, pois reúne a
aristocracia e a democracia dos antigos na república,
como também no concernente à subdistinção das
formas monárquicas, que reduz a duas. Destas, a
primeira, ou seja, aquela em que um só é príncipe e
todos os demais são servos, é, sem dúvida, a
monarquia despótica dos antigos. É interessante notar
que Maquiavel atualiza a
342
DESPOTISMO
exemplificação: exemplo típico do reino despótico já
não são mais os antigos impérios asiáticos, mas o reino
turco que lhe é contemporâneo (trata-se sempre, não
obstante, de um Estado extra-europeu): "Os exemplos
destas duas diversidades de Governo são, no nosso
tempo, o Turco e o rei da França. Toda a monarquia
do Turco é governada por um senhor, os outros são
seus servos: dividindo o seu reino em Sanjacos, para lá
manda diversos administradores, mudando-os e
revezando-os como lhe parece" (Il príncipe, c. IV).
Depois de Aristóteles, o tratado mais amplo e
articulado das formas de Governo é o que se encontra
no segundo dos seis livros da República de Jean
Bodin. Pondo de parte as formas arcaicas de
monarquia lembradas por Aristóteles e rejeitando a
distinção tradicional entre formas boas e formas más
de Governo, Bodin distingue três tipos de monarquia
que designa respectivamente como "despótica", "régia"
e "tirânica", levando precisamente em conta não três
diversos tipos de regime, mas três diversos modos de
exercer o mesmo tipo de poder, que é o poder régio,
ou seja, o supremo poder concentrado numa só
pessoa. É assim que define a monarquia despótica: "...
aquela em que o príncipe se tornou senhor dos bens e
das pessoas dos súditos pelo direito das armas e da
guerra justa, e governa os súditos como um chefe de
família governa os seus escravos" (Livro II, c. 2, ed.
UTET, p. 570). Nesta definição há a notar duas coisas:
primeiro, a costumada assimilação da relação de poder
despótico à relação entre senhor e escravos,
segundo,uma motivação neste tipo de relação
totalmente diversa da tradicional, que se fundava na
natureza servil de certos povos. Para Bodin, o
fundamento do poder despótico é unicamente a
conquista e, além disso, a conquista numa guerra
justa. Isto quer dizer que, para Bodin, como aliás para
todos os escritores políticos cristãos, a escravidão só
pode ter uma causa, o cativeiro de guerra, entenda-se
de uma guerra justa, porque só em tal caso o vencedor
mantém aquele que conquistou por direito e não
apenas pela força. Considerada a guerra justa como
uma sanção, a escravidão é o castigo conseqüente e,
como tal, isto é, como conseqüência de um delito, é
lícita. Comum com a tradição é em Bodin a
especificação das monarquias despóticas dos grandes
impérios exóticos. "Existem ainda algumas — diz ele
— na Ásia, na Etiópia e mesmo na Europa, como, por
exemplo, a senhoria dos Tártaros e a Moscóvia" (p.
573). Mas a casuística apresenta-se enriquecida com
uma referência aos primeiros grandes impérios
coloniais. A propósito de Carlos V, Bodin observa
que, "subjugado o reino do Peru, ele se tornou seu
monarca despótico" (p. 577).
De resto, não obstante a diferente motivação do
Despotismo, mantém-se ainda assaz viva em Bodin, e
manter-se-á pelos próximos séculos, a contraposição
entre os países extra-europeus, habitualmente sujeitos a
regimes despóticos, e os países europeus, que deles
ficaram geralmente imunes. A respeito do reino
despótico da Etiópia comenta: "Ao invés, os povos
europeus, mais altivos e guerreiros que os africanos,
jamais puderam tolerar monarquias despóticas" (p.
575). Outro traço característico e qualificativo do
despotismo oriental em que Bodin insiste é o da
duração: "As monarquias despóticas foram grandes e
sumamente duradouras: foi assim com as antigas
monarquias dos assírios, dos medas, dos persas, dos
egípcios, e o é hoje com a dos etíopes, a mais antiga
monarquia de toda a Ásia e África, que mantém
submissos como escravos cinqüenta reis, se dermos
crédito a Paulo Giovio" (p. 579). A razão desta
duração está, segundo Bodin, na plenitude e totalidade
do poder (antecipando uma categoria política
contemporânea, estaríamos tentados a traduzir a
caracterização bodiniana do pleno poder com o
atributo "totalitário"), que torna vis e servis os súditos:
em contraste com a tradição aristotélica, o caráter servil
desses povos não é a causa do Despotismo, mas a
conseqüência.
Bodin capta bem a diferença entre Despotismo e
tirania. Conquanto rejeite a distinção entre formas
boas e formas más de Governo e considere tanto o
Despotismo quanto a tirania como duas espécies de
monarquia, reconhece que existe uma diferença
fundamental entre tratar como escravos os que deveras
o são (sejam eles escravos por natureza ou por
expiação de uma culpa), e tratar como escravos
homens e povos livres. O déspota reina como senhor
sobre escravos, o tirano reina como senhor sobre pessoas
livres Isto poderiam até explicar por que é que os reinos
despóticos duram e as tiranias se mantêm, em geral,
por breve tempo. "Os homens livres e senhores dos
seus bens, quando tentam escravizá-los ou usurpar o
que lhes pertence, depressa se rebelam, porque
possuem um espírito nobre, nutrido de liberdade e não
abastardado pela servidão" (p. 579). Tanto a
monarquia despótica como a tirânica se distinguem
ainda da régia que. diversamente da primeira, não
reina sobre escravos e, em contraste com a segunda,
não trata os livres como escravos.
Também Hobbes e Locke baseiam o reino despótico
na conquista. Escreve Hobbes no Leviatã: "O domínio
adquirido com a conquista ou com a vitória bélica é o
que alguns escritores chamam despótico, de despótes,
que significa senhor ou patrão, e é o domínio do patrão
sobre o servo" (c. XX). É de notar, em relação à análoga
fundamentação de Bodin. que falta aqui sequer a
DESPOTISMO
referência à guerra justa. É que, para Hobbes, não há
justiça antes de um pacto ou de uma lei oriunda de um
pacto: e o pacto entre vencedor e vencido surge
somente depois da vitória; mais, é esse mesmo ato que
legitima o poder do primeiro sobre o segundo.
No capítulo XV do Segundo tratado sobre o
governo, Locke distingue as três formas tradicionais
de domínio do homem sobre o homem, o paterno, o
civil e o despótico, apoiando-se na sua diversa base de
legitimação: o domínio paterno funda-se na geração,
tendo, por isso, um fundamento natural; o civil assenta
no consenso, tendo,
conseqüentemente,
um
fundamento contratual ou convencional; o despótico
estriba no direito que o vencedor de uma guerra justa
tem de punir os vencidos, tratando-os como escravos.
Esta tripartição interessa a Locke não só para fins
descritivos, mas também para sustentar que, em geral,
afora casos excepcionais, só é Governo legítimo aquele
que se funda no consenso, e para condenar tanto as
doutrinas paternalistas do poder político, quanto as
despóticas. Na caracterização do Governo despótico,
Locke segue, por um lado, a tradição que vê nesta
forma de Governo a transposição da relação existente
entre senhor e escravo para o âmbito da relação
governante-governado, e, por outro, reafirma a
doutrina já surgida com Bodin, segundo a qual o único
fundamento de legitimidade do Governo despótico é a
vitória numa guerra justa. Particularmente interessado
pelo problema da relação entre poder político e
propriedade, Locke explica também as diferenças entre
as diversas formas de domínio pelo diverso modo de
ordenar a propriedade: poder político é aquele em que
os cidadãos podem dispor livremente das suas
propriedades; paterno, quando os destinatários do
poder não podem temporariamente gozar da
propriedade, isto é, enquanto não atingirem a
maioridade; despótico, quando os súditos não possuem
propriedade alguma. Entre as notas características do
Despotismo oriental, existe sempre também esta: o
déspota é senhor efetivo (e não apenas de modo
eminente) das terras sobre que governa; nelas não
existe, portanto, propriedade privada no sentido estrito
da palavra, ou seja, a propriedade como direito de
gozar e dispor da coisa como aprouver.
IV.
O
DESPOTISMO
SEGUNDO
MONTESQUIEU. — A consagração da categoria do
despotismo oriental dá-se na obra de Montesquieu,
onde o Despotismo se ergue pela primeira vez à
dignidade de tipo primário de forma de Governo ao
lado da monarquia e da república. Como já se disse,
Maquiavel havia reduzido a duas, monarquia e
república, as formas fundamentais de Governo e,
343
por isso, subdistinguira a monarquia em duas
subespécies, das quais uma era a monarquia despótica.
Em Esprit des lois, Montesquieu distingue três formas
de Governo, a monarquia, a república e o Despotismo.
Deste modo, o Despotismo torna-se uma forma
autônoma, deixando de ser apenas, como tinha sido
até então, uma espécie do gênero monarquia.
Distingue-as segundo a sua natureza e segundo o seu
princípio. Segundo a natureza, o Governo despótico é
o Governo em que "um só, sem leis nem freios,
arrasta tudo e todos atrás dos seus desejos e
caprichos" (Livro II, c. I). Segundo o princípio, o
Governo despótico se rege pelo medo, enquanto que o
monárquico se guia pela honra e o republicano pela
virtude. Ninguém antes de Montesquieu tinha tratado
do Despotismo com tanta amplitude e com uma
preocupação tão grande até pelos mínimos detalhes. O
Governo despótico é ali analisado em suas
instituições, nas suas relações com a educação, com a
administração da justiça, com a exação dos tributos,
com o comércio, com a religião e por aí afora.
Dos temas tradicionais o tratado de Montesquieu
mantém inalterado o da relação servil entre
governantes e governados. A propósito da educação
escreve que, nos Governos despóticos, "a educação
tem de ser servil" (Livro IV, c. III). E da condição das
mulheres: "Nos estados despóticos, as mulheres não
introduzem o luxo, são elas mesmas objeto de luxo.
São obrigadas a viver numa condição de extrema
escravidão" (Livro VII, c. IX). Os povos que estão
sujeitos a um regime despótico se encontram num
estado de escravidão política, quando não num estado
de completa escravidão civil. Outra idéia em que
Montesquieu segue a doutrina tradicional do
Despotismo é a que faz dos grandes impérios antigos e
modernos do Oriente o teatro deste abominável
regime, tão contrário à natureza dos povos europeus. O
protótipo dos regimes despóticos é, para Montesquieu,
o império chinês. Enquanto a monarquia e a república
são as formas de Governo que fomentaram o
desenvolvimento civil e intelectual europeu, o
Despotismo é a forma de Governo que manteve o
continente asiático num estado de constante atraso e
fez dos grandes impérios que lá se sucederam,
sociedades sem história. No artigo Despotisme da
Encyclopédie, tirado de Esprit des lois, os reinos
despóticos, definidos como Governos "tirânicos,
arbitrários, absolutos de um só homem", são situados
na Turquia, no Mogol, no Japão, na Pérsia, ou seja, em
"quase toda a Ásia".
Depois de Montesquieu, a contraposição da
monarquia ou da república, únicos governos
consentâneos com os povos civilizados, ao
Despotismo em que jazem os povos orientais, torna-se
um
$44
DESPOTISMO
dos tópicos da cultura iluminística, um dos traços
constantes da polêmica dos "philosophes" contra os
séculos e os povos obscuros. Em sua obra principal,
De 1'esprit (1758), Helvétius se detém longamente no
confronto entre Governos "livres" e "despóticos"
(principalmente nos capítulos XVI-XXI do terceiro
Discurso), mas, no momento em que enfrenta o
problema do seu contraste, logo adverte que, ao falar
de Despotismo, se refere àquele "desejo desenfreado
de poder arbitrário como o que se exerce no Oriente".
Se há mil razões para execrar o Despotismo, o autor
de De 1'esprit não deixa escapar nenhuma. Distingue
duas espécies de Despotismo, o que se abate de
improviso com sua força sobre uma nação virtuosa
como a Grécia, e o que se instaura, com o andar do
tempo, no luxo e na moleza. Deste, que predomina
nos grandes impérios orientais, ele julga ocupar-se
mostrando seus tristes efeitos sobre a natureza das
instituições e sobre o caráter dos súditos,
particularmente no que respeita ao aviltamento da
virtude, que era, para Montesquieu, o princípio
inspirador das repúblicas.
No Esprit des lois, o tema das razões do Despotismo
se tinha, no entanto, ampliado: entre elas não se
contava já apenas a natureza dos povos servis,
segundo a tradição que remontava aos gregos, mas
igualmente o clima, a natureza do território, o caráter
das instituições, das quais a mais importante era o
vizirado, e a religião, particularmente a religião
maometana, que, na expressão de Montesquieu,
"falando só a linguagem da espada, age ainda hoje
sobre os homens com o mesmo espírito destruidor que
lhe deu vida" (Livro XXIV, c. IV). A relação de
dependência do Despotismo da religião é o tema
fundamental de Recherches sur 1'origine du
despotisme oriental de Nicolas-Antoine Boulanger,
obra póstuma aparecida em 1762, cerca de quinze anos
depois de Esprit des lois. Segundo Boulanger, a
origem de todos os males da humanidade está no poder
da religião, ou, para melhor dizer, dos sacerdotes, isto
é, na teocracia, que, tornando o homem idólatra, o
torna também escravo, bárbaro e selvagem:
"Conquanto se afigure sublime um Governo que só tem
o céu como perspectiva e que pretende fazer dele seu
modelo, não poderá ter na terra, contudo, senão um
sucesso funesto. O edifício político construído aqui
embaixo sobre tal especulação, há de necessariamente
ruir e provocar os maiores males" (séc. XI). Enquanto
no Ocidente a teocracia tem dado origem ao
banditismo e à liberdade desenfreada do selvagem, no
Oriente, pelo contrário, deu lugar a regimes despóticos,
cujas vítimas têm sido e continuam a ser os respectivos
países: "Entre todos os vícios políticos
da teocracia — escreve ele — eis o mais grave e o
mais fatal, o que preparou o caminho para o
despotismo oriental" (séc. XI). Ou ainda: "Todo o
Oriente se acha ainda nesta situação: ninguém ali pode
compreender o que são as nossas repúblicas da
Europa, tidas como sociedades monstruosas. E um
preconceito que não tem como origem senão as antigas
idéias teocráticas, jamais totalmente apagadas nesta
parte do mundo" (séc. XII). Daí se segue que a luta por
uma "Europe raisonnable" deva ser, ao mesmo tempo,
uma luta contra o Despotismo e a religião sua aliada.
V. O DESPOTISMO COMO CATEGORIA
POLÊMICA. — A par do significado específico de
Despotismo exposto até aqui, ocorre também na
literatura do século XVIII um significado genérico, o
de Governo arbitrário, que, como tal, não é próprio
apenas dos povos orientais mas também de outros
povos, dos europeus por exemplo, em determinados
momentos da sua história. Assim entendido, o
Despotismo transforma-se num conceito polêmico de
que alguns escritores políticos se servem até para
criticar e combater seu próprio Governo. Em Essai sur
le despotisme, publicação anônima de 1776, GabrielHonoré Mirabeau considera a propensão para o
Despotismo, ou mando arbitrário, como um dado
constante da natureza de cada indivíduo e de cada
povo. Não há povo que, em sua história, não tenha
conhecido períodos em que o Governo se transformou
de livre em despótico. Só a Suíça é exceção. Embora
reconheça que é a Ásia que continua vítima do "flagelo
destruidor" do Despotismo, de que foi berço, Mirabeau
não hesita em levantar-se como acusador do Governo
despótico de Luís XIV. A caracterização que ele faz do
Governo despótico é genérica. Considera-o como
corrupção do bom Governo, como algo mais parecido
com a tirania do que com o Despotismo, no sentido
próprio da palavra: "Pretendo demonstrar — escreve
ele — que o despotismo é, no soberano, amor ao
desfrute e, em conseqüência, que a sujeição ao
despotismo é, nos povos, ignorância ou esquecimento
dos próprios direitos. Instrua-se o rei e os súditos e o
Despotismo será cortado de raiz" (ed. original, pp. 4748).
Como categoria essencialmente polêmica, o
Despotismo reaparece
no célebre pamphlet
antinapoleônico de Benjamin Constant, De 1'esprit de
conquête et de l'usurpation dans leurs rapports avec
la civilisation européenne (1813): "Eu entendo por
Despotismo — escreve Constant — um Governo onde
a vontade do senhor é a única lei; onde as
corporações, quando existentes, não são senão seus
órgãos; onde o senhor se considera o único
proprietário do seu império e não vê nos
DESPOTISMO
seus súditos senão usufrutuários; onde a liberdade
pode ser tirada aos cidadãos, sem que a autoridade se
digne explicar os motivos e sem que se possa ter a
pretensão de os conhecer; onde os tribunais estão
subordinados aos caprichos do poder; onde as suas
sentenças podem ser anuladas; onde os absolvidos são
conduzidos perante novos juizes, instruídos pelo
exemplo dos seus predecessores de que não existem
senão para condenar" (Parte I, c. IX). Na realidade, a
crítica de Constant é uma crítica direta à usurpação e
só uma crítica indireta ao Despotismo, já que este,
como Governo arbitrário, é um modo de exercer o
poder que permite ao usurpador conservá-lo. Em suas
páginas, a diferença entre Despotismo e usurpação
corresponde à distinção clássica entre o tirano de
exercício e o tirano de título. Mais uma vez, o conceito
genérico de Despotismo se sobrepõe ao de tirania.
Enquanto na teoria clássica do Despotismo oriental, a
forma de Governo despótico é a de maior estabilidade
e, por isso, de mais longa duração, para Constam os
Governos despóticos não estão fadados a durar e
sofrem constantes e repentinas mudanças. Isso é sinal
evidente de que ele pensa mais no fenômeno da tirania
do que no do Despotismo próprio dos grandes
impérios, descritos por Montesquieu.
Constant faz referência a outro problema importante
da doutrina do Despotismo: à relação entre o
Despotismo e a guerra. Já no pensamento iluminístico,
a execração da guerra anda junta com a condenação do
Despotismo. Ao criticar o plano de paz perpétua do
abade de Saint-Pierre, Rousseau observa que não se
pode esperar uma política de paz de Governos
despóticos, porquanto "é sabido que, de um povo de
escravos, se tomam dinheiro e homens à vontade para
subjugar outros" (Juízo sobre o plano de paz
perpétua). Assim, quando Kant pensa que a primeira
condição de um tratado entre Estados para o
estabelecimento da paz perpétua é que eles tenham
uma forma de Governo republicana, entende por
Governo republicano um Governo não despótico.
Constant contrapõe o espírito de conquista, tornado
anacrônico, ao espírito de comércio: assim como o
espírito de comércio exige e promove a paz, assim o
espírito de conquista, intimamente ligado ao regime
despótico, é fomentador de guerras.
VI. O DESPOTISMO ILUMINADO. — Levada em conta
a distinção entre bom e mau Governo, o Despotismo
sempre foi tido como exemplo de Governo nocivo. Na
linguagem política, independentemente da sua
significação descritiva que, como vimos, muda de um
autor para outro, o termo Despotismo possui
usualmente um significado de
345
avaliação claramente pejorativo. Mas é preciso fazer
pelo menos uma exceção, quando ele é usado na
expressão também setecentista de "Despotismo
iluminado". A idéia do Despotismo de bom sentido é
um elemento importante da teoria e da ideologia
política da fisiocracia. Começando pelo fundador,
François Quesnay, os fisiocratas sustentaram que,
existindo uma ordem natural, governada por leis
férreas e objetivas, tanto físicas como morais, incumbe
ao bom legislador não já criar leis positivas a seu
talante, mas reconhecer as leis naturais e,
conseqüentemente, promulgar leis positivas que se
conformem o mais possível com a natureza. Para o
cumprimento desta tarefa, que não é constitutiva mas
apenas declarativa, é indispensável um soberano único
que, quando instruído por sábios conselheiros sobre a
existência das verdadeiras leis, há de gozar da
plenitude dos seus poderes para urgir sua aplicação e
para promover, agindo assim, o bem-estar e a
felicidade dos próprios súditos. Em sua obra L'ordre
naturel et essentiel des sociétés politiques (1767), o
fisiocrata Le Mercier de la Rivière distingue duas
formas de Despotismo, um que ele chama "legal" e o
outro "arbitrário". Enquanto que o segundo, inspirado
na simples "opinião", é mau, o primeiro, guiado pela
"evidência", é o único modo de bom Governo. Com
efeito, uma vez averiguado que a ordem natural é
evidente, ou seja, que pode ser compreendida em sua
totalidade pela mente humana iluminada pela razão,
ela torna-se pelo mesmo fato coagente e, por
conseguinte, não pode ser imposta senão
despoticamente. Existe porventura alguém que se
lamente de ser obrigado a aceitar sem discussão os
teoremas da geometria euclidiana? Euclides não é
menos déspota que o monarca iluminado que governa
obedecendo à evidência das leis naturais. Mas trata-se,
sem dúvida, de um Despotismo natural e necessário,
conforme com a razão. Le Mercier de la Rivière
encontrou eco em Pierre-Samuel Dupont de Nemours
quem, depois de haver condenado como formas de
mau Governo a democracia, a aristocracia e a
monarquia eletiva, exalta a monarquia hereditária, por
ser só nesta forma de Governo "simples e natural" que
os soberanos são verdadeiramente "déspotas" (De
l'origine et des progrès d'une science nouvelle, 1768).
Contra esta tese Mably escreveu um ensaio,
Dúvidas apresentadas aos filósofos-economistas sobre
a ordem natural e essencial das sociedades políticas
(1768), que constitui momento importante na disputa
setecentista acerca do Despotismo. Para Mably, o
próprio conceito de Despotismo legal já encerra uma
contradição nos termos. Se um Governo é
verdadeiramente despótico, ou tal que quem detém o
supremo poder não está
346
DESPOTISMO
sujeito a qualquer controle, não poderá deixar de ser
arbitrário: na realidade não existe outra forma de
Despotismo senão a do Despotismo arbitrário; pelo
menos o Despotismo se converte sempre num Governo
de arbítrio e, portanto, em despotismo arbitrário. À
controvérsia entre Mably e os fisiocratas não é
estranho o problema do Despotismo oriental: enquanto
Quesnay e Le Mercier de la Rivière haviam exaltado o
Governo da China como um exemplo imitável de
despotismo legal, Mably os critica, sustentando que o
Governo chinês é também, como não podia deixar de
ser, um Governo despótico, uma forma de Governo
arbitrário; defende encarniçadamente o Governo misto
baseado na separação dos poderes, que tinha tido
como seu maior teórico precisamente um crítico
severo do Despotismo oriental, o autor de Esprit des
lois.
VII. DE HEGEL A WITTFOGEL. — A idéia ou mito do
Despotismo oriental atravessa todo o século XIX e
chega, como já dissemos, até aos nossos dias, isto é,
até à crise ou declínio da concepção eurocêntrica da
história, da concepção que contrapunha a Europa
progressiva ao Oriente imóvel, fazendo depender o
desenvolvimento das sociedades mais atrasadas do
encontro, que poderia também ser um choque
doloroso, com as nações européias mais avançadas.
Bastará lembrar aqui o lugar que ocupa a categoria do
Despotismo na filosofia da história de Hegel, que é
uma sublimação do eurocentrismo. Fiel à sua visão
histórica da realidade, Hegel toma as célebres
categorias de Montesquieu e considera-as como
momentos sucessivos do desenvolvimento histórico.
"O Oriente sabia e sabe que apenas um é livre; o
mundo grego e romano, que só alguns são livres; o
mundo germânico, que todos são livres. Por isso, a
primeira forma que nós vemos na história do mundo, é
o Despotismo, a segunda, a democracia e a aristocracia,
e a terceira, a monarquia". São despóticos os Estados
primitivos e bárbaros da África, anteriores à
colonização, onde a escravidão (característica, como
vimos, peculiar das sociedades governadas de forma
despótica) "constitui a relação fundamental do
direito"; por isso, ali "governa um senhor, visto que a
rudeza sensível só pode ser domada por uma força
despótica" (trata-se do tema assaz repetido da relação
entre Despotismo e sociedade servil). Mas os grandes
Estados despóticos surgiram e se perpetuaram na Ásia,
a começar pelo império chinês, definido como
"Despotismo teocrático" (o nexo entre Despotismo
político e teocracia é também tipicamente
iluminístico); é de onde nasce a época histórica (a
África é ainda um continente sem história). Seguiu-se
depois a Índia, cujo Governo
é definido como "Despotismo da aristocracia
teocrática". Embora seja do Oriente que nasce a época
histórica, esses Estados, a China e a Índia, devido à sua
situação estacionaria, acham-se ainda à margem da
história do mundo. Havendo alcançado um certo grau
de desenvolvimento, o primeiro grau da evolução do
espírito objetivo, aí se detiveram, ficando alheios ao
movimento histórico. O tema também repetido da
relação entre Despotismo e imobilismo tem sua
confirmação nestas frases de Hegel: "O universal, que
aqui surge como substanciai, moral, é, por tal
absolutismo, tão despótico, que jamais houve lugar
para a liberdade subjetiva e, conseqüentemente, para a
mudança. Desde que o mundo é mundo, estes
impérios não se puderam desenvolver senão em si
mesmos. Na idéia eles são os primeiros e, ao mesmo
tempo, são os imóveis" (Filosofia della storia, ed. La
Nuova Italia, II, p. 14).
A Filosofia da história de Hegel contribuiu para
fixar, de modo quase que definitivo, a categoria do
Despotismo oriental, havendo-lhe assim encerrado, se
não esgotado, a série histórica. Em virtude da análise
marxista, que deslocou o centro de gravidade da
pesquisa histórica das instituições políticas para a
globalidade das formas e das relações de produção, o
problema tradicional do Despotismo oriental cedeu
lugar ao problema, em torno do qual se acendeu um
secular debate ainda hoje atualíssimo, do modo de
produção asiático que, enquanto diverso dos modos de
produção que teriam caracterizado a história do
Ocidente (escravista, feudal, burguês), conserva da
categoria do Despotismo oriental a conotação de
estaticidade e contribuiu para a permanência da idéia
eurocêntrica de um Oriente inerte e imóvel. Só nestes
últimos anos é que o tema do Despotismo oriental foi
ressuscitado pelo livro de Karl A. Wittfogel, Oriental
Despotism (1957), uma obra de análise teórica e, ao
mesmo tempo, de debate político. O contraste entre
sociedades policêntricas, como as que se radicaram na
Europa, caracterizadas por uma forte tensão entre
sociedade civil e aparelho estatal, e sociedades
monocêntricas, caracterizadas pelo predomínio do
Estado sobre a sociedade, como as formadas e
estabelecidas nos grandes impérios orientais e, de
qualquer modo, em sociedades extra-européias (como
algumas das grandes civilizações americanas précolombianas), não seria só um conceito polêmico e
muito menos um mito. É, segundo Wittfogel, uma
realidade histórica que, embora identificada há séculos,
jamais mereceu dos historiadores a devida atenção.
Wittfogel retoma e desenvolve alguns temas
tradicionais: o caráter total, não controlado, e, por isso,
absoluto do poder despótico; o terror como
instrumento de
DESVIACIONISMO
domínio e, correlativamente, a sujeição total do súdito
ao soberano; a longa duração temporária; e,
finalmente, a conexão entre Despotismo e teocracia. A
inovação de Wittfogel em relação à tradição está na
explicação do fenômeno: o potentíssimo aparelho
burocrático que constitui o nervo do Despotismo
surge da necessidade que existe nos territórios das
grandes planícies asiáticas de uma regulamentação da
irrigação, ou seja, de uma regular e regulamentada
distribuição e canalização da água dos rios, ordenadas
do alto. Não se trata mais, como acontecia nos
escritores clássicos, da natureza dos povos, nem, como
nos modernos, da natureza do clima ou da religião: o
Estado burocrático e despótico das sociedades que
Wittfogel chama "hidráulicas", tem a sua origem em
razões técnicas, ligadas, por sua vez, à natureza do
solo e à forma de produção. Como forma de Governo,
o Despotismo caracteriza-se pelo monopólio da
organização burocrática que, criado por razões
objetivas nas sociedades agrárias e aplicado ainda na
época contemporânea às sociedades industriais,
constitui a mais terrível ameaça para a liberdade do
homem.
BIBLIOGRAFIA. - R. KOEBNER, Despot and
despotism. Vicissitudes of a political term. "Journal of
the Warburg and Courtauld Institute", 1951; A.
MAFFEY, Un plagio di F. Quesnay: il Despotisme de la
Chine. "Il pensiero politico", 1973; G. SOFRI, Il modo
di produzione asiatico, Einaudi, Torino 1969; S.
STELLING-MICHAUD, Le mythe du despotisme oriental,
"Schweizer Beitrage zur allgemeine Geschichte",
1960-61; F. VENTURI, Despotismo orientale. "Rivista
storica italiana", 1960; K. A. WITTFOGEL,
Dispotismo orientale (1957), trad. ital., Sugar, Milano
19802
[NORBERTO BOBBIO]
Desviacionismo.
Na tradição dos partidos comunistas da Terceira
Internacional, Desviacionismo é o comportamento
subjetivo de quem incorreu em desvio. Observando
que este é o termo usado vulgarmente, sendo o de
Desviacionismo menos freqüente, podemos considerálos, no entanto, sinônimos.
Segundo a definição de Togliatti, trata-se de
"posições inconciliáveis com a linha política seguida"
(Depois do XX Congresso do P.C.U.S., 1956). Esta
definição, conquanto eficaz, não leva de fato em conta
uma certa evolução do conceito nos períodos leninista
e staliniano, nem o uso peculiar que dele fizeram os
comunistas chineses.
347
Historicamente, é no X Congresso do Partido
Bolchevique (março de 1921) que podemos situar o
momento em que o termo desvio assume um
significado "oficial": foi com efeito então aprovada
uma Resolução final que condenava o "desvio anarcosindicalista", como foram definidas as posições
encabeçadas pelo grupo da Oposição Operária. Esta
expressão faz referência a uma orientação de tipo
ideológico, mas as críticas formuladas por Lenin no
Relatório ao Congresso e a Resolução final
mantiveram-se rigorosamente no plano teóricopolítico, isto é, sem buscar implicações ideológicas nas
posições definidas como desviacionistas. Segundo a
citada definição de Togliatti, trata-se indubitavelmente
de posições (minoritárias) incompatíveis com a linha
política oficial.
No período posterior, o uso do termo tornou-se mais
amplo, estendendo-se do plano político ao ideológico.
No biênio 1925-1926, com a chefia de Stalin, o partido
viu-se comprometido na luta contra o "desvio de
direita" e de "esquerda", a propósito da questão rural e
da "NEP nas aldeias", um conflito inteiramente
político, enquanto era imputado ao grupo de Trotzky
um "desvio pequeno-burguês", portanto essencialmente
ideológico. Parece então consolidado um uso mais
genérico do termo, referido a posições tanto teóricopolíticas como ideológicas. Neste sentido, é
aparentemente lógico falar de "desvios de todo gênero",
como fez Kruschev no Relatório ao XX Congresso do
P.C.U.S., a propósito das conseqüências do culto da
personalidade durante a chefia de Stalin. É possível,
contudo, observar um uso do conceito de desvio
bastante diferente do da história precedente: se antes o
desvio era definido como uma posição errônea por ser
assim julgada pela maioria do partido, agora a crítica
de Desviacionismo se aplica à própria maioria. A
identificação dos desvios não está mais vinculada à luta
política entre tendências, mas, a posteriori, à mudança
nas orientações gerais e à correção de rumos. Mais
ainda: o desvio acaba por ser entendido como um
afastamento de idéias condutoras gerais, válidas em si
mesmas.
A experiência dos comunistas chineses avança
precisamente na linha desta concepção mais ampla.
Como posição errônea, o desvio não é necessariamente
referível a indivíduos ou grupos bem identificados do
partido; pode ser uma tendência difusa, mesmo
majoritária, pode atribuir-se a todo o partido (vejamse as experiências históricas do Movimento Cheng
Feng e alguns aspectos da Revolução Cultural). Os
desvios são um risco constante e inevitável; portanto,
sua prevenção, identificação e correção hão de ser
confiadas a um compromisso incessante de discussão,
crítica
348
DIPLOMACIA
e persuasão, tanto no plano ideológico como político.
O específico da experiência chinesa em matéria de
desvio está, porém, nisto: embora seja necessário
identificar em cada caso os componentes políticos e
ideológicos do desvio, eles andam, não obstante,
sempre indissoluvelmente ligados, já que, por trás de
um desvio político, há sempre um desvio ideológico
e, vice-versa, um desvio político produz
necessariamente desvios ideológicos.
Como se vê, o uso histórico do conceito de desvio
não é unívoco. Tanto assim que se torna problemático
defini-lo abstratamente de um modo satisfatório.
Particularmente, se nos referirmos ao uso mais restrito
do termo (posição incompatível com a linha política
do partido), será difícil distinguir o desvio do
fracionismo.
Em geral, o desvio, como posição errônea, não só é
inevitável, como também compatível com a dialética
interna normal, sendo por isso legítimo sustentá-lo e
defendê-lo. O problema de conciliar a liberdade de
expressão com a disciplina do partido só surge quando
o desvio foi identificado, discutido e criticado. P. só
então que a persistência nas posições desviacionistas
põe em questão o centralismo democrático, já que se
viriam a criar evidentes tendências fracionistas. De
fracionismo em sentido próprio só se poderá, no
entanto, falar, quando a disciplina partidária for
consciente e organizadamente violada. Neste caso, da
crítica e correção do Desviacionismo se passará à
acusação e repressão do fracionismo.
Torna-se evidente que, o que é claro no plano
conceptual não é tanto no da aplicação histórica, onde
as diferenças aparecem bem mais confusas,
especialmente se a correção nos desvios parecer mais
ligada à luta entre maioria e tendências (ou frações)
minoritárias que à persuasão.
[LUCIANO BONET]
Diplomacia.
Diplomacia é, segundo a célebre definição do
Oxford English Dictionary, "a condução das relações
internacionais através de negociações. O método
através do qual estas relações são reguladas e
mantidas por embaixadores e encarregados; o ofício
ou a arte do diplomata". O objeto da Diplomacia é,
portanto, o método através do qual são conduzidas as
negociações e não o conteúdo das negociações. E foi
precisamente o conteúdo que variou progressivamente
no decorrer dos séculos. O termo Diplomacia foi
usado pela primeira vez, na acepção corrente, por
Edmund
Burke, em 1796. Deriva de diploma, que era a folha
enrolada usada antigamente para as leis e para os
editais públicos, e que passou a ser, depois, sinônimo
de licença e privilégio concedidos às pessoas. O uso de
mensageiros para dirimir as controvérsias é muito
antigo. Se deixarmos de lado as primeiras
experiências feitas pelo homem à propósito, de que
não temos testemunho preciso, pertenceu aos gregos,
no século V a.C, o estabelecimento de um sistema de
relações diplomáticas, codificando o princípio da
inviolabilidade dos mensageiros, de quem se exigia
apenas uma grande habilidade oratória, como se lê em
Tucídedes, na Guerra do Peloponeso.
Tendo caído em desuso entre os romanos, que
foram, por seu lado, os inventores do uso de
arquivamento dos tratados, a arte da Diplomacia
voltou a estar no auge com os últimos imperadores
quando foi necessário substituir a força em declínio
pelas negociações. Com Bizâncio, a Diplomacia ganhou
uma peculiaridade inteiramente nova e ainda hoje
atualíssima: tornou-se uma arte de referência, na
medida em que foi entregue ao diplomata o encargo de
negociar e, ao mesmo tempo, de relatar, quando
voltava à pátria, as condições de vida, a força e a
disponibilidade para a guerra e para a paz dos países
junto dos quais funcionava a missão. Durante o
período feudal, a Diplomacia se distinguiu sobretudo
como arte de arquivo (herdada dos romanos) e da
exegese, inteiramente nova, dos tratados. Enquanto nos
séculos XV e XVI ela exprimia as primeiras missões
permanentes, sobretudo por iniciativa dos Estados
italianos, sendo uma arcaica antecipação das modernas
embaixadas. Só no século XIX é que a Diplomacia
obteve a definitiva consagração, em um anexo ao
Tratado de Viena e num protocolo do Congresso de
Aix-la-Chapelle. Foi nesta ocasião que foram
codificadas as quatro categorias de diplomatas: 1)
embaixador, legado, núncio; 2) enviado extraordinário
e ministro plenipotenciário; 3) ministro residente; 4)
encarregado de negócios. Para o desenvolvimento das
atuais
formas
de
Diplomacia
contribuíram
principalmente três fatores no século passado: maior
consciência de cada Estado pertencer a uma
comunidade de nações; a influência crescente da
opinião pública; e o desenvolvimento das
comunicações. No século XX, finalmente, a revolução
tecnológica, a grande variedade dos meios de
comunicação, o ingresso nas relações internacionais de
uma série de fatores novos e condicionantes, como a
ideologia, determinaram a progressiva e cada vez mais
acentuada transferência das funções clássicas do
diplomata de oitocentos para o homem político. Frente
à invasão da diplomacia "política", chamada também
DIREITO
de open diplomacy, que muitas vezes não é nem
bilateral mas multinacional, como testemunham
muitíssimas organizações internacionais e as
conferências mundiais, ao diplomata profissional é
exigido hoje que seja sobretudo um correto
informador.
[PIERO OSTELLINO]
Direito.
I. O DIREITO COMO ORDENAMENTO
NORMATIVO COATIVO. — Entre os múltiplos
significados da palavra Direito, o mais estreitamente
ligado à teoria do Estado ou da política é o do Direito
como ordenamento normativo. Esse significado ocorre
em expressões como "Direito positivo italiano" e
abrange o conjunto de normas de conduta e de
organização, constituindo uma unidade e tendo por
conteúdo a regulamentação das relações fundamentais
para a convivência e sobrevivência do grupo social,
tais como as relações familiares, as relações
econômicas, as relações superiores de poder, também
chamadas de relações políticas, e ainda a
regulamentação dos modos e das formas através das
quais o grupo social reage à violação das normas de
primeiro grau ou a institucionalização da sanção. Essas
normas têm como escopo mínimo o impedimento de
ações que possam levar à destruição da sociedade, a
solução dos conflitos que a ameaçam e que tornariam
impossível a própria sobrevivência do grupo se não
fossem resolvidos, tendo também como objetivo a
consecução e a manutenção da ordem e da paz social.
Se se juntar a isto, conforme ensina a tendência
principal da teoria do Direito, que o caráter específico
do ordenamento normativo do Direito em relação às
outras formas de ordenamentos normativos, tais como
a moral social, os costumes, os jogos, os desportos e
outros, consiste no fato de que o Direito recorre, em
última instância, à força física para obter o respeito
das normas, para tornar eficaz, como se diz, o
ordenamento em seu conjunto, a conexão entre Direito
entendido como ordenamento normativo coativo e
política torna-se tão estreita, que leva a considerar o
Direito como o principal instrumento através do qual
as forças políticas, que têm nas mãos o poder
dominante em uma determinada sociedade, exercem o
próprio domínio.
Desta conexão se tornou consciente a filosofia
política e jurídica que acompanha o nascimento do
Estado moderno, que lhe interpreta e reflete o espírito.
Isso é patente desde Hobbes, através de Locke,
Rousseau. Kant, Hegel, Marx, até Max
349
Weber e Kelsen, de modo a fazer aparecer a estrutura
jurídica e o poder político, o ordenamento e a força
coativa, o momento da organização do poder coativo e
a importância do poder, que se serve da organização
da força para alcançar os próprios fins, enfim, Direito
e Estado nas acepções mais comuns dos termos como
duas faces da mesma medalha. Uma das características
principais das várias teorias do Estado moderno, uma
espécie de fio vermelho que permite distinguir as
várias doutrinas e compreender seu nexo e
desenvolvimento, é precisamente aquele duplo e
convergente processo de estatização do Direito e de
juridificação do Estado, para o qual, de um lado, o
Direito é considerado do ponto de vista do Estado ou
do ponto de vista do poder soberano — que é o ponto
característico do poder do Estado —, de onde parte,
depois de Hobbes, a tendência em definir o Direito
como um conjunto de regras postas ou impostas por
aquele ou por aqueles que detêm o poder soberano e,
de outro lado, o Estado é considerado do ponto de
vista do ordenamento jurídico, ou seja, como uma
complexa rede de regras, cujas normas constitucionais,
escritas ou não escritas, são o teto e o fundamento, e as
leis, os regulamentos, as providências administrativas,
as sentenças judiciais são os vários planos (para
repetir ainda uma vez a feliz metáfora kelseniana do
ordenamento jurídico como uma estrutura piramidal),
como o conjunto dos poderes exercidos no âmbito
dessa estrutura (o assim chamado Estado de Direito no
mais amplo sentido da palavra) e enquanto tais, e só
enquanto tais, são aceitos como poderes legítimos. Este
processo de convergência entre estruturas jurídicas e
poder político teve como conseqüência a redução do
Direito ao Direito estatal (no sentido de que não existe
outro ordenamento jurídico além daquele que se
identifica com o ordenamento jurídico coativo do
Estado) e, ao mesmo tempo, a redução do Estado a um
Estado jurídico (no sentido de que não existe o Estado
senão como ordenamento jurídico). Com duas fórmulas
simples e simplificantes: a partir do momento em que
nasce o Estado moderno como Estado centralizador,
unitário, unificante, que tende à monopolização
simultânea da produção jurídica (através da
subordinação de todas as fontes de produção do
Direito até aquela que é própria do poder estatal
organizado, isto é, a lei) e do aparelho de coação
(através da transformação dos juizes em funcionários
da coroa e da formação de exércitos nacionais), podese dizer que não existe outro Direito além do estatal e
não existe outro Estado além do jurídico.
350
DIREITO
II. CONVERGÊNCIA ENTRE ORDENAMENTO JURÍDICO E
PODER ESTATAL NA FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA. — A
filosofia política de Hobbes é um momento exemplar
desta convergência entre ordenamento político e poder
estatal. Ela pode ser considerada também por boas
razões a primeira e a mais significativa teoria do
Estado moderno. A passagem do Estado de natureza
para o Estado Civil, que é a passagem do não-Estado
para o Estado, representa também a passagem de um
Estado não jurídico, onde não existe um Direito
objetivo universalmente válido, sustentado por uma
força comum, mas existem somente Direitos
subjetivos sustentados pela força de cada um e por isso
mesmo relações de força, para o Estado jurídico, isto
é, para o Estado que é fundado num ato jurídico,
como é o pacto através do qual os indivíduos se
associam e colocam em comum os próprios bens e as
próprias forças para atribuí-las a um só soberano, que,
uma vez constiuído, é fonte única e exclusiva do
Direito positivo. Em Locke, a passagem da sociedade
natural, onde se desenvolvem as relações familiares e
econômicas, para o Estado pode ser representada
como a passagem da sociedade de Direito privado, ou
seja, de um Direito ainda imperfeito e não protegido,
porque falta um poder super partes capaz de dirimir as
controvérsias de modo imparcial, para a sociedade de
Direito público, ou seja, de Direito protegido e
perfeito. Nas duas formas de sociedade que
antecederam o estado do contrato social descritas por
Rousseau no Discurso sobre a origem da desigualdade,
o estado de natureza é um estado não jurídico porque
não é essencialmente sociável. Nele, o homem é bom
não porque seja freado pela lei, da qual não precisa,
mas porque não. tem vícios nem paixões. Na société
civile, que nasce da divisão entre o meu e o teu, as
relações entre os indivíduos, não sendo muito
diferentes das que acontecem no estado de natureza
hobbesiano, que são relações de força, o Direito
vigente é o Direito do mais forte. Esse Direito é
criticado no início do Contrato social como um nãoDireito. A sociedade jurídica é apenas a associação que
nasce do contrato social, ou seja, o Estado no sentido
próprio da palavra, cuja vontade se exprime através da
forma mais alta de Direito, que é a lei. Para Kant, tal
como para Locke, a sociedade natural que precede o
Estado é uma sociedade de Direito natural ou privado.
A tendência constante a integrar o Direito no Estado,
a considerar o Direito perfeito, isto é, o Direito
protegido pela coação, como o momento que
discrimina o Estado do não-Estado, se revela por isso
na contraposição entre o Direito meramente
provisório do Estado de natureza e o Direito
peremptório do Estado civil.
O sistema de filosofia do Direito de Hegel é muito
complexo para que possa ser compreendido na única
temática das relações entre Direito e Estado. O Direito,
em sentido amplo, compreende não apenas o Direito
privado e o Direito público, mas também a
moralidade; não apenas o Direito em sentido estrito,
que corresponde grosso modo ao Direito privado, mas
também a esfera da eticidade. É um fato digno de
anotação que, se o Direito em sentido amplo é "o reino
da liberdade realizada", ele se realiza plenamente e só
no Estado. Para Marx, Direito e Estado pertencem
ambos à esfera da superestrutura, denominada
"superestrutura jurídica e política" na conhecida
passagem, que constitui um texto, da Critica da
economia política. É como se se tratasse de um conjunto
difícil de distinguir em partes diversas e separadas, de
tal maneira que a extinção do Estado comporta
também a extinção do Direito e vice-versa. Em geral,
todas as correntes sociais, tais como as correntes
anárquicas e socialistas utópicas, moveram guerra ao
Estado, e moveram guerra ao Direito. E que melhor
prova de identificação entre Direito e Estado no
pensamento político que acompanha o crescimento do
Estado moderno e da concepção prevalente do Direito
como fenômeno estatal do que esta polêmica
simultânea contra o Estado e o Direito da parte das
correntes libertárias e socialistas?
Se considerarmos, enfim, os dois maiores teóricos
do Estado moderno deste último século, Max Weber e
Hans Kelsen, a tendência em identificar o Direito,
entendido como ordenamento coativo, com o Estado,
entendido como aparelho através do qual os detentores
do poder legítimo exercem seu domínio, chega às suas
extremas conseqüências. Para Weber, o grande Estado
moderno é o Estado em que a legitimidade do poder
depende de sua legalidade, isto é, do fato de que o
poder se apresenta como derivado de ura ordenamento
normativo constituído e aceito e se exerce segundo
normas preestabelecidas. À grande dicotomia ahistórica da filosofia política jusnaturalista, entre
sociedade natural e sociedade civil, Weber substitui a
dicotomia historicamente fundada entre poder
tradicional e poder legal, à qual, em termos jurídicos,
corresponde a distinção não mais entre Direito privado
ou natural e Direito público ou positivo, e menos
ainda entre não-Direito e Direito, mas entre Direito
consuetudinário, próprio da sociedade patriarcal, e
Direito legislativo próprio do Estado de Direito, onde,
aliás, o Direito legislativo representa, a respeito do
Direito consuetudinário, um Direito mais perfeito,
mais "racional", não diversamente do Direito públicopositivo em relação ao Direito privado-natural. Para
Kelsen, o Estado não é nada fora
DIREITO
do ordenamento jurídico. Desde o momento em que o
Estado é a organização da força monopolizada e esta
organização se exprime através de ura ordenamento
coativo — o ordenamento específico normativo que é
o Direito — Direito e Estado são unum et idem e
aquilo a que se chama habitualmente poder político
não é mais do que poder que torna real um
ordenamento normativo e faz deste ordenamento um
ordenamento efetivo e não imaginário. Weber e Kelsen
interpretam no fundo o mesmo fenômeno da
convergência do Estado e do Direito, embora olhandoo de dois pontos de vista diferentes. Weber, a partir de
um ponto de vista da juridificação do Estado, ou seja
do poder estatal, que se racionaliza através de uma
complexa estrutura normativa articulada e hierárquica;
Kelsen, a partir da estatização do Direito, ou seja do
sistema normativo que se realiza através do exercício
do máximo poder, que é o poder que se utiliza da
força monopolizada. Weber considera o Direito ou a
estrutura normativa em função do poder; Kelsen
considera o poder em função do Direito. A
racionalização do poder através do Direito é a outra
face da realização do Direito através do poder. O
Direito é a política vista através de seu processo de
racionalização, assim como o poder é o Direito visto
em seu processo de realização. Mas como não pode
existir poder sem Direito, para que o poder do Estado
moderno possa ser legal, assim também não pode haver
Direito sem poder, na medida em que o Direito é
ordenamento que se realiza apenas através da força.
III. A SUPREMACIA DA LEI. — O processo que
acabamos de delinear em traços rápidos, relativo à
convergência entre Direito e Estado, contribui para
pôr em relevo, entre as várias formas que uma regra
imperativa pode assumir, a forma da lei, entendendose por lei aquela norma geral em relação aos
destinatários, que é abstrata em relação à ação
prevista, mas imposta por um ato deliberado da
vontade do poder dominante. Isso é o mesmo que
dizer que no processo de desenvolvimento do Estado
moderno, a par da resolução do Direito entendido
como ordenamento normativo no Estado, através da
identificação do Direito com o ordenamento coativo e
do Estado com a força monopolizada, assiste-se
também à redução de todas as fontes tradicionais do
Direito à fonte única da lei. Este duplo processo pode
ser resumido nesta fórmula: enquanto o Direito, em
sentido estrito, cada vez se torna mais Direito estatal,
o Direito estatal, em sentido estrito, se torna cada vez
mais Direito legislativo. Em síntese: ao processo de
juridificação do Estado se associa um processo de
legificação do Direito. As
351
manifestações históricas mais relevantes deste processo
são, de um lado, as Constituições escritas que
acompanham os grandes acontecimentos dos fins do
século XVIII — revolução americana e Revolução
Francesa — e, de outro, as grandes codificações.
Na filosofia política, que tem como ponto de
partida a doutrina de Hobbes, podemos encontrar
vestígios claros deste segundo processo. Uma das
principais prerrogativas do soberano, segundo Hobbes,
é "estabelecer e promulgar normas, quer dizer, critérios
de medida, gerais, de tal modo que cada pessoa saiba o
que deve entender como próprio e como alheio, como
justo e como injusto, como honesto e desonesto, bom
e mau" (De cive, VI, 9). Estas normas "costumam ser
chamadas de leis civis, ou seja de leis do Estado,
porque são ordens de quem detém a soberania no
Estado". Enquanto exalta a lei, Hobbes minimiza,
como é conhecido, os costumes e o Direito dos juizes
(o common law), considerando-os fontes de Direito a
que falta o selo da vontade do soberano. De tal
maneira que, depois de ter identificado o Direito
exclusivamente com o Direito estatal, identifica
também o Direito estatal exclusivamente com o Direito
legislativo. O "Governo civil" de Locke funda-se no
primado do poder legislativo: "a lei primeira e
fundamental e positiva de todas as sociedades políticas
consiste no estabelecimento do poder legislativo". Este
é "não apenas o poder supremo da sociedade política,
mas permanece sagrado e imutável nas mãos em que a
humanidade o colocou". O escopo que leva os
indivíduos a se reunirem em sociedade é o de evitar o
arbítrio da interpretação e da execução das leis
naturais, o que aconteceria inevitavelmente se os
homens continuassem a viver no Estado de natureza.
O principal remédio contra o arbítrio é a constituição
de um poder a quem se confia o ofício de estabelecer
leis certas e fixas, iguais para todos, e o de nomear
juizes autorizados para as aplicar: "a autoridade
legislativa ou suprema não pode dar-se o poder de
governar com decretos extemporâneos e arbitrários,
mas é obrigada a cumprir a justiça e a decidir sobre os
Direitos dos súditos, com leis promulgadas e fixas e
juizes revestidos de autoridade e conhecidos" (Segundo
tratado sobre o Governo civil, §§ 134 e 136). Em
Rousseau, a propriedade essencial que possui a
vontade soberana de ser geral é a mesma que tem o
Direito na sua forma característica da lei, que se
distingue de uma ordem, de um decreto, de uma
manifestação de vontade particular, precisamente
enquanto "geral". "Quando digo que o objeto das leis é
sempre geral, entendo dizer que a lei considera os
súditos como corpo coletivo e as ações abstratamente,
e nunca
352
DIREITO
um homem como indivíduo nem uma ação particular"
(Contrato social, II, 6). A vontade geral não pode
exprimir-se senão através daquelas normas gerais que
são as leis, mas ao mesmo tempo não poderia haver
leis ou normas gerais voltadas para todos,
indistintamente, que compõem o corpo político se não
houvesse uma vontade geral. Só o Estado regido por
leis é um Estado conforme o ideal que inspira o
Contrato social e é digno, segundo Rousseau, de ser
chamado república. O que significa que a lei é a forma
privilegiada de manifestação da soberania popular, que
é, aos olhos de Rousseau, a única legítima. A vontade
geral produz e não pode deixar de produzir leis. A
produção do Direito sob a forma de lei é a principal
garantia contra o despotismo. Nas pegadas de
Rousseau, Kant distingue a sociedade civil, que deriva
de um contrato originário, ideal mas não fictício, das
várias formas de Governo, em que a soberania popular
pode ser exercida." "A única Constituição permanente
é aquela em que a lei é soberana e não depende de
nenhuma pessoa particular" (Metafísica dos costumes.
Doutrina geral do Direito, § 52). Aqui entende-se por
lei aquela norma geral e abstrata que por si só permite
dar cidadania a interesses que não são particulares,
garantindo assim a igualdade. É conhecido o lugar
central que a lei ocupa no pensamento hegeliano,
desde os escritos da juventude até à Filosofia do
Direito. Neste sentido, basta lembrar que a lei, como
expressão da vontade geral, declarada, promulgada e
pública, é a máxima expressão da racionalidade do
Estado, no sentido de que o Estado exprime o
interesse universal e a consciência própria do povo
organizado. Um Estado cuja vontade não seja expressa
pela forma da lei não é um Estado completo, nem
atingiu sua mais alta expressão, como acontece com o
moderno Estado representativo e burocrático de que
Hegel é, ao mesmo tempo, teórico e ideólogo. É
sobejamente conhecido que Hegel, ao mesmo tempo
que exalta a lei, condena o sistema inglês fundado
sobre um Direito não legislativo, critica a escola
histórica que valoriza o Direito consuetudinário e
alinha ao lado dos fautores da condificação, chamando
de benfeitores da humanidade aos governantes que,
como Justiniano e Napoleão, deram um código de leis
a seus povos.
IV. PODER LEGAL E PODER DE DIREITO. — A mais
completa e sábia teorização deste processo de
identificação do Direito com a forma específica da lei,
próprio do Estado moderno, é a tipologia weberiana
das diversas formas de poder legítimo que identificou
na passagem das várias formas de poder tradicional —
Estados patriarcais e patrimoniais, em que o Direito é
fundamentalmente
consuetudinário ou judiciário — ao poder legal, onde
o Direito assume sempre mais a forma de norma
estabelecida, a passagem dos Estados pré-modernos
para o Estado moderno representativo e
administrativo. Poder legal é para Max Weber o que
recebe a própria legitimidade quando é exercido em
conformidade e no âmbito de regras preconstituídas e
pressupõe órgãos especificamente destinados à
produção e à contínua modificação destas regras, como
são exatamente os órgãos legislativos, que vão se
diferenciando através de um processo natural de
divisão de trabalho dos órgãos do poder judiciário e
administrativo. Enquanto os Estados de poder
tradicional são caracterizados por ordenamentos de
regras que se transmitem por tradição e se renovam
por obra do corpo judiciário, os Estados de poder legal
são caracterizados pela distinção entre os órgãos, cuja
competência específica é produzir novas regras, e os
órgãos cuja competência específica é a de aplicar
regras já estabelecidas; são caracterizados pela
importância que assume sobre todas as outras formas
de Direito o Direito sob a forma de lei. Um dos
pressupostos do poder legal, segundo Weber, é que
"qualquer Direito pode ser estatuído racionalmente
quanto ao valor e quanto ao escopo ou quanto a
ambos, mediante um pacto ou uma imposição". Um
segundo pressuposto é que "todo Direito é em sua
essência um cosmos de regras abstratas e de normas
estatuídas propositalmente" (Economia e sociedade, I,
p. 212). É inútil dizer que o Direito assim definido,
estatuído racional e intencionalmente, é o Direito
legislativo, oposto ao Direito consuetudinário. A nova
forma de poder legítimo, que é própria do Estado
moderno, nasce do fato de o Direito legislativo,
estatuído por órgãos ad hoc, ter suplantado pouco a
pouco o Direito consuetudinário.
Finalmente, nas mais autorizadas teorias gerais do
Direito contemporâneo, o ordenamento jurídico estatal
é distinguido dos outros ordenamentos jurídicos
simplesmente normativos. Isso deu-se graças a um
gradual processo de divisão do trabalho jurídico em
atividades de produção e atividades de aplicação das
normas jurídicas. A produção das normas gerais foi
tirada do costume e entregue a um órgão para isso
especificamente criado, como é o Parlamento dos
Estados representativos, com a conseqüência de que o
ordenamento jurídico do Estado é caracterizado pelo
fato de produzir Direito sob a forma de lei. Por causa
desta relevância da lei, o Estado se distingue, segundo
Kelsen, de outros ordenamentos jurídicos, como o
ordenamento das sociedades primitivas e o
ordenamento internacional, enquanto ordenamento
relativamente concentrado, ou seja, enquanto
ordenamento em que as normas jurídicas gerais
DIREITOS HUMANOS
não são produzidas pelo costume mas por um órgão
ad hoc, assumindo a forma de lei. Esta diferença de
ordenamento estatal em relação aos ordenamentos das
sociedades
primitivas
e
aos
ordenamentos
internacionais constitui o tema central da teoria de
Direito de Hart. Uma das características distintivas do
Estado é colocada por Hart na presença de normas
(secundárias) que atribuem a órgãos determinados a
função de produzir novas normas gerais ou de mudar
as existentes.
A superposição, característica das teorias políticas e
jurídicas que acompanham a formação do Estado
moderno, da imagem do Direito como ordenamento
normativo relativamente concentrado com a do Estado
como aparelho para uso da força concentrada, deu
lugar à persistente imagem do "Estado de Direito", na
qual as duas idéias do Direito e do Estado estão
estreitamente unidas, até constituírem um corpo só.
Nenhuma coisa é mais válida do que a doutrina do
Estado de Direito tornada doutrina oficial do Direito
público europeu durante quase um século, pelos
juristas da Restauração até à República de Weimar,
para sintetizar plasticamente o processo da estatização
do Direito e de juridificação do Estado, que
acompanha a formação do Estado moderno. Dessa
doutrina podem dar-se duas interpretações, uma
teórica e outra ideológica. Teoricamente, ela exprime,
como já o acentuou Kelsen, a exigência meramente
científica de descrever o Estado como um
ordenamento jurídico, e ficaria ainda para provar que
uma teoria não ideológica do Estado pudesse ser
construída sem ser como teoria jurídica.
Ideologicamente, a doutrina referida exprime o ideal
do moderno constitucionalismo, ou seja, o ideal do
Estado limitado pelo Direito, cujos poderes agem no
âmbito do Direito e cuja legitimidade depende do fato
da sua ação se desenvolver dentro dos limites de
regras preconstituídas.
BIBLIOGRAFIA. - S. COTTA, Perchè il diritto, La
Scuola, Brescia 1979; H. L. A. HART, The concept of
law. Univ. Press. Oxford 1961. Einaudi, Torino 1965;
F. HAYEK, The constitution of liberty. Univ. Press.
Chicago 1960; La società libera. Vallechi, Firenze
1969; H. KANTOROWICZ, The Definition of law. Univ.
Press. Cambridge 1958, Giappichelli, Torino 1962; H.
KELSEN, General theory of law and State. Univ. Press.
Harvard 1945, Comunità, Milano 1952; Id., Reine
Rechtslehre. Deuticke, Wien 1960, Einaudi, Torino
1966; S. ROMANO, L'ordinamento giuridico. Sansoni,
Firenze 1945; A. Ross, On law and justice. Stevens
and Sons, London 1958, Einaudi, Torino 1965; Id.,
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London 1968, Comunità, Milano 1978; R. TREVES,
355
Introduzione alla sociologia del diritto, Einaudi,
Torino I9802; MAX WEBER, Wirtschaft und Gesellschaft.
Mohr, Tübingen 1922; Comunità, Milano 1961.
[NORBERTO BOBBIO]
Direito de Asilo. — V. Asilo, Direito de.
Direitos Humanos.
I. DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E HISTÓRIA
CONSTITUCIONAL. — O constitucionalismo moderno
tem, na promulgação de um texto escrito contendo
uma declaração dos Direitos Humanos e de cidadania,
um dos seus momentos centrais de desenvolvimento e
de conquista, que consagra as vitórias do cidadão
sobre o poder.
Usualmente, para determinar a origem da
declaração no plano histórico, é costume remontar à
Déclaration des droits de l'homme et du citoyen,
votada pela Assembléia Nacional francesa em 1789,
na qual se proclamava a liberdade e a igualdade nos
direitos de todos os homens, reivindicavam-se os seus
direitos naturais e imprescritíveis (a liberdade, a
propriedade, a segurança, a resistência à opressão), em
vista dos quais se constitui toda a associação política
legítima. Na realidade, a Déclaration tinha dois
grandes precedentes: os Bills of rights de muitas
colônias americanas que se rebelaram em 1776 contra
o domínio da Inglaterra e o Bill of right inglês, que
consagrava a gloriosa Revolução de 1689. Do ponto
de vista conceptual, não existem diferenças
substanciais entre a Déclaration francesa e os Bills
americanos, dado que todos amadureceram no mesmo
clima cultural dominado pelo jusnaturalismo e pelo
CONTRATUALISMO: os homens têm direitos
naturais anteriores à formação da sociedade, direitos
que o Estado deve reconhecer e garantir como direitos
do cidadão. Bastante diverso é o Bill inglês, uma vez
que nele não são reconhecidos os direitos do homem e
sim os direitos tradicionais e consuetudinários do
cidadão inglês, fundados na common law. Durante a
Revolução Francesa foram proclamadas outras
Déclarations (1793, 1795): interessante a de 1793
pelo seu caráter menos individualista e mais social em
nome da fraternidade, e a de 1795, porque ao lado dos
"direitos" são precisados também os "deveres",
antecipando assim uma tendência que tomará corpo no
século XIX (podemos pensar nos Doveri dell'uomo,
de Mazzini); a própria
354
DIREITOS HUMANOS
Constituição italiana tem como título da primeira parte
"Direitos e deveres do cidadão".
A declaração dos direitos colocou diversos
problemas, que são a um tempo políticos e
conceptuaís. Antes de tudo, a relação entre a
declaração e a Constituição, entre a enunciação de
grandes princípios de direito natural, evidentes à
razão, e a concreta organização do poder por meio do
direito positivo, que impõe aos órgãos do Estado
ordens e proibições precisas: na verdade, ou estes
direitos ficam como meros princípios abstratos (mas
os direitos podem ser tutelados só no âmbito do
ordenamento estatal para se tornarem direitos
juridicamente exigíveis), ou são princípios ideológicos
que servem para subverter o ordenamento
constitucional. Sobre este tema chocaram nos fins do
século XVIII, de um lado, o racionalismo jusnaturalista
e, de outro, o utilitarismo e o historicismo, ambos
hostis à temática dos direitos do homem. Era possível o
conflito entre os abstratos direitos e os concretos
direitos do cidadão e, portanto, um contraste sobre o
valor das duas cartas. Assim, embora inicialmente,
tanto na América quanto na França, a declaração
estivesse contida em documento separado, a
Constituição Federal dos Estados Unidos alterou esta
tendência, na medida em que hoje os direitos dos
cidadãos estão enumerados no texto constitucional.
Um segundo problema deriva da natureza destes
direitos: os que defendem que tais direitos são
naturais, no que respeita ao homem enquanto homem,
defendem também que o Estado possa e deva
reconhecê-los, admitindo assim um limite preexistente à
sua soberania. Para os que não seguem o
jusnaturalismo, trata-se de direitos subjetivos
concedidos pelo Estado ao indivíduo, com base na
autônoma soberania do Estado, que desta forma não se
autolimita. Uma via intermediária foi seguida por
aqueles que aceitam o contratualismo, os quais
fundam estes direitos sobre o contrato, expresso pela
Constituição, entre as diversas forças políticas e
sociais. Variam as teorias mas varia também a eficácia
da defesa destes direitos, que atinge seu ponto máximo
nos fundamentos jusnaturalísticos por torná-los
indisponíveis. A atual Constituição da República
Federal alemã, por exemplo, prevê a não possibilidade
de revisão constitucional para os direitos do cidadão,
revolucionando assim toda a tradição juspublicista
alemã, fundada sobre a teoria da autolimitação do
Estado.
O terceiro problema refere-se ao modo de tutelar
estes direitos: enquanto a tradição francesa se cingia à
separação dos poderes, e sobretudo à autonomia do
poder judiciário, e à participação dos cidadãos através
dos próprios representantes, na formação da lei, a
tradição americana,
desconfiada da classe governante, quis uma
Constituição rígida, que não pudesse ser modificada a
não ser por um poder constituinte e um controle de
constitucionalidade das leis aprovadas pelo legislativo.
Isto garante os direitos do cidadão frente ao
despotismo legal da maioria. Os países que viveram a
experiência do totalitarismo, como a Itália e a
Alemanha, inspiraram-se mais na tradição americana
do que na francesa para a sua Constituição.
Finalmente, estes direitos podem ser classificados
em civis, políticos e sociais. Os primeiros são aqueles
que dizem respeito à personalidade do indivíduo
(liberdade pessoal, de pensamento, de religião, de
reunião e liberdade econômica), através da qual é
garantida a ele uma esfera de arbítrio e de liceidade,
desde que seu comportamento não viole o direito dos
outros. Os direitos civis obrigam o Estado a uma
atitude de não impedimento, a uma abstenção. Os
direitos políticos (liberdade de associação nos partidos,
direitos eleitorais) estão ligados à formação do Estado
democrático representativo e implicam uma liberdade
ativa, uma participação dos cidadãos na determinação
dos objetivos políticos do Estado. Os direitos sociais
(direito ao trabalho, à assistência, ao estudo, à tutela da
saúde, liberdade da miséria e do medo), maturados
pelas novas exigências da sociedade industrial,
implicam, por seu lado, um comportamento ativo por
parte do Estado ao garantir aos cidadãos uma situação
de certeza.
O teor individualista original da declaração, que
exprimia a desconfiança do cidadão contra o Estado e
contra todas as formas do poder organizado, o orgulho
do indivíduo que queria construir seu mundo por si
próprio, entrando em relação com os outros num plano
meramente contratual, foi superado: pôs-se em
evidência que o indivíduo não é uma mônada mas um
ser social que vive num contexto preciso e para o qual
a cidadania é um fato meramente formal em relação à
substância da sua existência real; viu-se que o
indivíduo não é tão livre e autônomo como o
iluminismo pensava que fosse, mas é um ser frágil,
indefeso e inseguro. Assim, do Estado absenteísta,
passamos ao Estado assistencial, garante ativo de
novas liberdades. O individualismo, por sua vez, foi
superado pelo reconhecimento dos direitos dos grupos
sociais: particularmente significativo quando se trata
de minorias (étnicas, lingüísticas e religiosas), de
marginalizados (doentes, encarcerados, velhos e
mulheres). Tudo isto são conseqüências lógicas do
princípio de igualdade, que foi o motor das
transformações nos conteúdos da declaração, abrindo
sempre novas dimensões aos Direitos Humanos e
confirmando por isso a validade e atualidade do texto
setecentista.
DIREITOS HUMANOS
A atualidade é demonstrada pelo fato de hoje se
lutar, em todo o mundo, de uma forma diversa pelos
direitos civis, pelos direitos políticos e pelos direitos
sociais: fatualmente, eles podem não coexistir, mas, em
vias de princípio, são três espécies de direitos, que para
serem verdadeiramente garantidos devem existir
solidários. Luta-se ainda por estes direitos, porque após
as grandes transformações sociais não se chegou a
uma situação garantida definitivamente, como sonhou
o otimismo iluminista. As ameaças podem vir do
Estado, como no passado, mas podem vir também da
sociedade de massa, com seus conformismos, ou da
sociedade industrial, com sua desumanização. E
significativo tudo isso, na medida em que a tendência
do século atual e do século passado parecia dominada
pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste
a uma inversão de tendências e se retoma a batalha
pelos direitos civis.
BIBLIOGRAFIA. — AUT. VÁR., The philosophy of human rights,
ao cuidado de A. S. ROSENBAUM, Aldwych Press. London 1980:
Id., Bioetchics and human rights, ao cuidado de F. BANDMAN,
Little, Brown and Co.. Boston 1978: Id., Comparative human
rights, ao cuidado de R. CLAUDE. The Johns Hopkins Press.
Baltimore 1977, Id., Vietims of politics: the State of human
rights, ao cuidado de K. GLASER, Columbia University Press. New
York 1979: Id., Human) rights: cultural and ideological
perspectives, ao cuidado de A. POLLIS, Praeger, New York
1979: Id., Political theory and the rights of man ao cuidado de
D. D. RAFAEL. Indiana University Press. Bloomington 1967:
B. A. ACKERMAN, Social justice in the liberal State Yale
University Press. New Haven, Conn., 1980: J. DUNN. Western
political theory in the face of the future, Cambridge University
Press. Cambridge 1979: R. DWORKIN, Taking rights seriously
Harvard University Press. Cambridge. Mass., 1978: F.
KAMENKA, Human rights. St. Martin's Press. New York 1978:
G. LOESCHER, Human rights: a global crisis F. P. Dutton, New
York 1979: A. SCHALL, Marxism and the human individual
McGr. w-Hill Book, New York 1970.
[NICOLA MATTEUCCI]
II. PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS.
— 1. A ação internacional pela promoção e pela
tutela dos Direitos Humanos antes e depois da
Segunda Guerra Mundial. — As exigências
apresentadas em todos os tempos e em todos os
ambientes sociais pela melhoria da condição do
homem terminaram na reivindicação de liberdade e de
direitos sinteticamente qualificados de Direitos
Humanos. O modo e os limites em que estas
reivindicações conseguiram triunfar nas diversas
comunidades onde passou a ter lugar a
355
convivência humana estão estreitamente ligados à
força e ao conteúdo dos ideais humanitários que nelas
entraram, na qualidade de princípios de ação política,
e também ao grau em que as mesmas puderam ou
souberam encontrar apoio num conjunto de forças
sociais capazes de as promover e de lhes assegurar de
fato um respeito normal.
Na
comunidade
internacional,
os
ideais
humanitários foram durante longo tempo e normal
mente invocados somente em relação ao tratamento
dos estrangeiros, e mais esporadicamente em relação
ao tratamento de indivíduos que faziam parte de
minorias étnicas ou de grupos religiosos. A grande
importância que os Estados, os membros de base da
comunidade internacional, atribuíram à defesa da
própria soberania e, por conseqüência, ao respeito dos
outros fez que eles tivessem agido pela promoção e
pela tutela dos Direitos Humanos somente quando seus
direitos estavam em jogo, para dar proteção
diplomática aos próprios súditos no exterior ou para
solidarizar-se com indivíduos ligados à população
nacional por particulares vínculos de ordem étnica,
lingüística ou religiosa.
Foi só no decurso da Segunda Guerra Mundial, após
as aberrações do nazismo e as reações por ele criadas,
e depois da intensificação da tentativa das Nações
Unidas em multiplicar os esforços para realizar uma
mais estreita cooperação e solidariedade internacional,
que foi possível a criação de um perfil de ação
internacional pela promoção e tutela do homem
enquanto tal. No clima de cooperação pela realização
de ideais comuns que então se realizou, no dia 1." de
janeiro de 1942, os Governos signatários da
Declaração das Nações Unidas disseram-se
convencidos de que uma vitória completa sobre seus
inimigos era "essencial para defender a vida, a
liberdade, a independência e a liberdade religiosa,
assim como para conservar os Direitos Humanos e a
justiça nos próprios países e nas outras nações" Um
pouco mais tarde, a 26 de junho de 1945, em São
Francisco, os redatores da Carta das Nações Unidas
retomaram, entre os fins das Nações Unidas (ONU), o
de "conseguir a cooperação internacional na solução dos
problemas internacionais de caráter econômico, social
e cultural ou humanitário, e o de promover e encorajar
o respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades
fundamentais para todos sem distinção de raça, de
sexo, de língua ou de religião" e introduziram no
Estatuto da mesma Organização dois artigos (artigos 55
e 56), segundo os quais "os membros se empenham a
agir coletiva ou singularmente em cooperação com a
organização...", a fim de "promover o respeito e a
observância universal
356
DIREITOS HUMANOS
dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais
para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou
religião".
Depois disto tudo, no seio da Organização das
Nações Unidas, programou-se, a partir de 1947, um
International Bill of Human Rights, que deveria ter
sido constituído por uma Declaração universal,
contendo a enunciação dos Direitos Humanos, por um
Covenant contendo compromissos específicos jurídicos
dos Estados no que toca ao respeito dos mesmos
Direitos Humanos e um sistema de controle (Measures
of Implementation), voltado para a garantia do respeito
dos mesmos direitos. A realização desse programa
encontrou enormes dificuldades.
Os Estados-membros da Organização conseguiram
andar bastante rapidamente apenas no que toca à
adoção, por parte da Assembléia Geral da Declaração
(com a resolução 217 (III) a Assembléia Geral adotoua, a 10 de dezembro de 1948, com a denominação de
"Declaração Universal dos Direitos do Homem"). Eles
tiveram depois de proceder a uma longa e difícil
negociação para a elaboração de um Covenant
contendo compromissos específicos no campo do
direito, vinculando de maneira firme os Estadosmembros.
As dificuldades surgidas na negociação coincidem
com as que encontra geralmente a ação internacional
pela promoção dos Direitos Humanos. Elas derivam
do fato de que assumir compromissos jurídicos
precisos na matéria postula chegar a um entendimento
sobre fórmulas aptas a exprimir os ideais comuns dos
Estados diversos entre si, no que tange a tradições
jurídicas, sistemas políticos e fé religiosa, além de
implicar tomar em consideração diferentes standards
econômicos e sociais desses Estados e requerer a
previsão de um sistema especial de controle apto para
promover, para não dizer garantir, a observância das
normas, objeto de negociações.
A dificuldade em encontrar fórmulas aptas a
exprimir os ideais humanitários comuns aos Estados
signatários, conciliando as diferenças referentes a
tradições jurídicas, sistemas políticos e fé religiosa, é
muito notável. Essas diferenças não existem apenas
entre os Estados ocidentais e Estados de ''democracia
popular", entre mundo cristão e mundo islâmico, entre
tradições anglo-saxônicas de common law e tradições
continentais de "direito civil". Freqüentemente, há
diferenças de considerável importância entre países
que têm muito em comum, entre os Estados Unidos e
a Grã-Bretanha e entre os países da Europa Ocidental,
do mundo árabe e da América Latina.
Não são de menor relevância as diferenças de
condição econômica e social. A tomada de um
compromisso internacional de garantia dos Direitos
Humanos e das liberdades individuais, sobretudo dos
direitos em matéria de cultura, e dos direitos
econômicos e sociais e ainda dos direitos de ordem
civil e política, é certamente menos onerosa para os
países de avançado nível econômico e social do que
para os países menos evoluídos de recente formação,
ou limitados em seus recursos naturais ou sacudidos
por fenômenos de ineficiente valorização dos fatores
da
produção.
Uma
coisa
é
empenhar-se
internacionalmente em garantir a cada indivíduo o
"direito ao estudo" para um Estado economicamente
avançado, já dotado de uma organização escolar
adequada, e outra para um Estado novo e
economicamente em baixa, desprovido de tal
organização.
2. A importância de sistemas de controle que
funcionam em relação específica com a tutela
internacional dos Direitos Humanos. — Na ordem
internacional, à falta de um aparelho central capaz de
garantir de cima as normas, um fator que contribui de
forma importante para que os acordos internacionais
sejam normalmente observados e tenham efetiva
vigência nas relações entre os Estados deve ser
colocado no interesse de cada um em respeitá-los, pelo
temor de reação que os Estados signatários, de direito
ou de fato, poderiam pôr sob a forma de autotutela. Tal
interesse e tal temor, como é óbvio, são tanto mais
intensos e funcionais para assegurar a observância das
normas, quanto mais relevante de fato for o interesse
dos Estados contraentes em tutelar um determinado
acordo. Um acordo é fonte de uma relação jurídica que
se insere em uma série de relações jurídicas relevantes
em várias escalas no intercâmbio entre Estados. A
reação de um Estado à violação de um acordo por
parte de outro — mesmo lícita — pode desgastar uma
boa vizinhança e alterar uma atmosfera de relações
amigáveis, nas quais só a cooperação entre os Estados
pode desenvolver com eficácia. A cooperação por isso
mesmo é sempre pensada. As vantagens que ela pode
produzir são sempre avaliadas juntamente com as
possíveis desvantagens; por isso, a cooperação é
decidida quando as primeiras são inferiores às segundas
ou pelo menos quando as segundas não são superiores
às primeiras. Ora, o interesse que leva um Estado a
respeitar uma convenção em matéria de Direitos
Humanos, entre ele e outro Estado, é sempre um
interesse muito delicado, evoluído, mas de uma
intensidade tida normalmente como superada pela do
interesse na manutenção de uma atmosfera amigável,
na qual seja possível o desenvolvimento da execução de
outros acordos e a intensificação de relações de caráter
econômico e comercial, sem prejuízo das relações de
boa vizinhança.
DIREITOS HUMANOS
A previsão, numa convenção internacional em
matéria de Direitos Humanos, de um sistema de
controle ad hoc constitui uma forma importante de
atrair o interesse dos Estados contraentes para
respeitar a convenção mais intensamente do que em
outras circunstâncias. Tal sistema, por ser realmente
eficiente, deveria prescindir na medida do possível da
iniciativa dos Estados e tomar um caráter diferente do
de controle recíproco, isto é, deveria assumir um
caráter marcadamente internacional.
357
direitos reconhecidos no pacto, e ainda sobre o
progresso realizado no gozo de tais direitos (art. 40, do
pacto sobre direitos civis e políticos) e sobre "medidas
tomadas e progressos alcançados na consecução do
respeito aos direitos reconhecidos no pacto" (art. 16,
n.° 1, do pacto sobre direitos econômicos, sociais e
culturais). As relações previstas pelo primeiro pacto
submetidas a um Comitê dos Direitos Humanos
composto de dezoito membros designados pelos
Estados-membros dentro de uma lista de cidadãos
3. O pacto internacional sobre os direitos desses Estados e transmitida discretamente por esse
econômicos, sociais e culturais, o pacto sobre os Comitê ao Conselho Econômico e Social; as relações
direitos civis e políticos e o protocolo relativo ao previstas pelo segundo pacto, submetidas diretamente
pacto sobre os direitos civis e políticos. — As ao Conselho Econômico e Social e às instituições
dificuldades de que falamos acima fizeram-se sentir de especializadas, in toto ou in parte, na medida em que
tal forma no decurso das negociações para a realização digam respeito, in toto ou in parte, a questões de
do International Bill of Human Rights que os Estados- competência dessas instituições, relativamente aos
membros das Nações Unidas, para realizar o programa próprios estatutos, e sejam discretamente enviadas pelo
previamente fixado, tiveram de abandonar, tanto a Conselho Econômico e Social para a Comissão dos
idéia orginária de um único Covenant contendo Direitos Humanos, para fins de estudo e para a adoção
normas uniformes, quanto a de um sistema de controle de recomendações de ordem geral ou para
informações por parte dessa Comissão.
indiferenciado.
Somente em relação aos direitos e às liberdades
Em relação ao primeiro aspecto, as Nações Unidas
determinaram que se procedesse na Assembléia Geral tuteladas pelo pacto sobre direitos civis e políticos são
previstos
procedimentos de controle de tipo
como havia sido feito a 16 de novembro de 1966, à
adoção de dois pactos diferentes: um pacto relativo aos contencioso, que podem ser levados a cabo mediante
direitos econômicos, sociais e culturais e um pacto "comunicações" por parte do Estado ou por parte de
relativo aos Direitos Humanos civis e políticos. Um indivíduos contra o Estado, quando da parte de um ou
pacto sobre os direitos civis e políticos contendo de outros houver a convicção de que foram violadas as
disposições de ordem substancial redigidas em termos disposições do pacto. Tais procedimentos, porém, não
essencialmente preceptivos, levando cm consideração entrarão simultaneamente em vigor entre si e em
que os Direitos Humanos e a liberdade enunciados e concomitância com os pactos. O procedimento de
tutelados são direitos, e liberdade cuja garantia não comunicações estatais terá aplicação entre os Estados
implica uma ação da parte dos Estados, mas realiza-se participantes dos pactos que tiverem reconhecido uma
normalmente através de um non facere. Um pacto especial competência em receber essas comunicações
internacional sobre direitos econômicos, sociais e para o Comitê dos Direitos Humanos, após haver pelo
culturais
contendo
disposições
em
termos menos umas dez declarações nesse sentido, e poderá
programáticos, na suposta consideração de que o funcionar unicamente em relação aos Estados que
reconhecimento e a tutela daqueles direitos pressupõe fizerem esse reconhecimento. O procedimento de
uma ação pela remoção de obstáculos de ordem comunicações individuais, por seu lado, agirá apenas
econômica e social ao seu exercício — ação que em relação aos Estados que participam dos pactos e
deverá ser desenvolvida não imediatamente, mas em que tenham também ratificado um protocolo facultativo
períodos variáveis de tempo, de um Estado para outro (o protocolo facultativo relativo ao pacto internacional
Estado, mediante o emprego do "máximo de recursos sobre os Direitos Humanos civis e políticos, que
entrará em vigor três meses depois da ratificação ou da
possíveis" por parte de cada um.
Em correlação com as diferenças de ordem adesão de dez Estados). Esse procedimento poderá ser
substancial, o pacto sobre direitos civis e políticos e o utilizado somente por indivíduos pertencentes à
pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais jurisdição de um Estado que participe do protocolo e
são caracterizados ou acompanhados por diferentes em relação a comportamentos daquele mesmo Estado.
sistemas de controle. Ambos os pactos prevêem que
4. O comportamento dos Estados-membros da ONU
os Estados contraentes devem, dentro de uma data em relação aos compromissos assumidos. — A
preestabelecida, ou periodicamente, apresentar utilização desses instrumentos internacionais
relações, respectivamente, sobre medidas que
adotarem na execução dos
358
DIREITOS HUMANOS
por parte da Assembléia Geral das Nações Unidas,
embora constitua um fato importante no movimento
atual para a promoção dos Direitos Humanos dentro da
comunidade internacional, não é, porém, em si
mesma, uma satisfação imediata das reivindicações
humanitárias surgidas após o fim da Segunda Guerra
Mundial. O conjunto das normas dos pactos entrará
em vigor três meses depois do depósito do 35.º
instrumento de ratificação e só para os Estados
ratificantes ou aderentes.
No dia 22 de agosto de 1979, o pacto relativo aos
direitos econômicos, sociais e culturais fora ratificado
por setenta e três Estados, e o relativo aos direitos
civis e políticos por setenta e um (a Itália se obrigou,
tanto pelos pactos como pelo protocolo, desde que o
Governo, a 15 de setembro de 1978, proveu ao
depósito dos respectivos instrumentos de ratificação
junto do Secretário das Nações Unidas, havendo para
isso sido autorizado pelo Parlamento com a Lei n.°
881, de 25 de outubro de 1977, que incluía também a
necessária ordem de execução).
Na demora das negociações para a adoção dos
pactos e da sua entrada em vigor, verificou-se uma
progressiva dilatação na sensibilidade dos Estados e
na praxe do destaque ao compromisso que os
membros das Nações Unidas assumiram perante os
artigos 55 e 56 da Carta em agir, quer separada quer
conjuntamente, com a organização em prol da
promoção e da tutela dos Direitos Humanos. Entre
estes foi gerando a convicção de que esse
compromisso não poderia acabar na participação das
negociações, mas deveria transformar-se em obrigação
de ação, com o decorrer do tempo e com o crescimento
das possibilidades técnico-econômicas; obrigação de
cada Estado utilizar o máximo de recursos nos
objetivos assinalados pela declaração universal e por
outros instrumentos internacionais que se seguiram a
esta.
Tudo isto teve importantes reflexos, tanto no plano
convencional, quanto na ação da União, quanto,
enfim, no plano das relações Leste-Oeste.
5. As convenções regionais em matéria de Direitos
Humanos e outras voltadas para a tutela dos direitos
individuais e liberdades. — No plano convencional os
Estados-membros da organização:
a) Em âmbitos, como os das organizações regionais,
que em relação ao âmbito das Nações Unidas são
menos fortes as diferenças de tradições jurídicas,
sistemas políticos e standards econômico-sociais,
concluíram convenções para uma proteção precisa de
todos ou de grande parte dos Direitos Humanos e das
liberdades fundamentais
enunciados pela declaração universal. Aludimos à
Convenção européia para a proteção e salvaguarda
dos Direitos Humanos, aos cinco protocolos
complementares e à Carta social européia e ainda à
Convenção americana sobre os Direitos Humanos,
Pact of San José, Costa Rica, que entrou em vigor a
18 de julho de 1978.
b) Num plano mais multilateral ou inter-regional, a
nível de Nações Unidas ou de instituições
especializadas, realizaram convenções pela tutela de
valores da pessoa humana mais intensamente sentidos
por todos os Estados ou por um grande número deles e
mais neutros a respeito das diversas ideologias e dos
diversos sistemas econômico-sociais vigentes nas
várias partes do globo. Referimo-nos ao nível das
Nações Unidas, à Convenção para a prevenção e
repressão dos crimes de genocídio, de 1.° de dezembro
de 1948, às Convenções de Genebra, de 12 de agosto
de 1949, a propósito de direito bélico, à Convenção
relativa ao estatuto dos refugiados, de 28 de julho de
1951, e ao protocolo que acompanhou a mesma, de 31
de janeiro de 1967, à Convenção relativa ao estatuto
dos apólides, de 28 de setembro de 1954, e também à
Convenção sobre a redução dos casos de apolidia, de
30 de agosto de 1961, à Convenção sobre os direitos
políticos da mulher, de 31 de maio de 1953, e ainda à
Convenção sobre a nacionalidade da mulher casada,
de 20 de fevereiro de 1957, e à do consenso para o
matrimônio, sobre a idade mínima para a contração do
matrimônio e o registro do mesmo, de 10 de dezembro
de 1962, ao protocolo de 7 de dezembro de 1953 que
emendou a Convenção suplementar relativa à abolição
da escravidão, do tráfico de escravos e das instituições
e práticas análogas à escravidão, de 7 de setembro de
1956, à Convenção sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação racial, de 21 de dezembro de
1965, e ainda à Convenção relativa à
imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes
contra a humanidade, de 26 de novembro de 1968. Ao
nível de instituições especializadas, referimo-nos às
Convenções da Organização Internacional do Trabalho
sobre a liberdade sindical, ao direito de organização e
de contratação coletiva, à igualdade de remuneração
entre mão-de-obra masculina e feminina para um
trabalho de igual valor, à abolição do trabalho forçado
e à não-discriminação de posições e ocupações.
c) Inseriram nos textos das Convenções indicadas
nas letras a) e b) dispositivos que prevêem sistemas de
promoção e de controle da efetiva aplicação das
normas convencionais concordadas, alguns mais
simples ou rudimentares, para ser aplicados
automaticamente com a entrada em
DIREITOS HUMANOS
vigor da Convenção a que pertencem e, a respeito de
todos os Estados que participam da mesma, outros
sistemas mais complexos e sofisticados, subordinados
na aplicação à sua aceitação por parte dos Estados
ratificantes ou aderentes a uma cláusula facultativa.
6. A praxe das Nações Unidas: as declarações da
Assembléia Geral e os procedimentos de controle
instituídos pelo Conselho Econômico e Social. — No
plano da União, os Estados-membros da Organização
das Nações Unidas concorreram para a promoção e
para o controle dos direitos enunciados na declaração
universal dos Direitos Humanos tomando uma série de
relevantes atitudes, quer no seio da Assembléia Geral,
quer no seio do Conselho Econômico e Social.
No seio da Assembléia Geral, através de seu voto
unânime ou quase unânime, contribuíram para a
adoção por parte da mesma Assembléia de uma ampla
série de declarações (sobre os direitos das crianças,
sobre a concessão da independência aos países e aos
povos coloniais, sobre a soberania permanente dos
povos sobre os recursos naturais, sobre a eliminação de
todas as formas de discriminação racial, sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação das
mulheres, sobre o asilo territorial e sobre o progresso e
desenvolvimento no campo social) e para a inserção
no texto de alguns desses itens contendo expressões
preceptivas ou ordenativas chamando os Estados a
"respeitar" essas declarações. Em relação ao Conselho
Econômico e Social, esses Estados, através do voto,
concorreram para a adoção de uma série de resoluções,
com as quais o Conselho Econômico e Social: a)
convidou os Estados-membros da Organização a
fazerem relatórios sobre seu comportamento em
matéria de Direitos Humanos; b) pediu às organizações
não-governamentais dotadas de estatuto consultivo para
cooperarem na sua ação de promoção e de controle; c)
ordenou uma catalogação das "comunicações
individuais" chegadas à Organização queixando-se do
comportamento dos Estados-membros, submetendo-as
à consideração dos Estados interessados em eventuais
"observações" ou "exame"; d) atribuiu à subcomissão
pela luta contra a discriminação e pela proteção das
minorias a função de preparar um "relatório" contendo
informações sobre a violação dos direitos e das
liberdades fundamentais do homem e de submeter à
atenção da Comissão dos Direitos Humanos toda a
situação concreta que a seu juízo possa considerar-se
um caso de violação desses direitos ou liberdades,
tomando em exame, para ambos os efeitos — mesmo
através do grupo de trabalho —, as próprias
comunicações individuais.
359
7. A defesa dos direitos do homem e do princípio
da autodeterminação dos povos e a Conferência sobre
a Segurança e Cooperação na Europa. — Quanto ao
plano das relações Leste-Oeste, os representantes dos
35 países que participaram da Conferência sobre a
Segurança e a Cooperação na Europa (C.S.C.E.)
decidiram unanimemente inserir na Ata final, aprovada
em Helsinque a 1.° de agosto de 1975, entre os dez
princípios reguladores das relações entre os Estados
participantes, dois princípios, o VII e o VIII, referentes,
respectivamente, o primeiro aos direitos do homem e às
liberdades fundamentais (aí incluídas a liberdade de
pensamento, de consciência, de religião e de credo), e
o segundo à autodeterminação (entendida, levado em
conta o debate que antecedeu a C.S.C.E. e o contexto
desta, como um direito universal capaz de atuar em
benefício de todos os povos e não apenas no quadro
dos processos de descolonização).
Ao enunciar o primeiro princípio, os Estados
participantes: a) reconheceram que o respeito pelos
direitos do homem e pelas liberdades fundamentais
constitui "um fator essencial para a paz, para a justiça
e para o bem-estar, indispensáveis à garantia do
desenvolvimento de relações amigáveis e da
cooperação entre eles, bem como entre todos os
Estados", e b) expressaram sua determinação de
respeitar constantemente tais direitos e liberdades em
suas relações recíprocas e de se esforçar conjunta e
separadamente, mesmo em colaboração com as Nações
Unidas, em promover seu acatamento universal e
efetivo. Ao enunciar o segundo, puseram em evidência
a sua universalidade e, conseqüentemente, a sua
aplicabilidade aos próprios Estados soberanos
participantes na Conferência, quando precisaram que
todos os povos "possuem sempre" (não apenas,
portanto, no quadro de um processo de
descolonização) "o direito de determinar, com plena
liberdade, quando o desejarem e como o desejarem,
seu próprio estatuto político, tanto interno como
externo, sem ingerências de fora, e de buscar, segundo
a própria livre escolha, seu modelo de desenvolvimento
político, econômico, social e cultural". A enunciação
destes dois princípios deram depois um particular
relevo e ênfase, paralelamente ao que foi feito em
relação aos outros oito princípios de caráter mais
territorial e econômico, chegando a expressar — além
da própria decisão de os respeitar e aplicar plenamente
"em todos os seus aspectos, nas suas relações recíprocas
e na sua cooperação, tendo em vista assegurar a cada
Estado participante as vantagens resultantes do respeito
e da aplicação desses princípios por parte de todos" —
o seu compromisso de proceder, mesmo depois da
adoção das Atas finais, "a uma
360
DIREITOS HUMANOS
troca aprofundada de pontos de vista sobre a aplicação
das disposições dessa Ata e sobre o cumprimento das
obrigações definidas pela Conferência", e à
Organização, para tal fim, de "encontros entre os
respectivos representantes, a começar por uma reunião
a nível dos representantes designados pelos Ministros
dos Negócios Estrangeiros", encontros depois
denominados "reuniões de verificação".
8. Um confronto entre o sistema dos pactos e a
praxe analisada nos três parágrafos precedentes. —
Tudo o que se observou desde 1945 até hoje no plano
convencional e na praxe da Organização das Nações
Unidas e no âmbito da C.S.C.E., se indubitavelmente
diminui a relevância do atraso no aperfeiçoamento do
procedimento de conclusão dos pactos e dos limites
subjetivos da sua entrada em vigor, não elimina a
mesma completamente. As convenções que foram
concluídas — do ponto de vista dos direitos
garantidos e do ponto de vista dos Estados em que
entraram em vigor — têm um alcance bem mais
limitado do que os próprios pactos. A participação no
controle posto em ação pelas Nações Unidas das
organizações não governamentais, a redação, de parte
da subcomissão pela luta contra a discriminação e a
proteção das minorias, de um "relatório" contendo
informações tiradas de todas as fontes possíveis e o
procedimento para exame das comunicações
individuais, por seu turno, constituem um conjunto de
elementos que, embora se realize de forma
amplamente independente da iniciativa e também, em
casos, contra a vontade de alguns, esgota seus efeitos
numa "movimentação" da opinião pública muito
restrita para que se possa colocar ao nível de fator
social capaz de determinar os Estados a observarem os
standards das declarações. As comunicações
individuais são levadas ao conhecimento dos
membros da subcomissão unicamente porque a sua
consideração serve para dar um quadro prático para o
estudo que estes são chamados a realizar, através da
elaboração de textos e de recomendações que podem
ser apenas de caráter geral. Os esforços realizados
para forçar e superar os limites implícitos em tão
restrita função encontraram dificuldades de ordem
jurídica e política, não conseguindo sucesso até aqui.
A previsão, enfim, nas Atas finais de Helsinque, ao
lado da enunciação de um princípio de respeito pelos
direitos do homem e pelas liberdades fundamentais e
de um princípio de autodeterminação dos povos, de
reuniões de verificação, abstratamente capazes de
constituir instrumentos úteis aptos a garantir a sua
observância, não deu lugar aos progressos concretos
correspondentes. A União Soviética e os outros países
de democracia
popular opuseram-se decisivamente a qualquer
discussão ou verificação sobre o modo como aplicaram
ou puseram em prática tais princípios, invocando,
além do caráter não vinculatório das Atas onde se
acham expressos, o princípio da "não ingerência nos
assuntos internos", que nessa mesma Ata os precede
imediatamente, quando são enunciados os critérios
que hão de presidir à segurança e à cooperação na
Europa. Em conseqüência dessa atitude: a) só se pôde
chegar à adoção de um documento final na primeira
reunião de verificação, tida em Belgrado de 4 de
outubro de 1977 a 9 de março de 1978, quando a parte
ocidental e a dos Estados neutros acederam a uma
redação que não contivesse nenhuma indicação relativa
à aplicação das previsões da Ata concernentes aos
Direitos Humanos, e b) a segunda destas reuniões,
atualmente em curso em Madri, foi suspensa a 12 de
março de 1982 e adiada a 9 de novembro do mesmo
ano, quando os ocidentais e neutrais quiseram por
força discutir a compatibilidade dos fatores que
determinaram a crise polonesa com os princípios de
Helsinque.
A entrada dos pactos em vigor, sobretudo desde que
não acompanhada do protocolo concernente aos direitos
civis e políticos, pôs em ação mecanismos bem menos
evoluídos e, especialmente enquanto só em vigor para
uma limitada parte dos membros da Organização, de
eficácia subjetiva restrita, mas não decerto tão
reduzida no que se refere aos seus efeitos objetivos:
em face de instrumentos certamente obrigatórios, a
Organização das Nações Unidas não só poderá agir
solicitando um bom funcionamento dos mecanismos
de controle convencionalmente previstos, mas também
tomar posição ela mesma, mormente através da
Assembléia Geral e do Conselho de Segurança, como
fator atuante em prol da sua observância.
Paralelamente, a relevância que a praxe da
Organização (incluídas as declarações) e a Ata final
da Conferência de Helsinque podem assumir no
ordenamento jurídico interno em relação à disciplina
concreta de situações individuais é puramente eventual
e secundária. Os valores proclamados nas Declarações
das Nações Unidas ou numa Ata como a de Helsinque
têm relevância apenas quando nesse ordenamento
houver uma norma que se preste a duas interpretações,
consentindo ao intérprete presumir que deva
prevalecer aquela que eventualmente mais se conforme
aos valores proclamados. A adequação do ordenamento
jurídico estatal dos pactos, por sua vez, daria lugar a
uma especial norma que prevaleceria em relação às
normas gerais anteriores, qualquer que fosse seu
conteúdo.
DISSENSO
9. Limites e perspectivas da ação internacional. —
As observações acima feitas, se, de um lado, fazem
intuir as dificuldades que hão de ser superadas antes
que os pactos possam ser ratificados, não dizemos por
todos, mas pelo maior número dos Estados-membros
das Nações Unidas, induzem, por outro, a pôr em
relevo como os limites e perspectivas de
desenvolvimento de uma ação internacional de defesa
e proteção dos direitos do homem estão
indissoluvelmente ligados aos limites e perspectivas
de desenvolvimento da Organização das Nações
Unidas e, mais genericamente, das ORGANIZAÇÕES
INTERNACIONAIS (V.). Sob este aspecto, a entrada dos
pactos em vigor no maior número possível de Estados
poderá assinalar uma mudança nas condições do
indivíduo, tanto mais importante quanto mais o
fenômeno, que é conhecido como "organização
internacional", se reforçar e evolver para a superação
das atuais características da comunidade internacional.
Sob esse mesmo aspecto, há de ser considerado
como um dado extremamente positivo o fato de que,
no quadro de uma organização internacional como a
das comunidades européias, mais que qualquer outra
provista de um sistema que garante o respeito pelo
direito, a Corte de justiça tenha chegado a afirmar que
"a tutela dos direitos fundamentais constitui parte
integrante dos princípios gerais" cuja observância ela
afiança.
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della convenzione europea del diritti dell'uomo, in
"Rivista di diritto internazionale", 1974; G. ARANGIORUIZ e L. V. FERRARIS. I diritti dell'uomo da Helsinki a
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respect des droits de l'homme de la convention
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Id., La
361
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l'homme, in La protection iniernationale des droits de
l'homme. Editions de l'Université de Bruxelles,
Bruxelles 1977; M. SORENSEN, I diritti iscritii nella
convenzione europea del diritti dell' uomo nel 1950
hanno lo stesso significato nel 1975?, in "Rivista di
Diritto Europeo", 1975; SPERDUTI, palavra Diritti
umani (protezione internazionale dei), in Enciclopedia
del diritto. Giuffrè, Varese 1964.
[PAOLO MENGOZZI]
Dissenso.
I. PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS. —
Uma definição precisa e unívoca de Dissenso é difícil
de formular, principalmente por dois motivos. Em
primeiro lugar, com este termo expressam-se
fenômenos assaz diversos. Dissenso adquire assim um
significado muito amplo e, às vezes, de contornos
indefinidos. Outro motivo, parcialmente sobreposto
ao primeiro, é o de que é igualmente freqüente fazerse confusão entre termos que indicam diferentes tipos
de comportamentos negativos em relação ao sistema
político. Mais exatamente, não é rara a confusão entre
Dissenso, DESOBEDIÊNCIA CIVIL (V.), OPOSIÇÃO (v.),
ou mesmo VIOLÊNCIA (V.). Uma prova desta
afirmação está no fato de que se trata de Dissenso
sobretudo em escritos respeitantes à desobediência
civil, à oposição e ao protesto, violento e não
violento. Na realidade, os motivos que explicam a
dificuldade de definição possuem um sério
fundamento, desde que se considere, como propomos
aqui, que o Dissenso — ou seja, o contrário de
CONSENSO (V.) — é a categoria mais genérica e
compreensiva de toda forma de desacordo e de atitude
negativa em relação ao sistema político ou aos seus
aspectos mais específicos. Deste ponto de vista, a
desobediência civil e as várias formas de oposição e
de protesto são manifestações típicas e mais
particulares de Dissenso.
Deste modo, segundo a forma que assume, o
Dissenso se traduz em APATIA (V.), indiferença,
desinteresse pelo sistema político, ou então em
exortações, conselhos, críticas, pressões por meios
violentos ou não, para levar os decision-makers a
preferirem umas opções a outras ou a modificarem
decisões antes tomadas ou diretrizes
362
DISSENSO
políticas. Pode visar a substituir o Governo era
exercício por outro. Pode pôr em questão a
legitimidade ou as regras fundamentais em que assenta
o regime ou a comunidade política. Em casos
extremos, pode até ir mais além, chegando a traduzirse na rejeição de todo o sistema político. Portanto,
pelo que respeita aos próprios objetivos, pode ser o
mais moderado ou tornar-se o mais extremado dos
comportamentos negativos para com o sistema
político.
Baseando-nos na definição que acabamos de dar, é
fácil deduzir que o Dissenso possui uma vasta gama de
variações no que respeita às suas características
principais. Pode ser violento, mas também não
violento. Individual ou coletivo, enquanto sustentado
pelos indivíduos singulares ou por grupos. Como já
dissemos, não implica necessariamente violação
intencional e demonstrativa de uma norma, enquanto
também traduzível em indiferença, apatia e
desinteresse pelo regime ou pelo sistema político.
Como é óbvio, se, em vez disso, se traduzir, por
exemplo, em oposição violenta, o discurso será bem
diferente. Mas o que importa aqui precisar é que o
Dissenso existe logicamente antes do encontro-choque
com a norma, mesmo que se possa transformar, num
segundo momento, em apatia, desobediência civil,
oposição ou protesto. Pode organizar-se estavelmente,
institucionalizar-se, ou carecer de qualquer suporte
orgânico, mesmo quando possui um caráter coletivo.
Finalmente, pode organizar-se só em ocasiões e
circunstâncias específicas. Existe obviamente uma
diferença substancial entre as várias formas de
Dissenso, se levarmos em conta o grau de
organização, mesmo quanto ao surgimento e papel dos
líderes ocasionais, quando houver ausência total de
estruturas, ou dos líderes mais ou menos estáveis, em
caso contrário.
É razoável pensar que, quaisquer que sejam as
manifestações do Dissenso, excluído o caso da apatia
e da indiferença, ê na publicidade que ele tem a sua
arma principal: a eficácia do Dissenso está
positivamente correlacionada com a força com que os
dissidentes conseguem atingir a opinião pública e,
indiretamente, a autoridade política. Certas
manifestações até clamorosas de Dissenso, ou, mais
particularmente, de protesto, têm exatamente por fim
"fazer notícia" e atingir melhor o próprio objetivo:
mobilizar a opinião pública e, como conseqüência, a
autoridade política sobre temas e modos pretendidos.
Os líderes ou protagonistas isolados do Dissenso
são de origem social diversa: escritores, artistas,
intelectuais em geral, mas também operários e
camponeses. Os graus de Dissenso podem-se dispor
ao longo de um continuum, de harmonia
com a intensidade do desacordo manifestado. Nos dois
pólos do continuum estariam, em sua forma menos
intensa, as já mencionadas manifestações de apatia, de
protesto não violento ou de desobediência civil, e, em
sua forma mais intensa, as diversas manifestações de
oposição violenta.
A esta definição ampla, alguns autores preferiram
uma mais restrita, que faz do Dissenso, não uma
categoria geral e abrangente de todas as atitudes
negativas em relação ao sistema político ou a alguns
dos seus elementos, mas antes uma categoria residual.
O Dissenso seria, segundo estes autores, qualquer
forma de desacordo não estavelmente organizado e
institucionalizado, sempre mantido dentro de contornos
moderados e não violentos, individuais ou coletivos.
Segundo este modo de entender, o verdadeiro e
autêntico Dissenso teria as suas manifestações típicas
em escritos de vários tipos em jornais e revistas,
apelos à opinião pública, manifestos, diversas formas
de protesto não violento, etc. Os líderes mais ou
menos ocasionais de um tal Dissenso seriam escritores,
artistas, intelectuais e, em geral, todos aqueles que, por
sua formação profissional, têm melhor ou mais fácil
acesso aos instrumentos de comunicação de massa. É
evidente que, mesmo dentro desta concepção do
Dissenso, a publicidade dos atos de desacordo
desempenha um papel fundamental.
II. JUSTIFICAÇÕES E FUNÇÕES. — O Dissenso pode
ser justificado com argumentos de tipo ideológico.
Apresentam-se as teses da discordância como as mais
"justas" ou as mais "racionais", porque traduzem
melhor os valores dos dissidentes, tanto se eles
constituem o fundamento da legitimidade do sistema
político, como se não. Contudo, na realidade política,
este tipo de Dissenso, que se pode definir como
"ideológico", anda amiúde acompanhado de um
Dissenso que tem raízes econômicas e sociais. Neste
caso, a ideologia é apenas uma justificação aparente. A
matéria efetiva da contenda está em interesses
específicos, em geral econômicos, sustentados pelos
grupos divergentes. Ao Dissenso "ideológico" se
sobrepõe um Dissenso mais concreto, o "de
interesses".
O Dissenso desempenha, além disso, algumas
funções importantes, com conseqüências diversas, de
acordo com o sistema político e o regime em que se
desenrola. A primeira função já ficou parcialmente
esboçada no que até aqui se expôs. O Dissenso faz
emergir, impondo-os à atenção da opinião pública,
injustiças e privilégios existentes no sistema social.
Neste sentido, oferece oportunidade de expressão,
conquanto nem
DISSENSO
sempre com resultados positivos, a minorias menos
privilegiadas. Além disso, mediante uma crítica
vigilante, poderá desenvolver uma ação mais geral no
controle da atuação do Governo, pondo em evidência
as motivações ou erros — efetivos ou supostos — dos
processos de decisão governamentais. Deste ponto de
vista, seria correto sustentar, seguindo alguns teóricos
democráticos, que há necessidade de tutelar o
Dissenso, bem como a liberdade de crítica a ele
vinculada. Mais: do ponto de vista histórico, pode-se
julgar que a democracia como regime político surgiu,
efetivamente, quando se reconheceu e tutelou
definitivamente a liberdade de Dissenso, sob a única
condição de que ele não se concretizasse em
manifestações de violência. A tutela democrática do
Dissenso consiste na efetiva aplicação de todas as
normas que garantem o exercício de direitos civis
como o de liberdade de imprensa, de expressão e de
associação.
Em algumas das suas manifestações mais
moderadas, o Dissenso pode desempenhar uma outra
função: contribuir para a manutenção do regime.
Estimulando-o a uma constante automudança e
oferecendo ensejo ao desafogo dos motivos de
descontentamento existentes nos membros da
sociedade, permite, de fato, o aumento do grau de
legitimidade do próprio regime, uma das condições
essenciais da continuidade dos sistemas políticos (v.
ESTABILIDADE POLÍTICA). É também por esse motivo
que os teóricos da democracia têm defendido a
necessidade da tutela do Dissenso: suas formas não
extremas abrem canais ao desaguar de uma
insatisfação que poderia de outro modo radicalizar-se
e levar a formas mais abertas e violentas de
contestação, e contribuem assim para o aumento da
legitimidade do regime.
Do que se tem defendido, deduz-se que o Dissenso
pode ainda cumprir uma função global de estímulo à
mudança-adaptação. E a pressão à autocorreção. O
sistema político encontra assim um incentivo à
mudança que gera em seu seio. O impulso pode vir de
baixo, dos atores não oficiais do sistema, ou dos
próprios atores políticos, tanto coletivos como
individuais. Deste ponto de vista, torna-se mais
merecedora de atenção a tese de quem sustenta que o
Dissenso contribui para a "qualidade" do Governo.
Há casos em que o Dissenso desempenha uma função
bem diferente da que acabamos de descrever: ele
também produz efeitos desestabilizadores. Isso ocorre
quando o grau de legitimidade do sistema político é
muito baixo, a insatisfação é bastante generalizada, por
causa da crise econômica ou da expansão da demanda
em fases de rápido crescimento e mobilização social, e
o
363
Dissenso se traduz em forte oposição, que pode ser
também contra o regime e assumir um caráter de
violência. Além disso, nas condições antes descritas,
podem existir contemporaneamente diversas formas
de Dissenso, mais moderadas ou extremas: se
catalisadas, aumentarão o perigo de que se
desencadeie a reação destruidora de alguns membros
do sistema. Num caso destes, até o regime pode ser
derrubado. Em conclusão, o Dissenso nem sempre é
funcional em relação ao sistema; às vezes converte-se
em disfunção: depende do campo político em que se
desenvolve e das formas e intensidade que assume.
Temos de considerar à parte uma função peculiar
exercida por uma forma específica de Dissenso, o
protesto legal. Tomando por motivo o freqüente
recurso de grupos privados de meios a atos de
protesto, Lipsky (1968) sustentou que, para estes
grupos, o protesto, mantido dentro dos limites da
legalidade, constitui um verdadeiro e autêntico meio
político. Permite a grupos menos privilegiados
intervirem no processo de negociação política e
deitarem mão dessa arma, transformando até o gesto
em atos, para obter da autoridade política melhoria das
próprias condições econômicas e sociais. Lipsky
descreve esta função original do protesto legal em seus
variados aspectos, dificuldades e limitações.
Acrescentaremos apenas que a estratégia adotada para
aumentar a própria força contratual no processo político
facilmente poderá ultrapassar o limiar da legalidade e
passar, por isso, do simples protesto legal ao proteto
ilegal, ou, de qualquer modo, a outras formas mais
acentuadas de Dissenso.
III. SISTEMAS POLÍTICOS, REGIMES E DISSENSO. Em
graus e formas diferentes, existem manifestações de
Dissenso em todos os sistemas políticos. Para que isso
aconteça, não são necessárias particulares condições
políticas, sociais, econômicas ou culturais. Se não for
um certo grau de insatisfação, em geral igualmente
presente em todos os sistemas políticos, será pelo menos
a pluralidade de interesses de vários tipos e origem
políticos, sociais, econômicos ou culturais — que
constituirá a base não eliminável do Dissenso. Contudo,
para aprofundar o problema, convém ver quais as
características específicas dos regimes que tutelam ou
ao menos toleram o Dissenso, e quais as formas de
Dissenso mais prováveis em face de tais características.
As características em questão são sobretudo duas,
intimamente ligadas: existência concreta da
possibilidade de articular e manifestar o Dissenso e,
em segundo lugar, presença de algum grau de
receptividade no regime. No tocante ao primeiro
564
DISSENSO
ponto, é de importância a medida em que os diversos
direitos políticos e civis são efetivamente garantidos e
em que medida existe, por exemplo, a possibilidade
de usar os vários canais de comunicação de massa.
Quanto mais garantidos forem de fato tais direitos,
tanto maior será a possibilidade de expressão do
Dissenso
em
suas
diversas
formas.
Conseqüentemente, é também muito importante o
grau de controle e de limitação que a autoridade
política exerce sobre os vários instrumentos através
dos quais se expressa o Dissenso: jornais, rádio,
televisão, por exemplo, e sobre a possibilidade de
organização dos discordantes.
A segunda característica é dependente da primeira e
condiciona amplamente as formas mais prováveis de
Dissenso. Mais exatamente, se existe a possibilidade
de expressar o Dissenso, é importante ver qual o grau
de receptividade que o regime realmente tem. Com
efeito, o Dissenso encontra mais fácil e proveitoso
manifestar-se onde existe um sistema receptivo e
capaz de resposta, e as autoridades políticas admitem
a possibilidade de um incitamento à mudança vindo
de baixo. Não existindo ou sendo baixo o grau de
receptividade e de capacidade de resposta, os
discordantes buscarão outros modos de expressar seu
desacordo e o Dissenso tenderá fatalmente a
radicalizar-se. Deste modo, quanto maior for o grau de
receptividade e de autocorreção do regime, tanto mais
provável será que o Dissenso tome formas moderadas
e, correlativamente, as formas extremas sejam mais
reduzidas e limitadas.
Destas considerações aflora um elemento que
especifica melhor a relação entre regime e Dissenso.
Este pode ser também um modo de articular a
demanda política através dos canais de comunicação
de massa ou de outras formas institucionalizadas de
expressão. Um modo que, mormente na forma de
protesto legal, põe à disposição dos grupos menos
privilegiados um instrumento político capaz de
reduzir a desigualdade dos membros do sistema no
respeitante à distribuição das oportunidades de acesso
aos canais de transmissão da demanda.
Ora, é evidente que as duas características atrás
mencionadas e a concepção do Dissenso como modo
de articulação da demanda política só existem e são
possíveis num regime democrático (v. DEMOCRACIA).
Mais: um regime será tanto mais democrático quanto
mais evidente for a existência dessas duas
características. Por isso se pode dizer que, embora
com notáveis variações entre uma democracia e outra,
o Dissenso tolerado neste tipo de regimes é
sumamente amplo, tanto o que visa as políticas como
o que visa o sistema global. No plano normativo, ele
possui largo amparo; a
autoridade política se sente pouco ameaçada; as
sanções contra os dissidentes, se existem — à medida
que o regime se torna mais democrático, não deviam
existir —, são limitadas; o caso mais freqüente é que o
regime se mostre receptivo aos problemas postos pelo
Dissenso; para os que divergem é bastante fácil atingir
a opinião pública; o perigo da radicalização do
Dissenso não é muito grande, pois existem canais de
desafogo e o sistema é receptivo.
Na ampla gama de regimes não democráticos,
desde os tradicionais aos autoritários ou totalitários, as
manifestações de Dissenso permitidas estão mais ou
menos limitadas. Em todo caso, o Dissenso não está
efetivamente tutelado. A autoridade política considerao como uma ameaça ainda maior ao seu poder, porque
existe a possibilidade concreta de que ele contribua
para a aglutinação de todos os opositores do regime,
especialmente quando é grande a insatisfação, com as
conseqüências desestabilizadoras já evidenciadas. Por
isso, as sanções contra os dissidentes são muito mais
duras, até porque estes são muitas vezes reconhecidos
como culpáveis de atividades antiestatais. O acesso à
opinião pública, se é que esta existe, torna-se assaz
difícil e a autoridade política põe todo o seu empenho
em controlar os canais de comunicação. É muito
provável que o Dissenso se radicalize e daí a
necessidade ainda maior de lhe impedir qualquer
forma de expressão, reprimindo-o. Finalmente, a
justificação ideológica que a autoridade política
costuma dar do seu poder e legitimidade vem impor
novos controles e embaraços ao poder de dissensão.
Por fim, tenha-se presente não só que existe uma
imensa gama de variações no modo como os regimes
democráticos e não democráticos reagem ao Dissenso,
mas também existem múltiplas outras formas de
controle social e oculto, independentemente do tipo de
regime político, que lhe tolhem ainda mais a
expressão.
BIBLIOGRAFIA. — C. AKE, Political obligation and
political dissera, in "Canadian Journal of Political
Science". II. 1969; A. ETZIONI. Demonstration
democracy, Gordan & Breach, New York 1970: M.
LIPSKY. Protest as a political resource in "American
Political Science Review". LXXII. 1968: E. B.
MCLEAN. Limits of dissent in a democracy in "Il
Politico". XXXV. 1970: E. M. ZASHIN. Civil
disobedience and democracy, The Free Press. New
York 1972: (ver também a bibliografia em
Desobediência Civil, Oposição e Violência).
[LEONARDO MORLINO]
DISSUASÃO
Dissuasão.
I. CONCEITO. — O conceito geral de Dissuasão
assume historicamente uma conotação técnica na
linguagem política a partir dos anos imediata mente
sucessivos à Segunda Guerra Mundial, em particular, na
forma restrita do deterrent, que representa a ameaça
concreta da guerra atômica, graças à qual se determina
uma particular situação de equilíbrio nas relações entre
os Estados detentores das armas atômicas, que impede
a eclosão de novas guerras mundiais. Podemos, por
tanto, ver no deterrent um elemento fundamental
próprio do período da "guerra fria". Devido ao sucesso
do deterrent como fator de paz a partir dos anos 50,
formulou-se um conceito muito particular das relações
internacionais, fundado na teoria da Dissuasão
termonuclear, que indica a específica condição na qual
se encontrariam os Estados dotados de armas
termonucleares, que evitam qualquer confronto,
estabelecendo-se assim uma recíproca incapacidade de
confronto direto pelo medo inspirado, na possibilidade
de serem obrigados a recorrer ao emprego de tais
armas.
O alcance do conceito de Dissuasão, que encontra
sua principal aplicação no problema da prevenção da
guerra, é, todavia, bem maior, podendo chegar a um
contexto mais amplo da relação social, na medida em
que aspectos dissuasivos podem caracterizar, não
somente as relações entre os Estados, mas também as
relações entre grupos, políticos ou não, ou entre
indivíduos, cada vez que se apresente uma situação
conflitiva.
II. ESTRUTURA DA DISSUASÃO. — o recurso à
Dissuasão concretiza-se na formulação de uma ameaça
dirigida ao adversário (a outra parte em conflito), com
o objetivo de obter a abstenção de comportamentos
diferentes dos desejados. A estrutura condicional da
mensagem dissuasória consiste na ameaça de uma
represália, no caso em que o adversário não se adapte à
vontade do dissuasor, através da predefinição de uma
situa ção futura que seria danosa para o destinatário.
Neste sentido, o recurso à Dissuasão seria alter nativo
(e preliminar) com relação ao recurso da guerra
(entendendo este termo no seu sentido lato, que vai do
conflito internacional ao conflito entre dois grupos,
dois bandos ou dois indivíduos), enquanto seu objetivo
fundamental é de alcançar, através de uma particular
obra de persuasão em relação ao adversário, as mesmas
vantagens que resultariam do sucesso em um conflito,
evitando assim a obrigação de suportar os seus custos.
Pode-se, todavia, colher um componente dissuasivo
também no exercício do conflito, no
365
sentido de que todo incremento da violência que uma
das partes decide tem a função demonstrativa de
indicar ao adversário que, para ele, seria impossível
alcançar o sucesso. O incremento atual contém, pois,
uma ameaça de ulterior incremento potencial: neste
aspecto, identifica-se o conteúdo de ameaça de
escalation, termo da linguagem da estratégia militar
que consiste, exatamente, em ameaçar o adversário,
obrigando-o a retirar-se da luta graças à demonstração
da própria capacidade de incrementar a quantidade de
violência, que. num momento dissuasivo, resta apenas
em potencial.
Temos assim uma dupla área do exercício da
Dissuasão: uma preventiva (ou alternativa) à eclosão
das hostilidades, e uma sucessiva (ou complementar) à
eclosão do conflito. Esta distinção mostra que a
operatividade da técnica dissuasiva é bem mais ampla
do que se pode imaginar, se concebermos a Dissuasão
simplesmente como técnica para obter uma abstenção, e
permite, portanto, estender o emprego da análise, em
termos dissuasivos, a toda gama dos fenômenos
conflitivos. Além disso, quanto mais o conflito é
oficialmente reconhecido e institucionalizado, tanto
mais a técnica dissuasória tende a ser a única forma de
conduzir o próprio conflito.
Pelo fato de ter sido empregado essencialmente no
campo da prevenção da guerra atômica, o conteúdo da
Dissuasão é freqüentemente considerado como
exclusivamente abstencionista. No campo das relações
internacionais, entretanto, assim como no âmbito mais
geral do conflito político, a Dissuasão pode ser
empregada, tanto para fins abstencionistas, quanto para
fins ativos. O dissuasor pode pedir ao adversário tanto
um fazer quanto um não-fazer, visto que o elemento
característico que indica uma relação dissuasória é
constituído, não pelo tipo de adequação exigida ao
adversário, mas pelo fato de que esta adequação seja
solicitada através da formulação de uma ameaça. A
prevalência abstencionista pode, todavia, ser
reconduzida ao fato bem conhecido pelos juristas de
que é muito mais fácil impedir do que não promover
uma ação ou um comportamento. Mas, se a Dissuasão
fosse unicamente impeditiva, não seria impossível
colher e interpretar os aspectos dinâmicos da condução
do conflito.
Pelo conceito de Dissuasão se entende, ao
contrário, uma referência a uma conotação estrutural
de cada conflito. Por exemplo, quando nó contexto
internacional se qualifica a natureza das relações entre
os blocos dos vários Estados como dissuasória, não se
entende tanto uma referência a cada momento
específico da vida de
366
DISSUASÃO
relação entre os Estados, mas, de preferência, o fato
de que cada ação se desenvolve num contexto
dissuasório e de que cada ação pode ser cumprida
obedecendo ao estilo da Dissuasão.
III. TÉCNICA DA DISSUASÃO. — Enquanto no caso do
conflito violento a ação dos contendores dirige-se
contra a força (militar, política, física, etc.) do
adversário, o exercício da Dissuasão consiste em
frustrar, no plano da mera eventualidade, as intenções
do adversário. O embate dissuasivo pode, portanto,
ser imaginado como um embate de vontades e
intenções contrapostas. Deste procedimento deriva
toda a particular delicadeza da aplicação da técnica da
Dissuasão.
Considera-se útil examinar especificamente a
técnica do exercício da Dissuasão. Antes de mais nada,
a Dissuasão configura-se exatamente, pelo motivo
acima citado, como uma tentativa caracterizada pela
incerteza: a ameaça dissuasiva é sempre obrigada a
apoiar-se na esperança de que as palavras sejam
eficazes, enquanto um bombardeamento, uma
agressão, um ato danoso o são sempre. Sendo o
objetivo da ameaça o de que esta não se deve realizar,
a efetiva vontade de agir, no caso em que o provável
adversário não tenha sido dissuadido, é sempre objeto
de avaliação incerta, enquanto o adversário sabe
sempre que o dissuasor preferiria não executar a
ameaça.
Chegando a este ponto, o dissuasor move-se dentro
de um contexto arriscado. O dissuasor corre o risco
de que a ameaça não seja bastante eficaz (suficiente) e
o adversário arrisca-se a ter que sofrer a represália,
caso resolva agir. Por outro lado, foi exatamente este
último quem provocou a ameaça: a atitude do
dissuasor é reativa. Diante da eventualidade de que o
adversário desencadeie uma ação reconhecidamente
danosa (ou deixe de cumprir uma ação desejada), o
dissuasor reage formulando a ameaça de represália. A
Dissuasão é, portanto, uma reação com o fim de
mudar a atitude já assumida ou as intenções expressas
do adversário na forma da predefinição da realidade
futura, conforme a fórmula da "profecia que se
autocumpre" (teorema de Thomas).
Examinada deste ponto de vista a forma da
mensagem, torna-se necessário passar às condições de
sucesso da manobra dissuasiva, que são assim
representadas: 1) pela credibilidade; 2) pela relação
entre as forças; 3) pela importância do que está em
jogo.
Enquanto o papel da relação entre as forças é
facilmente compreensível e o da importância do que
está em jogo determina o nível quantitativo da ameaça
(conforme a gravidade do caso), é útil deter-se no
requisito da credibilidade. Para
que a ameaça tenha credibilidade é necessário, antes
de mais nada, que esta seja atuável e que o
destinatário tome ciência disto. Em segundo lugar, a
ameaça deve ser proporcional à gravidade da
eventualidade que se tenciona impedir; por isso ela
não deve ser inferior, nem deve superá-la
demasiadamente, para não parecer excessiva e,
portanto, inverossímil. Em terceiro lugar, quem
formula a ameaça deve ter a capacidade (vontade e
intenção) de executá-la e deve saber convencer disto o
destinatário. Em quarto lugar, a ameaça, cujo
conteúdo não deve, necessariamente, ser o mesmo da
ação temida, deve dirigir-se a um aspecto no qual o
destinatário seja vulnerável e deve parecer de tal
maneira danosa que convença o adversário da
vantagem da renúncia ao objetivo, considerando o
custo representado pela represália.
Apoiadas nestas conotações serão desenvolvidas as
avaliações subjetivas fornecidas pela relação entre as
forças e o valor atribuído ao que está em jogo.
IV. DISSUASÃO E INTIMIDAÇÃO. — A configuração da
relação entre as forças tem importantes repercussões
sobre a própria definição da Dissuasão. Até este
momento estudamos as posições dos contendores de
maneira unilateral, sem considerar especificamente sua
relação. Somente no caso no qual a relação seja de
paridade (equivalência) é que se dá a Dissuasão.
Realmente, a possibilidade de exercitar a Dissuasão
não pertence apenas a um, mas a ambos os
contendores. Para que ambos possam ter condições de
agir, faz-se necessário que se verifique uma clara
situação de reciprocidade.
A possibilidade da Dissuasão pode assim chegar a
caracterizar um tipo muito particular de relação:
aquele que se desenvolve entre duas forças
equivalentes configura-se com respeito ao poder do
qual ambas as forças dispõem, como uma situação de
fato. Os poderes contrapostos, pelo fato de serem
equivalentes, não podem ser, um comparado com o
outro, mais. que poderes de fato.
Existe, porém, uma forma de Dissuasão que pode
aparecer também em relação entre desiguais: por
exemplo, a mãe dissuade o filho de desobedecê-la,
com ameaça de um castigo; o superior hierárquico
pode dissuadir seu dependente de proceder de um
determinado modo; a lei dissuade o cidadão, evitando
ser violada com a ameaça de uma série de sanções. Em
todos os casos nos quais os poderes contrapostos não
gozam de um estado de reciprocidade falar-se-á então,
em lugar de relação dissuasiva, de relação de
intimidação, caracterizada pelo fato de que um dos
contendores
DISTENSÃO
desempenha, em relação ao outro, um papel de
autoridade.
A intimidação depende, portanto, do reconhecido
poder de sanção que pertence, por definição, apenas a
uma das partes. Esta distinção entre Dissuasão e
intimidação, fundada sobre o princípio do poder de
fato (Macht) e do poder de direito (Herrschaft),
permite sua aplicação a todas as diferentes formas de
conflito, considerando que a intimidação não é outra
coisa senão uma forma mais intensa de Dissuasão.
O último aspecto do fenômeno geral dissuasivo é o
do status. Visto que a fórmula dissuasória baseia-se
numa predefinição, assume um relevo notável na
avaliação dos contendores o dado representado pelas
expectativas que o passado mostrou como inerentes ao
papel de cada uma das partes. Em outros termos, na
maioria das vezes, os contendores não precisam
recorrer à formulação material da ameaça, já que o
adversário pode prever que o outro buscará dissuadi-lo
de sua intenção. Somente em casos no qual a crise
supere este primeiro estágio é que as ameaças
(recíprocas ou não) se manifestam.
O status dissuasivo, do qual se reveste uma das
partes, desenvolve a função latente de prevenir as
intenções alheias. Esta situação aparece bem mais
claramente na relação entre a lei e o cidadão, na qual o
status intimidatório da lei é codificado e dirigido
diretamente a impedir que esta seja violada, bastando
apenas sua presença para tornar conscientes as partes
do previsível sucesso do seu aparato coercitivorepressivo.
Em conclusão, resumindo o relevo político ligado à
análise do conceito de Dissuasão, podemos afirmar
que qualquer sistema de relação social, e em particular
o sistema político internacional e os sistemas políticos
internos, conhece entre suas normas de funcionamento
a técnica dissuasória, a qual tem o papel de introduzir
um princípio racionalizador e preventivo da violência
— nem por isso pacífico — nas relações conflituais.
BIBLIOGRAFIA. - R. ARON, Pace e guerra tra le
nazioni (1962), Edizioni di Comunità, Milano 1970; A.
BEAUFRE. Dissuasion et stratégie. Colin. Paris 1964;
L. BONANATE, La política della dissuasione.
Giappichelli. Torino 1971; P. GREEN, Deadlv logic.
The theory of nuclear deterrence. Ohio State
University Press. Columbus 1966; Beyond nuclear
deterrence, ao cuidado de J. J. HOLST e U. NERLICH,
Crane, Russak and Co., New York 1977; The future of
the International strategic system, ao cuidado de R.
RQSECRANCE, Chandler, San Francisco 1972; T C.
SCHELLING, La diplomaria della violenza (1966), Il
Mulino. Bologna 1968.
[LUIGI BINANATE]
367
Distensão.
Entende-se por Distensão o processo através do
qual as duas superpotências vencedoras da Segunda
Guerra Mundial, Estados Unidos e União Soviética,
foram atenuando suas atitudes de recíproca
desconfiança e hostilidade, próprias do período da
guerra fria, a fim de abrir caminho à aceitação de
normas comuns e tacitamente acordadas de
coexistência pacífica. A Distensão coloca-se,
portanto, historicamente, entre a guerra fria e o
período de coexistência pacífica, representando do
ponto de vista político, seu estágio intermédio.
A data de início da Distensão pode ser formalmente
fixada no dia 25 de dezembro de 1952, quando Stalin,
numa entrevista ao "New York Times" expressou
opinião, contrariamente em relação ao passado, de que
uma guerra entre os Estados Unidos e a União
Soviética não deveria ser considerada inevitável e
manifestou o propósito de colaborar para acabar com
a guerra da Coréia. O período no qual começou
concretamente a Distensão é, porém, o que vai da
morte de Stalin ao fim da guerra da Coréia, e daí por
diante.
Sinônimo e equivalente de Distensão é o degelo,
um termo que enfatiza o caráter particular da
passagem do relacionamento russo-americano, desde
a fase de frieza do período imediatamente sucessivo
ao fim da Segunda Guerra Mundial (período da guerra
fria),
até
a
fase
sucessiva
caracterizada
progressivamente pela diminuição da propaganda
reciprocamente hostil, pela limitação dos incidentes
diplomáticos, por uma maior e mais serena avaliação
das atitudes recíprocas, pela conscientização da
possibilidade de uma convivência melhor e,
finalmente, pela instauração de relações mais intensas.
As causas histórico-políticas da Distensão devem
ser buscadas na nova maneira de definir as linhas de
poder na Europa (quando se alcançou a estabilidade
da zona ocidental e da zona oriental), na conseqüente
transferência das ocasiões de tensão para outras áreas
geopolíticas, julgadas pelas duas superpotências como
menos perigosas para a própria segurança (sobretudo
no mundo das ex-colônias), na estabilização das
relações estratégico-militares entre USA e URSS, na
progressiva passagem da Europa do sistema
internacional principal (que determina a paz e a guerra
mundiais e projeta no exterior os próprios equilíbrios)
para o sistema internacional subordinado, no âmbito
de um sistema de equilíbrios mundiais. Isso explica,
além disso, por que é que a crise da Distensão, criada
a partir da segunda metade
368
DITADURA
dos anos 70 e sobretudo no início dos anos 80,
encontra as suas razões na ligação (linkage) que o
mundo ocidental estabeleceu, em face da corrida aos
armamentos e do acentuado dinamismo da URSS no
Terceiro Mundo, entre estabilidade e Distensão, isto é,
entre a manutenção das condições que determinaram o
seu surgimento e a modificação de algumas delas, tais
como o respeito pelos equilíbrios estratégico-militares
e por um nível aceitável de tensões no Terceiro
Mundo (teoria da indivisibilidade da Distensão).
[PIERO OSTELLINO]
Ditadura.
I. A DITADURA ROMANA E A CHAMADA "DITADURA
— A palavra Ditadura tem sua
origem na dictatura romana. O significado moderno
da palavra é, porém, completamente diferente da
instituição que o termo designava na Roma
republicana.
A Ditadura romana era um órgão extraordinário que
poderia ser ativado conforme processos e dentro de
limites constitucionalmente definidos, para fazer
frente a uma situação de emergência. O ditador era
nomeado por um ou por ambos os cônsules, em
conseqüência de uma proposta do Senado, ao qual
cabia julgar se a situação de perigo fazia realmente
necessário o recurso à Ditadura. O cônsul não podia
autonomear-se ditador, nem este último podia declarar
o estado de emergência. O fim para o qual se nomeava
um ditador era claramente definido e o ditador a ele
deveria ater-se. Geralmente, tratava-se da condução de
uma guerra (dictatura rei gerendae causa), ou da
solução de uma crise interna (dictatura seditionis
sedandae et rei gerendae causa). Os poderes do
ditador eram muito amplos: exercia o pleno comando
militar; os cônsules eram a ele subordinados; seus atos
não eram submetidos à intercessio dos tribunos;
gozava do jus edicendi e, durante o período no qual
exercia o cargo, seus decretos tinham o valor de lei; e,
finalmente, contra suas sentenças penais, o cidadão
não podia apelar.
Assim mesmo, não eram poderes ilimitados. O
ditador não podia revogar ou mudar a Constituição,
declarar a guerra, impor novos ônus fiscais aos
cidadãos romanos, assim como não tinha competência
na jurisdição civil. A Ditadura romana estava
circunscrita entre limites temporais muito rígidos. Não
podia durar mais de seis meses e ainda menos no caso
em que o magistrado, que tinha nomeado o ditador,
deixasse o cargo por
CONSTITUCIONAL".
qualquer razão, ou ainda quando o ditador tivesse
chegado ao fim da incumbência para a qual fora
nomeado. Esta rigorosa restrição temporal era o cunho
característico da instituição e tinha uma eficaz
repercussão na conduta do ditador, o qual sabia que
num breve prazo de tempo voltariam a vigorar todos
os limites e todos os controles constitucionais.
A instituição da Ditadura acima descrita é peculiar
da República romana, para a qual constituía quase uma
necessidade, considerando o grau muito marcante de
divisão e de limitação do poder que distinguia sua
fisionomia constitucional: pluralidade das assembléias,
multiplicidade das magistraturas, sua organização
como um colegiado (com direito de veto), sua breve
duração (ordinariamente um ano). Neste quadro,
pode-se afirmar que, para a República romana, a
Ditadura era a maneira de suspender temporariamente
a sua ordem constitucional a fim de preservar a
integridade e permanência.
A Ditadura desenvolveu esta função durante dois
ou três séculos, do V ao III a.C, o que permitiu à
República fazer frente, de maneira eficiente, às breves
guerras da primeira parte da sua história, assim como
às várias desordens internas provocadas pela luta de
classes. Mais tarde, quando as guerras se tornaram
mais longas e acirradas, a Ditadura começou a perder
sua eficácia.
No século III já estava em declínio, mesmo porque
tinha sofrido ulteriores restrições e era ativada cada
vez com mais freqüência, para obedecer a razões bem
diferentes da necessidade de superar uma grave crise.
Apareceu novamente de modo esporádico durante
as Guerras Púnicas e desapareceu definitivamente com
o findar do século III. Seu nome, porém, voltou a ser
empregado e explorado durante as lutas civis do
século I, na Ditadura de Sila (82 a.C.) e de César (48 a
46), mas ressurgiu apenas no nome. A velha
instituição republicana era uma recordação do passado;
e os Governos de Sila e de. César aproximam-se, na
realidade, do significado que a palavra Ditadura tem
adquirido no nosso tempo.
Segundo este uso, a que voltarei com mais detenção
em seguida, e que tende a reunir sob a etiqueta de
Ditadura, muitas vezes com intuito polêmico-prático,
todos os regimes antidemocráticos ou nãodemocráticos modernos, a Ditadura vem a ser algo
muito diverso da Ditadura romana. O ponto de
coincidência entre os dois fenômenos é a concentração
e o caráter absoluto do poder. Mas a Ditadura
moderna não é autorizada por regras constitucionais:
se instaura de fato ou, em todo o caso, subverte a
ordem política preexistente. A extensão do seu poder
não está
DITADURA
predeterminada pela Constituição: seu poder não sofre
limites jurídicos. E, embora algumas Ditaduras
modernas tendam ainda a se auto-apresentar como
"temporárias", sua duração não está antecipadamente
fixada: a sua permanência, como a de qualquer outro
regime político, depende das vicissitudes da história.
Em resumo, a Ditadura romana é um órgão
excepcional e temporário, a Ditadura moderna uma
forma de Governo normal e durável.
Aproximam-se da Ditadura romana, nas suas
funções precípuas, medidas excepcionais previstas e
promulgadas pelos muitos Estados constitucionais
modernos para superar um estado de emergência,
interno ou externo, que não pode ser enfrentado de
maneira adequada com instrumentos constitucionais
normais. Este tipo de instituição envolve, geralmente,
a concentração do poder num órgão constitucional do
Estado (freqüentemente um órgão executivo), a
extensão do poder além dos limites ordinários (por
exemplo a suspensão dos direitos de liberdade dos
cidadãos) e a emancipação do poder dos freios e dos
controles normais.
São estes os casos específicos da lei marcial e do
estado de sítio, destinados a superar uma crise
repentina e violenta e que comportam um acréscimo
extraordinário dos poderes próprios do executivo.
Também pode-se conferir ao executivo o poder de
legislar em estado de emergência, como o previsto no
Art. 48 da Constituição alemã de Weimar, ou os
atribuídos aos próprios Governos pelos Parlamentos
dos diversos países beligerantes durante a Primeira e a
Segunda Guerra Mundial. Para designar os casos
concretos citados ou outros semelhantes, criou-se a
expressão Governo de crise. Foi também proposto
associar estas instituições à Ditadura romana,
denominando-as conjuntamente com a etiqueta de
"Ditadura constitucional" (ou limitada), e contrapondo
a esta a "Ditadura inconstitucional" (ou ilimitada).
Esta distinção, porém, desvia-se da realidade sob
vários aspectos. Em primeiro lugar, porque a
semelhança entre um moderno Governo de crise e a
Ditadura romana não pode ser levada muito longe.
Ambos 05 tipos de instituição correspondem à
necessidade de fazer frente à situação de emergência
num regime de separação mais ou menos avançado do
poder, mas existe uma considerável diferença. A
Ditadura romana é um órgão extraordinário (e por isso
fala-se de um ditador e de uma Ditadura). Por
conseqüência, não somente o poder ditatorial, mas o
próprio órgão que o compõe e seu ocupante saem do
quadro político logo que se restabeleça a situação de
normalidade.
O moderno Governo de crise funda-se na atribuição
de poderes extraordinários aos órgãos
369
normais do Estado; por isso é muito mais difícil
desvencilhar a instauração, o exercício e o êxito de um
Governo de crise das perspectivas de luta pelo poder
das forças políticas militantes. Os efeitos desta
diferença não podem ser estabelecidos de maneira
geral, abstraindo-os dos contextos nos quais as
instituições operam.
Pelo que nos mostra a história, pode-se relevar que
a Ditadura romana viveu por alguns séculos sem pôr
em perigo ou alterar significativamente a ordem
constitucional. Na Europa e na América
contemporâneas, porém, os diversos tipos de Governo
de crise chegaram, muitas vezes, a provocar a
destruição da ordem institucional e contribuíram
seguidamente para alterar, de modo mais ou menos
permanente, a distribuição do poder entre os órgãos
constitucionais do Estado.
Em segundo lugar, a diferença entre "Ditadura
constitucional" e "Ditadura inconstitucional" desvia-se
de um outro ponto de vista que, para os nossos fins, é
ainda mais significativo. Os dois termos da distinção
não são homogêneos. Vale aqui, com maior razão, o
que já se disse à respeito da diversidade substancial
entre Ditadura moderna e Ditadura romana. A
Ditadura
moderna
(chamada
"Ditadura
inconstitucional") é uma forma de Governo mais ou
menos durável. A "Ditadura constitucional" designa
procedimentos excepcionais, que são simples
elementos secundários de uma forma de Governo (em
geral, a democracia liberal) que se caracteriza por
outros tipos de instituições inteiramente diferentes. A
primeira Ditadura, se referida a um significado
descritivo, tem um lugar na classificação dos sistemas
políticos; a segunda, na fenomenologia dos meios
extraordinários a que os regimes políticos recorrem
para superar situações de grave crise. Deste modo, a
"Ditadura constitucional" distingue-se da "Ditadura
inconstitucional", não somente pela diversa
denominação (constitucional e inconstitucional), mas
também, e sobretudo, porque o substantivo Ditadura
denota nos dois casos dois fenômenos diferentes. Nem
valeria objetar que uma e outra das instituições
compreendidas
no
conceito
de
"Ditadura
constitucional" foram, às vezes, utilizadas para
introduzir uma "Ditadura inconstitucional". O fato de
que possa produzir-se um nexo de sucessão temporal
ou mesmo genética entre um e outro fenômeno não é
argumento suficiente para afirmar que estes pertencem
à mesma classe.
II. DITADURA, DESPOTISMO, ABSOLUTISMO, TIRANIA,
AUTOCRACIA,
AUTORITARISMO.
— Distingui e
confrontei o uso romano e o uso moderno de
Ditadura. Aqui se poderia perguntar como é que foi
possível ocorrer uma mudança tão
370
DITADURA
substancial de significado. E provável que o elo de
ligação entre os dois diversos significados tenha de ser
historicamente buscado na noção de "Ditadura
revolucionária", tal como foi utilizada para designar o
Governo revolucionário instaurado pela Convenção
Nacional francesa, a 10 de outubro de 1793, até à
consecução da paz, bem como a concepção do Governo
revolucionário que, segundo as idéias de Babeuf e
Buonarroti, deveria, suceder à explosão revolucionária
e anteceder o nascimento da Sociedade dos Iguais.
Nesta espécie de Ditadura, que Maurice Hauriou
chamou convencional e Carl Schmitt, soberana, o
poder ditatorial não era autorizado pela Constituição,
nem constitucionalmente limitado. Não era constituído,
mas se impunha pelos fatos; a sua função não era
superar uma crise parcial do regime vigente: era a
função constituinte de fundar um novo regime sobre
as ruínas do precedente.
Na "Ditadura revolucionária", portanto, o poder
ditatorial não é apenas um poder concentrado e
absoluto, tal como ocorre tanto na Ditadura romana
como na moderna; ele, além disso, se instaura de fato e
não suporta limites preestabelecidos, como só acontece
na Ditadura moderna. Acrescente-se que a "Ditadura
revolucionária" prenuncia outra característica possível
da Ditadura moderna: o poder não estava
necessariamente nas mãos de um só homem (o
ditador), podia também estar nas mãos de um grupo
(uma convenção, uma assembléia, um partido
revolucionário). É este o caminho que seguirá Marx,
que chegará ao ponto de falar da Ditadura de uma
classe social; mas, assim, a noção de Ditadura perderá
seu significado político específico (ver a este respeito a
última seção deste artigo). O ponto em que a "Ditadura
revolucionária" parece ainda divergir da moderna e
aproximar-se mais da romana é seu caráter temporário,
sua limitação no tempo. Mas, em primeiro lugar, é de
notar que tal caráter temporário não está mais
garantido ab externo pela Constituição, mas assenta na
vontade mutável do próprio grupo revolucionário: neste
sentido, também há Ditaduras modernas que se
autoproclamam inicialmente como temporárias, para
depois permanecer de forma mais ou menos duradoura.
É de observar, em segundo lugar, que mesmo nas
Ditaduras modernas que não proclamam sua
temporariedade existe um traço peculiar que, de algum
modo, evoca um caráter temporário: a debilidade ou
precariedade das regras de sucessão no poder. Logo
tornarei a este assunto. O que distingue sobretudo, de
modo claro, a Ditadura moderna da Ditadura romana,
por um lado, e da "Ditadura revolucionária", por outro,
é a sua diferente conotação de valor. A Ditadura
romana possui uma conotação tradicionalmente
positiva, como um órgão capaz de defender a ordem
constituída em face de crises de emergência mais ou
menos graves; conotação positiva é também, pelo
menos no início, a da "Ditadura revolucionária", como
Governo ditatorial provisório que preparava o
caminho para a instauração de uma sociedade mais
justa (a Sociedade dos Iguais). A Ditadura moderna
tem, pelo contrário, uma conotação indubitavelmente
negativa.
Designa
a
classe
dos
regimes
antidemocráticos ou não-democráticos modernos.
Como tal se contrapõe, como o termo negativo ao
termo positivo de uma grande dicotomia, à democracia
moderna, por sua vez entendida como designação da
classe dos regimes liberal-democráticos.
Neste sentido, a democracia liberal, como termo
positivo da dicotomia, caracteriza-se pela divisão de
fato e de direito do poder e pela transmissão da
autoridade política de baixo para cima; como termo
negativo, a Ditadura se distingue, em contraposição,
por uma acentuada concentração do poder e pela
transmissão da autoridade política de cima para baixo.
É de notar, no entanto, que as características
antidemocráticas, apontadas podem ser encontradas
também em regimes políticos habitualmente designados
por nomes diversos do de Ditadura. Por isso, para
esclarecer ulteriormente o uso moderno de Ditadura,
parece indispensável uma análise das relações
existentes entre Ditadura e outros termos, usados para
denominar, total ou parcialmente, os regimes nãodemocráticos. Dentre eles, os mais relevantes são
despotismo, absolutismo, tirania,' autocracia e
autoritarismo.
De despotismo podemos falar em duas diferentes
acepções. No primeiro sentido, o denominado
despotismo oriental remonta ao pensamento grego
clássico e designa um regime político marcadamente
monocrático, que seria típico da Ásia e também da
África, mas que é substancialmente estranho à cultura
ocidental.
No livro terceiro da Política, Aristóteles compara o
Governo despótico ao que o patrão (despotes) exerce
sobre o escravo e o classifica entre as formas de
Governo monárquico, como um tipo de monarquia
própria de "muitos povos bárbaros", os quais têm, para
esta forma de Governo, uma predisposição natural.
Mais tarde, o despotismo oriental, de um lado, foi
atribuído, conforme Aristóteles, à índole dos povos
asiáticos, considerados incapazes de autogovernar-se e
inclinados à obediência, enquanto, da outra parte,
foram constantemente enfatizadas a arbitrariedade e
freqüentemente a brutalidade que distinguem sua
maneira de exercer o poder. Montesquieu, que
retomou, dentro desta perspectiva, o conceito de
despotismo, o definiu como um Governo no qual "um,
sozinho, sem leis nem freios, arrasta tudo e
DITADURA
todos ao sabor de sua vontade e de seus caprichos" e
identificou o seu "princípio", ou seja, a paixão que o
impulsiona, como medo, o qual "tem de abater todas
as coragens e apagar o mais fraco sentido de
ambição".
Tem sido observado também que este tipo de
regime caracteriza-se pela sacralização do déspota, que
aparece como um Deus ou como um descendente de
um Deus ou ainda como um sumo-sacerdote.
Na Europa, porém, foi adotado o segundo sentido
nos séculos XVII e XVIII, para designar também as
monarquias do Ocidente. Neste caso, despotismo
perde sua conotação derrogatória e indica qualquer
regime de monarquia absolutista. Deste ponto de
vista, o despotismo não é nem bom nem mau,
enquanto tal, mas se caracteriza conforme a maneira
pela qual o monarca exerce o poder.
Partindo das idéias de Francis Bacon, que no início
do século XVII propugnou um despotismo iluminado
para instaurar o Governo da ciência, o iluminismo
considerou o despotismo um fato positivo, desde que
este se deixasse guiar pela razão. Os enciclopedistas
falaram então de despotisme éclairé e os fisiocratas
falaram de despotisme légale (v. DESPOTISMO).
Na segunda acepção, despotismo é, praticamente,
sinônimo de absolutismo, palavra com a qual se
definem, principalmente, as monarquias absolutistas
que se instauraram na Europa, entre os séculos XVI e
XVIII, no contexto histórico da formação do Estado
moderno (v. ABSOLUTISMO). Na monarquia absoluta,
cada poder (legislativo, executivo, judiciário)
concentra-se formalmente nas mãos do soberano que
está livre de qualquer limitação jurídica, desvinculado
das leis (legibus solutus). Nenhuma ordem exterior,
civil ou eclesiástica, interna ou internacional, é
superior ao monarca absoluto, sobre o qual se
concentra a inteira responsabilidade do exercício do
comando (mesmo quando o rei pode dividir tal
exercício com uma equipe de colaboradores).
Por outro lado, o monarca absoluto não se identifica
com a figura do déspota oriental que a tradição nos
mostra. O estilo de comando dos monarcas absolutos
não é necessariamente brutal. Geralmente eles não
poderiam abandonar-se aos excessos de arbítrio e
crueldade próprios dos déspotas do Oriente, porque as
monarquias absolutas, mesmo quando não eram
limitadas pela lei positiva, encontravam um freio nas
concepções morais predominantes (as chamadas "lei
natural" e "lei divina") e, finalmente, encontravam sua
moderação nos obstáculos de fato, que derivavam de
uma estrutura da sociedade muito diferente da das
sociedades asiáticas.
371
O despotismo e o absolutismo são semelhantes à
Ditadura pela concentração e pelo caráter ilimitado do
poder, mas são substancialmente diferentes dela
porque, tanto o absolutismo como o despotismo, são
monarquias hereditárias e legítimas, enquanto a
Ditadura é uma monocracia (ou o Governo de um
pequeno grupo) não hereditária e ilegítima, ou dotada
de uma legitimidade precária.
Na sua conotação histórica, absolutismo e
despotismo ligam-se a uma sociedade de tipo
tradicional, na qual a participação política da grande
maioria da população é nula, sendo que a monarquia é
vista como a única forma possível de Governo, pois ela
tem suas raízes no passado e na origem ou no caráter
divino. Isto explica por que, com a Revolução
Francesa, a imposição dos princípios republicanos e a
decadência dos monárquicos, a noção de despotismo
iluminado, defendida pela inteligência iluminística,
desapareceu completamente do horizonte cultural e
político da época.
Sai da cena o despotismo e entra em cena a
Ditadura. Esta, ao contrário do absolutismo e do
despotismo, está ligada a uma sociedade em vias de
transformação, com uma participação política ampliada
ou incipiente, na qual foi imposto, ou já se encontra
em ascensão, o princípio da soberania popular. Neste
contexto, o regime ditatorial não pode basear-se na
tradição ou na aceitação passiva de grande parte da
população.
A Ditadura apresenta, preferivelmente, uma ruptura
da tradição. Instala-se utilizando a mobilização política
de uma grande parte da sociedade, ao mesmo tempo
que subjuga com a violência uma outra parte. E não
pode garantir sua continuidade, de modo ordenado e
regular, nem com o processo democrático, de que é a
negação, nem com o princípio hereditário, que
contrasta com as condições políticas objetivas e com
sua pretensão de representar os interesses do povo.
Daí o caráter precário das regras de sucessão no
poder.
Como substancialmente análoga à Ditadura moderna
poderíamos citar a tirania grega. É bastante conhecida
a extraordinária pertinência, em relação à Ditadura
moderna, das observações de Platão e de Aristóteles
sobre a tirania. Tal como as Ditaduras modernas, as
tiranias gregas nasciam, geralmente, das crises e da
desagregação de uma democracia ou de um regime
político tradicional, no qual surgia a ampliação do
interesse e da participação política.
Tal como o ditador moderno, o tirano não era um
monarca legítimo, mas sim o chefe de uma facção
política, que impunha com a força o próprio poder a
todos os outros partidos. Da mesma forma que os
ditadores modernos, os tiranos
372
DITADURA
exerciam um comando arbitrário e ilimitado,
recorrendo amplamente a instrumentos coercitivos.
Com o tempo, todavia, o conceito de tirania
transformou-se, afastando-se em parte do seu sentido
originário e dando maior ênfase à maneira cada vez
mais exclusiva de exercer o poder.
Desenvolvendo um tema já presente em Aristóteles,
São Tomás distinguiu entre o tirano, que é tal porque
não tem título (absque titulo), o que é tirano pelo
modo como exerce o comando (quoad exercitium) e,
finalmente, o que o é pelas duas razões. Neste sentido,
também um monarca hereditário pode ser tirano, caso
exerça o poder de modo arbitrário e violento.
O significado da palavra modificou-se ulteriormente
nesta direção e, na linguagem política contemporânea,
o uso mais comum da definição se apóia e concentra
no modo do exercício do poder, deixando de
considerar a presença ou ausência de um título
legítimo. É claro que, na medida em que isto
acontece, cada vez mais diminui a analogia do
significado entre Ditadura e tirania.
Diferentemente dos outros termos examinados
anteriormente, autocracia não tem uma precisa
conotação histórica. Este termo não foi criado para
classificar um tipo particular de sistema político
concreto (mesmo quando autocrata era chamado
especialmente o czar da Rússia). Este é um termo
abstrato que se usa com dois significados principais:
um particular e outro geral. No significado particular e
mais pleno da palavra, autocracia denota um grau
máximo de absolutismo na direção da personalização
do poder.
Uma autocracia é sempre um Governo absoluto, no
sentido de que detém um poder ilimitado sobre os
súditos. Além disso, a autocracia permite que o chefe
do Governo seja de fato independente, não somente
dos seus súditos, mas também de outros governantes
que lhe estejam rigorosamente submetidos. O chefe de
um Governo absoluto é um autocrata sempre que suas
decisões não possam ser eficazmente freadas pelas
forças intra-governativas. Sob este aspecto, o monarca
absoluto pode ser um autocrata, mas pode também não
ser, quando divide o poder com alguns colaboradores
que tenham condições de limitar sua vontade.
As Ditaduras são, por vezes, regimes autocráticos,
que se concentram na figura de um chefe e podem
levar muito adiante a personalização do poder.
Existem, porém, Ditaduras não-autocráticas, nas quais
o poder está nas mãos de um pequeno grupo de
chefes, que dependem reciprocamente um do outro.
Em seu significado geral, autocracia tem sido
usada por alguns teóricos da política e do direito,
nomeadamente por Hans Kelsen, Ferdinand
A. Hermens e Carl J.. Friedrich, como o termo mais
apropriado para designar toda classe dos regimes
antidemocráticos ou não-democráticos. Nesta acepção
geral, porém, a palavra não obteve sucesso, nem na
linguagem ordinária, nem na linguagem técnica da
ciência política. Em todo caso, mesmo que tivesse
vingado, não poderia substituir Ditadura em seu
sentido moderno, já que a classe dos regimes políticos
indicados por autocracia seria, de qualquer modo,
mais vasta que aquela a que se refere a palavra
Ditadura. Segundo a acepção geral apontada, deveriam,
com efeito, ser decerto compreendidas entre as
autocracias todas as monarquias e despotismos
hereditários do passado, que, ao invés, como
demonstrei antes, hão de ser excluídos do campo do
significado de Ditadura.
É análoga, pelo menos em parte, a consideração
que se deve fazer a respeito do "autoritarismo", um
termo que às vezes também tem sido usado para
designar o conjunto global dos regimes contrapostos
aos regimes democráticos. Neste sentido, o denotatum
de autoritarismo é mais amplo que o do significado
moderno de Ditadura, uma vez que inclui também,
como a referida acepção geral de autocracia, as
monarquias e despotismos hereditários das sociedades
tradicionais. Por outro lado, quando usado com
referência exclusiva aos sistemas políticos modernos, o
significado de autoritarismo tende a restringir-se um
pouco, tornando-se indubitavelmente menos abrangente
que o de Ditadura. No uso mais comum e eficaz, falase de autoritarismo, contrapondo-o a totalitarismo,
para designar apenas uma subclasse dos regimes nãodemocráticos modernos: os que possuem um grau
relativamente moderado de mobilização política das
massas e de penetração política da sociedade (v.
AUTORITARISMO).
III. CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA DITADURA. —
Do que afirmei até agora se depreende um significado
bastante preciso da Ditadura moderna. Com a palavra
Ditadura, tende-se a designar toda classe dos regimes
não-democráticos especificamente modernos, isto é,
dos regimes não-democráticos existentes nos países
modernos ou em vias de modernização (com que se
podem assemelhar também as tiranias gregas dos
séculos VII e VI a.C. e alguns outros Governos
surgidos na história do Ocidente). Temos, no entanto,
de reconhecer que este significado de Ditadura,
embora possua uma indubitável dimensão descritiva,
tem sido freqüentemente usado com fins práticoideológicos, como alvo de valor negativo a contrapor
polemicamente à democracia. É também por essa
razão que, nos últimos anos, o uso de Ditadura em
sentido moderno, corrente nos anos
DITADURA
50 e 60, tende a tornar-se mais raro; e não falta quem
queira restringir a palavra ao significado de órgão
excepcional e temporário, próprio da sua origem
romana.
Não é esta certamente a ocasião de adentrarmos
numa questão que corre o risco de se transformar em
mera questão de palavras. Bastará, antes de ir mais
além, deixar firmes estes dois pontos: 1) até hoje
ainda não se encontrou um termo mais adequado que
o de Ditadura para designar, em seu conjunto, os
regimes não-democráticos modernos; 2) em todo caso,
o que vou dizer daqui para a frente sobre as
características e tipologias das Ditaduras há de
entender-se como uma série de proposições
respeitantes, sobretudo, indubitavelmente, aos regimes
não-democráticos modernos.
Tendo isso em vista, começarei por examinar as
características fundamentais da Ditadura moderna,
evidenciadas na discussão da relação da Ditadura com
o despotismo, o absolutismo, a tirania, a autocracia e o
autoritarismo. São três, a meu parecer, essas
características: a concentração e o caráter ilimitado do
poder; as condições políticas ambientais, constituídas
pela entrada de largos estratos da população na
política e pelo princípio da soberania popular; a
precariedade das regras de sucessão no poder.
Com referência à concentração do poder, limitamonos a lembrar que esta pode referir-se a uma única
pessoa ou a um pequeno grupo de pessoas. Sobre as
diferentes propriedades desses dois tipos de Ditadura
voltaremos a falar. Vamos nos deter brevemente no
caráter absoluto do poder ditatorial, pessoal ou
oligárquico. O Governo ditatorial não é refreado pela
lei, coloca-se acima dela e transforma em lei a própria
vontade. Mesmo quando são mantidas ou introduzidas
normas que resguardam nominalmente os direitos de
liberdade, ou limitam de outra forma o poder do
Governo, estas normas jurídicas são apenas um véu
exterior, com escassa ou nenhuma eficácia real, que o
Governo ditatorial pode ignorar com discrição mais ou
menos absoluta, recorrendo a outras leis que
contradizem as primeiras ou que criam exceções,
utilizando poderosos organismos políticos subtraídos
ao direito comum ou invocando diretamente pretensos
princípios superiores que guiam a ação do Governo e
que prevalecem sobre qualquer lei. Este absolutismo
do poder ditatorial torna caracteristicamente
imprevisível e irregular a conduta do ditador ou da
elite ditatorial.
Nas Ditaduras mais moderadas, podem aparecer
alguns limites concretos postos por grupos dirigentes
subalternos que mantenham uma certa autonomia.
Estes limites conferem algum grau de
373
regularidade e de previsibilidade à conduta do
Governo. Mesmo neste caso não existe nenhuma
garantia legal ou institucional que permita dar
validade permanente a esses limites. Em relação aos
instrumentos de controle coercitivos que empregam e
ao grau de sua penetração e arregimentação da
sociedade, os regimes ditatoriais diferem notavelmente
um do outro. A respeito deste tema vamos nos remeter
para o exposto mais adiante, a propósito da análise
das tipologias das Ditaduras.
Passemos agora ao segundo ponto: o fundo social e
político da Ditadura. O ambiente mais típico dos
regimes ditatoriais é o de uma sociedade abalada por
uma profunda transformação econômica e social, a qual
ativa o interesse e a participação política de faixas cada
vez maiores da população e faz emergir o princípio da
soberania popular. Não foi por acaso que os contextos
históricos, nos quais o Governo ditatorial teve maior
difusão, foram o das cidades gregas dos séculos VIIVI a.C. e o da época contemporânea, a partir da
Revolução Francesa. O primeiro período marca a
passagem nas cidades gregas, da estrutura tradicional
da sociedade com base agrícola e oligárquica, a uma
estrutura nova com base mercantil, e artesanal,
igualitária e democrática.
O segundo período é o do processo conseqüente à
industrialização, que destrói a velha sociedade agrícola
e aristocrática, amplia as bases de mobilização social e
política e faz ver imperiosamente no povo o
fundamento principal da justificação do Governo
(mesmo se o povo vier a transformar-se em
proletariado, nação ou raça). Neste quadro e com
referência ao mundo contemporâneo, a Ditadura pode
surgir, em primeiro lugar, numa sociedade com um alto
grau de modernização econômica e social e de intensa
mobilização política. Esta é então o resultado de uma
grave crise do regime democrático, deteriorado por
perturbações externas ou internas e suportando
movimentos anárquicos das divisões inconciliáveis
entre os diversos partidos políticos. Conforme o
ambiente social no qual ela se instaura, esta Ditadura é
durável somente quando adota uma política de
mobilização permanente da população.
Em segundo lugar, a Ditadura pode surgir numa
sociedade com um grau moderado ou baixo de
modernização econômico-social e de mobilização
política. Neste caso, a Ditadura pode agir como
assistente do nascimento da democracia liberal ou pode
refrear a modernização, para salvaguardar o que ainda
sobra da ordem tradicional, atuando através de uma
mobilização intensa somente na fase inicial ou nos
períodos de crise,
374
DITADURA
e limitando-a radicalmente quando já consolidada. Pode
ainda acentuar coercitivamente o processo de
industrialização, promovendo uma mobilização social e
política permanente. Finalmente, a Ditadura pode
surgir também numa sociedade não atingida pela
modernização, mas na qual os valores e os imperativos
do desenvolvimento econômico, social e político, que
se irradiam dos centros-guias da história mundial,
impelem uma pequena elite a impor do alto a
industrialização e o desenvolvimento. Neste caso, a
Ditadura procura introduzir uma intensa e durável
mobilização, apesar de defrontar-se, seguidamente,
com limites muito persistentes na estrutura da
sociedade tradicional.
Terceiro ponto: o problema da legitimação do poder
e, em particular, das regras da sucessão. Vista deste
ângulo, a Ditadura é caracterizada por uma contradição
fundamental, visto que concentra o poder e transmite
rigidamente a autoridade política do alto para baixo,
numa situação na qual prevalece ou está se afirmando
o princípio da soberania popular, na qual a Ditadura
deve, de alguma maneira, apoiar-se para alimentar sua
permanência no poder. As Ditaduras tendem sempre a
apresentar-se como expressão legítima dos interesses e
das necessidades do povo; daí o elemento cesarista que
caracteriza freqüentemente todas as Ditaduras
personalistas. Partem também deste princípio todos os
artifícios que as Ditaduras adotam para mostrar que
detêm a anuência do povo: desde os plebiscitos às
grandes reuniões de massa em contato direto com o
chefe e com seus representantes, até chegar à
imposição capilar e coercitiva da aceitação
entusiástica do regime por toda a população.
Assistimos então a uma espécie de democracia
subvertida, onde o povo é forçado a manifestar uma
completa adesão à orientação política do ditador, a fim
de que este possa proclamar que sua ação apóia-se na
vontade popular. Todas estas técnicas, porém, não
conferem à Ditadura a legitimidade democrática,
porque não podem eliminar o fato crucial de que a
autoridade política é transmitida do alto para baixo, e
não vice-versa. Mesmo quando prescindimos de certas
Ditaduras de pura exploração, consideradas
radicalmente ilegítimas, a legitimação popular dos
Governos ditatoriais parece sempre incerta e ambígua.
É evidente a característica fraqueza da Ditadura frente
ao problema da sucessão, quando, como afirma
Giovanni Sartori, "um absolutismo republicano não
pode — enquanto absolutismo — 'eleger' o novo
ditador, mas não pode tampouco 'herdar' por causa do
princípio republicano".
Mais detalhadamente podemos dizer que a
contradição existente entre o ambiente que exige a
legitimidade popular e a estrutura do poder ditatorial
que a nega impõe que sua invocação seja mediada por
um fator de ligação. Este fator intermediário pode ser o
próprio ditador que, com seus dotes extraordinários, é
considerado capaz de representar diretamente a
vontade do povo (legitimidade de tipo carismático)
e/ou um partido político que se autoproclame e se faça
aceitar, pelo menos por uma parte da sociedade, como
vanguarda ou guia do povo (legitimidade fundada na
ideologia de partido).
Mas o primeiro tipo de legitimidade é
essencialmente pessoal e temporário, porque quando
falta o chefe carismático não existe nenhuma lei
regular que possa transmitir a outros suas qualidades
excepcionais. Isto explica as graves crises de sucessão
que se desencadeiam em tantas Ditaduras, com lutas
internas entre os membros da elite dominante que
ambicionam ocupar o lugar do velho ditador, e isso
leva, muitas vezes, até à queda do próprio regime
ditatorial.
O segundo tipo de legitimidade que se apóia num
partido confere uma estabilidade muito maior à
Ditadura, porque a vanguarda e o guia do povo é
formalmente o partido e o partido permanece, mesmo
caso venha a faltar fisicamente o ditador. Todavia, até
esta forma de legitimidade não tem condições de dar
vida a um processo ordenado e reconhecido de
sucessão no poder. O partido torna-se base exclusiva
do recrutamento do novo chefe ou dos novos chefes,
mas a forma de sua seleção não pode. ser
regulamentada de maneira aceitável, porque a função
suprema de guia ou de vanguarda se autoproclama e se
auto-impõe e não vigora outro sistema para reconhecer
o homem ou os homens idôneos para desenvolvê-la,
com exceção do sucesso e da prevalência do mero
fato. Assim sendo, o regime ditatorial torna-se mais
estável porque o partido lhe fornece uma couraça de
defesa em relação ao exterior. Mostra-se, porém,
descontínuo e irregular quando se apresenta o processo
de sucessão de um a outro ditador, ou de um a outro
grupo ditatorial.
IV. TIPOLOGIAS. — Já têm sido propostas diversas
classificações de Ditadura com base em vários
critérios. As mais significativas apóiam-se na natureza
do poder, no objetivo perseguido, nos caracteres da
elite dominante, nas propriedades da ideologia e na
base social.
Na natureza do poder, isto é, nos instrumentos de
controle adotados pelas diversas Ditaduras e
correlativamente no grau de sua penetração no tecido
social se apóia a tipologia mais rica de conteúdo e
geralmente mais utilizada. Trata-se da dicotomia de
"Ditaduras autoritárias" e "Ditaduras totalitárias".
Conforme a proposta de Franz
DITADURA
Neumann, trata-se da tripartição de Ditaduras
"simples", "cesaristas" e "totalitárias". A "Ditadura
autoritária" (ou "simples") baseia-se nos meios
tradicionais do poder coercitivo (exército, polícia,
burocracia, magistratura), possuindo, por isso, escassa
capacidade de propaganda e penetração direta nas
instituições e nos grupos sociais, conseguindo apenas
reprimir a oposição aberta e contentando-se com uma
massa apolítica e com uma classe dirigente disposta a
colaborar.
Temos os exemplos da Ditadura de Franco na
Espanha, a de Salazar em Portugal e a dos coronéis na
Grécia (v. AUTORITARISMO).
A "Ditadura totalitária" emprega, além dos meios
coercitivos tradicionais, o instrumento peculiar do
partido único de massa, tendo assim condições de
controlar completamente a educação e os meios de
comunicação e também as instituições econômicas.
Além disso, pode exercer uma pressão propagandística
permanente e penetrar em cada formação social, e até
na vida familiar dos cidadãos, suprimindo qualquer
oposição e até as críticas mais leves, através de
especiais aparelhos políticos, de polícia e de terror,
impondo assim a aceitação entusiástica do regime a
toda população.
Os exemplos clássicos são os da Alemanha nazista e
os da Rússia do período stalinista (v. TOTALITARISMO,
onde é discutido também o espinhoso problema da
extensão do conceito). Entre estes dois tipos de
Ditadura, Neumann coloca as "Ditaduras cesaristas"
que são, geralmente, Ditaduras pessoais, caracterizadas
pelo fato do ditador ser ou sentir-se obrigado a formar
um apoio popular para conquistar ou exercer o poder,
ou mesmo para ambas as coisas. O elemento cesarista,
que comporta um fascínio exercido pelo chefe sobre a
massa, evidenciando assim um claro componente
carismático, geralmente falta nas "ditaduras simples",
mas está sempre presente nas "ditaduras totalitárias".
As "Ditaduras cesaristas" se distinguem das
"totalitárias" porque não possuem um partido único de
massa, nem outros instrumentos de controle e
penetração total da sociedade. São exemplos de
"ditaduras cesaristas" não-totalitárias, segundo
Neumann, as de Pisístrato, de Júlio César, de Cola di
Rienzo, de Cromwell e de Napoleão.
Em relação ao fim, distingue-se entre "Ditaduras
revolucionárias" e "Ditaduras conservadoras" ou "de
ordem". As "Ditaduras revolucionárias" visam abater
ou minar, de forma radical, a velha ordem políticosocial e introduzir uma ordem nova ou renovada. As
"ditaduras conservadoras" têm como finalidade
defender o status quo dos perigos de uma mudança.
Por vezes se acrescenta, ainda
375
a figura das "Ditaduras reacionárias", que dirigem
seus objetivos para dar novamente vida a valores e
formações sociais do passado, que se encontram em
via de extinção.
Esta tipologia não é de fácil aplicação, seja porque
os propósitos proclamados publicamente podem
corresponder somente em parte às metas efetivas de
uma Ditadura, seja porque uma mesma Ditadura pode
apresentar — conjuntamente — tanto finalidades
progressistas, quanto finalidades de tipo conservador
ou reacionário.
A segunda dificuldade pode ser superada, dentro de
certos limites, introduzindo a ulterior categoria das
"ditaduras mistas" (ou "termidorianas") que se
caracterizam
pelo
equilíbrio
dos
objetivos
revolucionários e conservadores e que tendem a se
instaurar depois de uma revolução brutal e
demasiadamente avançada com relação à formação da
classe dirigente (típica, neste sentido, é a Ditadura de
Napoleão). Também a primeira dificuldade pode, em
parte, ser superada se olharmos o real funcionamento
dos regimes ditatoriais, as castas e as várias classes
sociais que as apóiam. Neste último sentido, Neumann
afirma que as Ditaduras podem ser a expressão, ou de
classes destinadas a desaparecer e que, portanto,
procuram subverter a situação político-social vigente
para assenhorar-se da velha superioridade (exemplo do
nazismo) e que podemos chamar de "Ditaduras
reacionárias", ou de classes em declínio, que buscam
manter a todo custo, suas posições (exemplo, a
Ditadura de Franco). Estas últimas podem ser
chamadas de "Ditaduras conservadoras". Temos
também as classes em ascensão, não reconhecidas
politicamente, mas que buscam impor seus próprios
interesses. Estas podem ser chamadas "Ditaduras
revolucionárias".
Neumann afirma também que as "Ditaduras
revolucionárias" têm vida muito breve, quando as
classes em ascensão possuem um alto grau de
amadurecimento político (exemplo, a Ditadura de
Cromwell ou a de Robespierre), ou então se
transformam em permanentes, quando as classes em
ascensão possuem um grau muito baixo de
amadurecimento político (exemplo, a Ditadura de
Lenin).
Segundo Duverger, que adota uma dicotomia de
"Ditaduras
revolucionárias"
e
"Ditaduras
reacionárias", a maior parte das Ditaduras (tiranias)
gregas dos séculos VII e VI foram de tipo
"revolucionário", enquanto, tanto na Roma do século I
a.C, quanto na história do século XX, nos defrontamos
com uma concatenação dialética de "Ditaduras
revolucionárias" e "reacionárias". Sempre com
referência às suas metas finais, podemos falar em
"Ditaduras pedagógicas", que têm como finalidade
criar as condições sócio-políticas
376
DITADURA
para a instauração da democracia (parece que foi
assim a Ditadura de Pisístrato).
Temos também as "Ditaduras de desenvolvimento",
bastante parecidas com as "Ditaduras pedagógicas", se
tomarmos como protótico a Ditadura de Ataturk, na
Turquia, principalmente dirigida a preparar uma
democracia política, ou então consideravelmente
diferentes, se por desenvolvimento entendermos
precipuamente o desenvolvimento econômico. Neste
último sentido, as "Ditaduras de desenvolvimento" se
justificam, geralmente, com base na necessidade que
devem enfrentar as elites modernizantes de muitos
países subdesenvolvidos de construir, de maneira
coercitiva, as premissas econômicas e políticas do
desenvolvimento, mesmo diante de uma situação
evidentemente hostil, seja pelas resistências de velhas
elites feudais e tradicionais, seja pelo atraso da cultura
política das massas.
As figuras das "Ditaduras pedagógicas" e "de
desenvolvimento" são, sem dúvida, sugestivas, mas
trazem graves problemas quando de sua aplicação
prática, pois sua natureza as impede de ser
individualizadas, como as "Ditaduras revolucionárias"
e "conservadoras", segundo os critérios usados para as
castas e classes sociais que as sustentam.
Com referência aos caracteres da elite dominante,
os critérios de classificação mais relevantes são o tipo
de origem ou de recrutamento do pessoal político de
cúpula e a distribuição interna do poder. Com base no
primeiro critério, distingue-se entre "Ditaduras
militares" (especialmente típicas do continente latinoamericano, mas, atualmente, cada vez mais difundidas
também noutros lugares) e "Ditaduras políticas",
conforme o pessoal de cúpula provenha ou seja
recrutado nas fileiras do exército, ou ainda pertença a
uma facção da classe política, geralmente um partido
político que se transforma em partido único após a
conquista do poder.
Com referência aos regimes ditatoriais já consolidados
e que tenham chegado à segunda geração, fala-se
também de "Ditaduras burocráticas" ou "de aparelho",
quando o recrutamento da elite se processa através da
cooptação dos elementos no interior de uma
organização já burocratizada.
Com base nesse critério, pode-se distinguir entre
"Ditaduras pessoais" e "Ditaduras oligárquicas". Nas
"Ditaduras pessoais", todo poder concentra-se nas
mãos do ditador. Seus mais chegados colaboradores
prestam-lhe uma obediência absoluta, porque têm uma
fé cega no que acreditam ser seus dotes extraordinários
e carismáticos; obedecem-lhe e/ou porque o temem,
pois o ditador alimenta sistematicamente suas
suspeitas e seu terror,
acabando por colocar uns contra os outros, recorrendo
às mais duras sanções, e/ou porque usufruem grandes
vantagens materiais e de prestígio em virtude de seus
cargos ou da vizinhança com a fonte do poder.
A personalização do poder é, às vezes, tão
acentuada que os próprios traços psicológicos do
ditador se tornam um componente significativo do
funcionamento do regime. Uma conseqüência
freqüente disto é a incapacidade do sistema de
perceber e elaborar convenientemente as retroações e,
em geral, as mensagens provenientes do ambiente.
A constante preocupação dos colaboradores em
conservar os favores do ditador ou em evitar a sua
cólera e os efeitos desta tende a distorcer o fluxo das
informações e das interpretações dos fatos nas direções
mais favoráveis para eles, e que pareçam gratificantes
conforme as preferências e expectativas do chefe.
Como conseqüência, o ditador paira sempre numa
característica atmosfera de irrealidade. Nas "Ditaduras
oligárquicas", que podem ser regimes relativamente
permanentes (como a Ditadura soviética na sua fase
pós-stalinista), ou formas de transição entre uma e
outra "Ditadura pessoal", o poder é então
compartilhado pelo restrito número de pessoas que
compõe o organismo ou o grupo de cúpula do sistema
(junta, comitê, diretório, tróica, etc). Neste caso, a
distribuição do poder cria uma dialética de controle e
limitação recíproca entre os chefes, que tira do regime
seu caráter de autocracia e, às vezes, tende também a
mitigar — mesmo sem prejudicá-lo em sua substância
— o seu caráter absoluto.
Para aumentar o próprio poder ou para não o ver
diminuir, cada chefe pode ser induzido a juntar-se
com esta ou aquela facção da classe dirigente
subordinada, transformando-se, dentro de certos
limites, no seu representante. Quanto mais esse
fenômeno se manifesta, tanto mais vai aparecendo uma
certa corrente, mesmo que limitada, de pressões e
limitações, que são exercidas de fora sobre o Governo
ditatorial.
Falaremos agora do critério classificatório que diz
respeito à propriedade da ideologia. Uma primeira
forma de distinguir as Ditaduras sob este aspecto é a
de considerar o grau de sua elaboração ideológica,
conforme uma gama contínua, que vai de um grau
mínimo a um grau máximo de elaboração. No limite
inferior, podemos colocar as "Ditaduras simples",
caracterizadas por uma distância máxima entre regime
e população, onde a elite dominante se mantém unida
principalmente pelos interesses de exploração. Como
exemplo, temos certas Ditaduras latino-americanas de
caudilhos do século XIX e também do século XX,
DITADURA
tipicamente sem mitos. No limite superior,
encontramos as "Ditaduras totalitárias", nas quais o
esforço de mobilização da população e de seus
recursos é levado até o paroxismo, justificado e
guiado pela ideologia, onde cada aspecto da vida e da
atividade social obedece apenas aos imperativos
políticos fundamentais. Na faixa intermédia e numa
sucessão de crescente elaboração ideológica, podemos
colocar as "Ditaduras autoritário-conservadoras", as
"cesaristas" e as "autoritário-modernizantes". Em
geral, as "Ditaduras revolucionárias apresentam um
grau de elaboração ideológica maior em relação às
"conservadoras". As "Ditaduras militares" mostram um
grau menor em relação às "políticas".
Estudando apenas os sistemas ditatoriais
monopartidários, nos quais a ideologia é quase sempre
a base de sua legitimidade, adquire relevo uma
tipologia proposta por Clement H. Moore, fundada
numa análise bem mais articulada dos caracteres da
ideologia. Este autor adota dois parâmetros: a
finalidade oficial da ideologia, que distingue entre
transformação total e transformação parcial da
sociedade, e a função da ideologia, distinguindo entre
função "instrumental", isto é, prática de um
persistente guia de ação (que torna a ideologia
acessível para a crítica racional), e a função
"expressiva", isto é, sem efeitos diretos para a ação,
mas que expressa um sentido de solidariedade e afirma
os sentimentos comuns dos membros do partido (o que
torna a ideologia inacessível para a crítica racional).
Combinando os dois parâmetros entre si, Moore
obtém quatro tipos de ideologia: as ideologias
"totalitárias" que são instrumentais e visam uma
transformação total da sociedade; as ideologias
"tutelares", instrumentais, que visam apenas uma
transformação parcial; as "quiliásticas", expressivas e
visando uma transformação total da sociedade; e,
finalmente, as "administrativas", expressivas, tendo
como finalidade uma transformação parcial. Destes
quatro tipos de ideologia, os três primeiros são
característicos dos regimes ditatoriais. Podemos,
portanto, distinguir entre "Ditaduras monopartidárias
de ideologia totalitária", que adotam um grau máximo
de dinamismo transformador, apesar de sua clássica
instabilidade, que impõe o recurso ao expurgo e ao
terror (exemplo: a Rússia stalinista, a China maoísta, a
Alemanha nazista), e as "monopartidárias de ideologia
tutelar", que alimentam um dinamismo transformador
mais limitado, mais moderado e muito mais flexível
com respeito ao dos outros sistemas totalitários (por
exemplo, a Tunísia, a Iugoslávia e a Turquia de
Ataturk).
Temos também as "Ditaduras monopartidárias de
ideologia quiliástica", que são caracterizadas
377
por um dinamismo transformador bastante escasso,
tendendo a depender, ao menos parcialmente de forças
sociais e econômicas externas e a fazer diminuir ao
longo do tempo, a importância do partido (exemplo: a
Itália fascista, o Gana de Nkrumah, Cuba e a Argélia
de Ben Bella).
Finalmente, com referência à base social das
Ditaduras, Maurice Duverger distingue entre
"Ditaduras sociológicas", que nascem de uma crise
estrutural da sociedade, juntamente com uma crise de
legitimidade do poder político, e correspondem às
necessidades de uma grande maioria da população, e
"Ditaduras técnicas", que têm origem numa crise
apenas conjuntural, juntamente com um trauma do
sentimento público, que aparentemente não prejudica
sua legitimidade, e corresponde apenas às
necessidades dos poucos que são seus protagonistas.
As "Ditaduras sociológicas" são endógenas, no
sentido de que em sua base existe uma situação que
envolve toda a sociedade, enquanto as "técnicas" são
exógenas, no sentido de que em sua base estão fatores
externos ou fatores internos, porém isolados da
sociedade em seu todo.
Esta
tipologia
foi
severamente
criticada,
especialmente por Sartori, seja pela terminologia que
adota, seja pela substância da distinção. Do ponto de
vista terminológico, a escolha de Duverger é deveras
infeliz. O objeto sociológico não indica uma qualidade
específica de um fenômeno social, mas sim uma das
maneiras de estudá-lo. Neste sentido, todas as
Ditaduras são sociológicas. O adjetivo técnico não
expressa, absolutamente, a propriedade parasitária da
Ditadura que o termo deveria indicar. Do ponto de
vista substancial, a distinção, fundada como é no
critério fugidio da correspondência ou não
correspondência entre as Ditaduras e as necessidades
da população, parece bastante frágil e inspirada mais
numa escolha de valor do que num acerto de fato.
Podemos ainda acrescentar que os exemplos de
"Ditaduras técnicas", apresentados por Duverger, são
notavelmente heterogêneos e não podem sequer ser
comparados à estrutura do clássico regime ditatorial
(as "Ditaduras pretorianas" da época romana, a
ocupação militar ou o domínio colonial estrangeiro, as
"máquinas" políticas dominantes em algumas cidades
norte-americanas entre os séculos XIX e XX).
A tipologia de Duverger, todavia, tem ao menos o
mérito de indicar um setor de pesquisa muito
promissor e que até hoje foi escassamente sondado, o
que focaliza a base social das Ditaduras. Pensamos que
uma pesquisa precisa e sistemática da natureza e da
configuração da classe dirigente e da classe dirigida e
do relacionamento entre o Governo, classe dirigente e
classe dirigida,
378
DITADURA
que distinguem as várias Ditaduras, possa ser
realmente preciosa, não somente para construção de
uma tipologia pertinente, mas também pelo
esclarecimento de diversos pontos até hoje ainda
obscuros e incertos da teoria geral dos regimes nãodemocráticos modernos.
Barrington Moore Jr. já demonstrou a fertilidade
desta aproximação, mesmo numa dimensão histórica
muito geral, estudando as origens sociais da
democracia, das Ditaduras fascistas e comunistas.
V. A DITADURA DO PROLETARIADO. — Em
Conexão com a base social dos regimes políticos,
temos a noção marxista e leninista de "Ditadura do
proletariado". Tendo seu lugar numa concepção que
privilegia, de modo radical, o aspecto econômicosocial, tal noção termina por designar alguma coisa que
não é um estado particular, ou seja, uma forma de
regimento político, mas a relação implícita de
hegemonia de uma classe social (o proletariado) sobre
uma outra (a burguesia). Neste sentido, o significado
de Ditadura, que é próprio da expressão "Ditadura do
proletariado", torna-se secundário e anômalo em
relação àquele que foi tratado até agora. Esse
significado tem uma colocação legítima na história das
doutrinas políticas, onde faz parte de uma teoria
particular e de uma particular justificação do poder.
Assim mesmo, não é utilizável empiricamente na
classificação dos regimes, porque não permite
individualizar uma forma específica de ordenamento
político.
Para Marx — que usou a expressão pela primeira
vez na Luta de classe na França (1850) e a retomou
especialmente na Crítica do programa de Gotha
(1875) —, a "Ditadura do proletariado" é a
organização do ato revolucionário do proletariado,
correspondente à fase intermédia entre a destruição do
Estado burguês e o surgimento da sociedade sem
classes. Marx nunca especificou, e declarou que não se
podia especificar, a peculiar forma política que tal
Ditadura deve assumir. De um lado, a "Ditadura do
proletariado" comportava o desmantelamento do
Estado burguês: a abolição da burocracia, da polícia e
do exército permanente, como emerge de sua obra
sobre a comuna de Paris. De outra parte, a "Ditadura
do proletariado" comportava o exercício da violência
armada do proletariado por todo o período transitório,
que deveria desembocar na completa extinção do
Estado e na sociedade sem classes.
O que é certo é que, para Marx, Ditadura é,
literalmente, "Ditadura do proletariado" sobre a
burguesia, seja qual for a modalidade política concreta
que esta possa assumir. Na concepção
marxista, o Estado é uma máquina para a opressão de
uma classe por parte de outra. Como também afirmou
Engels no Antidühring (1878), a "Ditadura do
proletariado" é um semi-Estado ou quase-Estado, que
se extingue quando vem a faltar o objeto da opressão,
isto é, a classe dominada. Por esta razão, seu caráter de
Ditadura não figura num ordenamento político
especial, mas na relação de contraposição e de
opressão entre uma classe dominante e uma classe
dominada.
Com Lenin, o contexto teórico e prático no qual se
situa o conceito de "Ditadura do proletariado" muda
sensivelmente. De um lado, existe uma precisa
conscientização de que a transição entre capitalismo e
comunismo constitui uma fase inteira da história. De
outro lado, a concepção do partido como "vanguarda
do proletariado" e a do "centralismo democrático" são
destinadas a transformar, de fato, a "Ditadura do
proletariado" em específica Ditadura política de
partido. Contudo, em Lenin, a expressão "Ditadura do
proletariado" não define um particular regime político,
mas uma relação subjacente entre as classes. Ditadura é
um termo genérico que não pode servir para classificar
os Estados, visto que os qualifica a todos.
Em A revolução proletária e o renegado Kautsky
(1918), Lenin argumenta difusamente sobre a tese de
que todos os Estados são Ditaduras, essencialmente
fundadas sobre a violência, enquanto expressões vivas
da luta entre as classes contrapostas e inconciliáveis, e
correspondentes à dominação e opressão de uma
classe sobre outra. Num parágrafo da obra Estado e
Revolução, que ele acrescentou na segunda edição de
outubro de 1818, escreve com clareza: "As formas dos
Estados burgueses são extraordinariamente variadas,
mas sua substância é única: todos estes Estados são,
de uma maneira ou de outra, em última análise,
necessariamente uma "Ditadura da burguesia". A
passagem do capitalismo para o comunismo,
naturalmente, não pode deixar de produzir uma enorme
abundância e variedade de formas políticas, porém, a
substância será inevitavelmente uma só: a "Ditadura
do proletariado".
Mesmo obedecendo à concepção marxista, este
significado do termo Ditadura não atinge o problema
do tipo de regime político que o predomínio (a
Ditadura) de uma ou de outra classe pode assumir de
fato e, por isso, não pode, tampouco, atingir a
possibilidade de que o predomínio de classe assuma
uma forma política específica não-ditatorial. Este
ponto foi particularmente esclarecido por Norberto
Bobbio.
Aceitando chamar de "Ditadura da burguesia"
qualquer regime no qual a classe burguesa é a classe
dirigente e hegemônica, devemos admitir
DOMINATO
que esta Ditadura pode ser exercida de duas formas
muito diversas: com uma forma de Governo liberaldemocrático, e com uma forma de tipo antiliberal e
antidemocrático, à qual somente a linguagem política
comum reserva o termo específico de Ditadura.
Alguma coisa parecida se poderia dizer da "Ditadura
do proletariado". Surge então a questão terminológica
se convém empregar o mesmo nome de Ditadura para
designar dois fenômenos diferentes ou se não é
oportuno substituir a palavra em um dos dois usos.
Nesta segunda hipótese, Bobbio sugere empregar a
expressão usada por Gramsci de "hegemonia", para
designar a primazia política de uma classe sobre outra.
Aceitando, porém, a primeira, devemos distinguir
entre uma Ditadura (hegemonia de classe) liberal
(quanto ao seu regime político) e uma Ditadura
ditatorial. De qualquer modo, mesmo quem aceitar a
tese marxista do Estado como instrumento de domínio
de classe é obrigado a admitir que este domínio pode
expressar-se politicamente na forma de um Governo
ditatorial ou na de um Governo não-ditatorial.
BIBLIOGRAFIA - N. BOBBIO. Democrazia e dittatura.
in Política e cultura. Einaudi, Torino 1955; A. COBBAN.
Dictatorship: Its history and theory. London e New
York 1939; M. DUVERGER, La dittatura (1961),
Comunità, Milano 1961; C. J. FRIEDRICH, La dittatura
costituzionale e il governo militare. c. XXVI de
Governo costituzionale e democrazia (I9502), Neri
Pozza, Venezia 1963; B. MOORE JR., Le origini sociali
della dittatura e della democrazia (1965), Einaudi.
Torino 1969; C. H. MOORE, The single party as a
source of legitimacy, in Authoritarian politics in
modern society. ao cuidado de S. P HUNTINGTON e C.
H. MOORE, Basic Books, New York 1970; F.
NEUMANN, Note sulla teoria della dittatura, in Lo stato
democratico e lo stato autoritario (1957), Il Mulino,
Bologna 1973; C. ROSSITER, Constitutional dictatorship.
Princeton University Press. Princeton 1948; G. SARTORI,
Appunti per una teoria generale della dittatura. in
Theorie und Politik. Festschrift zum 70. Geburtstag für
C. J. Friedrich, ao cuidado de K. VON BEYME, Nijhoff,
L'Aia 1971; C. SCHMITT, La dittatura (19282),
Laterza, Bari 1975.
[MARIO STOPPINO]
Divisão dos Poderes. — V. Constitucionalismo.
Dominato.
I. DA ANARQUIA MILITAR A DIOCLECIANO. — Por
Dominato ou monarquia absoluta entende-se
379
o período do advento ao poder de Diocleciano (ano
284 d.C.) ou, conforme alguns estudiosos, a época que
vai desde Constantino (que coincide com a vitória de
Ponte Mílvio, em 312 d.C.) até a queda do Império
Romano do Ocidente (476 d.C). Desejando, porém,
obedecer à problemática jurídica (especialmente a
privativa, mas também a publicista), devemos então
lembrar o período que chega até a morte do imperador
do Oriente Justiniano (565 d.C).
Recapitulemos brevemente os fatos que ocorreram
desde a queda da dinastia dos Severos até Diocleciano
e, depois, até Constantino, a fim de poder ilustrar a
instauração do novo regime jurídico e político.
A morte de Alexandre Severo (235 d.C.) abre no
Estado romano um turbulento tempo de anarquia
militar. No breve período da subida ao poder de
Massimino, o Trácio (ainda 235 d.C.) a Numeriano
(284 d.C), contam-se de fato vinte e quatro
imperadores. A estes devemos acrescentar os
chamados trinta tiranos (isto é, pretendentes ao poder
imperial).
As
causas
desta
crise
foram
individualizadas
de
diversas
formas
pelos
historiadores. Uma das teses mais importantes é a de
Rostovzev, que focaliza a existência de uma luta de
classes entre os camponeses e os privilegiados
habitantes das cidades.
Hoje, porém, considera-se que na base da crise
existiam muitas causas (políticas, sociais, econômicas,
militares, etc). Estas causas, interagindo, teriam
provocado uma verdadeira "desintegração" da ordem
constituída. Nessa crise, a partir do longo reinado de
Galieno (de 253 a 260 d.C. reinou juntamente com o
pai, e de 260 a 268 sozinho), inserem-se elementos
inovadores para uma recomposição constitucional
(que se traduziu, na ocasião, na exclusão dos
senadores do comando militar). Uma certa
estabilização política começa a surgir a partir do final
da anarquia militar propriamente dita, ou seja, no
início do reinado de Aureliano (um dos restitutores
ilíricos, que reinou de 270 a 275 d.C). O poder de
Aureliano é decisivamente militar; é muito
significativo o apelido de domnus et deus que ele
recebeu (embora não seja uma novidade absoluta).
Após uma última tentativa de restaurar o pleno poder
dos senadores, com Tácito e Probo, abre-se,
praticamente, a era diocleciânica.
Diocleciano, também de origem ilírica, conquistou
sozinho o poder em 285 d.C, criando assim as
premissas para uma série de importantes inovações.
Lembramos aqui as relativas à organização territorial
(as províncias fracionadas foram reconstituídas em
dioceses bem mais amplas), ao exército (com a
distinção entre tropas estáveis, distribuídas ao longo
das fronteiras, e exército
380
DOM INATO
móvel, que acompanhava sempre o imperador e por
isso dependia de seu comando direto), e às inovações
relativas à economia em geral (com reformas
monetárias, fiscais e com a promulgação de um
edictum rerum venalium, isto é, de um tabelamento
dos preços).
A respeito do fundamento constitucional e político
do poder imperial, podemos falar de uma monarquia
do tipo militar, porque o imperador é aclamado pelo
exército. É duvidoso que ao exército tenha se juntado
o Senado. Ao fazermos uma comparação com as
monarquias do tipo oriental, devemos admitir que
mesmo estando presentes na monarquia de
Diocleciano muitos elementos religiosos, não se pode
ainda falar de uma verdadeira concepção teocrática do
poder.
Este fato impede alguns historiadores de
reconhecerem em Diocleciano o autêntico fundador
do Dominato e os leva a identificarem Constantino
como o verdadeiro autor do novo curso institucional.
Aceitando-se esta interpretação, deve-se sublinhar mais
uma vez a complexidade das passagens, que levam até
a afirmação total e exclusiva de elementos já presentes
in nuce no primeiro principado, juntamente com a
resistência das formas e dos órgãos da Constituição
republicana.
II. CONSTANTINO. A INSTAURAÇÃO DO "DOMINATO".
— Após a falência do sistema tetrárquico, inventado por
Diocleciano para assegurar uma transferência pacífica
dos poderes imperiais. Constantino fica no poder,
juntamente com Licínio, em 312 d.C, depois fica
sozinho em 324 d.C. A monarquia de Constantino
marca a ruptura definitiva com o passado. A forma
monárquica já não mais se justifica pela necessidade
de preservar o Império Romano da dissolução, mas
corresponde a uma precisa escolha política. A
concentração do poder — de todo poder — nas mãos
de uma única pessoa fica definitivamente ligada a uma
visão teocrática, isto é, à concepção do imperador
como representante de Deus na terra, mesmo se
Constantino não explora esta situação para aproveitar
suas conseqüências no plano da sucessão imperial.
Quanto aos eventos fundamentais do reinado de
Constantino, devemos focalizar, em primeiro plano, o
reconhecimento legal do cristianismo, com o famoso
édito de Milão (aliás ponto hoje bastante discutido
pelos historiadores). Este édito, não somente acaba
com um período de perseguições (que foram
particularmente ásperas com Diocleciano), mas lança as
bases para uma rápida mudança de posições, que leva a
reconhecer ao cristianismo uma posição de clara
supremacia. Paralelamente, surge um outro fenômeno:
a ingerência do Estado nas questões internas da Igreja,
mesmo as de ordem dogmática. Temos assim o início
do chamado "papismo cesarista".
Com as reformas, a opinião mais difundida é aquela
que vê Constantino como um continuador, neste
campo, da obra de Diocleciano, mas não faltam
problemas nos quais a posição constantiniana se
destaca decisivamente da de Diocleciano. Além de uma
ampla reorganização da administração central do
Estado, lembramos a reforma da prefeitura do Pretório,
agora vista como um órgão de Governo com
circunscrições territoriais (por isso, a multiplicação
dos prefeitos) já sem poderes militares.
Outras inovações importantes referem-se ao
exército (com um incremento da armada móvel,
diminuindo o poder das de fronteira) e à moeda (com
a cunhagem de uma nova moeda de ouro. o solidus, e
com o abandono do curso fiduciário da moeda de
cobre, que era usada para as normais trocas
comerciais).
Lembramos ainda que, enquanto Diocleciano
apareceu, no conjunto de sua legislação individualista,
como um defensor do direito romano clássico,
Constantino mostra-se muito mais propenso a ceder e
a dar reconhecimento às normas jurídicas de origem
oriental. Finalmente, também a fundação de
Constantinopla assume, neste quadro, um caráter
simbólico. A parte as razões da decisão imperial, a
fundação dessa nova cidade significa, praticamente,
que Roma não é mais o único centro do Império e que
a distinção entre a parte ocidental e a oriental tende
cada vez mais a ser institucionalizada.
III. SOCIEDADE E ECONOMIA NO BAIXO IMPÉRIO. — Não
é possível, chegando a este ponto, delinear a história
do Dominato depois de Constantino. Bastará destacar
que a divisão do Império em duas partes fica
definitivamente estabelecida após 395 d.C. Isto
explica, entre outras coisas, por que a queda do
Império Romano do Ocidente não levou consigo o
Império oriental.
Nos limitaremos, portanto, a fixar alguns caracteres
fundamentais da sociedade e da economia do Baixo
Império.
O dado mais curioso é o da criação de uma série de
vínculos que tornam obrigatórias e hereditárias
algumas profissões (e pertencer as suas relativas
corporações). Fenômeno análogo é aquele da difusão
do colonato, pelo qual o colono era obrigado a uma
forma de servidão na terra que trabalhava. Sua
condição jurídica de ser livre transformava-se assim, de
fato, num estado muito parecido com o do escravo. É
evidente que estas novas situações sócio-econômicas
têm uma estreita relação com a decadência do regime
DOUTRINA
escravocrata, decadência cujo alcance seria muito
discutível.
Nasce, nesta época (a propósito da qual um
historiador falou de socialismo de Estado ou, ao
menos, de dirigismo), também, uma empresa pública
dedicada à produção das aparelhagens bélicas.
Certamente a atenção
do Estado
foi
particularmente atenta para os problemas monetários,
num ambiente conturbado pela tendência do contínuo
aumento dos preços (em certos momentos,
irrefreável); assim sendo, sucederam-se políticas
monetárias de vários tipos, inflacionárias e
deflacionárias. Um refúgio contra a desvalorização
parece ser obviamente a propriedade dos bens reais, e
alguns estudiosos falaram até do abandono da
economia monetária para uma volta à economia
natural.
Com referência às classes sociais, além daquilo
que já foi dito, vale lembrar a formação de uma
classe curial, ou seja, de cidadãos pertencentes ao
Senado da cidade. Os curiais de todo o Império
tinham em comum uma série de problemas e, em
particular, a responsabilidade das obrigações fiscais
das comunidades urbanas. Este fato os obrigou,
mesmo em face às diferentes condições econômicas
de cada cidade, a amadurecer a consciência, essencial
identidade do seu estado jurídico.
A classe social mais elevada continuou sendo a do
Senado (na época existiam dois Senados, um em
Roma e outro em Constantinopla). A cavalaria gozou
de vários períodos de maior influência, mas já a
partir do século IV ela figurava essencialmente numa
condição inferior à classe senatorial.
IV. A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO. — Falaremos
agora brevemente da queda do Império Romano e de
suas causas. É óbvio que nos referimos à queda do
Império ocidental, porque o Império Romano do
Oriente continuará ainda a existir por muitos séculos
após Justiniano, até a tomada de Constantinopla
pelos turcos, em .1453 d.C.
A propósito deste tema, certamente fascinante, as
teses dos estudiosos são muito contrastantes e
refletem, freqüentemente, as várias visões de
conjunto do desenvolvimento histórico. Lembramos
aqui a boa acolhida e as críticas favoráveis que a tese
de Gibbon suscitou. Ele via no predomínio da
religião cristã o mais importante fator da decadência
romana. Outras opiniões, porém, mostram uma faceta
pessimista da sucessão das várias classes no
Governo. Seeck acha que a queda do Império deve-se
à decadência demográfica da velha classe
aristocrática. Por sua vez, Rostovzev
581
afirma que a revolta das classes camponesas, já
individualizada como crucial em outras ocasiões
históricas, contribuiu bastante para a decadência e, a
seguir, a queda defintiva da civilização romana.
Os historiadores mais modernos, porém, estão
inclinados a aceitar visões mais ecléticas, achando que
a queda final do Império deve-se a uma série de
fatores. Entre os dados que melhor documentam a
extensão da crise, podemos lembrar. a título de
exemplo, a expansão do patrocinium, como um
verdadeiro protetorado interessado, dos potentiores,
isto é, das classes mais elevadas sobre as classes mais
humildes e indefesas. Muitas vezes, esta proteção
coercitiva era exercida por altos funcionários civis ou
militares, mostrando assim o claro desmantelamento
das instituições do Estado.
Ê óbvio, porém, que os vários fatores da crise
assumiram um peso diferente quando tratados em cada
tese eclética. Com base nesta perspectiva, é claro que
a historiografia marxista tende a a t r i b u i r a máxima
importância
às
causas
econômicas,
muito
especialmente ao declínio da economia escravocrata,
sem que os escravos fossem substituídos por outras
forças de trabalho mais adequadas. Parece-nos, porém,
oportuno, para ficar apenas na área econômica, que
sobre as classes tipicamente acumuladoras de bens
pesava há tempos o ônus da manutenção de um
aparelho burocrático e militar de grandes proporções.
Finalmente, os fatos mostram que a incidência de cada
fator da crise deve ser avaliado num quadro histórico
muito mais amplo e articulado.
BIBLIOGRAFIA. - F. DE MARTINO. Storia della
costituzione romana. Jovene. Napoli 1975, V, 5.º; A.
H. M. JONES. Il tardo impero romano (1964), trad.
ital., Il Saggiatore, Milano 1973-1974; S. MAZZARINO.
L' impero romano. II-III, Laterza, Bari 19762; E. STEIN,
Histoire du Bas-Empire. I, 1 e 2, De l'Étai romain à
l'Étai byzantin (284-476), e II, De la disparition de
l'Empire d'Occident à la mort de Justinien (476-565).
(1949), Hakkert. Amsterdam 1968.
[ROBERTO BONINI]
Doutrina.
O termo assume múltiplos significados, que se
desenvolveram a partir de sua origem etimológica
latina doctrina que, por sua vez, vem de doceo,
"ensino". O sentido mais antigo, portanto, é de ensino
ou aprendizado do saber em geral, ou do
382
DOUTRINÁRIO
ensino de uma disciplina particular. Ao longo do tempo
perdeu-se como significado primário aquele relativo
ao ensino e o termo firmou-se, cada vez mais, como
indicador de um conjunto de teorias, noções e
princípios, coordenados entre eles organicamente, que
constituem o fundamento de uma ciência, de uma
filosofia, de uma religião, etc, ou então que são
relativos a um determinado problema e, portanto,
passíveis de ser ensinados.
O significado mais comum é aquele que se refere a
uma religião e indica seu conjunto de ensinamentos
dogmáticos e morais e de normas litúrgicas, assim
como o texto que as engloba. Por antonomásia, na
nossa civilização, a Doutrina é a cristã ou o livro que
contém seus princípios, quase sempre de maneira
simples e explicativa. Na história política e na história
da filosofia política e jurídica, porém, têm muita
relevância outros significados. Em direito, com o
termo Doutrina indica-se o estudo e a elaboração das
normas jurídicas e a interpretação teórica do direito,
muitas vezes em contraposição com a jurisprudência,
que se refere à interpretação do direito que o juiz
cumpre em vista de sua aplicação.
Em política, o termo assume significado particular,
especialmente na linguagem diplomática americana,
quando designa a enunciação formal da parte do chefe
do Estado, ou de um homem político, responsável por
uma linha política que seu país terá que seguir numa
determinada área das relações internacionais
(exemplo, a Doutrina de Monroe, de 1823, que se
resume na fórmula "A América para os americanos", e
enuncia o princípio de que a Europa não deve intervir
nos assuntos americanos; a Doutrina de Stimson, de
1932, na qual se declara à China e ao Japão a intenção
do Governo de Washington de não reconhecer
nenhuma situação que seja contrária ao Pacto BrianKellogg, de 1928; a Doutrina de Drago, de 1902, na
qual o Governo argentino enuncia suas teses acerca
das responsabilidades de um Estado em relação a
países estrangeiros, com referência às dívidas públicas
contraídas pelos Governos que os precederam; a
Doutrina de Truman, de 1947, que trata das relações
entre a Europa ocidental e o bloco soviético).
Na filosofia política, o termo Doutrina política
indica, geralmente, um complexo orgânico de idéias,
resultado de uma reflexão metódica e com referência a
este significado fala-se de história das Doutrinas
políticas. Finalmente, tem relevância política a partir
da segunda metade do século XIX, como reação
contra as conseqüências do regime capitalista e em
contraposição às instâncias do pensamento marxista, a
denominada Doutrina social-cristã, que seria o
enunciado dos princípios da sociologia cristã,
tendentes a fundar
uma nova ordem social baseada na renovação dos
espíritos e na subordinação da economia à moral cristã,
e não sobre o marxismo materialista, com todas as
suas conseqüências, como o excessivo poder do
Estado e a desvalorização da pessoa humana.
A Doutrina social-cristã garante a propriedade como
instrumento de liberdade, mas condena seus abusos
individualistas. Propõe, então, intervenções do Estado
para limitar a superpropriedade e para centralizar em
suas mãos a riqueza. Procura tutelar o proletariado,
permitindo que ele chegue à propriedade, seja
mediante a difusão da pequena propriedade agrícola,
seja através da participação operária na propriedade e
nos lucros das empresas. Além disso, condena,
parcialmente, o sistema do assalariado, auspiciando a
evolução da forma salarial e associativa, da qual
deveria surgir a destruição do predomínio do capital e
a instauração de uma sociedade de proprietários.
Surge esta Doutrina, primeiro na Itália, depois na
Alemanha, França e Inglaterra, onde o sistema
capitalista é mais desenvolvido e o marxismo passa a
difundir-se cada vez mais. Em 1891, Leão XIII aprova
a Rerum Novarum. Após uma grave crise que culmina
nos anos entre 1907 e 1910, quando muitos de seus
expoentes condenaram o modernismo, esta volta a ter
todo o vigor, particularmente após a Primeira Guerra
Mundial.
[SAFFO TESTONI BINETTI]
Doutrinário.
O termo indica, em geral, quem obedece rigidamente
aos princípios da própria doutrina, prestando atenção à
teoria no seu sentido abstrato, mais do que no prático;
em política, a expressão indica quem segue
servilmente os princípios de uma doutrina política,
sem levar em conta a situação concreta.
Historicamente, distinguem-se duas claras acepções
do termo. Em 1747, constitui-se uma "congregação de
Doutrinários" (do latim Congregatio Presbyterorum
doctrinae christianae), congregação religiosa na qual
confluem congregações já existentes com o objetivo de
difundir mais amplamente a doutrina cristã. Seu
fundador reconhecido é Cesare de Bus (1544-1607), na
realidade fundador de uma das congregações
precedentes, que foi suprimida em 1870.
Na história política tem maior relevância o partido
que vem indicado com a expressão "Partido dos
Doutrinários" (do francês Les Doctrinaires).
DOUTRINÁRIO
Trata-se de um partido monárquico-constitucional
francês que surge com a restauração de Luís XVIII.
Os seus chefes são: P. P. Royer Collard, F. P. G.
Guizot, P. F. H. de Serre, J. C. Beugnot, P. de Barante,
C. Jordan, aos quais mais tarde se juntam os mais
jovens A. Ch. L. V. de Broglie e Ch. de Rémusat. Não
obstante o pequeno número de seus componentes, o
Partido dos Doutrinários é heterogêneo; sua ideologia,
em geral, apóia-se num constitucionalismo tendente a
garantir a ordem pública e, após a experiência da era
napoleônica, na total aversão ao cosmopolitismo, e
defende a Carta octroyée, de 1814. Esta concede, entre
outras coisas, a igualdade diante da lei; a liberdade de
consciência, de palavra e de imprensa; a abolição do
regime dos direitos feudais; confia o poder executivo
ao rei e o legislativo às duas Câmaras (uma Câmara dos
Pares, nomeada pelo rei e de caráter hereditário, e uma
Câmara dos Representantes, eleitos por sufrágio
censitário). A iniciativa legislativa, porém, é de
exclusiva competência da coroa. Os Doutrinários,
portanto, sustentam as principais conquistas da
Revolução Francesa e com base nestas querem
383
construir a nova nação, contra as tendências da
extrema esquerda, constituída, em grande parte, pelos
homens que, fiéis a um passado de despotismo
napoleônico, acham agora insuficientes as liberdades
concedidas pela Carta e também contra os ultras da
direita, que não admitem limitações à autoridade
monárquica e aspiram a uma total restauração do
Ancien Régime.
Os Doutrinários se consideram técnicos do regime
constitucional, não se preocupam com o problema da
soberania, que consideram um atributo exclusivamente
divino. Ocupam-se, especialmente, da sociedade
concebida como organismo, do reconhecimento da
parte da monarquia, das diversas funções sociais, de
suas autonomias e liberdades, assim como da tutela
dos direitos constituídos. Querem com isso conciliar a
nova França com o seu passado, mas demonstram
escassa visão da realidade quando, falida a conjunção
entre seu esquema jurídico ideal e a monarquia dos
Bourbons, não conseguem criar um novo esquema que
se adapte à realidade da situação.
[SAFFO TESTONI BINETTI]
Elites, Teoria das.
I. DEFINIÇÃO DE ELITE. — Por teoria das Elites ou
elitista — de onde também o nome de elitismo — se
entende a teoria segundo a qual, em toda a sociedade,
existe, sempre e apenas, uma minoria que, por várias
formas, é detentora do poder, em contraposição a uma
maioria que dele está privada. Uma vez que, entre
todas as formas de poder (entre aquelas que,
socialmente ou estrategicamente, são mais importantes
estão o poder econômico, o poder ideológico e o poder
político), a teoria das Elites nasceu e se desenvolveu
por uma especial relação com o estudo das Elites
políticas, ela pode ser redefinida como a teoria segundo
a qual, em cada sociedade, o poder político pertence
sempre a um restrito círculo de pessoas: o poder de
tomar e de impor decisões válidas para todos os
membros do grupo, mesmo que tenha de recorrer à
força, em última instância. A formulação, hoje tornada
clássica, desta teoria foi dada por Gaetano Mosca nos
Elementi di scienza política (1896): "Entre as
tendências e os fatos constantes que se acham em todos
os organismos políticos, um existe cuja evidência pode
ser a todos facilmente manifesta: em todas as
sociedades, a começar por aquelas mais mediocremente
desenvolvidas e que são apenas chegadas aos
primórdios da civilização, até as mais cultas e fortes,
existem duas classes de pessoas: a dos governantes e a
dos governados. A primeira, que é sempre a menos
numerosa, cumpre todas as funções públicas,
monopoliza o poder e goza as vantagens que a ela
estão anexas; enquanto que a segunda, mais numerosa,
é dirigida e regulada pela primeira, de modo mais ou
menos legal ou de modo mais ou menos arbitrário e
violento, fornecendo a ela, ao menos aparentemente, os
meios materiais de subsistência e os que são
necessários à vitalidade do organismo político'' (I, p.
78). A fortuna do termo Elite, porém, remonta a
Pareto, que alguns anos depois, por influência de
Mosca, enunciou, na introdução aos Systèmes
socialistes (1902), a tese segundo a qual em toda a
sociedade há uma classe "superior" que detém
geralmente o poder político e o poder econômico, à
qual se deu o nome de "aristocracia" ou Elite.
II. OS PRECURSORES: MOSCA, PARETO, MICHELS. —
Que toda sociedade seja dividida em governantes e
governados e os governantes sejam uma minoria é uma
tese que certamente não é nova, comum a todos os
escritores que tinham condividido uma concepção
realista da política. O mesmo Mosca, de resto,
reconheceu ter tido alguns precursores, citando SaintSimon, Taine e Marx-Engels. O que permite considerar
Mosca, mais ainda do que Pareto (à parte a diatribe
entre os dois sobre a respectiva prioridade), o primeiro
teórico da classe política é o fato de que ele apresentou
esta tese como o ponto cardeal de uma concepção que
pretendia ser científica, a saber, fundada sobre uma
paciente e imparcial observação dos fatos, não mais
apriorística, ideológica ou ideologizante da política;
elevou-a a lei constante e certa de toda sociedade
política, primitiva ou evoluída, antiga ou moderna;
dela tomou o ponto de partida para reformular, de
maneira nova, alguns conceitos fundamentais da teoria
política tradicional, como o das três formas clássicas
de Governo (todos os Governos, partindo da teoria da
classe política, são oligárquicos), para renovar a própria
matéria da ciência política, a qual deveria concentrar
sua atenção na natureza diversa e nas diferentes
características dos tempos e das civilizações, nos
problemas da formação e da organização da classe
política. Além disso, Mosca não se limitou a enunciar
o princípio segundo o qual existe, em toda a
sociedade, uma classe política composta por um
número restrito de pessoas, mas procurou também dar
uma explicação do fenômeno, insistindo repetidamente
sobre a observação de que a classe política encontra
sua própria força no fato de ser "organizada",
entendendo por organização, tanto o conjunto de
relações de interesse que induzem os membros da
classe política a coligarem-se entre si e a constituírem
um grupo homogêneo e solidário contra a mais
numerosa, dividida,
386
ELITES, TEORIA DAS
desarticulada, dispersa e desagregada classe dirigida,
como o aparelho ou máquina estatal da qual se serve a
classe política como instrumento para a realização de
seus próprios fins. Com base nesta característica, a
teoria da classe política é habitualmente também
chamada teoria da minoria organizada.
Contribuiu certamente para fazer ressaltar
particularmente a teoria da classe política e para fazer
dela uma espécie de tema dominante da ciência
política a circunstância de que, mais ou menos, pelos
mesmos anos, a teoria fosse acolhida por um
personagem importante no campo das ciências sociais,
internacionalmente conhecido, em contraste com o
provinciano Mosca, e que se chamava Vilfredo Pareto.
Já na introdução ao Systèmes socialistes, Pareto
chamou atenção para o fato de que, sendo os homens
desiguais em todo o campo de sua atividade, dispõemse, em vários níveis, que vão do superior ao inferior;
chamou de Elites aqueles que fazem parte do grau
superior, deteve-se particularmente sobre os. indivíduos
que, ocupando os graus superiores da riqueza e do
poder, constituem a Elite política ou a aristocracia.
Mais do que dos problemas da constituição e da
formação da classe política, Pareto foi atraído pelo
fenômeno da grandeza e da decadência da aristocracia,
ou seja, pelo fato de que as aristocracias não duram e a
história é um teatro de contínua luta entre uma
aristocracia e outra. No Tratatto di sociologia
generale (1916), a teoria do equilíbrio social é
fundada, em grande parte, sobre o modo como se
combinam, se integram e se intercambiam as diversas
classes de Elite, cujas principais são as políticas (estas
têm dois pólos: os políticos que usam a força (leões) e
os que usam a astúcia (raposas); as econômicas (com
os pólos nos especuladores e nos banqueiros) e as
intelectuais (onde se contrapõem continuamente os
homens de fé e os homens de ciência).
Nos anos que intercorrem entre as duas obras de
Pareto (1902 e 1916), Roberto Michels, inspirando-se
nas idéias de Mosca e de Pareto, mas mais nas do
primeiro do que nas do segundo, publicou, primeiro
em edição alemã (1910), depois em edição italiana (La
sociologia del partito político nella democrazia
moderna, 1912), uma obra que, estudando a estrutura
dos grandes partidos de massa, em espécie, do partido
social-democrático alemão, colocou em relevo, no
âmbito de uma grande organização, como a dos
partidos de massa, o mesmo fenômeno da concentração
do poder num grupo restrito de pessoas, que Mosca
tinha constatado na sociedade em geral. A este grupo
de poder deu o nome de "oligarquia", usando um
termo que, diferentemente de aristocracia usado pelo
conservador Pareto, tem
uma conotação negativa de valor, e revela que para o
autor, proveniente das filas do movimento socialista, o
fenômeno tinha um caráter degenerativo, ainda que
inevitável. Tão inevitável que o induziu a formular
precisamente a famosa (ou mal-afamada) "lei férrea da
oligarquia", cuja enunciação mais conhecida é a
seguinte: "A organização é a mãe do predomínio dos
eleitos sobre os eleitores, dos mandatários sobre os
mandantes, dos delegados sobre os delegantes. Quem
diz organização diz oligarquia". Conquanto a relação
entre organização e grupo de poder, segundo Michels,
seja o inverso da que foi proposta por Mosca — para
Mosca a organização é um instrumento para a formação
da minoria governante, enquanto que para Michels é a
mesma organização que tem por conseqüência a
formação de um grupo oligárquico —, a obra de
Michels constitui uma confirmação histórica e
empírica da teoria elitista, uma verificação num
campo específico como no dos partidos de massa e,
mostrando a possibilidade de uma sua mais ampla
aplicação, contribuiu para consolidar o seu sucesso.
III. INTERPRETAÇÃO CONSERVADORA E INTERPRETAÇÃO
DEMOCRÁTICA DA TEORIA DAS ELITES. — A fortuna
da teoria das Elites, ao nascer, dependeu do fato de
que, não obstante a pretensão de valer como teoria
científica, ou melhor, ainda, como primeira teoria
científica no campo da política, surgiu como uma
fortíssima carga polêmica antidemocrática e antisocialista, que refletia bem o "grande medo" das
classes dirigentes dos países onde os conflitos sociais
eram ou estavam para se tornar mais intensos. Do
ponto de vista ideológico, esta teoria, especialmente na
exposição paretiana, que politicamente foi a mais
divulgada, foi uma das muitas expressões através das
quais se manifestou, no final do século, a crise da idéia
do progresso indefinido, que havia caracterizado o
período da burguesia ascendente, e o ideal do
democratismo igualitário teve de sustentar o choque
com a dura e áspera lição do darwinismo social, que
defendia, na seleção através da luta, as impiedosas mas
necessárias condições da evolução. A evolução podia
fornecer bons argumentos a quem, na verdade, tinha
interesse em demonstrar que a história é uma repetição
monótona de conflitos, onde não contam os ideais,
mas a força e a astúcia, e que as chamadas revoluções
não são mais do que a substituição de uma classe
dirigente por outra; que as massas, cujo advento é
considerado iminente pelos reformadores sociais e a
quem se atribui valor taumatúrgico, ou são os novos
bárbaros ou são apenas um exército de manobra da
nova classe política em ascensão.
ELITES, TEORIA DAS
A teoria das minorias governantes caminha pari passu
com uma concepção essencialmente desigual da
sociedade, como uma visão estática ou inteiramente
cíclica da história, com uma atitude mais pessimista
do que otimista da natureza humana, com uma
incredulidade quase total em relação aos benefícios da
democracia, com uma crítica radical do socialismo,
como criador de uma nova civilização, e com uma
desconfiança que se aproxima do desprezo pelas
massas portadoras de novos valores. Esta concepção,
que faz parte da teoria das minorias governantes, é
sustentada por Mosca e Pareto. Michels é mais
moderado. Pelo menos, nos primeiros anos, os
resultados da pesquisa científica não conseguiram
amolecer nele as aspirações e as esperanças
democráticas.
No primeiro momento de sua aparição, a teoria das
Elites serviu de bacia coletora de todos os humores
antidemocráticos e anti-socialistas (mais exatamente
para alguns antidemocráticos porque anti-socialistas),
provocados pelo aparecimento do movimento operário.
E permitiu formular, de uma maneira que até então não
tinha sido assim tão nítida, a antítese Elite-massa,
onde o termo positivo era o primeiro e negativo o
segundo, e onde o sujeito histórico teria sido não as
elites mas as massas (mesmo se lideradas por
vanguardas inconscientes). Mas já através de Michels
e de Mosca, numa segunda etapa (cuja obra conclusiva
é a segunda edição dos Elementi di scienza política,
1923), a teoria das Elites foi-se impondo por seu valor
heurístico. De tal forma que, separando-se pouco a
pouco da sua matriz ideológica, foi acolhida como
teoria historicamente correta, por seu valor científico,
por escritores liberais e até democráticos, como os
italianos Einaudi e Croce, Salvemini e Gobetti. Por
seu lado, Mosca abrira o caminho para uma
interpretação não ideologicamente restrita pela teoria,
distinguindo, num capítulo acrescentado à segunda
edição, dois modos diferentes de formação das classes
políticas, segundo o poder se transmite por herança, de
onde provêm os regimes aristocráticos, ou buscando
continuamente realimentar-se nas classes inferiores,
de onde nascem os regimes democráticos. Distingue
também dois modos diversos de organização das
classes políticas: o poder que desce do alto e que dá
lugar aos regimes autocráticos e o poder que vem de
baixo e dá lugar aos regimes que, por falta de outro
termo, Mosca chamou de liberais mas que teria podido
chamar também corretamente de democráticos, embora
num sentido em que democracia se contrapõe não à
aristocracia mas à autocracia. Desta forma, a diferença
entre regimes aristocráticos e autocráticos, por um
lado, e regimes liberais e democráticos, por outro, não
deve
387
ser mais pesquisada na presença de uma classe
política, mas no fato de que nos primeiros existem
Elites fechadas e restritas, enquanto que nos segundos
as Elites são abertas e amplas. O regime parlamentar,
cujos defeitos foram asperamente criticados por Mosca,
ao mesmo tempo em que defendeu sua validade
histórica, é um regime que não desmente a teoria das
Elites: ele representa o regime em que, além de
controlada a partir de baixo, a classe política é mais
aberta e menos restrita.
Depois de Mosca, dentre os maiores teóricos das
elites na Itália conta-se o escritor democrático Guido
Dorso, ligado à experiência gobettiana da "revolução
liberal". Escreveu em 1944, como viático para o novo
Estado democrático que deveria surgir das cinzas do
fascismo, um ensaio intitulado Ditadura, classe política
e classe dirigente, no qual, partindo da constatação
irrefutável da existência, em toda a sociedade, de
"formações oligárquicas que constituem a ossatura de
toda a estrutura social", descreveu as relações entre
classe dirigente e classe política, entre classe política no
Governo e classe política na oposição, num regime
pluralista. E um escritor liberal, Filippo Burzio,
fervoroso seguidor de Pareto, que publicou em 1945,
após a libertação do fascismo, o livro Essência e
atualidade do liberalismo, após afirmar que tudo que
se faz de original e de criativo no mundo é obra de
minorias, passa a sustentar que as melhores Elites são
aquelas que se formam através da luta e estão em
contínua concorrência entre si, como afirmam as
doutrinas liberais, as quais, sendo eleitas e controladas
periodicamente pelos cidadãos, não se "impõem" mas
se "propõem", como afirmam as teorias democráticas.
IV. O SUCESSO DA TEORIA DAS ELITES NOS
ESTADOS UNIDOS. — Mosca, Pareto e Michels são
habitualmente considerados fundadores. Mas a teoria
das Elites conquistou verdadeira cidadania na ciência
política contemporânea, renascida e renovada nos
Estados Unidos, desde o momento em que foi
acolhida, reelaborada e divulgada por Harold D.
Lasswell, mais ou menos pela mesma época em que foi
introduzido entre os estudiosos americanos e ampla e
acirradamente discutido, através da afortunada
tradução inglesa, o Trattato de Pareto (1935). Numa
das suas obras principais, Who gets what, when, how
(Quem obtém o quê, quando e como, 1936), o primeiro
capítulo "Elite" se abre com estas palavras: "O estudo
da política é o estudo da influência daqueles que a
exercem (. ..). Aqueles que têm influência são aqueles
que tomam a maior parte daquilo que se pode tomar.
Os valores disponíveis podem
388
ELITES, TEORIA DAS
ser classificados como valores de deferência, de renda,
de segurança. Aqueles que obtêm a maior parte delas
são Elites, o resto é massa" (The political writings of
H. D. Lasswell, 1951, p. 296). Ao formular o conceito
de Elite, Lasswell faz referência explícita à tradição de
Mosca, Pareto e Michels. No livro posterior, escrito
em colaboração com Abraham Kaplan, Power and
society (Poder e sociedade, 1950), articulando melhor
o conceito, distingue a verdadeira Elite, que é
constituída por aqueles que têm o poder maior numa
sociedade, da Elite média, constituída por aqueles que
têm um poder inferior, e da massa, constituída por
aqueles que têm um poder menor. Não hesita em
afirmar que os membros da Elite são ordinariamente
menos numerosos que os da massa. Distingue as várias
formas de domínio em que o poder numa sociedade é
controlado e exercido à base de vários tipos de Elite
(uma Elite de funcionários dá lugar a uma forma
burocrática de domínio; uma Elite de nobres dá lugar
à forma aristocrática de domínio; a de especialistas, à
tecnocracia, etc). Nega, sem hesitação, que a
introdução do conceito de Elite feche, de antemão, a
possibilidade de conceber um tipo de Governo
democrático; reforça o princípio, já enunciado por
Mosca, segundo o qual "a democracidade de uma
estrutura social não depende do fato de existir ou não
existir uma Elite, mas das relações que decorrem entre
a Elite e a massa: do modo como a Elite é recrutada e
do modo como exerce seu poder" (ed. ital., p. 218).
Além disso, não obstante a autoridade de Lasswell, a
sociologia americana oficial e acadêmica sempre olhou
as teorias elitistas com uma certa suspeita. O elitismo,
em seu sentido originário, deve a sua divulgação nos
Estados Unidos, sobretudo, a dois livros extra moenia,
cuja popularidade foi muito maior do que os produtos
que saem das instituições universitárias: The
managerial revolution (A revolução dos managers,
1941), de James Burnham, e The power elite (A elite
do poder, 1956), de C. Wright Mills. Embora Burnham
estivesse ligado à tradição dos fundadores, ele mesmo
revelou, num livro publicado alguns anos depois, The
machiavellians (Os maquiavélicos, 1947), que, partindo
da contraposição entre a concepção idealista da
política, personalizada por Dante, e a realista,
personalizada por Maquiavel, teceu o elogio dos novos
maquiavélicos, que são precisamente, além de Sorel,
Mosca, Pareto e Michels. A interpretação geral da
história em que se funda o afortunadíssimo livro sobre
a revolução dos managers é elitista: cada sociedade é
caracterizada pelo fato de ser dominada por um grupo
de poder (ruling class) que tem certas características:
"Onde existe tal grupo de
controle, um grupo que em antítese com o resto da
sociedade tem, em maior medida, o controle do acesso
aos instrumentos de produção e um tratamento
preferencial na distribuição dos produtos destes
instrumentos, podemos falar deste grupo como de um
grupo socialmente dominante ou da ruling class desta
sociedade" (pp. 53-4). A revolução social do nosso
tempo, que ele descreve e profetiza, consiste na
passagem de uma classe dominante (a dos burguesescapitalistas) para outra (a dos managers); a história é a
sucessão variada de uma classe dominante para outra.
Contra a imagem idílica de uma América como
paraíso do homem comum, Wright Mills parte da
contraposição entre o homem comum, definido como
"aquele cujos poderes são limitados pelo mundo
cotidiano em que vive" e que "parece freqüentemente
ser movido por forças que não pode compreender nem
controlar", e a Elite no poder, "composta de homens
que se acham em posições tais que lhes é possível
transcender o ambiente do homem comum" e "ocupam
aquelas posições estratégicas da estrutura social em
que estão atualmente concentrados os instrumentos de
poder, a riqueza e a celebridade" (trad. ital. pp. 9-10).
Com uma análise histórica e sociológica, procura
demonstrar que, atualmente, os Estados Unidos são
dominados por um restrito grupo de poder, que
constitui precisamente a "Elite no poder" e é composto
por aqueles que ocupam as posições-chaves nos três
setores: da economia, do exército e da política. Estes
constituem uma Elite no poder porque, contrariamente
ao que aparece ou se faz crer, estão ligados uns aos
outros por razões sociais, familiares e econômicas,
sustentam-se e se reforçam uns aos outros, tendem
sempre mais a concentrar os seus instrumentos de poder
em instituições centralizadas e interdependentes. Com
uma avaliação sintética que lembra, de modo
surpreendente, a tese de Mosca sobre as minorias
organizadas contra as maiorias desorganizadas, Wright
Mills escreve: "No sistema americano do poder, a
cúpula é muito mais unida e poderosa, e a base muito
mais desunida e impotente do que supõem geralmente
aqueles que se deixam distrair na observação dos
estratos médios do próprio poder: estratos não
exprimem a vontade da base nem determinam as
decisões da cúpula" (p. 34).
V. OS CRÍTICOS DEMOCRÁTICOS E OS
CRÍTICOS MARXISTAS. — O modo polêmico e talvez
provocante com que a tese de Wright Mills foi
apresentada deu oportunidade a um debate em torno do
conceito de Elite e em geral, em torno da validade do
elitismo como teoria científica. O
ELITES, TEORIA DAS
conceito de Elite no poder foi criticado pelas duas
partes opostas: os liberais negam a unidade da Elite no
poder, quer dizer, negam que o poder na sociedade
"americana esteja reunido num grupo monolítico,
segundo a tese que foi chamada, por retorsão polêmica,
dos três "c" (consciência, coesão, conspiração), e
opõem a ela a teoria que foi de variadas maneiras
denominada "pluralística", "poliárquica" e até, como
antítese ao monolitismo, de "política". Os radicais, ou
melhor dizendo, os marxistas, ao contrário, defendem
que a Elite no poder não se encontra, de verdade,
articulada nos três setores indicados por Mills, porque
a classe dominante é uma só, a dos detentores do poder
econômico. O mais autorizado representante da
primeira crítica é Robert A. Dahl, o qual num ensaio
intitulado A critique of the ruling elite model (1958),
aparecido dois anos depois do livro de Robert Mills,
defendeu que a hipótese da existência de uma Elite no
poder pode ser aprovada se: a) a hipotética ruling elite
for um grupo bem definido; b) houver uma amostragem
suficiente de casos de decisões fundamentais, em que as
preferências da hipotética Elite contrastam com as de
outros grupos; c) em todos estes casos, as preferências
da hipotética Elite prevalecem. Como nem o primeiro
nem o terceiro ponto foram até agora empiricamente
provados, a teoria das Elites no poder não tem,
segundo Dahl, fundamento científico. Da segunda
crítica se fez intérprete Paul M. Sweezy (Power elite
or ruling class?, 1956), o qual acha que Wright Mills
superestimou o papel dos militares e dos políticos de
profissão; defende que nos Estados Unidos existem,
não três Elites setoriais unidas numa Elite do poder,
mas "uma classe dominante" (no sentido marxista da
palavra) que, para compreender, é necessário estudar
todo o sistema do capitalismo monopolista e não os
domínios separados da vida social norte-americana;
critica, globalmente, a teoria das Elites como uma
coisa que "tira inevitavelmente a atenção dos
problemas da estrutura e do processo social e leva a
procurar causas externas aos problemas sociais".
A crítica dos liberais não conduz necessariamente a
uma negação radical do elitismo. Ela não nega que
existam Elites ou que até numa sociedade democrática
exista uma contraposição permanente entre aqueles
que têm o poder e aqueles que não o têm, e que numa
sociedade
extremamente
complexa
e
fundamentalmente conflituosa, como a americana,
exista apenas uma Elite; nega, enfim, não apenas o
elitismo, mas o monolitismo. Retomando a tradição
iniciada por Mosca, que distinguiu, como se disse, entre
Elites aristocrático-autocráticas e Elites democráticoliberais,
389
prosseguida por I.asswell, que considerou perfeitamente
compatível a existência das Elites com o
funcionamento do regime democrático, esta teoria se
religa à concepção de Joseph Schumpeter, segundo a
qual aquilo que caracteriza o regime democrático é o
método e, mais exatamente, o método que permite a
cada indivíduo ou grupos rivais lutar pela conquista do
poder em concorrência entre si "através de uma
competição, que tem por objetivo o voto popular"
(Capitalism. socialism and democracy, 1942; trad. it.,
Milano 1955, p. 252). De resto, Karl Mannheim, numa
análise escrita por volta de 1950 e publicada
postumamente sobre o processo de democratização da
sociedade contemporânea (The democralization oi
culture in Essays on the sociology of culture, 1956),
tinha já afirmado, repetindo Mosca: "A democracia não
implica que não haja Elites: implica sim um certo
princípio específico de formação das Elites" (p. 179), e
considerava este princípio, juntamente com o princípio
de igualdade de todos os homens e o de autonomia dos
indivíduos, uma das características fundamentais da
democracia moderna. Estudioso da teoria de Pareto,
também Raymond Aron voltou repetidamente, nos
últimos anos, a este tema, a começar pelo artigo Social
structure and the ruling class (In "The British Journal
of Sociology", I, 1950, pp. 1-16), onde entre outras
coisas escreveu: "A diferença fundamental entre uma
sociedade de tipo soviético e uma de tipo ocidental é
que a primeira tem uma Elite unificada enquanto que a
última tem uma Elite dividida", para terminar com o
artigo Social class, political class, ruling class (in "The
European Journal of Sociology", I, 1960, pp. 260-81),
em que contrapõe as sociedades industriais do Ocidente
à sociedade industrial da União Soviética, com base na
diferença entre oligarquia desintegrada e oligarquia
unificada num partido único. Em substância, a crítica
do elitismo monolítico terminou por dar origem a uma
concepção desmitificada, realista, desencantada da
democracia, que foi batizada e recentemente criticada
com o nome de "elitismo democrático" e cujas
principais conotações são a "concorrência das Elites
políticas, o fato de que estas Elites devem dar conta de
sua ação periódica junto aos eleitores e sejam
diversamente acessíveis aos pedidos que vêm das
classes inferiores" (P. Bachrach, 1967, 8).
Diferentemente da crítica dos pluralistas, a crítica
proveniente dos marxistas (bastaria lembrar, voltando
um pouco atrás, bem além da polêmica Wright MillsSweezy, os juízos acutilantes de Lukács e de Gramsci
sobre a obra de Michels, e recentemente as objeções
levantadas
390
ELITES, TEORIA DAS
por Nikos Poulantzas, em Pouvoir politique et classes
sociales, 1968, pp. 109-10, 353-59) funda-se sobre uma
interpretação radicalmente diversa da sociedade,
entendida como conjunto de relações entre dominantes
e dominados, por meio de instrumentos analíticos
diversos, e conduz a uma verdadeira teoria alternativa,
que é interessante confrontar com a teoria das Elites
nas duas versões, monista e pluralista, e que convém
manter bem distinta para não cair em confusões e
simplificações deformantes. Enquanto a teoria elitista
parte, como já se viu, da contraposição entre Elite e
massa distintas entre si como o elemento passivo da
sociedade e limita o elemento conflitual ao conflito
interno das Elites, a teoria marxista parte da
contraposição entre as duas classes antagônicas dos
donos dos instrumentos de produção e dos proletários
e considera o conflito entre as duas classes sociais o
principal motor do movimento histórico. Na visão
elitista da sociedade, a relação entre Elite e massa não é
necessariamente antagônica. Na sua tentativa de fixar
uma tipologia das diversas sociedades, partindo da
dicotomia Elite-massa, William Kornhauser toma em
consideração, por um lado, a maior ou menor
possibilidade que as Elites têm de ser influenciadas
pelas massas e, por outro, a maior ou menor
possibilidade que têm as massas de ser mobilizadas
pelas Elites {The politics of mass society, 1960):
nenhuma destas duas relações é uma relação
antagônica como a que é posta em relevo especial pela
teoria marxista. Ainda: enquanto a teoria marxista, para
encontrar os elementos constitutivos e determinantes
do movimento social, remonta à forma de produção,
isto é, ao momento estrutural, a teoria elitista individua
o elemento determinante da desigualdade social, que
caracteriza toda sociedade existente, e que já existiu,
na diversa distribuição do poder, com particular
destaque para o poder político, isto é, no momento que
um marxista consideraria superestrutural. Neste
sentido se pronunciou também Ralf Dahrendorf, o
qual, criticando Marx e ligando-se explicitamente aos
teóricos das Elites, defende em seu livro Soziale
Klassen und Klassenkonflikt in der industriellen
Gesellschaft (Classes e conflitos de classes na
sociedade industrial, 1957) que é a autoridade e não a
propriedade, ou seja, o poder de comando, que
consegue obediência e é a causa da formação das
classes sociais, das desigualdades e dos conflitos.
Desta premissa, tira a conseqüência de que é possível
identificar os contendores de um certo tipo de conflito
quando se consegue individualizar "aqueles que
ocupam as posições de domínio e de subordinação
numa determinada
associação". Dahrendorf, na verdade, propondo
substituir o critério da distribuição do poder pelo da
distribuição da propriedade, para explicar a divisão da
sociedade em grupos opostos, exprime bastante bem
uma forma atualizada da interpretação elitista da
sociedade em oposição direta à interpretação mantida
pelos clássicos do marxismo.
VI.VERIFICAÇÃO EMPÍRICA: INVESTIGAÇÕES
SOBRE AS ELITES DAS COMUNIDADES
LOCAIS. — Para além das discussões teóricas que a
concepção elitista da sociedade levantou e continua a
levantar, tem-se afirmado nestes últimos vinte anos, nos
Estados Unidos, a tendência em verificar a validade da
teoria na base de pesquisas empíricas, que foram
dirigidas
por
razões
técnicas
facilmente
compreensíveis ao estudo dos grupos de poder de
comunidades de pequena ou grande dimensão, tal como
as administrações municipais, sindicais e profissionais.
Como primeiro exemplo importante e de certo modo
antecipador do estudo das Elites de um centro urbano,
deve-se mencionar a pesquisa que Floyd Hunter
desenvolveu em Atlanta, na Georgia (Community
power. A study of decision makers, 1953), a que se
seguiram muitas outras. Mas a pesquisa mais conhecida
é a que Robert Dahl fez alguns anos depois em Nova
York (Who governs? Democracy and power in an
american city, 1961) e da qual tirou, entre outras
coisas, a convicção pouco antes lembrada que a teoria
de uma única Elite no poder, que tinha causado tanto
barulho através da obra de Wright Mills, é
empiricamente falsa. Além disso, quem das pesquisas
empiricamente até agora realizadas quisesse tirar uma
confirmação da preponderância de uma das
interpretações da teoria elitista sobre outra, ou seja,
entre a interpretação monista e pluralista, chegaria a
uma desilusão. Das duas pesquisas mencionadas, tanto
a de Hunter quanto a de Dahl, são as duas seguras, uma
em manter a tese monística e outra em manter a tese
pluralística. Não se disse que aquilo que vale numa
comunidade vale também na outra comunidade. Toda
teoria, descendo do céu das abstrações para a terra da
pesquisa de campo, é forçada a perder alguma coisa da
sua rigidez e da sua pretensão de valer universalmente.
Poder-se-ia assim chegar à conclusão de que a
distinção entre monistas e pluralistas é uma distinção
teórica (talvez ideológica) e que, ao contrário,
empiricamente, têm razão tanto os monistas quanto os
pluralistas. Observou-se também que as diversas
conclusões a que chegaram Hunter e Dahl podem
depender também das diferentes técnicas adotadas por
um e por outro, para
ELITES, TEORIA DAS
identificar os componentes do grupo de poder da
cidade selecionada. Hunter dirigiu-se a um certo
número de pessoas influentes da cidade e pediu-lhes
que indicassem quem achavam que eram os poderosos
da cidade (método reputacional); Dahl, por sua vez,
examinou o iter de algumas decisões sobre problemas
particularmente relevantes para a cidade escolhida
como amostra e observou que grupos de interesse
prevaleceram (método decisional). Nenhum dos
métodos escapou da crítica: o primeiro foi criticado
por não distinguir o poder reputado do poder real e
por ser mais levado a identificar o poder potencial que
o poder real. Contra o segundo, foi levantada a
objeção de que a influência de um grupo de poder não
se explica apenas pelas decisões que consegue tomar,
mas também pelas decisões que consegue impedir que
sejam tomadas. É provável, conforme recentemente já
foi observado (Stoppino 1971), que o melhor modo
para identificar um grupo de poder consiste em
utilizar os dois métodos, que não são de fato
incompatíveis, mas que, ao contrário, se integram
muito bem.
VII. CARACTERÍSTICAS POSITIVAS E NEGATIVAS DA
— Não obstante as divergências que dividem
os defensores da teoria das Elites, pode-se indicar, a
título de conclusão, alguns traços comuns que servem
para distinguir esta teoria, que há dezenas de anos
representa, com sucesso alternado, uma tendência
constante na ciência política; 1) em toda sociedade
organizada, as relações entre indivíduos ou grupos que
a caracterizam são relações de desigualdades; 2) a
causa principal da desigualdade está na distribuição
desigual do poder, ou seja, no fato de que o poder
tende a ficar concentrado nas mãos de um grupo
restrito de pessoas, 3) entre as várias formas de poder,
o mais determinante é o poder político; 4) aqueles que
detêm o poder, especialmente o poder político, ou seja,
a classe política propriamente dita, são sempre uma
minoria; 5) uma das causas principais por que uma
minoria consegue dominar um número bem maior de
pessoas está no fato de que os membros da classe
política, sendo poucos e tendo interesses comuns, têm
ligames entre si e são solidários pelo menos na
manutenção das regras do jogo, que permitem, ora a
uns, ora a outros, o exercício alternativo do poder; 6)
um regime se diferencia de outro na base do modo
diferente como as Elites surgem, desenvolvem-se e
decaem, na base da forma diferente como se
organizam e na base da forma diferente com que
exercem o poder; 7) o elemento oposto à Elite, ou à
não-Elite, é a massa, a qual constitui o conjunto das
pessoas que não
TEORIA.
391
têm poder, ou pelo menos não têm um poder
politicamente relevante, são numericamente a maioria,
não são organizadas, ou são organizadas por aqueles
que participam do poder da classe dominante e estão
portanto a serviço da classe dominante (a teoria da
sociedade de massa é a contrapartida da teoria das
Elites e ambas se desenvolveram neste último século
paralelamente). Negativamente, o que as várias teorias
elitistas têm em comum é, por um lado, a crítica da
ideologia democrática radical, segundo a qual é
possível uma sociedade em que o poder seja exercido
efetivamente pela maioria, e, por outro lado, a crítica
da teoria marxista, segundo a qual, estando o poder
ligado à propriedade dos meios de produção, é
possível uma sociedade fundada sobre o poder da
maioria, ou seja, sobre o poder de todo o povo, desde
o momento em que a propriedade dos meios de
produção seja coletivizada. Como teoria realista da
política, ela mantém firme a tese segundo a qual o
poder pertence sempre a uma minoria e a única
diferença entre um regime e outro está na presença de
minorias em competição entre si. Ideologicamente,
nascida como reação contra o advento temido da
sociedade de massa, e portanto não só contra a
democracia substancial mas também contra a
democracia formal, a sua principal função histórica,
mais do que esgotada, foi a de denunciar, de vez em
quando, as sempre renascentes ilusões de uma
democracia integral. Se na sua face ideológica pode
ter contribuído para obstacular o avanço de uma
transformação democrática da sociedade (no sentido
em que democracia e existência de uma classe política
minoritária não são incompatíveis), na sua face
realista contribuiu e contribui, ainda hoje, para
descobrir e colocar, a nu, o fingimento da "democracia
manipulada".
BIBLIOGRAFIA. - P. BACHRACH, The theory of
democratic elitism. A critique, Little, Brown e C,
Boston e Toronto 1967 ;T. B. BOTTOMORE, Elite e
società (1957), Il Saggiatore, Milano 1967; C. Wright
Mills and the power elite, ao cuidado de G. W.
DOMHOFF e H. B. BALLARD, Boston 1968; S. KELLER,
Beyond the ruling class, Strategic elite in modern
society. Randon House, New York 1963; C.
MARLETTI, Classi ed élites politiche: teorie ed analisi,
in Questioni di sociologia, La Scuola. Brescia 1966,
vol. II, pp. 143-236; J. H. MUSEU The myth of the
ruling class. Caetano Mosco and the elite, Univ. of
Michigan Press. Ann Arbor 1958; G. PARRY, Political
elite. London 1969; Potere ed élites politiche, ao
cuidado de S, PASSIBLI, Il Mulino, Bologna 1971; M.
STOPPINO, Chi comanda? I metodi di ricerca del potere
nella comunità locale, ECIG, Genova 1982.
[NORBERTO BOBBIO]
392
ESPAÇO POLÍTICO
Espaço Político.
I. DEFINIÇÃO. — Por Espaço político se entende a
área de conflito que constitui a base da relação entre
eleitores e partidos, num dado sistema político e num
certo momento histórico. Todo sistema político é
caracterizado por um certo número de conflitos:
conflitos sobre a distribuição da renda, sobre a
intervenção do Estado na economia, sobre as relações
Estado-Igreja, ou então conflitos de natureza
lingüística, étnica, e por aí além. Na medida em que
tais conflitos ou linhas de divisão são fatores de
mobilização do eleitorado, eles influem no
comportamento político dos eleitores e na estratégia
dos partidos e, conseqüentemente, no desenrolar da
disputa eleitoral. A conformação destes conflitos
representa a área do Espaço político. Em resumo,
portanto, o Espaço político identifica-se com o espaço
da competição eleitoral nos regimes democráticos de
massa.
Não basta, porém, que existam conflitos —
portanto, problemas a resolver e escolhas a fazer —
para se poder usar significativamente a noção de
Espaço político. Para isso, é necessário que se
cumpram algumas condições que garantam a existência
de um certo grau de "racionalidade" no
comportamento de eleitores e partidos: 1) eleitores e
partidos devem ser capazes de compreender e avaliar
sua mútua posição a respeito das dimensões do
conflito político, que são mais evidentes ou relevantes
num determinado momento; 2) esta compreensão e
conseqüente avaliação hão de estar dotadas de um
mínimo de coerência interna; 3) o eleitor vota pelo
partido cuja posição dentro do Espaço político está
mais próxima à sua autocolocação espacial. É claro
que estas condições se realizam em medida diversa
nos vários sistemas políticos, e, em certos casos, nem
se realizam. A compreensão do Espaço político pode
variar de eleitor para eleitor; isto por vários motivos.
Em primeiro lugar, nem sempre os eleitores "vêem"
todos os partidos do sistema, nem mesmo os mais
importantes. Por vezes, só reconhecem o seu partido, o
partido com que se identificam intimamente. Ou então
têm conhecimento da existência dos outros partidos,
mas não conseguem distinguir as suas particularidades
características e, portanto, a sua posição relativa no
espaço. Outras vezes pode acontecer, em vez disso,
que a percepção de certos eleitores seja total ou
parcialmente diferente da percepção dos outros, por
variar o destaque ou a importância dos conflitos em
ação. Em outros casos, é possível que os juízos que um
eleitor faz dos vários partidos sejam totalmente
contraditórios e, por
conseguinte, privados de qualquer lógica interna.
Quando estes fenômenos assumem dimensões
relevantes, a noção de Espaço político perde, na
prática, significado empírico. Em suma, para se poder
falar de Espaço político, é preciso que exista uma
certa "estrutura ordenada",
que supõe o
comportamento de eleitores e de partidos. A
freqüência com que os eleitores, os líderes e os
observadores políticos empregam termos como
esquerda-direita,
laico-clerical,
conservadorprogressista e outros análogos, para definir as suas
posições políticas, indica que uma tal estrutura existe,
se bem que em medida diversa, tanto a nível de elites
como de massas. É uma estrutura feita de imagens
simplificadas da complexa realidade dos partidos, mas
nem por isso menos capaz de oferecer aos eleitores
uma síntese das particularidades politicamente mais
relevantes de cada um desses partidos. Baseando-se
em tais imagens, o eleitor constrói o seu mapa do
sistema e organiza os seus próprios conhecimentos
políticos. A reconstrução deste mapa durante a
pesquisa revelará ao estudioso os elementos
constitutivos do Espaço político.
II. ESPAÇOS LINEARES E ESPAÇOS PLURIDIMENSIONAIS.
— Todo Espaço político se define por certo número de
dimensões. Tais dimensões correspondem às linhas de
conflito, aos problemas e às escolhas que influem na
posição dos partidos e dos eleitores e orientam seu
comportamento. Conforme forem uma ou mais de
uma, falar-se-á de espaços lineares ou de espaços
pluridimensionais. O Espaço político mais simples e
mais utilizado, tanto no âmbito da pesquisa científica
como no do debate político, é o da dimensão esquerdadireita. Esta dimensão ou continuum tem sido
variadamente interpretada. Anthony Dows, o primeiro
politólogo que usou de maneira sistemática a noção de
Espaço político neste sentido, a interpreta como grau
de intervenção do Estado na economia, quando uma
posição de esquerda se identifica com uma maior
propensão a favor de políticas de intervenção. Para
Lipset e muitos outros, o divisor de águas entre
esquerda e direita está na atitude favorável ou não às
políticas de mudança no status quo. Seja qual for a sua
interpretação mais correta, não há dúvida de que, nas
modernas democracias de massa, as noções de
esquerda e direita desempenham um papel importante
no âmbito da disputa eleitoral entre os partidos. Elas
tornam mais simples a escolha por parte dos eleitores e
constituem um meio eficaz de comunicação entre os
eleitores e os partidos. Isto é largamente provado por
numerosas pesquisas empíricas, que mostram como, a
nível dos eleitorados de vários países, a
ESPAÇO POLÍTICO
maior parte dos entrevistados não têm dificuldade em
situar a si mesmos e os partidos do sistema (ou, pelo
menos, os maiores) neste continuum.
Depois disto, apesar da notável contribuição que o
uso da dimensão esquerda-direita trouxe ao estudo da
disputa política, não é lícito fazer coincidir com ela,
como pretendem alguns investigadores, a noção de
Espaço político, pois isso a empobreceria do ponto de
vista analítico e fundamental. Os espaços lineares são
simples e, por isso, fáceis de utilizar e interpretar; mas,
devido justamente à sua simplicidade, nem sempre
podem explicar certas estratégias de partido ou certos
comportamentos de voto, por esquecerem a existência
de outras dimensões de identificação e de competição
que podem cruzar-se com a dimensão esquerda-direita,
e alterar assim a dinâmica global da luta política. Uma
dessas outras dimensões é, por exemplo, a religiosa,
mas podemos citar também a propósito a dimensão
étnica, a lingüística e outras. Às vezes, tais dimensões
podem sobrepor-se ao continuum esquerda-direita. O
mais freqüente é entrecruzarem-se. Neste caso, o
Espaço político há de ser considerado, para todos os
efeitos, como pluridimensional, e não linear.
Em conclusão, o ponto que é preciso fixar é que não
podemos estabelecer a priori qual é a estrutura do
Espaço político, como se houvesse um espaço da
política universalmente válido. A configuração do
Espaço político pode variar de sistema para sistema e,
dentro de um mesmo sistema, de um determinado
período histórico para outro, precisamente porque
mudam os conflitos, as linhas de divisão e os
problemas, que definem as imagens dos partidos e a
autocolocação dos eleitores dentro do espaço. Dito
isto, pode-se afirmar, no entanto, com base na
experiência apresentada pelo funcionamento dos
regimes democráticos ocidentais, que os componentes
fundamentais do Espaço político têm-se mantido mais
freqüentemente estáveis a nível de massa.
Correspondem ainda, em grande parte, ao sistema de
rupturas que caracterizaram o professo de formação
dos partidos e dos sistemas partidários. Estas, rupturas
(o contraste cidade-campo, a língua, a religião, a
ideologia) constituem, em larga medida, a base dos
processos de identificação partidária e, por isso, do
comportamento do voto entre a grande maioria dos
eleitores dos países da Europa ocidental. Contudo, o
Espaço político não compreende apenas tais dimensões.
A par destas, que são "tradicionais", pode haver
outras. Em geral, qualquer questão em que os partidos
tenham posições divergentes entre si e que não se
possa identificar com uma
393
linha de divisão preexistente pode representar uma
dimensão do Espaço político, desde que constitua
efetivamente um fator de mobilização de parte dos
eleitores. Assim, em certos sistemas políticos, o espaço
da competição eleitoral pode ser constituído por cada
um dos problemas que, de quando em quando,
assumem importância política aos olhos dos eleitores.
O problema do aborto, o problema da energia nuclear,
ou determinadas questões de política externa, são
alguns possíveis exemplos.
III. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS. — A análise espacial
da disputa eleitoral pressupõe, em certa medida, uma
interpretação "racional" do comportamento dos
eleitores. É coisa que ressalta claramente de tudo que
acabamos de dizer. Porém, é exatamente por tal
motivo que muitos estudiosos levantam objeções sobre
a aplicabilidade e relevância de uma noção que envolve,
fundamentalmente, comportamentos que parecem
raramente encontrar-se na realidade dos fatos. O
escasso interesse pela política e o baixo nível de
conhecimento da matéria em certos estratos do
eleitorado têm sido documentados por grande número
de pesquisas empíricas. Segundo uma sólida tradição
de pesquisa sobre o comportamento eleitoral de massa,
o eleitor "médio", mais que expressar o próprio voto
depois de um atento confronto entre as suas
preferências políticas e as propostas e programas dos
vários partidos do sistema, tende a identificar-se com
um determinado partido, baseando-se no sentimento
de uma certa afinidade psicológica e não racional. O
voto não seria, portanto, uma escolha realmente
consciente, mas antes um fato habitudinário,
determinado por um forte grau de adesão ao próprio
partido e de hostilidade em relação aos partidos
antagônicos.
Embora estas observações assentem em sólidas bases
fatuais, a conclusão que muitas vezes delas se tira, de
que é quase absolutamente irrelevante uma teoria
racional do comportamento eleitoral, é, por diversas
razões, excessivamente apressada. Em primeiro lugar,
o fenômeno da identificação entre eleitor e partido não
exclui a presença em tal relação de elementos de
caráter racional. O eleitor identificado, embora nem
sempre, é, em muitos casos, um eleitor que possui
uma certa consciência de partido, condicionada pela
adesão ao programa do seu partido e às suas posições
políticas em face dos problemas do momento. O fato
de que o seu voto seja fundamentalmente estável não
significa que seja mero resultado de fatores
psicológicos, irredutível a uma análise racional. Por
isso, é necessário precaver-se em não deduzir da
estabilidade do voto a sua pressuposta
394
ESTABILIDADE POLÍTICA
""irracionalidade". Em segundo lugar, a própria noção
de eleitor "médio" não tem grande significado. Não
existe um eleitor típico, mas antes diversos tipos de
eleitores, de que os identificados são apenas uma
categoria. A par deles existem também eleitores de
opinião que se orientam em seu comportamento, não
apenas por considerações de caráter ideológico ou
tradicional, mas pela influência da posição dos
partidos em relação a temas e problemas na ordem do
dia do debate político, ou então pela sua percepção da
eficiência, honestidade e competência dos líderes do
Governo e da oposição.
Estas considerações bastarão para mostrar que, com
efeito, uma teoria espacial do comportamento eleitoral
possui um campo de aplicação mais amplo do que às
vezes somos levados a crer. Tanto o comportamento
dos eleitores "identificados", como, com maior razão,
o comportamento dos eleitores de opinião são
redutíveis a uma análise espacial. Neste último caso,
sobretudo, a noção de espaço se presta muito bem a
explicar as transferências de voto e, portanto, alguns
dos aspectos da dinâmica global do sistema. De fato,
os eleitores de opinião são os mais críticos, os mais
móveis. Daí ser justamente o seu voto que determina
aqueles desvios marginais nas relações de força entre
os partidos de Governo e oposição, que muitas vezes
decidem o resultado da disputa eleitoral. Embora seu
número possa ser exíguo, a sua importância é tal que
chega a influir notavelmente na formulação da
estratégia dos partidos e no funcionamento do sistema.
BIBLIOGRAFIA. — A. DOWNS, An economic theory of
democracy Harper, New York 1957; R. INGLEHART e
H. D. KLINGEMANN, Party identification, ideological
preference and left-right dimension among western
mass publics. in party identification and beyond. ao
cuidado de I. BUDGE, J. CREWE e D. FARLIE, Wiley,
New York 1976; G. SARTORI, Parties and party
systems, Cambridge University Press. New York 1976;
D. STOKES, Spatials models of party competition. in
"American Political Science Review", LVII, junho
1963.
[ROBERTO D'ALIMONTE]
Estabilidade Política.
I. DEFINIÇÃO DO CONCEITO. — Uma definição
satisfatória do conceito de Estabilidade política há de
partir de algumas considerações preliminares. Antes
de tudo, é preciso buscar uma definição isenta,
enquanto possível, de elementos
avaliativos. É mister pôr particular atenção neste
ponto, já que se trata de um conceito que, em geral, é
acusado de privilegiar mais o fator de conservação
que o de mudança: um sistema político, por exemplo,
é muitas vezes considerado estável justamente por ser
capaz de manter o status quo. Em vez disso, devemos
deixar claro que se buscará uma definição neutra; que
um sistema estável não tem por isso mesmo uma
conotação positiva; que um sistema político estável
não é "bom" como tal; e, enfim, que a Estabilidade
não é necessariamente, nem deve ser, o fim de todo
sistema.
Em segundo lugar, só importa uma definição
empírica e operacional, suscetível de uma vinculação
imediata com a realidade, uma definição que permita
determinar, no fim do processo cognitivo, o grau de
Estabilidade deste ou daquele sistema em particular.
Enfim, é necessário buscar uma definição capaz de
evidenciar que a Estabilidade é um estado do sistema,
num determinado espaço de tempo. A Estabilidade é o
resultado de uma certa disposição dos elementos do
sistema.
Levadas em conta estas considerações, a definição
que parece preencher mais do que outras os requisitos
indispensáveis é a seguinte: Estabilidade é a
capacidade previsível que um sistema tem de se
prolongar no tempo. Deste modo, um sistema deve ser
considerado estável quando, num momento dado, tido
em conta um conjunto de sinais, é razoavelmente
previsível que ele continuará no tempo. Existe" uma
notável diferença entre a Estabilidade assim definida e
a Estabilidade entendida como simples duração no
tempo. Esta segunda definição, ao contrário da
primeira, não traduz o sentido típico deste conceito,
que pretenderia também englobar a função de prever,
mais do que de referir-se a sistemas históricos. E
poderia levar a sustentar erroneamente que uma
monarquia tradicional, por exemplo, que permanece
de há muito, é estável, embora possa estar a ponto de
ser destruída por uma revolução. É por outro lado
evidente que, num juízo a posteriori, poder-se-á dizer
que um sistema político que durou por muito tempo
foi provavelmente estável durante boa parte da sua
existência.
A definição de Estabilidade antes apresentada
poderá parecer bastante genérica, se não procedermos
a algumas especificações. É preciso, por isso, deixar
claro o' que não é Estabilidade. Ela, antes de tudo, não
se identifica com o equilíbrio estável. Esta
identificação, feita por muitos autores, é inexata; para
compreendermos um pouco mais a fundo a sua
falsidade, é necessário referirmo-nos, se bem que
brevemente, ao conceito de equilíbrio e, mais
genericamente, ao modelo
ESTABILIDADE POLÍTICA
de equilíbrio. Diz-se que um sistema está em
equilíbrio quando ele se acha num estado de sossego,
devido à interação de forças opostas, isto é, quando
"nenhuma das variáveis (do sistema) muda a sua
posição ou relação quanto às outras'' (Easton, 1953,
28). 0 equilíbrio pode ser estático ou dinâmico. É
estático quando, em estado de sossego, os parâmetros
do sistema se mantêm constantes num espaço de tempo
considerado. É dinâmico quando, em situação de
mudança, a própria razão da mudança permanece
constante, ou então se apresenta em moldes
constantemente repetidos. Além disso, é preciso
distinguir, e este é o ponto que mais nos interessa, entre
equilíbrio estável, instável e indiferente. Existe
equilíbrio "estável" quando o sistema, depois de haver
sofrido qualquer perturbação vinda do exterior, tende
a voltar ao estado anterior de calma. Existe equilíbrio
"instável" quando o sistema, também por intervenção
de um distúrbio externo, vem a encontrar um
equilíbrio precário que o predispõe a adotar posições
conformes ou não com a precedente. Existe, enfim,
equilíbrio "indiferente" se o sistema adota uma nova
posição, em decorrência da intervenção de qualquer
fator externo.
Os motivos pelos quais se rejeita a identificação
entre Estabilidade e equilíbrio estável são, pelo
menos, dois: a) a noção de equilíbrio estável não leva
longe e, em todo caso, não parece suscetível de se
tornar operativa, devido à distância que separa esta
concepção física da realidade social; b) o equilíbrio
estável privilegia o status quo; ao contrário, para ser
estável, isto é, para continuar no tempo, o sistema tem
de ser capaz de mudar, adaptando-se aos desafios que
vêm do ambiente; só uma constante adaptação à
realidade sempre mutável permite que o sistema
sobreviva. Pode-se, pois, afirmar que, paradoxalmente,
um sistema em equilíbrio estável corre o risco de se
tornar o mais instável.
É um erro também identificar Estabilidade e
equilíbrio indiferente, isto é, equilíbrio sempre novo e
diverso, dado que não está, em absoluto, empiricamente
provado que um sistema, principalmente um sistema
político, procure sempre alcançar um estado de
equilíbrio. Com efeito, para atingir seus fins, o sistema
pode desejar também um estado não equilibrado,
suposto que "deseje" alguma coisa: justamente para se
manter estável, para poder continuar como sistema
político, às vezes persegue fins que lhe perpetuam o
desequilíbrio.
Estabilidade não é, enfim, nem imobilismo nem
estaticidade, já que um sistema mantém-se estável
precisamente porque é capaz de se adaptar aos
395
desafios que vêm do ambiente, de se modificar de
forma autônoma.
Quando se passa da definição do conceito à análise
das condições da Estabilidade, são necessárias outras
especificações. Se a Estabilidade consiste na
capacidade que um sistema tem de se manter através
das adaptações, devemos agora acrescentar, antes de
mais nada que, quando se estuda a Estabilidade e a
instabilidade, não se estudam dois fenômenos que têm
de ser considerados numa perspectiva antinômica, mas
um só fenômeno, e que o problema é o de determinar
empiricamente qual o grau de Estabilidade de um
sistema particular.
Além disso, até agora só se falou da Estabilidade do
sistema, sem mais particularizações. Mas, para sermos
mais exatos, é necessário estabelecer uma distinção
entre comunidade política, regime e autoridade. Por
comunidade política se entende "o conjunto dos
membros de um grupo em que há divisão do trabalho
político e que persegue objetivos que os membros por
si sós não poderiam tentar alcançar". O regime é "o
conjunto dos valores (princípios e metas coletivas
acerca dos quais existe, geralmente, um mínimo de
consenso dentro da comunidade), das normas (regras
de comportamento que disciplinam a participação na
vida política) e das estruturas de autoridade (papéis
desempenhados por governantes dotados de
legitimidade), típicos de qualquer sistema político". Por
autoridade se entendem, enfim, "os governantes oficiais
dentro do regime". Estas distinções entre comunidade
política, regime e autoridade — e, depois, no âmbito
dos regimes ou sistemas políticos, entre sistemas
políticos democráticos e autoritários, primitivos e
modernos, tradicionais e em vias de desenvolvimento
— são necessárias para podermos particularizar
melhor as condições fundamentais da Estabilidade,
que são diversas de acordo com os diferentes níveis e
tipos de sistemas em que nos movemos. Mas fique
assente que, provavelmente, as condições de
Estabilidade de um certo tipo de autoridade estão
englobadas nas condições de um certo sistema político
e estas, por sua vez, nas condições de uma
determinada comunidade política.
Quase todos os estudiosos deste tema se dedicaram à
explicação das condições de Estabilidade dos sistemas
políticos democráticos (v. DEMOCRACIA). Pouquíssimo
se fez no tocante ao estudo deste fenômeno nos
sistemas não-democráticos. Por isso, enquanto é
possível apresentar explicações avançadas e
atendíveis da Estabilidade democrática, nada válido se
pode afirmar da Estabilidade não-democrática: são
muitos os problemas não resolvidos a esse respeito.
396
ESTABILIDADE POLÍTICA
II. HIPÓTESES PRINCIPAIS. — As hipóteses mais
importantes sobre o tema da Estabilidade do sistema
político são quatro. A primeira pode ser assim
enunciada: "só um sistema político democrático que
possua uma cultura cívica tem possibilidades de ser
estável" (Almond e Verba, 1963). É a explicação
"cultural" mais clássica da Estabilidade. Embora
reconheça a importância de outros fatores, Almond
atribui um papel decisivo à cultura política, ou seja,
ao conjunto das atitudes e tendências dos membros de
uma comunidade nacional em relação ao sistema
político de que fazem parte (v. CULTURA POLÍTICA).
A civic culture é uma cultura de participação,
própria de cidadãos orientados a assumir um papel
ativo no apoio ao sistema político, resultando de um
conjunto de atitudes que produzem tendências políticas
assaz moderadas e equilibradas. Por isso, num sistema
político de "cultura cívica", teremos uma atividade
política viva, mas não tanto que ponha em perigo a
autoridade governativa, uma emulação civil moderada,
dissensões não profundas, confiança no ambiente
social e, finalmente, uma judiciosa mistura de respeito
pela autoridade e de vigorosa independência. Este tipo
de cultura é o mais consentâneo com um sistema
político democrático, o que lhe garante a Estabilidade
mais que qualquer outro.
Podemos, pois, pensar que um sistema político é
estável graças não tanto à sua estrutura como a uma
cultura política com ela condizente. Tal congruência
existe, quando a cultura política induz os membros de
uma comunidade a obedecer às estruturas e os leva a
ter, não só conhecimento e consciência delas, como
também sentimentos e opiniões favoráveis a seu
respeito, o que ocorre sempre que as estruturas
democráticas encaixam numa "cultura cívica". Mas,
sendo assim, é claro que esta explicação privilegia
excessivamente o momento cultural. Mesmo sem
ignorar completamente o papel da cultura política,
poder-se-ia opor uma explicação estrutural igualmente
plausível e sustentar que são as estruturas
democráticas que formam e mantêm a "cultura
cívica", e não o inverso. Possivelmente, a verdade está
num condicionamento recíproco entre cultura e
estrutura, onde não é factível distinguir um prius, ou
onde, em todo caso, a prioridade cultural teria de estar
provida de mais seguras e esmeradas provas
empíricas. Além do mais, parece que Almond usa o
termo "estrutura" num sentido puramente formal e,
como tal, demasiado restrito e fora de propósito,
excluindo, por exemplo, estruturas como os partidos e
os grupos de pressão.
A segunda hipótese é esta: "um sistema político
democrático é estável apenas se a) está econômica e
socialmente desenvolvido, b) é dotado
de legitimidade e c) possui eficácia'.' (Lipset, 1963).
Esta é a substância da teoria de Lipset, que faz também
uma série de considerações sobre o papel da Igreja
católica e da religião em geral, sobre a importância do
comportamento de certos grupos conservadores, sobre
a função do conflito numa sociedade democrática,
sobre o diferente desenvolvimento histórico das nações,
etc. Mas, fundamentalmente, Lipset só considera
importantes os três fatores acima mencionados; podese até afirmar que ele considera o desenvolvimento
sócio-econômico como o único fator realmente
determinante da Estabilidade democrática. De fato, de
um lado, a eficácia, isto é, a capacidade demonstrada
pelo sistema em conseguir cumprir as funções
fundamentais do Governo, é rapidamente posta de
parte, quando se lhe atribui "antes de tudo, o
significado de um constante desenvolvimento
econômico" (Lipset, 1963, 82). Por outro lado, à
legitimidade — ou seja, à capacidade que o sistema
tem de fazer surgir e manter a convicção da validade
das instituições políticas vigentes — é reconhecida
uma influência secundária no condicionamento da
Estabilidade de uma democracia. Sob enfoques
diversos, Lipset insiste sobre o papel decisivo do
desenvolvimento sócio-econômico na origem do
consenso nos sistemas democráticos, afirmando, por
exemplo, que uma democracia mais rica é mais
estável, porquanto, a uma mais alta renda nacional,
corresponderá uma maior igualdade social, mais justa
distribuição
dos
bens
de
consumo
e,
conseqüentemente, um maior apoio ao sistema. É,
portanto, o desenvolvimento sócio-econômico o único
fator que fundamenta esta explicação da Estabilidade.
Na realidade, é justamente a relação de dependência
entre desenvolvimento sócio-econômico e Estabilidade
que carece ainda de total verificação: poderia tratar-se
de uma simples relação de coincidência. Dever-se-ia
explicar, por exemplo, como é que existem às vezes
países com altas taxas de desenvolvimento sócioeconômico, como a França e a Itália, que se podem
considerar instáveis. E não se pode invocar,
principalmente no caso da França, a particularidade do
rápido desenvolvimento econômico, com base na qual
se sustentaria que, continuando verdadeira a regra
geral da dependência entre desenvolvimento e
Estabilidade, podia dar-se uma exceção, quando o país
considerado houvesse tido um desenvolvimento
econômico acelerado. A França, precisamente, não
teve esse tipo de desenvolvimento. Além disso, esta
correlação também se mostrará pouco consistente, se
levarmos em conta que, correspondendo supostamente
aos níveis mais altos e mais baixos do
desenvolvimento, respectivamente, países estáveis e
instáveis, resta ainda
ESTABILIDADE POLÍTICA
uma ampla faixa intermédia onde é possível todo tipo
de sistema político, com os mais diversos graus de
Estabilidade-instabilidade;
nestes
casos,
o
desenvolvimento sócio-cconômico explicaria bem
pouco.
Mais complexa e aprimorada é a teoria da
Estabilidade democrática formulada por Eckstein.
Como terceira hipótese, pode ser assim resumida: "um
sistema político democrático só é estável se os
modelos de autoridade a nível governativo forem
congruentes com os modelos a nível da sociedade
civil" (Eckstein, 1966). Eckstein parte de uma
definição de Estabilidade mais ampla do que aquela
aqui formulada. Com efeito, nela compreende, não só
a permanência dos modelos, como também a eficácia
das decisões e a genuinidade democrática. E,
declarando querer ir mais além das causas superficiais
da Estabilidade, como um elevado grau de consenso,
uma cultura política pragmática ou um certo sistema
partidário, formula o conceito central da sua teoria: a
congruência entre modelos de autoridade. Se as
formas de autoridade e as relações de subordinação
existem em qualquer agregado social, um modelo de
autoridade só será condizente com outro quando for
idêntico ou, ao menos, bastante semelhante a ele.
Teríamos um exemplo nos modelos de autoridade
existentes no Governo e nos partidos políticos ingleses:
a congruência estaria em que, em ambos os casos, os
modelos de autoridade são formados por quase igual
combinação de elementos democráticos e autoritários.
Existe, porém, uma dificuldade a superar antes de
se poder afirmar a existência de tal congruência: no
próprio sistema político democrático existem
organizações, como as econômicas, militares e
burocráticas, que, pelas suas mesmas características
funcionais, não devem ser democráticas. Nestes casos,
só se poderá falar de congruência se se tiver presente
que a similaridade de modelos requerida para que ela
exista é cada vez menor, à medida que aumenta a
distância entre os modelos de autoridade considerados,
isto é, entre modelos a nível governativo — que
continuam sendo o ponto de referência estável — e
modelos cada vez mais próximos à sociedade civil e
afastados das estruturas governativas: é este o conceito
de semelhança gradual. Pode-se, por isso, afirmar que
um sistema político é estável, se os modelos de
autoridade a nível governativo são idênticos aos que
existem a nível de sociedade civil, ou então se existe
semelhança gradual entre os dois tipos de modelos,
semelhança maior ou menor segundo a distância dos
modelos de autoridade a nível social em relação aos
governativos. À primeira condição corresponde a
congruência máxima entre modelos governativos, por
exemplo,
397
e modelos de autoridade existentes nos partidos
políticos; à segunda condição corresponde a
congruência mínima entre os mesmos modelos
governativos, por exemplo, e os modelos de
autoridade presentes na família.
De qualquer modo, para que exista congruência no
plano real, não só hão de ser mais democráticas as
relações de autoridade no seio da sociedade, mas
também as próprias estruturas políticas hão de ter um
certo grau, aliás inevitável, de autoritarismo. Será
dificílima uma congruência de qualquer tipo, se o
sistema político institucional se apresentar na forma de
uma democracia pura. Será, pelo contrário, mais
provável, se ele apresentar a forma de uma
democracia impura, ou seja, se um certo grau de
autoritarismo contaminar o sistema democrático.
Eckstein insiste particularmente na necessidade deste
"balanceamento", mesmo a nível de cultura política,
onde a atitude pragmática deveria encontrar-se e
equilibrar-se com a atitude ideológica.
A teoria de Eckstein, conquanto interessante e
arguta, exige maior aperfeiçoamento a nível teórico e o
apoio de uma acurada pesquisa a nível empírico. Sob o
aspecto empírico, a aplicação à Noruega não basta
evidentemente por si só para convalidar a teoria: é
preciso examinar também outros casos. Sob o aspecto
teórico, continuam vagos e ambíguos, tanto o conceito
de semelhança gradual, como o de balanceamento.
Seria depois necessário precisar o quantum de
congruência deve ter um sistema, aos diversos níveis de
segmentação social, para ser estável. Em suma, deste
ponto de vista chega-se a uma certa aproximação.
A teoria de Eckstein apresenta ainda outras
dificuldades. É evidente que a condição sine qua non
da congruência é a existência de patterns de
autoridade a nível governativo e a nível social, que
sejam, por sua vez, estáveis ou persistentes e não
continuamente mutáveis: só assim será possível
determinar a existência ou não da própria congruência.
Por isso, um sistema político será estável, não só se
existir a congruência antes definida, mas também
Estabilidade nos modelos de autoridade e,
conseqüentemente, nas estruturas políticas e sociais. A
congruência explica só uma parte do problema.
Quanto à outra, uma Estabilidade explica a outra
Estabilidade, ou persistência, dada por suposta: a dos
modelos de autoridade e das estruturas políticas e
sociais. No fundo, a hipótese da congruência entre mo
delos de autoridade parece constituir um modo
bastante inteligente de mostrar o condicionamento
recíproco existente entre estruturas políticas e sociais
e, ainda, entre estruturas políticas e cultura, levada em
conta uma única unidade de análise: os modelos de
autoridade.
398
ESTABILIDADE POLÍTICA
Em contraste com os autores precedentes, ao
formular a sua teoria, Huntington pensa mais nos
países em vias de desenvolvimento e em como
transformar a instabilidade típica destes países em
Estabilidade, do que nos países democráticos,
desenvolvidos e estáveis. E isto altera notavelmente a
perspectiva, pois torna a deixar em aberto, entre outros,
o problema da existência ou não de condições de
Estabilidade válidas para todo sistema político,
democrático ou não. Portanto, a quarta hipótese é esta:
"um sistema político é ou se torna estável apenas
quando possui ou atinge um nível de
institucionalização adequado ao nível existente de
participação" (Huntington, 1968). Se a pobreza
absoluta ou a riqueza podem ser consideradas outras
tantas barreiras à instabilidade, existe uma enorme
faixa de países, de modesto ou apenas iniciado
desenvolvimento econômico, que constitui terreno
fertilíssimo para a instabilidade. Se depois intervém a
mobilização social (v. MOBILIZAÇÃO), criando
expectativas cada vez maiores, então o resultado é,
sem dúvida, a instabilidade. A este estado se chega,
pois, através das seguintes passagens: as expectativas
criadas pela mobilização e não satisfeitas levam à
frustração social; se esta encontra na sociedade
oportunidades de mobilização, o resultado será o
impulso à participação como único meio de superar a
própria frustração; mas um sobressalto na
participação, a que não corresponda um súbito
aumento de institucionalização, leva à instabilidade. É
este o passo final que explica tanto a instabilidade
como a Estabilidade: se o grau de participação é
superior ao da institucionalização, cria-se a
instabilidade; se, ao invés, o processo de
institucionalização for sempre capaz de controlar os
efeitos irrompentes da participação, teremos então um
sistema político estável.
O processo de institucionalização é o único
processo capaz de controlar a MODERNIZAÇÃO (V.). e a
mobilização social é o único modo de criar estabilidade
num sistema político. Os parâmetros pelos quais
podemos avaliar o grau de institucionalização são
quatro: adaptabilidade-rigidez, que é função dos
desafios ambientais superados e da idade cronológica,
generativa e funcional que depende, por sua vez, das
mutações das funções principais; complexidadesimplicidade, que corresponde a uma multiplicação de
unidades organizativas e de funções; autonomiasubordinação, baseada no grau de independência da
instituição com relação a outros agrupamentos sociais
e de autonomia das próprias normas de
comportamento; coerência-desunião, devida ao grau de
consenso sobre os limites funcionais do grupo e sobre
os procedimentos a seguir na solução dos conflitos.
Existe um vínculo de dependência re-
cíproca entre estes quatro parâmetros: a
complexidade, por exemplo, contribui para a
autonomia e esta está ligada à coerência. Mas importa
salientar que a organização moderna, que parece
poder alcançar mais altos níveis nos parâmetros de
institucionalização e melhor traduzir a necessidade de
estabilidade, é o partido político (v. PARTIDOS). É ao
partido que se confia a tarefa da estabilização,
sobretudo quando as instituições políticas são débeis e
estão em crise, como em muitos países em vias de
desenvolvimento. O partido é a única organização
forte capaz de manter e controlar uma maior
participação, tornando-se ele mesmo fonte de
autoridade e de legitimidade.
Huntington, um dos representantes mais
expressivos do enfoque neo-institucional no estudo do
desenvolvimento político, encontra-se na margem
completamente oposta à de Almond, dando o flanco a
críticas contrárias às que se faziam a este autor. Em
Huntington, é, por isso, de sublinhar seu desinteresse,
tanto pelo papel decisivo das ideologias nos processos
de mobilização social, como pela importância da
propaganda e da educação na socialização. Mostra
quase indiferença por todos aqueles valores culturais
que Almond havia privilegiado até demais; e, da
própria cultura política, apenas ressalta, brevemente, a
importância das atitudes favoráveis ou desfavoráveis
às instituições.
III. CONDIÇÕES POLÍTICAS E "INDICADORES". — As
teorias antes expostas oferecem indicações claras para
podermos distinguir pelo menos duas condições
importantes para a Estabilidade: a legitimidade e a
eficácia decisória. Todos os quatro autores
considerados reconhecem um papel importante, embora
não autônomo nem primário, à primeira condição: para
Almond, a "cultura cívica'' é homogênea justamente na
medida em que o regime é considerado como legítimo,
as regras de jogo são aceitas e a homogeneidade da
cultura condiciona a Estabilidade; Lipset refere-se
explicitamente à importância da legitimidade, mas
atribui-lhe um papel secundário; segundo Eckstein, a
legitimidade é importante, mas é a congruência dos
modelos de autoridade que constitui a base da própria
legitimidade; Huntington, por fim, observa
explicitamente, mas de modo muito rápido, que o
fundamento da institucionalização está no amplo
consenso e numa cultura favorável ao sistema com
baixos níveis de conflito. Pelo que respeita à eficácia
decisória, Lipset fala dela explicitamente, mas sem lhe
captar o aspecto distintivo, uma vez que a vincula
ainda ao desenvolvimento econômico; Eckstein a
inclui na própria definição de Estabilidade; Huntington
ESTABILIDADE POLÍTICA
considera-a uma conseqüência da mesma Estabilidade;
só Almond não lhe faz referência. Estas duas
dimensões do sistema político, embora considerados
relevantes, foram depois postas de lado, por se
preferirem outros fatores julgados mais aptos a
explicar a Estabilidade. Mas, ao contrário, é preciso
revalorizar a idoneidade do uso destas noções para
explicar a Estabilidade democrática: a legitimidade e a
eficácia decisória podem justamente ser consideradas
as condições políticas decisivas para a Estabilidade. Por
isso, poder-se-ia enunciar uma quinta hipótese: "é
provável que exista uma correlação positiva entre a
legitimidade e a eficácia decisória, por um lado, e a
Estabilidade, por outro". Quanto maior é a
legitimidade e mais elevada é a eficácia decisória,
tanto mais estável será um sistema político
democrático.
A legitimidade é a medida em que um sistema
político democrático é considerado merecedor de apoio
por parte dos seus membros. Não se trata de uma
definição que leve a entender a legitimidade como
simples aceitação passiva do sistema, ou então como
obediência voluntária às instituições vigentes com base
em cálculos de conveniência, ou por causa de
arraigada disposição a obedecer. Trata-se, pelo
contrário, de um conceito que leva em conta o total
dos sentimentos positivos dos cidadãos quanto às
instituições democráticas, tidas como as mais aptas a
disciplinar os conflitos e a proteger os direitos dos
membros do sistema.
São dois os aspectos da legitimidade que importa
analisar: a sua extensão e a sua intensidade, ou seja, a
proporção de membros do sistema dispostos a defender
as instituições e a profundidade desta vontade de apoio
ou, ao contrário, a profundidade do seu alheamento ao
sistema. É, contudo, assaz problemático determinar
estas duas dimensões, já que se reduzem,
essencialmente, a percepções subjetivas e, como tais,
são difíceis de captar empiricamente.
De qualquer modo, abstraindo de uma série de
problemas que se apresentam, parecem ser dois os
modos mais seguros de determinar a existência destas
dimensões da legitimidade/ilegitimidade: a adesão a
grupos contrários ao sistema e o grau de ordem civil
existente. O primeiro "indicador" pode assumir
diversas formas: participação em conspirações
revolucionárias, adesão formal a organizações opostas
ao sistema, contribuição financeira, preferência
eleitoral por partidos da oposição, ou até mesmo a
simples identificação e simpatia. Entre tais
manifestações, o percentual de votos dados a partidos
da oposição parece o "indicador" mais fácil de
evidenciar, desde que se possa verificar — como se
deveria fazer em cada caso —, se um partido
399
extremista, de direita ou de esquerda, se um partido
separatista ou um partido monárquico, num regime
republicano, são partidos contrários ao sistema no
sistema partidário considerado. Um modo de
completar este "indicador" seria o de confrontar o
percentual de votos atribuídos aos partidos contrários
ao sistema com o percentual dos votos obtidos pelos
partidos a ele favoráveis.
O outro "indicador" nos é dado pelo quantum de
ordem/desordem que existe, concretizado na
freqüência de greves gerais ou políticas, nas
manifestações de rua respeitantes a temas de público
interesse, nos choques entre grupos de extremistas ou
entre estes e a polícia, em delitos políticos e em outras
expressões semelhantes de negação das instituições
democráticas.
A eficácia decisória, a outra das condições da
Estabilidade democrática, apresenta problemas
empíricos ainda mais difíceis de solucionar. Eficácia
se define como a propriedade que um sistema político
tem de tomar e executar com prontidão decisões
importantes, em resposta a desafios políticos. São
vários os elementos de relevância neste caso: desde o
número das pessoas que representam o desafio, à
importância do grupo e à força do repto, pela sua
repercussão em todo o sistema político. Mas sem
menosprezar, por outro lado, a importância da
existência de elites hábeis e capazes de obter um
rendimento satisfatório do sistema.
Existem, aliás, estreitas relações entre eficácia
decisória e legitimidade, quando menos por uma
tríplice ordem de fatores. É claro, antes de tudo, que
só um sistema político eficaz, que saiba responder e
dar satisfação às exigências dos seus membros,
conseguirá, com o tempo, manter ou ampliar a sua
legitimidade. A ineficácia se reflete no apoio,
corroendo-o até reduzi-lo ao nível de defesa; mas um
sistema eficaz cria um apoio cada vez mais vasto. Em
segundo lugar, se um sistema é, de si, pouco legítimo,
acontecerá que a eficácia terá cada vez maior
importância na manutenção do sistema. Bastarão
algumas decisões ineficazes para pôr em dúvida a
sobrevivência do mesmo sistema, porque elas
produzirão uma certa erosão, embora pequena, no
apoio já baixo. Finalmente, para se poder verificar se
uma decisão é eficaz ou não, será necessário ver seus
efeitos sobre os membros do sistema e poder avaliar o
grau de satisfação por eles expresso. A satisfação se
traduzirá, como é óbvio, em apoio ao sistema.
É devido à existência de tão estreitas relações entre
legitimidade e eficácia que alguns autores, ao
encararem o problema dos indicadores, consideraram
os de legitimidade como indicadores indiretos de
eficácia. Por outro lado, é extrema-
400
ESTABILIDADE POLÍTICA
mente difícil encontrar outros elementos que se
possam considerar "indicadores" aceitáveis desta
condição de Estabilidade. Por enquanto só se pode
indicar três fatores que talvez ofereçam sugestões úteis
sobre a eficácia do sistema político considerado: a) a
regularidade e freqüência de rotatividade no cargo
das pessoas que ocupam postos fundamentais no
sistema político, sobretudo no Governo; substituições
muito freqüentes dos titulares de tais cargos dão
origem, em si, a que nenhuma linha política possa ser
seriamente seguida e nenhuma decisão importante
levada a termo, com a provável conseqüência de uma
menor eficácia do. sistema político; b) o "quantum" de
dissenso existente dentro da elite do poder: a uma
maior discordância corresponde muitas vezes uma
menor probabilidade de se tomar decisões idôneas em
tempo útil e uma maior proba bilidade de só se chegar
a soluções de compromisso que, contentando a todos,
nada resolvem; c) o funcionamento de processos
decisórios "normais" ou não, ou seja, as decisões são
tomadas habitualmente segundo formalidades
padronizadas e em conformidade com as normas
previstas, ou então só são adotadas em decorrência do
recurso a meios extraordinários, por existir um iter
decisório cheio de obstáculos, complicado, às vezes
impedido e sempre avaro; com efeito, se existir um
processo decisório irregular e for difícil tomar rápidas
decisões, o sistema tornar-se-á provavelmente menos
eficaz, uma vez que as decisões serão tomadas com
atraso e em número aquém do necessário. Embora de
difícil verificação empírica, estes três elementos
parecem, bem consideradas as coisas, mais facilmente
identificáveis que outros, sobretudo se especificados e
aprofundados. São bastante evidentes as dificuldades
que é preciso superar, quando se enfrentam os
numerosos problemas respeitantes ao estudo deste
tema. Elas se tornam de todo insuperáveis se se
examina outra das condições da Estabilidade dos
sistemas políticos, em geral completamente ignorada
dos autores que se ocuparam, do problema: papel,
efeitos e incidência dos fatores internacionais. Mesmo
sendo claríssima a importância desta condição, a
impossibilidade de formular qualquer generalização é
que fez dela um elemento deixado de parte. Só se pode
estabelecer que até o sistema mais estável pode cair
devido à intervenção de uma potência estrangeira ou
de uma conjuntura internacional desfavorável, ou,
pelo contrário, que o sistema político mais instável
pode manter-se anos a fio, se sustentado por uma
potência estrangeira ou por uma situação internacional
favorável. É por isso que esta condição se inclui, em
geral, na conhecida cláusula coeteris paribus.
Finalmente, é mister esclarecer que a mobilização
social e o desenvolvimento econômico não foram
enumerados entre as condições de Estabilidade, não só
porque aqui só se examinaram as condições políticas,
como também porque se trata de fenômenos que não
possuem uma importância direta, mas apenas indireta,
para a Estabilidade. De um lado, de fato, a
mobilização social, tanto em seus diversos aspectos,
como nos complexos processos que põe em
movimento, é indubitavelmente decisiva para a
legitimidade do sistema político; de outro, o
desenvolvimento econômico, traduzido no quantum
em recursos materiais que existe num sistema, é
também, por sua vez, sumamente importante para uma
maior eficácia decisória. Por isso, entre mobilização
social e legitimidade, entre desenvolvimento
econômico e eficácia decisória existem correlações
diretas que não se dão, ao contrário, entre os
sobreditos processos sócio-econômicos e a
Estabilidade.
IV. PERSPECTIVAS DE ANÁLISE. — O tema da
Estabilidade é um tema que é preciso aprofundar em
seus vários aspectos e de que, se é difícil coligir os
resultados alcançados, é bastante simples indicar as
perspectivas de análise. A nível teórico da formulação
das hipóteses gerais, é preciso resolver melhor as
querelas existentes entre os que preferem uma
definição assaz ampla de Estabilidade, aceitando como
dimensões desse conceito aquelas que poderiam ser
consideradas apenas como "condições de ocorrência",
e os que, ao invés, optam por uma definição mais
circunscrita. Em segundo lugar, é necessário ir mais
além na própria individualização das condições e na
investigação empírica dos fenômenos da legitimidade
e da eficácia. Ainda a nível teórico, poder-se-ia
encarar muitos outros problemas: por exemplo, o das
relações entre Estabilidade e eficácia decisória, dado
que a eficácia também pode ser considerada como
uma conseqüência da Estabilidade e, por conseguinte,
pode existir uma relação recíproca, segundo a qual
mais Estabilidade se traduziria numa maior eficácia e
vice-versa; ou, então, sobre como distinguir, quando
se passa de um sistema a outro — o que é importante
para verificar a posteriori — a Estabilidade do
sistema.
Além disso, é preciso ter presente que a hipótese
aqui formulada num plano teórico é só uma hipótese
de trabalho para aplicação empírica, um conjunto de
conceitos formulados de tal modo que tornem possível
uma atenta e apurada comparação. Os dados é que
demonstrarão a falsidade ou não da hipótese proposta.
Enfim, o trabalho de pesquisa e aperfeiçoamento dos
indi-
ESTADO CONTEMPORÂNEO
cadores está ainda, fundamentalmente, por ser feito e
só deveria terminar quando houvesse condições de
avaliar os verdadeiros e autênticos índices de
Estabilidade dos vários países analisados.
BIBLIOGRAFIA. - G. A. ALMOND e S. VERBA. The
civic culture, Princeton University Press. Princeton
1963; R. A. DAHL, Who governs?, Yale University
Press. New Haven 1961; D. EASTON, Il sistema político
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POTIER e outros. Political stability. The Open
University. Rustington 1974.
[LEONARDO MORLINO]
Estado Contemporâneo.
I. ESTADO DE DIREITO E ESTADO SOCIAL. — Uma
definição de Estado contemporâneo envolve
numerosos problemas, derivados principalmente da
dificuldade de analisar exaustivamente as múltiplas
relações que se criaram entre o Estado e o complexo
social e de captar, depois, os seus efeitos sobre a
racionalidade interna do sistema político. Uma
abordagem que se revela particularmente útil na
investigação referente aos problemas subjacentes ao
desenvolvimento do Estado contemporâneo é a da
análise da difícil coexistência das formas do Estado de
direito com os conteúdos do Estado social.
Os direitos fundamentais representam a tradicional
tutela das liberdades burguesas: liberdade pessoal,
política e econômica. Constituem um dique contra a
intervenção do Estado. Pelo contrário, os direitos
sociais representam direitos de participação no poder
político e na distribuição da riqueza social produzida.
A forma do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a
participação (E. Forsthoff, 1973).
Além disso, enquanto os direitos fundamentais
representam a garantia do status quo, os direitos
sociais, pelo contrário, são a priori imprevisíveis.
401
mas hão de ser sempre atendidos onde emerjam do
contexto social. Daí que a integração entre Estado de
direito e Estado social não possa dar-se a nível
constitucional, mas só a nível legislativo e
administrativo. Se os direitos fundamentais são a
garantia de uma sociedade burguesa separada do
Estado, os direitos sociais, pelo contrário, representam
a via por onde a sociedade entra no Estado,
modificando-lhe a estrutura formal.
A mudança fundamental consistiu, a partir da
segunda metade do século XIX, na gradual integração
do Estado político com a sociedade civil, que acabou
por alterar a forma jurídica do Estado, os processos de
legitimação e a estrutura da administração.
A estrutura do Estado de direito pode ser, assim,
sistematizada como:
1) Estrutura formal do sistema jurídico, garantia
das liberdades fundamentais com a aplicação da lei
geral-abstrata por parte de juizes independentes.
2) Estrutura material do sistema jurídico: liberdade
de concorrência no mercado, reconhecida no
comércio aos sujeitos da propriedade.
3) Estrutura social do sistema jurídico: a questão
social e as políticas reformistas de integração da
classe trabalhadora.
4) Estrutura política do sistema jurídico: separação
e distribuição do poder (F. Neumann, 1973).
As mudanças ocorridas na estrutura material e na
estrutura social do sistema jurídico foram origem das
transformações a nível formal e político.
II. O CAPITALISMO ORGANIZADO. — Pelos fins do
século XIX e início do século XX, ocorreram
transformações profundas na estrutura material do
Estado de direito, havendo sido radicalmente alterada
a forma da livre concorrência de mercado.
Organisierter Kapitalismus é o predicado que exprime
esta importante mudança. Na Alemanha, por exemplo,
este momento de transformação se verificou depois
dos anos 70, sendo favorecido por algumas
tendências: a) a introdução de tecnologia avançada; a
preferência dada às grandes empresas; a formação
planificada de "capital humano''; a afirmação de um
nacionalismo econômico como ideologia de
desenvolvimento; b) a legislação liberal dos anos 70
— o novo direito industrial, bancário, comercial,
acionário e da Bolsa —, que criou para tal
desenvolvimento um quadro institucional considerado
vantajoso pelos representantes dos bancos e das
empresas (H. U. Wehler, 1974). A forma da
propriedade também mudou, tornando-se
402
ESTADO CONTEMPORÂNEO
disponível através das ações da Bolsa. Ao mesmo
tempo, a anarquia da produção encontrou um primeiro
paliativo na forma de planejamento econômico
privado. Pôde-se assim assistir à formação de grandes
concentrações, que contaram com o apoio dos bancos,
mesmo que não se fundissem com eles. A tendência
estava já esboçada: as formas separadas do capital
industrial, comercial e bancário se uniram na forma do
capital financeiro, que foi a realidade histórica em que
se revelou o capitalismo organizado.
De um ponto dê vista marxista, esta mudança
profunda é que levou à formação do capital social
conjunto
{.Gesamtkapital),
que
consiste
na
concentração do capital industrial e na subsunção por
este do capital comercial, com o fim de reduzir os
tempos de circulação em que permanece fixo,
improdutivamente, o valor que tem de ser realizado.
A presença de fortes concentrações industriais
converteu-se em presença de um grupo de pressão,
capaz de influir na política interna, como o
demonstrou, por exemplo, na Alemanha, a formação
de uma política de proteção aduaneira.
A relação Estado-economia foi, pois, modificada
com a constituição do capital financeiro e não pode
consistir mais, como ao longo de todo o século XVIII,
na estranheza da política ao intercâmbio do mercado.
O paradigma mudou: a política econômica do Estado
interfere agora diretamente, não só através de medidas
protecionistas em relação ao capital monopólico, mas
também das manobras monetárias do Banco Central e,
pouco a pouco, mediante a criação de condições infraestruturais favoráveis à valorização do capital
industrial. De um ponto de vista teórico, isto implica a
passagem da economia política à análise e crítica da
política econômica do Estado.
A diversa estrutura material altera, pois, a lógica da
política estatal, já que, a um Estado que antes
contribuiu, durante todo o século XVIII, para a criação
da forma-mercado, não só das mercadorias, mas
também do trabalho, do dinheiro e da terra (K.
Polany), e depois se limitou a garantir formalmente,
desde fora, a estrutura da livre-troca, sucede agora um
Estado que intervém ativamente dentro do processo de
valorização capitalista. Mas a mudança atinge não só a
política econômica, como também as funções
tradicionais do Estado de direito. Foi F. Neumann
quem analisou as transformações da função da lei em
face do capitalismo organizado. A lei geral, abstrata,
correspondia formalmente a uma situação de mercado
onde os sujeitos realizavam a permuta livremente, em
condições paritárias. A diversificação do capital em
setores monopólicos e
em setores ainda concorrenciais reclama, ao contrário,
intervenção legislativa ad hoc.
Mas esta possibilidade se revela de pronto
irrealizável, já que no Parlamento se acham presentes
os partidos da classe trabalhadora que poderiam impor
um controle "democrático" da economia, a que se
oporiam os partidos que defendera tradicionalmente os
interesses do capital contra o trabalho. Daí se seguiu o
esvaziamento da função legislativa e a reorganização
do comando político, que começou a desviar-se para
outros centros do aparelho estatal. As últimas fases da
República de Weimar, por exemplo, já antes do advento
do nacional-socialismo, se caracterizaram pelo aumento
das intervenções presidenciais, sob forma de decretos,
e por um crescente recurso ao poder de revisão
judiciária, pelo qual o juiz podia interpretar a lei geral
e abstrata, fazendo uso de "princípios gerais"
extrajurídicos,
particularmente
nos
dissídios
trabalhistas e na regulamentação da concorrência de
mercado. Isto representava um retorno ao
jusnaturalismo, não de feição progressista como o havia
sido para a burguesia em ascensão nos séculos XVII e
XVIII, mas de feição conservadora. Para além de
qualquer confronto histórico, pode-se, contudo,
afirmar que a tendência evidenciada por Neumann
representa um caminho irreversível do Estado
contemporâneo, um caminho que o levou a esvaziar
progressivamente o poder legislativo em prol de uma
organização corporativa do poder, baseada na
crescente
funcionalização
das
agencies
da
administração, tendo em vista os diversos setores do
capital (J. Hirsch, J. O'Connor).
III. O PODER LEGAL-RACIONAL. — A uma sociedade
estruturada com base nos automatismos do mercado
corresponde um certo tipo de poder, que Weber define
como legal-racional, e um certo modo de transmissão
dos comandos concretos. Poder é a possibilidade de
contar com a obediência a ordens específicas por parte
de um determinado grupo de pessoas. Todo poder
carece do aparelho administrativo para a execução das
suas determinações. O que legitima o poder não é
tanto, ou não é só, uma motivação afetiva ou racional
relativa ao valor: a esta se junta a crença na sua
legitimidade. O poder do Estado de direito é racional
quando, escreve Weber, "se apóia na crença da
legalidade dos ordenamentos estatuídos e do direito
daqueles que foram chamados a exercer o poder".
Assim, a fé na legitimidade se resolve em fé na
legalidade, e a legitimação da administração que
transmite o comando político é uma legitimação legal.
A lógica desta racionalidade administrativa é própria
do Estado de direito; como execução da lei geral, ela
se
ESTADO CONTEMPORÂNEO
desenvolve segundo um esquema do tipo "se. . . então".
N. Luhmann leva até às últimas conseqüências as
premissas weberianas e, dentro de um esquema
sistemático, apresenta a hipótese de um tipo de
legitimação que se operaria através do processo
eleitoral, legislativo, judiciário e administrativo
(Legitimation durch Verfahren). Este tipo de lógica de
tipo hipotético-dedutivo, que remete o caso particular à
lei geral, será profundamente alterado pelas
modificações ocorridas no seio da sociedade civil.
Weber distingue algumas das características
principais do poder legal-racional: caráter impessoal,
hierarquia dos cargos (v. PODER) e, finalmente,
competência, ou seja, posse por parte dos funcionários
de um saber especializado. Parece assim evidente que
a crença na legitimidade, que se resolvera em crença
na legalidade, revela-se, em última instância, como fé
no saber especializado do aparelho administrativo.
Mas tratava-se ainda da estrutura formal,
correspondente a uma economia de mercado
concorrencial. Weber não podia prever as
transformações do aparelho administrativo nem a
nova racionalidade, não mais de tipo legal-racional,
que uma sociedade civil tornada mais complexa havia
de impor.
IV. O PROBLEMA SOCIAL DO ESTADO
CONTEMPORÂNEO. — A "questão social" que eclodiu
na segunda metade do século XIX colheu de surpresa
a burguesia, impondo-se-lhe como o problema
principal a que ela devia fazer frente e que ainda
continua sendo o problema sem solução do Estado
moderno.
Em 1601, na Inglaterra, foi promulgada a Poor Law;
mas esta lei, que instituía uma taxa para os pobres e
um sistema de subsídios em dinheiro, constituiu mais
uma tentativa de eliminação dos pobres do que de
eliminação da pobreza. Toda comunidade que tinha de
prover ao sustento dos seus pobres procurou, na
realidade, expulsá-los e deixar entrar o menor número
possível. Até o início do século XIX, a tarefa
assistencial era confiada às corporações de artes e
ofícios. O fim das corporações foi levada avante pelas
sociedades de socorro mútuo, às quais cabiam também
atribuições previdenciárias. Ao fim, a previdência
social se impôs como uma necessidade em face dos
riscos acarreados pela Revolução Industrial, que
trouxe aos trabalhadores condições de maior pobreza e
os relegou em vastos aglomerados urbanos, privados
dos laços de solidariedade que encontravam na
comunidade rural.
A "questão social", surgida como efeito da
Revolução Industrial, representou o fim de uma
concepção orgânica da sociedade e do Estado, típica
da filosofia hegeliana, e não permitiu que
403
a unidade da formação econômico-política pudesse ser
assegurada pelo desenvolvimento autônomo da
sociedade, com a simples garantia da intervenção
política de "polícia".
Impôs-se, em vez disso, a necessidade de uma
tecnologia social que determinasse as causas das
divisões sociais e tratasse de lhes remediar, mediante
adequadas intervenções de reforma social. Se a
Inglaterra, já antes de 1900, tinha posto em prática uma
avançada legislação da atividade fabril, a Alemanha de
Bismarck, em vez disso, levou a cabo uma articulada
série de intervenções, visando pôr em ação um sistema
de previdência social que viria a concretizar-se entre
1883 e 1889, com os primeiros programas de seguro
obrigatório contra a doença, a velhice e a invalidez.
Assim como a legislação da atividade fabril inglesa
teve também ampla aplicação no exterior, também o
sistema de previdência social alemão encontrou vasta
imitação. A Dinamarca aplicou as disposições
pensionistas entre 1891 e 1898; a Bélgica, entre 1894 e
1903. A Suíça, com uma Emenda constitucional,
permitiu, em 1890, que o Governo federal organizasse
um sistema de seguro nacional.
A obra de Bismarck encontrou firme apoio na
Constituição, em 1873, do Verein für Sozialpolitik,
fundado por G. von Schmoller, que reunia "sob uma
mesma bandeira todos aqueles que, concordes sobre a
urgência de reformas sociais e prontos a trabalhar por
elas, estavam decididos a meter mãos à obra, com
plena convicção". O Verein estava na origem daquela
ideologia conhecida com o nome de socialismo de
cátedra que, moldada num método histórico de
economia, foi o primeiro esforço, mais que o
marginalismo, de oposição por parte do Estado
legislativo de direito à difusão do marxismo na
Europa.
Foi certamente por este caminho que se começou a
abrir, dificultosamente, uma alternativa ao liberalismo:
nasceu, de fato, em fins do século XIX, o Estado
interventivo, cada vez mais envolvido no
financiamento e administração de programas de seguro
social. As primeiras formas de Welfare visavam, na
realidade, a contrastar o avanço do socialismo,
procurando criar a dependência do trabalhador ao
Estado, mas, ao mesmo tempo, deram origem a
algumas formas de política econômica, destinadas a
modificar irreversivelmente a face do Estado
contemporâneo. A lei que instituía pensões de
invalidez e velhice, aprovada na Alemanha em 1889,
permitia uma contribuição de 50 marcos, por conta do
Tesouro imperial, para toda pessoa que recebesse uma
pensão. Depois, os seguros sociais, que se tornaram
também extensivos a outras categorias de
trabalhadores, e não só aos operários,
404
ESTADO CONTEMPORÂNEO
constituíram uma forma de redistribuição da renda
entre os núcleos familiares. Mas, para isso, foi-se
impondo, de modo progressivo, cada vez mais
acentuadamente, a intervenção financeira do Estado.
V. O ESTADO FISCAL. — R. Goldscheid pôs em
relevo a tendência histórica a um progressivo
empobrecimento do Estado, já que a burguesia
conseguiu criar um Estado dependente, no que respeita
à disponibilidade financeira, às suas concessões. Se na
época do Estado absoluto os que detinham o poder
representavam igualmente o Estado, e a riqueza do
Estado era a sua riqueza, na época do Governo
constitucional, ao contrário, o Estado e a propriedade
se separaram. Esta separação originou a dependência
— a dependência fiscal — do Estado à sociedade. O
problema do Estado parece ser, nesse caso, o da sua
"recapitalização", baseada nos impostos fiscais, ou
seja, o da acumulação e concentração de capital de
propriedades públicas, que permitirá a solução dos
mais urgentes problemas sociais. E. Forsthoff vê no
Estado fiscal a possibilidade de uma síntese entre
Estado de direito e Estado social; fica, de fato,
inalterada a estrutura de posse e, ao mesmo tempo,
realiza-se uma redistribuição da renda capaz de
resolver as múltiplas manifestações das instâncias
sociais.
Por este caminho, a ciência das finanças culminará
numa teoria da propriedade pública. As finanças
públicas começarão assim a adquirir um papel central
na análise do Estado, uma vez que nelas se sintetiza a
relação do "político" com a sociedade civil ("todo
problema social é um problema financeiro", escrevia
Goldscheid no início deste século). A sociologia das
finanças se impõe efetivamente, como a abordagem
que pode indagar a dependência do Estado das
estruturas sociais.
Aquilo que pode fundamentar o Estado fiscal é a
poupança; mas hão de ser definidos os limites dentro
dos quais se pode desenvolver a arrecadação fiscal do
Estado, para não anular o interesse financeiro dos
empreendedores no processo produtivo.
O debate sobre o Estado fiscal nos começos deste
século reflete as transformações operadas na estrutura
material e social do Estado de direito. Reconhece-se
assim a necessidade da "recapitalização" do Estado
para prover à satisfação das exigências sociais, e se
discute a possibilidade da transformação do livre jogo
concorrencial das forças do mercado (J. Schumpeter,
1918).
Trata-se, pois, de definir, de um lado, a extensão
permitida à imposição direta e de analisar, do outro, as
possibilidades
concretas
de
constituição
e
desenvolvimento de um Estado empresarial, capaz de
dirigir empresas públicas: mas isso
deixa entrever uma crise na lógica que preside à
forma-mercado. O Estado fiscal se encontra perante
dois limites: o primeiro representado pela natureza do
objeto fiscal (em virtude da qual a imposição direta
pode gravar mais a renda e o capital monopólico do
que a empresa concorrencial) e pelos vínculos da
manutenção de uma economia livre; o segundo
constituído pela possibilidade de um incremento
incontrolável da demanda de despesas públicas, capaz
de motivar o colapso do Estado fiscal. Schumpeter
identificou, já nos primeiros decênios deste século, a
razão principal da crise do Estado contemporâneo, ao
escrever: "é o momento da empresa privada. .. e, com
a empresa privada, é também b momento do Estado
fiscal", mas "a sociedade está crescendo e indo mais
além da empresa privada e do Estado fiscal"
(Schumpeter, 1918, p. 371).
VI. A TEORIA MARXISTA DO ESTADO. — Na recente
teoria marxista, o Estado é concebido como uma
dedução (Ableitung) da lógica da valorização do
capital. O enfoque metodológico geralmente seguido
nestes processos dedutivos é "genético" e "funcional":
genético, quando se indaga a origem histórica das
funções do Estado, que está nos conflitos entre as
classes sociais ou na contradição que opõe os diversos
setores do capital; funcional, quando se verifica se as
tarefas historicamente criadas, a que o Estado deve
presidir, resolvem-se ou não numa relação de
funcionalidade com os processos de valorização da
estrutura capitalista.
É possível distinguir quatro funções fundamentais
entre as desempenhadas pelo Estado contemporâneo: a)
criação das condições materiais genéricas da produção
(infra-estrutura); b) determinação e salvaguarda do
sistema geral das leis que compreendem as relações
dos sujeitos jurídicos na sociedade capitalista; c)
regulamentação dos conflitos entre trabalho
assalariado e capital; d) segurança e expansão do
capital nacional total no mercado capitalista mundial
(E. Altvater, 1979).
Se A. Smith e D. Ricardo limitavam as funções do
Estado à manutenção das instituições militares,
policiais, educativas e judiciárias, deixando o resto ao
"natural" desenrolar da lógica do mercado, as funções
acima delineadas expressam, ao invés, claramente a
presença do Estado no processo de acumulação.
Do ponto de vista marxista, este processo se
explica pelo progressivo aumento da complexidade do
processo de produção: o desenvolvimento capitalista se
tornou mais dependente da ciência e da técnica, a
divisão do trabalho se acentuou
ESTADO CONTEMPORÂNEO
ainda mais e os serviços laborais se tornaram mais
especializados. O setor rebocador do desenvolvimento
econômico — o do capital monopólico — exige
crescentes investimentos infra-estruturais (capital
social, segundo O'Connor) no campo da pesquisa e do
desenvolvimento, nos transportes e na qualificação da
força-trabalho.
A intervenção do Estado adquire assim um sentido
preciso, já que tende a socializar, isto é, a impor a toda
sociedade civil o peso da valorização exclusiva do
setor econômico mais desenvolvido. Por este meio, o
Estado fornece uma cota de capital constante, que
contribui para frear a queda da taxa média de lucro.
Está aqui a origem daquele aumento da despesa
pública que já A. Wagner punha em evidência no
início do século, ao formular teoricamente a "lei do
crescimento da atividade estatal" (Das Gesetz der
zunchmenden Staattätigkeit, in Handwörterbuch der
Staatswissenschajten, vol. 7, 1911).
Parece aqui evidente que a política econômica do
Estado (composta da política monetária, fiscal e
social) subordina-se progressivamente à lógica da
valorização de um dos setores do "capital global". É
possível distinguir também a constituição de um
"complexo
político-industrial",
formado
pela
articulação da autoridade política com os interesses da
valorização do capital. Daí o conseqüente fim da
forma-mercado e a criação de um sistema, dentro do
qual operam, de modo complementar, duas lógicas
formalmente diversas: a do capital, de tipo
quantitativo, que tenta a criação e a realização do
lucro, e a do Estado, de tipo qualitativo, que não
produz mercadorias (valores de troca) para o mercado,
mas sim valores de uso, que podem compreender
contribuições de uso vário, da criação de infraestruturas à "qualificação" da força-trabalho, e que
representam as condições gerais da valorização do
capital.
Mas a intervenção do Estado, que, historicamente,
exerce primeiro a função de mera garantia formal do
funcionamento da concorrência mercantil e, depois, a
do aprontamento de políticas econômicas claramente
orientadas à valorização do capital, apresenta
contradições dificilmente superáveis: a orientação
pública favorável à acumulação põe de fato o problema
da legitimação dessa intervenção. O'Connor reconhece
assim na acumulação e na legitimação as duas funções
a que deve presidir a ação pública. Mas trata-se de
uma problemática repetida em outros autores
(Habermas, Offe), que dão particular relevo ao modo
como a ruptura dos automatismos da permuta e, com
ela, também a crise da forma-mercado, como meio da
integração ideológica na sociedade liberal como
fundamento dos valores de "igualdade" e "liberdade",
representam a
405
condição insanável da crise de legitimação do Estado
contemporâneo. A legitimação não pode assentar na
crença da legalidade, como acontece em Weber; a lei
universal e abstrata não pode mais referir-se a um
contexto econômico e social profundamente não
homogêneo e, por isso, a sua aplicação se realiza
através de processos administrativos cada vez mais
funcionalmente adaptados a claros interesses, que vão
surgindo num aparelho produtivo amplamente
diversificado. A legitimação da autoridade política do
Estado tem de buscar outro fundamento.
Segundo O'Connor, a crise de legitimação se
apresenta como crise fiscal do Estado, ou seja, como
incapacidade da autoridade política em enfrentar a
situação contraditória dos interesses do grande capital
e da força-trabalho marginal, existentes dentro do
corpo social. As despesas públicas não conseguem
prover, devido à diferença crescente entre as saídas
necessárias e as entradas insuficientes, à distribuição
de recursos que satisfaçam as aspirações de uma área
cada vez mais vasta de indivíduos, cuja reprodução
social só pode ser esperada da expansão das despesas
sociais por parte do Estado. A crise fiscal, junto com a
crise da legitimação, se revela, portanto, como uma
crise social, como uma crise do Estado de segurança
social.
A crescente integração de Estado e sociedade civil
— ou seja, a extensão das políticas tendentes a
assegurar o equilíbrio dos interesses emergentes —
encontra na análise das despesas públicas o
instrumento privilegiado da pesquisa, destinada a
esclarecer o alcance e resultado da estreita articulação
do Estado e da sociedade. Mas a análise da política
não é ainda a análise do político, ou seja, das
estruturas institucionais do Estado. Contudo, partindo
do fundamento da política, poder-se-ão indagar as
transformações históricas do político e seu nível de
adequação funcional à nova complexidade da
sociedade civil.
VII. A CRISE DA PLANIFICAÇÃO POLÍTICA.
— O consolidar-se de uma sociedade complexa altera
os princípios fundamentais do Estado de direito. A
complexidade é conseqüência, por um lado, da
diversificação do aparelho produtivo em três setores
(monopólio, concorrencial e estatal) e da conseqüente
segmentação do mercado de trabalho; por outro, da
multiplicação de aspirações, necessidades e
comportamentos no campo da reprodução da forçatrabalho, a que há de corresponder uma ação política
profundamente diversificada. Ao tradicional aparelho
político-representativo do Estado agregam-se assim
funções econômicas, orientadas à valorização dos
diversos setores do capital, ou seja, do capital global, e
funções sociais,
406
ESTADO CONTEMPORÂNEO
tendentes a assegurar, através das várias formas da
política social, a integração da força-trabalho no
equilíbrio do sistema político-econômico.
Esta mudança de conotações nas relações entre
"político" e "econômico" foi a origem da crise dos
princípios fundamentais do Estado legislativo de
direito: a) do princípio da supremacia do poder
legislativo; b) da legalidade da atividade executiva do
Estado, que há de dar-se segundo as formas
preestabelecidas da lei universal e abstrata; c) do
controle de legitimidade, isto é, da conformidade com
a lei, exercido pela atividade judiciária.
A economicização e a socialização do Estado
acabam na privatização do seu aparelho ou
administração, expressa na forma de uma crescente
autonomia em relação ao poder do Parlamento e na
subordinação a grupos específicos de interesse. Como
escreve J. Hirsch, é possível verificar uma certa
apropriação de funções públicas por parte de
determinados setores industriais, que se revela também
como possibilidade de unificação de alguns níveis
organizacionais da burocracia de Estado e da grande
indústria privada e se resolve com a tradução dos
conflitos entre os diversos setores econômicos da
administração. Resulta daí que a intervenção do Estado
já não consegue realizar uma planificação global, cada
vez mais substituída por um tipo de planificação por
projetos, que tem como fim as necessidades das
grandes empresas. Como adverte ainda J. Hirsch, a
estrutura administrativa parece distribuída em agências
que visam à satisfação de interesses setoriais. Não se
podendo realizar uma planificação de toda a estrutura
produtiva, a única prática administrativa possível no
que toca às decisões consiste numa coordenação
negativa (F. Scharpf, 1973) das possíveis decisões a
tomar, isto é, as agências se limitam a excluir aquelas
decisões que poderiam criar efeitos negativos nos
setores a que se referem. Esboça-se assim uma
contradição real entre as decisões tomadas por projetos,
motivadas por um certo setor produtivo, e a sociedade
global, cujas relações não podem ser separadas: a
complexidade dos fenômenos reciprocamente interrelacionados se decompõe numa multiplicidade de
pólos decisórios administrativos, mas sem um centro
unificante que a possa abranger globalmente. Entre a
decisão político-administrativa e o "conjunto" da
sociedade existe um gap, um déficit informativo que
remonta, em última instância, ao conflito dos
interesses setoriais. Só coordenação negativa,
nenhuma possibilidade de coordenação política
positiva. O plano parece impossível. Só é possível a
contradição entre agências condicionadas por
específicos interesses setoriais.
O Parlamento parece esvaziado de toda capacidade
de decisão política que não seja a mera indicação de
critérios sumamente genéricos, cuja aplicação é deixada
aos múltiplos sistemas administrativo-industriais.
Como escreve Luhmann, aparentemente se transmudou
o processo das decisões do alto para baixo, porquanto
faltam ao debate parlamentar as informações que
permitiriam tomar decisões. Impõe-se, assim, a
consolidação de um centro de poder administrativoindustrial que vai esvaziando as formas tradicionais do
sistema político representativo burguês. O princípio da
preeminência do poder legislativo surge aqui destituído
de fundamento, visto haver ocorrido um desvio do
poder do Parlamento para o aparelho burocrático e a
autonomia do executivo. Esta transformação se explica
pela necessidade de criar estruturas organizacionais e
formas de intervenção flexíveis, livres das rígidas
formas normativas do Estado de direito: isto representa
a crise da legalidade da atividade executiva, cada vez
menos condicionada pela forma da lei e cada vez mais
desempenhada mediante procedimentos informais,
subtraídos a qualquer controle de legitimidade.
A intervenção do Estado na economia não chega a
exprimir qualquer princípio de autoridade: pelo
contrário, são os diversos capitais que se apoderam do
aparelho burocrático administrativo e tornam
impossível qualquer forma de planificação política. A
este nível não parece, portanto, possível reconhecer
nenhuma "autonomia ao político".
VIII. o ESTADO DE VIGILÂNCIA E CONTROLE. — Se as
funções do Estado com relação à estrutura econômica
revelam subordinação da autoridade política à lógica
dos processos produtivos, o desenvolvimento das
formas do "político" com relação às necessidades de
reprodução da força-trabalho parece, pelo contrário,
diverso.
Sob este ângulo, poderemos assim esquematizar as
funções tradicionalmente desempenhadas pelo Estado:
1) predisposição das condições materiais da
reprodução (proteção do trabalho, segurança social,
assistência sanitária, etc); 2) criação de motivações
consentâneas com o processo do trabalho (dispositivos
ideológicos, estabilização da família como agente
essencial do processo de socialização burguesa); 3)
regulamentação da oferta da força-trabalho (função
intermediária do sistema de formação profissional,
qualificação e requalificação, mobilidade, seleção, etc.)
(Offe-Lenhardt, 1979). Estas funções mostram
claramente como a intervenção do Estado é sempre
complementar à permutabilidade da força-trabalho
como mercadoria de mercado. É verdade que o
capitalismo "libertou" a força-trabalho, mas não
definiu
ESTADO CONTEMPORÂNEO
a qualidade e quantidade de trabalho que há de entrar
no processo de produção; é esta regulamentação,
precisamente da incumbência do Estado. Contudo, é
possível identificar algumas tendências nas sociedades
de capitalismo maduro, capazes de alterar essa relação
de complementaridade que existe entre o Estado e a
reprodução da força-trabalho.
De fato, o cumprimento das funções estatais que
interferem no processo de produção dá-se mediante a
expansão de um tipo de trabalho concreto, remunerado
com a renda e não com um salário: um trabalho cujo
produto não são mercadorias, mas resultados precisos,
valores de uso que são consumidos e não trocados no
mercado (pensemos, por exemplo, na qualificação da
força-trabalho).
Ao mesmo tempo, a estrutura setorial do aparelho
econômico está penetrada por uma clara tendência do
mercado do trabalho, que se resume numa
"desocupação tecnológica" cada vez mais vasta,
provocada pelas inovações técnico-científicas do
capital monopólico, e na existência de elementos no
mercado do trabalho que, em razão do baixo nível da
retribuição salarial, acabam por depender cada vez
mais do aparelho de segurança social do Estado.
Surgem assim desenvolvimentos orientados à
progressiva subtração da força-trabalho da forma
tradicional da integração ideológica no Estado
capitalista, isto é, da forma-mercado, já que vastos
setores de força-trabalho tendem a não se referir mais a
si mesmos como a uma mercadoria, mas elaboram uma
espécie de identificação com a substância e as
condições do trabalho, ou então realçam modalidades
antiintelectuais, que representam um retorno a modos
instintivos que se opõem à lógica da organização do
trabalho (D. Bell).
O Estado não pode, portanto, limitar-se a criar
políticas
sociais
tendentes
a
assegurar
complementarmente a integração do mercado. Pelo
contrário, tem de fazer face à perda de controle social,
que se manifesta essencialmente como crise de
motivação (J. Habermas, 1975) em relação aos valores
tradicionais do individualismo e do profissionalismo,
pondo em ação uma ampla rede de vigilância e
controle, que compreenda, não só a ampliação do
aparelho policial, como também o incremento de
vastos setores do chamado trabalho social
(conselheiros familiares, centros de preparação
profissional, alojamento, círculos juvenis, etc),
capazes de remediar a perda das motivações que eram
tradicionalmente ministradas pela família. Também se
pode perceber facilmente como, por este caminho, a
teoria do Estado se há de converter numa teoria do
poder, apta a abranger toda a extensão da rede
407
disciplinar descentralizada que o Estado põe em ação
para assegurar a integração social do indivíduo: isto
implica a necessidade de um enriquecimento temático
e categórico da teoria tradicional do Estado, tanto da
parte burguesa como marxista.
Como vimos, o processo de valorização do capital
requer a constituição de funções do Estado que se
manifestam fundamentalmente através de um trabalho
concreto, ou seja, através da conquista de objetivos
precisos, baseados em critérios, não apenas
quantitativos, mas sobretudo qualitativos. Trata-se,
com efeito, de estabelecer as prioridades, a
distribuição de custos, os reflexos sobre o emprego, os
incentivos, os subsídios, etc. Mas daí resultará —
como escreve C. Offe — que, quanto mais a política
se fizer concreta, tanto mais se multiplicarão os
conflitos e se acentuarão os efeitos da polarização.
Estará assim aberto o caminho à crise política, devido
à incapacidade de coordenar todos os interesses do
complexo social; além disso, surgirá para o Estado o
problema da legitimação, ou seja, do consenso acerca
dos critérios qualitativos que orientam suas
intervenções.
O esquema analítico evidenciou, portanto, dois
desenvolvimentos: o primeiro, patenteado na relação
estrutura produtiva-segmentação da administração, da
qual deriva a impossibilidade do plano político; o
segundo, constituído pela expansão, dentro do
aparelho estatal, do trabalho concreto, e, dentro do
mercado de trabalho, pela nova composição e pelos
novos comportamentos da força-trabalho, que abrem
caminho à crise da motivação do indivíduo e à crise
da legitimação do poder político.
IX. OS CRITÉRIOS DA RACIONALIDADE
ADMINISTRATIVA. A "POLITICIZAÇÃO" DA
ADMINISTRAÇÃO.
A progressiva subtração da reprodução da forçatrabalho ao controle social cria o problema de um novo
assentimento às políticas de intervenção do Estado.
Cabia tradicionalmente à política a incumbência de
garantir o consenso à ação executiva da administração
(N. Luhmann). Agora, pelo contrário, parece cada vez
mais claro que a relação política-administração se
alterou inteiramente. De fato, a racionalidade
weberiana, que é a racionalidade do Estado de direito,
é incompatível com a nova racionalidade, que tem de
compor as solicitações do ambiente com a lógica
legal-racional do sistema político. Se o modelo do
poder weberiano se funda na conformidade das ações
administrativas com as normas jurídicas, no Estado
social, pelo contrário, como escreve C. Offe, as
premissas da ação são resultados concretos, isto é, "o
objetivo que a prática administrativa tem em vista
vale como primeiro critério
408
ESTADO CONTEMPORÂNEO
de juízo a respeito das decisões e ações no âmbito da
administração: dos objetivos propostos dependem os
inputs que hão de ser produzidos e aplicados" (C. Offe,
1974, p. 336). É daí que se origina a contradição
fundamental que envolve hoje a lógica da racionalidade
administrativa, porquanto, por um lado, ela deve
conformar-se com as normas, por outro, tem de estar
orientada para fins precisos. A nova racionalidade
administrativa se compreende levando cm conta a
tendência da administração para a "politicização",
porquanto é a ela que agora incumbe a tarefa de
assegurar a legitimação da decisão política: não uma
legitimação legal, mas uma legitimação de tipo sublegal,
baseada em processos empíricos de busca do consenso
(sobretudo a distribuição de dinheiro).
X. LEGITIMAÇÃO POR PROCEDIMENTO. — Também
Luhmann reconhece a tendência da administração para
a
"politicização",
apresentando-a
como
desenvolvimento contraditório no seio do sistema
político.
Este sistema se subdivide, segundo Luhmann, no
subsistema dos partidos e no subsistema
administrativo, que compreende o legislativo, o
executivo e o judiciário.
As categorias fundamentais do pensamento
politológico de N. Luhmann são as de complexidade e
contingência. Complexidade é o conjunto das
possibilidades de ação que se abrem ao indivíduo numa
sociedade de capitalismo maduro; contingência é o
âmbito das possibilidades de ação "limitadas" ou
permitidas ao indivíduo. O sistema político "reduz" a
complexidade do sistema social, com o fim de garantir
a própria "estabilidade". Segundo N. Luhmann, é o
"político", por exemplo, que define os "temas" sobre
os quais se deverá formar a opinião pública; mas é
sobretudo o poder político que orienta a ação social,
controlando e transmitindo as informações necessárias
para agir de um extremo a outro do sistema social
("poder como comunicação", N. Luhmann, 1979).
Estas intervenções do "político" hão de ser
legitimadas, e isso acontece mediante quatro
procedimentos (eleitoral, legislativo, administrativo e
judiciário) (Luhmann, 1969). Os procedimentos são
"sistemas sociais de natureza particular, criados para a
elaboração de decisões obrigatórias" (Luhmann, 1977,
p. 259). O ator social é separado do próprio ambiente
ou "mundo vital" (Lebenswelt) e subordinado a
papéis, cujo fim é tornar pública uma decisão.
Compreende-se como, desta maneira, o sistema
político reduz o indivíduo a mera variável da sua
lógica interna e acaba por legitimar a si mesmo.
O que caracteriza os procedimentos é a sua
autonomização quanto à complexidade social reduzida
pelo sistema político. Isto comporta algumas
conseqüências particularmente significativas: em
primeiro lugar, o abandono de categorias como a da
representação, já que não se trata, segundo Luhmann,
de traduzir no âmbito do sistema político a
complexidade social, mas antes de a reduzir. Daí que a
crise do Estado contemporâneo não possa ser devida a
um déficit de representação, mas tão-só, segundo o
mesmo Luhmann, a um eventual déficit de
reflexividade. Por outras palavras, o que é decisivo na
estrutura do poder político é o conhecimento das
normas que regulam os procedimentos, ou seja, dos
processos que permitem uma elaboração mais eficaz
das decisões. Em segundo lugar, a categoria "Estado" é
substituída pela categoria "sistema", uma vez que o
problema não é tanto o das relações funcionais Estadosociedade ou Estado-aparelho produtivo, como
sobretudo o da análise dos procedimentos "internos"
do sistema político. Enfim, a democracia é sacrificada
à complexidade e à redução desta como resultado dos
procedimentos do sistema político-administrativo.
XI. O ESTADO DE SEGURANÇA NACIONAL. — Na
realidade, também Luhmann reconhece as dificuldades
cada vez mais insolúveis que a legitimação por
processo encontra, dado que o procedimento
administrativo é cada vez menos o que leva a efeito as
diretrizes políticas — a política decide apenas acerca
das decisões, ou seja, apresenta as modalidades das
decisões administrativas, mas não lhes determina os
conteúdos —, e intervém no complexo social o mais das
vezes segundo critérios de oportunidade. Existe aqui
também a crise da teoria dos sistemas, já que é a
política administrativa que agora se deve tornar
passiva, isto é, adaptar-se em cada caso aos problemas
emergentes, renunciando a abranger o corpo social
dentro de procedimentos formais. Mas a crise da
legitimação por procedimento é a crise da
possibilidade de reduzir a complexidade. É cada vez
mais freqüente o poder-meio de comunicação encontrar
blocos ou fontes de poder já impossíveis de controlar,
com os quais tem de estabelecer uma nova forma de
coexistência, algo assim como um tipo de "politicismo
localista. baseado na especificidade de determinados
minissistemas" (N. Luhmann, 1979, p. 113). A nova
estrutura social que se está delineando deixa entrever
uma organização assente em núcleos cada vez mais
descentralizados, ligados por uma rede de informação
carente de um centro.
A irredutibilidade da complexidade social cria uma
dialética nova dentro do sistema político. A
ESTADO DE POLÍCIA
escapatória do filtro político, representado pelo
sistema de partidos, esvazia o regime parlamentar da
possibilidade de assegurar a lealdade de massa e
remete a legitimação do "político" a procedimentos
não legais, mas, como vimos, de tipo sublegal.
Contudo, o peso que recai, assim, sobre o Estado
administrativo, ou seja, sobre o Estado de segurança
social, parece excessivamente gravoso: não só pelos
limites estruturais que representa uma insuperável
crise fiscal, mas também pela crise da forma-mercado
como instrumento tradicional de integração, que tira a
eficácia à política social do Estado, política que
constituía uma intervenção complementar daquela
forma ideológica.
O sistema de segurança social não parece ter
condições de garantir a legitimação (sublegal) do
sistema político e o aparelho político-representativo
não possui mais a capacidade de garantir a lealdade
das massas. O sistema político deve então assumir
outra função, a da tutela da Constituição,
estabelecendo quem lhe é favorável e quem é
desfavorável, isto é, sobrepondo uma instância de
superlegalidade
política
aos
princípios
constitucionais. As funções do aparelho político
representativo não desempenham mais a tarefa de
garantir a lealdade de massa, mas a de tutela da
segurança nacional (e é este o sentido mais autentico
da categoria da "autonomia do político''). Um sistema
de superlegalidade pode, pois, sobrepor-se ao da
legalidade, à liberdade individual, isto é, ao sistema
do Estado de direito.
A oscilação entre o princípio da superlegalidade e
os critérios de uma legitimação sublegal constitui a
dialética dentro da qual se desenha a atual trajetória
do Estado contemporâneo e é o horizonte
problemático e aberto que se patenteia à pesquisa e à
reflexão politológica.
BIBLIOGRAFIA - E. ALTVATER. Note su alcuni problemi
dell untervento dello Stato (1973). in Il capitule e lo
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1979; t. FORSTHOFF. Stato di diritto in trasformazione
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Bari 1975; J. HIRSCH, Wissenschaftlich-technischer
Fortschritt und politisches System, Suhrkamp. Frankfurt
1973; N. LUHMANN. Legitimation durch Verfahren.
Luchterhand, Damstadt 1969; lá.. Sociologia del
diritto (1972). Laterza, Bari 1977; Id., Potere e
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C. OFFE, Criteri di razionalità e problemi di funzione
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409
cuidado de ALT. VÁR., La Nuova Italia, Firenze 1980;
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Suhrkamp, Frankfurt 1973;J. SCHUMPETER, Die Krise
des Steuerstaats (1918), in Die Finanzkrise des
Steuerstaats (1918), in Die Finanzkrise des
Steuerstaats. Beiträge zur politischen Ökonomie der
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Kapitalismus und Interventionsstaates in Deutschland, in
Organisierter Kapitalismus, ao cuidado de ALT. VÁR.,
Vandenhoeck U. Ruprecht, Göttingen 1974.
[GUSTAVO GOZZI]
Estado de Polícia.
I. ACEPÇÃO HISTORIOGRÁFICA E ORIGEM HISTÓRICA
CONCRETA DA "POLÍCIA". — O termo-conceito em
questão adquiriu seu significado técnico no campo
historiográfico. Isso significa que se trata de uma
expressão criada pela historiografia para indicar um
bem preciso e circunstanciado fenômeno histórico.
Ela remonta mais precisamente àqueles historiadores
constitucionais alemães da metade do século XIX que,
movidos por um compromisso político liberalburguês. correspondente ao ideal constitucional do
"Estado de direito", entenderam contrapor a este,
como fase antitética ou ao menos anterior ao
desenvolvimento histórico das formas estatais,
precisamente o "Estado de polícia".
A própria origem do termo já sugere a intenção
pejorativa com que foi inventado e usado por longo
tempo. Essa intenção se refere evidentemente à parte
aposta do termo, ou seja, a "polícia" que, na
classificação das formas de vida estatal implícita no
uso historiográfico acima indicado, devia contrapor-se
ao "direito" como dimensão não só mais limitada e
circunstanciada, mas também degenerativa em relação
a ele.
Deixando de lado as particularizações sobre o
conceito de Estado, a que, de resto, será preciso voltar
de vez em quando, convém fixar nossa atenção sobre
o conceito de "polícia" e tentar captar, em sua
evolução histórica, as razões que determinaram um
comportamento historiográfico tão unívoco como o
que acabamos de lembrar. Desse modo será possível
não só apercebermo-nos exatamente das motivações
ideológicas em que assenta o significado pejorativo
comumente atribuído ao conceito de Estado de
polícia, como também convencermo-nos de que esse
significado deve ser substituído por outro bem mais
historicamente fundado e dotado não já de
implicações
410
ESTADO DE POLÍCIA
positivas ou negativas, mas de uma mais estreita
relação com as características reais daquela forma de
Estado.
Como freqüentemente acontece na história dos
conceitos e significados, os historiadores liberais, que
criaram o termo de que nos vimos ocupando, não
erraram de todo ao identificar, na atividade de polícia,
a característica mais qualificativa da forma de Estado
anterior, na Alemanha, ao Estado de direito. Mas,
como acontece também muitas vezes, eles atribuíram a
essa atividade o significado restrito e inequivocamente
avaliativo corrente no seu tempo, ou seja, usual dentro
da concepção do Estado de direito, um significado
substancialmente
análogo
ao
significado
contemporâneo. Não nos resta, por isso, outra
alternativa senão a de percorrer de novo a história do
conceito de "polícia", para tentar descobrir qual o
significado que ele teve no âmbito da concepção e da
praxe estatal que levam justamente ao Estado de
polícia.
Não é difícil descobrir no termo grego politeia e no
latino tardo-medieval politia a origem etimológica da
moderna "polícia". Mas, tanto no pensamento grego
clássico como na sua aceitação por influência da
Escolástica (politia ordinata), o termo conserva uma
significação global e finalística, distante tanto da
compreensão contemporânea e da do século passado
(polícia entendida como setor subsidiário da atividade
do Estado, visando sobretudo à prevenção e punição
dos ilícitos, mediante o emprego de um aparelho
rígido e autoritário de investigação e intervenção),
quanto do conteúdo que lhe foi atribuído a partir do
Humanismo, na acepção peculiar de Estado de polícia.
Se, na verdade, politeia significava para Aristóteles o
ordenamento abrangente da polis — em resumo, a sua
constituição — e se, para Santo Tomás, a politia
ordinata era aquele ordenamento global da vida
terrena em que se conseguia superar o dualismo
próprio do antigo mundo cristão entre a esfera
religiosa e a mundana, para uma e outra concepção o
termo não designava o Governo mas, quando muito, a
forma de Governo, possuindo, por isso, um significado
descritivo, estático, não um significado prescritivo,
ativo.
Foi nos Estados da Renascença, na Itália, mas
principalmente na França, no Ducado de Borgonha,
que o conceito de polícia adquiriu uma imediata
importância operativa, como um instrumento preciso
nas mãos do príncipe para a consecução dos seus fins
políticos ou para o cumprimento dos seus deveres de
Estado, o que é a mesma coisa. Da Borgonha, o novo
significado passou para a Alemanha, onde obteve
difusão e sucesso, graças à particular situação
constitucional do Sacro Império Romano, reduzido, a
partir de 1500, a mero
espaço territorial e formal, onde os príncipes alemães
desenvolviam as suas ações pela conquista da
soberania.
Na França, ao invés, a police vai bem depressa
adquirindo um significado destacadamente técnico,
dentro da prematura orientação juspublicista que ali
toma a atividade do Estado, em virtude da antecipação
de várias condições constitucionais. Já terminado o
processo de unificação territorial e consolidada
efetivamente a soberania do monarca, os problemas
constitucionais que a França enfrentou a partir do
século XVII foram os da afirmação e defesa dessa
soberania contra as pertinazes forças excêntricas que
queriam conservar ou reconquistar os antigos privilégios
locais. A solidez do título de soberania do monarca e a
sua posição de defesa e não de ataque contra as demais
forças políticas, além de uma tradição jurídica que de
há séculos servia às pretensões régias e que em 1500
atingiu a máxima perfeição, fizeram com que a police,
embora entendida de início como conjunto das
atividades de Governo, se fosse sujeitando a
delimitações jurídicas cada vez mais precisas e
cristalizasse progressivamente numa série de
intervenções prefixadas em assuntos já definidos,
redutíveis, por sua natureza, à segurança e à
tranqüilidade dos súditos (e do príncipe).
II. A "POLÍCIA" COMO FATOR ESSENCIAL NA FORMAÇÃO
ESTADO TERRITORIAL ALEMÃO. — Foi radicalmente
diverso o papel desempenhado pela Polizei nos
territórias alemães. Aqui ela tornou-se o instrumento
de que se serviu o príncipe territorial para impor sua
própria presença e autoridade contra as forças
tradicionais da sociedade imperial: acima dele, o
imperador; abaixo, os grupos territoriais. Na transição
de uma estrutura constitucional formada tipicamente
"por castas", como a imperial do século XVI, para uma
organização do poder concentrado em cada um dos
Estados territoriais, como se verificou em alguns dos
territórios alemães durante o século XVII, é fácil
entender que o problema central para o príncipe
territorial, que se apresentava historicamente como
fulcro dessa passagem, fosse o da necessidade de criar
para si um espaço autônomo, uma esfera soberana
própria, tanto em relação ascendente como
descendente. Isso foi tentado, com resultados vários,
pelos maiores príncipes alemães. A característica
constante foi que, onde a coisa saiu bem, o príncipe
conquistou a sua soberania, além e mais que com
apropriar-se de competências e funções antes
pertencentes às forças políticas concorrentes, inferiores
ou superiores que fossem, criando novos campos de
intervenção e de presença política nos novos setores
DO
ESTADO DE POLÍCIA
da vida associada que o processo histórico tornava cada
vez mais importantes e que, no entanto, a arcaica
estrutura constitucional do Sacro Império Romano da
nação
germânica
não
permitia
ocupar
convenientemente. O conjunto das intervenções e
imposições do príncipe em tais setores, sempre
mutáveis e novos, constituiu, em sua plenitude, a
Polizei que foi, portanto, em última análise, o principal
instrumento com que o príncipe conseguiu realizar,
seu desígnio centralizador e, ao mesmo tempo,
justificá-lo historicamente.
O exemplo mais convincente da linearidade deste
processo está na própria maneira como foi
desencadeado. O século XVI alemão está caracterizado
pelos esforços feitos pelo imperador para devolver ao
império a capacidade de responder às exigências e
necessidades políticas dos novos tempos. A par das
disposições mais acentuadamente constitucionais,
foram, nesse sentido, postas em ação intervenções
imediatamente operativas, visando prover, de modo
uniforme em todo o império, às necessidades mais
urgentes e concretas do momento: foram publicadas
importantes normas imperiais de polícia respeitantes
aos mais diversos campos da vida associada. A lábil
estrutura política do império não consentia, porém,
que o imperador cuidasse diretamente da aplicação e
observância de tais disposições: delas tinham de
preocupar-se, pois, os representantes de cada um dos
territórios em que se dividia o império, as assembléias
do império ou os príncipes territoriais. É fácil de
compreender como tal circunstância se transformou de
motivo de fortalecimento da estrutura imperial em
motivo posterior da sua fragmentação, em benefício da
nascente força política dos príncipes. Estes, com efeito,
não se limitaram a pôr em prática as disposições
imperiais, mas publicaram também as suas próprias
ordenanças
(normas
territoriais
de
polícia),
inteiramente recalcadas em parte naquelas, mas
versando cada vez mais sobre matérias novas, sempre
emanadas, em todo caso, diretamente da autoridade
soberana do príncipe territorial e não mais da
autoridade imperial. Deste modo, paulatinamente, as
"ordens" do príncipe foram adquirindo força de lei,
impondo-se como fonte originária ao lado do direito
tradicional. Dos problemas mais pequenos da vida
social, como o controle sobre pesos e medidas, sobre
bebidas e gêneros alimentícios, sobre mercados e
atividades comerciais e sobre a segurança e
tranqüilidade da vida nas cidades e no campo, o
mando do príncipe se estendeu à regulamentação dos
problemas fundamentais dos nascentes Estados
territoriais: criação de um exército permanente,
aumento de impostos, formação de uma administração
profissional eficiente e segura, fomento da atividade
econômica.
411
bem-estar dos súditos. Em todos estes setores, o
Governo do príncipe intervém como fator de
racionalização, de regulação e de estímulo do
mecanismo estatal em vias de formação, exercendo
influências no duplo sentido da superior jurisdição
imperial e dos privilégios tradicionais das classes
locais. Onde a ação do príncipe obteve sucesso
(primeiro na Prússia), o resultado final foi a formação
de um compacto corpo de prerrogativas soberanas, de
intervenções reguladoras indiscriminadas na vida dos
súditos, de novos instrumentos administrativos e
burocráticos, tenazmente defendidos pelo príncipe:
tudo isso é já nos fins do século XVII a polícia, "o total
ordenamento interno de Estado e, conseqüentemente,
o aparelho destinado a garantir o poder".
III. O ESTADO DE POLÍCIA COMO SÍNTESE
DE ORDEM E BEM-ESTAR. SUA TÍPICA FORMA
DE REALIZAÇÃO NA PRÚSSIA. — A polícia
sintetiza substancialmente em si a nova "ordem" do
Estado: ordem de elementos parcialmente novos mas
também assaz antigos, até então quase abandonados a si
mesmos numa visão tradicionalmente hierarquizada e,
portanto, automática, estática, desorganizada, mas
agora regulados, simplificados, orientados e dirigidos.
À hierarquia estática de uma ordem fechada, medieval
(imperial), sucede agora, graças à ação do príncipe e
da sua polícia, uma estrutura aberta, inovadora,
mecânica, propensamente igualitária (os súditos de um
lado, o príncipe do outro), disposta desde cima.
Explica-se assim por si só o significado tautológico da
expressão
mais
comumente
usada
pelos
contemporâneos para designar o sistema político a que
a atividade de polícia dava forma: "gute Ordnung und
Polizei", onde polícia e ordem vêm a significar a
mesma coisa ou, melhor, a constituir uma espécie de
hendíadis onde polícia é vista como meio de alcançar a
ordem, entendida por sua vez, não como um esquema
prefixado e imóvel (tal como na tradição aristotélicoescolástica), mas como resultado constantemente
mutável de certas interferências políticas. Isso é
confirmado pelo atributo implícito nesta ordem de
polícia: a ordem deve ser "boa", isto é, há de inspirarse em critérios claros e essenciais que o príncipe tem
por missão pôr em prática e nunca modificar. Tais
critérios resumem-se substancialmente num só: o
Wohlfahrt, o bem-estar dos súditos, também este
entendido de modo totalmente diverso do medieval
que o antecedera — o bonum commune da Escolástica,
rígido e imutável, mais para conservar do que para
criar. O bem-estar da "polícia", ao invés, não só está
impregnado de elementos eudemonísticos, mundanos,
concretos (a "felicidade material" de que
superabundam os
412
ESTADO DE POLÍCIA
escritos políticos dos séculos XVII e XVIII), como
também é sempre fruto, graças justamente a isso, de
intervenções humanas, de manejos políticos, de
opções conscientes e penosas. Além disso, o bem-estar
dos súditos não é apenas um fim que há de ser
alcançado para a realização do Estado ideal; é também
um meio importante para fazer funcionar o Estado em
sua concretização histórica. A este propósito é
esclarecedora a estreita relação que se cria, na teoria e
na prática do Estado alemão dos séculos XVII e
XVIII, entre o bem-estar dos súditos e a prosperidade
do Estado. Este tem necessidade de meios financeiros
cada vez mais vultosos para manter a eficiência do
aparelho militar e burocrático, que constituem a sua
espinha dorsal. O canal imprescindível para a
obtenção destes meios são os impostos, cuja
arrecadação depende, no entanto, do teor de vida dos
súditos, do seu bem-estar: é este o mecanismo graças
ao qual o bem-estar se converte na mola-mestra do
funcionamento do novo Estado e não foi por acaso
que a polícia veio a ser definida como conjunto das
instituições criadas pelo príncipe para a realização do
bem-estar dos súditos.
Se se pensa nas implicações práticas que o nexo
bem-estar/impostos trouxe à atividade do Estado, terse-á um quadro completo do significado global que a
expressão "Estado de polícia" pode assumir. Promover
o bem-estar significa, com efeito, orientar a economia,
realizar intervenções persuasivas ou dissuasivas em
relação a esta ou àquela atividade econômica. Isto
significa não só ater-se a uma certa política econômica
— que, nesta fase, refletia perfeitamente os princípios
da teoria mercantilista — mas também organizar os
instrumentos necessários para levar a efeito as
intervenções requeridas e valer-se dos serviços de
técnicos, de administradores e de expertos no setor. Por
outro lado, a acentuação da importância dos impostos
traz conseqüências do mesmo tipo, tanto no plano da
organização concreta (um dos fatores decisivos da
formação de uma burocracia profissional foram, na
Alemanha, os comissários de impostos), como no da
elaboração teórica (já se viu em outro lugar que o
cameralismo não é outra coisa senão o interesse
científico unitário pelos diversos setores da ciência de
polícia, da economia privada e da ciência das finanças).
O bem-estar e a ordem se apresentam, por isso, como
fatores fundamentais tanto no plano da justificação
ideológica, quanto no do funcionamento concreto, o da
polícia, de que são, alternativamente, objeto e
instrumento. A política dos Hohenzollern que, desde a
metade do século XVII até ao fim do século X V I I I ,
fizeram da Prússia um dos principais Estados
europeus, foi
sintetizada como "política de potência e de bem-estar";
com estas palavras se pode também dar a melhor
definição do Estado de polícia.
Foi exatamente na Prússia que ele teve a sua
primeira e mais completa realização histórica: uma
realização tão imponente que chegou a generalizar-se
como forma "típica" de Estado. As etapas concretas
desta realização não são facilmente determináveis. A
totalidade e a globalidade da atividade de polícia
impedem de lhe captar os momentos particularmente
significativos. É preciso lembrar a obra dos três
grandes príncipes prussianos da casa dos Hohenzollern
para ter um conhecimento aproximado desse período
de mais de um século; o Grande Eleitor, Frederico
Guilherme I, que, de 1640 a 1688, estabeleceu
solidamente as bases de um exército permanente e de
uma nova organização tributária diretamente
dependente do príncipe; o seu neto, Frederico
Guilherme Il (I como rei da Prússia), conhecido como
"rei-soldado" pela expansão que deu ao exército, mas
muito mais importante pelo esforço centralizador que
realizou no campo administrativo, criando sobretudo,
em 1723, um novo órgão unitário, o "General-oberFinanz-Kriegs-und-Domänen-Direktorium"
(Generaldirektorium), um verdadeiro órgão propulsor e
controlador do Gesamtstaat prussiano, de que não se
interessou apenas pelo setor financeiro e militar, mas
também pela atividade de polícia, onde aqueles dois
setores readquiriam precisamente a sua unidade; e,
finalmente, Frederico II, o Grande, seu filho, que, a
partir de 1740, consagrou todos os seus esforços ao
funcionamento do complexo e delicado mecanismo
construído pelos seus antecessores. Foi com ele que o
Estado de polícia atingiu seu maior fulgor e seu mais
alto nível de contribuição. Foi contra ele que, de Kant
em diante, se desenvolveu na Alemanha o movimento
de pensamento liberal contra o Estado paternalista,
contra o príncipe-pai que pretendia decidir o que mais
convinha aos súditos, contra a tutela em que estes
eram mantidos em tudo o que concernia à sua vida.
É significativo que a expressão "Estado de polícia"
tenha sido criada precisamente para definir, em termos
depreciativos, o Estado de Frederico o Grande. É
certo, entretanto, que tinha mudado o significado do
conceito de polícia e nessa expressão se queria
abranger sobretudo o aspecto obsessivo e opressivo do
intervencionismo estatal, e não a filosofia política, as
finalidades complexas que lhe serviam de suporte. O
termo usado revelou-se, contudo, bastante bem
escolhido, mesmo após a análise do significado real
que a polícia teve no seu contexto histórico peculiar.
Os historiadores liberais de há cem anos, preocupados
em defender a dignidade individual
ESTADO DE SÍTIO
contra a prepotência paternalista de um Estado
excessivamente invasor, puderam fincar-se numa
reconstrução polêmica e um tanto simplificada da
forma de Estado que os precedera. Os historiadores
(os homens) de hoje já não o podem fazer. Para eles, o
significado pleno, global e ético do Estado de polícia
torna-se indispensável, se quiserem compreender, à
luz dos próprios problemas contemporâneos, um
aspecto determinante da sua história, da história desse
mesmo "Estado moderno" em que continuam a viver.
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M. e M. Marcus. Breslau 1918; E. Bussi, Principi di governo
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(Polizeiwissenschaft). Ein Beitrag zur Geschichte der politischen
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Naturrecht. Ein Beitrag zur Geschichte der politischen
Wissenschaft in Deutschland des spaten 17, und frühen 18.
Jahrhunderts. Beck München 1977.
[PIERANGELO SCHIERA]
Estado de Sítio.
I. NOÇÃO DE ESTADO DE SÍTIO. — Com a expressão
"Estado de sítio" se quer geralmente indicar um regime
jurídico excepcional a que uma comunidade territorial é
temporariamente sujeita, em razão de uma situação de
perigo para a ordem pública, criado por determinação
da autoridade
estatal ao atribuir poderes
extraordinários às autoridades públicas e ao
estabelecer as adequadas restrições à liberdade dos
cidadãos. As circunstâncias perturbadoras que
costumam dar lugar a tal situação são, em geral, de
ordem política,
mas podem também ser
acontecimentos naturais como terremotos, epidemias,
etc: neste caso, o perigo para a ordem pública não está
nas circunstâncias perturbadoras que ocasionaram o
Estado de sítio, mas em seus efeitos (ver, por exemplo,
o decreto de Estado de sítio, de 28 de dezembro de
1908, referente a Messina e Reggio Calabria).
De acordo com a época e as exigências às vezes
presumidas do caso concreto, o Estado de sítio
apresenta formas mais ou menos amplas, podendo ir
de simples medidas de polícia (proibição de reuniões,
conquanto normalmente lícitas) à total suspensão das
garantias constitucionais.
413
O Estado de sítio assume configurações diversas
consoante as condições reais em que tem lugar:
distinguem-se sobretudo os casos de guerra das
situações de emergência interna. No primeiro caso, o
Estado de sítio representa apenas um dos aspectos da
condução geral das operações bélicas, pelas quais é
condicionado e informado: os problemas deste tipo de
Estado de sítio se inserem no problema mais vasto dos
poderes de guerra, enquanto que o Estado de sítio civil
carece de uma tal referência. Embora esta distinção se
ache bastante difundida nos ordenamentos estatais,
nem sempre se encontra uma distinção clara nas
normas positivas e na prática; nos ordenamentos anglosaxônicos, em particular, não há diferenças claras entre
os tipos de Estado de sítio bélico e civil.
II. MOMENTOS EM QUE SE CONCRETIZA A NOÇÃO DE
ORDEM EXCEPCIONAL. — O ato constitutivo do Estado
de sítio é uma "decisão". A passagem da normalidade
ao estado de exceção implica duas avaliações
fundamentais: a verificação da situação de perigo para
a ordem pública e a determinação da necessidade de
reagir com medidas excepcionais. Estas avaliações,
embora não tenham um valor peculiar do ponto de
vista formal, constituem elementos assaz delicados; do
seu completo e equilibrado cumprimento depende o
afastamento ou não dos perigos que ameaçam a
estabilidade do sistema constitucional. Isto porque,
normalmente, os órgãos aos quais compete a
constatação e a avaliação da situação de perigo são os
mesmos que estão habilitados a pôr em prática as
medidas extraordinárias previstas para o Estado de
sítio, com a conseqüência de que pode ocorrer —
como de fato tem ocorrido na prática de vários
ordenamentos — que a avaliação dos perigos para as
instituções seja feita em função do comportamento de
grupos de oposição (recordemos os acontecimentos
que antecederam e seguiram à formulação por parte
do Governo italiano, presidido por Facta, do decreto da
proclamação do Estado de sítio, vigente a partir de 28
de outubro de 1922).
O fato de que o Estado de sítio seja ocasionado por
situações de exceção não previsíveis a priori e
destinado a enfrentá-las faz com que não seja fácil
determinar-lhe o regime a priori e que este deva ser
normalmente decidido, em cada caso, pelo órgão que
resolveu instituí-lo. É a ele que incumbe a obrigação e
o poder de predispor os instrumentos extraordinários
adaptados às necessidades que a excepcionalidade da
situação criou. Tais instrumentos são mais ou menos
complexos e evidentes na medida em que consistam
em inovações de caráter orgânico ou em atribuições
de
414
ESTADO DE SÍTIO
poder que, mantidas as organizações do público poder
ordinário, sirvam para reforçar o executivo com o
alargamento das suas faculdades normais ou com a
concessão de novas funções.
Na situação de exceção ocasionada pelo Estado de
sítio, estabelecem-se novas relações entre indivíduo e
indivíduo e, sobretudo, entre indivíduo e autoridade,
concretizadas
na
limitação
das
liberdades
fundamentais. O conjunto destas novas relações é
geralmente designado com o termo de "ordem"
excepcional.
num título jurídico específico e dentro de limites
rigorosamente fixados em cada caso. Normalmente, na
falta de um título jurídico rigorosamente
predeterminado, não se reconhece liceidade à ação
extra ordinem.
Maior elasticidade e empirismo apresenta ainda a
instituição do Estado de sítio no ordenamento norteamericano. Neste, a fundamentação nos princípios do
"Estado e direito" se reduz à existência da
possibilidade de recorrer à autoridade jurisdicional para
um controle dos atos de direito público postos em
prática em face da gravidade da situação. A
III. O ESTADODE SÍTIO COMO INSTITUIÇÃOREGULADA Constituição dos Estados Unidos, se bem que preveja
E LIMITADA SEGUNDO O "ESTADO DE DIREITO". — a suspensão do direito de habeas corpus, não indica de
Limitando-nos a expor uma classificação dos vários tipos modo algum qual a autoridade investida do poder de o
de Estado de sítio observáveis na experiência dos suspender, nem quais os critérios capazes de delimitar
diversos ordenamentos estatais, baseada em critérios a disciplina dos poderes supremos ou o âmbito e
de totalidade e relacionada com o esquema fronteiras das atribuições. Na prática tem-se recorrido
característico da constituição dos sistemas de sempre a medidas de exceção, procurando dar aos atos
"democracia clássica", e excluindo propositadamente das autoridades supremas uma base jurídica assente em
as distinções referentes a cada um dos elementos do critérios legítimos do sistema constitucional americano.
Estado de sítio acima indicados, podemos notar duas Dada a posição constitucional do presidente, a ação
diferentes tendências: a primeira leva a considerar de extraordinária tem sido levada a efeito sobretudo por
preferência o Estado de sítio como uma instituição esse órgão. Coube sempre à Corte Suprema o controle
regulada e limitada segundo os princípios do "Estado em última instância (segundo as normas processuais
de direito" e a atenuar-lhe deste modo o caráter de ordinárias) do exercício dos poderes excepcionais; isto
exceção, restringindo ao mesmo tempo os poderes em obediência ao princípio basilar do ordenamento
extraordinários da autoridade, a que dá azo, ao âmbito constitucional norte-americano, que prevê a submissão
das normas fundamentais da organização e da ação de todas as autoridades ao poder judiciário.
estatal; a segunda, inspirada em critérios mais
propriamente políticos, leva a atribuir antes amplos
IV.
O
ESTADO
DE
SÍTIO
COMO
poderes
extraordinários
a
uma
autoridade MANIFESTAÇÃO PARTICULAR DE PLENOS
constitucionalmente preestabelecida, a fim de que seja PODERES POLÍTICOS OU DE DEFESA DA
mantida a estabilidade do Estado.
CONSTITUIÇÃO. — A aplicação integral dos
Entre os tipos de Estado de sítio mais ajustados aos princípios do "Estado de direito" ao Estado de sítio só
ideais e princípios do "Estado de direito", será possível se a estrutura do Estado for sólida. No
mencionamos, antes de tudo, os previstos nos decorrer deste século, foram-se delineando diversos
ordenamentos do continente europeu, onde o fatores de perigo para a existência do Estado que era
fundamento, atribuição e exercício de qualquer poder impossível prever segundo critérios apriorísticos.
estão previstos nas disposições legais. O Estado de Tendo isso em conta, tratou-se de assegurar amplos
sítio está preventiva e legislativamente disciplinado; a poderes às autoridades supremas do Estado, para as
constatação de uma situação de emergência atua como deixar em condições de pôr em prática as diligências
condição da aplicabilidade do regime particular fixado necessárias, quando em perigo a estabilidade do
de antemão. Do ponto de vista da aplicação prática, ele Estado. Foram dois os modos principais de o fazer.
resulta bastante ineficiente, porquanto seria muito Em algumas constituições, conferiu-se ao chefe do
difícil preparar, antecipadamente, mediante normas Estado, de forma permanente, o poder de adotar, em
abstratas, todos os instrumentos idôneos para qualquer momento, as medidas consideradas
enfrentar situações que, pela sua própria natureza, são necessárias. Outras vezes previu-se a possibilidade de
de caráter imprevisível, empírico e contingente.
conferir ao órgão do Governo, por ato do Parlamento,
Em vez disso, a figura do Estado de sítio do poderes excepcionais para um longo período: atribuiordenamento britânico, se bem que inspirada também se assim estavelmente a um órgão a incumbência de
no princípio do "Estado de direito", apresenta uma vigiar pela segurança pública, com o poder da
certa elasticidade e empirismo na ação de emergência intervenção imediata. Este sistema, se evita a
do Governo e da administração. Esta ação só pode ser necessidade da
levada a efeito com base
ESTADO DE SÍTIO
atribuição extraordinária de poderes e o risco que
acarreta a sua auto-assunção em face de situações
anormais, cria o perigo de que a investidura, para
sempre ou por longo prazo em tão amplos poderes,
possa levar a ultrapassar os limites devido à separação
entre o exercício da atividade ordinária do Governo e
as ações extraordinárias; outro perigo é o de que os
poderes extraordinários sejam exercidos cada vez com
mais freqüência e amplitude, mesmo em momentos e
problemas sujeitos à disciplina ordinária.
V. ESTADO DE SÍTIO E "DIREITOS DO HOMEM". A
CONVENÇÃO EUROPÉIA PARA A DEFESA DOS DIREITOS DO
HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS.
— As medidas excepcionais postas em prática em
conseqüência da proclamação do Estado de sítio
contrastam,
como
suspensão
das
garantias
constitucionais, com os princípios sancionados pelas
diversas convenções sobre os direitos do homem. Em
virtude de tais convenções, os Estados-membros se
comprometem a respeitar uma série de normas que
visam à defesa dos direitos civis e políticos dos
cidadãos. Encontramo-nos, assim, diante de duas
exigências contrapostas à primeira vista: de um lado,
está a necessidade de manter ou restaurar a ordem e a
legalidade, fim que só se pode alcançar com a adoção
de medidas excepcionais; de outro, a necessidade, cada
vez mais sentida, de garantir o respeito pela liberdade
e pela dignidade humana. Sacrificar totalmente a
primeira à segunda, além de não ser possível, também
não seria oportuno, uma vez que o Estado de sítio, em
certas circunstâncias, pode impedir que uma minoria,
incapaz de fazer triunfar democraticamente as suas
idéias, consiga impô-las pela força.
Por via disso, a "Convenção Européia para a Defesa
dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais", depois de haver indicado os direitos e
as liberdades que os membros da Convenção hão de
conceder aos que se encontrem sob a sua jurisdição,
reconhece aos Estados participantes da Convenção o
poder de os derrogar, não só em caso de guerra, mas
também em caso de grave perigo para a própria vida
da nação, mas só na justa medida das necessidades
(art. 15, § 1°). As partes contraentes que exerçam tal
poder têm o dever de informar o Secretário-Geral do
Conselho da Europa da ação empreendida e dos
motivos que a inspiraram (art. 15, § 3.°). Contra uma
das partes que haja declarado o Estado de sítio,
invocando o art. 15, § 1." da Convenção, qualquer dos
outros contraentes pode recorrer à Comissão Européia
dos Direitos do Homem. Quando a Comissão julgar
que o Estado contra o qual se recorreu agiu sem que
na
415
realidade existissem as condições previstas pelo art.
15, § 1.°, ou adotou medidas não rigorosamente
necessárias, entrará em ação um mecanismo que
poderá levar à adoção de medidas contra o Estado tido
por inadimplente, medidas que podem ir da
recomendação a pôr termo ao Estado de sítio ou da
publicação de um relatório da Comissão à expulsão
desse Estado do Conselho da Europa. É assim
reconhecida a uma organização internacional uma
espécie de controle sobre os Estados (membros da
Convenção),
em
assuntos
tradicionalmente
concernentes à esfera da "jurisdição interna" ou
"doméstica"' dos Estados. O procedimento e controle
acima referidos já uma vez foram concretamente
aplicados, e com certa eficácia, quando da adoção por
parte do Estado grego da lei da suspensão das
garantias constitucionais. O procedimento e controle
antes referidos tiveram ocasião de ser aplicados
concretamente e com uma certa eficácia a seguir à
proclamação do Estado de sítio na Grécia, um dia
depois do golpe de Estado de 21 de março de 1967.
Nessa altura, os órgãos do Conselho da Europa
entenderam não existir os extremos de que fala o art.
15 da Convenção européia, que permitiriam a
suspensão das garantias constitucionais decretadas
pelo Governo dos "Coronéis", e que, por conseguinte,
tal comportamento constituía uma violação da mesma
Convenção. Em conseqüência disso, a Grécia,
ameaçada de expulsão, foi obrigada a retirar-se do
Conselho da Europa, a que só pôde voltar após o
restabelecimento da democracia no país.
BIBLIOGRAFIA. - G. CAMUS, Letal de necessite en
démocratie. Librairie générale de Droit et de
Jurisprudence, Paris 1965;H. E. FOLZ, Staatsnotstand
und Notstandsrecht, Hey mann, Köln, Berlin, Bonn e
München 1962; F. FRANCHINI, Lo stato di necessità nel
diritto costituzionale, Tipografia Consorzio Nazionale,
Roma 1943; P. G. GRASSO. I problemi giuridici dello
"Stato d'assedio" nell'ordinamento italiano, Tipografia
del Libro, Pavia 1959; A. MATHIOT, La théorie des
circonstances exceptionnelles. in L'évolution du droit
public (Études en 1'honneur d'A. Mestre), Sirey, Paris
1956; P. MERTENS, Le fondement juridique des lois des
pouvoirs spéciaux. Bruylant, Bruxelles 1945; G.
MORELLI, La sospensione del diritti fondamentali nello
Stato moderno. Giuffrè, Milano 1966; T. PERASSI,
Necessità e stato di necessità nella teoria dogmatica
delle fonti, in Seritti giuridicei, Giuffrè, Milano 1958,
vol. I; S. ROMANO, Sui decreti legge e los Stato
d'assedio, em Seritti minori. Giuffrè. Milano 1950, vol.
I; P. STELLACCI, Costituzionalità dello Stato d'assedio,
in " La Giustizia Penale", 1951, I; The greek case, "
Yearbook of the European Convention on Human
Rights", XII, 1969, Nijhoff, The Hauge 1972.
[CARLO BALDI]
416
ESTADO DO BEM-ESTAR
Estado do Bem-estar.
I. DEFINIÇÕES E ASPECTOS HISTÓRICOS. — O Estado
do bem-estar (Welfare state), ou Estado assistencial,
pode ser definido, à primeira análise, como Estado que
garante "tipos mínimos de renda, alimentação, saúde,
habitação, educação, assegurados a todo o cidadão, não
como caridade mas como direito político" (H. L.
Wilensky, 1975).
Como exemplo que se aproxima mais desta definição,
é costume apresentar a política posta em prática na
Grã-Bretanha a partir da Segunda Guerra Mundial,
quando, a seguir ao debate aberto pela apresentação do
primeiro relatório "Beveridge" (1942), foram
aprovadas providências no campo da saúde e da
instrução, para garantir serviços idênticos a todos os
cidadãos, independentemente da sua renda. Este
exemplo leva a vincular o conceito de assistência
pública ao das sociedades de elevado desenvolvimento
industrial e de sistema político de tipo liberaldemocrático. Na realidade, o que distingue o Estado
assistencial de outros tipos de Estado não é tanto a
intervenção direta das estruturas públicas na melhoria
do nível de vida da população quanto o fato de que tal
ação é reivindicada pelos cidadãos como um direito.
Ora, uma breve análise histórica da intervenção atual
dos Estados no campo social nos revela que a relação
entre assistência, industrialização e democracia é assaz
complexa, dá lugar a profundas tensões e só atinge a
forma atual em época bastante recente. Na verdade, no
século X V I I I , muitos Estados europeus (Áustria,
Prússia, Rússia, Espanha) desenvolveram uma
importante ação de assistência, mas antes ou
independentemente da Revolução Industrial e dentro
de estruturas de poder de tipo patrimonial. É Weber
quem nos recorda que "o poder político essencialmente
patriarcal assumiu a forma típica do Estado de bemestar (...). A aspiração a uma administração da justiça
livre de sutilezas e de formalismos jurídicos, visando à
justiça material, é de per si própria de qualquer
patriarcalismo principesco" (M. Weber, 1922).
Deste modo, foram precisamente os Estados
patrimoniais mais distantes das formas de legitimação
legal-racional que foram mais além nas formas de
defesa do bem-estar dos súditos, enquanto que, nas
sociedades em que se ia consolidando a Revolução
Industrial, as normas de defesa das populações mais
fracas surgiam como barreiras medievais opostas à
livre iniciativa. O nascente capitalismo se reconhece,
com efeito, mais facilmente na atitude que a ética
protestante tem para com a caritas: ela deve, antes de
tudo
desencorajar os preguiçosos, já que, numa sociedade
baseada na livre concorrência, a assistência constitui
um desvio imoral do princípio "a cada um segundo os
seus merecimentos".
Que não se tratava apenas de disputa ideológica,
mas de uma orientação de claro significado político,
revela-o a análise das medidas adotadas na Inglaterra
em fins do século XVIII, medidas com que se abolia
toda a regulamentação sobre o salário mínimo, que
tinha sua origem no sistema medieval das corporações
e que agora era considerado lesivo da liberdade de
contratação.
A oposição entre os direitos civis (de expressão, de
pensamento e também de comércio) e o direito à
subsistência torna-se totalmente explícita com a lei dos
pobres, aprovada em 1834 na Inglaterra, pela qual se
obtinha o mantimento a expensas da coletividade em
troca da renúncia à própria liberdade pessoal. Como
acentua T. H. Marshall (1964), para ter a garantia da
sobrevivência, o pobre tinha de renunciar a todo o
direito civil e político, devia ser colocado "fora de
jogo" em relação ao resto da sociedade. Se o Estado
provia às suas necessidades, não era como portador de
qualquer direito à assistência, mas como tendentemente
perigoso para a ordem pública e para a higiene da
coletividade. Esta oposição entre os direitos civis e
políticos, de um lado, e os direitos sociais, de outro,
mantém-se durante grande parte do século XIX, sendo
exemplo claro disso a legislação social de Bismarck. As
leis aprovadas na Prússia, entre 1883 e 1889,
representam a primeira intervenção orgânica do Estado
em defesa do proletariado industrial, mediante o
sistema do seguro obrigatório contra os infortúnios do
trabalho, as doenças de invalidez e as dificuldades da
velhice. Mas este programa previdenciário dá-se num
Estado em que a burguesia industrial é débil e está
politicamente marginalizada, e as representações
políticas da classe operária não gozam de qualquer
reconhecimento: na realidade, só uns anos antes, em
1878, é que uma lei "anti-socialista" tinha proibido as
reuniões e propaganda destas organizações.
É necessário chegar ao começo do século XX para
encontrar medidas assistenciais que não só não estão
em contradição com os direitos civis e políticos das
classes desfavorecidas, mas constituem, de algum
modo, seu desenvolvimento. É na Inglaterra que, entre
1905 e 1911, um alinhamento político progressista
leva à aprovação de providências de inspiração
igualitária, como a instituição de um seguro nacional
de saúde e de um sistema fiscal fortemente
progressivo. Mas então o fundo é totalmente outro.
Estas leis são postas em prática por um Estado liberaldemocrático que reconheceu plenamente os direitos
sindicais e
ESTADO DO BEM-ESTAR
polílicos da classe operária, numa sociedade
profundamente marcada pela industrialização e pela
urbanização de grandes massas.
Os anos 20 e 30 assinalam um grande passo para a
constituição do Welfare state. A Primeira Guerra
Mundial, como mais tarde a Segunda, permite
experimentar a maciça intervenção do Estado, tanto na
produção (indústria bélica), como na distribuição
(gêneros alimentícios e sanitários). A grande crise de
29, com as tensões sociais criadas pela inflação e pelo
desemprego, provoca em todo o mundo ocidental um
forte aumento das despesas públicas para a
sustentação do emprego e das condições de vida dos
trabalhadores. Mas as condições institucionais em que
atuam tais políticas são radicalmente diversas:
enquanto nos países nazifascistas a proteção ao trabalho
é exercida por um regime totalitário, com estruturas de
tipo corporativo, nos Estados Unidos do New Deal, a
realização das políticas assistenciais se dá dentro das
instituições políticas liberal-democráticas, mediante o
fortalecimento do sindicato industrial, a orientação da
despesa pública à manutenção do emprego e à criação
de estruturas administrativas especializadas na gestão
dos serviços sociais e do auxílio econômico aos
necessitados.
Mas é preciso chegar à Inglaterra dos anos 40 para
encontrar a afirmação explícita do princípio
fundamental do Welfare state: independentemente da
sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm direito de
ser protegidos — com pagamento de dinheiro ou com
serviços — contra situações de dependência de longa
duração (velhice, invalidez...) ou de curta (doença,
desemprego, maternidade. ..). O slogan dos
trabalhistas ingleses em 1945, "Participação justa de
todos", resume eficazmente o conceito do
universalismo da contribuição que é fundamento do
Welfare state. Desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, todos os Estados industrializados tomaram
medidas que estendem a rede dos serviços sociais,
instituem uma carga fiscal fortemente progressiva e
intervêm na sustentação do emprego ou da renda dos
desempregados.
O aumento mais ou menos linear destas
intervenções
trouxe
algumas
conseqüências
importantes sobre cujo significado falaremos em
seguida: aumentou a cota do produto nacional bruto
destinada à despesa pública; as estruturas
administrativas voltadas para os serviços sociais
tornaram-se mais vastas e complexas; cresceu em
número e importância política a classe ocupacional dos
"profissionais do Welfare"; foram aperfeiçoadas as
técnicas da descoberta e avaliação das necessidades
sociais; tornou-se mais claro o conhecimento
417
do impacto das várias formas de assistência na
redistribuição da renda e na estratificação social. Mas,
não obstante haverem melhorado os instrumentos
técnicos de previsão e controle do andamento das
despesas públicas, nos países onde é mais ampla a
cobertura do seguro social (Estados Unidos, GrãBretanha, Suécia... ), em fins da década de 60, as
despesas governamentais tendiam a aumentar mais
rapidamente que as entradas, provocando a crise fiscal
do Estado (O'Connor, 1973). O aumento do déficit
público provoca instabilidade econômica, inflação,
instabilidade social, reduzindo consideravelmente as
possibilidades da utilização do Welfare em função do
assentimento ao sistema político. Alguns Estados são
obrigados a limitar a intervenção assistencial, quando
o aumento da carga fiscal gera em amplos estratos da
opinião pública uma atitude favorável à volta à
contribuição baseada no princípio contratualista. Estes
elementos têm feito com que se fale de uma nova fase
na história do Estado assistencial, marcada por
profunda crise e por uma possível tendência a
desaparecer.
II. CAUSAS DO
ASSISTENCIAL. — É
DESENVOLVIMENTO
DO
ESTADO
necessário agora enfrentar alguns
problemas teóricos originados do aparecimento,
consolidação e crise do Welfare state.
A primeira série de questões diz respeito às causas
que determinaram seu crescimento. Nos anos 50 e 60,
os estudiosos anglo-americanos (T. H. Marshall,
Bendix) dão grande atenção às razões políticas que
provocaram o fortalecimento das intervenções
assistenciais. Segundo Marshall (1964), podemos
distinguir na história política das sociedades industriais
três fases: a primeira (ao redor do século XVIII),
domina-a a luta pela conquista dos direitos civis
(liberdade de pensamento, de expressão...); a fase
seguinte (ao redor do século XIX) tem como centro a
reivindicação dos direitos políticos (de organização, de
propaganda, de voto. ..) e culmina na conquista do
sufrágio universal. É precisamente o desenvolvimento
da democracia e o aumento do poder político das
organizações operárias que dão origem à terceira fase,
caracterizada pelo problema dos direitos sociais, cujo
acatamento é considerado como pré-requisito para a
consecução da plena participação política. O direito à
instrução desempenha historicamente a função de
ponte entre os direitos políticos e os direitos sociais: o
atingimento de um nível mínimo de escolarização
torna-se um direito-dever intimamente ligado ao
exercício da cidadania política. Alguns autores (Titmus,
1958) sublinharam a importância das ideologias como
causa da consolidação do Welfare. Se nas
418
ESTADO DO BEM-ESTAR
sociedades tradicionais as situações de indigência são
tidas como um sinal da vontade divina e, na ética
protestante, como um indício do desmerecimento
individual, com o pleno desenvolvimento da sociedade
industrial parece claro que as causas que criam
situações de dependência tendem a aumentar, tendo o
mais das vezes uma origem social e escapando
totalmente ao controle do indivíduo. Nestas condições,
atenua-se na opinião pública o contraste entre as
exigências baseadas no merecimento e as baseadas na
necessidade, e o universalismo da contribuição não é
considerado como oposto ao princípio da justiça, não
colide com a necessidade de manter a propensão ao
trabalho. Todas estas interpretações têm de comum a
forte importância dada aos fatores político-culturais,
com a conseqüente análise do Welfare em termos de
conquista da civilização.
As pesquisas mais recentes tendem, ao invés, a
sublinhar o papel desempenhado pelos fatores
econômicos na constituição do Estado assistencial. Da
análise comparada da história das políticas sociais na
Europa, América e Rússia, Rimlinger' (1971) chega à
conclusão de que a causa principal da sua difusão deve
ser buscada na transformação da sociedade agrária em
industrial: se as diferenças políticas e culturais podem
explicar a variedade de medidas adotadas pelos diversos
países, o desenvolvimento industrial parece a única
constante capaz de ocasionar o surgimento do
problema da segurança social em todas essas regiões. A
tese da relevância do desenvolvimento econômico não
resiste apenas à análise dos grandes períodos históricos,
como encontra igualmente confirmação na análise
sincrônica da despesa destinada aos serviços sociais por
um vasto número de nações. Wilensky (1975) e, antes
dele, Aaron e Cutright demonstraram que a cota do
produto nacional bruto usada para fins sociais cresce em
relação com o desenvolvimento econômico de uma
nação. Em confronto com esta clara correlação, a
influência dos diversos sistemas econômicos e políticos
torna-se ou espúria ou irrelevante. Os demais fatores,
que parecem influir positivamente no desenvolvimento
das políticas sociais, outra coisa não fazem senão
reforçar esta tese: se é verdade que o percentual dos
habitantes idosos e a idade do sistema de administração
social são correlativos à amplitude das políticas do
Welfare, também é verdade que isso depende, por sua
vez, do desenvolvimento econômico de uma nação.
Não causa por isso estranheza que seja o próprio
Wilensky quem convida a olhar mais além da "retórica
do Welfare", que difere de país para país conforme a
ideologia dominante, para ver
como convergem fundamentalmente as políticas
sociais dos países fortemente industrializados.
III. CAUSAS DA CRISE DO ESTADO ASSISTENCIAL. —
Examinemos agora os problemas teóricos que
apresenta a plena expansão e crise do Estado
assistencial nas sociedades pós- ou tardo-capitalistas.
Todos os estudiosos do Welfare state consideram o
seu desenvolvimento como uma quebra da separação
entre a sociedade (ou mercado, ou esfera privada) e o
Estado (ou política, ou esfera pública), tal como era
constituída na sociedade liberal, e descrevem a
evolução dos canais que historicamente permitiram a
comunicação entre ambas as esferas.
Durante a década de 60, a nova relação entre o
Estado e a sociedade é entendida em termos de
equilíbrio, de compromisso e de coexistência pacífica,
se bem que com o rompimento da separação. Marshall
fala de alocação dos recursos baseada num sistema
dual, onde, a par do mercado, age também o Estado.
Habermas (1975) vê surgir uma espécie de terra de
ninguém para a qual são inadequadas tanto as
categorias do direito público como as do direito
privado. Outros dão relevância à síntese ideológica
entre a meritocracia e a igualdade, entre a eficiência e a
solidariedade, síntese em que assentam os programas
sociais mais orgânicos.
Mas, a partir do final dos anos 60, o processo de
rompimento da separação entre sociedade e Estado é
analisado com instrumentos novos, que levam em
conta os primeiros sinais de crise no desenvolvimento
das políticas sociais, bastante linear até esses anos. A
crise fiscal do Estado é tida como um indício da
incompatibilidade natural entre as duas funções do
Estado assistencial: o fortalecimento do consenso
social, da lealdade para com o sistema das grandes
organizações de massa, e o apoio à acumulação
capitalista com o emprego anticonjuntural da despesa
pública. A particular relação que o Welfare state
estabeleceu entre Estado e sociedade não é mais
entendida em termos de equilíbrio, mas como
elemento de uma crise que levará à natural eliminação
de um dos dois pólos.
Para um grupo de autores (Offe, 1977, Habermas,
1975), o Estado assistencial traz como resultado a
"estatalização da sociedade". Trabalho, rendimento,
chances de vida não são mais determinados pelo
mercado, mas por mecanismos políticos que objetivam
a prevenção dos conflitos, a estabilidade do sistema, o
fortalecimento da legitimação do Estado. A vontade
política não se forma já pelo livre jogo das agregações
na sociedade civil, mas se solidifica através de
ESTADO E CONFISSÕES RELIGIOSAS
mecanismos institucionais que operam como filtro na
seleção das solicitações funcionais ao sistema.
Partidos, sindicatos e Parlamento atuam como
organismos dispensadores de serviços, trocando-os
pelo apoio politicamente disponível. Os resultados
deste processo são diversos, dependendo do fato de se
prever ou não a total extinção da autonomia da
sociedade em face de um "despotismo administrativo"
que levaria à total dependência dos indivíduos e dos
pequenos grupos dos mecanismos públicos. As
possibilidades de saída estão, portanto, confiadas à
capacidade de resistência de alguns fragmentos da
sociedade civil: círculos de vida privada, setores de
economia concorrencial, grupos portadores de
interesses não filtrados pelas instituições.
Por outro lado, a crise do Welfare state pode ser
entendida também como um processo de "socialização
do Estado" (Rose, 1978, Huntington e Crozier, 1975).
Para os autores que põem particularmente em
evidência este aspecto, o Estado assistencial difundiu
uma ideologia igualitária que tende a deslegitimar a
autoridade política; a disposição do Estado a intervir
nas relações sociais provoca um enorme aumento nas
solicitações dirigidas às instituições políticas,
determinando a sua paralisia pela sobrecarga da
procura; a competição entre as organizações políticas
leva à impossibilidade de selecionar e aglutinar os
interesses, causando a total permeabilidade das
instituições às demandas mais fragmentadas. O peso
assumido pela administração na mediação dos
conflitos provoca a burocratização da vida política
que, por sua vez, leva à "dissolução do consenso".
Baseando-nos nesta análise, torna-se claro que as
possibilidades de saída da crise ficam entregues à
capacidade de resistência das instituições, à sua
autonomia em face das pressões de grupos sociais
numa perpétua atitude reivindicativa.
Ora, poder-se-á perguntar como é que a crise do
Estado assistencial pôde dar lugar a interpretações tão
distantes entre si. Antes de tudo, convém precisar que
essa oposição é muitas vezes aumentada devido ao
diverso enfoque metodológico: na realidade, as
análises mais complexas admitem a existência de
ambos os processos. Contudo, estes resultados tão
distantes a que se chega pelo estudo da crise do
Welfare state com as categorias de "Estado" e
"sociedade" demonstram pelo menos uma coisa: o
desenvolvimento e consolidação do Estado
assistencial nos últimos cem anos constituem um
processo tão profundo, distanciam tanto esta
instituição das que a precederam que tornaram
amplamente inadequado o esquema conceptual
elaborado pelas teorias clássicas para definir o Estado
e as suas funções.
419
BIBLIOGRAFIA. - R. BENDIX, Stato nazionale e
integrazione di classe (1964), Laterza, Bari 1969; A.
BRIGGS, The Welfare State in historical perspective, in
"Archive Européennes, de Sociologie", II, 1961; M.
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della democrazia (1975), Angeli, Milano 1977; I.
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Berkeley 1975.
[GLORIA REGONINI]
Estado e Confissões Religiosas.
I. SISTEMAS DE RELAÇÕES
CONFISSÕES RELIGIOSAS. — Um
ENTRE ESTADO E
sistema de relações
entre o Estado e as confissões religiosas é um
conjunto de elementos políticos e institucionais
bastante mais amplo e complexo que a determinação
conceptual do tipo jurídico das relações entre
sociedade civil e sociedade religiosa. Sua redução a
tipologias fixas que prescindam da importância
ideológica e política da realidade e da positiva
regulamentação das manifestações concretas do
fenômeno religioso, num determinado momento
histórico e num sistema jurídico específico
(jurisdicionalismo,
separatismo,
teocracia,
cesaropapismo, coordenação, etc), pode ser apenas de
alguma utilidade numa orientação empírica preliminar
e aproximativa que não pretenda tirar conclusões de
classificações aprioristicamente determinadas.
Na realidade, o complexo de instituições, normas e
situações que geram um sistema de relações entre o
Estado e uma confissão religiosa constitui uma
complicada estrutura "formada por elementos
jurídicos e não jurídicos, mas que possuem grande
valor para o historiador e para o político" e cuja
exclusão "criaria uma imagem deformada dos
ordenamentos, que ficariam privados do espírito que
os informa e que preside à sua formação e atuação"
(Jemolo). A legislação fundamental em que assenta o
sistema é, com efeito, determinada pelas ideologias
predominantes no âmbito social que interessa, tanto
que os elementos políticos
420
ESTADO E CONFISSÕES RELIGIOSAS
se tornam relevantes para a qualificação do
ordenamento jurídico na medida em que lhe
determinam o conteúdo. A definição do próprio
sistema não pode, pois, ser senão empírica,
contingente, dedutível do ordenamento de um
determinado período e de um determinado lugar, e
jamais um conceito absoluto arbitrariamente elevado à
categoria de tipologia unitária.
Torna-se então evidente a inutilidade de classificar
rigidamente os sistemas jurídicos das relações Estadoconfissões religiosas, ou de transformar os conceitos
políticos de separação, confessionalismo ou
aconfessionalismo, laicidade ou não laicidade, nos
arquétipos jurídicos correspondentes.
É impossível considerar a ligação entre o Estado e
as confissões religiosas com o mesmo critério usado
na análise dos vínculos entre os Estados, identificando
a posição e importância jurídica dos ordenamentos
confessionais com a posição e importância dos
ordenamentos estrangeiros em face do estadual,
havendo igualmente identidade do território e das
pessoas sobre que se estende a autoridade respectiva
do Estado e da confissão religiosa e faltando uma clara
linha de demarcação entre as matérias que cada um
reivindica como de própria competência (um caso
típico, a matéria matrimonial). A questão das relações
Estado-confissões religiosas se apresenta, pois, de
maneira bem diferente da de qualquer outra questão
relativa às relações entre "sociedades distintas quanto
aos seus membros"; uma questão que não se dá, aliás,
no caso da completa fusão das duas sociedades ou da
completa subordinação da sociedade religiosa à civil,
mas que, nas demais hipóteses, implica a possibilidade
teórica de as sociedades se considerarem igualmente
idôneas para definir cada uma a própria competência,
não sendo concretamente possível indicar a priori
limites objetivamente válidos, baseados em categorias
conceptuais abstratas (o espiritual, o temporal, etc).
Esses limites podem reconstruir-se a posteriori,
mediante uma análise de situações políticas e jurídicas
historicamente definidas que permita delinear as
relações de força, a efetiva aplicação ou desaplicação
da legislação e a correspondência desta a critérios não
meramente formais de adesão confessional. A
compenetração entre sociedade civil e sociedade
religiosa — estreita nos países com forte presença de
uma confissão majoritária — supõe que, junto com
setores de competência exclusiva, porquanto
reciprocamente irrelevantes, haja uma ampla categoria
de matérias mistas (mistas não em si, mas enquanto
reivindicadas) que apresentam uma característica
específica quanto às relações próprias da vida real
interna do Estado ou da confissão religiosa e que
constituem muitas vezes a base de repetidos conflitos
entre as duas sociedades.
II. ESTADO E CONFISSÕES RELIGIOSAS
DESDE 1848 ATÉ A CHEGADA DA ESQUERDA
AO PODER. A QUESTÃO ROMANA. — O sistema
das relações entre o Estado e as confissões religiosas
se apresenta, na Itália contemporânea, de uma maneira
inteiramente peculiar e com características diversas
das assumidas nos outros países da Europa, em virtude
da presença, no território italiano, do pontífice e dos
órgãos do Governo da Igreja católica, e da adesão, a
nível do batismo, da grande maioria da população à
mesma crença religiosa, a católica precisamente. Era
uma presença que, no primeiro decênio da união,
ainda estava ligada à manutenção de um verdadeiro e
autêntico, conquanto reduzido, domínio temporal, e
uma adesão que, uma vez superada a proibição
pontifícia de participação na vida pública, levou a um
envolvimento direto dos católicos como tais na luta
política, em nome do princípio, fundamentalmente
preponderante, da unidade política. que instigou
intervenções sistemáticas, diretas ou indiretas, das
autoridades confessionais na sociedade civil, muito
além da dinâmica normal das relações Estadoconfissões religiosas. Questão romana, questão católica
e questão democristã tornaram realmente difícil e
complexa, em diversos momentos, a situação política e
legislativa de tais relações.
O problema do poder temporal do papado e da sua
soberania sobre Roma (questão romana) veio juntarse, após a revolução de 1848, ao desacordo entre a
concepção da Igreja católica como sociedade perfeita
e a do Estado liberal, que reivindicava uma série de
competências tradicionalmente exercidas pela Igreja,
bem como a tutela da liberdade religiosa individual
dos cidadãos, mesmo em relação às confissões
religiosas. Se, de fato, o art. 1.° do Estatuto Albertino
(1848) dispunha que a religião católica fosse a única
religião do Estado e que as outras confissões fossem
"toleradas" em conformidade com a legislação
comum, a lei sarda de 19 de junho desse mesmo ano
veio esvaziar a norma estatutária, declarando que o
pertencer a outro culto não excluía do gozo dos direitos
civis e políticos, nem da possibilidade de admissão aos
cargos civis e militares. O Código Penal de 1889
igualará, sob o aspecto do amparo jurídico, todos os
cultos admitidos no Estado.
Em torno à questão de Roma e à da laicidade do
Estado, vai-se tornando real nos primeiros quinze anos
após a unificação, lenta e laboriosamente, às vezes
entre dramáticos contrastes, a unidade da burguesia
italiana e a sua separação
ESTADO E CONFISSÕES RELIGIOSAS
cada vez mais clara das velhas classes dominantes.
Isso a leva a aproximar-se das camadas politicamente
mais avançadas das massas populares das cidades.
Divididos pelas divergências de credo político e de
sentimento religioso, discordes quanto aos fins,
métodos e compromissos, os homens da direita se
acharam concordes na reafirmação da laicidade do
Estado e das aspirações da burguesia à unidade, que
encontravam na italianidade de Roma a sua expressão.
A política eclesiástica da direita não pôde, contudo,
ser levada a efeito sem hesitações e compromissos: os
seus expoentes, na maioria católicos, se abeiraram
sempre com um certo temor reverenciai de tudo o que
se referia à vida da Igreja, preocupados em distinguir
entre organização eclesiástica e religião. Isto não só
devido ao sentimento profundamente religioso de
alguns dos seus chefes, como também para não perder,
mantendo a religião, um instrumento essencial na
defesa contra o despertar político das massas pequenoburguesas e operárias das cidades, já infectadas de
irreligião e de teorias subversivas. Por outro lado, até
mesmo a nova posição central do Estado na sociedade
vinha a representar um atentado ao magistério
eclesiástico tradicional e a provocar um choque
inevitável entre o programa político e o problema
eclesiástico, deixando à margem motivações
propriamente religiosas ou de consciência. Nasceu
daqui a concepção das crenças religiosas como um
problema individual, como um problema da exclusiva
competência do cidadão, cujo direito à liberdade
prevalecia, sob o aspecto do amparo jurídico, sobre os
direitos da confissão religiosa a que pertencia, em
relação à qual o ordenamento do Estado revelava uma
posição de substancial indiferença, quando não de
expresso desfavor. É típico o caso da legislação que
suprimia e subvertia as instituições e bens eclesiásticos
(1866-67), mesmo que, em conjunto, a legislação da
direita, particularmente a lei das garantias pontifícias
(1871), tenha conseguido evitar que o contraste entre o
Estado e a Igreja católica se transformasse em luta
religiosa, que poderia pôr em crise a recente unidade
política. Nem a paz religiosa foi, com efeito,
perturbada, nem ficaram marcas profundas na
consciência popular. Os casos de efetiva crise foram
os do clero nacional e os dos políticos sinceramente
religiosos; em geral, a indiferença dos leigos pelos
problemas internos da Igreja ou, ao contrário, a sua
absoluta docilidade às diretrizes e desejos pontifícios
contribuíram certamente para evitar as guerras de
religião, mas, com o andar do tempo, haviam de fazer
sentir todo o seu peso negativo sobre a vida da Igreja.
Esta pôde, pois, por um lado, fortalecer o absolutismo
papal e, por outro.
421
inserir-se rapidamente na sociedade italiana, reunindo
em torno de si consideráveis forças burguesas e
conservando, graças ao crescimento do movimento
católico, um forte ascendente sobre as massas. Foi
recuperando assim, gradualmente e sob formas
diversíssimas, os meios de intervenção política e
econômica na vida do país de que a legislação
eclesiástica da direita a havia temporariamente
privado.
Com a chegada da esquerda ao poder, a política
religiosa não sofreu as mudanças radicais que, em face
das atitudes anteriores dos seus expoentes, seriam de
esperar. Para além da opinião de quem acentuou que a
direita escolhera o caminho certo e de que a esquerda
o teria reconhecido, quando chegou ao poder
(Jemolo), e da opinião de quem pôs em relevo a
fundamental identidade de interesses dos dois grupos
políticos e a sua convergência substancial em certos
pressupostos ideológicos (Scoppola), a "revolução
parlamentar" de 1876 não foi senão um deslocamento
de forças no seio das classes dominantes, deslocamento
que não chegou a resolver as contradições suscitadas
pela política teoricamente unitária da direita. Os
homens da esquerda também não reencontraram o
ímpeto revolucionário e o ardor que, apesar de tudo,
caracterizaram a política eclesiástica da direita, a qual,
se expressara os interesses de classe da burguesia, o
fizera num momento em que ela exercia uma função
histórica indubitavelmente progressiva. Com o
transformismo político, o partido da burguesia se foi
consolidando, com uma orientação predominantemente
conservadora e antipopular, mesmo mediante a
cooptação, na área do Governo, da oposição mais
moderada e das forças paulatinamente emergentes. A
esquerda, alcançado o poder, parece nada mudar das
diretrizes essenciais da política eclesiástica: não só
mantém inalterado o sistema de relações com a Igreja
baseado na lei das garantias, como também declara
esta lei como lei fundamental do Estado, em 1878,
enquanto a jurisprudência continua a julgar
substancialmente modificado o art. 1.º do Estatuto no
sentido da "igualdade da liberdade de cultos" e da
plena liberdade "de professar, discutir e ensinar
qualquer doutrina religiosa". É muito pouco o que
acrescenta à legislação eclesiástica da direita (abolição
da fórmula confessional do juramento, abolição dos
"dízimos sacramentais", exclusão da religião dentre as
matérias obrigatórias — depois tornada sem efeito
pelo Conselho de Estado —, igualdade de todos os
cultos para efeitos de tutela penal, secularização das
instituições de beneficência, etc). Empenha-se, no
entanto, com maior vontade política que a direita, mas
nem sempre com sucesso, no plano da ação
422
ESTADO E CONFISSÕES RELIGIOSAS
administrativa e da orientação da magistratura com
vistas à efetiva e concreta aplicação das leis em vigor.
Por outro lado, depois de 1876, começam a manifestarse algumas tendências, internas e externas, à
participação oficial dos católicos na vida política: a
direita vencida pensa num movimento de
"conservadores nacionais" que possa impor-se pelo
voto dos católicos, muitos dos quais tendem a colaborar
com os liberais moderados por razões de sobrevivência
político-social e de luta contra o anticlericalismo
democrático, um anticlericalismo que, no entanto, se
resumiu, em última análise, numa série de "picadas de
alfinete" (Jemolo). Ao mesmo tempo, na época
correspondente ao pontificado de Leão XIII, se verifica
uma série de mudanças na sociedade religiosa,
principalmente no clero e na consciência do segmento
social da Igreja: à democracia "gibelina" começa a
contrapor-se uma democracia "guelfa". A classe
dirigente das últimas duas décadas do século XIX não
dá mostras de advertir o tamanho real de tais
transformações. Presa aos esquemas conflitantes que a
haviam oposto à direita, julgou levar avante seus
desígnios, velando pela aplicação exata da legislação e
multiplicando as manifestações externas contra os
católicos obedientes aos seus sentimentos religiosos,
sem se aperceber das transformações, queridas ou não,
da organização eclesiástica e de que as massas de
trabalhadores fiéis à Igreja e ao seu magistério
"constituem, moral e socialmente, um baluarte muito
mais forte que o que oferecia em outros tempos à Santa
Sé o exército pontifício" (Piovani). A vitória do "Estado
livre" começa a revelar-se menos definitiva do que
tinha sido previsto: é assim que se estabelecem as
bases daquela política que, na dimensão cléricoimperialista do conciliatorismo crispino, produzirá
todos os seus frutos, muito para além da recuperação
do patrimônio de São Pedro, com o neo-temporalismo
concordatário de 1929. Se a questão de Roma
continuava sendo o obstáculo que impedia de chegar
rapidamente à completa colaboração entre o Estado e a
Igreja, para afastar a ameaça da revolução proletária, o
Vaticano já havia compreendido, nos últimos vinte
anos do século passado, que a debilidade da classe
dirigente liberal-moderada lhe poderia permitir
interpor-se como elemento de estabilidade e segurança,
mediante o controle das massas que a Igreja estava
recuperando através das associações devotas, da
organização operária de tipo cooperativo e da rede de
institutos de crédito, em progressivo desenvolvimento,
principalmente na área rural. Deste modo, a Igreja
católica, longe de ser banida, se inseria plenamente
como força operante na sociedade civil, cujas
contradições
INternas lhe permitiriam bem depressa tornar-se um
dos seus elementos importantes.
III. DA "CONCILIAÇÃO SILENCIOSA" À "PAZ" RELIGIOSA
1929. — No início deste século, já estão em
gestação todos os elementos básicos de uma série de
constantes da política eclesiástica que, em 1929,
levarão à conciliação: a) vínculos de natureza
econômico-financeira entre blocos clérico-moderados e,
em alguns casos, como no do Banco de Roma de E.
Pacelli, entre o próprio Vaticano e a classe dirigente
italiana; b) constante necessidade de conservar
determinados interesses de classe, constituídos, por
vezes, sob o medo do "socialismo subversivo",
interesses que, havendo já a Igreja percorrido grande
parte da distância que a separava das restantes forças
que regiam o mundo capitalista (Togliatti), não podiam
deixar de a impelir a exercer a função da conservação
da ordem social existente; c) renúncia por parte da
Santa Sé ao plano do imediato revigoramento interno
— é significativo neste sentido o comportamento da
Civiltà Cattolica por ocasião do Ano Santo de 1900 —
e a sua colaboração, principalmente no plano da
política externa, na expansão e engrandecimento da
Itália; d) conseqüente afirmação da nova ideologia de
uma Roma guerreira, católica, apostólica, romana, que
encontrará sua plena confirmação na conquista da
Etiópia e na participação na guerra da Espanha; e)
progressiva superação das polêmicas em torno da
questão romana, em rigorosa coincidência com a
progressiva crise do Estado laico e liberal, surgido
como antítese do legitimismo pontifício, e com a lenta
sutura da cisão latente entre as forças nacionais e
católicas que tinha impedido a burguesia de concentrar
todas as suas forças e de as usar utilmente no confronto
com o proletariado das fábricas e do campo. A estas
constantes se acrescentarão, no decorrer dos dois
primeiros decênios do século, outras manifestações:
atitudes cada vez mais "nacionalistas" do episcopado
italiano; predomínio de aspirações moralistas e
culturais de tipo racionalista antecedendo o fascismo;
restauração cultural de sentido religioso e nacional.
É em 1904 que se inaugura, com o apoio dos
católicos aos candidatos moderados nas eleições gerais,
aquela política de alianças clérico-moderadas que
expressará, nas eleições de 1913, o chamado Pacto
Gentiloni e de cuja crise, provocada pelo afastamento
de Giolitti dos católicos eleitos, resultará a volta à
direita do Governo Salandra. Ao mesmo tempo, a
guerra da Líbia — em cuja preparação o Vaticano
desempenhará um papel nada secundário, tanto a nível
governativo como a nível de opinião pública —
DE
ESTADO E CONFISSÕES RELIGIOSAS
oferecerá aos nacionalistas o ensejo de entabular um
diálogo direto com os católicos que será intensificado
nos congressos nacionalistas de 1912 e 1914, onde se
sentirá o predomínio das tendências "filoclericais",
representadas por Federzoni, mas muito mais por
Alfredo Rocco, que retomará e desenvolverá os
princípios de política eclesiástica esboçados em 1914
numa série de intervenções ocorridas de 1922-23, nas
quais o Osservatore Romano verá o programa de "um
futuro regime" que prepararia "as consciências . . .
para a pacificação entre o Estado e a Igreja". Na
realidade, as bases ideológicas da conciliação de 1929
e, em geral, da política religiosa de Mussolini já se
encontram exatamente definidas na concepção das
relações Estado-Igreja esboçada por Rocco em 1914.
Se, no início do pontificado de Bento XV, as
relações entre a Itália e a Santa Sé já apresentavam
uma fisionomia nova e singular com o estabelecimento
de intensas relações oficiosas no plano do
entendimento preventivo e da ação do Governo, foi a
Grande Guerra que levou ao efetivo amadurecimento
do processo de superação das polêmicas relativas à
questão romana, orientado no sentido de uma solução
bilateral dos problemas. Era para realizar-se com as
preliminares de um acordo estabelecidas em Paris, em
1919, entre V. E. Orlando e o enviado pontifício mons.
Cerreti, visando à estipulação de um tratado e de uma
concordata. Este processo teve de enfrentar, contudo, a
nova questão católica, surgida do ingresso definitivo
dos católicos na vida pública com o partido popular e
as organizações sindicais cristãs a ele vinculadas. Será
primeiro combatido pelas "facções" clérico-moderadas
e nacional-católicas e depois "usado como refém a
oferecer ao fascismo para a solução jurídica da
questão romana" (Sturzo). Por conseguinte, nas
vésperas do fascismo, a velha classe dirigente e a
hierarquia eclesiástica, em face da escolha entre a
observância das formas legalitárias — que, levando ao
poder as classes expressas pelo voto universal,
mudaria as bases sociais do Estado — e a indulgência
com a violência dos grupos de ação — que, pensavam,
acabariam por robustecer as forças do poder —, não
puderam senão inclinar-se pela solução que tornava
estável a ordem social existente.
A Igreja, particularmente, compreendera em
seguida que não poderia obter de uma aliança entre o
movimento proletário e o partido católico quanto
estava certa de obter de um auspiciado predomínio, no
fascismo, dos grupos mais tipicamente conservadores
que eliminariam, ao mesmo tempo, tanto a ala
intransigente como a ala liberal do partido de
Mussolini, cuja atitude para
423
com os partidários do povo está em estreita relação
com as bases da reforma da legislação eclesiástica dos
anos 1923-25 (unilateral, mas estabelecida com o
acordo do Vaticano), com as relações entre o Governo
e os clérico-fascistas por ocasião das eleições políticas
de 1924, e com a eliminação dos sindicatos brancos.
Ações, aliás, que podem facilmente inscrever-se na
política dos Governos pré-fascistas, política de
hostilidade com relação ao popularismo, de eliminação
da questão católica, último equívoco no caminho do
entendimento com a Igreja para a solução jurídica da
questão romana. Assim se levou a termo a concentração
de todas as forças da burguesia. A cisão na política e
na legislação eclesiástica — aliás muito relativa —
deu-se com a mudança dada ao regime com o discurso
de Mussolini de 3 de janeiro de 1925, que marcou o
início efetivo, no plano das relações Estado-confissões
religiosas, da restauração política que havia de levar,
em fevereiro de 1929, à conciliação entre a Itália e a
Santa Sé, assente naquelas mesmas bases que A.
Rocco, retomando as concepções já delineadas em
1914, havia exatamente arquitetado e indicado nas
vésperas da marcha sobre Roma e que,
conseqüentemente, vinha a realizar-se não tanto em
sentido "fascista", como quis a retórica fascista e, em
geral, o antifascismo, quanto em função da defesa da
sociedade capitalista e da ordem social existente num
momento em que a substância do conflito do
ressurgimento italiano tinha há muito perdido todo o
caráter de reivindicação territorial, mas em que a
recuperação do poder temporal assumira formas e
significados bem diversos, mas muito mais concretos
e complexos que os reivindicados pelo papa Mastai.
IV. DA LEGISLAÇÃO FASCISTA À CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. — Ao Tratado, à Concordata e à
Convenção Financeira de 11 de fevereiro de 1929 —
que sancionaram bilateralmente a conciliação com a
Igreja católica — o fascismo acrescentou uma série de
disposições unilaterais, visando regular a vida das
demais confissões religiosas, não mais toleradas, mas
admitidas (Lei n.° 1.159, de 1929, e Decr. Rég. 289 e
1731, de 1930). Estas disposições introduziam uma
profunda diferença de tratamento jurídico entre a
religião católica e os outros cultos. Para estes, com
efeito, era prescrita a aprovação governamental para a
nomeação dos ministros do culto, a autorização por
régio decreto para a abertura de templos e oratórios,
uma verdadeira série de rigorosas formas de controle
das instituições e a discriminação entre cidadãos
católicos e acatólicos em matéria matrimonial
(excetuados os judeus das ilhas do
424
ESTADO E CONFISSÕES RELIGIOSAS
Egeu e da Líbia). Estas normas foram completadas em
1938 com "Providências para a defesa da raça
italiana" e com várias outras disposições que
privavam os judeus de certo número de direitos e
liberdades, mesmo sob o aspecto religioso-cultural.
As relações com a Igreja católica se mantiveram
substancialmente boas ao longo de vinte anos de
fascismo, desenrolando-se dentro do sistema
concordatário. Nenhuma das partes conseguiu,
contudo, atingir os objetivos prefixados: o da
reconstrução de um "Estado católico", da parte
eclesiástica, e o da "fascistização" da Igreja, da parte
fascista. Os únicos momentos de crise, em 1931 e
1938, foram devidos às polêmicas respeitantes à Ação
Católica que a Santa Sé, à sombra dos privilégios
lateranenses, pretendia transformar num grande
frigorífico (De Felice), onde hibernassem os católicos
militantes, protegidos da inquinação ideológica, à
espera de tempos melhores que permitissem a sua
transformação em classe dirigente, capaz de substituir
a fascista ou, na pior das hipóteses, capaz de a
defrontar, não sendo possível catolicizá-la. Com os
acordos de 1931, o regime obteve a reafirmação do
caráter religioso, da "diocesanidade" da Ação Católica,
e da sua estreita dependência da hierarquia eclesiástica;
com os de 1938, a suspensão das hostilidades
pontifícias, prelúdio da reforma dos estatutos de 1939,
que serão julgados "de acordo com os desejos do
Governo". Pouco mais de uma década era passada sobre
o dia 3 de janeiro de 1925 e Mussolini se apercebia de
não ter conseguido absorver as grandes forças que, no
entanto, lhe haviam permitido tomar definitivamente o
poder (a monarquia, o Vaticano e a grande burguesia) e
que, por isso, se tornariam o alvo dos ataques, se não
conseguissem sobreviver-lhe gloriosamente (o que
aconteceu por pouco tempo com a monarquia). Foi
assim que lhe sobreviveram os Pactos de Latrão,
expressamente
mencionados pela
Constituição
republicana (art. 7.°), que sancionou, graças à
insistência da Democracia Cristã, a manutenção
integral, com todas as suas bases, da ordem políticojurídica estabelecida para as relações entre o Estado e
as confissões religiosas no tempo do fascismo, fazendo
dela um dos elementos básicos da continuidade
institucional, que, diga-se ainda, mercê dos direitos de
liberdade individual e coletiva aprovados pela Carta de
1948, acabou por ampliar o campo da intervenção da
Igreja na vida pública para além dos limites desejados
pelo legislador concordatário, oferecendo ao partido da
união dos católicos instrumentos decisivos para a sua
consolidação. A questão democristã vinha, sob este
aspecto, de encontro à questão concordatária, exigindo
do
partido de De Gasperi, para poder garantir o pleno
apoio da Igreja, que lhe permitisse manter a situação
privilegiada sancionada pela legislação lateranense. É
assim que se explica o contraste existente entre os
aspectos mais avançados da nova ideologia
constitucional (igualdade dos cidadãos sem distinção
de religião, defesa dos direitos do homem até mesmo
dentro das organizações sociais "intermédias",
liberdade igual para as confissões religiosas, liberdade
de reunião e de associação, defesa dos direitos
individuais e coletivos à liberdade religiosa, liberdade
de expressão de pensamento, liberdade de ensino,
igualdade de acesso às profissões e cargos públicos,
etc.) e a linha conservadora das estruturas jurídicas
existentes (recusa não só da abolição como também de
qualquer modificação do conjunto de normas derivadas
dos acordos de Latrão, continuidade da autolimitação
dos poderes do Estado em matérias mesmo não
pertencentes à ordem da Igreja), cuja prevalência,
passando através da divisão dos partidos da esquerda
operária, levou àquela referência específica do art. 7.º
da Constituição ("As suas relações são reguladas pelos
Pactos de Latrão") que fez com que uma magistratura
particularmente sensível às orientações políticas
dominantes atribuísse a cada uma das normas dos
Protocolos de 1929 "o mesmo valor e a mesma
eficácia que teriam, se houvessem sido incluídas na
Carta Constitucional ou... aprovadas por lei
constitucional, e, poderia dizer-se ainda, um valor até
maior, devido à sancionada inaplicabilidade do
processo de revisão constitucional" (Tribunal de
Cassação, 23 de junho de 1964). Só depois da
introdução do divórcio (dezembro de 1970), já no fim
da V legislatura que, com a maioria do centroesquerda, começou a sentir o degelo parlamentar do
problema da revisão da Concordata, começa a abrir
caminho na jurisprudência da Corte Constitucional a
hipótese de que o art. 7.º da Constituição, ao
reconhecer ao Estado e à Igreja uma mútua posição de
independência e soberania, mesmo que haja dado
importância constitucional aos Pactos de Latrão, "não
pode ter o poder de negar os princípios supremos do
ordenamento constitucional do Estado" (Corte
Constitucional, 30/1971).
Quanto às demais confissões religiosas, embora a
Constituição as haja equiparado à católica no plano de
uma "igual liberdade" e lhes haja reconhecido o direito
de "se organizarem segundo os próprios estatutos" e
de verem reguladas as suas relações com o Estado por
meio de leis vinculadas a prévios "entendimentos" com
seus representantes (art. 8.°), todo o sistema
legislativo referente à sua condição jurídica e
atividade, em vigor antes de 1948, continuou vigente
apesar
ESTADO MODERNO
do seu manifesto contraste com os princípios
constitucionais. Mais: os órgãos competentes do
Estado, em vez de interpretar tal sistema dentro do
espírito da Constituição, lançaram mão de todos os
meios, "recorrendo às disposições mais iliberais da
época fascista para complicar e impedir a regular
satisfação das aspirações religiosas das minorias
religiosas italianas" (Lariccia).
V. A QUESTÃO DA CONCORDATA. — A
questão da Concordata, ou seja, a questão da
adaptação da legislação originada nos acordos de
Latrão aos princípios da Constituição, e a dos
entendimentos com as confissões religiosas não
católicas mantêm-se, mais de trinta anos decorridos
desde a promulgação da Carta republicana, ainda
abertas e sem solução. De 1967 a 1978, o Parlamento
não cessou de manifestar a sua vontade a favor de
modificações — de acordo com a Santa Sé — dos
Pactos de Latrão e do estabelecimento de acordos
específicos para regulamentação das relações com as
confissões não católicas. São conhecidos pelo menos
cinco projetos de revisão da Concordata (unilateral o
de 1969, negociados com a Santa Sé os de 1976, 77,
78 e 79; há ainda outro de 1980, mas não foi
publicado); dois projetos de acordos com as confissões
dos valdenses e metodistas; um projeto de acordo com
a religião judaica. Nenhum dos Governos que se
sucederam na Itália a partir de 1967 e, sobretudo, a
partir do começo das negociações com o Vaticano
(1976) conseguiram resolver os pontos essenciais das
relações
Estado-Igreja
(instituições
e
bens
eclesiásticos, atividades não eclesiásticas das
instituições, instrução religiosa nas escolas públicas,
reconhecimento das sentenças eclesiásticas nas causas
matrimoniais, etc.) de modo que fosse possível enviar
ao Parlamento um texto suscetível de ser aprovado. A
questão da Concordata acabou também por bloquear a
aprovação dos acordos com os valdenses e metodistas,
preparados por uma comissão mista apropriada.
Na realidade, como parece evidente desta breve
alusão às referências históricas relativas à
problemática
das
relações
Estado-confissões
religiosas, o sistema em vigor acha-se ainda ligado a
uma estrutura social inalterada quanto às relações de
poder, não obstante as profundas transformações da
sociedade italiana e a progressiva secularização da
mentalidade e dos comportamentos verificados nestas
últimas décadas. Basta pensar nos resultados
referendários de 1974 e 1981 sobre dois temas, o
divórcio e o aborto, estreitamente vinculados a tal
sistema. É um sistema que não poderá, por
conseguinte, modificar-se sem uma paralela e efetiva
mudança nas relações entre as classes sociais.
425
BIBLIOGRAFIA. — AUT. VÁR., Cinquant'anni di
concorda-to. La Nuova Italia, Firenze 1979 (fasc. espec.
de "II Ponte", XXV, 2-3); Id., Stato democratico e
regime pattizio. Giuffrè, Milano 1977; Id., Teoria e
prassi delle libertà di religione, Il Mulino, Bologna
1975; Id., Un secolo da Porta Pia. Guida, Napoli
1970; G. CATALANO, Sovranità dello Stato e
autonomia della Chiesa nella Costituzione, Giuffrè,
Milano 1974; M. FALCO, Sulla condizione giuridica
delle minoranze religiose in Italia. Firenze 1934; G.
FUBINI, La condizione giuridica dell ebraismo italiano.
La Nuova Italia, Firenze 1974; A. C. JEMOLO, Chiesa e
Stato in Italia negli ultimi cento anni. Einaudi, Torino
19632; F. MARGIOTTA BROGLIO, Italia e Santa Sede
dalla grande guerra alla Conciliazione. Laterza, Bari
1966; Id., Stato e confessioni religiose, I. Fonti, II.
Teorie e ideologie. La Nuova Italia, Firenze 1975-77;
Indivíduo, gruppi. confessioni religiose nello Stato
democratico, ao cuidado de A. RAVA, Giuffrè, Milano
1973; F. RUFFINI, Relazioni tra Stato e Chiesa. Il
Mulino, Bologna 1974; Chiesa e Stato nella storia
d'Italia. ao cuidado de P. SCOPPOLA, Laterza, Bari
1967; G SPADOLINI, La questione del concordato, Le
Monnier, Firenze 1976 Indicações bibliográficas
completas poderão também ser encontradas in S.
LARICCIA. Diritto ecclesiastico italiano. Bibliografia
1929-1972, Giuffrè. Milano 1974; e Bibliografia 19731980, Cedam, Padora 1980; Id., Bibliografia sui Patti
Lateranensi (1929-1979), in AUT. VÁR.. Cinquant'anni
di Concordato. cit.
[FRANCESCO MARGIOTTA BROBLIO]
Estado Moderno.
I. O ESTADO MODERNO COMO FORMA HISTÓRICA
DETERMINADA. — "Para a nossa geração, reentra agora,
no seguro patrimônio do conhecimento científico, o
fato de que o conceito de 'Estado' não é um conceito
universal, mas serve apenas para indicar e descrever
uma forma de ordenamento político surgida na Europa
a partir do século XIII até os fins do século XVIII ou
inícios do XIX, na base de pressupostos e motivos
específicos da história européia e que após esse
período se estendeu — libertando-se, de certa maneira,
das suas condições originais e concretas de nascimento
— a todo o mundo civilizado." Esta afirmação de
Ernst Wolfgang Boeckenfoerde pode servir bem como
ponto de partida, depois de esclarecermos que o
método aqui adotado é o método histórico-crítico,
entendido, de uma parte, como método destinado a dar
ao fenômeno que se quer estudar a necessária
espessura conceptual e, de outra parte, a marcar as
exatas fronteiras dentro das quais se pode usar
homogeneamente tal conceito. Em tal sentido, o
"Estado moderno europeu" nos aparece como uma
forma de organização do poder
426
ESTADO MODERNO
historicamente determinada e, enquanto tal,
caracterizada por conotações que a tornam peculiar e
diversa de outras formas, historicamente também
determinadas e interiormente homogêneas, de
organização do poder.
O elemento central de tal diferenciação consiste,
sem dúvida, na progressiva centralização do poder
segundo uma instância sempre mais ampla, que
termina por compreender o âmbito completo das
relações políticas. Deste processo, fundado por sua
vez sobre a concomitante afirmação do princípio da
territorialidade da obrigação política e sobre a
progressiva aquisição da impessoalidade do comando
político, através da evolução do conceito de officium,
nascem os traços essenciais de uma nova forma de
organização política: precisamente o Estado moderno.
Max Weber definiu o caráter da centralização —
válido, sobretudo, era nível histórico-institucional —
em algo marcadamente politológico,
como
"monopólio da força legítima''. A observação permite
compreender melhor o significado histórico da
centralização, colocando à luz, para além do aspecto
funcional e organizativo, a evidência tipicamente
política da tendência à superação do policentrismo do
poder, em favor de uma concentração do mesmo, numa
instância tendencialmente unitária e exclusiva. A
história do surgimento do Estado moderno é a história
desta tensão: do sistema policêntrico e complexo dos
senhorios de origem feudal se chega ao Estado
territorial concentrado e unitário através da chamada
racionalização da gestão do poder e da própria
organização política imposta pela evolução das
condições históricas materiais.
Isto implica a pesquisa de forças históricas que
interpretaram o novo curso e se tornaram portadoras
dos novos interesses políticos em jogo. Nos seus
termos essenciais, a forma de organização do poder,
conforme a tais interesses, se opõe a um mundo
político caracterizado por dois aspectos de fundo,
aparentemente contraditórios. O primeiro é a
concepção universalista da respublica christiana,
enunciada na teoria e atuada na prática, da parte papal,
através da luta das investiduras (1057-1122); por ela
foram colocadas as premissas para a ruptura
irremediável da unidade político-religiosa que ainda
regia a vida política do Ocidente. Na verdade — e este
é o segundo aspecto — mesmo proclamando o
primado do espiritual sobre o político, a fim de
solidificar mais seu próprio primado, de fato, o Papa
reconhecia a autonomia, pelo menos potencial, da
política e oferecia o terreno em que poderiam sediarse, mover-se, fortalecer-se e enfim prevalecer os
interesses temporais que brotam das novas relações
econômicas e sociais. Estas, de seu
lado, agiam com efeitos devastadores sobre os espaços
fechados e limitados dos senhorios feudais, fundados
sobre uma economia natural exclusivamente agrícola e
de troca e sobre a organização social correspondente,
estática e integrada, prevalentemente concentrada
sobre as relações pessoais do senhor com seus
subordinados.
O encontro dos dois movimentos descritos, do alto
e do baixo, realizou-se bastante lentamente num
primeiro plano, espacial, constituído pelo "território":
extensão física suficientemente ampla de terreno, de
modo a permitir a crescente integração de interesses e
de relações entre grupos vizinhos e a receber o
reconhecimento e a disciplina institucional. É a
passagem que Theodor Mayer sinteticamente definiu
na tese "do Estado para associações pessoais ao Estado
territorial institucional" (Personenverbandtstaat e
Institutioneller Flaechenstast).
O segundo plano no qual se deu o encontro liga-se
ainda mais ao momento institucional e ao problema da
organização do poder, através da aparição, em diversos
"senhorios" antigos em que originariamente se situava
o novo "território", de um momento sintético de
decisão e de Governo, representado pelo senhor
territorial, ou seja, pelo príncipe, com o Governo do
qual o antigo e genérico senhorio, de conteúdo
prevalentemente pessoal, se transforma numa
soberania de conteúdo marcadamente político. É a
passagem do senhorio terreno (Grundherrschaft) à
soberania territorial (Landeshoheit), através da
Landesherrschafl. Ambos os planos exprimiam,
porém, um dado de fundo comum, na medida em que
serviam para dar forma — uma das formas possíveis —
a novos conteúdos políticos, surgidos da mudança
social levada a cabo e gerida pela incipiente burguesia,
em vias de achar o próprio espaço exclusivo de ação
nas coisas do mundo, cada vez mais esperadas das
coisas do céu, e, portanto, cada vez mais necessitadas
de regimes e de segurança imediata e atual, mais do
que de estimativas morais e de promessas
ultraterrenas. Não foi por acaso que o Terceiro Estado
ofereceu ao príncipe, em sua maioria, os "auxiliares"
de que se serviu para fundar, teoricamente, e colocar
em ato, concretamente, sua nova soberania.
A sucinta descrição que acabamos de fazer
representa, em suas linhas gerais, o "Estado" político
da Europa cristã na idade imediatamente pré-moderna,
a saber entre o século XIII e o século XVI. Este é, por
outro lado, o significado que o termo "Estado" (Status,
Estat, Estate, Staat) geralmente possui nos
documentos do tempo: indica a condição do país,
tanto em seus dados sociais como políticos, na sua
constituição material, nos traços que constituem seu
ordenamento: a
ESTADO MODERNO
condição do príncipe e de seus auxiliares, das
camadas que representavam a organização do poder
que delas derivava. O "Estado", em conclusão, de
tudo o que diz respeito à esfera da vida humana
organizada, não diretamente voltada para fins
espirituais. "A distinção entre o espiritual e o
mundano, inicialmente introduzida pelos Papas para
fundamentar o primado da Igreja, desencadeou agora
sua força na direção do primado e da supremacia da
política."
II. O ESTADO COMO "ORDEM POLÍTICA". — A
transição, entretanto, não foi indolor, se é verdade que
as lutas religiosas que laceraram a Europa nos séculos
XVI e XVII devem ser consideradas como matriz e
ponto necessário de passagem da nova forma de
organização do poder expressamente político. A
dramaticidade de tal gênese é, ainda, exaltada pelo fato
de que o conflito religioso encontrou, por fim, sua
solução — destacadamente na França e também na
Alemanha e na Inglaterra — não no triunfo de uma fé
sobre a outra mas na superação das pretensões de
fundar um poder sobre uma fé. Para além das partes
em contenda entrincheiradas em duas frentes opostas
pela conservação dos resíduos do policentrismo do
poder em bases senhoriais, fundado nas antigas
liberdades feudais agora em vias de se transformar nos
modernos direitos inatos, e da rigorosa afirmação do
poder monocrático do rei sobre as tradicionais bases
divinas e pessoais, teve a melhor visão técnica do poder,
entendido como ordem externa necessária para
garantir a segurança e a tranqüilidade dos súditos, se
concentrava expressamente sobre a realização do
processo de integração e de reunificação do próprio
poder na pessoa do príncipe, amparado por uma
máquina administrativa (a organização dos serviços)
eficiente e funcional aos interesses dos estratos sociais.
A doutrina dos politiques, expressão própria do
primeiro funcionalismo da monarquia francesa e,
através dele, das forças mais vivas do "Terceiro
Estado", se resume na necessidade da unidade do país,
na observância das ordens do soberano como lei
suprema e no reconhecimento do próprio soberano e
da sua soberania como instância neutral, colocada
acima dos partidos e dos súditos: a única em grau de
conservar a paz. A religião cessa de ser parte
integrante da política. Esta última se justifica, agora, a
partir de dentro, para os fins a que é chamada a
realizar, que são os fins terrenos, materiais e
existenciais, do homem: em primeiro lugar a ordem e
o bem-estar.
É fácil de entender, neste processo, o papel
desenvolvido pelas chamadas premissas necessárias
para o nascimento da nova forma de
427
organização do poder. A unidade de comando, a
territorialidade do mesmo, o seu exercício através de
um corpo qualificado de auxiliares "técnicos" são
exigências de segurança e de eficiência para os
estratos de população que de uma parte não conseguem
desenvolver suas relações sociais e econômicas no
esquema das antigas estruturas organizacionais e por
outra individuam, com clareza, na persistência do
conflito social, o maior obstáculo à própria afirmação.
Desde a sua pré-história, o Estado se apresenta
precisamente como a rede conectiva do conjunto de
tais relações, unificadas no momento político da
gestão do poder. Mas é só com a fundação política do
poder, que se seguiu às lutas religiosas, que os novos
atributos do Estado — mundaneidade, finalidade e
racionalidade — se fundam para dar a este último a
imagem moderna de única e unitária estrutura
organizativa formal da vida associada, de autêntico
aparelho da gestão do poder, operacional em processos
cada vez mais próprios e definidos, em função de um
escopo concreto: a paz interna do país, a eliminação
do conflito social, a normalização das relações de
força, através do exercício monopolístico do poder por
parte do monarca, definido como souverain enquanto é
capaz de estabelecer, nos casos controversos, de que
parte está o direito, ou, como se disse, de decidir em
casos de emergência. Com Bodin, o mais conhecido
dos politiques e com Hobbes, que, meio século depois,
nos oferece, em bases ainda mais rigorosas e modernas,
uma conclusão análoga, a fundação mundana do poder
unitário e concentrado, totalitário e absoluto se
completa. É este o caráter essencial do novo Estado
incluindo o plano institucional e organizativo. Em
referência ao mesmo, já se falou de Estado-máquina,
de Estado-aparelho, de Estado-mecanismo, de Estadoadministração: em qualquer dos casos se trata de uma
organização das relações sociais (poder) através de
procedimentos técnicos preestabelecidos (instituições,
administração), úteis para a prevenção e neutralização
dos casos de conflito e para o alcance dos fins terrenos
que as forças dominadoras na estrutura social
reconhecem como próprias e impõem como gerais a
todo o país. Isto tornou-se possível dentro de uma
nova visão do mundo, resultante da passagem de uma
concepção da ordem como hierarquia prefixada e
imutável de valores e de fins, estendida a todo o
universo, ordem à qual a esfera social não podia senão
adequar-se através de uma articulação interna que
respeitasse a harmonia do cosmos, estendida, enfim, a
uma ordem mais restrita e imediata, mas mais atinente
ao homem: a ordem mundana das relações sociais, que
o homem podia e devia gerenciar diretamente com os
428
ESTADO MODERNO
instrumentos de que dispunha, com base nas
necessidades e nas capacidades de sua natureza. E é
esta última, indagada sempre mais profundamente em
suas conotações empíricas e materiais (por obra
primeiramente de Hobbes) que fornece a necessária
passagem lógica entre a própria vida do homem no
mundo — carga de medo e de egoísmo, necessitada
de paz e bem-estar — e Deus sempre mais abstrato e
"escondido" que tudo justifica.
A ordem estatal torna-se assim um projeto "racional"
da humanidade em torno do próprio destino terreno: o
contrato social que assinala simbolicamente a
passagem do Estado de natureza ao Estado civil, não é
mais do que a tomada de consciência por parte do
homem dos condicionamentos naturais a que está
sujeita sua vida em sociedade e das capacidades de que
dispõe para controlar, organizar, gerir e utilizar esses
condicionamentos para sua sobrevivência e para seu
crescente bem-estar. Mas desde o momento em que
tudo isto pressupõe a instauração da ordem "política"
que visa a eliminação preventiva dos conflitos sociais,
surge imediatamente o problema do lugar ocupado
nessa estrutura pelos grupos sociais tradicionais e
pelos grupos em vias de formação (camadas, classes),
na sua pretensão de exercício de uma função de
hegemonia sobre toda a comunidade. A partir do
sucesso diferente e dos vários graus de domínio que
tiveram as velhas e novas forças sociais, surgiram as
diferenças verificadas em diversos países e em diversos
momentos históricos em torno do modo geral de
organização das relações sociais, como variantes do
mesmo modelo geral de Estado, detentor do monopólio
da força legítima.
de uma valiosa organização das forças sociais
tradicionais, em dois planos, estreitamente afins, o da
decisão e o da administração. O elemento unificante do
dualismo constitucional que daí resulta é
principalmente constituído pelo motivo financeiro que
desde o início se apresenta como um dos mais sólidos
fios condutores da experiência estatal moderna. A
origem "senhoril" do poder monárquico foi na verdade
de tal maneira marcada que depressa condicionou o
processo de formação do aparelho estatal por causa da
absoluta insuficiência das entradas privadas do
príncipe para a instauração de uma administração
eficiente e sobretudo para a criação de um exército
estável. Daí resultou a absoluta necessidade do
príncipe de recorrer à ajuda do "país", através de suas
expressões políticas e sociais: as categorias sociais
reunidas em assembléia. Entende-se facilmente que tal
ajuda não podia deixar de ser subordinada a um prévio
"conselho" da parte das próprias camadas sociais, em
torno dos fins para os quais o príncipe tinha sido
obrigado a solicitar sua ajuda financeira. O conselho
era normalmente acompanhado de um controle
posterior para gerir as somas cobradas, que muitas
vezes se transformava numa autêntica administração
direta por parte das categorias em torno da cobrança
feita. Junte-se a isto que a posição de força ocupada
por estas camadas sociais no nascente Estado
territorial tinha importantes reflexos no plano
constitucional, na participação que eles obtinham e
exerciam nos mais altos cargos administrativos e
políticos que paulatinamente ia surgindo para
acompanhar o crescimento da dimensão estatal.
Que tudo isto constituísse um elemento contraditório
à tendência de fundo do Estado moderno, entendida
III. DA ANTIGA SOCIEDADE POR CAMADAS ATÉ A como tendência para a centralização e para a gestão
MODERNA SOCIEDADE CIVIL. — Na impossibilidade de monopolista do poder por parte de uma instância
seguir detalhadamente toda a evolução, bastará indicar unitária, e monocrática, ainda que apoiada sobre um
o módulo fundamental em que ela gira e destacar a sólido aparelho de serviços, não há necessidade sequer
persistência na primeira fase de organização do Estado de demonstrá-lo. O desenvolvimento constitucional do
moderno da articulação social por camadas (baseadas Estado moderno devia desenvolver-se contra as
no reconhecimento jurídico dos "direitos" e categorias sociais, em função da eliminação do seu
"liberdades" tradicionais e no prestígio da posição poder político e administrativo. Mais ainda: talvez seja
social adquirida) e a prefiguração contemporânea, possível afirmar que se pode falar de Estado moderno
nessa evolução, de um modo diferente de articulação em sentido próprio apenas quando o dualismo
social, horizontal e não vertical, fundada sobre a constitucional típico do "Estado por categorias sociais"
posição de classes no confronto das relações de foi definitivamente alojado. Que isto tenha podido
produção capitalista. Debaixo do primeiro perfil se acontecer com relativa facilidade, depende do fato de
fala normalmente de SOCIEDADE POR CATEGORIAS ou que aquele poder era na realidade fundado numa
CAMADAS (v.) para indicar a fase inicial do Estado concepção e numa organização das relações sociais no
moderno, caracterizada pela unidade territorial e pela velho estilo. Não é por acaso que hoje se prefere falar,
emergência
de
uma
instância
de
poder em vez de "Estado por categorias sociais", de
tendencialmente hegemônico na figura do príncipe e
também pela presença
ESTADO MODERNO
"antiga sociedade por categorias sociais": isto
evidencia de forma nítida o caráter não diferenciado
de uma estrutura organizativa em que a separação
entre social e político não se havia ainda verificado
inteiramente e persistia uma articulação policêntrica,
com base na prevalência senhorial ou "pessoal" do
poder. O Estado moderno significava precisamente a
negação de tudo isto: a instauração de um nível
diferente da vida social, a delimitação de uma esfera
rigidamente separada de relações sociais, gerenciada
exclusivamente de uma forma política, no sentido não
equívoco visto acima. Em tal esfera reentravam,
também mais ou menos diretamente, os tradicionais
"direitos e liberdades" das categorias sociais; mas as
mesmas eram submetidas à gestão unitária e política
de que toda a esfera dependia, por parte do príncipe
monocrático soberano que garantia o direito. A
validade desses direitos e dessas liberdades era
confiada à decisão do príncipe e tornava-se sempre
mais discutível, na medida em que lentamente
diminuía o motivo da força das categorias sociais
frente ao Estado moderno: o motivo financeiro. Pouco
a pouco, o príncipe acantonou o "direito de aprovação
dos impostos" dos grupos sociais, inventando modos e
canais de exação das contribuições controladas e
administradas diretamente por ele, e as categorias
sociais perderam a sua posição constitucional
originária e viram reduzida a sua presença — que até
aqui tinha sido global dentro de uma visão do mundo
que não conhecia distinção entre o social e o político,
entre sociedade e Estado — à esfera social. É neste
âmbito que elas não cessaram de representar um papel
mais ou menos importante segundo os diversos países,
continuando, algumas vezes, a exercer relevantes
influências políticas, mantendo e organizando
fermentos de resistência que não devem ser
desprezados em relação ao príncipe absoluto.
Esse processo foi possível, conforme se acentuou,
graças à progressiva conquista, por parte do príncipe e
de seu aparelho administrativo, da esfera financeira, à
qual estava intimamente ligada a esfera econômica do
país. Isto pode acontecer, em primeiro lugar, graças ao
apoio que o príncipe facilmente encontrou, na sua luta
contra os privilégios, até fiscais, da mais importante
das categorias sociais: a nobreza. Este apoio veio da
parte dos estratos mais empenhados da população e
particularmente da burguesia urbana, na mira de uma
distribuição dos encargos fiscais mais justa entre as
várias forças do país e, também, de uma ativa política
de defesa, de sustentação e de estímulo do príncipe em
relação à atividade manufatureira e comercial. A
importância de que foram revestidos, no plano insti-
429
tucional, os comissários fiscais do príncipe em ambos
os sentidos e ainda mais o papel centralíssimo do
conceito de "bem-estar'' como objetivo da política
econômica e como premissa da política fiscal do
Estado mercantilista demonstram claramente a
obrigatoriedade desta passagem para o crescimento do
Estado moderno.
A redução das categorias sociais à faixa social,
desvinculada da política em que dominava o aparelho
estatal, significou também a superação definitiva
daquela organização das relações inter-humanas que
era característica da antiga sociedade por categorias
sociais, na qual, para além da distinção entre público e
privado, não era admitida nenhuma presença política
do indivíduo, totalmente absorvido pela dimensão
comunitária de membro de um corpo social — desde a
família até a representação de categoria — através da
qual a vida social encontrava sua explicação. Logo que
o Estado — o príncipe e seu aparelho de poder — se
tornou monopolista na esfera política — os seus
interlocutores diretos não foram mais as categorias,
mas os indivíduos — súditos em cada esfera da sua
vida "privada". Este dado que encontra infinitos dados
na história cultural e religiosa do Ocidente nos séculos
XVII e XVIII constitui o terreno de base no qual se
constitui em primeiro lugar, a tomada de consciência
por parte do indivíduo da identidade e da característica
comum de seus interesses privados. Secundariamente,
e em conseqüência disso, a primeira organização de
tais interesses através de uma atitude sempre menos
passiva e mais crítica em relação à gestão estatal por
parte da força histórica que havia proporcionado a
superação da antiga estrutura feudal: o príncipe. É por
essas vias e sobretudo na base do desenvolvimento
econômico, verdadeiro princípio unificador dos
interesses comuns dos súditos, severamente
empenhados não apenas na defesa das coisas privadas
mas na valorização política do domínio privado, que
se foi formando a moderna "sociedade civil" como
conjunto organizado dos interesses privados, e, dentro
dela, a primordial diferenciação em classes, na base de
uma dominação sempre menos contrastada conseguida
pelo novo modo de produção capitalista.
IV. A CONCEPÇÃO LIBERAL DO ESTADO E A
SUA CRISE. — Foi exatamente no momento
culminante da' forma de organização do poder da
Idade Moderna, ou seja, no âmbito do Estado absoluto,
que se operacionalizou a colocação em crise da
legitimação exclusiva do príncipe à titularidade do
próprio poder através da tentativa de requalificação
política das posições privadas que no período
intercalar se vinham mais ou menos
430
ESTADO MODERNO
conscientemente organizando a nível social. Que tal
andamento apresente defasagens cronológicas não
indiferentes nos países do Ocidente, sobretudo no que
respeita à experiência continental e anglo-saxônica,
parece não alterar o significado do processo descrito
(ao menos em seu sentido global), o qual consiste na
contestação, por obra dos movimentos revolucionários
modernos, não já da estrutura de poder submetido ao
Estado
absoluto,
mas
principalmente
da
personificação histórica que tal estrutura tinha
recebido na figura do monarca. A unicidade do
comando, o seu caráter de última decisão, a sua
possibilidade de atuação através de um sólido aparato
profissional de órgãos executivos e coativos: tudo isto
não muda, como não muda o objetivo de fundo a que
tudo isto era dirigido: a instauração e a manutenção da
ordem.
Apenas que esta ordem, embora continuasse a
apresentar-se como exclusivamente mundana, racional
e técnica, perde o significado prevalentemente neutral,
de defesa do conflito social e de garantia da liberdade
subjetiva que tinha tido até aqui, para ganhar
lentamente conotações positivas, de realização e
desenvolvimento de interesses mais precisos, descritos
e apresentados como próprios do indivíduo, agora
colocado ao nível de protagonista direto da vida civil e
política. São os valores do indivíduo os que
completam agora a ordem estatal: esta última se
apresenta precisamente através da mediação
jusnaturalística, como a soma e a codificação
racionalizada dos valores individuais. O profundo
enraizamento social destes últimos na sociedade civil,
agora plenamente organizada, faz com que, finalmente,
a própria ordem se finja pessoa e assuma para si os
elementos de legitimação do poder e de explicação do
mesmo que até então tocavam ao príncipe, agora
descrito como um "déspota"; na melhor das hipóteses
como déspota paterno e iluminado. Isto torna-se tanto
mais plausível quanto são os próprios indivíduos que
detêm os instrumentos diretos de determinação de tal
ordem, através da conquista fatigante do poder de
decisão (o de consumo, ou seja, o poder legislativo)
por parte da força hegemônica da sociedade
organizada: a burguesia. Esta última, em virtude da
estrutura não mais vertical mas horizontal de nova
ordem social, pode exercer, em primeira pessoa,
embora em nome de todos, o poder de Estado, o qual
achou, por sua vez, a própria encarnação no
ordenamento jurídico e a própria justificação material
na ordem natural da economia. O Estado continuou a
existir em sua dimensão histórica; no plano
institucional bem pouco mudou na passagem do antigo
para o novo regime; pelo contrário, os traços essenciais
do Estado moderno foram
ulteriormente aperfeiçoados e reforçados, em
correspondência com o progressivo caráter técnico
assumido pelo Governo e pela administração, à qual
se tinha reduzido toda a carga de neutralidade que
desde o início havia caracterizado a experiência estatal
como monopólio político. O fenômeno se enquadrava,
por sua vez, num processo mais geral de formalização
do próprio Estado para o qual se tornava cada vez
menos necessária a personificação na figura do
monarca e sempre mais indispensável a conotação
abstrata dentro de esquemas logicamente sem objeção
e convencionais, o principal dos quais era exatamente
a lei, a norma jurídica.
A passagem da esfera da legitimidade para a esfera
da legalidade assinalou, dessa forma, uma fase ulterior
do Estado moderno, a do Estado de direito, fundado
sobre a liberdade política (não apenas privada) e sobre
a igualdade de participação (e não apenas pré-estatal)
dos cidadãos (não mais súditos) frente ao poder, mas
gerenciado pela burguesia como classes dominantes,
com os instrumentos científicos fornecidos pelo
direito e pela economia na idade triunfal da Revolução
Industrial.
É em relação a este Estado, fundado sobre o direito,
a ponto de ter sido levado a coincidir com o
ordenamento jurídico que respeita o indivíduo, e seus
direitos naturais e também a sociedade e suas leis
naturais, sobretudo no campo da economia, que foi
proposta a definição de "instrumento de domínio da
classe dominante" e que foi desenvolvida a coerente
diagnose da sua necessária eliminação, uma vez que
aquele domínio podia ter sido concentrado, graças à
instauração de uma sociedade sem classes. Mas é em
relação a este mesmo Estado que se exerceu z.
capacidade de sobrevivência da sociedade civil,
burguesa, com o emprego de meios cada vez mais
refinados de auto-organização e de controle da ordem
constituída. Assim, se sobre o plano teórico como no
plano da atuação prática, a elaboração de modelos de
representação e de associação mais adequados à
expansão da sociedade (por causa da entrada nela de
novos titulares de novos direitos) e relacionados com o
papel qualitativamente diverso que nela desenvolveu a
burguesia como força hegemônica levou à recepção
dos temas de fundo da doutrina democrática,
formalizados no fenômeno do parlamentarismo e do
partido de massa, o verdadeiro passo em frente foi
porém representado pela constituição do Estado como
Estado social, em resposta direta às necessidades
substanciais das classes subalternas emergentes.
Assistiu-se, por outras palavras, a uma retomada, por
parte do Estado e do seu aparelho, de uma função de
gestão direta da ordem social, mas
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
sobretudo da ordem econômica, cujo andamento
natural era agora posto em dúvida pela menor
homogeneidade de classe da sociedade civil e pela
impossibilidade de um controle automático e unívoco
do próprio Estado, por parte desta última. O bem-estar
voltou a ser o objetivo mais prestigioso da gestão do
poder, embora não mais em função declaradamente
fiscal e político-econômica, como nos tempos do
Estado absoluto, e sim em vista de um progressivo e
indefinido processo de integração social. A
administração a quem fora atribuída, na ideologia do
Estado de direito, uma função marginal e subsidiária
(mesmo se de fato, como bem entenderam os maiores
teóricos do Estado de direito, ela exercia o papel
insubstituível e delicadíssimo de ponte entre
sociedade e Estado, como demonstra o próprio
nascimento do direito administrativo, pujante desde o
início) reconquistou de tal modo a antiga importância,
tirando vantagem, de que no período intermediário ela
se tinha subtraído naturalmente de toda a ligação com
o titular pessoal do poder (o monarca absoluto) e vivia
portanto de uma vida autônoma, como parte essencial
do ordenamento estatal, favorecida, por sua vez,
daquele caráter de neutralidade e tecnicismo que
deriva de sua integral sujeição à ordem jurídica.
Não é o caso de relembrarmos as preocupações de
Tocqueville e de Weber em relação ao renascimento
burocrático. Bastará perguntar-se, com base em tudo
quanto até agora se disse, quais foram os interesses
materiais que de fato se concretizaram neste processo
de reconquista de atributos essenciais (de intervenção
política) por parte da ordem estatal para a qual se tinha
em vão tentado o exorcismo formal. O fim autoritário
que tiveram as primeiras tentativas de instauração do
Estado em todos os países é bem conhecido de todos.
Se não se tratou de conseqüências inevitáveis, é certo,
porém, que elas foram o fruto de uma adesão não
crítica ao desenvolvimento que mais ou menos
inadvertidamente andava transferindo no plano de
soluções meramente materiais, reificadas, problemas
de substância e qualidade referentes aos valores
últimos da vida humana. Depois de cinqüenta anos, os
meios técnicos de gestão da ordem social e econômica
se refinaram bastante. Analogamente, porém, talvez se
acalmaram as defesas tradicionais da sociedade (do
homem), no confronto com uma administração
tecnocrática, à qual parece agora dever-se
necessariamente reduzir a versão contemporânea do
antigo modelo estatal de ordem racional e mundano,
entendido como prevenção, repressão ou gestão do
conflito social. O que falta agora questionar é se esse
modelo ainda é válido.
431
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[ PIERANGELO SCHIERA]
Estratégia e Política dos Armamentos.
I. DELIMITAÇÃO DO CAMPO. — Assim como a
estratégia é a técnica utilizada para alcançar um
objetivo (individual ou coletivo, privado ou público,
pacífico ou bélico-militar), assim a política dos
armamentos representa o instrumento com que os
Estados desenvolvem a sua estratégia. O uso material
de uma arma é. pois, a fase final de um complicado
processo, iniciado com a definição de um objetivo,
determinação da estratégia mais apta a alcançá-lo e
escolha dos meios mais eficazes; as armas poderão ser
usadas, mas, por vezes, bastará que sejam apenas
exibidas para se obter a adequação da vontade do
adversário ao objetivo prefixado.
Tendo por base esta delimitação geral do campo,
várias distinções são possíveis. Segundo uma primeira
distinção, a estratégia é a programação a longo prazo
do uso de instrumentos políticos e militares na
condução dos conflitos internacionais, ao passo que a
tática seria a aplicação direta e variável, conforme as
circunstâncias, dos instrumentos individuais. Do ponto
de vista puramente militar, a tática é "a arte de utilizar
as armas em combate, tirando delas o maior
rendimento" (Beaufre), enquanto que a estratégia se
pode conceber como um plano mais vasto e complexo,
que se apóia num conjunto de princípios de caráter
geral e de propósitos diretamente operativos,
432
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
intimamente ligados entre si. Neste sentido, tal como a
estratégia deve estar subordinada à política, assim a
tática está e não pode deixar de estar subordinada à
estratégia. A tática representa exatamente o meio de
aplicação da estratégia. Tarefa da condução
estratégica é, com efeito, uma prudente escolha dos
meios (táticas), que implicam sempre o uso ou a
ameaça do uso da força física, para alcançar os
objetivos indicados pela política. Não se pode, pois,
dizer que a estratégia se concretize só no uso da
violência material; pode escolher outras formas de
ação menos diretas, como o "contato indireto",
teorizado por Liddell Hart, de outro modo redefinido
por Beaufre como estratégia indireta, que "é a que
quer alcançar as vantagens essenciais da vitória com
outros meios e não com a vitória militar".
Fica assim reforçada, em sua plena evidência, a
importância da fórmula clausewitziana que, fazendo
da guerra a continuação da política com outros meios,
põe claramente no âmago da reflexão o papel da
estratégia como charneira entre o momento pacífico e
o momento violento da vida política. A estratégia se
transforma então, de técnica a serviço do interesse
militar, em ciência subsidiária das relações
internacionais, ou num dos seus setores, sobretudo a
partir do momento em que entraram nos arsenais as
armas nucleares e termonucleares, que, com a sua mera
existência, "obrigaram" até mesmo os mais estrênuos
defensores das estratégias diretas a buscar sucedâneos
capazes de evitar a destruição da humanidade. Aliás,
não é coisa fortuita, mas conseqüência lógica de
quanto afirmamos, que a teoria estratégica se tenha
desenvolvido, nestes últimos trinta anos, graças antes
a cientistas sociais (de H. Kahn a H. Kissinger, de T.
Schelling a R. Rosencrance, de R. Aron a E. Luttwak)
do que a estrategistas propriamente ditos. Não quer
isso dizer, contudo, que tal revezamento (ou talvez
deposição) tenha servido para reduzir o espaço da
violência no mundo contemporâneo, ou para levar a
estratégia a formas de luta não violenta: como se
deduzirá do exame da teoria estratégica da era
termonuclear, que esboçaremos no final, a realização
do sonho da paz perpétua não está nada próxima.
II. FUNÇÃO POLÍTICA DOS ARMAMENTOS. — Embora
as armas sejam propriamente instrumentos que
desenvolvem a força necessária para conduzir e vencer
a guerra, não há dúvida de que, para uma análise do
papel político que podem desempenhar, é mister
considerá-las, antes de mais nada, dentro dos limites da
sua função defensiva de instrumentos da manutenção
da ordem e, portanto, da paz, tanto com relação aos
perigos
externos provocados pela agressividade de outros
Estados (guerra internacional), quanto com relação aos
perigos internos que podem ser causados por
tentativas de eversão de determinados grupos políticos
(guerra civil). Tendo presente que o poder político
nasce, de algum modo, da força física e que a sua
conservação depende, em última instância, da
possibilidade do recurso à violência, compreender-se-á
que os armamentos possam também ser definidos como
o instrumento mais comum de repressão da vontade
alheia. Mas, quando tais instrumentos pertencem a
ambos os contendores no plano internacional, eles
serão, ao contrário, por definição, monopólio do poder
constituído no plano do sistema estatal: daí que, se
ambos os sistemas baseiam grandemente a sua
permanência nos armamentos, as probabilidades de
violência atual serão muito maiores no sistema
internacional que no nacional, o que explica o costume
predominante de lembrar unicamente a função bélica
dos armamentos.
Mas, mesmo que os armamentos fossem
considerados apenas como instrumento de que se vale
a força indispensável à condução da guerra, a análise
da sua influência política não poderia, em todo caso,
limitar-se ao âmbito internacional: mesmo dentro da
função essencialmente defensiva, é possível distinguir
uma definição restrita dos armamentos, então
considerados apenas aqueles instrumentos que servem
para produzir direta e exclusivamente a violência, de
uma definição mais ampla, que leve em conta também
o conjunto das organizações complementares mas
necessárias ao emprego direto das armas. Não se pode,
com efeito, deixar de considerar como estreitamente
vinculada ao papel político dos armamentos a influência
que, na vida de um Estado, exercem a pesquisa
tecnológica ou mesmo a ampliação do aparelho militar,
tornada indispensável pela complexidade dos serviços
necessários à eficaz utilização de engenhos cada vez
mais aperfeiçoados e delicados. Pode-se sumariamente
pensar que o motivo pelo qual os armamentos vieram
a assumir tal lugar no contexto social depende da
influência exercida pela Revolução Industrial na teoria
estratégica, que transmudou a natureza da relação entre
o homem e a arma: a condição fundamental da vitória
não é (ou não é apenas) o número dos combatentes,
mas a qualidade e a potência dos armamentos, ficando
o homem conseqüentemente relegado ao papel de
instrumento para o seu funcionamento.
O desenvolvimento tecnológico aplicado aos
armamentos trouxe consigo, no curso dos séculos, um
constante aumento dos dedicados à pesquisa científica,
à produção e ao uso dos armamentos, representando
hoje um dos setores fundamentais
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
da vida econômica dos países industrialmente mais
avançados. Acabou por. causar o fenômeno do
military-industrial complex, que pode ser tomado
como indício da crescente militarização dos Estados,
mesmo nos períodos de paz. Um exemplo clamoroso de
tal situação está na estrutura e organização do
Departamento da Defesa americano, o chamado
Pentágono, de que se recorda a denúncia formulada
por C. Wright Mills no capítulo VII de A elite do
poder e que constitui, num certo sentido, o maior
fornecedor de trabalho do mundo.
A profecia de Comte, que via no desenvolvimento
da sociedade industrial a premissa da eliminação da
guerra, fica, portanto, não só desmentida, como
também invertida, dado que a guerra e a sua
preparação se tornaram aspectos cada vez mais
importantes no mundo contemporâneo. Esta situação
modificou também a teoria estratégica, que se
transformou, de estudo baseado essencialmente nas
ações dos homens, em análise do uso mais eficiente dos
instrumentos oferecidos pelo progresso tecnológico.
III. ARMAMENTOS E ESTRATÉGIA. — A teoria
estratégica contemporânea e a própria atividade dos
Governos dos Estados mais poderosos (mais armados)
têm que enfrentar, quase cotidianamente, na produção
científica como na ação diplomática, os problemas
derivados da existência e constante produção de armas
cada vez mais potentes, o que parece deveria ser
testemunho da vontade belicosa dos Estados
produtores. Mas é justamente em face de tal situação
que se multiplicam os esforços, tanto teóricos como
práticos, para se chegar a uma forma qualquer de
controle-redução-desarmamento, que inverta a
tendência imposta pela prática da corrida armamentista.
Embora o período da corrida aos armamentos tenha
sido em tempos considerados como uma fase
transitória a indicar a passagem do tempo de paz ao
tempo de guerra, um tempo normalmente destinado a
exaurir-se com o fim da luta, depois da Segunda
Guerra Mundial, quer por exigências das guerras locais
em curso, quer por necessidade do aperfeiçoamento
dos armamentos e do equilíbrio estratégico, não se
verificou
nenhuma
interrupção
na
corrida
armamentista. Pelo contrário, mais de 130 guerras
locais se travaram no mundo a partir de 1945,
absorvendo naturalmente grande parte da produção
corrente da indústria militar. Fique, porém, bem claro
que é um preconceito pensar que a existência de tantas
armas favoreça o aumento dos conflitos: não são as
armas que fazem desencadear as guerras, mas são as
guerras que levam à produção das armas.
433
Valha como exemplo este realmente decisivo: a
história da produção da primeira bomba atômica.
De um modo mais geral, podemos observar que a
produção atingiu afinal tais níveis que já excede até o
que seria necessário para a destruição total da
humanidade. Não obstante, ela não parou, mas foi
ainda intensificada. Qual então a função das propostas
que um sem-número de conferências internacionais (a
nível de Governo) formulam constantemente? A
aparente contradição se desvanece tão logo se recorda
que a função dos armamentos não é apenas a de
destruir, é também a de impedir a guerra: se este
conceito do papel dos armamentos tem estado
tradicionalmente entregue à sabedoria popular, com o
aparecimento das armas termonucleares ele surge, para
os Governos e para os povos, apoiado numa nova
justificação, a da possibilidade da destruição total. Os
armamentos, particularmente os mais modernos,
atingem, por isso, a plenitude do seu valor político:
servem para conquistar o poder internacional, não pela
sua utilização material, mas pelo mero fato da sua
existência. Se, portanto, é este essencialmente o valor
político dos armamentos, é claro, por um lado, que a
vontade pacífica dos Governos que participam nas
conferências internacionais é sempre, quando menos,
duvidosa e, por outro, que o significado desta
participação há de ser buscado em algo diverso do
conteúdo específico do acordo alcançado. Na realidade,
com as propostas de redução ou controle dos
armamentos, não se visa tanto à exclusão da força da
vida do sistema internacional (como aconteceria, se a
vontade das partes fosse genuinamente pacífica),
quanto, sobretudo, à eliminação dos gastos que uma
corrida aos armamentos cada vez mais veloz comporta,
devido à rapidíssima obsolescência dos armamentos,
mal acabam de ser produzidos. Se o desenvolvimento e
produção de armamentos estivessem sujeitos a um
controle comum por parte dos Estados, é evidente que,
mesmo sem os eliminar ou eliminando só a parte
tornada ineficiente, se chegaria a uma situação bem
mais segura. E é justamente sobre o conceito de
segurança, e não de paz, que a quase totalidade da
literatura favorável a tal experiência insiste.
Pelo que respeita ao problema da redução dos
armamentos, é necessário ter presente que, não
renunciando nunca nenhum Estado às armas que crê
necessárias para a sua segurança, chegamos mais uma
vez à mesma conclusão: que só se eliminarão aquelas
armas que estiverem tecnologicamente superadas ou
se tornaram já ineficientes. Daí resulta que o
verdadeiro significado da política de redução-controle
dos armamentos há de ser buscado no valor de
racionalização e de
434
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
consolidação do sistema político internacional
contemporâneo.
Pouco resta logicamente a dizer sobre o
desarmamento e sobre as possibilidades da sua
realização. O problema fundamental a tal respeito está
na definição da atitude que deveria informar as
eventuais negociações: preferir a via dos acordos
técnicos parciais e progressivos ou buscar diretamente
acordos políticos globais? Segundo P. Noel Baker,
seria utópico acreditar inicialmente na segunda via; o
clima favorável ao acordo global brotará justamente
do bom êxito de uma série preliminar de acordos
limitados. Esta tese mostra, no entanto, mesmo em sua
sabedoria empírica, quais as dificuldades que
acompanham um tal projeto: os acordos parciais,
diversos dos acordos de controle ou redução, só serão
possíveis se for diversa a vontade política dos
contraentes; mas tal mudança teria de ser favorecida
pela própria distensão subseqüente aos vários acordos
parciais. Esta mesma dificuldade encontra a teoria do
desarmamento unilateral, que se funda na atitude de
renúncia que uma das partes assume, desarmando-se
sem exigir contrapartida: demonstrando assim
inequivocamente sua vontade de paz, ser-lhe-ia depois
possível convidar, com notáveis probabilidades de êxito,
os adversários a um comportamento recíproco. Desta
matriz unilateralista se originou outra estratégia,
sustentada, com tonalidades diversas, por C. E.
Osgood e A. Etzioni: o gradualismo, que reduziria os
perigos e a inaceitabilidade de uma renúncia total
unilateral, separando de modo gradual e concatenado
as diversas demonstrações de boa vontade, cada uma
delas unilateral mas limitada.
A causa do desarmamento poderia ser efetivamente
favorecida pela técnica unilateralista, cujo mérito é o
de oferecer ao adversário a prova certa do significado
da própria ação, mas não dispõe ainda de uma tática
capaz de convencer um Governo a torná-la própria,
deixando, por isso, as esperanças de paz, não à
colaboração, mas às armas e à hostilidade.
IV. A PROBLEMÁTICA DA ESTRATÉGIA
CONTEMPORÂNEA. — Se é verdade que são tanto os
motivos internos quanto os internacionais que
concorrem para a definição do papel político dos
armamentos, não se pode deixar de considerar,
contudo, que é justamente do estímulo da necessidade
de recorrer a formas de uma guerra cada vez mais
total que deriva o progresso na técnica de produção
dos armamentos e no modo do seu emprego, obrigando
os Estados a atingir níveis de mobilização, de homens e
de recursos, cada vez mais elevados.
Embora tenham existido sempre formas de
alistamento para o serviço militar, é só com a Revolução
Francesa que começa a ganhar força o princípio do
exército nacional (a "nação em armas"), caracterizado
pelo alistamento geral e obrigatório, que, no entanto,
não é posto inteiramente em prática até o século XX. A
potência de uma nação não se baseia ainda na
superioridade dos armamentos, mas no gênio
estratégico de quem comanda: as vitórias napoleônicas
se distinguem precisamente pela capacidade de dispor,
em cada batalha, de uma massa de combatentes
superior à do adversário, que, em vez disso, se atinha
ainda às sugestões tradicionais das regras da arte
militar. A Revolução Industrial, enquanto, por um lado,
contribui para a transformação da política internacional
(de política essencialmente européia, em política de
tendência mundial com os fenômenos do colonialismo
e do imperialismo), por outro, põe à disposição dos
exércitos novas armas que permitem obviar às
diferenças no número de combatentes e transformam,
mediante inovações espetaculares como a do avião e do
submarino, todas as noções estratégicas tradicionais. E,
uma vez que o esforço produtivo exigido por essas
formas de armamento implica a mobilização de
enormes recursos e meios econômicos, só os Estados
mais ricos delas se poderão prover e sua potência será
avaliada tendo precisamente por base a superioridade
dos seus armamentos. Com efeito, o orçamento militar
dos Estados Unidos (111 bilhões de dólares em 1980) e
o da URSS (107 bilhões de dólares) representam quase
50% das despesas mundiais (estimativas SIPRI). É
interessante observar, como sintoma do aumento da
importância dos armamentos no mundo, que há apenas
17 anos, ou seja, em 1966, o percentual russo-americano
sobre o total da despesa mundial era de 61%. Estas
cifras representam, contudo, uma mera aproximação,
permitindo, quando muito, uma avaliação comparativa:
é preciso ter particularmente presente que a redução do
percentual das duas superpotências em relação à
despesa mundial com armamentos não é devida a uma
redução da sua despesa, mas antes a um impressionante
aumento da despesa, levado a efeito pelos países do
Terceiro Mundo (uma área densa de conflitos atuais ou
potenciais), que, em 1971. despendia 9% do total e, em
1980, passava de 16%. Além disso, enquanto antes a
produção bélica estava temporariamente limitada (pelo
menos relativamente) ao período imediatamente anterior
à deflagração de um conflito e ao do seu
desenvolvimento, a sua complexidade e variedade
fazem hoje com que se estendam também aos períodos
de paz aquelas características que eram peculiares à
mobilização da economia e da
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
produção de guerra: a despesa mundial com
armamentos alcançava, em 1949, 51 bilhões de dólares
(valor constante) e, em 1980, 455 bilhões. A potência
dos armamentos e a potência industrial se acham, pois,
estreitamente unidas na sua função de requisitos
fundamentais para a determinação da relativa posição
de poder dos vários Estados no âmbito geral do sistema
internacional. Os armamentos são alçados ao papel
político de estabilizadores das relações internacionais,
sendo entendidos como instrumentos de prevenção da
guerra. O triunfo de tal concepção só foi, contudo,
determinado pelo aparecimento das armas atômicas e
termonucleares: a paz tinha de ser agora assegurada
pelo equilíbrio do terror, originado no medo do
emprego dessas armas. Mas, com elas, veio também a
desenhar-se a possibilidade técnica da realização do
princípio teórico do "uso absoluto das forças" que,
segundo Clausewitz, encarna a essência da guerra,
mas que seria impossível se se verificasse na realidade
empírica de uma guerra, que não implicasse, para ser
vencida, a destruição total, o que, pelo contrário, é
possível e conatural à lógica da guerra termonuclear.
É, pois, neste contexto extremamente precário que se
realiza aquela vocação pacifista dos armamentos, cujo
papel se justificaria, como dizíamos a princípio, pela
sua capacidade de garantir a manutenção da ordem e
da paz. Mas, ao mesmo tempo, a sua capacidade
destruidora alcança também, e até supera, os limites
teóricos da possibilidade da destruição total da
humanidade: o número dos bombardeiros estratégicos
dos Estados Unidos é calculado em 348, enquanto que
os da União Soviética em 156; o dos mísseis balísticos
intercontinentais, em 1.052 e 1.398 respectivamente; o
dos mísseis balísticos submarinos, em 600 e 950; o
equivalente em megatons das ogivas termonucleares
dos Estados Unidos, guardadas nos arsenais e em
constante movimento pelos céus ou sob os mares, é de
9.000, enquanto que o da União Soviética é de 7.000
megatons. Daqui resulta que, para cada indivíduo que
povoa hoje a terra, existem à disposição várias
toneladas de substância explosiva. A variedade das
formas de violência se amplia ainda graças,
principalmente, ao desenvolvimento das técnicas de
lançamento e produção diversificada de novas armas,
desde as químicas e bacteriológicas, aos MIRV e aos
cruise.
V. O PROBLEMA QUALITATIVO. — A existência de
armas de potência destrutiva capaz de tornar possível a
destruição da humanidade leva a questionar a própria
definição do papel político dos armamentos: obriga a
encarar o problema de se, em tais condições, o recurso
à guerra e a própria
435
instituição bélica têm ainda algum sentido, ou, pelo
menos, se este é ainda comparável ao do papel
exercido pela guerra nos séculos anteriores ao
aparecimento das armas termonucleares. A esta
pergunta, centro de amplo debate ético-político na
década de 50 (basta lembrar o zelo e a obra de B.
Russel, K. Jaspers, G. Anders), será possível
responder negativamente, caso se consiga demonstrar
que a bomba atômica (usemos esta expressão como
um símbolo) não só pôs em dúvida as concepções e
teorias tradicionais da guerra clássica, como tornou
até inaconselhável a guerra tout court como meio de
solução dos conflitos.
Em relação a este problema, podemos apresentar
sumariamente três posições. A primeira — reducionista
— é defendida, entre outros, por R. Aron, que reduz o
problema a termos exclusivamente estratégicos: a
diferença entre a bomba atômica e as armas clássicas é
essencialmente quantitativa; os problemas morais que
podem nascer do risco de matar uma quantidade de
indivíduos incomparavelmente maior que no passado
hão de ser resolvidos mediante a formulação de uma
"estratégia adequada", como, por exemplo, a
consistente em limitar o teatro da guerra só aos mares,
de modo que a luta se desenvolvesse apenas entre os
submarinos representantes e defensores dos povos
envolvidos. Além do irrealismo de tal proposta (pensese nas conseqüências da poluição radioativa das águas),
esta posição, aceitando e reconhecendo a bomba
atômica como uma arma entre outras, acaba por apoiar
a política fundada no equilíbrio do terror (ou na
"sabedoria", como prefere dizer Aron), motivada não
pelo medo da destruição total, mas pelo medo de uma
destruição excessiva. Daí, segue-se que a única
novidade estratégica derivada da bomba atômica é
constituída pela prática da dissuasão.
A segunda posição, talvez mais difusa, pode ser
definida como totalitária, na medida em que deduz da
existência da bomba atômica o fato de que a guerra se
tornou impossível: ela não pode ser já considerada
como continuação da política por outros meios,
segundo a fórmula de Clausewitz. Isso significa que a
guerra atômica se tornou qualitativamente diversa da
guerra clássica, Mas, enquanto por um lado se afirma a
onipotência da bomba atômica, pelo outro se reconhece
que, em virtude precisamente desta diferença
qualitativa, tal arma não pode ser usada, porque
implicaria a própria negação da política que quer
servir. Daí que, embora esta posição se distinga
claramente da reducionista, no que respeita ao juízo
sobre a diferença de qualidade entre as armas
atômicas e as armas clássicas, no plano político, ao
invés, acaba por se lhe aproximar, porquanto,
436
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
mais uma vez, a paz mundial se acharia entregue ao
domínio exercido pelo medo da destruição. Contudo,
se a primeira posição propõe como solução apenas a
inovação estratégica, a versão totalitária é obrigada a
propor a prática de uma relação conflituosa que
substitua aquela já obsoleta da guerra. Coloca-a na
competição pacífica (coexistência), que esconde, por
sua vez, um equívoco, se observarmos que esta
proposta há de ter valor num sistema internacional que,
estruturalmente, é o mesmo que até agora consentiu a
deflagração da guerra, e que, além disso, o tipo de paz
que daí tem de derivar assenta também no equilíbrio
do terror. A posição totalitária exalta, pois, o papel
político dos armamentos. Estes são de tal modo
importantes que, mesmo não utilizados, condicionam
os próprios fundamentos das relações políticas
internacionais. Em conseqüência de tal posição, a
teoria da qualidade pode concretizar-se num uso
político repressivo: a ameaça dos terríveis danos da
guerra atômica servirá para defender os detentores dos
artefatos termonucleares das intenções "agressivas" dos
adversários.
Uma terceira posição, intermediária entre as duas já
descritas, é a que pode ser sinteticamente lembrada
como teoria do "tigre de papel". Como se sabe, Mao
Tsé-tung sustentou, desde 1946, que a bomba atômica
era justamente um tigre de papel, isto é, uma arma que
não devia amedrontar o povo, porque, se era verdade
que se tratava de uma arma de capacidade destrutiva
muito superior a qualquer outra já existente, a
possibilidade do seu uso, mesmo por Governos
imperialistas, era extremamente reduzida, devido ao
fato de que a sua utilização provocaria a revolta do
povo contra os seus governantes, que se encontrariam
além disso isolados também no plano mundial,
moralmente condenados por haver usado de arma tão
monstruosa. Esta posição, apenas sumariamente
descrita, tinha a sua base teórica na recusa em
concordar com o conceito da onipotência das armas em
relação ao papel do homem, ou, melhor, do povo. É
por isso que Mao Tsé-tung podia declarar que a
bomba atômica, independentemente da luta levada a
cabo pelo povo, não serve para nada. Enquanto, no
plano geral, estratégico, a bomba atômica é
desprezada, e esvaziada, portanto, de valor a ameaça
dissuasiva imperialista, no plano contingente, tático, a
teoria do tigre de papel aconselha a não subestimar o
poder de destruição das novas armas. Uma verificação
empírica, se bem que parcial, de tal teoria se encontra
na impotência política da bomba atômica em face da
guerra de guerrilha, onde a sua capacidade destruidora
seria não ineficaz, mas ineficiente.
No que toca a este problema, pode-se, pois,
concluir recordando que, se é inaceitável o juízo que
faz da bomba atômica uma arma onipotente, não o é,
pelo contrário, o que faz dela uma arma sem igual no
passado. A consciência da mudança qualitativa poderá
então ser tomada como ponto inicial de uma
conscientização generalizada contra o uso, tanto
político como prático, das armas termonucleares, com
o qual o mundo poderia efetivamente ser levado à
destruição. A impossibilidade da guerra atômica se
baseia, com efeito, na possibilidade técnica de a
desencadear; e, se é verdade que é a política e não as
armas que tem a primazia, é sobre ela que se há de
fundar a busca da paz, e não na chantagem
termonuclear.
Uma última conseqüência que resulta da
consideração da onipotência da bomba atômica pode
ser vista na importância que alcançou, nos últimos
anos, a doutrina que distingue na mera existência
(disponibilidade) dos armamentos uma das possíveis
causas da explosão das guerras. Em seu aspecto
renovado, esta teoria se apresenta através de alguns
conceitos estratégicos novos: guerra por erro, guerra
antecipativa, guerra preventiva. A existência da bomba
atômica tornou de tal maneira precária a possibilidade
de vencer a guerra, se não se teve a iniciativa, que não
seria mais possível, aos Governos ou aos comandos
estratégicos, entenderem com segurança o significado
de ações acidentais, errôneas ou imprevistas,
presumivelmente vindas da parte de um provável
adversário. Já que o tempo útil para as decisões de
resposta termonuclear é de uns quinze minutos,
poderia ocorrer a deflagração de um conflito por erro,
devido, por exemplo, à precipitação subseqüente a uma
leitura errada do radar. Ou, então, a presunção de que o
inimigo esteja a ponto de atacar poderia levar um
Governo a desencadear uma guerra antecipativa, ou
seja, destinada a anteceder o golpe adversário. A
guerra preventiva, enfim, justificar-se-ia pela presunção
de pegar o inimigo despreparado. É claro que estas três
possibilidades estratégicas vão buscar a sua justificação
na novidade das condições impostas pela lógica da
guerra termonuclear, de tal maneira que seria a própria
estratégia, mais que a vontade política, que
determinaria a causa e as condições da explosão de
uma guerra. Mas também não se deve deixar de
observar, por outro lado, que a superestima de tais
riscos tem um significado claramente "retórico", no
sentido de que acentuá-los contribui para difundir o
terror, que, por sua vez, constitui um terrível
instrumento de Governo e de opressão.
VI. A ESTRATÉGIA TERMONUCLEAR. — Nos
primeiros anos do pós-guerra, os Estados Unidos
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
gozaram do monopólio das armas atômicas, já que só
em 1949 é que a União Soviética conseguiu produzi-las.
Tratava-se, aliás, de armas de potência ainda limitada,
especialmente se consideradas à luz da experiência
ulterior e, em particular, do fato de que a era
termonuclear só havia de começar em 1952, com a
explosão experimental da primeira bomba H (norteamericana) da história; sua relação com a bomba
atômica é de cerca de 1 para 1.000.
Até aquele momento, a estratégia estadunidense
não precisara da contribuição dos analistas da política
internacional, porque se baseava em princípios
particularmente simples. O primeiro esforço de
programação estratégica esteve, logo que iniciada a
era termonuclear, na doutrina da resposta maciça
(massive retaliation), formulada oficialmente pelo
secretário de Estado americano Foster Dulles, em
1953. Esta doutrina afirmava que os Estados Unidos
se reservavam o direito de escolha do lugar e das
armas com que desfechariam um ataque de represália
em caso de uma agressão soviética em qualquer parte
do globo. Embora atenuado nos termos, o princípio
era que, a uma agressão soviética em qualquer área do
mundo julgada importante, os Estados Unidos
responderiam com um ataque nuclear contra o
"santuário" inimigo, isto é, contra a própria União
Soviética. Esta doutrina constituiu por muito tempo a
posição oficial do Governo, mesmo que, pelos fins dos
anos 50, a situação militar dos dois blocos houvesse
mudado e prenunciasse mudanças ainda mais drásticas
num futuro imediato. A União Soviética, já superior no
campo das armas convencionais, tinha iniciado um
intenso programa de construção de caçasbombardeiros e de mísseis balísticos, ameaçando
ainda conquistar, num tempo relativamente breve, a
superioridade também no campo nuclear. O
desajustamento da doutrina da resposta maciça e,
sobretudo, a perda da sua credibilidade tornaram-se
desse modo evidentes: era, de fato, pouco verossímil
que os Estados Unidos estivessem dispostos a
enfrentar o risco da destruição do próprio território,
provocando um choque frontal com os soviéticos, em
resposta a um ataque efetuado numa zona considerada
como "não vital". Teóricos como Henry Kissinger
(Nuclear weapons and foreign policy, 1957) e Herman
Kahn (On thermonuclear war, 1961) demonstraram,
com argumentos convincentes, o total desajustamento
da doutrina de Dulles, preparando assim o terreno para
a mudança.
A doutrina McNamara, formulada pelo Secretário
de Defesa logo depois da sua posse, baseava-se no
princípio de que a resposta americana a qualquer
agressão soviética teria de ser proporcional à
importância do ataque (flexible response).
437
Esta nova doutrina levava em conta todas as
possibilidades de resposta, da guerra limitada, levada
a termo com armas convencionais, à guerra nuclear
limitada ou à guerra convencional total. Para tomar
esta doutrina digna de crédito era, porém, necessário
reorganizar todo o sistema de armamentos, atenuando
as diferenças existentes no campo das armas
convencionais, dando começo a um intenso programa
de fabricação de armas nucleares táticas e redobrando
esforços para a criação de um eficiente sistema de
mísseis balísticos (v. ARMAMENTOS), A corrida aos
armamentos que derivou de tudo isso foi, portanto, se
bem que parcialmente, causa e efeito ao mesmo tempo
das complexas elaborações do pensamento estratégico
da época.
A estratégia contemporânea funda-se no mecanismo
da dissuasão. Havendo diminuído, com o advento da
era nuclear, as possibilidades de vitória em combate, a
condução estratégica veio a assentar na capacidade de
intimidação do inimigo (v. DISSUASÃO). O duelo
estratégico de armas iguais envolve duas distinções
fundamentais, que dizem respeito tanto ao lugar
quanto ao momento em que o ataque nuclear pode ser
desfechado. Distingue-se entre: 1) estratégia contra
forças — quando o objetivo do ataque for os próprios
armamentos atômicos do adversário — e estratégia
contra cidades (ou contra recursos) — quando o
objetivo for, em vez disso, os centros vitais do país
inimigo; e entre: 2) iniciativa de ataque ou primeiro
golpe (first strike), e resposta ou segundo golpe
(second strike).
A distinção entre estratégia contra forças e estratégia
contra cidades serviu, uma vez formulada, para superar
a convicção amplamente difusa de que o único tipo de
guerra atômica possível consistia na destruição
recíproca e total dos atores em conflito. É, na
realidade, evidentemente mais útil para o atacante
destruir, quando possível, a capacidade de represália
do inimigo, ou seja, as suas forças nucleares, do que
aniquilar indiscriminadamente as cidades. Uma vez
destruída a sua força de combate, o adversário não teria
mais possibilidades de contra-atacar e se veria
obrigado a render-se para evitar o suicídio. Deve-se,
contudo, levar em conta o diverso valor implícito na
escolha de cada uma destas alternativas: a estratégia
contra cidades corresponde (pelo menos relativamente)
a uma posição comparativamente mais defensiva
(portanto, menos agressiva) que a estratégia contra
forças, dado que, renunciando à hipótese de
"desarmar" o adversário, põe como aposta do jogo
dissuasivo toda a sua população, o que indica uma
predisposição não agressiva.
A distinção entre capacidade de primeiro e de
segundo golpe está relacionada, ao mesmo tempo,
438
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
com a possibilidade de defesa e de dissuasão. A
capacidade do primeiro golpe existe, na realidade,
quando um Estado tem a possibilidade de atingir de
forma definitiva (ou seja, com o máximo de
destruição) as forças nucleares do adversário. A
capacidade do segundo golpe é, em vez disso,
operante, quando, uma vez sofrido o ataque contra as
próprias forças, o ator ainda possui uma capacidade de
represália capaz de causar graves danos à potência
militar inimiga.
A invulnerabilidade ou vulnerabilidade das forças
nucleares (sua capacidade ou não de resistir a um
ataque adversário) são os elementos sobre os quais se
funda o chamado "equilíbrio do terror", e deles
depende o funcionamento da relação dissuasiva.
Nas forças de represália são possíveis três diferentes
relações: 1) ambas as forças em choque são
vulneráveis; 2) a uma força de combate invulnerável
corresponde, no campo oposto, uma força de combate
vulnerável; 3) ambas as forças em choque são
relativamente invulneráveis.
No primeiro caso, nenhuma das duas partes tem
possibilidades de proteger a sua força de represália de
um ataque de surpresa: vence, em tal situação, quem
ataca primeiro. De um e de outro lado, existe apenas a
capacidade do primeiro golpe, não a do segundo: o
equilíbrio entre os contendores é instável e as
probabilidades de que um dos dois atores ceda à
tentação de atacar primeiro (preemptive blow), por
temor de um ataque adversário, são grandes.
No segundo caso, a parte invulnerável não tem
precisão de atacar primeiro, porquanto, por definição,
possui a capacidade do segundo golpe, sua ação
desencorajadora é tida por verdadeira e é capaz de
impor a sua supremacia estratégica ao ator inimigo. A
parte vulnerável se acha correlativamente numa
posição de clara inferioridade estratégica, porque o
atacar primeiro não lhe asseguraria a vitória. Por isso
mesmo, também não será muito de acreditar na
ameaça de guerra total por parte do ator vulnerável.
A terceira hipótese, enfim, do ponto de vista teórico
pelo menos, é a que parece garantir a maior
estabilidade. Com efeito, nestas condições cada uma
das duas partes parece capaz de infligir enormes perdas
ao adversário, independentemente de ser ou não o
primeiro a atacar, assegurando assim aquele equilíbrio
que, segundo os estrategistas, seria o pilar
fundamental da paz mundial (a invulnerabilidade
recíproca é, na verdade, a característica atual da
relação entre as forças de choque dos Estados Unidos e
da União Soviética). Mas o equilíbrio tem-se tornado
sempre instável por causa da corrida armamentista e
do progresso tecnológico. Uma força de choque pode,
de
fato, ser invulnerável num determinado momento e ser
vulnerável logo a seguir, devido ao aparecimento de
armas mais modernas e sofisticadas. A percepção, a
cada momento, do estado das relações entre as
respectivas forças de choque implica uma constante
flexibilidade e a modificação contínua da condução
estratégica, sem contar que é condição essencial do
funcionamento de qualquer estratégia dissuasiva a
manutenção de um certo grau de incerteza, insegurança
e imprevisibilidade. A este objetivo —. evitar que a
demasiada estabilidade acabe na fragmentação de todo
mecanismo — têm sido dedicadas contínuas atenções.
VII. SOFISTICAÇÃO DA ESTRATÉGIA TERMONUCLEAR. —
A estratégia contemporânea não se limita a elaborar a
complexa série de alternativas que mencionamos, no
campo da dissuasão global. Tem a incumbência de
orientar os decision makers, quando é deixado a
palavra às armas. "Talvez o problema fundamental da
estratégia da era nuclear seja o de como estabelecer
uma relação entre uma política de desencorajamento e
uma estratégia destinada a combater a guerra, caso a
intimidação falhe" (Kissinger, 1957). Entre a guerra
nuclear total e a paz, é concebível, de um ponto de
vista teórico, uma vasta série de estádios intermédios:
da infiltração da guerrilha à guerra limitada com armas
convencionais, da guerra nuclear limitada à guerra
convencional total. A índole comum dos vários
estádios e sua vinculação com a estratégia nuclear
assentam no fato de que existe, em cada fase, a
possibilidade de que um processo de escalation
conduza ao conflito nuclear.
Dentre tais estádios, tem assumido especial relevo na
discussão dos estrategistas o da guerra limitada. Razões
práticas (começo da guerra vietnamita) e razões
teóricas (convicção largamente partilhada na época das
administrações de Kennedy e Johnson, segundo a qual
as guerras limitadas representavam o único meio capaz
de garantir a paz mundial, servindo de "válvula de
escape" na competição entre as duas superpotências)
levaram os estrategistas norte-americanos dos anos 60
a voltarem sua atenção para esta forma de conflito.
Uma guerra pode ser limitada, quando existe
desigualdade de potência entre os dois contendores
(guerra da Coréia, guerra do Vietnã, etc), quando o
ator, que tem à sua disposição a máxima potência, é
impedido de utilizar todo seu potencial bélico por
considerações não militares (ideológicas, por exemplo),
ou quando, num hipotético conflito que envolva as
duas superpotências, elas se imponham limites, com o
fim de evitar um conflito nuclear. Uma guerra limitada
entre as
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
superpotências, embora improvável, poderá ser
limitada, porque, por exemplo, fica circunscrita a uma
determinada área, ou porque elas não utilizam todos os
armamentos de que dispõem, ou porque, enfim, mesmo
que os utilizem, restringem seu uso a objetivos
específicos.
A distinção mais importante é a distinção entre
guerras limitadas com armas convencionais e guerras
limitadas com armas nucleares. A transposição do
"limiar atômico" é que constitui o real perigo do ponto
de vista da estratégia nuclear, porque conduzirá a
situações jamais experimentadas até hoje nos conflitos
internacionais. É este talvez o motivo pelo qual, nem
durante a guerra da Coréia, nem durante a guerra
vietnamita, os Estados Unidos fizeram uso das
bombas atômicas. Seriamente ponderada durante a
administração de Johnson, a hipótese do emprego de
armas atômicas de tipo tático no Vietnã acabou por ser
rejeitada, por ter sido julgada de tal modo perigosa,
uma vez que tornava possível que a escalation da
guerra fugisse ao controle dos protagonistas, que era
preferível uma derrota, desde que "limitada", a uma
possível vitória "total".
Mesmo no caso de uma guerra limitada com armas
convencionais existe a possibilidade de que o "limiar
atômico" seja transposto. Essa probabilidade
dependerá, em maior ou menor grau, da relação que
houver entre as capacidades do primeiro e segundo
golpes das respectivas forças de choque. Se a relação
é assimétrica, ou seja, se à invulnerabilidade de um
dos dois atores corresponde a vulnerabilidade do outro,
e se, por hipótese, o agressor (aquele que inicia a
guerra limitada) é o ator invulnerável, então ele poderá
razoavelmente esperar que o limiar nuclear não seja
atravessado, a menos que não seja ele a querê-lo. É, de
fato, difícil que, para defender um objetivo limitado
(para a estratégia nuclear, qualquer objetivo que não
seja o próprio "santuário" é um objetivo limitado), o
ator vulnerável se exponha ao risco do suicídio. É
igualmente difícil que o limiar atômico seja transposto
no caso de uma invulnerabilidade recíproca: o resultado
seria, com efeito, o da destruição de ambos os atores.
Uma vez que a invulnerabilidade absoluta é
irrealizável, cada uma das partes em conflito poderá,
partindo até da contingência de uma guerra limitada,
sentir-se tentado a desencadear um ataque preventivo.
Neste caso, as probabilidades de choque serão
diretamente proporcionais ao grau de tensão existente
no sistema. O "limiar atômico" poderá então ser
transposto em qualquer momento: o processo de
escalation pode conduzir à guerra limitada com armas
nucleares e, depois, gradativamente (Herman Kahn
distinguiu seguramente umas 44 etapas possíveis no
processo de
439
escalation), ao ataque direto contra o "santuário"
inimigo. Mas, mesmo em tal eventualidade, existe,
segundo alguns estrategistas (Kahn, Schelling), a
possibilidade de que o conflito seja mantido sob
controle, desde que os atores se comportem
racionalmente. Depois que os dois atores hajam
infligido um ao outro perdas desastrosas mediante
uma estratégia contra forças, existe ainda uma certa
margem para a negociação. A recíproca extorsão
(consistente em manter como "reféns", isto é, sob
ameaça atômica, as cidades do inimigo) será,
possivelmente, segundo os estrategistas, a fase
seguinte de um hipotético conflito nuclear. É provável
que os contendores, depois de haverem destruído parte
das respectivas forças de choque, se abstenham da
destruição das cidades por medo de uma idêntica ação
por parte do adversário. Mas, mesmo depois de tais
ataques terem começado, o processo de escalation
poderá parar antes da destruição total. Os dois atores
poderão limitar-se, na primeira fase, a atacar só as
cidades de menor importância, deixando ainda
margem para a negociação; só depois de fracassado
este meio é que se chegaria à destruição recíproca. A
estratégia nuclear não considera, no entanto, apenas os
problemas ligados às possibilidades de conflito entre
as duas superpotências, mas examina também com
atenção as implicações estratégicas da proliferação das
armas atômicas, bem como as inerentes aos planos de
desarmamento e de controle de armamentos. Se, de
fato, o fim primário da estratégia é, na era nuclear, o
de garantir a segurança nacional (isto é, a sobrevivência
da nação ou ainda, alargando o conceito, a salvaguarda
das suas posições políticas e econômicas), essas
implicações suscitam uma série de dilemas que não são
de fácil solução. O problema da proliferação das armas
nucleares,
com
seus
possíveis
efeitos
desestabilizadores, é, em particular, um problema
especialmente delicado, embora, no fundo, pareça
improvável que tal proliferação possa contribuir em
breve para aumentar os perigos de uma guerra total,
podendo, em vez disso, aumentar o grau de
periculosidade das guerras limitadas onde estejam
envolvidas potências nucleares menores.
Nenhuma das atuais potências chamadas menores
(sob o aspecto dos armamentos nucleares). China,
França, Inglaterra, Índia, possui, com efeito, uma
força de choque invulnerável. Além de carecerem da
capacidade de um segundo golpe, esses países não
possuem senão escassa capacidade para o primeiro, se
comparados com as duas superpotências. Por isso,
dificilmente poderão alterar, a breve prazo, o
equilíbrio nuclear existente, faltando-lhes capacidade
de intimidação em relação aos Estados Unidos e à
União Soviética.
440
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
O raciocínio parece ainda mais válido para países
como a África do Sul, Israel e Japão, que poderão
dispor de armas atômicas num futuro bastante
próximo.
VIII.
DIFERENÇAS ESTRATÉGICAS SOVIÉTICAS E
— A par e em contraste com a doutrina
estratégica estadunidense (baseada em grande parte nos
princípios até aqui analisados) se desenvolveu, embora
mais lentamente e através de elaborações talvez menos
sofisticadas, uma doutrina estratégica soviética. Depois
da morte de Stalin, segundo o qual a estratégia para
vencer as guerras futuras se havia de fundar na
experiência das guerras passadas, os soviéticos
começaram a analisar seriamente as implicações
estratégicas resultantes da existência dos armamentos
nucleares. Um dos pontos essenciais que diferenciam
a doutrina soviética, desde então cada vez mais
amadurecida e aperfeiçoada, da doutrina norteamericana está na recusa, muitas vezes oficialmente
reafirmada, em aceitar uma clara distinção entre
estratégia contra forças e estratégia contra cidades,
devido à convicção de que ambas seriam aplicadas
numa eventual guerra termonuclear. Tal posição, tal
recusa, pelo menos a nível oficial, de adotar uma
doutrina assente antes numa resposta flexível do que
numa resposta maciça motivaram duas conseqüências
fundamentais: 1) a ênfase posta novamente nos
armamentos convencionais, fundada na convicção de
que as armas termonucleares não podem, por si sós,
decidir o resultado de um conflito, mesmo nuclear; 2)
uma atitude diversa, de maior cautela, dos estrategistas
soviéticos com relação aos norte-americanos, sobre o
problema da guerra limitada: considerando impensável
a possibilidade de haver várias fases na escalation
antes de se atingir o grau supremo da guerra
termonuclear total, puseram necessariamente em relevo
o enorme perigo que deriva para a paz mundial da
participação direta de uma superpotência num conflito,
mesmo que geograficamente limitado.
O pensamento oficial chinês em matéria de
estratégia nuclear é um pensamento baseado por
muito tempo na "teoria do tigre de papel", que tem
sido insistentemente considerada, sem avaliação do seu
pleno significado, como um expediente imposto aos
chineses pela falta de uma força de choque invulnerável
(pense-se na posição muito semelhante dos soviéticos
no período do monopólio atômico dos Estados Unidos,
1945-1949). A dúvida surge, mesmo que na China se
considere ainda válido o princípio tradicional do cerco
das cidades por parte do campo, que constituiu uma
contribuição fundamental para o pensamento
estratégico chinês nos anos da Revolução Cultural
CHINESAS.
e do sucesso de Lin Piao, e que talvez hoje se ache
superado, ou pelo menos deixado de lado, a favor da
política mais realista dos armamentos, que não visa
mais pôr a China em concorrência com a União
Soviética, mas antes redimensionar a despesa militar
(que, de 1971 a 1980, não experimenta praticamente
aumento: 39 bilhões de dólares para 40) em benefício
de outras formas de investimento civil.
IX. CRÍTICA DO PENSAMENTO ESTRATÉGICO. —
Os teóricos dos Estados Unidos entenderam fazer da
estratégia termonuclear uma verdadeira e autêntica
ciência social, servindo-se, entre outras coisas, de
técnicas matemáticas, utilizando computadores e
adotando técnicas de simulação do jogo estratégico,
tais como "cenários", etc. Várias críticas são, porém,
possíveis, tendo sido efetivamente formuladas, tanto
sobre o valor científico de tais utilizações, como sobre
a proclamada "neutralidade'' da estratégia nuclear.
Estes teóricos pretenderam basear sobretudo na
teoria dos jogos e no cálculo das probabilidades a
chamada "ciência estratégica". Mas, como observou
Anatol Rapoport (Strategy and conscience, 1964),
essas utilizações revelam seus pontos mais débeis em
dois casos fundamentais: antes de tudo, no pressuposto,
exigido pela teoria dos jogos, da "racionalidade" dos
atores em conflito, racionalidade que, na realidade,
está bem longe de ser pura, isto é, livre de preconceitos
ideológicos, de implicações emotivas, tradições,
condicionamentos culturais, etc. Daí a impossibilidade
de uma "racionalização matemática", segundo os
princípios da teoria dos jogos, da condução
estratégica. Em segundo lugar, o cálculo de
probabilidades é igualmente inaplicável, como observa
Rapoport, em matéria de estratégia, pela simples razão
de que as probabilidades só são matematicamente
calculáveis existindo uma longa série de eventos iguais.
Daí a impossibilidade, a despeito do que proclamam os
estrategistas, de calcular, por exemplo, as
probabilidades da deflagração de uma guerra
termonuclear durante uma crise internacional.
Faltando, com efeito, uma seqüência de eventos (ou
seja, sendo o evento, de que se quer enunciar as
probabilidades de ocorrência, caracterizado pela
"unicidade"), não se poderá usar o cálculo de
probabilidades.
Segundo Horowitz (The war game, 1963), o defeito
principal das teses dos estrategistas está no quase total
menosprezo dos aspectos políticos do jogo
estratégico, já que se concentram só no estudo das
relações de força militar. É típico o fato de que, por
exemplo, nas hipóteses diversamente formuladas
pelos estrategistas sobre um eventual ataque soviético
contra a Europa, só
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
são levadas em conta as implicações militares de
semelhante evento — estado das forças militares
européias, tipo de armamentos a utilizar por parte dos
Estados Unidos, etc. —, enquanto, observa
acertadamente Horowitz, falta uma análise das
possíveis mudanças políticas, como queda de regimes
e outras, que poderiam alterar sensivelmente o
resultado tecnicamente previsto.
Outra tese fundamental do pensamento estratégico,
vastamente demolida pelos críticos, consiste na
afirmação de que os armamentos nucleares
representariam a única garantia da paz mundial. Na
realidade, tal premissa, como foi demonstrado, é
substancialmente errada, já porque supõe nos atores
em conflito uma "racionalidade" que lhes permitiria
evitar em qualquer caso o recurso às armas
termonucleares, já porque não leva em consideração o
fato de que o "equilíbrio do terror" está
constantemente ameaçado pela corrida armamentista e
pelo progresso tecnológico.
É preciso por último acentuar que quase todos os
críticos do pensamento estratégico tendem a pôr em
evidência a clara orientação ideológica em que
assentam os fundamentos das teorias da dissuasão
(essencialmente originadas da consciência do papel de
"guardião do mundo livre", até aqui exercido pelos
Estados Unidos dentro do sistema internacional),
orientação que contradiz de modo flagrante a
afirmação de "neutralidade" da estratégia nuclear, de
vários modos reforçada por estrategistas como Herman
Kahn ou Thomas Schelling.
Se é pois verdadeiro que, com o aparecimento das
novas armas, seu papel se tornou essencialmente
político, trata-se agora de entender, através das
modificações que as armas termonucleares impõem à
teoria estratégica, a influência que elas exercem sobre
as regras da condução política dos Estados. Para isso é
necessário enfrentar o problema que, na literatura
estratégica contemporânea, surge com o nome de
"paradoxos da era nuclear".
O paradoxo fundamental, de que se originam outros
menores, foi repetidas vezes posto em evidência por
R. Aron, podendo ser assim resumido: por um lado, os
arsenais são constantemente enriquecidos com
engenhos cada vez mais potentes e destruidores, com
base no princípio de que a sua simples presença
bastará para desencorajar um ataque de qualquer
adversário; mas, por outro lado, declara-se que uma
guerra atômica seria demasiado terrível para ser levada
a efeito. A existência das armas termonucleares
dissuadem da guerra. A estas armas, porém, não se
pode recorrer, porque são demasiado terríveis: não
adianta ameaçar o inimigo com uma perspectiva em
que não se crê ou que não se pretende tornar
441
em realidade. Desta incongruência estrutural deriva
uma série de conseqüências, das quais a mais
importante é que a ameaça de guerra com que se visa
a manter a situação pacífica não pode valer-se das
armas atômicas quando de conflitos menores, porque
seriam desproporcionadas: assim, a este nível de
conflitos, não existem inibições. Mas, por outro lado,
essa ameaça também não pode ser usada nos conflitos
maiores, pelas razões já apontadas. Fica igualmente
comprometido o significado do recurso à técnica da
escalation: ela representa um perigo que se quer
evitar, mas também uma ameaça a que não se pode
renunciar.
H. Morgenthau, por sua vez, viu ainda outros
paradoxos na estratégia da era termonuclear: 1) a
política baseada no compromisso de recorrer à força,
quando necessário, é bloqueada pelo temor de ter de
recorrer realmente a ela; 2) é contraditório querer
conciliar o uso das armas atômicas com a declarada
irracionalidade da guerra atômica e querer, por isso,
descobrir um modo racional de usá-las; 3) segue-se
uma política de corrida aos armamentos, enquanto se
busca, ao mesmo tempo, sustá-la; 4) continua-se a
tentar uma política de alianças, que já se encontra
superada
pela
disponibilidade
de
armas
termonucleares.
É claro que esta situação não pode deixar de se
refletir no nível mais geral da estrutura do sistema
político internacional e, conseqüentemente, no regime
das alianças. Morgenthau, em particular, nisso seguido
pelos ideólogos da force de frappe francesa, os
generais A. Beaufre e P. Gallois, sustentava que, em
todo caso, o risco de destruição atômica que se podia
correr para salvar a própria vida não se podia aceitar
para ajudar um país aliado, vítima de uma agressão.
Da conseqüente necessidade de cada Estado cuidar da
própria defesa sem confiar na ajuda exterior derivaria a
justificação da criação de uma força de dissuasão
termonuclear independente. É, contudo, possível
desenvolver uma argumentação inteiramente oposta a
esta agora apresentada, que teria também o defeito de
não levar suficientemente em conta a realidade
histórica contemporânea. Se é compreensível a
relutância de um país em comprometer-se
abstratamente na defesa de um aliado, não o é quando
a derrota dele se traduz na perda do poder
internacional ou numa subseqüente ameaça à própria
segurança e integridade. Mais que debilitar a estrutura
das alianças, poder-se-á então dizer que o contexto
termonuclear serve para robustecê-la, fazendo
realmente culpáveis os países menores por serem
incapazes de garantir, só com suas forças, a segurança
nacional e obrigando-os, conseqüentemente, a aceitar
ESTRATÉGIA E POLÍTICA DOS ARMAMENTOS
442
o "abrigo termonuclear" que um país mais poderoso,
no intuito de reforçar seu controle sobre os aliados, lhe
oferecerá. Daí em diante, nenhum ataque dirigido
contra o aliado menor poderá deixar o líder inerte;
com isso perderiam credibilidade suas ameaças aos
adversários e suas promessas aos aliados, nas quais
assenta a política dissuasiva. Não será, portanto, um
abstrato princípio de solidariedade que garante a
ajuda, mas antes a necessidade defensiva do próprio
líder. O próprio contraste entre a corrida aos
armamentos e a tentativa de a conter nos leva a outra
temática extremamente significativa: como é que a
prática da corrida armamentista é levada a efeito por
aqueles mesmos países que cotidianamente proclamam
desejar chegar o mais depressa possível à estipulação
de acordos internacionais para o controle dos
armamentos, primeiro, e, depois, para o
desarmamento?
X. BALANÇO
TERMONUCLEAR.
DE
TRINTA
ANOS
DE
ESTRATÉGIA
— Quem quiser comparar o novo e
enorme impulso da literatura estratégica destes anos
mais recentes ao corpus que se foi consolidando nos
primeiros vinte anos de teoria da era termonuclear
dificilmente poderá evitar o dissabor produzido pela
sensação do dejà vu; nestes anos mais próximos (fim
dos anos 70 e início dos anos 80), a literatura
estratégica refloresceu, após um período (quase toda
década de 70) de paralisia e de repetição de teorias
anteriores. É, porém, igualmente verdadeiro que a
literatura mais recente nada mais fez senão mudar
nomes de conceitos e problemas nada novos. É certo
que a estratégia de dissuasão recíproca se chama hoje
MAD (onde a abreviação de Mutual Assured
Destruction produz um jogo de palavras de mau gosto
que nos deve lembrar que seria louco quem a quisesse
criar) e que a riqueza e flexibilidade dos arsenais se
converteu
em
Triad
(mísseis
balísticos
intercontinentais, mísseis balísticos lançados de
submarinos, bombardeiros estratégicos e cruise, ou
bombardeiros não pilotados, ou mísseis de cruzeiro),
mas os problemas, que as armas estavam incumbidas
de resolver antes com a sua simples presença, não
parecem hoje menos dramáticos que há vinte anos
atrás.
A suspeita de estarmos talvez a ouvir uma velha
música apenas adaptada poderá parecer infundada a
quem, ao contrário, der maior importância às
diferenças que existem entre o sistema internacional
atual (1984) e o de há alguns anos atrás. A solidez da
ordem internacional nos primeiros anos da década de
80 parece menor em relação ao passado; capacidade
de governo e de controle dos aliados, que os Estados
Unidos e a
União Soviética haviam alcançado, exige deles agora o
uso da força, quando antes bastava a ameaça. Os
Estados Unidos perderam um aliado geo-estratégico
importante, o Irã, como ponto final de uma dificuldade
crescente em controlar a situação do Médio-Oriente; a
União Soviética teve de resignar-se com o seu "Vietnã",
o Afeganistão. Em suma, a potência não parece já
resumida apenas nas mãos dos dois grandes, mas vai se
distribuindo (libertando-se?) ou "difundindo", segundo
a afortunada fórmula proposta pelo International
Institute for Strategic Studies de Londres, em 1977.
Se estas tendências, a que se junta a incoercibilidade
de certas revoltas, se consolidassem, é claro que
poderíamos realmente pensar que nos encontramos no
limiar de um novo sistema internacional. Mas os dados
atuais da situação político-estratégica não são
favoráveis a esta última possibilidade, pois, se é
indubitável que os sintomas de crise antes lembrados
são reais, torna-se bem difícil tirar daí a conclusão de
que as duas superpotências já não são tais. É
significativo, sob este aspecto, o panorama da literatura
estratégica destes anos mais recentes: ela se limitou, na
grande maioria dos casos, a repropor os princípios
teóricos formulados já há cerca de vinte anos, salvo
algumas exceções em que foram propostas atualizações
ou inovações, embora sempre destinadas a confirmar a
correspondência fundamental entre bipolaridade
estratégica e bipolaridade política. É o caso de dois
recentes escritos de K. Waltz (um dos mais eminentes
estudiosos da teoria das relações internacionais), no
primeiro dos quais, ainda sob a ação do shock
experimentado nos Estados Unidos pelo seqüestro dos
diplomatas na sede de Teerã, é proposta uma estratégia
fundada no recurso a forças de rápida intervenção; no
segundo, dedicado à proliferação das armas
termonucleares, ele sugere: "more may be better".
Invertendo o preconceito de que a exclusividade do
club atômico é garantia de segurança, Waltz sustenta
que, mesmo dando primazia ao sistema bipolar, uma
"lenta" difusão na proliferação persuadiria todos os
Estados, particularmente os novos possuidores de
armas termonucleares, a comportarem-se cada vez
mais prudentemente.
Esta última proposta, bem vistas as coisas, é tudo,
menos o anúncio de uma nova era: propondo que os
Estados ainda não nucleares se façam, aceita-se
fundamentalmente, de maneira implícita, que todos
devam imitar os respectivos "grandes frères" (segundo
expressão de R. Aron, vinte anos atrás), coisa que
dificilmente poderá ser interpretada como um bom
sinal, por nova ou velha que seja a ordem do sistema
internacional em que vivemos.
ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL
BIBLIOGRAFIA. - R. ARON, Pace e guerra tra le nazioni
(1962) Edizioni di Comunità, Milano 1970; A.
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"Adelphi Papers", n.° 171, 1981.
[LUIGI BONANATE]
Estratificação Social.
I. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS. — O conceito
de estratificação, tal como é usado atualmente na
sociologia, é em grande parte sinônimo do conceito de
desigualdade social: indica que
443
os homens estão colocados em posições diferentes no
que respeita ao acesso aos bens sociais a que todos,
em geral, aspiram, mas cuja disponibilidade é escassa.
É importante frisar a natureza social da estratificação,
de modo que não se confundam as desigualdades
sociais com as desigualdades naturais. É evidente que
os homens não são iguais; não só diferem quanto às
características físicas (peso, estatura, cor dos olhos e
dos cabelos, sexo, saúde, força física, etc), como
também quanto à capacidade mental. Estas diferenças
não são por si capazes de explicar as desigualdades
sociais, embora possam influir em certos casos. Numa
sociedade que atribui grande importância à capacidade
de manejar as armas, o indivíduo dotado de grande
vigor físico levará vantagem sobre outro de débil
musculatura e de saúde fraca. Uma coisa é, portanto, o
problema de analisar como é que uma certa sociedade,
em confronto com as demais, atribui enorme valor às
qualidades militares, e outra ver como é que tais
qualidades se distribuem pela população. Por outro
lado, sabemos que certas características, geralmente
tidas por "naturais", sofrem a influência das condições
sociais, como, por exemplo, a estatura, a fecundidade
e outras mais.
O fato de as desigualdades naturais e sociais não
coincidirem demonstra-o precisamente a grande
variabilidade que os sistemas revelam de época para
época e de uma sociedade para outra. Isto significa,
em outras palavras, que os mecanismos mediante os
quais são distribuídos bens e valores sociais
dependem mais da estrutura da sociedade que da
distribuição das características, qualidades e
capacidades "naturais".
II. PROCESSOS DE DIFERENCIAÇÃO, AVALIAÇÃO E
ATRIBUIÇÃO DAS RECOMPENSAS. — Como base do
fenômeno da estratificação, encontramos o fato
fundamental da diferença das posições e dos papéis
sociais, ou seja, a divisão do trabalho. Numa
sociedade onde não houvesse divisão do trabalho,
onde todos os homens exercessem as mesmas
atividades de modo substancialmente idêntico, não se
criariam formas de estratificação. O fato de nenhuma
sociedade conhecida do passado e do presente ter sido
imune a alguma forma, mesmo embrionária, de
divisão do trabalho faz surgir imediatamente a
seguinte pergunta: se a diferenciação dos papéis é um
pré-requisito da estratificação, isto implicará também
em que toda forma de divisão do trabalho e de
diferenciação dos papéis produza necessariamente
alguma forma de estratificação? A experiência
histórica sugere uma resposta afirmativa. De fato,
jamais existiu sociedade que não tenha conhecido
alguma forma de classificar os diversos papéis na
dimensão
444
ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL
inferior-superior e de os conferir aos indivíduos. O
processo de diferenciação das posições sociais envolve
sempre um processo de avaliação diferencial das
mesmas. A grande mutabilidade das formas que o
processo de avaliação assume demonstra, contudo,
que não existe vínculo necessário entre a existência de
papéis diversos e a sua disposição numa escala
hierárquica. Com efeito, a avaliação diferencial das
posições sociais não é um elemento que entre na
definição dos papéis a que tais posições correspondem.
Nas sociedades industriais do Ocidente, por exemplo,
existe a tendência a avaliar mais o trabalho intelectual
que o manual, mais o trabalho manual das fábricas
que o do campo. No entanto, é claro que pode haver
sociedades onde a escala dos valores é diferente. Uma
sociedade em constante estado de guerra com os seus
vizinhos, não só tenderá a estimular as virtudes
militares na população, como a atribuir às profissões
um valor particularmente elevado. Em geral, a escala
de valores em que assenta a avaliação de inferioridadesuperioridade dos papéis sociais numa determinada
sociedade reflete, por um lado, a importância relativa
das tarefas que essa sociedade tem de enfrentar para
garantir a própria sobrevivência e, por outro, a
necessidade que têm os que ocupam posições elevadas
de manter a sua superioridade. Em toda sociedade
tende a haver um certo consenso sobre o modo de
avaliar a importância relativa dos vários papéis
sociais; mas, se não existir tal consenso, isso indicará
que a sociedade está passando por transformações tais,
que farão surgir um novo sistema de estratificação.
Além dos processos de diferenciação e avaliação,
outro dos processos que fazem parte do fenômeno
geral da estratificação é o chamado processo de
atribuição das recompensas. Como antes falamos de
avaliação diferencial, falaremos aqui de recompensas
diferenciais atribuídas aos que preenchem os diversos
papéis sociais. É costume classificar estas
recompensas em três categorias que, dada a sua
importância, são também freqüentemente consideradas
como as três dimensões essenciais do processo de
estratificação: a riqueza, o prestígio e o poder. A
riqueza é a forma mais generalizada de recompensa nas
modernas sociedades ocidentais, sobretudo porque, em
sua forma monetária, é um bem rapidamente
transformável em outros bens e, por isso, define
amplamente o estilo de vida de uma pessoa, O
prestígio indica, em vez disso, o grau de honra,
deferência ou respeito, ligada a uma determinada
posição social, ao exercício de uma profissão ou ao
desempenho de um papel. O conceito de prestígio é
eminentemente relativo; com relação ao alto dirigente
que controla a atividade gigantesca de uma grande
sociedade financeira, o empregado subalterno de uma
pequena empresa goza indubitavelmente de um
prestígio muito baixo. Se o empregado se confrontasse
constantemente com o alto dirigente, o prestígio de
que goza acabaria por ser até uma recompensa negativa.
Em relação ao homem de trabalhos pesados e ao
contínuo, contudo, o empregado goza de um certo
prestígio e, portanto, ao comparar-se com eles, seu
prestígio adquire o valor de uma recompensa positiva.
Finalmente, o poder é uma recompensa de natureza
particular, porquanto não só determina em larga
medida a distribuição das outras recompensas, como
também só é recompensa para quem o exerce. A falta
de poder não pode, de fato, ser considerada como
relativa a uma hipotética cota zero: quem não tem
poder não pode senão suportar o de quem o possui.
É muito freqüente a curva de distribuição destas
três categorias de recompensas seguir um
desenvolvimento análogo e existir uma alta correlação
entre elas, no sentido de que, quem possui muita
riqueza, goza também, em geral, de elevado prestígio e
exerce considerável poder. Há, porém, muitíssimas
exceções a esta regra; podemos dizer, com efeito, que,
em certos casos, as diversas recompensas são capazes
de se compensar mutuamente. A baixa renda de que
goza, por exemplo, um magistrado é compensada pelo
seu elevado prestígio, ao passo que um hábil agiota
poderá ganhar muito com a sua atividade, mas não
certamente em termos de consideração social.
Toda sociedade dispõe de mecanismos particulares,
regulados por um sistema por vezes complexo de
normas ou sanções, para transformar um tipo de
recompensa em outro; para transformar, por exemplo,
a riqueza em poder e vice-versa, a riqueza em
prestígio, etc. Foi aventada a hipótese de que um
indivíduo que tenha alcançado uma certa posição na
escala da riqueza, por exemplo, tenderá a equilibrar a
própria posição igualmente nas demais dimensões,
isto é, a eliminar os chamados desequilíbrios ou
incongruências de status. A figura do parvenu
constitui um caso exemplar desse tipo de
incongruências. A literatura o descreve como um
enriquecido ansioso por ver reconhecida a sua posição
por quem, desde o nascimento, faz parte da classe
superior; procurará imitar os gostos e o estilo de vida
do grupo ao qual ambiciona pertencer, solicitará a
admissão nos círculos das pessoas superiormente
colocadas, tentará ligar-se a elas com vínculos de
natureza pessoal, ser admitido à sua mesa e, por fim,
desposar uma das suas filhas. Pelo contrário, o nobre
endividado ou o financeiro que perdeu tudo num dia
aziago na Bolsa lutarão desesperadamente por manter a
elevada posição anteriormente ocupada,
ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL
mostrando um nível de consumo superior àquele que
efetivamente a situação lhes consente.
Em toda sociedade existem vários obstáculos à
transformação de um componente do status em outros
e, por isso, não obstante a tendência ao equilíbrio
entre os diversos componentes, sempre se verificam
fenômenos de incongruência. Se esta não atingir só os
indivíduos, mas também grupos sociais inteiros, é
provável que ela se torne a base da formação de ações
coletivas e de movimentos sociais tendentes a
modificar o sistema de estratificação. As
incongruências de status são, de fato, uma das fontes
primárias da mudança social.
III. AS MUDANÇAS NA ESTRATIFICAÇÃO
SOCIAL. — As mudanças no sistema de estratificação
podem ser essencialmente de dois tipos, se bem que
eles se apresentem com freqüência unidos e
combinados num único processo. Temos, em primeiro
lugar, as mudanças na forma da estratificação. Se
representarmos esta, como é habitual, por meio de
uma pirâmide, teremos uma base muito larga que se
estreita rapidamente em direção ao vértice (como, por
exemplo, nas sociedades baseadas na agricultura), ou
então uma pirâmide com uma base mais estreita, ou
ainda duas pirâmides unidas entre si pela base. Esta
forma, segundo alguns, é a mais apta a representar as
modernas sociedades industriais avançadas, cuja
característica predominante seria o enorme
desenvolvimento da classe média em relação às
classes extremas, mas, sobretudo, a redução
quantitativa das classes inferiores fundadas no
trabalho manual. Nas mudanças deste tipo pode-se
depois distinguir dois aspectos. O primeiro é de
natureza objetiva e depende das transformações da
estrutura sócio-profissional, originadas nos processos
de mudança tecnológica. Tais processos fazem
desaparecer algumas categorias profissionais, ao
mesmo tempo que fazem surgir outras, gerando, em
conseqüência, fenômenos de MOBILIDADE SOCIAL (V.)
de caráter coletivo. O segundo aspecto é, pelo
contrário, de natureza subjetiva e depende do modo
como tais transformações são percebidas e
interpretadas. O desenvolvimento quantitativo da
classe média, por exemplo, pode ser interpretado, por
um lado, como fenômeno de mobilidade social
ascendente e, por outro, ser considerado como
fenômeno de proletarização das classes médias.
O segundo tipo de mudanças na estratificação se
refere, em vez disso, ao modo como os indivíduos são
destinados aos diversos papéis sociais e conseqüentes
estratos. A tal propósito, distingue-se entre
mecanismos de natureza adscritiva e mecanismos de
natureza aquisitiva. Os primeiros predominam nas
sociedades em que a posição
445
social de um indivíduo é determinada por
características fundamentalmente hereditárias; os
segundos, ao invés, ressaltam a importância da
capacidade adquirida pelo indivíduo para o
desempenho de um determinado papel, não levada em
conta a posição social da família de origem, nem a sua
integração em grupos sociais particularmente
privilegiados, tanto em sentido positivo como
negativo. Muitos sociólogos sustentam que os
mecanismos adscritivos são típicos de sociedades
tradicionais e estáticas, enquanto que as sociedades
modernas e dinâmicas tendem a privilegiar o mérito
individual e, conseqüentemente, os mecanismos
aquisitivos. Todavia, a simples constatação de que as
capacidades individuais são também resultado das
diferentes oportunidades oferecidas aos vários estratos
sociais, e de que até as sociedades mais dinâmicas
revelam taxa elevadíssima de hereditariedade nas
posições sociais, faz com que toda afirmação deste
tipo deva ser considerada de forma muito relativa, se
não se quiser cair numa mera declaração de princípios
de índole ideológica.
Na realidade, o estudo da estratificação não pode
ser
separado
das
implicações
ideológicas
inevitavelmente
ligadas
à
problemática
da
desigualdade social. Isto foi há pouco recalcado a
respeito sobretudo da teoria funcionalista da
estratificação formulada, pela primeira vez, num
ensaio de K. Davis e W. Moore, em 1940. Estes
autores defendem que a estratificação não só é
universal como também inevitável e necessária,
porquanto não seria possível motivar os indivíduos a
ocuparem
posições
elevadas
de
grande
responsabilidade se a elas não fosse atribuída uma
cota excessivamente elevada de recompensas em
termos de riqueza, poder e prestígio. Contra esta tese,
observou Tumin e outros que a necessidade de
recompensas diferenciais depende dos valores
culturalmente dominantes na nossa civilização e não
de características atribuíveis à natureza humana, e
que, por conseguinte, é admissível, em princípio, uma
sociedade onde os estímulos ao preenchimento dos
vários papéis sociais não dêem lugar à desigualdade
de posições.
BIBLIOGRAFIA - Classe, potere e status, ao cuidado
de R. BENDIX e S. M. LIPSET (1953), Marsilio, Padova
1968-1971, 4 vols.: Stratiflcazione e classi sociali. ao
cuidado de A. CARBONARO, Il Mulino, Bologna 1971;
F. PARKIN, Disuguaglianza di classe e ordinamento
político (1971), Einaudi, Torino 1976; W. G.
RUNCIMAN, Ineguaglianza e coscienza sociale (1966),
Einaudi, Torino 1972; M. TUMIN, La stratificazione
sociale (1967), Il Mulino, Bologna 1968.
[ALESSANDRO CAVALLI]
446
ESTRUTURA
Estrutura.
O termo Estrutura tem assumido significados muito
diferentes, do positivismo evolucionista até o
estruturalismo metódico.
I. O CONCEITO DE ESTRUTURA NO
POSITIVISMO EVOLUCIONISTA DE H. SPENCER.
— H. Spenter define o conceito de Estrutura, que vai
buscar à biologia, como um conjunto de partes
funcionais em relação à unidade que constituem, ou
seja, como um conjunto de partes mutuamente
dependentes. Spencer reconhece também na
organização social as leis da evolução universal, que
presidiriam, por conseguinte, tanto o desenvolvimento
do mundo orgânico como o da Estrutura social. Assim
como aumenta a massa dos corpos viventes, também a
Estrutura social suporta o incremento devido à
integração de pequenas e simples comunidades. A
integração se segue a diferenciação das partes (uma
função governativa, a distinção entre as partes
reguladoras e as partes operativas). Finalmente, uma
progressiva diferenciação das funções se desenvolve
contemporaneamente à das partes da Estrutura. As
partes que a compõem são interdependentes, na
medida em que é a combinação das suas ações que
constitui a vida do todo, e a modificação de uma delas
se reflete sobre todas as demais. Spencer julga que a
Estrutura social passa por um processo natural
análogo ao do mundo orgânico, de cujas leis
evolutivas participa: é por isso que lhe parece
inaceitável a tese de Hobbes, que pôs a origem da
sociedade num contrato social, proclamando assim seu
caráter artificial.
II.
A ESTRUTURA NO
ESTRUTURALFUNCIONALISMO. — Segundo T. Parsons, Spencer
foi vítima da evolução (da ciência), de que fora um
dos mais convictos defensores. O estruturalfuncionalismo, de que Parsons é um dos mais insígnes
expoentes, abandonou completamente a estreita
analogia com o mundo orgânico em que Spencer
fundara o seu conceito de Estrutura social. Parsons
distingue dois níveis de pesquisa sociológica: a) nível
descritivo; b) nível analítico. O primeiro se refere aos
dados concretos experimentados numa verificação
empírica; o segundo, a um esquema lógico, graças ao
qual pensamos e descrevemos os fenômenos da ação
social. É a este segundo nível que temos de nos referir
para acompanhar a reconstrução do conceito de
Estrutura social realizada por Parson. Em primeira
análise, ela indica uma rede de relações entre os
sujeitos implicados num processo
de interação. A participação nessas relações estruturais
apresenta dois aspectos primários: de um lado, está a
posição que o sujeito ocupa com relação aos outros,
ou seja, o seu status; do outro, o aspecto processual,
que se refere ao que o sujeito cumpre em suas
relações com os demais, ou seja, o seu papel. Estas
indicações permitem distinguir os quatro componentes
da Estrutura social: 1) o ato social realizado pelo
sujeito agente e dirigido a um ou mais sujeitos em
função de objetos de referência; 2) o status-papel, isto
é, o conjunto dos atos realizados por sujeitos que
ocupam status recíprocos; 3) o sujeito como sistema de
status e papéis a ele atribuíveis, tanto como objeto de
referência quanto como autor da atividade do papel; 4)
a unidade constituída pela coletividade, quer como
sujeito agente, quer como objeto.
A distinção dos quatro componentes não exaure
toda a riqueza e a complexidade da noção de Estrutura
social. A teoria da ação é, em Parsons, constituída por
três centros: a) a Estrutura social; b) os aspectos
motivadores do sujeito; c) os aspectos culturais da
ação, isto é, os critérios de valor. A Parsons
interessam particularmente os modos como se orienta
o sujeito quanto à situação: ele julga, com efeito, quais
sejam as propriedades dos objetos do contexto
situacional (processo cognitivo); se lhe são favoráveis
ou desfavoráveis (processo catético); que necessidades
satisfazem de imediato e quais as que podem satisfazer
depois (processo estimativo). O aspecto cultural da
ação se refere aos critérios normativos, que
determinam se os juízos formulados pelo sujeito são
válidos ou não. Segundo Parsons, o sujeito integra em
sua personalidade os modos de orientação cultural
preexistentes, que lhe são comunicados desde fora.
As considerações anteriores permitiram a Parsons,
na esteira de Durkheim, definir, em última instância, a
Estrutura do sistema social como o conjunto dos
modelos culturais normativos institucionalizados no
sistema e interiorizados na personalidade dos seus
membros. Trata-se, pois, de uma correlação de
tendências psicológicas e culturais, ou seja, da
interação e integração das motivações.
Enquanto Parsons reconstrói a Estrutura do sistema
global, R. K. Merton define a Estrutura da situação.
Também ele aceita como válida a já mencionada
distinção entre nível descritivo e nível analítico no
método sociológico. É com referência a este último
que se hão de entender as considerações que seguem.
A análise estrutural mertoniana baseia-se em três
operações fundamentais: I) identificação dos
elementos
ESTRUTURA
determinantes: trata-se de referências concretas a que
se pode prender a ação dos sujeitos, que podem ser
atraídos, quer pelos valores e normas de grupos, isto é,
de formações sociais de vários tipos, quer por
indivíduos, quer, enfim, por modelos de papéis
(entendendo-se com isto a identificação mais limitada
com um indivíduo, num dos seus papéis); II) análise
das propriedades estruturais; III) definição das
condições
estruturais
do
comportamento
(a
possibilidade de observância das normas, por exemplo,
uma das propriedades estruturais, depende do status
que uma pessoa ocupa; assim, quem detém a
autoridade possui um conhecimento maior delas, a fim
de as respeitar, porquanto é nisso que está a maior
garantia da sua autoridade). É desta análise que
emerge o conceito mertoniano de Estrutura social como
Estrutura da situação, que compreende: a) o conjunto
de referências, ou seja, a constelação dos grupos,
categorias sociais, coletividades, subgrupos (partidos,
sindicatos, etc); b) as condições da escolha subjetiva de
um dado contexto estrutural (valores e normas de um
grupo de referência). Este conceito de Estrutura, ao
contrário do de Parsons, não leva em conta o aspecto
da motivação na escolha subjetiva e deixa aparecer
principalmente os aspectos objetivos (grupo de
referência, condições da opção individual) da situação
em que o sujeito se encontra e age.
Em ciência política, Almond chama Estruturas
àquelas uniformidades observáveis que constituem o
sistema político. Mais exatamente, a Estrutura é um
conjunto de papéis ligados entre si. Por papel se há de
entender a esfera de atividade dos indivíduos inerente
aos processos políticos. Assim, a atividade do juiz é
um papel, o tribunal uma Estrutura. Almond usa os
termos de papel e Estrutura e não os de função e
instituição,
quando
entende
referir-se
a
comportamentos observáveis e não a normas formais.
III. ASPECTOS METODOLÓGICOS DO ESTRUTURALFUNCIONALISMO. — O estrutural-funcionalismo faz
parte dos estruturalismos globais, cuja característica é
a de se basearem nas interações observáveis num
sistema (v. J. Piaget, Lo strutturalismo, Milano 1968).
A reconstrução da Estrutura é a descoberta de uma
ordem, a um certo nível de abstração, dentro da
realidade descrita. O nível em que isso ocorre implica
o recurso a elementos analíticos (por exemplo, os
conceitos de fim, meio, condições, normas) a que
correspondem, a nível empírico, valores precisos (um
fim, um meio determinado, etc). O status desta análise
estrutural é, portanto, fenomenológico (são, de fato,
freqüentes as referências de Parsons
447
a Husserl), na medida em que conduz à elaboração de
um esquema que torna possível pensar e descrever a
realidade concreta. Trata-se de um estruturalismo
estático, preocupado com a interação e integração das
partes. Enfim, é um estruturalismo que liga
intimamente ao conceito de Estrutura o de função,
definida como conseqüência da ação (Merton) ou
como condição da manutenção do quadro estrutural
(Parsons).
IV. ESTRUTURALISMO
METÓDICO.
—
A
peculiaridade do chamado estruturalismo metódico
está na superação da realidade empírica e da sua
descrição. Consegue, com efeito, construir uma
Estrutura que consiste em relações lógicas e que não é,
por isso, nem um "fato", nem uma ordem encontrável
dentro de "fatos''. A mudança meto dológica foi
assinalada pela lingüística, cujas perspectivas
acabaram por interessar a todas as ciências que estão
diversamente comprometidas com o estudo do homem
(a antropologia estrutural e a psicanálise, por
exemplo).
A construção estrutural realizada pelo lingüista não
é, como na física, uma construção teórica que
sobrepõe o sistema hipotético aos dados encontrados
na pesquisa empírica; pelo contrário, a rede das
relações lógicas que se constrói, embora não pertença
à ordem dos fatos nem à das abstrações daí deriváveis,
não constitui, contudo, um esquema fictício, mas a
tradução, com o rigor de uma formulação lógica, de
princípios e relações existentes, como escreve
Saussure, a nível da consciência coletiva.
Na perspectiva do estruturalismo metódico, a
Estrutura, além de não poder ser constatada como
dado, possui, segundo J. Piaget, as seguintes
características: I) a totalidade: a Estrutura consta de
elementos subordinados a leis de composição que
conferem ao todo propriedades distintas das dos
elementos; II) a possibilidade de transformação; III) a
auto-regulação, isto é, o respeito aos limites e a
observação das leis da Estrutura nas transformações
estruturais.
V. CONCEITO DE ESTRUTURA NA ANTROPOLOGIA
ESTRUTURAL. — A antropologia estrutural, que
podemos incluir entre os estruturalismos metódicos,
apresenta uma definição de Estrutura que é
estreitamente afim à da lingüística estrutural. Qualquer
disposição de partes se converte em Estrutura, quando
responde a duas condições. A) Tem de ser um conjunto
de elementos expressos em forma simbólica, dotado de
propriedades (regras) que lhe garantam a coesão
interna. Esta primeira condição admite uma dupla
interpretação: a Estrutura, ou é um conjunto dotado de
448
ESTRUTURA
propriedades, ou se resolve nas propriedades desse
mesmo conjunto. A última solução é a mais provável,
como é lícito inferir da própria definição da Estrutura
elementar da parentela, identificada com as leis
internas da inclusão nas, e da exclusão das classes
exógamas, expressas na forma simbólica como foi
subdividida uma determinada população (v. C. LéviStrauss, Le strutture elementari della parentela,
Milano 1969). B) Há de ser transformação estrutural
(de uma Estrutura elementar da parentela, por
exemplo, em outra), ou seja, deve fazer parte de uma
variedade de transformações. O caráter fundamental
de uma Estrutura é, pois, o de se poder converter em
outro conjunto de elementos, tendo por base as regras
da transformação. Convém precisar que as
transformações não são de natureza histórica, mas
lógica, uma vez que são efetuadas, mediante operações
lógicas (permutações), de um conjunto de símbolos em
outro. A inclusão de uma Estrutura num grupo de
transformações é condição fundamental da sua
inteligibilidade. Além disso, os grupos de
transformações seguem uma única linha combinatória,
cujas regras são as do espírito humano, que gera,
através de uma atividade incônscia, todas as Estruturas
possíveis. O conjunto destas Estruturas, de caráter
inconsciente, acentuamos, está universalmente
presente em potência, ao passo que a sua realização
depende da ação humana, baseada no material
histórico de que dispõe. O caráter universal da
Estrutura garante a objetividade do modelo que a
exprime: uma única Estrutura está por baixo, tanto do
sistema que é objeto de pesquisa, como dos modelos
de conhecimento do antropólogo.
Por fim, a última característica da Estrutura é a nãohistoricidade: ela se opõe à história. Paralela a esta
oposição é a existente entre sincronia e diacronia. Não
convém confundir a Estrutura com as relações sociais
de um sistema concreto: estas são só a matéria-prima
utilizada na construção do modelo que evidencia a
Estrutura, convertida então na "Estrutura do sistema".
Esta Estrutura consiste na relação entre os elementos
simultâneos, constituindo um estado de equilíbrio. A
história é, em vez disso, a sucessão dos fatos
contingentes (migrações, guerras, alianças) que podem
provocar modificações na Estrutura; mas, se a
tendência estrutural resiste ao choque, as novas
soluções serão mantidas na linha anterior. Verificar-seá então um deslocamento dos limites da Estrutura,
mas esta, embora alterando-o, conservará seu
equilíbrio interno. O ordenamento estrutural não
possui em si mesmo o princípio do próprio
movimento: este reside fora, na história. Enquanto a
Estrutura é uma sucessão de
estados em equilíbrio, a história é o catalisador das
mudanças estruturais, isto é, da realização das
possibilidades intrínsecas à Estrutura. Ao equilíbrio
estrutural se opõe a série dos fatos individuais e
fortuitos; à ordem do necessário se opõe a ordem do
contingente. O método da antropologia estrutural é,
pois, um método fundamentalmente aristotélico, que só
julga cientificamente inteligível o que ocorre
necessariamente ou com freqüência.
Acrescentemos uma distinção importante: a
distinção entre Estrutura de código e Estrutura de rede.
Aquela são as regras que regem um conjunto de
mensagens (as mensagens lingüísticas, por exemplo);
esta, as regras que regem um conjunto de permutas (as
matrimoniais, por exemplo). As mensagens são os
objetos comunicáveis, enquanto que a rede é o
conjunto dos canais que intermedeiam entre quem
emite e quem recebe, e através dos quais se trocam as
mensagens.
VI. CONCEITO DE ESTRUTURA NO
ESTRUTURALISTA. — Para a formulação do
MARXISMO
conceito de
Estrutura segundo o marxismo estruturalista são
necessárias algumas considerações metodológicas
prévias. O Capital começa com a exposição de um
grupo de categorias, indispensáveis para a
compreensão da Estrutura de qualquer sistema de
produção mercantil: conceito do valor de troca de uma
mercadoria; a moeda, que é apresentada como uma
mercadoria especial; o dinheiro, definido como uma
forma de moeda; o capital, ou seja, o dinheiro que
acrescenta valor ao valor inicial; a mais-valia. Um tal
aparato teórico é necessário para a identificação da
Estrutura específica do sistema capitalista e de
qualquer outro modo de produção. A análise do
conceito de mercadoria reduz as relações entre bens de
venda às relações de produção; o conceito de maisvalia surge como conceito de um conjunto de relações,
isto é, como conceito da Estrutura de produção. Em
primeira análise, a Estrutura é o mecanismo de
produção da mais-valia, mediante a relação capitaltrabalho. O processo teórico que permite a elaboração
da Estrutura consiste em superar a realidade descritiva,
isto é, a atividade concreta dos homens, e em construir
um aparelho de conhecimentos científicos. Desta
maneira, a descoberta do feiticismo das mercadorias
permite ir mais além das aparências da troca de
produtos no mercado e discernir o conjunto das
relações de produção. É o processo, brilhantemente
delineado por Althusser, que se desenvolve da
Generalidade I (isto é, das representações de uma
realidade constatada, das abstrações que refletem
especularmente o plano empírico) à
ETNIA
Generalidade III, constituída pela totalidade dos
conhecimentos científicos. É a passagem da ideologia
à ciência, tornada possível pelo corpo de conceitos que
antes esboçamos. O resultado disso é a construção' da
Estrutura do sistema produtivo, definida como
conjunto de duas relações: 1) relação de propriedade;
2) relação de apropriação real. A primeira expressa,
segundo Marx, uma relação de domínio: pertencem ao
proprietário tanto os meios de produção como o
trabalhador. A segunda se refere à combinação dos
meios de produção e dos indivíduos no processo
produtivo. A identificação da Estrutura com as duas
relações exclui toda consideração antropológica. Tal
Estrutura, superada a perspectiva do homo
oeconomicus, ou seja, do indivíduo humano e das suas
necessidades, resolve-se unicamente na combinação
dos
diversos
elementos
da
produção.
O
desaparecimento do indivíduo, garantia de uma
construção científica da estrutura, indica a distância
que separa a obra de Marx dos economistas clássicos.
Mais: é justamente a Estrutura das relações de
produção o verdadeiro sujeito, porquanto é ela que
destina os lugares e funções ocupados e assumidos
pelos agentes de produção, que são os seus portadores
(Träger) (v. Althusser e Balibar, 1968). A diversa
colocação dos objetos e agentes da produção com
respeito às relações estruturais permite definir a
Estrutura de qualquer sistema produtivo (feudal,
socialista ou simplesmente hipotético, como o que
Marx chamou "o modo de produção mercantil").
A escola althusseriana reconsiderou a relação
Estrutura-supra-estrutura dentro da Estrutura global,
dita dominante, da sociedade. Não é uma relação
mecanicista do fenômeno, isto é, da aparência para a
essência.
Pelo
contrário,
trata-se
de
um
condicionamento recíproco da existência. Assim como
a
Estrutura
produtiva
foi
condição
do
desenvolvimento da Estrutura jurídica (isto é, do
conjunto das relações jurídico-formais entre os
indivíduos), assim também esta, por sua vez, constitui
a condição da existência daquela, enquanto dá forma
às relações de produção. O conjunto dos níveis
estruturais forma a Estrutura hierárquica da sociedade,
caracterizada pela dominância alterna das diversas
Estruturas: a Estrutura da parentela na sociedade
primitiva; a Estrutura política na polis grega; a
Estrutura econômica na sociedade capitalista.
A importância de uma construção teórica, então,
mede-se em relação à história: ela permite, de fato,
constituir o modelo de funcionamento de qualquer
sistema produtivo, modelo que servirá como hipótese
de trabalho para o historiador e, ao mesmo tempo,
como quadro de referência que o livrará da
acumulação cega de dados empíricos.
449
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., Che cosa e lo
strutturalismo?. Ed. ILI. Milano 1971; AUT. VÁR..
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Razionalità
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Milano 1972; H. SPENCER, I principi di Sociologia
(1904), UTET, Torino 1967.
[GUSTAVO GOZZI]
Etnia.
Etnia é um grupo social cuja identidade se define
pela comunidade de língua, cultura, tradições,
monumentos históricos e território. Esta palavra
parece ter sido usada pela primeira vez em 1896, no
livro Les sélections sociales, de Vacher de Lapouge.
É sinônima de outras expressões como "comunidade
étnica e lingüística'', "nacionalidade espontânea",
"nacionalidade sem Estado", e outras mais.
Falar a mesma língua, estar radicado no mesmo
ambiente humano e no mesmo território, possuir as
mesmas tradições são fatores que constituem a base
fundamental das relações ordinárias da vida cotidiana.
Marcam tão profundamente a experiência dos
indivíduos, que se transformam num dos elementos
constitutivos da sua personalidade e definem, ao
mesmo tempo, o caráter específico do modo de viver
de uma população. Por outro lado, as relações sociais
que derivam do fato de pertencer à mesma Etnia
criam interesses coletivos e vínculos de solidariedade
caracteristicamente comunitários.
Observe-se que não fizemos uso da raça como
critério fundamental da definição de Etnia. Este
conceito, tal como é comumente usado, não tem um
fundamento científico. Os únicos fins com que tem
sido e continua a ser usado são os de justificar a
discriminação e alimentar o ódio racial, bem como o
de criar e manter a hostilidade entre os grupos
humanos. Na realidade, os caracteres biológicos,
transmitidos por via hereditária, distribuem-se,
através de uma linha contínua, nas diversas partes do
mundo, de tal modo que, em cada um dos grupos
humanos, é possível verificar a predominância de
determinadas
450
EUROCOMUNISMO
características. Contudo, os caracteres predominantes precisa, ao contrário da Etnia, de um Estado para se
num grupo vão-se juntando gradualmente aos dos manter.
grupos vizinhos, acabando por não ser possível
A extraordinária vitalidade e força de resistência
distinguir um determinado grupo com base nos demonstradas pelas Etnias incluídas nos Estados
caracteres biológicos. Por outro lado, a genética e a nacionais revelam, não obstante a permanente obra
antropologia revelaram que não existe uma relação centralizadora dos Governos, quão arbitrário e
direta na determinação dos caracteres psicológicos artificial foi o processo político da fusão do Estado
por parte dos caracteres biológicos, enquanto que os com a nação. As Etnias que ficaram latentes na época
caracteres hereditários e a evolução biológica da do nacionalismo, não só não perderam seu sentido de
espécie humana são amplamente condicionados por identidade sob o impulso centralizador e nivelador do
fatores de índole histórico-social, isto é, pelo conjunto Estado nacional unitário, como renascem agora até nos
das normas que regulam a reprodução e o matrimônio, Estados nacionais de mais antiga constituição, como a
normas que, por seu lado, dependem do sistema França e a Espanha, consolidando-se graças à sua
produtivo, da estrutura da organização política e da constante busca e reivindicação da autonomia e da
feição da cultura.
participação política.
Acrescentemos ainda uma observação quanto ao
As instituições federais baseiam-se num mecanismo
território. Existem, na realidade, povos que que permite realizar (coisa que, no passado, era em
mantiveram a sua identidade cultural sem estarem parte garantida pelos impérios multinacionais) a
ligados a um determinado território, como os ciganos coexistência pacífica e a igualdade de todos os povos,
ou os judeus, antes da constituição do Estado de defender a sua independência e proteger os seus
Israel.
direitos. Elas permitem, além disso, evitar a
Examinados assim os critérios que permitem definir fragmentação de certas áreas geográficas em pequenos
a Etnia, é mister distingui-la da NAÇÃO (v.). A Estados só formalmente independentes, mas privados,
observação dos caracteres étnicos põe em evidência devido às suas dimensões, dos recursos políticos,
como eles definem grupos que são diferentes dos militares e econômicos necessários para uma efetiva
grupos nacionais. Existem, com efeito, nações onde autonomia internacional. Lafont, por exemplo,
estão instalados numerosos grupos étnicos, como, por mostrou como, no quadro da federação européia, seria
exemplo, a França, composta não só por franceses, possível recompor os grupos étnicos hoje divididos
mas também por bretões, bascos, alsacianos, corsos, pelas fronteiras políticas. Analisando a França, ele
provençais, catalães e flamengos; e há Etnias que se propõe a união da parte espanhola da região basca
acham divididas por fronteiras de vários Estados, com a francesa, do Rossilhão com a Catalunha, da
como os bascos e os catalães, que ocupam territórios Córsega com a Sardenha, da parte francesa da região
pertencentes ao Estado espanhol e ao francês. Mas não flamenga com a belga, de sorte que se harmonizasse a
existem Estados cujos confins coincidam com os de necessidade da reunificação dos grupos étnicos com a
formação de regiões dotadas das dimensões e dos
um grupo étnico.
Isto prova a arbitrariedade da pseudoteoria dos recursos produtivos necessários à garantia da
"caracteres nacionais", que dá por verdadeira a independência econômica.
existência de uma afinidade étnica entre os membros
dos Estados nacionais; essa afinidade distinguiria os
BIBLIOGRAFIA. - G. HERALD, Popoli e lingue d'Europa. Ferro,
italianos ou os franceses do resto da humanidade. É
uma teoria que tem por função justificar a Milano 1966; R. LAFONT, La révolution régionaliste,
constituição dos Estados nacionais e dar um Gallimard, Paris 1967; S. SALVIi, Le nazioni proibite.
fundamento à lenda da origem das nações, segundo a Vallecchi, Firenze 1973.
qual a nação seria anterior ao Estado. Na realidade, a
[LUCIO LEVI]
experiência histórica demonstra que é o Estado que
cria a nação. Com efeito, os comportamentos étnicos
definem grupos que se formam e se mantêm sem a
intervenção do poder político. Por conseguinte, a Eurocomunismo.
extensão de uma Etnia é totalmente independente da
I. DEFINIÇÃO. — Este termo parece ter sido
dimensão territorial do Estado e as suas características
não derivam da forma da organização política deste. inventado em 1975 por um jornalista iugoslavo, Frane
Estas considerações permitem, pois, distinguir a Etnia Barbieri, correspondente de jornais italianos. É um
da nação, que, entendida como "ideologia do Estado termo que pretende sintetizar alguns
burocrático e centralizado",
EUROCOMUNISMO
processos muito complexos que levaram a uma
diferenciação de posições, tanto no que respeita à
política internacional, como à estratégia interna, entre
o partido comunista da União Soviética e alguns dos
partidos comunistas da Europa ocidental. O mesmo se
deu, quase ao mesmo tempo, com os partidos
comunistas japonês e australiano. Rejeitado a princípio
pelos
próprios
partidos
definidos
como
eurocomunistas, que temiam as implicações relativas à
criação de um pólo de referência alternativo, em
contraste com a União Soviética, o termo é hoje de
uso amplo e generalizado. Mais que um fenômeno
acabado, ele descreve um processo de transformação
em curso.
! A sua delimitação geográfica engana, pois pelo menos
um dos importantes partidos comunistas da Europa, o
português,
não
subscreveu
as
declarações
eurocomunistas de maior interesse, nem compartilha
muitas das posições públicas dos eurocomunistas; ao
mesmo tempo, há partidos comunistas não europeus,
como precisamente o japonês e o australiano, que
avançam pelo mesmo trilho do Eurocomunismo.
II. DIMENSÕES DO EUROCOMUNISMO. — Há diversos
modos possíveis de identificar as características
essenciais do Eurocomunismo. Tratando-se, como
dissemos, de um processo, é oportuno sublinhar que
essas características, algumas delas, podem ter sido
adquiridas primeiro por alguns partidos e só depois por
outros, podem haver penetrado profundamente em
alguns e só superficialmente em outros; que, em suma,
os partidos eurocomunistas poderiam ser classificados,
ao longo de um continuum, de um máximo a um
mínimo de Eurocomunismo. O importante é ter .
presente que o ingresso no âmbito eurocomunista
requer que se transponha um limiar, conquanto
mínimo, que marca uma ruptura na continuidade das
relações com a tradição comunista encarnada pela
União Soviética e por ela definida e redefinida.
Depois disso, talvez seja possível distinguir duas
dimensões sinteticamente definíveis, como leninismo
e stalinismo. Por sua gênese histórica, todos os
partidos comunistas são leninistas, no sentido de que
tiveram de aceitar as vinte e uma teses de Lenin para
poder fazer parte da III Internacional. Contudo, o que
aqui nos interessa para compreendermos o
Eurocomunismo é a atitude e comportamento dos
partidos eurocomunistas em qualquer destas três
dimensões especificamente leninistas: a conquista do
poder, a gestão do poder e a natureza do partido
comunista (sua autopercepção).
Pelo que concerne à conquista do poder, embora de
formas diversas e em tempos diferentes,
451
ligados, em parte, à sua experiência histórica e à sua
existência legal ou clandestina, todos os partidos
comunistas da Europa ocidental, com possível mas
não segura exceção do partido português,
abandonaram a via leninista da subida ao poder por
meio da insurreição. Baseando-se numa fria avaliação
das relações de força internacionais e numa cuidada
análise da estrutura da sociedade italiana e das
conseqüências da guerra civil na Grécia (a
"perspectiva grega"), Togliatti formalizou para o P.C.I.
o princípio da "via parlamentar para o socialismo".
Este avanço teórico dos comunistas italianos, alcançado
já no imediato pós-guerra, de que não existe nenhum
Palácio de Inverno para conquistar, só se estenderia
aos comunistas franceses após a publicação do
relatório Kruschev sobre os crimes stalinianos. Depois
de 1956, o P.C.F. começou a falar da "via pacífica
para o socialismo". Por razões óbvias, o partido
comunista espanhol acentuou constantemente a
necessidade de uma "ruptura democrática" com o
franquismo até a transição, que culminaria nas
eleições livres de junho de 1977. Mas, desde 1972, o
P.C.E. já vinha aceitando a idéia e a prática de uma
ampla aliança das forças populares. Em vez disso, o
partido comunista português, por razões fáceis de
compreender, julgou possível, na esteira da revolução
de abril de 1974, que derrubou o regime de SalazarCaetano, tentar a conquista do poder, com o apoio dos
oficiais da esquerda. O malogro de tal operação deu
origem a um processo de autocrítica, se bem que lento
e não linear. Todos os demais partidos comunistas da
Europa ocidental, afora o partido comunista grego
(chamado "do exterior", filo-soviético), aceitaram, na
totalidade, a via parlamentar para o socialismo.
Existem naturalmente grandes diferenças entre os
vários partidos, quer pela sua força eleitoral, quer
pelas suas possibilidades de chegar concretamente ao
exercício do poder político, quer, enfim, pela
estratégia que intentam pôr em ação para obter tal
poder. Em alguns casos, a questão nem sequer se põe,
tão escassa é a solidez dos partidos (os partidos
comunistas britânico e austríaco, por exemplo). Em
outros, Islândia e Finlândia, os partidos comunistas já
estiveram por diversas vezes no Governo, em
coalizões onde não eram parceiros dominantes.
Por seu potencial de coligação e por sua força
eleitoral e parlamentar, são os partidos da França, da
Itália, de Portugal e da Espanha os que mais têm
atraído as atenções. As suas estratégias apresentam
diferenças significativas. De um lado podemos colocar
o P.C.I., favorável a uma ampla aliança de forças
católicas, socialistas e comunistas (o compromisso
histórico), capaz de evitar a
452
EUROCOMUNISMO
repetição da "perspectiva chilena", ou seja, uma vasta
coalizão de forças anticomunistas de centro-direita e
uma ameaçadora reação internacional. Próximos a esta
posição estão os comunistas espanhóis, signatários de
um acordo com os socialistas e com a União do Centro
Democrático, conhecido como Pacto de Moncloa. Em
vez disso, os comunistas franceses começaram a fazer
parte de uma aliança com os socialistas, em 1972:
Union de la Gauche. Baseava-se num programa comum
de Governo, que poriam de lado em setembro de
1977. Como conseqüência, ambos os partidos sairiam
derrotados das eleições de março de 1978. À situação
de parceiros minoritários numa coalizão de esquerda
vitoriosa no Governo, os comunistas franceses
preferiram então manter a sua pureza de partido
ouvriériste e de encadrement, isto é, de organização
restrita e coesa, disciplinada e unitária. Mas a opção
antes rejeitada viria a impor-se com a vitória de
Miterrand nas eleições presidenciais e com a conquista
da maioria absoluta das cadeiras por parte dos
socialistas nas eleições legislativas de 1981. Havendo
sofrido sério declínio eleitoral, o P.C.F. teve de
aceitar uma participação subalterna no Governo
dirigido pelo socialista Mauroy. Finalmente, os
comunistas portugueses, após o malogro da via
insurrecional, recuaram, buscando uma aliança com
os socialistas que estes sempre recusaram
resolutamente. Além destes casos, há só outro sistema
político onde os comunistas desempenham um papel de
relevo: o da Suécia. Dada a estreita margem que existe
entre a coalizão burguesa e o partido socialdemocrático, os votos comunistas têm sido no passado
muitas vezes decisivos — e podem ainda sê-lo no
futuro —, mas sem público acordo, sem contrapartidas
políticas explícitas.
O leninismo não foi apenas uma teoria da conquista
do poder, mas também uma teoria da sua gestão:
ditadura do proletariado. Também sob este aspecto,
se bem que com variações diversas e em tempos
diferentes, os eurocomunistas se afastaram da
concepção leninista até a ponto de a eliminar
claramente da sua teoria. Para nos atermos só aos
maiores partidos, não é esse o caso do partido
comunista português. O P.C.I. não precisou proceder
a uma rejeição formal, estando a sua tradição e
elaboração teórica muito longe da ditadura do
proletariado. Já modificada pela formulação
gramsciana da hegemonia, a ser conquistada na
sociedade mediante uma ação de penetração cultural
antes da subida ao poder, a ditadura do proletariado
era um conceito obsoleto, mesmo antes de se iniciar a
própria revisão dos elementos leninistas ainda
presentes na versão da hegemonia. Por seu lado, os
partidos comunistas francês, e espanhol, muito mais
profundamente
impregnados de leninismo e privados de uma tradição
marxista autóctone, também procederam ao abandono
patente dessa teoria, dando ao fato grande
publicidade. Por ocasião do seu 22.º Congresso, em
fevereiro de 1976, o P.C.F. ratificou, segundo um
procedimento típico, a decisão vinda da cúpula do
partido. Os comunistas espanhóis se libertaram tout
court do leninismo, após um amplo debate realizado
pelos vários congressos regionais e depois de renhida
votação durante o 9.° Congresso Nacional, em abril
de 1978.
O leninismo é também uma concepção específica do
partido, muitas vezes polemicamente identificada
apenas com o aspecto do centralismo democrático.
Pois bem, o processo de distanciamento do leninismo
por que passaram e estão passando os partidos
eurocomunistas se avalia igualmente pela eventual
diminuição do grau de leninismo na organização do
partido, em cada um destes quatro componentes
essenciais: centralismo democrático, controle do
partido sobre o grupo parlamentar, sindicatos como
correia de transmissão do partido, expurgos freqüentes
de inscritos e militantes.
Num certo sentido, é a falta de centralismo
democrático, como práxis operativa dentro dos
partidos eurocomunistas, que fez declinar ou
desaparecer os outros três componentes, próprios de
um partido organicamente leninista. Do mesmo modo,
são as mudanças ocorridas na esfera política do
mundo das democracias ocidentais que tornam, não só
obsoletas e custosíssimas, em termos de energia e
rendimento político, as tentativas de subordinar os
grupos parlamentares, conduzir os sindicatos e
expulsar todos os membros discordantes, como
também contraproducentes para a imagem e
funcionalidade do partido. Tanto é assim que não se
recorre mais aos expurgos e é deixado um certo
espaço aos que discordam, espaço que muitas vezes
foram eles que conquistaram; os grupos parlamentares
adquiriram a autonomia indispensável, tanto no que
respeita ao funcionamento como às decisões; os
sindicatos, no bem e no mal, são receptivos a outras
instâncias que não só às ordens do partido, respondem
a uma lógica diversa da disciplina do partido, estando
como estão mais em contato com e expostos às
mudanças dos grupos sócio-econômicos de referência.
Mas é o centralismo democrático, a sua persistência,
que parece constituir o calcanhar de Aquiles dos
partidos eurocomunistas, que sustentam haver
renunciado ao leninismo. A crítica que se lhes faz é
que um partido organizado segundo princípios
indubitavelmente hierárquicos e centralizadores pode
facilmente usar de métodos não democráticos; é
potencialmente uma arma
EUROCOMUNISMO
organizativa capaz de derrotar e pôr à margem os
possíveis parceiros no Governo. Seu processo decisório
interno não oferece nenhuma garantia de que os
direitos das minorias sejam respeitados e de que suas
opiniões e preferências sejam ouvidas e tomadas em
consideração; na realidade, nem sequer implica que
surja como efetivamente vencedora a linha política
compartilhada pela maioria. Uma minoria organizada
pode apoderar-se do partido e geri-lo a seu modo.
A questão do centralismo democrático, que envolve
o problema até agora não solucionado do
democratismo interno dos partidos, carregou-se de uma
força emotiva e simbólica que tem pesado muitas vezes
na análise concreta das variações ocorridas no
funcionamento efetivo desse centralismo, nos partidos
eurocomunistas. Em geral, há pelo menos três fatores
que adquirem especial importância na análise das
diversas variedades de centralismo democrático: a
dimensão do partido, em termos de inscritos e de
unidades básicas (células e/ou seções), a
homogeneidade/heterogeneidade dos seguidores do
partido e dos inscritos, e a autodefinição do partido.
À primeira vista, os partidos se dispõem num
continuum, que vai dos partidos pequenos, com uma
sustentação social homogênea e definindo-se como
vanguarda da classe operária, aos partidos grandes,
com uma sustentação social heterogênea e definindose, conforme fez o P.C.E., como "uma organização
política de vanguarda da classe operária e das forças
progressistas de todos os povos da Espanha" ou,
conforme fez o P.C.I., como o partido que "organiza
os operários, os trabalhadores, os intelectuais e os
cidadãos..." (enquanto que o P.C.F. é "o partido da
classe operária da França" e o P.C.P. é "o partido
político do proletariado português"). Mas também os
partidos pequenos, como o partido comunista sueco,
podem possuir uma sustentação relativamente
heterogênea e deixar-se penetrar por exigências e
instâncias não controladas desde o centro. Em
conclusão, o que conta no centralismo democrático é a
vontade dos grupos dirigentes em dominar os fluxos
de informação e a formação das preferências políticas
(e a capacidade de o fazer) ou, então, a sua
disponibilidade em manter abertos os canais de
comunicação e de influência política. Por fim, a
própria possibilidade de governar, e de governar bem,
dependerá do tipo de modelo interno decisório em que
se transformará, ou já se transformou, o centralismo
democrático. Mesmo que possam ser introduzidos
corretivos do centralismo democrático, como a
possibilidade de votar, por meio de voto secreto, a
respeito de teses e de pessoas, o verdadeiro contrapeso
estará na disputa eleitoral e na força das outras
organizações
453
políticas. Como ocorre com os demais partidos, a
eventual degeneração antidemocrática dos partidos
comunistas só pode ser impedida ou superada por uma
sociedade forte e articulada. A história da Europa
ocidental, berço do Eurocomunismo, parece haver
demonstrado que as instituições políticas das
democracias ocidentais foram suficientemente fortes e
flexíveis para absorver o desafio comunista, ao
mesmo tempo que obrigavam tais partidos a mudar ou
a conformar-se com o papel de oposição minoritária
permanente.
A autodefinição do partido e as suas
transformações ao longo do tempo, até atingir uma
configuração mais aberta e mais laica, constitui outra
das dimensões sob a qual se pode avaliar o
afastamento do leninismo, ou seja, daquela concepção
de um partido vanguardeiro da classe, que ensina e
guia, que controla e comanda, que é o depositário
único e infalível da verdade política e da linha
estratégica. E nesta dimensão que se mede a laicização
do partido, incidente também sobre a sua estratégia.
Um partido de crentes, de militantes, de
revolucionários profissionais pode pôr-se como objetivo
a palingenesia revolucionária; um partido laico, de
aderentes a um programa, propor-se-á como objetivo a
transformação social por meio de reformas sócioeconômicas de ordem estrutural, mesmo que radicais e
enérgicas.
Falamos do componente leninista; resta agora
analisar o stalinista. Embora, no que respeita à
burocratização e ao culto da personalidade, o
stalinismo tenha produzido efeitos até mesmo
profundos e duradouros na estrutura dos partidos
comunistas, o traço que o distingue pode estar na
absoluta subordinação dos interesses e estratégias dos
partidos comunistas (e não apenas dos da Europa
ocidental) à defesa da construção do "socialismo num
só país" e, conseqüentemente, aos interesses da União
Soviética. Neste contexto, o componente stalinista é
concretamente constituído pela dimensão de apoio
que os partidos comunistas são obrigados a dar à
política externa soviética. Portanto, sob este aspecto,
são as posições autonomistas e o desvio das opções
soviéticas que qualificam os partidos como
eurocomunistas.
As etapas deste processo são várias e possuem
intensidade e graus de apoio diversos. O primeiro
passo é dado por Tito, com a ruptura entre a
Iugoslávia e a União Soviética em 1948; ficou
isolado. O segundo passo, provocado pelas
insurreições da Polônia e da Hungria, em 1956, evoca
um mínimo de apoio aos movimentos nacionalistas,
mas depois todos os partidos comunistas voltaram a
ponderar as razões soviéticas, e Togliatti viu-se
obrigado a repudiar a sua doutrina do policentrismo.
O terceiro passo foi o cisma sino-soviético de 1961 e
a impossibilidade de a
454
EUROCOMUNISMO
União Soviética ver a sua condenação ratificada pelo
movimento comunista internacional. O quarto passo,
um passo importantíssimo, foi o testamento político de
Togliatti, conhecido como Memorandum de Yalta,
1964. Nele estão claramente sancionados os princípios
da unidade na diversidade dos partidos que compõem
o movimento comunista internacional, da escolha
estratégica autônoma por parte de cada um dos
partidos, da recusa de um centro organizativo. O
quinto passo esteve na condenação, por parte de um
bom número de partidos comunistas ocidentais (entre
eles o P.C.I., o P.C.F. e o P.C.E.), da intervenção
soviética contra a Primavera de Praga de Dubcek, em
agosto de 1968. O sexto, e talvez o mais importante
passo dos que houve até agora, é o do processo de
convocação e dos resultados da Conferência dos
partidos comunistas europeus, que teve lugar, depois
de vários adiamentos, em Berlim Leste, em fins de
junho de 1976.
A declaração final desta Conferência não foi
subscrita pelos vários partidos, nem considerada como
obrigatória; reafirmou a independência de cada
partido e aprovou o diálogo dos comunistas com
forças progressistas não comunistas; sobretudo não
mencionou o internacionalismo proletário (finalmente
substituído pela "solidariedade internacional"), não
propôs uma linha política geral para todos, nem falou
da ditadura do proletariado. Por fim, o resultado
temporário deste processo é que a política externa é
agora o único e mínimo denominador comum dos
interesses da União Soviética e dos partidos
comunistas da Europa ocidental (e oriental).
Se, concluindo, somarmos os movimentos nestas
duas direções ou componentes, leninismo e stalinismo,
teremos os eixos sobre os quais se movem os partidos
eurocomunistas
e
poderemos
avaliar
seu
Eurocomunismo pelo seu afastamento desses dois
componentes. Por outro lado, tratando-se de um
processo, mesmo que alguns dos seus elementos não
pareçam facilmente reversíveis, nunca são se excluir
os retrocessos. Um partido poder-se-á "fechar" em
decorrência de uma derrota eleitoral ou para cobrar
alento na mais cômoda oposição; outro poderá julgar
conveniente prestar apoio condicionado à política
externa soviética; e por aí além. As oportunidades e
vínculos, as potencialidades e constrangimentos do
Eurocomunismo só poderão ser melhor avaliados
depois que tiverem sido individualizadas as condições
genéticas, as causas do nascimento de tal fenômeno.
III. ORIGENS E CONDIÇÕES. — Fundamentalmente,
são duas as condições que deram origem ao
Eurocomunismo. Em primeiro lugar, o
processo da distensão internacional; em segundo
lugar, a evolução das sociedades democráticas
ocidentais. Enquanto as relações entre o mundo
ocidental e a União Soviética foram estritas durante o
período da guerra fria, os partidos comunistas, por
uma série de razões, tanto ideológicas e financeiras
como políticas e estratégicas, foram obrigados a
manter um elevado nível de identificação com "a
grande combatente antifascista e antiimperialista",
com "a pátria do socialismo". A tensão entre as duas
esferas de influência impediu que emergissem as
tonalidades e diferenças: pertencia-se a um ou a outro
campo.
A distensão, os vários processos de abertura política
e o novo clima que se ia criando a nível internacional
permitiram que os partidos comunistas diminuíssem
sua identificação com a União Soviética e se
apresentassem, por isso, diferentes, mais autônomos,
aos olhos dos eleitorados ocidentais. Além disso, as
próprias
sociedades
democráticas
ocidentais,
consolidadas e as suas instituições, e sentindo-se muito
mais confiantes na sua capacidade de resistência ao
desafio comunista, consentiram numa disputa política
mais renhida. Por sua vez, conscientes da
impossibilidade de recorrer a vias diversas das
eleitorais e parlamentares, com os ritmos acima
indicados, os partidos comunistas foram obrigados a
adaptar suas estratégias aos contextos onde tinham de
operar. Foi assim que emergiram, e não podia ser de
outra maneira, as tendências autonomistas e reformistas
que caracterizam o Eurocomunismo: o outonomismo,
como escolha da estratégia peculiar a cada país, e o
reformismo, como rejeição do modo leninista de
conquista e gestão do poder. Acrescentemos ainda que
as tendências autonomistas se revelaram também
dentro do movimento comunista internacional, em
países como a Iugoslávia, Hungria, Polônia, China,
Romênia e, por fim, na Primavera tchecoslovaca, uma
síntese de autonomismo e reformismo. Elas exprimiam,
de modos diversos e com ênfases diferentes, a busca
de outro tipo de socialismo, um socialismo mais
apropriado às condições de cada país, independente do
modelo soviético.
Sob muitos aspectos, o impulso decisivo para o
Eurocomunismo, o verdadeiro ponto de virada, esteve
na análise e avaliação da experiência tchecoslovaca e
em seu trágico desfecho. Com isso, não só foram
robustecidas as tendências autonomistas e as
aspirações reformistas dos partidos eurocomunistas,
mas também se fez aceitar como necessário um juízo
crítico sobre a política de potência hegemônica da
União Soviética, e se corroborou o balanço negativo da
construção do socialismo nos países da Europa
oriental.
EUROCOMUNISMO
A este respeito, há também diferenças significativas
entre os partidos. Para nos atermos aos do sul da
Europa, diremos que os portugueses, por exemplo,
não apresentam praticamente críticas: alinham-se e se
conformam com a posição da União Soviética. Os
franceses concluíram oficialmente que o balanço do
socialismo nos países do Leste é "globalmente
positivo" (Marchais no XXIII Congresso, em maio de
1979), enquanto Jean Elleinstein fala da União
Soviética como de um "antimodelo". Os italianos,
reafirmado o valor histórico da ruptura revolucionária
de 1917, chegaram à conclusão de que as experiências
atuais revelam um socialismo com traços nada
liberais. Pela pena de Carrillo, o partido comunista
espanhol não se limita a criticar os aspectos iliberais,
mas
faz
ressaltar
também
os
elementos
antidemocráticos do Estado soviético, augurando-lhe
uma transformação que o converta num verdadeiro
Estado democrático dos trabalhadores.
Nesta altura, é claro que Carrillo atinge o limite
máximo da autonomia que os soviéticos podem tolerar
aos eurocomunistas: ele põe em dúvida a própria
legitimidade do socialismo da União Soviética. Não é
já apenas questão de discordância sobre aspectos
particulares, de tépido apoio a opções de política
externa, de rejeição de elementos doutrinais: é o
próprio âmago do problema das relações entre os
partidos comunistas e a União Soviética que é
atingido. Tal fenômeno pode muito em breve produzir
um total afastamento dos partidos comunistas da
URSS. Em todo caso, a análise e juízo sobre a União
Soviética e sobre o socialismo nos países orientais,
juntamente com o apoio dado aos dissidentes, estão se
tornando, talvez mais que as posições divergentes
sobre problemas de política externa, a pedra de toque
da solidez e difusão do Eurocomunismo. Neste ponto,
faz-se sentir a falta de um caráter regional, pois, como
já observamos, pelo menos dois dos partidos mais
influentes (o francês e o português) não parecem
querer ir muito além nas suas críticas eventuais ao
modelo soviético.
455
duzidas em cada caso no léxico dos partidos
comunistas ocidentais. Em vez disso, limitaremos a
nos referir à formulação mais audaz, subscrita pelos
partidos francês, italiano e espanhol, na reunião de
cúpula de Madri, entre 2 e 3 de março de 1977:
"Os comunistas espanhóis, franceses e italianos
pretendem trabalhar, para a construção de uma nova
sociedade, baseada no pluralismo das forças políticas e
sociais e no respeito pela garantia e desenvolvimento
de todas as liberdades individuais e coletivas:
liberdade de pensamento e expressão, de imprensa, de
associação e reunião, de manifestação, de livre
circulação das pessoas, tanto interna como externa,
liberdade sindical, autonomia dos sindicatos e direito
de greve, inviolabilidade da vida privada, respeito pelo
sufrágio universal e possibilidade de alternância
democrática das maiorias, liberdade religiosa,
liberdade de cultura, liberdade de expressão das
diferentes correntes e opiniões filosóficas, culturais e
artísticas. Esta vontade de construir o socialismo na
democracia e na liberdade é que inspira as concepções
elaboradas com plena autonomia por cada um dos três
partidos. Os três desejam, no futuro, promover a
solidariedade internacionalista e a amizade, baseadas
na independência de cada partido, na igualdade de
direitos, na não ingerência, no respeito pela livre
escolha de caminhos e soluções originais para a
construção de sociedades socialistas adaptadas às
condições de cada país."
Em outro lugar (declaração conjunta P.C.F.-P.C.I.,
de 15 de novembro de 1975), os partidos
eurocomunistas tinham respondido a uma objeção
freqüentemente apresentada, acentuando que a sua
aceitação da vida democrática tem o valor de um
princípio. "A sua posição não é tática, mas origina-se na
sua análise das condições objetivas e históricas
específicas dos respectivos países e na sua reflexão
sobre o conjunto das experiências internacionais."
V.
CONCLUSÃO;
O
DESAFIO
EUROCOMUNISTA. — Associados ao Governo na
fase crítica, que foi chamada de reconstrução, os
IV. CONTEÚDOS. — Além de se caracterizar de partidos comunistas italiano e francês aceitaram (ou
forma negativa como crítica ao modelo soviético, suportaram) ser excluídos, quando a situação interna e
como recusa de subordinação em política externa e externa mudou drasticamente. Fazendo parte do
como abandono dos componentes leninistas, histórica Governo na primeira fase pós-revolucionária, o partido
e geograficamente datados, poderá o Eurocomunismo português tentou tenazmente criar condições
ser também positivamente caracterizado? Seu favoráveis à sua permanência indefinida; mas,
reformismo é apenas rejeição da via insurrecional e derrotado, foi relevado para a oposição. Coerentemente
indicação de uma via eleitoral e parlamentar de democrático, o partido comunista espanhol tem
sentido tático, ou possui raízes mais profundas? Para desenvolvido com rigor a sua obra de cooperaçãoaprofundar estes temas, seria necessário, como é competição. Outros partidos, como o islandês e o
natural, proceder a uma minuciosa análise histórica finlandês já mencionados, entram
das variações intro-
456
EXECUTIVO
e saem das coalizões governativas, conforme os
resultados eleitorais e o clima político. Que é que
significa tudo isto? Trata-se de uma aceitação
incondicional, quanto a fatos e comportamentos, das
regras da democracia política, da alternância
decretada pela disputa eleitoral?
Tidas em conta as diferenças antes esboçadas, a
resposta não pode ser senão positiva. Mas o problema
é assim colocado, contando com a solidez das
instituições democráticas, e da confiança e grau de
adesão da opinião pública a tais instituições, por um
lado, e, por outro, com a penetração de idéias e
comportamentos
democráticos
nos
dirigentes
comunistas e nos das organizações próximas ao
partido. Em geral, não parece plausível que os
diversos partidos e organizações colaterais a eles mais
ou menos ligadas estejam, de algum modo, dispostos
a usar as vantagens advindas da expansão democrática
para se apoderar do poder e instaurar uma experiência
de democracia popular, cujos limites, imperfeições e
degenerações viram e estão criticando, com maior ou
menor vigor.
De resto, é indubitável que uma transformação de
tão largo alcance, como a entrada de um partido
comunista da Europa meridional numa coalizão
governamental, constitui um triplo desafio. Em
primeiro lugar, tratar-se-á de um desafio à solidez das
instituições democráticas desse país, à sua capacidade
de se adaptar a uma mudança qualitativa sem
chantagens nem cedências (e isto vale também para as
instituições internacionais do mundo ocidental). Em
segundo lugar, com a sua própria existência, isso
constituirá um desafio para o mundo oriental:
transformações decisivas em amplas coalizões de
forças progressistas poderiam dar mais força aos
elementos dissidentes dos países orientais e, ao
mesmo tempo, alentar os elementos liberalizantes
presentes na leadership soviética. O terceiro desafio, o
mais importante, diz respeito aos próprios partidos
eurocomunistas. Estará na sua capacidade de reformar
democraticamente as respectivas sociedades, ao
mesmo tempo que transformam sua organização de
partido e a tornam depois menos rígida até cortar seus
ligames com a União Soviética. E fazem tudo isto sem
gestos clamorosos ou rompimentos traumáticos,
evitando prejudicar as relações internacionais e
debilitar o partido, chave da sua obra de
transformação. Reformismo incisivo e coerente,
transformação do centralismo democrático, fim das
relações privilegiadas com a União Soviética, eis as
tarefas que esperam os partidos eurocomunistas.
O Eurocomunismo é um processo que vem de
longe, que transpôs limiares e galgou obstáculos, que
suportou derrotas e recuou, que possui
dimensões internas e dimensões internacionais, que é
portador
de
elementos
estabilizadores
e
desestabilizadores ao mesmo tempo. Ele constitui, em
última análise, um dos aspectos mais significativos do
esforço de transformação social e do seu controle
democrático empreendido nos sistemas políticos
ocidentais. É assim que ele é analisado, criticado e
entendido.
BIBLIOGRAFIA. — Communism and political systems
in western Europe. ao cuidado de D. ALBRIGHT,
Westview Press. Boulder Colorado 1979; D. L. M.
BLACKMER, Unity in diversity. Italian communism and
the communist world, The M. I. T. Press. Cambridge.
Mass. 1968; Il comunismo in Italia e Francia (1975),
ao cuidado de D. L. M. BLACKMER e S. TARROW, Etas
Libri, Milano 1976; S. CARRILLO, L'eurocomunismo e
lo Stato (1976), Editori Riuniti, Roma 1978; F.
CLAUDIN, Eurocomunismo e socialismo, Alfani. Roma
1977; A. KRIEGEL, Un autre communisme?, Librairie
Hachette, Paris 1977; N. MCNINNES, The communist
parties of western Europe, Oxford University Press.
London 1975; G. PASQUINO, Organizational mudeis of
southern european communist parties, Johns Hopkins
Occasional Paper. n.° 29, abril 1980; A. Rizzo, La
frontiera dell'eurocomunismo, Laterza. Barí 1977; A.
RUBBI, I partiti comunisti dell'Europa occidentale.
Teti editore, Milano 1978; M. L. SALVADORI,
Eurocomunismo e socialismo sovietico (Problemi
attuali del P. C. I. e del movimento operario), Einaudi,
Torino 1978; R. N. TANNAHILL, The communist parties
of western Europe, Greenwood Press. Westport Conn.
1978; I partiti comunisti dell'Europa mediterranea, ao
cuidado de H. TIMMERMANN, Il Mulino, Bologna 1981;
Eurocommunism and détente, ao cuidado de R. TÖKES,
University Press. New York 1979; B. VALLI, Gli
eurocomunisti, Bompiani. Milano 1976.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Europeísmo. — V. Unificação Européia.
Executivo.
Em princípio, com as expressões poder Executivo e
procedimento Executivo se indicam as atividades do
Governo em sentido lato, em contraposição ao
legislativo, que se refere às atividades do Parlamento,
e ao judiciário, que se refere às atividades da
magistratura. As formas contemporâneas de Governo
podem ser subdivididas em várias classificações —
monarquias, repúblicas, monarquias absolutas,
monarquias parlamentares.
EXTREMISMO
repúblicas presidenciais e Governos militares —, mas o
que interessa, em termos de análise do Executivo, são
os modos de formação do poder Executivo e as
modalidades do procedimento Executivo. Neste sentido,
evidentemente, nossa atenção se dirigirá para as
monarquias parlamentares e para os tipos de república
e formas de Governo em que o Executivo é eleito e
responsável, de várias formas, em relação ao
Parlamento.
Nas monarquias parlamentares e nas repúblicas
parlamentares, o Executivo é expressão do Parlamento
e o chefe ou primeiro-ministro é normalmente o líder
do partido de maioria absoluta ou de uma maioria
relativa, nos casos de coligação. A diferença
substancial destas formas de Governo é dada pelo tipo
de sistema partidário. Se o sistema partidário for o
bipartidarismo, é praticamente o eleitorado quem
escolhe 0 primeiro-ministro, pois que este será
automaticamente o líder do partido vencedor das
eleições. Se o sistema partidário for o
multipartidarismo, haverá amplo espaço para
negociações entre os vários partidos para a constituição
do Governo e também entre os membros do partido de
maioria relativa. A escolha do primeiro-ministro será
feita entre os componentes da coligação e só muito
raramente poderá ser o secretário-geral do partido.
Tanto nas monarquias parlamentares como nas
repúblicas parlamentares é mantida nítida distinção
entre chefe do Governo e chefe de Estado. As
repúblicas presidenciais, ao contrário, caracterizam-se
pela fusão dos dois cargos na mesma pessoa, que é
eleita diretamente pelo eleitorado. É este o caso dos
Estados Unidos (onde, porém, até há bem pouco
tempo, a eleição do presidente era feita pelos membros
de colégios eleitorais eleitos pela população), e é o
caso da maioria, se não de todas as repúblicas latinoamericanas, no curso da sua história, ressalvados os
períodos de Governos militares. Também, neste caso,
pode-se sublinhar que a variável que intervém no
sistema partidário desempenha um papel notável. Na
verdade, nas repúblicas latino-americanas, além de
causas sócio-econômicas e políticas de instabilidade e
de dependência, a fragmentação do sistema partidário,
que não permite ao presidente da República ter uma
maioria estável, sempre desempenhou um papel
negativo. Nos Estados Unidos, ao contrário, o
presidente da República é também o chefe de um
partido, que pode não ser o partido de maioria, mas
que, entretanto, lhe garante uma sólida base de poder,
dada também a não compaticidade dos partidos norteamericanos e a sua disciplina, que não é rígida.
Um caso particular de república presidencial em
que não há fusão dos cargos de chefe do Governo e de
chefe de Estado e em que só este
457
último é eleito por sufrágio universal (a partir de 1965)
é constituído pela V República Francesa. O chefe do
Governo é escolhido pelo chefe de Estado e é
responsável perante a Assembléia Nacional e perante o
chefe de Estado. Este tipo de república presidencial
está exposta aos perigos da falta de uma maioria
favorável ao chefe do Governo na Assembléia, a qual
pode nascer, por exemplo, de uma discrepância entre
a maioria que elegeu o chefe do Estado e a que elegeu
as Câmaras (fenômeno acentuado pelo uso do sistema
eleitoral de turno duplo, que não "fotografa" as
preferências políticas do eleitorado).
Naquilo que diz respeito ao procedimento
Executivo, entende-se por ele o processo de execução
das leis, dos regulamentos e, em geral, de todas as
opções políticas do Governo. Embora se tenha
verificado recentemente, em quase todos os sistemas
políticos contemporâneos, uma concentração de poder
no Executivo e o crescimento do papel de "execuçãoatuação" das opções políticas, todavia, não podemos
esquecer as relações entre Executivo (Governo em
sentido estrito) e burocracia, mesmo se em muitos
casos a atividade desta última é restringida ao âmbito
do processo administrativo. O procedimento Executivo
seria, em conclusão, um processo complexo, em que o
Governo assumiria o papel de guia e a burocracia um
papel de simples atuação. É certo, entretanto, que, na
prática, as relações entre Governo e burocracia podem
assumir características muito diferentes, de acordo com
a
estabilidade-instabilidade,
homogeneidadeheterogeneidade, dinamismo-imobilismo da estrutura
governamental e das modalidades de recrutamento e
do grau de preparação e da competência da burocracia.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Extremismo.
I. O EXTREMISMO COMO CATEGORIA SOCIOLÓGICA.
— O termo Extremismo traz implícita uma conotação
negativa, que evoca remotos antecedentes filosóficos:
já na ética aristotélica, o equilíbrio, a racionalidade, a
virtude coincidem com o justo meio, enquanto que os
extremos são as paixões de que é preciso fugir. A
convicção arraigada no senso comum de que in medio
stat virtus, transporta para o plano político, inculca
como ideal a que se há de amoldar o comportamento
político a moderação, a centralidade, o status quo.
Na literatura política, o conceito jamais conseguiu
libertar-se totalmente desta hipoteca pejorativa.
Mesmo quando referido à posição e
458
EXTREMISMO
comportamento de alguns partidos e grupos
parlamentares (pensemos na Estrema, surgida no
Parlamento italiano após o Ressurgimento, em rígida
posição ao transformismo alastrante), o Extremismo
indica uma tendência no campo doutrinai, um
comportamento ou um verdadeiro e específico modelo
de ação política adotados por um movimento, por um
partido, por um grupo político, que rejeita as regras de
jogo de uma comunidade política, não se
identificando com as finalidades, os valores e as
instituições prepostos à vida pública, e fazendo por
modificá-los radicalmente. O que caracteriza o
Extremismo é, em última análise, a tendência em ver as
relações políticas nos moldes das alternativas radicais,
a conseqüente recusa em aceitar a gradualidade e
parcialidade dos objetivos, a repulsa à negociação e ao
compromisso, e a urgente busca do "tudo e agora".
Neste sentido, o termo acaba, no uso corrente, por se
assemelhar em seu significado ao "radicalismo" e ao
"maximalismo", dos quais, pelo contrário, seria tido
como distinto.
O Extremismo é um fenômeno que se dá na história
política moderna e contemporânea e que motivou uma
grande variedade de movimentos sociais e políticos,
principalmente em épocas críticas de intensa
mobilização social e de profundas transformações nos
sistemas produtivos e institucionais. A sociologia
política distinguiu, um pouco sumariamente, duas
classes fundamentais. Existe um tipo de Extremismo
convencionalmente considerado como de direita,
emanação direta de classes e categorias sujeitas a uma
repentina perda de status e de condição e a uma
drástica redução da sua influência política. É o
Extremismo daqueles que, "em outros tempos, foram
possuidores" e cujo comportamento político está
voltado para a defesa a todo custo e/ou para a
reconquista das suas tradicionais prerrogativas
político-sociais. O comportamento extremista destes
grupos se concretiza historicamente no surgir de
movimentos e partidos portadores de uma práxis
eversiva e violenta, que rejeitam os vínculos formais
da transformação do conflito em controvérsia,
próprios da tradição parlamentar.
No pólo oposto, nascido muitas vezes ao mesmo
tempo que o da direita, existe um Extremismo de
esquerda, cuja origem social está mais nas classes que
"jamais foram possuidoras". Está radicado, portanto,
segundo algumas escolas sociológicas, na classe
operária e no subproletariado e é favorecido pelo
baixo nível de instrução e cultura dos grupos sociais
mais deserdados, propensos por isso — é essa, por
exemplo, a opinião de Lipset — a representações
simplificadas e maniquéias da realidade sócio-política.
A síndrome extremista encontra neste caso a sua
máxima
expressão política nos movimentos e partidos
comunistas e na sua intransigente oposição à
democracia parlamentar.
Segundo outros estudiosos, enfim, as tendências
extremistas medram em todo o movimento social em
statu nascente, sempre portador, na fase da busca da
própria identidade, de "fins não negociáveis" e,
conseqüentemente, de formas de luta radicais. O
processo de institucionalização, a que está sujeito
todo movimento social, acaba por reconduzir a
vocação extremista à intransigência ao leito natural da
negociação, do compromisso e do gradualismo.
II. EXTREMISMO E COMUNISMO. — Dentro da cultura
marxista, principalmente depois do opúsculo de
Lenin, O extremismo, doença infantil do comunismo,
o conceito tem indicado um desvio de esquerda no
seio do movimento operário, desvio contraposto ao, e
provocado pelo desvio de direita, "oportunismo", mas
menos grave que este. Contudo, também o
Extremismo, como aliás o oportunismo, possui raízes
de classe, objetivas: estas raízes estão na penetração
no movimento operário de elementos pequenoburgueses, que introduzem nele seus exacerbados
ressentimentos
de
estratos
expropriados
e
proletarizados pelo capitalismo.
Sob o aspecto doutrinai, na raiz do desvio
extremista está, antes de mais nada, uma errada
assimilação do método dialético. O método de análise
do Extremismo é antes o da lógica clássica que o da
dialética marxista. Para resolver a contradição A-não
A, o único modo é suprimir um dos dois termos. A
contradição entre desenvolvimento das forças
produtivas e relações de produção, por exemplo, não
se resolve dialeticamente negando a negação e
afirmando uma síntese que acolhe e supera o positivo
da tese. Para o Extremismo tertium non datur: a sua
concepção é diádica e não triádica. O socialismo nega
o capitalismo na sua totalidade.
Esta atitude metodológica implícita no Extremismo
de esquerda possui, para os críticos marxistas,
conseqüências graves no plano da tática política. Dela
derivam, com efeito, a rejeição de todo compromisso
e, portanto, de toda aliança, mesmo parcial e
temporária, o abstencionismo parlamentar, a recusa de
trabalhar nos sindicatos "reformistas", a subestima da
necessidade do recuo e, em geral, da "guerra de
posição", a incompreensão das reivindicações
nacionais e democráticas dos povos, etc.
No plano historiográfico, a soma destas
características pertence a uma corrente do movimento
operário internacional usualmente
EXTREMISMO
designada como "Extremismo histórico", cujo
denominador comum é a polêmica, explícita ou tácita,
pelo menos com uma das panes constitutivas da
doutrina leninista: a teoria do partido, do Estado, do
imperialismo. Dentro do Extremismo histórico, é
necessário, no entanto, distinguir os componentes
claramente caracterizados, como o sindicalista (I. W.
W., Shop Stewards, etc), o consiliário (Pannekoek,
Korsch, etc), o trotskista e outros menores.
Com o Extremismo histórico se relacionaram, no
limiar dos anos 70, muitas das posições da esquerda
estudantil ou extraparlamentar, vendo no patrimônio
teórico e prático do Extremismo o que de positivo
tinha produzido o movimento operário depois de
Marx, a sua consciência crítica, conquanto minoritária
e discriminada. Em face das degeneracões do
socialismo real e da
459
burocratização dos partidos operários tradicionais, o
Extremismo histórico e contemporâneo, mesmo no
limite das suas versões mais violentas e terroristas, é
visto agora não como a doença infantil do
comunismo, mas como o remédio para a sua
enfermidade senil.
BIBLIOGRAFIA. - Estremismo e radicalismo, ao
cuidado de R. CAMPA, Milano 1969; G. M. BRAVO,
Critica dell'estremismo, Il Saggiatore, Milano 1977; G.
e D. COHN BENDIT, L'estremismo. rimedio alla malattia
senile del comunismo (1968), Einaudi. Torino 1969; V.
I. LENIN, L'estremismo, malattia infantile del
comunismo (1920), Editori Riuniti, Roma 1970; S. M.
Lipset, L'uomo e la politica (1960), Ediz. di
Comunità, Milano 1963.
[SILVANO BELLIGNI]
Fabianismo.
I. O TERMO. — Em 1883 se constituiu, por obra de
um grupo de intelectuais entre os quais Sidney Webb,
George Bernard Shaw, Annie Besant, Edward Pease,
uma associação privada com a finalidade de
"contribuir para a reconstrução da sociedade de
acordo com as mais altas possibilidades morais". A
associação se inspirou na estratégia contemporizadora
usada na guerra pelo cônsul romano Quinto Fábio
Máximo e assumiu, portanto, o nome de Fabian
Society. Mas o credenciamento do termo Fabianismo
aconteceu somente em 1889 para indicar o
"socialismo britânico" elaborado nos Fabian essays in
socialism. Esta coletânea — que é a transcrição de um
ciclo de conferências — examina num contexto
orgânico "as bases do socialismo", "a organização da
sociedade", "a transição para a social-democracia". As
propostas são relacionadas com um sistema fiscal
redistributivo, a estatização ou municipalização
daquela parte da economia que de outra forma teria
permitido a formação de grandes monopólios
privados, a redução da renda fundiária, a legislação
social para tutela do trabalho e da infância, a absorção
do desemprego através de obras públicas, a
emancipação política das mulheres, a aplicação do
método científico à reforma social.
II. As FONTES DO FABIANISMO. — O Fabianismo
deriva de duas correntes de pensamento: de um lado,
a tradição liberal inglesa, transmitida pelos escritos de
John Stuart Mill e pelo radicalismo londrino da
década de 1880, tributário em grande parte da
doutrina positivista francesa; de outro lado, o
socialismo na sua elaboração teórica mais significativa,
o marxismo. Enquanto nenhum autor contesta a
presença decisiva do liberalismo na ideologia fabiana,
a relação Fabianismo-marxismo é questão mais
delicada e debatida. Muitos sustentam que o
Fabianismo é um fruto do liberalismo inglês não
atingido pelo marxismo: em primeiro lugar, os
próprios marxistas, ansiosos
por demonstrar que os fabianos não conheciam a
Marx; em segundo lugar, os socialistas ingleses que
não querem admitir que o seu socialismo tenha uma
matriz diferente do socialismo de Owen e dos
reformadores
sociais;
enfim,
os
fabianos,
especialmente aqueles da segunda geração,
orgulhosos da posição singular assumida pela
associação no contexto social inglês.
Na realidade, não se pode negar a influência do
marxismo sobre o Fabianismo: os fabianos da "Old
Gang" conheciam muito bem O Capital e nas
discussões quinzenais no Hampstead Historic Club, um
centro fundado para o estudo e a difusão do marxismo
na Inglaterra que teve, entre os animadores, eminentes
fabianos, a teoria do valor de Marx se tornou o ponto
central do interesse fabiano em relação ao marxismo e
a plataforma para qualquer elaboração econômica
sucessiva. Se se visa separar o Fabianismo do
marxismo, isto se deve em grande parte ao fato de que
o Fabianismo, através de posicionamentos oficiais
muito precisos, se dissocia do revolucionarismo da
Social Democratic Federation, porta-bandeira do
marxismo na Inglaterra; e, perante o fracasso daqueles
métodos, o Fabianismo supera também uma
interpretação de Marx em termos moderados — ao
contrário do revisionismo alemão — e descarta o
engajamento na ala esquerda radical para preferir um
posicionamento ideológico socialista que- atenda
melhor às exigências emergentes do país. Além disso,
admitir de algum modo a influência do marxismo
sobre o Fabianismo permite ver este último como um
aspecto do mais vasto momento socialista e não como
um fenômeno único, separado, insular.
A "unicidade" do Fabianismo não depende da
ausência ou da presença do marxismo, mas da
especialíssima compenetração do socialismo com a
tradição liberal inglesa. A esta última, antes de tudo, o
Fabianismo vai buscar a atenção dedicada à cultura
política. Destacando-se nisto dos outros componentes
do socialismo britânico, o Fabianismo promove uma
atividade de propaganda totalmente peculiar: a
permeation. Através desta estratégia se propõe
influenciar as pessoas
462
FABIANISMO
que — embora formalmente distantes do socialismo
— estão ocupando postos-chaves de poder em todos
os níveis e em todos os campos: exatamente estes são
os destinatários "daqueles dois ou três grãos de
socialismo" que George Bernard Shaw achava útil e
fácil ministrar. Se os objetivos primários da permeation
são os homens políticos, também os diplomados, os
professores, os empresários devem ser "permeados" de
modo tal que possam enfrentar como socialistas as
respectivas profissões para prestar um serviço mais
válido à comunidade e para prefigurar o próprio papel
na futura sociedade socialista. Nesta atitude elitista —
compreensível se se considera a homogeneidade social
e cultural dos ideólogos da primeira geração — se
evidencia a opção de atingir de maneira indireta a
política e de não assumir em primeira pessoa funções
de gestão do poder.
III. TEORIA E PRAXE DO FABIANISMO. — Os subsídios
de que se serve a permeation são uma série de
opúsculos (os Fabian tracts) articulada em três
grupos: a) monografias sobre temas específicos da
sociedade industrial (do salário mínimo e da jornada
de trabalho de oito horas à prevenção contra acidentes
no trabalho, da arbitragem obrigatória em caso de
greve à reivindicação da municipalização do gás, da
água, dos transportes públicos, dos hospitais, das
centrais do leite, etc; para esta última série de
reivindicações o Fabianismo foi acusado de ter
reduzido o socialismo a uma questão de gás e água!);
b) questionários enviados aos candidatos às eleições da
administração local para sondar a bagagem política
destes; c) opúsculos que contêm o levantamento dos
principais dados continuamente atualizados das
grandes cidades inglesas (renda per capita, produção,
renda, lucros e salários, movimentos de população,
etc.) destinados ao decision-makers e aos eleitores.
Além dos Fabian tracts de poucas páginas e de
leitura fácil, durante longo período os temas políticos
do Fabianismo foram difundidos pelas obras
monumentais dos Webbs sobre a sociedade industrial,
tais como The history of trade unionism (1894),
English local government (15 vols., 1906-22),
Industrial democracy (1920), The consumer's cooperative movement (1921). Um outro e não menor
canal de permeation fabiana é o New Statesman, o
"Semanário de fatos e discussão" fundado pelos
Webbs em 1915, que se tornou famoso também pelo
suplemento mensal, o Blue Book, um fascículo de
documentação dos fatos políticos relevantes e dos
documentos oficiais publicados no mês.
Mas um modelo de referência empírica existe.
Através da análise histórica das intervenções
realizadas, o Fabianismo pretende verificar as teorias
econômicas prevalecentes e chega à conclusão de que
o caminho fabiano para o coletivismo passa através de
dois grupos de providências: o mínimo nacional (a
extensão das funções estatais de proteção à classe
trabalhadora e de regulamentação da comunidade no
seu conjunto) e a municipalização (graças à qual se
supera a concepção típica do liberalismo inglês de
uma simples supervisão do Estado para chegar a
propostas precisas de intervenção não indiscriminada
nem maniquéia). No plano prático estas duas
operações exigem que a burocracia no sentido
tradicional seja substituída "pela aristocracia do
talento": uma classe de funcionários locais
teoricamente preparados em contato estrito e sob o
controle atento de uma administração municipal
verdadeiramente democrática. A municipalização se
apresenta neste sentido como o vetor de uma
descentralização política invocada como medida
necessária para favorecer uma mais numerosa
participação política ativa na vida do país.
De tudo isto se deduz que a atitude do Fabianismo
quanto ao sistema político existente tende a recuperar
seus traços positivos: é uma abordagem de engenharia
social mais do que um ataque frontal. A mudança do
sistema — que, por conseqüência, é sempre uma
mudança parcial —, se pretende ter eficácia, deve ser
feita gradualmente e agindo sobre os diversos pontos
de menor resistência. É até óbvia a total oposição a
uma abordagem de tipo marxista: à importância dada
à estrutura econômica se contrapõe, de fato, a atenção
à cultura política, à substituição da classe no poder, a
sua, pelo menos, parcial conversão, a uma estratégia
revolucionária numa estratégia reformista gradual. A
tarefa do Fabianismo não deve ser a de atacar o
Estado como tal, mas de servir-se do seu aparelho e
dos seus instrumentos democráticos para conseguir
seus objetivos. O Estado é o veículo natural do
programa do Fabianismo e deverá ser apenas um
mecanismo neutro controlado por funcionários
incorruptíveis; a estrutura do Governo local e
parlamentar é considerada mais do que suficiente para
as grandes mudanças que o Fabianismo se propõe
realizar.
Os Fabian tracts desempenhavam uma singular
obra de promotion da idéia socialista que, fragmentada
nos mil problemas da administração diária, se
recompõe num quadro mais amplo em que a
democracia, único agente político do socialismo, visa
conquistar a máquina central do Estado com o
objetivo principal de organizar uma produção
socializada e democrática. O Fabianismo se propõe
como uma fase da evolução gradual da democracia, de
uma democracia que nunca se
463
FALANSTÉRIO
realiza plenamente: portanto, o Fabianismo não se
preocupa com o futuro remoto mas só com o próximo
e visa tornar eficientes as instituições existentes mais
do que modificá-las radicalmente. O Fabianismo se
propõe não evocar hábitos estranhos à experiência
inglesa, mas descobrir através de quais instrumentos
estas se podem inserir numa sociedade planificada que
salvaguarda a prática da liberdade, deixando espaço
adequado para o indivíduo. Em síntese, o Fabianismo
objetiva persuadir as pessoas a usar, de uma
determinada forma, o poder que já possuem e de
estabelecer um clima de equilibrado interesse para o
socialismo, adaptando os próprios ideais às qualidades
típicas do caráter britânico: a tradição do serviço
público, o respeito à lei, o instinto da unidade social.
Da época vitoriana fica em herança para o Fabianismo
a confiança no progresso e na razão, a convicção de
que a evolução histórica segue uma trajetória linear e
de que as organizações sociais não vão sofrer grandes
mudanças: "as grandes mudanças orgânicas da
sociedade — escreve Webb — devem ser
democráticas, graduais, constitucionais e pacíficas".
Da análise dos escritos fabianos emerge uma
carência proposital de uma construção teórica da
economia: "hoje não existem mestres respeitáveis do
socialismo", escreve George Bernard Shaw no
prefácio dos Fabian essays in socialism. Mas o fato
de que isto não significa desatenção aos problemas
econômicos emerge da fundação em 1895, por obra
dos fabianos da London School of Economics and
Political Science (L. S. E.) com o objetivo de "dar
uma instrução nas ciências políticas e econômicas... e
se espera que a L. S. E. se possa tornar um centro de
pesquisa sistemática nas ciências sociais".
IV. RELAÇÕES COM O PARTIDO LABORISTA. —
Coerentemente com a lógica da influência externa
sobre o poder, os fabianos não quiseram mais assumir
diretamente a gestão do partido socialista, mas
representaram a eminência parda que presidiu, junto
com a Independem Labour Party, com a Social
Democratic Federation e com a Trade Unions
Congress, à Constituinte do partido laborista (1900).
Ainda hoje a produção literária da Fabian Society é
um dos pontos básicos da formação teórica do partido
laborista, mesmo quando insiste na sua absoluta
autonomia em relação ao aparelho partidário. A
associação é filiada ao partido e as relações de
colaboração são extremamente estáveis e abertas;
mas, "fique bem claro, a Fabian Society não é
simplesmente uma parte do partido laborista, mas um
grupo separado de pessoas organizadas para defender
a causa socialista" (D. G. H. Cole, 1952). Produtor de
"cultura política" mais do que de "ação política", o
Fabianismo não se pode fechar no plano operativo em
um partido, porque o socialismo não é para os
fabianos somente uma questão política: é uma teoria e
um modelo de vida.
Errar-se-ia, portanto, se os fabianos fossem
considerados como departamento de estudo do
partido laborista: eles mais do que tudo consideram o
partido como um instrumento para a atuação prática
das próprias opiniões. O Fabianismo mantém um
campo de ação voluntariamente mais vasto, no
sentido de que seus destinatários não são somente os
laboristas, e, ao mesmo tempo, mais específico nos
limites em que a elaboração cultural é mais específico
que a política. E se a incidência do Fabianismo com o
decorrer do tempo foi diminuindo, isto aconteceu
porque os intelectuais no seio dos partidos perderam
realmente seu poder.
BIBLIOGRAFIA. - D. G. H. COLE, The fabian society.
Past and present. Fabian Publications Ltd., London
1952; Id., Fabian socialism. Frank Cass, London
1971; M. COLE, The story of fabian socialism.
Heinmann. London 1963; A. M. McBRIAR, Fabian
socialism and english politics. 1884-1918, Cambridge
University Press. Cambridge 1962; E. PEASE. The
history of me fabian society. Frank Cass, London
1963.
[CRISTINA MARCHIARO CERCHIO]
Falangismo. — V. Franquismo.
Falanstérío.
O termo Falanstério, cunhado por Charles Fourier
para designar o edifício que devia hospedar a
"Falange", célula-base da sua sociedade ideal, sofreu
um processo de rápida dilatação semântica e veio a
indicar o conjunto das estruturas, não somente
materiais, mas também econômicas, domésticas,
morais, administrativas, etc, sobre o qual se baseia o
novo mundo teorizado pelo utopista francês. Ele
acabou reassumindo na globalidade de seus aspectos
a fórmula social da alternativa oposta por Fourier ao
sistema em que vivia. Por conseqüência, a noção do
Falanstério
na
área
crítica
se
ressentiu
necessariamente da interpretação geral da doutrina
fourieriana que foi sendo apresentada por vários
estudiosos: símbolo de uma sociedade baseada na
mais desenfreada devassidão até os anos 70 do século
XIX, quando essa doutrina era vista através da ótica
464
FANATISMO
restrita das inovações que ela trazia para o campo dos
costumes; antecipação genial da cooperativa de
produção e de consumo para Charles Guide e para
quantos se basearam e ainda se baseiam na sua
interpretação; modelo e centro, enfim, daquela
revolução global na qual a maioria vê o sentido atual
do pensamento fourieriano.
O grupo falansteriano — grupo espontâneo de 1.600
a 1.800 pessoas aproximadamente — representa, na
realidade, uma alternativa radical à sociedade
burguesa, alternativa que, se tem como centro uma
reconstrução econômica, não se esgota todavia nela,
mas atinge todos os setores da vida individual e social.
Essa reestruturação se substancia no abandono da
economia fracionada ou "incoerente" e na substituição
dela por uma economia associada que se baseia na
"série passional", organismo societário de base da vida
falansteriana, onde naturalmente confluem os
indivíduos animados pelas mesmas tendências ou
"paixões". Aplicada ao setor da produção, onde ela
encontra o campo operativo principal, a "série
passional" importa a afirmação de uma relação
diferente entre o homem e a natureza, através de um
trabalho que não se apresenta mais como pena ou
resgate, mas se caracteriza especialmente como meio
de explicação de personalidade individual e lugar de
um encontro harmonioso entre a subjetividade e a
objetividade. O trabalho, tendo-se tornado dessa forma
"atraente", deveria garantir, de acordo com o ponto de
vista de Fourier, a máxima renda individual e, portanto,
o máximo produto social e, junto com as economias
realizadas através do sistema associativo no setor dos
consumos, deveria contribuir para atingir aquela
prodigiosa abundância na qual este teórico identifica o
fundamento da harmonia social. Se, de fato, na
sociedade falansteriana permanece a propriedade
privada e vigora um sistema retributivo que, embora
privilegiando o trabalho, dá lugar ao capital e ao
talento, a sua extraordinária opulência deveria ser
todavia capaz de eliminar as conseqüências negativas
da desigualdade: podendo o rico satisfazer todas as
suas paixões, ficando garantido a cada um o minimum
que lhe permita viver confortavelmente, desaparecem
no Falanstério, segundo Fourier, os mesmos
pressupostos da servidão e dos conflitos sociais.
Segue-se daí que são inúteis e, portanto, não existem
no Falanstério os tradicionais órgãos políticos
repressivos e que o Governo político se resolve na
mera administração das coisas. Daí também o
surgimento de uma nova moralidade, onde o interesse
individual se funde e se concilia com o da
coletividade.
Se o princípio associativo, aplicado ao setor da
produção, cria na sociedade falansteriana as
condições da harmonia e da moralidade pública, é
oportuno recordar que esse princípio atua em todos os
níveis da vida individual: no campo doméstico, onde
comporta a abolição da família; no afetivo, onde
determina a afirmação da plena liberdade sexual; no
setor educativo, onde abre interessantes perspectivas
de pedagogia de grupo. Mas quantos procuraram pôr
em prática o Falanstério, reduzido, nas realizações
práticas que se tentaram (Condé-sur-Vesgre, Citaux,
Guise, só para citar as mais importantes), a uma
simples cooperativa de produção e de consumo, não
se deram conta da complexidade das implicações da
utopia fourieriana.
[MIRELLA LARIZZA]
Fanatismo.
Por Fanatismo se entende uma cega obediência a
uma idéia, servida com zelo obstinado, até exercer
violência para obrigar outros a segui-la e punir quem
não está disposto a abraçá-la. No conceito de
Fanatismo está implícito que a idéia da qual o fanático
é devoto é uma idéia falsa e perigosa, não digna de ser
abraçada com tanta perseverança. Nisto o Fanatismo se
contrapõe ao entusiasmo: o entusiasta é o seguidor de
uma idéia nobre, generosa ou benéfica. São
conseqüência de uma atitude e de uma mentalidade
fanática a intolerância da idéia alheia e o espírito de
insensato proselitismo que não recusa meios violentos
ou até cruéis. O Fanatismo está geralmente ligado ao
dogmatismo, isto é, à crença numa verdade ou num
sistema de verdades que, uma vez aceitas, não devem
ser mais postas em discussão e rejeitam a discussão
com os outros; a este corresponde no campo prático o
sectarismo, isto é, a parcialidade para com os adeptos e
o ódio para com os não crentes. Numa sociedade onde
um grupo de fanáticos ganha poder, gera-se como
reação e se alastra o espírito do conformismo. O
conformismo responde ao zelo obstinado do fanático
com o zelo covarde de quem não quer correr o risco de
ser perseguido por causa das próprias idéias, com a
aceitação resignada e servil das verdades alheias,
embora intimamente não aceitas: o conformismo se
torna, por assim dizer, o antídoto natural do fanatismo,
no sentido de que a renúncia total às próprias idéias é
a forma mais fácil para fugir do furor das idéias
alheias. O inimigo de ambos é o espírito crítico, o uso
da razão apoiada na experiência, que contra a exaltação
dos fanáticos ensina o senso do limite e a virtude da
tolerância, contra a resignação dos conformistas,
FANATISMO
suscita a dúvida e ensina a refletir com a própria
cabeça, agindo ora de freio, ora de estímulo.
Fanatismo e conformismo, nascidos de um só parto,
são destinados a desaparecer juntos. Como ao
Fanatismo se contrapõe, no bem, a tolerância, assim se
lhe contrapõe, no mal, o cinismo (no sentido usual e
não filosófico do termo. O fanático crê, de uma forma
exasperada, numa só idéia; o cínico não crê em
nenhuma, mas está disposto a se valer de todas para
seu interesse. Ambos podem ser portadores da libido
dominandi; mas, enquanto o primeiro tende ao
sucesso sufocando as idéias alheias, o segundo
pretende atingi-lo adulando-as, ou melhor, acariciando
ora uma ora outra segundo as circunstâncias.
Acontece até que o cínico se sirva dos fanáticos para
atingir seus objetivos, mas não acontece o contrário.
O significado que hoje se dá à palavra Fanatismo e
tudo aquilo que se compreende neste conceito,
inclusive os juízos de valor que ele suscita, estão
estritamente ligados à polêmica iluminística dos
philosophes. A palavra "Fanatismo" contém na
linguagem destes um significado muito amplo: indica
tudo aquilo que eles combatem e gostariam de ver
eliminado do mundo para a felicidade do indivíduo e o
progresso da humanidade, isto é, a superstição religiosa
e suas funestas conseqüências, tais como guerras,
fogueiras, perseguições. Se se quisesse expressar numa
fórmula o significado global da luta das "luzes", não se
poderia defini-la melhor do que como a mais extensa e
popular batalha intelectual contra o Fanatismo, que
jamais se travou. Não se pode deixar de citar Voltaire
que no Dictionnaire philosophique define o Fanatismo
como "Une fólie réligiense sombre e cruelle", e que, no
Henriade, introduzindo o Fanatismo como conselheiro
do assassino de Henrique III, exclama: "Il vient, le
fanatisme e son terrible nom — Enfant dénaturé de la
réligion ,— Armé pour la défendre, il cherche à la
détruire — Et reçu dans son sein, l'embrasse e la
déchise" (V, 83, 86). Dedica à condenação do
Fanatismo uma de suas mais conhecidas tragédias cujo
protagonista é Maomé (Le fanatisme ou Mahomet le
prophète, 1742), cujos seguidores são designados
como "... Une troupe égarée, — De poisons de l'erreur
avec zèle enivrée. — De ses miracles faux soutient
l'illusion, — Répand le fanatism et la sédition" (Ato I,
cena I); e intitula uma de suas mais cruéis obras de
crítica bíblica e religiosa Le tombeau du fanatisme
(1767).
A diferença entre os iluministas, que vinham de
dois séculos de grandes guerras religiosas, e nós, está
em que o Fanatismo por eles atacado era quase
exclusivamente religioso, enquanto que aquele de que
hoje temos experiências é quase
465
exclusivamente político. Os personagens históricos
que encarnavam o Fanatismo eram, em seus escritos,
um Torquemada, um Calvino, um Clémente, assim
como para nós são os vários doutores Goebbels dos
regimes totalitários: associavam o Fanatismo às
grandes religiões, tais como a hebraica, a cristã, a
muçulmana, e contrapunham a elas, idealizando-a, a
religião filosófica de Confúcio, assim como nós o
associamos à exasperação dos movimentos
nacionalistas, ao comunismo, ao niilismo, ao racismo,
e, em geral, a regimes de ditadura, contrários a
regimes de liberdade (tome-se como exemplo de
polêmica contemporânea contra o Fanatismo L'homme
revolté de A. Camus, que é um livro essencialmente de
crítica política). Isto não significa, porém, que os
ditadores e seus colaboradores mais próximos sejam
eles mesmos fanáticos; mas o Fanatismo dos
partidários é geralmente um instrumento necessário
para o domínio deles. E Mussolini não tinha nada de
.fanático, era, talvez, um cínico: mas expressa na
fórmula "crer, obedecer, lutar" a divisa e a essência
mais profunda de todo Fanatismo. A outra diferença
entre nós e os philosophes diz respeito às causas e aos
remédios. Eles viam na ignorância do povo (explorada
pelos astutos) a causa maior da superstição, que
gerava os fenômenos de Fanatismo individual e
coletivo, e, reduzindo o problema a uma luta da luz da
razão contra as trevas da superstição, identificavam só
um remédio: a difusão de um saber baseado na razão e
na
experiência.
Voltaire,
no
Dictionnaire
philosophique: "O único remédio contra esta doença
epidêmica é o espírito filosófico, que, difundido
pacientemente de homem para homem, acabará por
suavizar os costumes da humanidade e prevenir os
excessos do mal". Nós, após a mais tremenda
explosão de Fanatismo coletivo que talvez jamais
tenha existido, o nazismo, nos sentimos menos certos
quanto às causas e menos tranqüilos quanto aos
remédios. Muito provavelmente a mentalidade
fanática se deve a profundas perturbações psíquicas,
em que um exagerado egocentrismo se junta a uma
inflexibilidade e fechamento mentais levados até a
monomania e a uma energia volitiva irrefreável. Mas
o problema do Fanatismo não pode ser reduzido a uma
análise psíquica: é um problema social. O fanático sem
adeptos é pura e simplesmente um caso clínico, ou
melhor, deveria ser chamado um possesso, um
monomaníaco. O Fanatismo está sempre ligado a
fenômenos de exaltação coletiva, não é uma doença,
mas uma epidemia: os personagens históricos, a que
chamamos de fanáticos, são ou fundadores ou adeptos
de seitas: a sua ação se desenvolve dentro de um
determinado contexto social, que tolera
466
FASCISMO
ou até provoca este contágio. O remédio, portanto,
deve estar no mais amplo sentido social. A
experiência histórica nos ensina que as sociedades
mais imunes às infecções do Fanatismo são aquelas
em que a educação intelectual e civil tende sempre
mais a fundamentar-se na livre discussão das idéias
mais do que no ensino (autoritário) de sistemas de
verdades já definidas, e cujo regime é inspirado no
princípio da multiplicidade das vias de acesso à
verdade e, portanto, na rejeição de uma filosofia ou de
uma ideologia de Estado, que não seja a da
coexistência pacífica de todas as filosofias ou
ideologias.
[NORBERTO BOBBIO]
Fascismo.
I. PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO. — Na já vastíssima
literatura referente ao Fascismo é normal depararmos
com
definições
diversas
e
freqüentemente
contraditórias deste conceito. A multiplicidade de
definições é demonstrativa não só pela real
complexidade do objeto estudado, como também pela
pluralidade de enfoques, cada um dos quais acentua,
de preferência, um ou outro traço considerado
particularmente significativo para a descrição ou
explicação do fenômeno.
Preliminarmente podemos distinguir três usos ou
significados principais do termo. O primeiro faz
referência ao núcleo histórico original, constituído pelo
Fascismo italiano em sua historicidade específica; o
segundo está ligado à dimensão internacional que o
Fascismo alcançou, quando o nacional-socialismo se
consolidou na Alemanha com tais características
ideológicas, tais critérios organizativos e finalidades
políticas, que levou os contemporâneos a
estabelecerem uma analogia essencial entre o Fascismo
italiano e o que foi chamado de Fascismo alemão; o
terceiro, enfim, estende o termo a todos os
movimentos ou regimes que compartilham com aquele
que foi definido como "Fascismo histórico", de um
certo núcleo de características ideológicas e/ou
critérios de organização e/ou finalidades políticas.
Nesta última acepção, o termo Fascismo assumiu
contornos tão indefinidos, que se tornou difícil sua
utilização com propósitos científicos. Por isso, vem-se
acentuando cada vez mais a tendência de restringir seu
uso apenas ao Fascismo histórico, cuja história se
desenrola na Europa entre os anos 1919 e 1945 e que
está essencial e especificamente representado no
Fascismo italiano e no nacional-socialismo alemão.
Em geral, se entende por Fascismo um sistema
autoritário de dominação que é caracterizado: pela
monopolização da representação política por parte de
um partido único de massa, hierarquicamente
organizado; por uma ideologia fundada no culto do
chefe, na exaltação da coletividade nacional, no
desprezo dos valores do individualismo liberal e no
ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao
socialismo e ao comunismo, dentro de um sistema de
tipo corporativo; por objetivos de expansão
imperialista, a alcançar em nome da luta das nações
pobres contra as potências plutocráticas; pela
mobilização das massas e pelo seu enquadramento em
organizações tendentes a uma socialização política
planificada, funcional ao regime; pelo aniquilamento
das oposições, mediante o uso da violência e do terror;
por um aparelho de propaganda baseado no controle
das informações e dos meios de comunicação de
massa; por um crescente dirigismo estatal no âmbito
de uma economia que continua a ser,
fundamentalmente, de tipo privado; pela tentativa de
integrar nas estruturas de controle do partido ou do
Estado, de acordo com uma lógica totalitária, a
totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e
culturais.
II. "TEORIAS" SOBRE O FASCISMO. — Como todo
evento histórico de relevância, o Fascismo despertou,
desde a sua origem, um interesse que, excedendo as
contingências da luta política, abrangia uma série de
temas que eram fundamentais para a compreensão da
sociedade contemporânea. Esse interesse foi a base de
uma importante reflexão teórica sobre as causas e
possíveis conseqüências dos regimes fascistas,
articulada numa série de hipóteses interpretativas que,
com o tempo, se foram aperfeiçoando e enriquecendo,
quer devido à acumulação de material empírico, quer
devido à adoção de novos quadros teóricos de
referência. É a esta série de hipóteses interpretativas,
mais ou menos sistematicamente correlacionadas, mais
ou menos empiricamente comprovadas, que se alude
geralmente ao falar de "teorias" sobre o Fascismo. E é
neste sentido, bastante amplo, que usamos do termo
neste contexto.
Há diversos critérios de classificação das teorias
relativas ao Fascismo: o cronológico, o políticoideológico, o disciplinar e o sistemático — só para
citar os mais usados — que podem ser diversamente
combinados entre si, dando origem a tipologias mais
ou menos complexas. A subdivisão aqui utilizada
possui caráter introdutório e tem por objetivo chamar
a atenção para as principais abordagens analíticas do
fenômeno,
FASCISMO
desenvolvidas por estudiosos de várias tendências, a
partir da década de 20.
Usando a terminologia empregada por E. Noite no
seu famoso ensaio Theorien über den Faschismus,
hoje já introduzida no léxico comum dos estudos
sobre o assunto, as teorias sobre o Fascismo podem
ser divididas em duas grandes categorias: em teorias
singularizantes e teorias generalizantes.
Pertencem à primeira categoria as teorias que, para
explicar a origem e sucesso dos movimentos e dos
regimes fascistas, recorrem a fatores estreitamente
ligados às particularidades de uma determinada
realidade nacional e rejeitam toda a tentativa de
generalização de um contexto histórico específico a
outro. Segundo os defensores deste tipo de
abordagem, as analogias verificáveis entre os
movimentos e regimes comumente definidos como
fascistas são de caráter formal, ao passo que as
diferenças entre uma situação e outra são de tal modo
relevantes que só admitem um discurso
cientificamente fundado em cada um dos Fascismos.
Conseqüentemente, o termo Fascismo se aplica
corretamente ao movimento político que se impôs na
Itália nos anos imediatamente posteriores à Primeira
Guerra Mundial, e ao tipo de regime por ele
instaurado após a tomada do poder; a outros
movimentos ou regimes a eles variamente assimiláveis,
de acordo com os esquemas analíticos utilizados, só
impropriamente se pode aplicar o termo de Fascismo.
Pertencem à segunda categoria as teorias que
consideram o Fascismo como um fenômeno
supranacional que apresentou, nas diversas formas de
que historicamente se revestiu, características
essencialmente análogas, resumíveis num conjunto de
fatores
homogêneos.
Conforme
os
fatores
considerados, assim são as definições e o campo de
aplicação do conceito. As teorias generalizantes
podem, por sua vez, subdividir-se em duas
subcategorias, respectivamente definíveis como
intrapolíticas e transpolíticas. As primeiras referem-se
a
fatores
histórico-políticos
determinados,
historicamente individualizáveis; as segundas, a
fatores a-históricos, inerentes à natureza humana, ao
caráter repressivo da cultura, às características
imanentes à luta política e por aí além.
A propensão para as teorias singularizantes ou
generalizantes não pode ser atribuída, como muitas
vezes acontece, à diversa orientação dos historiadores,
por um lado, e à dos cientistas sociais, por outro. Na
realidade, não faltam correntes historiográficas que,
embora com a necessária articulação da pesquisa nos
diversos níveis de cada uma das realidades nacionais,
não só não Contradizem, como incluem até o recurso
a uma
467
teoria generalizante — pensemos, por exemplo, na
historiografia marxista — e análises sociológicas que
aceitam como principal fator explicativo do
surgimento dos regimes fascistas a configuração
específica das relações entre os sistemas social,
político e cultural de um determinado país. A
preferência por esta ou por aquela orientação parece
determinada, antes de tudo, pela espécie de fatores
que se julgam importantes para a descrição ou
explicação do fenômeno e pelo nível da análise
escolhida.
Este último aspecto há de ser levado em conta,
porque, como observou Gino Germani, a não distinção
dos diferentes níveis de análise do fenômeno fascista
tem dado origem a contrastes interpretativos mais
aparentes que reais, já que baseados na contraposição
de resultados válidos a diversos níveis de
generalização. Na realidade, o Fascismo, como evento
histórico concreto, engloba-se numa fenomenologia
mais ampla, a do autoritarismo na sociedade moderna,
apresentando-se como resultado de uma série assaz
complexa de concatenações causais, umas remotas,
outras mais próximas, investigadas em suas interrelações específicas. O problema principal para a
construção de uma teoria do Fascismo está, pois, em
identificar um nível de observação que permita colher
a sua especificidade, sem renunciar àquelas conexões
de caráter geral que fazem do Fascismo um fenômeno
que mergulha suas raízes em alguns traços típicos da
moderna sociedade industrial.
III. A ABORDAGEM SINGULARIZANTE. — A tendência a
analisar o Fascismo como um produto particularmente
característico da sociedade italiana e da sua história é
contemporânea ao próprio nascimento do Fascismo.
Conquanto mino ritária no panorama global dos
estudos sobre o tema, ela sustentou uma notável
corrente da historiografia italiana e estrangeira,
havendo recebido novo impulso em anos recentes,
devido inclusive à influência de pesquisas como a de
G. Mosse sobre As origens culturais do Terceiro Reich
que, reavaliando a importância do componente
nacional na compreensão de aspectos fundamentais do
regime nazista, principalmente o do consenso, reativou
a discussão acerca do peso relativo das diferenças e
analogias existentes, em primeiro lugar, entre o
fascismo e o nacional-socialismo e, depois, entre estes
e os demais regimes autoritários que assinalaram a
recente história contemporânea.
As primeiras hipóteses de explicação do Fascismo,
com base em fatores internos típicos da situação
italiana, foram aventadas, naturalmente, nos anos 20,
em concomitância com a
468
FASCISMO
consolidação do movimento fascista, com a tomada do
poder por Mussolini e com a progressiva transformação
do Estado liberal em Estado de características
totalitárias. Poucos souberam então ver no Fascismo a
antecipação de uma crise mais geral que
revolucionaria a Europa e, com a catástrofe da
Segunda Guerra Mundial, viria a produzir profundas
mudanças na organização interna de cada um dos
Estados nacionais e na ordem internacional.
As causas imediatas da vitória do Fascismo foram
geralmente procuradas no clima de forte instabilidade
social, política e econômica, criado na Itália nos
primeiros anos posteriores à Primeira Grande Guerra
Mundial. Mas, ao tentarem explicar a vulnerabilidade
e ruína das instituições liberais, alguns estudiosos se
interrogaram sobre o passado da história nacional,
chegando a descobrir no processo de formação do
Estado unitário aquela debilidade intrínseca das
estruturas que o Fascismo havia de pôr a nu. Foi assim
que nasceu a bem conhecida tese do Fascismo como
"revelação", subscrita por homens assaz diversos
como G. Fortunato, C. Rosselli, P. Gobetti, G.
Salvemini e outros. O atraso do país, a falta de uma
autêntica revolução liberal, a incapacidade e
mesquinhez das classes dirigentes, unidas à arrogância
de uma pequena burguesia parasitária com a doença da
retórica, a prática do transformismo, que havia
impedido a evolução do sistema político num sentido
moderno, foram o terreno de cultivo do Fascismo, que
assim se situava numa linha de continuidade, muito
mais que de ruptura, em relação ao sistema liberal.
Daí o juízo fundamentalmente redutivo do Fascismo e
das suas potencialidades expansivas, só cultiváveis a
partir do reconhecimento dos elementos de novidade
nele presentes, quer nas técnicas de gestão do poder,
quer no modo de organização do corpo social, e, de
forma mais genérica, na configuração das relações
entre Estado e sociedade civil. Por outras palavras, o
que faltava aos defensores da tese do Fascismo como
revelação era uma adequada percepção da natureza da
crise que atingira o sistema liberal, e não só na Itália,
no período compreendido entre as duas guerras
mundiais, e do tipo de solução dada pelo Fascismo a
esta crise.
A afirmação do caráter tipicamente italiano do
Fascismo, subscrita também, entre outros, por
autorizados teóricos fascistas, que reivindicavam ser
ele o coroamento do processo de unificação nacional
iniciado com o Ressurgimento, foi questionada com o
surgir de movimentos fascistas em vários países da
Europa, mormente com a subida ao poder do
nacional-socialismo na Alemanha. A partir dos anos
30, predominaram as
interpretações tendentes a acentuar o caráter
supranacional do Fascismo, que haviam de orientar a
maior parte da pesquisa e alimentar o debate teórico
mesmo depois da Segunda Guerra Mundial.
Em contradição com essa interpretação, foi-se
esboçando nos últimos dez anos uma corrente
historiográfica que visa reduzir o âmbito de aplicação
do conceito de Fascismo apenas ao contexto italiano.
Demonstrando a justa necessidade de se evitar as
generalizações arbitrárias, mas expressando, ao
mesmo tempo, uma orientação metodológica de
desconfiança com relação ao uso de conceitos gerais na
investigação histórica e de descrença nos modelos
teóricos próprios das ciências sociais, essa corrente —
que tem na Itália seu maior expoente em Renzo De
Felice — originou uma série de pesquisas sobre o
Fascismo, como movimento e como regime, com o
objetivo, podíamos dizer, de compreender o fenômeno
desde dentro (daí a utilização de fontes
predominantemente fascistas) e de reconstruir a
história,
superando
esquemas
interpretativos
preconstituídos. O resultado de tais pesquisas foi o de
levar a uma reavaliação das diferenças existentes entre
os diversos "Fascismos" e o de pôr em questão a
utilidade de um modelo unitário.
Os argumentos aduzidos para apoiar esta nova
versão da especificidade do Fascismo italiano são
radicalmente diferentes dos que caracterizaram as
primeiras
análises
dos
estudiosos
a
ele
contemporâneos. Estes baseavam o tema da
especificidade num conjunto de variáveis estruturais,
típicas da sociedade italiana, cuja permanência era
aceita como principal fator explicativo do regime
fascista, e ressaltavam a relação de continuidade com o
sistema liberal que depois foi aceita como própria, de
modo não fortuito, por grande parte da historiografia
marxista ou próxima do marxismo.
É uma perspectiva inteiramente diferente aquela em
que se colocam as pesquisas atrás mencionadas. O
centro da análise é o Fascismo em sua dimensão
político-ideológica e a tese da especificidade é baseada,
em primeira instância, justamente nas diferenças
ideológicas e projetivas do Fascismo italiano com
relação ao nazismo. Não se nega a existência de um
denominador comum entre os dois fenômenos e, por
conseguinte, a possibilidade de os englobar no mesmo
conceito de Fascismo; mas esse denominador serve
mais para estabelecer limites em relação ao exterior,
isto é, em relação a outros regimes de tipo autoritário,
do que para lhe explicar a natureza, os objetivos
fundamentais e a função histórica. Estes, ao contrário,
tornam-se divergentes, quando se contrapõe o
radicalismo de esquerda e o
FASCISMO
caráter revolucionário do movimento fascista italiano
ao radicalismo de direita, essencialmente reacionário,
do nazismo.
O problema da relação com o sistema social e
político preexistente também se fundamenta em bases
diversas e se articula levada em conta a diferenciação
entre Fascismo como movimento e Fascismo como
regime. Como expressão das aspirações da classe
média emergente, ou de uma parte consistente dela, a
um papel político autônomo, tanto em confronto com a
burguesia como com o proletariado, o Fascismo como
movimento teria representado um momento de ruptura
a respeito do passado, uma proposta de modernização
das estruturas da sociedade italiana, com certa carga
revolucionária. Ao invés, o Fascismo como regime,
como resultado de um compromisso entre a ala
moderada do movimento e as velhas classes
dirigentes, teria assinalado a freagem do impulso
eversivo original do movimento e o predomínio das
relações tradicionais de poder entre as classes, mas
nunca um momento de mera e simples reação. A
delegação da gestão do poder político ao Fascismo por
parte da burguesia marcou, de fato, o início de um
processo de substituição da elite dirigente que, se não
houvesse sido interrompido com a queda do regime em
conseqüência das vicissitudes da guerra, teria podido
desafiar os centros do poder real, até então controlados
pelas velhas classes dominantes.
A reafirmação da "unicidade'' do Fascismo italiano
e da necessidade de ressaltar, para uma melhor
compreensão histórica, os elementos de diferenciação
dos regimes definidos como fascistas por
interpretações já consolidadas, tem suscitado não
poucas discussões. Esta polêmica tem por alvo não
tanto a validade de cada uma das proposições —
nenhuma delas em si totalmente nova — quanto uma
questão fundamental, que é ao mesmo tempo a do
método e a do conteúdo; o que se questiona é se é
legítimo aceitar como principal critério discriminante
a dimensão ideológico-cultural, se com isso se corre o
risco de apresentar, como diversos, fenômenos que
são essencialmente da mesma natureza.
IV. A ABORDAGEM GENERALIZANTE. —
Que o Fascismo italiano e o nacional-socialismo
alemão, malgrado as diferenças devidas às
particularidades das respectivas histórias nacionais,
hajam de ser considerados como especificações de um
modelo de dominação essencialmente único, é coisa
que tem sido sustentada pela maior parte dos
estudiosos contemporâneos, independentemente das
suas posições ideológicas e políticas. É a eles que se
deve a elaboração de alguns esquemas interpretativos
que muito têm contribuído para a
469
orientação dos trabalhos dos historiadores e cientistas
sociais da geração seguinte. As hipóteses explicativas
que estes esquemas sugerem são diversas, quando não
claramente alternativas, dependendo, em várias
medidas, do tipo de fatores preferidos, do nível de
análise em que se situam e da diversidade de
paradigmas a que se referem. O que lhes é comum é o
esforço por compreender as raízes do Fascismo e, de
um modo mais geral, dos fenômenos autoritários
evidenciados pela sociedade moderna, num conjunto
de variáveis que transcendem os limites de cada uma
das realidades nacionais.
Pelo peso diverso que exercem no panorama global
dos estudos sobre o Fascismo e pela contribuição que
trouxeram ao conhecimento deste fenômeno em sua
dimensão histórica concreta, evocaremos aqui as
interpretações que, embora em diferente medida,
permitem traduzir as hipóteses genéricas nelas
contidas em assunto de pesquisa susceptível de
verificação empírica. Não consideraremos, porém, as
contribuições que, situando-se no terreno filosófico ou
da filosofia da história, constituem um capítulo
importante da história das idéias do nosso século, mas
fogem a toda a possibilidade de controle exercido
mediante o recurso a categorias historicamente
determinadas.
a) O Fascismo como uma ditadura aberta da
burguesia. — Entre os primeiros que captaram a
dimensão internacional do Fascismo e as suas
potencialidades expansivas, estão os expoentes do
movimento operário em suas diversas articulações. O
elemento unificador das várias formas de reação na
Europa, no período que medeia entre as duas guerras
mundiais, está na análise das contradições da
sociedade capitalista e das modificações por ela
introduzidas na dinâmica das relações e conflitos entre
as classes, na fase histórica iniciada com a Primeira
Guerra Mundial.
Dentro desta interpretação, é conveniente distinguir
a formulação "clássica" — resumível nas teses
elaboradas pela Terceira Internacional comunista a
partir de meados dos anos 30 — dos seus ulteriores
desenvolvimentos, que reassumem temas e idéias já
presentes no debate iniciado pelos componentes do
marxismo europeu desde a tomada do poder pelo
Fascismo na Itália, reelaborando-os em função de uma
análise menos esquemática das relações entre estrutura
e supra-estrutura, entre esfera econômica e esfera
política.
Na primeira formulação, as origens do Fascismo
como fenômeno internacional são relacionadas com a
crise histórica do capitalismo em seu estádio final, o
do imperialismo, e com a necessidade que a burguesia
tem, em face do
470
FASCISMO
agravamento das crises econômicas e da exacerbação
do conflito de classes, de manter o seu domínio,
intensificando a exploração das classes subalternas e,
em primeiro lugar, da classe operária. O imperialismo
envolve a tendência a transformar em sentido
reacionário as instituições da burguesia, e o Fascismo
é a expressão mais coerente dessa tendência. Ele
constitui uma das formas do Estado capitalista,
precisamente a caracterizada pela ditadura aberta da
burguesia, exercida já sem a mediação das instituições
da democracia parlamentar. A Itália e a Alemanha,
como elos mais fracos da cadeia imperialista, foram as
primeiras a experimentar esta forma de dominação,
mas essa mesma ameaça impende sobre os demais
Estados capitalistas.
São dois os elementos centrais deste tipo de
análise: a concepção instrumental dos partidos e dos
regimes fascistas, considerados como expressão direta
dos interesses do grande capital, e a sua função
essencialmente contra-revolucionária no duplo sentido
de ataque frontal contra as organizações do
proletariado e de esforço por frear o curso do
desenvolvimento histórico. Em conseqüência, é dado
pouco relevo ao fato, qualitativamente novo em
relação às formas precedentes de reação, de que a
fascista operasse mediante um partido de massa de
base predominantemente pequeno-burguesa, embora
comunistas italianos e alemães, como P. Togliatti ou
Clara Zetkui, já houvessem chamado a atenção para
isso. Além disso, eram categoricamente rejeitadas, sob
pretexto de ignorarem a definição do Fascismo como
ditadura da burguesia, as análises que em vários
setores do movimento operário vinham sendo feitas do
Fascismo como forma de "bonapartismo", isto é, como
regime caracterizado pela cessão temporária do poder
político a uma terceira torça e por uma relativa
autonomia do executivo em relação às classes
dominantes, tornadas possíveis graças a uma situação
de equilíbrio entre as principais forças de classe em
ação.
A teoria do Fascismo como ditadura da burguesia
constitui ainda hoje a chave interpretativa
predominante nos estudos que têm como modelo de
referência o marxismo e a sua concepção da mudança
histórica. Com o tempo, porém, ela passou por uma
certa revisão que tornou mais problemáticos alguns
nexos, particularmente os existentes entre burguesia e
Fascismo, entre movimentos e regimes fascistas, entre
capitalismo, democracia e Fascismo. Esta revisão é o
resultado de uma reflexão teórica que teve efeitos
importantes em vários sentidos. O primeiro deles foi a
atenuação do economicismo presente nas primeiras
formulações e o reconhecimento de uma relativa
autonomia da esfera política com relação
à esfera da economia. Isso trouxe consigo uma mais
aprofundada análise das crises de onde emergiram os
regimes fascistas; uma articulação mais complexa da
relação entre Fascismo e classes sociais; uma
consideração mais atenta dos aspectos institucionais
dos regimes fascista», da lógica do seu
funcionamento, das bases da sua legitimação. Mas
não modificou a concepção do Fascismo como forma
particular de ditadura da burguesia, embora esta fosse
atenuada pelo reconhecimento da autonomia relativa
dos Estados fascistas em face do grande capital, no
âmbito de uma convergência comum para objetivos
imperialistas.
b) O Fascismo como totalitarismo. — É totalmente
outra a perspectiva em que se situa a análise do
Fascismo como totalitarismo, cuja contribuição
principal foi a de ter sabido captar a novidade que
representa o aparecimento dos regimes fascistas na
cena política e a de ter chamado a atenção para as
diferenças qualitativas existentes entre as formas
tradicionais de autoritarismo e as modernas.
O quadro de referência é constituído, direta ou
indiretamente, pelas teorias da sociedade de massa; à
dinâmica das relações entre as classes sucede, como
principal fator explicativo do surgimento dos
fenômenos do autoritarismo moderno, a dinâmica das
relações entre as massas e as elites num contexto
caracterizado pela decomposição do tecido social
tradicional, pelo desabe dos sistemas de valores
comuns, pela atomização e massificação dos
indivíduos, e por uma crescente burocratização.
O aspecto central desta teoria, e ao mesmo tempo o
mais criticado, é a subsunção sob uma mesma
categoria, a do Estado totalitário, dos regimes fascistas
e comunistas, com base em analogias existentes na
estrutura e técnicas de gestão do poder político. São.
com efeito, estas analogias — verificáveis
independentemente dos fins declarados que se tem em
vista dos precedentes históricos e do conteúdo das
respectivas ideologias — que os teóricos do
totalitarismo privilegiam no plano descritivo e
admitem como problema principal no plano
explicativo.
Os elementos que definem o Estado totalitário são,
em termos típico-ideais, conforme a formulação de
Friedrich e Brzezinski: uma ideologia oficial tendente
a cobrir todo o âmbito da existência humana e à qual
se supõe aderirem todos, pelo menos passivamente;
um partido de massa único, tipicamente conduzido
por um só homem; um sistema de controle policial
baseado no terror; o monopólio quase completo dos
meios de comunicação de massa; o monopólio quase
completo do aparelho bélico; e, enfim, o controle
FASCISMO
centralizado da economia. O alvo é o de conseguir o
controle total de toda a organização social, a serviço
de um movimento ideologicamente caracterizado.
As condições essenciais para a sua aparição são um
regime de democracia de massa e o poder dispor de
um aparelho tecnológico como o que só a moderna
sociedade industrial pode oferecer. O Estado
totalitário se apresenta, portanto, como uma forma de
domínio inteiramente nova, não só com respeito aos
sistemas de democracia liberal, mas também às
formas anteriores de ditadura e autocracia, uma vez
que no passado não existiam os pressupostos para a sua
realização. Possui, além disso, um caráter eversivo com
relação ao sistema social preexistente, na medida em
que lhe modifica radicalmente a estrutura, que se
baseava na existência de uma pluralidade de grupos e
de organizações autônomas.
As razões do sucesso dos regimes totalitários são
geralmente postas no declínio do sistema liberal
burguês e, especialmente, na dissolução do sistema
classista, que é ao mesmo tempo causa e condição da
sua sobrevivência. Mas o que mais interessa aos
defensores da teoria clássica do totalitarismo são os
mecanismos de funcionamento do Estado totalitário no
âmbito de uma morfologia mais geral dos sistemas
políticos. Numa tal perspectiva, as diferenças
existentes entre os regimes fascistas e comunistas, bem
como as verificáveis no interior de cada um deles,
conquanto não negadas, perdem importância: uns e
outros, na medida em que apresentam essa particular
combinação de elementos que definem o Estado
totalitário, pertencem à mesma classe de fenômenos e
expressam a feição que assume o autoritarismo na
sociedade moderna.
A teoria clássica do totalitarismo tem estado sujeita
a numerosas críticas que têm por alvo uma dupla série
de problemas. O primeiro diz respeito ao campo
específico da análise dos regimes fascistas. Sob este
ponto de vista, parece boje dificilmente sustentável a
hipótese de que a origem e sucesso dos movimentos
fascistas estariam relacionados com o conjunto de
fenômenos compreendidos no conceito de "sociedade
de massa". Pesquisas recentes demonstraram que, nos
países onde o Fascismo se consolidou, o sistema de
estratificação era muito mais rígido, o peso das
estruturas tradicionais muito mais forte e o grau de
"atomização" — no sentido de falta de estruturas
associativas intermediárias — muito menor que em
outros onde o Fascismo jamais se ofereceu como
alternativa concreta. A tentativa de explicar o processo
de introdução do Fascismo com base na dinâmica das
relações entre massas privadas de uma clara
conotação de
471
classe também contradiz um dado empírico já seguro,
ou seja, a base constituída de massas
predominantemente
pequeno-burguesas
dos
movimentos fascistas e sua coligação com amplos
setores da burguesia agrária e industrial, antes e
depois da tomada do poder. Finalmente, esta teoria
não consegue fornecer uma explicação aceitável sobre
o problema da função histórica dos regimes fascistas,
oscilando entre uma resposta de tipo não racional —
os regimes totalitários seriam neste caso uma espécie
de experimento monstruoso de engenharia social,
tendo como fim a criação de um novo tipo de homemmáquina totalmente heterodirigido — e a renúncia
explícita ao momento explicativo em favor de uma
morfologia dos sistemas totalitários.
A segunda série de problemas diz respeito à própria
utilidade do conceito de totalitarismo que, como
instrumento, não permite discriminar entre regimes
que, apresentando analogias no funcionamento do
sistema político, diferem em outros aspectos
importantes como os relativos à constelação das forças
que favoreceram o seu triunfo, à relação entre as
velhas e as novas elites, ao tipo de interferência na
estrutura econômico-social e às suas conseqüências.
Os que pensam que tal conceito ainda conserva uma
certa valia no plano descritivo têm afirmado
constantemente a necessidade de uma mais ampla
tipologia dos sistemas totalitários, baseada na análise
comparada dos diversos regimes, capaz de levar em
conta as diferenças. É daí que surgiu a tendência de
compreender dentro do mesmo tipo o Fascismo
italiano e o nacional-socialismo alemão, com base nas
analogias observáveis não só nas técnicas de gestão
do poder político, como também na ideologia, na base
social e na função histórica dos dois regimes.
c) O Fascismo como via para a modernização. —
Nestes últimos tempos, tem-se desenvolvido um novo
tipo de abordagem que tem como referência o esquema
teórico da modernização e considera os regimes
fascistas como uma das formas político institucionais
através das quais se operou historicamente a transição
de uma sociedade agrária de tipo tradicional à
moderna sociedade industrial.
As análises que antecedem — se excetuarmos a
tentativa de explicar a implantação do Fascismo na
Itália baseada no atraso geral da sociedade italiana —
possuem um aspecto comum que é o de situarem os
regimes fascistas num contexto caracterizado, em seu
conjunto, por uma situação de avançada
industrialização. A dinâmica existente entre massas e
elites, o conflito entre a grande burguesia e o
proletariado no estádio imperialista do capitalismo,
assim como a revolta
472
FASCISMO
das classes médias emergentes, são indicadores de um
tipo de sociedade que já passou total ou parcialmente à
modernidade. Até os fenômenos de natureza mais
estritamente política, que são relacionados com o
surgir dos movimentos e regimes fascistas, são típicos
de um sistema democrático plenamente consolidado,
seja que se acentuem as suas contradições internas,
como pretende a análise marxista, seja que se
descubra nele o terreno específico onde tais
movimentos podem nascer e desenvolver-se, como
quer a teoria do totalitarismo.
A análise do Fascismo à luz das teorias da
modernização coloca-o, ao invés, não já em relação
com os conflitos e crises próprios da sociedade
industrial, mas com os conflitos e crises característicos
da fase de transição para ela. Neste quadro, os
regimes fascistas se configuram como uma das vias
para a modernização — as outras historicamente
identificadas são a liberal-burguesa e a comunista —
fundada no compromisso entre o setor moderno e o
tradicional. Os traços que os caracterizam são, na
esfera econômica, uma industrialização atrasada, mas
intensa, promovida desde cima, com notável
interferência do Estado a favor da acumulação; na
esfera política, o desenvolvimento de regimes
autoritários e repressivos, expressão da coligação
conservadora das elites agrárias e industriais que
querem avançar pelo caminho da modernização
econômica, defendendo, ao mesmo tempo, as
estruturas sociais tradicionais; na esfera social, a
tentativa de evitar a desagregação dessas estruturas,
impedindo ou reprimindo os processos de mobilização
social postos em movimento pela industrialização.
O conceito de mobilização social adquire particular
relevância quando o Fascismo é considerado como um
tipo especial de resposta aos conflitos nascidos da
exigência de participação no gozo de determinados
bens e serviços — materiais e não materiais — por
parte de setores da população antes excluídos: uma
resposta baseada na desmobilização forçada dos
grupos recentemente mobilizados, posta em obra pela
coalizão entre as velhas e as novas elites, em função da
conservação da ordem sócio-política tradicional.
Os fatores que constituem a base da solução de tipo
fascista hão de ser buscados nas modalidades
assumidas pelo processo de modernização nos países
onde tal processo se impôs.
Nesta perspectiva, a pesquisa tem contribuído para
enriquecer a análise dos fenômenos fascistas em mais
de um sentido. Chamando a atenção para a variedade
de formas que o Fascismo pode assumir nos diferentes
contextos nacionais, ela veio favorecer o
desenvolvimento da abordagem histórico-comparativa,
lançando as premissas para
a formulação de generalizações empíricas, fundadas
na pesquisa sistemática e orientadas à luz de
categorias homogêneas. O conceito de modernização
como processo global de transformação, que atinge
todas as esferas do sistema social, tem orientado, além
disso, a pesquisa para a análise das interações entre o
sistema político, o sistema econômico e o sistema
sócio-cultural, fazendo ressaltar as fraturas, asincronias e descontinuidades que melhor parecem
caracterizar as situações de onde emergem os
fenômenos fascistas.
A mais sólida contribuição deste tipo de abordagem
está no plano das indicações metodológicas e, no
plano substantivo,
no aprofundamento
das
precondições do Fascismo, enquanto parecem bastante
mais problemáticas as ligações entre ambas as coisas.
Em especial, a análise do Fascismo dentro da dinâmica
dos processos de modernização parece oferecer
melhores resultados na explicação da vulnerabilidade
dos sistemas liberais burgueses, nos países onde ele se
consolidou, do que na explicação do modo como
caíram e do tipo de regime que se seguiu. Acentuando
o peso do componente tradicional, ela tende a
subestimar a importância do embate entre burguesia e
proletariado, o papel das classes médias, a crise do
sistema liberal e das suas instituições representativas,
todos eles fenômenos que parecem ligados às tensões
originadas no contexto de uma sociedade que
apresenta, em seus traços essenciais, as características
de uma sociedade industrial moderna. Essa mesma
ótica impede, além disso, colher a especificidade dos
regimes fascistas e os elementos de novidade neles
existentes, bem como diferenciá-los de outras formas
de regimes reacionários,
conservadores
ou
autoritários.
d) O Fascismo como revolta da pequena burguesia.
— Em contraste com as interpretações precedentes,
cada uma delas enquadrada numa perspectiva teórica
bem definida a cuja luz se elaboraram hipóteses
relativamente homogêneas acerca da natureza e função
dos regimes fascistas, as análises, que têm posto em
evidência a ligação entre a pequena burguesia e o
Fascismo, jamais alcançaram uma autonomia que as
impusesse como alternativa interpretativa global. Não
obstante, são mencionadas, quer pela contribuição
específica que trouxeram ao conhecimento de aspectos
decisivos para a compreensão do fenômeno, quer pela
função de estímulo que exercem com relação a
esquemas teóricos demasiado simplificados.
O fato de que a pequena burguesia pudesse
contribuir de modo determinante para o sucesso dos
movimentos fascistas, fornecendo-lhes os quadros e as
bases de massa na fase de ascensão e um consenso
ativo na fase de regime, não entrava
FASCISMO
nos esquemas clássicos, nem nos da teoria liberal, nem
nos do marxismo. Para a teoria liberal, a pequena
burguesia constituía um dos pressupostos do sistema
democrático e a garantia de um desenvolvimento
pacífico e gradualmente progressivo da sociedade; para
o marxismo, ela estava impossibilitada de exercer um
papel político autônomo em virtude da sua colocação
dentro da estrutura de classes e da sua posição
subalterna no respeitante ao conflito fundamental
entre a grande burguesia e o proletariado. Em
coerência com tais esquemas, a contribuição da
pequena burguesia para o triunfo dos movimentos
fascistas ou é negada, como na teoria do totalitarismo,
em benefício da relação entre as massas não
diferenciadas e as elites, ou então concebida em
termos instrumentais, sendo atribuída à pequena
burguesia a função de massa de manobra de um
movimento a serviço dos desígnios do grande capital,
como acontece na teoria do Fascismo como ditadura da
burguesia.
A capacidade de mobilizar a pequena burguesia,
baseando-se numa ideologia composta onde confluíam
o irracionalismo e o voluntarismo, o anticapitalismo e
o anti-socialismo, vagas aspirações a uma democracia
radical unidas a acentos fortemente nacionalistas,
parece, contudo, ser um dos elementos característicos
do movimento fascista, desde a implantação do
Fascismo na Itália.
Este fato é analisado por alguns observadores como
revolta da pequena burguesia urbana e rural, ameaçada
em seu status pelos processos de transformação sócioeconômica em marcha, particularmente pelos
processos de concentração industrial e pelo
conseqüente aumento da influência da grande
burguesia e do proletariado industrial na cena política.
Estendendo-se à pequena burguesia, o esquema da luta
de classes fornecia-lhe o critério interpretativo do
movimento, considerado revolucionário em suas
premissas subjetivas mas reacionário no conteúdo
objetivo, sendo como era expressão de estratos postos
à margem pelo desenvolvimento produtivo e pela
evolução da sociedade capitalista.
Na década de 30, após o sucesso do nazismo na
Alemanha, o fascínio exercido pelos movimentos
fascistas sobre a pequena burguesia tornou-se objeto
de uma pesquisa que tendia a completar a explicação
sócio-econômica com a análise psicossocial.
As interrogações a que a abordagem psicossocial
queria dar uma resposta eram deste tipo: por que é
que a pequena burguesia, mais que qualquer outra
classe, tinha aderido ao Fascismo de onde não podia
provir nenhuma solução para a sua situação de crise?
Que elementos da ideologia fascista tinham exercido
sobre ela uma
473
atração capaz de se tornar mais eficaz que qualquer
consideração em termos racionais sobre a finalidade e
objetivos do movimento fascista? Tais elementos
tinham alguma relação com a posição da pequena
burguesia como classe dentro da estrutura da
sociedade capitalista e com as modificações pelas
quais esta estava passando? Não existindo uma relação
de correspondência imediata entre situação e ação de
classe, mas sendo esta mediada pela percepção
subjetiva daquela, que aspectos do sistema social
podem explicar o comportamento da pequena
burguesia e, mais genericamente, a disposição de
indivíduos, grupos e classes sociais a submeterem-se a
relações de tipo autoritário?
As contribuições de maior relevo orientam-se em
dois sentidos. Estudaram, por um lado, mais
profundamente as características da ideologia fascista,
particularmente as da versão alemã, e a sua capacidade
de canalizar o ressentimento da pequena burguesia
para objetivos fictícios, a troco, as mais das vezes, de
satisfações simbólicas. Distinguiram, por outro lado,
um nível de análise intermediário entre situação e
ação de classe, como o da personalidade, inferindo a
importância das estruturas de socialização —
principalmente da família — como sede de formação
e de reprodução de estruturas psíquicas consentâneas
com a ideologia das classes ou elites dominantes.
Que a relação entre a pequena burguesia e o
Fascismo constitua um dos pontos essenciais para a
compreensão da natureza dos regimes fascistas
demonstra-o o constante interesse que ela desperta,
bem como as numerosas pesquisas empíricas que
continuam a apresentar-se sobre o assunto. Mas é um
ponto ainda sem solução, principalmente no que
respeita à função, dirigente ou subalterna, da pequena
burguesia dentro do sistema de poder fascista.
Enquanto parece hoje já bastante provado e debatido
o papel que ela desempenhou como base de massa dos
movimentos fascistas, apresenta-se ainda como
problemática a tentativa de mostrar o Fascismo,
enquanto regime, como expressão da pequena
burguesia no poder. Os estudos orientados neste
sentido, embora tenham demonstrado o crescimento
quantitativo dos estratos pequeno-burgueses — em
virtude da expansão do papel do Estado, das suas
funções político-administrativas, do aparelho de
propaganda e de repressão —, embora tenham
demonstrado também o restabelecimento das distâncias
sociais em relação à classe operária e uma certa
mudança nos quadros dirigentes nos vários níveis da
burocracia política e administrativa, não conseguiram,
contudo, demonstrar, de modo convincente, que as
opções fundamentais dos regimes fascistas
respondessem a uma lógica oposta
474
FASCISMO
aos interesses das antigas classes dominantes nem que
pudessem ser referidas a um projeto de transformação
social dotado de uma autonomia própria e tendente a
conferir à pequena burguesia, antiga ou nova, um
papel hegemônico no seio da sociedade.
V. PROBLEMAS ABERTOS. — A variedade de
interpretações elaboradas com o correr dos anos
sugere uma idéia do Fascismo como fenômeno de
muitas faces, de que cada uma delas capta apenas um
aspecto parcial e de que jamais se consegue construir
o todo. Esta imagem parece dar razão aos que pensam
que se deve abandonar o caminho já demasiado
trilhado da busca de modelos explicativos de caráter
geral e defender a reconstrução histórica dos diversos
Fascismos, entretanto considerada pretensiosa e sem
valor, já que prescinde de toda a tentativa de formular
um juízo global sobre a natureza e função dos regimes
fascistas.
Não é este o lugar apropriado para afrontar os
problemas de método que uma escolha deste tipo
suscita. Nem tampouco para assentar se a
reconstrução histórica, privada de hipóteses
interpretativas e guiada pelo único critério de "deixar
falar os fatos", é possível e até mesmo desejável. Na
realidade, na origem da rejeição de modelos
interpretativos sólidos, como a que se faz com base
num apelo aos fatos, está quase sempre a opção,
explícita ou não, a favor de um modelo diferente, a
cuja luz se hão de selecionar e interpretar os fatos.
Ora, a dificuldade em resolver alguns pontos
fundamentais para a compreensão dos regimes
fascistas deriva, em parte, da diversidade dos modelos
de referência, mas também da confusão dos níveis de
análise e da insuficiência de empenho numa estratégia
de pesquisa que tenda a traduzir as hipóteses
genéricas em interrogações suscetíveis de verificação
empírica.
Um exame das diversas interpretações e da sua
evolução no tempo permite, no entanto, descobrir uma
série de temas em torno dos quais se têm ido
encurtando as distâncias, quer em conseqüência da
acumulação de dados históricos sobre os sistemas
investigados, quer por uma maior disponibilidade dos
estudiosos de diversas tendências de proceder à
verificação dos próprios resultados em confronto com
os resultados alheios.
Verificou-se
particularmente
uma
notável
convergência na análise tanto das condições da.
aparição dos regimes fascistas como da forma
político-institucional sob a qual se manifestou a sua
dominação. Isso levou a um uso mais crítico do
termo, cujo âmbito de aplicação se tem ido
restringindo cada vez mais aos casos italiano e
alemão.
Em vez disso, se mantêm assaz distantes as
apreciações sobre a natureza e função dos regimes
fascistas. Um dos discriminadores fundamentais
continua sendo a relação entre capitalismo e
Fascismo. É um problema ainda não resolvido se o
Fascismo representou um tipo particular de solução
para as crises de transformação do sistema capitalista
ao longo de uma linha de identidade estrutural ou o
início de um processo de modificação das estruturas
do capitalismo tendente a criar um ordenamento
econômico e social diverso tanto do capitalismo
quanto do socialismo. A solução deste problema
tornou-se ainda mais difícil pelo fato de que a duração
relativamente breve dos regimes fascistas e a sua
queda em virtude dos acontecimentos bélicos só
permite falar de linhas ou tendências.
A questão gira em torno da relação entre política e
economia e do maior ou menor grau de autonomia
alcançado pelos Estados fascistas em face das forças
economicamente dominantes, em especial do grande
capital industrial e financeiro. Existem a tal respeito
duas correntes principais de pesquisa que se movem
em direções divergentes: a primeira propensa a
demonstrar a convergência de interesses entre o
Fascismo e o grande capital, para confirmar a tese de
uma continuidade estrutural entre capitalismo e
Fascismo, segundo a qual a autonomia relativa do
poder político se explica dentro de uma coincidência
substancial de objetivos e fins com o poder econômico;
o segundo, ao contrário, tendente a apresentar tal
convergência
como
resultado
de
situações
contingentes, nunca capazes de contestar a divergência
fundamental entre a ideologia e prática dos
movimentos e regimes fascistas e as condições de
sobrevivência do sistema capitalista. Sob este aspecto,
as pesquisas efetuadas por ambas as vertentes não
parecem haver modificado os termos do problema no
que respeita ao debate suscitado no início da década
de 40, até mesmo no seio do marxismo, entre os
defensores,
como
Hilferding,
de
uma
incompatibilidade essencial entre a lógica dos
sistemas totalitários e a lógica do capitalismo, e
aqueles que, como Franz Neumann, pensavam ser a
forma totalitária a mais adequada em relação aos
objetivos imperialistas do capitalismo monopólico. Foise, portanto, delineando a necessidade de passar de um
tipo de argumentação intencionalmente conduzida em
termos de objetivos a outra fundada na análise
concreta das mudanças ocorridas nas estruturas das
sociedades fascistas, como resultado das estratégias
umas vezes convergentes, outras vezes conflitantes,
das múltiplas forças em ação.
FEDERALISMO
Deste trabalho de aprofundamento realizado em
vários sentidos surgirá uma imagem dos sistemas
fascistas bem mais complexa e contraditória do que
parecia no passado. Esta complexidade, este caráter
contraditório parecem ligados ao fato de que eles
constituem um exemplo de solução para os conflitos
nascidos na sociedade industrial, baseado na
utilização de técnicas políticas profundamente
inovadoras, cujas implicações não foram ainda
totalmente esclarecidas.
BIBLIOGRAFIA. - H. ARENDT, Le origini del
totalitarismo (1951), Ediziom di Comunità. Milano
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[EDDA SACCOMANI]
Federação. — V. Federalismo.
Federalismo.
I. A CONFUSÃO DOS SIGNIFICADOS. — Na
Cultura política o termo Federalismo é usado para
designar dois objetos diferentes. Numa primeira
475
acepção clara, mas delimitada, designa a teoria do
Estado federal. Numa segunda acepção, um tanto
obscura, se refere a uma visão global da sociedade.
Se o primeiro significado não é controvertido,
porque se baseia na teoria do Estado federal, modelo
constitucional que foi objeto de numerosos estudos,
que ilustraram em seus aspectos fundamentais sua
estrutura e seu funcionamento, ele é sem dúvida
redutivo. De fato, de um lado o conhecimento de um
Estado não é completo, se não se tomam em
consideração as características da sociedade, que
permitem manter e fazer funcionar as instituições
políticas. Portanto, se o Estado federal é um Estado
dotado de características próprias, que o distinguem
dos outros tipos de Estado, devemos conjeturar que
tenham algum caráter federal os comportamentos
daqueles que vivem nesse Estado. De outro lado,
devemos relevar a presença de comportamentos
federalistas também fora dos Estados federais: na
Europa, durante os séculos XIX e XX, inicialmente
indivíduos isolados, em seguida verdadeiros
movimentos organizados utilizaram os princípios
federalistas para definir suas atitudes políticas.
Estas duas observações parecem indicar a
superioridade do segundo modo de conceber o
Federalismo, isto é, entendido como uma doutrina
social de caráter global como o liberalismo ou o
socialismo, que não se reduz, portanto, ao aspecto
institucional, mas comporta uma atitude autônoma
para com os valores, a sociedade, o curso da história e
assim por diante. Para este segundo significado o
ponto de referência obrigatório é a utopia de
Proudhon, que, porém, embora tenha dado sob certos
aspectos uma contribuição efetiva à teoria do
Federalismo, não baseando a sua concepção numa
definição científica da estrutura social e deixando
historicamente indeterminado seu projeto federalista,
não soube dar uma definição satisfatória.
Para chegar a uma definição mais rigorosa,
segundo indicação de M. Albertini, é preciso
proceder, antes de tudo, com base no método de
análise das ciências histórico-sociais, a um
reconhecimento do conjunto dos dados federalistas,
em seguida, à organização dos vários aspectos
identificados (de valor, de estrutura, histórico-social)
num quadro coerente. Dessa forma será possível
situar o Federalismo no curso histórico e relacioná-lo
com as outras ideologias.
II. A NEGAÇÃO DO ESTADO NACIONAL. —
Começando a considerar o Federalismo do ponto de
vista daquilo que ele nega mais do que daquilo que
ele afirma, é possível, talvez, chegar mais
476
FEDERALISMO
facilmente a compreender o seu significado. De falo,
do ponto de vista histórico, as determinações positivas
da teoria do Federalismo foram se esclarecendo através
da experiência da negação da divisão do gênero
humano em Estados soberanos. E já que essa divisão
se manifestou numa forma mais aguda na Europa das
nações, historicamente o Federalismo se tem definido
como a negação do Estado nacional.
Na Europa uma corrente federalista se manifestou
contemporaneamente à afirmação do princípio da
soberania nacional durante a Revolução Francesa e se
manteve viva durante os séculos XIX e XX. Encontrase pela primeira vez o ideal federalista no componente
cosmopolita da Revolução Francesa, na obra de Kant
e na utopia européia de Saint-Simon. Esse ideal se
encontra também nos programas das associações
pacifistas, nas resoluções dos congressos para a paz e
dos congressos dos juristas do fim do século passado,
nos escritos de Cattaneo, Frantz, Mazzini e Proudhon.
Está presente também, numa forma persistente e
consistente, embora com eclipses determinados pelos
acontecimentos históricos, dentro das correntes
liberal, democrática e socialista, que dominaram a
história do século XIX, para testemunhar a
consciência de que os valores que essas correntes
carregam não podem ser limitados só a um país sem se
degenerarem. Para exemplificar o peso efetivo desse
ideal, basta lembrar que Lenin, em 1915, sentiu a
necessidade de posicionar-se contra a "palavra de
ordem dos Estados Unidos da Europa", cujo valor
positivo não pôde, porém, contestar. Ele se limitou a
reafirmar com insistência que a tarefa preliminar era a
realização da revolução socialista onde quer que fosse
possível, começando por alguns países ou até só por
um país. Mas, como pensava que essa fosse iminente
em toda a Europa, o momento de lançar essa palavra
de ordem ficava somente adiado para a hora em que o
socialismo tivesse triunfado. Por conseqüência, essa
tomada de posição não significava em absoluto a
rejeição do princípio da unidade européia.
De qualquer forma, tratava-se de uma exigência
ideal, a que não correspondiam ainda na realidade
histórica condições adequadas para traduzi-la em ação
política. Todavia, sua raiz era profunda. A razão
impede pensar em valores liberais, democráticos e
socialistas, que no século passado criaram novos
modelos de convivência política, mas que se
realizaram de modo parcial e precário dentro dos
Estados nacionais, porque limitados somente ao
espaço nacional. De outra parte, a extensão de tais
valores no campo europeu, com o intuito de abrir o
caminho para sua afirmação universal, não é possível
sem usar
estruturas políticas federais. Além disso os limites do
Estado nacional, que no início podiam ser percebidos
só no horizonte teórico federalista, isto é, na base da
negação da pretensão da ideologia dominante de
apresentar as instituições nacionais como única forma
legítima de organização política da humanidade,
devido ao pleno desenvolvimento e à generalização do
princípio nacional, se tornaram limites concretos da
própria ação política dos Estados nacionais e das forças
que os sustentavam, limitações decorrentes da
crescente incompatibilidade entre esta fórmula política
e o equilíbrio internacionalEnquanto na Europa dominou a fórmula política do
Estado absoluto, as relações internacionais foram
relações de reis e de príncipes, das quais os povos
estavam excluídos. A aristocracia formava uma
sociedade comum européia, que tinha obrigações
decorrentes da unidade moral do mundo cristão e do
reconhecimento das normas do chamado "direito
europeu", que tinha por finalidade manter o equilíbrio
de poder entre os Estados. Também as relações entre
indivíduos de nacionalidade diferente eram
caracterizadas pela convicção de pertencer a uma
sociedade européia, na qual os elementos da unidade
eram mais fortes do que os de divisão. A formação
política da Metternich era influenciada por esta
realidade e, se a ordem européia que surgiu do
Congresso de Viena foi estável, isto decorreu do fato
de que aquelas obrigações conservavam força vital
ainda na idade do incipiente nacionalismo e ainda
representavam um contrapeso em contraste aberto com
os egoísmos nacionais.
De outro lado, as transformações que se verificaram
no Estado com as reformas democráticas e sociais,
levando o Governo a basear-se na participação popular
e a estender a própria competência à intervenção na
vida econômica e social, favoreceram uma enorme
concentração de poderes nas mãos do Estado
burocrático, inconcebível durante o Ancien Régime. O
Estado se apoderou, dessa forma, das energias que
surgiram da Revolução
Industrial
e das
transformações políticas que a acompanharam e o
resultado (não desejado e não previsto nem pelos
liberais, nem pelos democratas, nem pelos socialistas),
foi a centralização, a integração nacional e o
nacionalismo. Isto resultou do fato de que atrás da
"nação soberana" estava sempre o Estado com as suas
velhas exigências de segurança e de potência, mas
tornado cada vez mais agressivo pela nova necessidade
de servir aos interesses econômicos e sociais das
massas numa época em que, em conseqüência da
Revolução Industrial, que ia multiplicando as relações
entre os indivíduos pertencentes aos diversos Estados,
as relações
FEDERALISMO
internacionais tendiam a ampliar-se e a multiplicar-se
constantemente, agravando, assim, a anarquia
internacional, a desordem econômica e o autoritarismo.
De outro lado, o controle dos valores lingüísticos,
morais e culturais, que animam o sentimento nacional
e que ficaram até então excluídos da luta. política,
passou para o Estado, o qual se serviu dele para firmar
quer a legitimidade do próprio poder quer a própria
política externa. Deste modo o Estado nacional
suprimiu todos os ligames espontâneos de união que os
homens sempre tiveram para com as comunidades
locais menores e para com as coletividades maiores do
que a nação, para impedir que outros ligames pudessem
enfraquecer a fidelidade absoluta que o Estado exigia
dos cidadãos.
A fusão do Estado e da nação eliminou, então, os
limites internos e internacionais, que tinham freado o
choque entre os Estados, quando estes estavam
baseados no princípio dinástico, e os tornou grupos
fechados, centralizados e belicosos. E nas consciências
se afirmou a convicção ideológica de que as nações
fossem "estirpes" absolutamente diferentes, baseadas
em princípios inconciliáveis. Enquanto se difundia a
ilusão de que o melhor equilíbrio podia ter sido
garantido, fundando inteiramente a Europa em bases
nacionais, Proudhon, com grande visão, escreveu que
a mistura explosiva de fusão do Estado e da nação
teria
acentuado
as
divisões
internacionais,
transformando as lutas entre os povos em "extermínio
de raças". Também Frantz tinha intuído a contradição
fundamental do nacionalismo entre a aspiração à
autonomia e à igualdade de todos os povos e a sua
divisão política. A divisão política transforma os povos
em grupos armados e hostis e torna, assim, precária, e
até impossível, a coexistência pacífica deles. A
desigual distribuição do poder político entre os
Estados determina
relações hegemônicas e
imperialistas dos Estados mais fortes em relação aos
mais fracos. A autonomia e a irmanação de todos os
povos, declaradas nos princípios, são negadas na
realidade. E a afirmação do princípio nacional,
primeiro na Itália e depois especialmente na Alemanha,
destruindo o equilíbrio europeu e tornando inevitável
a Primeira Guerra Mundial com suas características de
guerra generalizada e total, confirmou o juízo
histórico de Proudhon e de Frantz.
A partir deste momento, o Federalismo, isto é, a
teoria do Governo democrático supranacional,
instrumento político que permite instaurar relações
pacíficas entre as nações e garantir ao mesmo tempo
sua autonomia, através da sua subordinação a um
poder superior, mas limitado, pode começar a tornar-se
tendencialmente uma alternativa teórica e prática
historicamente atuante.
477
porque a falência da Internacional socialista e a
explosão da Primeira Guerra Mundial revelam os
primeiros efeitos catastróficos da crise histórica do
Estado nacional. Mas, enquanto a classe dirigente
européia esperava da generalização do princípio
nacional e da fundação da Sociedade das Nações,
decididas em Versalhes, o início de uma era de paz,
criam-se as premissas do fascismo e do nazismo, da
Segunda Guerra Mundial e do fracasso do sistema
europeu dos Estados. A teoria federalista, que nesta
fase não tinha sido ainda desenvolvida em todos os seus
aspectos, mas era concebida simplesmente como um
complemento necessário das teorias liberal,
democrática e socialista, permitiu iluminar a verdadeira
natureza de alguns aspectos essenciais deste processo
histórico. L. Einaudi, desde 1918, colocou em
evidência os limites do projeto da Sociedade das
Nações, a qual, baseando-se no princípio confederativo,
não limitava a soberania nacional, e contrapôs a ela a
federação européia, como único meio de garantir a
paz. Identificou, além disso, no problema da
unificação européia, a linha condutora da história de
nosso século, definindo as guerras mundiais como
duas tentativas de resolvê-lo com a violência e indicou
a causa de tais guerras na contradição entre o caráter
tendencialmente supranacional da produção e de todos
os demais aspectos da conduta humana, a ela direta ou
indiretamente coligados, e as dimensões nacionais da
organização política. O que ficou implícito e que L.
Dehio, o último representante da escola histórica
rankiana, desenvolveu, ainda que de forma incompleta,
é o nexo entre a crise do Estado nacional e o
nazifascismo. Ele mostrou que o Estado nacional,
embora tendo-se tornado um espaço muito estreito para
consentir a expansão da produção, tinha que prover à
própria defesa num clima de forte tensão internacional
e, por conseqüência, tinha que procurar, através do
protecionismo, a própria auto-suficiência econômica e
o enfraquecimento dos vizinhos. O nazifascismo,
portanto, representou no plano econômico social a
resposta autárquica e corporativa à estagnação
econômica, ao empobrecimento das massas populares
e pequeno-burguesas e à exasperação da luta de classe
e, no plano político, a resposta imperialista a um
equilíbrio europeu já insustentável. Enfim, foi a
tentativa extrema do Estado nacional de sobreviver
num mundo cujo futuro estava já nas mãos dos Estados
de dimensões continentais, levando até às últimas
conseqüências a lógica totalitária da compressão de
todas as forças produtivas dentro dos próprios confins
e da mobilização de todos os recursos sociais a serviço
da política de poder.
478
FEDERALISMO
No período entre as guerras mundiais o
Federalismo foi empregado pelos representantes do
movimento federalista inglês (Federal Union) para
explicar a crise do Estado nacional. Lord Lothian
focalizou o ensinamento kantiano sobre a natureza da
guerra e da paz, aplicando-o ao mundo contemporâneo,
identificou na anarquia internacional a causa da
guerra e indicou como remédio para ela as instituições
federais. Ao mesmo tempo a anarquia internacional é
definida como o principal obstáculo para a plena
afirmação do liberalismo (L. Robbins) e do socialismo
(B. Wootton). Em substância, o princípio implícito em
todos estes autores e que será enunciado por A.
Spinelli e E. Rossi durante a Resistência, no Manifesto
de Ventotene, é que a linha divisória entre
conservação e progresso coincide hoje com a
existente entre Estado nacional e Federação européia.
Após a Segunda Guerra Mundial as nações
européias esgotaram seu papel histórico e foram
reduzidas a elementos subordinados de um sistema
mundial formado por potências continentais (a norteamericana, a soviética e a chinesa), cuja ordem de
grandeza faz com que tenham um regime político mais
complexo do que o dos Estados unitários e diferenças
sociais mais ou menos marcantes de base territorial.
Tudo isto são sinais que indicam que a fórmula do
Estado nacional está historicamente superada e que os
Estados europeus só poderão recuperar sua
independência unificando-se. E é possível até prever
que a união das nações históricas da Europa não
poderá ser senão de tipo federal. De outro lado, quer a
formação de movimentos federalistas organizados
durante a Resistência e o seu desenvolvimento também
depois da guerra, quer o grau avançado de unificação
européia, parecem indicar que o Federalismo pode ter
uma realização prática na Europa.
Na realidade, com a eleição do Parlamento europeu
por meio do sufrágio universal, a Comunidade
Européia deu um primeiro passo para se transformar
numa federação. Na verdade, historicamente, não se
conhecem exemplos de confederações com assembléia
eleita por sufrágio universal: todas as uniões de
Estados que se fundam no voto são federações.
Certamente, a Comunidade após a eleição é uma
federação em estado embrionário, mas ainda sem
alguns poderes (moeda, exército, etc). Mas a partir da
eleição européia, o processo de unificação se move
hoje em terreno constitucional, na medida em que o
voto constitui o principal direito constitucional.
Contudo, nesta última fase da crise do Estado
nacional, a da integração européia, o Federalismo
conseguiu chegar às portas de uma visão global da
sociedade, capaz de dominar teórica e
praticamente aquela que M. Albertini chamou a fase
supranacional do curso da história, que hoje se
manifesta no processo de unificação da Europa, mas
que, em perspectiva, tende a unificar o gênero
humano.
III. O ASPECTO DE VALOR. — A primeira formulação
de alguns elementos essenciais da teoria federalista,
entendida como doutrina social global, se encontra no
início da era do nacionalismo nos escritos políticos,
jurídicos e filosófico-históricos de Kant. O que
caracteriza seu pensamento não é ainda a negação do
Estado nacional, mas a negação da guerra e da
anarquia internacional, denunciadas como os fatores
fundamentais que mutilam o homem e impedem seu
livre desenvolvimento. O projeto kantiano de paz
perpétua se distingue profundamente daqueles que o
precederam, porque não é concebido como uma
proposta a ser apresentada aos Governos e diplomatas
para atingir um melhor equilíbrio. De um lado,
contestando que o direito internacional e equilíbrio
entre as potências sejam instrumentos eficazes para
garantir a paz, formula um juízo que a história de
divisões e de guerras da Europa das nações teria
confirmado. De outro lado, afirmando que somente o
Federalismo permite estabelecer a paz, define este
valor em termos radicalmente novos, como expressão
da exigência de unificar os povos, que entraram na
cena da história com a Revolução Francesa, criando
um governo supranacional.
Sendo que a nível internacional, diversamente do
que acontece no interior dos Estados, a potência não é
monopolizada por um centro de poder que ofereça a
todos uma garantia legal, mas está difundida, cada
Estado terá que ficar permanentemente armado,
pressupondo sempre ter de fazer justiça por sua conta.
Portanto, segundo Kant, as relações internacionais
pertencem ainda ao plano pré-jurídico do Estado de
natureza. Nem o direito internacional, ao qual as
modernas organizações internacionais, como a S.D.N.
e a ONU, não sendo dotadas de poder próprio, se
devem adequar, é um instrumento eficaz para eliminar
a guerra, na medida em que não limita a soberania
absoluta dos Estados e não atinge o princípio da
autotutela de seus direitos. Portanto, a guerra "mesmo
que com êxito e vitoriosa", escreve Kant, "não decide
a questão de direito".
Coerentemente com estas premissas, Kant define a
paz como "o fim de toda hostilidade" e não
simplesmente como a supressão das hostilidades, que
se estabelece no intervalo entre duas guerras. A paz
não é uma situação que existe no Estado de natureza,
mas deve ser construída e garantida por um
ordenamento jurídico
FEDERALISMO
sustentado por um aparelho coercitivo acima dos
Estados. Definindo a paz como situação em que a
guerra é impossível, Kant identificou rigorosamente a
discriminante que separa a paz da guerra e colocou a
trégua (isto é, a situação na qual, embora não existam
hostilidades declaradas, permanece a ameaça de que
elas se possam produzir) no lado da guerra.
Para Kant a condição fundamental da paz é então o
direito, ou melhor, a extensão do direito a todas as
relações sociais, de modo particular ao campo das
relações entre os Estados. Somente no âmbito de uma
federação universal de povos livres o direito
internacional se tornará uma realidade jurídica
completa, isto é, fundada no poder capaz de regular as
relações entre os Estados e de impedir os homens,
isolados ou em grupo, de recorrer à violência para
resolver seus conflitos. Dessa forma, a idéia de uma
federação mundial, capaz de remover a guerra e
garantir a paz perpétua, representa o coroamento da
doutrina kantiana do direito e da política.
Mas, segundo Kant, para atingir o objetivo da paz
perpétua, os Estados que participarem da federação
mundial deverão ser dirigidos por uma constituição
republicana, a única forma de Governo que garante a
liberdade e a igualdade dos cidadãos. Ela, de fato, de
um lado, limitando a liberdade de cada um, torna
possível a coexistência pacífica dos indivíduos
segundo uma lei universalmente válida, e, de outro
lado, permite aos homens obedecerem somente às leis
que ajudaram a elaborar. Nestas condições é possível
instaurar relações efetivamente pacíficas entre os
indivíduos, a que hoje chamamos paz social.
Porém esse regime político não poderá atingir sua
perfeição, enquanto não se crie "uma relação externa
entre os Estados regulada por leis". A situação na qual
a guerra é sempre possível marca profundamente tanto
a estrutura social quanto a própria condição humana.
Hamilton ilustrou os efeitos que os conflitos
internacionais determinam na estrutura dos Estados e
Kant as conseqüências de tais conflitos sobre a
condição humana. Sob a pressão da anarquia
internacional os recursos materiais e ideais da
sociedade são orientados em grande parte para os
preparativos militares e os indivíduos são inseridos em
estruturas políticas autoritárias, as mais eficazes para
garantir a independência do Estado na arena política
internacional. Segue-se que as exigências de segurança
e de potência do Estado tendem fatalmente a
prevalecer sobre as exigências de liberdade dos
indivíduos e de autonomia das comunidades em que
eles vivem, transformando os próprios homens em
instrumentos de política do Estado, derrubando dessa
forma a relação entre
479
meios e fins afirmada pela religião cristã e pelo
pensamento político liberal, democrático e socialista.
De fato, cada Estado fundamenta sua autonomia no
exército e no poder de obrigar os cidadãos a matar e
morrer pela pátria. E tal poder pode ser legitimado
somente com a condição de que o Estado mistifique na
consciência dos indivíduos as características universais
dos valores cristãos, liberais, democráticos e
socialistas e exija dos cidadãos uma fidelidade
exclusiva, com a conseqüência de sacrificar e
subordinar a lealdade para com a humanidade à
lealdade para com a pátria. Por este motivo Kant
qualifica a guerra como "o maior obstáculo contra a
moralidade, a eterna inimiga do progresso". De fato, a
necessidade objetiva para todos os indivíduos de
adaptar a sua conduta a uma estrutura social moldada
nas necessidades autoritárias e belicosas do Estado e a
sua consciência à ética da luta que essa estrutura
produz determina um desenvolvimento limitado e
unilateral de suas capacidades criativas e obstaculiza
seu progresso moral.
Tudo isto não é algo de inevitável, pelo contrário,
trata-se da direta conseqüência do modo irracional em
que está organizado o gênero humano, de sua divisão
política, do estado de anarquia no qual está afundado.
Realizada em toda a parte a liberdade e a igualdade
entre os Estados republicanos e a paz através da
federação mundial, tanto a forma das relações sociais,
quanto as motivações da vida individual sofrerão
segundo Kant, uma mudança radical. Adquirido o
poder de canalizar, dentro dos limites do direito, todos
os comportamentos sociais, se quebraria o ciclo da
razão de Estado, das relações da força na política
internacional, da guerra e acabaria a legitimação da
violência do homem sobre o homem decorrente da
guerra e da ameaça permanente da guerra. Somente
neste estádio da sua história a sociedade adquiriria o
poder de estabelecer um controle racional sobre a
própria atividade e sobre as próprias mudanças, os
homens poderiam realizar plenamente sua natureza
racional e sua conduta poderia conformar-se
inteiramente ao princípio da autonomia do querer.
Trata-se de uma radical transformação das relações
entre o indivíduo e a sociedade, que marca o
atingimento da condição indispensável para a extinção
do Estado, para a tendencial dissolução do poder na
sociedade e para realizar o kantiano "reino dos fins",
no qual será possível tratar os homens como fins em
todas as relações sociais.
Kant é, então, o primeiro grande pensador
federalista e a sua contribuição teórica consiste em ter
fundado o Federalismo numa visão autônoma dos
valores e do curso histórico. Todavia, não tendo
refletido sobre a natureza da inovação
480
FEDERALISMO
constitucional que permitira a fundação dos Estados
Unidos da América, não conhecia o funcionamento do
Estado federal e, portanto, não possuía os
instrumentos conceptuais para conceber, de uma
forma real, a possibilidade de um Governo democrático
mundial capaz de limitar a soberania absoluta dos
Estados, mas que também por eles fosse limitado.
Prisioneiro da teoria unitária do Estado, temia que a
federação mundial pudesse degenerar em tirania. Por
isso, todas as vezes que abordou o problema do poder
político mundial foi induzido a optar pelo seu
"sucedâneo" negativo, isto é, uma confederação de
Estados, que, mantendo a soberania absoluta de seus
membros, perpetuaria a anarquia internacional, que o
Governo mundial teria que eliminar. Apesar desta
contradição, ele concebeu corretamente a ordem
pacífica mundial como um poder político e um
ordenamento jurídico acima dos Estados, concepção
que lhe permitiu dar uma definição rigorosa da paz e
fazer uma crítica do direito internacional
permanentemente válida.
Mas é preciso mencionar um outro limite da teoria
política e da concepção filosófico-histórica de Kant
embora
aqui
não
seja
possível
tratá-lo
convenientemente. O ter definido a paz como a
condição essencial da emancipação humana, o ter
reconhecido o fundamento da paz no direito e o ter
atribuído ao direito, na sua forma perfeitamente justa,
a tarefa de instituir um regime republicano, isto é,
capaz de garantir a liberdade e a igualdade política,
não é suficiente para esgotar o complexo dos fatores
que tornam possível a libertação do homem do
domínio e da opressão. De fato, o domínio do homem
sobre o homem não depende somente das estruturas
do Estado, pelo fato de que se foram modelando sob a
pressão das exigências defensivas e ofensivas, mas,
como foi esclarecido pelo materialismo histórico,
também das estruturas de produção, as quais
determinam, em última instância, as estruturas
políticas, ainda que estas últimas mantenham uma
relativa autonomia.
Segue-se daí que, por um lado, existe uma ulterior
condição, posta em claro por Marx e Proudhon, sem a
qual a paz não pode ter um fundamento estável: a
superação da exploração de classe. Portanto, a
realização da liberdade e da igualdade no plano
político é uma premissa necessária, mas não
suficiente, da emancipação humana, porque esses
valores, para serem realizados plenamente, exigem um
fundamento econômico-social, que somente a justiça
social, através do controle democrático da produção,
pode garantir. Além disso, a atuação completa da
justiça social não é concebível sem uma planificação
democrática mundial, único instrumento capaz de
quebrar
o ciclo do imperialismo, do subdesenvolvimento e da
desigual distribuição da riqueza no mundo.
As energias humanas assim libertadas poderão ser
orientadas para o livre governo das "comunidades'' nas
quais se desenvolverá a vida humana, se tornarão
pensáveis relações humanas em que o "livre
desenvolvimento de cada um seja a condição do livre
desenvolvimento de todos'" e também a propriedade
privada poderá ser abolida. Porém, este processo, que
Marx e Proudhon pressentiram em termos abstratos,
não poderá produzir seus efeitos se não for
acompanhado pela unificação política do gênero
humano, cujas condições histórico-sociais, Kant não
tinha tomado em consideração ao término do processo
de integração social que vai ampliando a
interdependência material dos homens além das
fronteiras dos Estados e vai formando indivíduos que
desenvolvem suas relações num plano universal,
criando, dessa forma, as bases sociais do
cosmopolitismo.
Deste modo o conceito de comunidade, que foi
sempre um componente fundamental dos objetivos
revolucionários e de emancipação da história da
humanidade, pode ser formulado de uma forma mais
clara na teoria do Federalismo, que lhe determina um
critério indispensável de cogitabilidade e uma
condição necessária de realização: a federação
mundial se resume assim num Governo cosmopolita
de livres comunidades desarmadas. A imagem da
humanidade integralmente desenvolvida na forma de
associação federalista se configura, então, como
repartida numa pluralidade de livres comunidades e
unida num todo cosmopolita, fórmula que oferece os
critérios essenciais para imaginar a riqueza e a
complexidade das relações sociais num mundo
libertado da divisão em classes e nações.
IV. O ASPECTO DE ESTRUTURA. — Analisando a
Constituição dos Estados Unidos da América — o
primeiro exemplo de pacto federal entre Estados
soberanos e, ao mesmo tempo, a experiência
constitucional mais importante, embora parcialmente
desenvolvida, na história das instituições federais — é
forçoso concluir que ela introduz um novo
instrumento político, cuja finalidade universal é a paz
perpétua. Os ensaios do Federalist, que Hamilton
publicou entre 1787 e 1788, em colaboração com Jay e
Madison, para sustentar a ratificação da Constituição
federal americana, nos oferecem a primeira e uma das
mais completas formulações da teoria do Estado
federal. Mas não existe nesta obra, nem nas outras
contemporâneas de assuntos análogos, de acordo com
o caráter pragmático da cultura anglo-saxônica,
nenhuma consideração sobre o sentido global deste
instrumento institucional. Ele foi
FEDERALISMO
apresentado mais como um meio para resolver os
problemas políticos dos americanos do que como
modelo de Governo para a sociedade das nações.
O princípio constitucional no qual se baseia o
Estado federal é a pluralidade de centros de poder
soberanos coordenados entre eles, de modo tal que ao
Governo federal, que tem competência sobre o inteiro
território da federação, seja conferida uma quantidade
mínima de poderes, indispensável para garantir a
unidade política e econômica, e aos Estados federais,
que têm competência cada um sobre o próprio
território, sejam assinalados os demais poderes. A
atribuição ao Governo federal do monopólio das
competências relativas à política externa e militar
permite eliminar fronteiras militares entre os Estados,
de modo que as relações entre os Estados perdem o
caráter violento e adquirem um caráter jurídico e
todos os conflitos podem ser resolvidos perante um
tribunal. A transferência para os órgãos federais de
algumas competências no campo econômico tem por
objetivo eliminar os obstáculos de natureza
alfandegária e monetária, que impedem a unificação
do mercado, e atribuir ao Governo federal uma
capacidade autônoma de decisão no setor da política
econômica. A conseqüência desta distribuição de
competências entre uma pluralidade de centros de
poder independentes e coordenados (esta fórmula é de
Wheare) é que cada parte do território e cada
indivíduo estão submetidos a dois centros de poder:
ao Governo federal e ao de um Estado federado, sem
que por isso seja prejudicado o princípio da unicidade
de decisão sobre cada problema.
Portanto o Governo federal, diferentemente do
Estado nacional, que visa tornar homogêneas todas as
comunidades naturais que existem no seu território,
procurando impor a todos os cidadãos a mesma língua
e os mesmos costumes, é fortemente limitado, porque
os Estados federados dispõem de poderes suficientes
para se governar autonomamente. Dessa forma, as
instituições típicas de centralização estatal (os
exércitos permanentes fundados na conscrição
obrigatória, a escola de Estado, os grandes ritos
públicos, a imposição a todas as coletividades
territoriais menores do mesmo sistema administrativo
e da tutela prefeitoral) são desconhecidas e, de
qualquer forma, nunca se enraizaram profundamente
nos Estados de regime federal ou fortemente
descentralizados.
As estruturas federais, não comportando a
atribuição da competência escolar ao Governo central,
que ao mesmo tempo controla o exército, fogem da
lógica tendencialmente totalitária do Estado
481
nacional, que emprega seu poder para fazer de seus
cidadãos bons soldados.
Sendo que o modelo federal exerce uma verdadeira
divisão de poder soberano de base territorial, o
equilíbrio constitucional não pode se manter sem a
primazia da Constituição em todos os poderes. Com
efeito, a autonomia desse modelo se traduz no fato de
que o poder de decidir concretamente, em caso de
conflito, quais sejam os limites que as duas ordens de
poderes soberanos não podem ultrapassar, não pertence
nem ao poder central (como acontece no Estado
unitário, onde as coletividades territoriais menores
usufruem de uma autonomia delegada) nem aos
Estados federados (como acontece no sistema
confederativo, que não limita a soberania absoluta dos
Estados). Esse poder pertence a uma autoridade
neutral, os tribunais, aos quais é conferido o poder de
revisão constitucional das leis. Eles baseiam sua
autonomia no equilíbrio entre o poder central e os
poderes periféricos e podem desempenhar eficazmente
suas funções com a condição de que nenhuma das duas
ordens de poderes conflitantes prevaleça de modo
decisivo. Para dar força às decisões judiciárias
provêem ora os Estados federados, ora o Governo
central, que as sustentam todas as vezes que
convergem com os respectivos interesses. Portanto,
somente em virtude das próprias decisões o poder
judiciário é capaz de restabelecer o equilíbrio entre os
poderes, definido pela Constituição.
Por outra parte, a eleição direta do presidente da
federação, que reúne os poderes de chefe do Estado e
chefe do Governo, confere ao executivo os requisitos
de força e de estabilidade, necessários para
desempenhar eficazmente a função equilibradora da
vida social e atuar, de forma orgânica e coerente, no
programa do Governo (hoje o planejamento),
enquanto a atribuição de poderes soberanos aos
Estados-membros constitui o freio mais eficaz contra
o abuso de poderes por parte do Governo central e a
mais sólida garantia contra os perigos da ditadura. E
este equilíbrio constitucional, que permite conciliar o
princípio da unidade da comunidade política com o da
autonomia das suas partes, se reflete na composição
do poder legislativo, uma parte do qual representa o
povo da federação em medida proporcional ao número
dos eleitores, enquanto a outra parte é eleita pelos
povos de cada um dos Estados-membros com um
número igual de representantes, independentemente
das diferenças de população.
A distribuição do poder de base territorial é, na
realidade, bem mais eficaz do que a de base funcional
para garantir o controle dividido do poder, a principal
garantia da liberdade política,
482
FEDERALISMO
na medida em que, quer o Governo federal quer os
Estados-membros, podem fundamentar a própria
independência numa distinta base social. Hamilton, de
fato, afirmou que o regime federal permite "ampliar a
área do Governo popular". Com efeito, enquanto a
democracia direta permite realizar a liberdade política
na cidade-Estado, e a democracia representativa e a
divisão formal do poder entre legislativo, executivo e
judiciário permitem realizar a liberdade política no
Estado
nacional,
o
Governo
democrático
supranacional, e- a divisão substancial do poder entre
Governo federal e Estados federados (também eles de
base democrática) permitem unificar diversas
comunidades nacionais e realizar a participação
política numa ilimitada extensão territorial até
abranger o mundo inteiro e todo o gênero humano. Em
particular, a superação do princípio da indivisibilidade
da soberania, com a possibilidade de fazer coexistir na
mesma área constitucional duas ordens de poderes
soberanos, permite conciliar as vantagens da pequena
dimensão, na qual os indivíduos têm maior
possibilidade de participar diretamente e com
continuidade do processo de formação das decisões
políticas e onde o poder pode ser submetido a um
controle mais direto por parte do povo, de modo que
possa ser deixado um amplo espaço para o
autogoverno das comunidades locais, com as vantagens
da grande dimensão, exigida pelas condições modernas
da produção industrial e da técnica militar e necessária
para manter o desenvolvimento econômico e a
independência política.
No Estado centralizado não existe, pelo contrário,
nenhum centro autônomo de poder fora do Governo
central. A luta política se desenvolve num só quadro
institucional pela conquista de um só poder, que
controla através dos prefeitos todas as entidades locais
e que, de fato, é árbitro da Constituição. Proudhon foi
o primeiro a denunciar que a divisão dos poderes e o
sufrágio
popular,
que
deveriam
garantir
respectivamente a liberdade e a igualdade política,
numa estrutura estatal tão rígida se reduziriam a
fórmulas jurídicas vazias. Com efeito, nos Estados
unitários, onde a divisão dos poderes tem uma base
exclusivamente funcional, o legislativo e o executivo
tendem inevitavelmente a ser controlados pelas
mesmas forças políticas, com a conseqüência de que o
poder judiciário, o mais fraco dos três poderes, fica
reduzido de fato a um ramo da administração pública.
Dessa forma uma democracia que se manifesta
somente a nível nacional sem a base do autogoverno
local é uma democracia nominal, porque controla do
alto, sufocando-as, as comunidades, isto é, a vida
concreta dos homens. E se pode acrescentar que
também
o planejamento, se é decidido no centro sem uma
relação efetiva com o ambiente humano no qual estão
enraizadas as instituições locais e regionais e com as
exigências reais que elas exprimem, não somente é
autoritário, mas também é ineficaz, porque não se
baseia nas preocupações concretas dos homens.
A federação constitui, portanto, a realização mais
alta dos princípios do constitucionalismo. Com efeito,
a idéia do Estado de direito, o Estado que submete
todos os poderes à lei constitucional, parece que pode
encontrar sua plena realização somente quando, na
base de uma distribuição substancial das competências,
o executivo e o judiciário assumem as características e
as funções que têm no Estado federal.
V. O ASPECTO HISTÓRICO-SOCIAL. — A teoria
do Estado federal, assim como resulta dos ensaios de
Hamilton, não contém uma análise das condições
histórico-sociais que permitem às instituições federais
funcionar e se manter. Já que nenhuma instituição
política pode manter-se sem uma base social
correspondente e nenhum equilíbrio constitucional
pode durar sem o suporte de um equilíbrio social
correspondente (as instituições estabilizam certas
realidades sociais preexistentes, mas não podem criálas ex novo), é preciso levar a análise até a estrutura da
sociedade e procurar identificar as características
específicas da sociedade federal.
Numa federação a sociedade civil tem características
unitárias sob certos aspectos e pluralistas sob outros
aspectos. A população está unida numa sociedade das
mesmas dimensões da federação e está dividida numa
pluralidade de sociedades menores, com confins
territoriais bem definidos no âmbito da sociedade mais
vasta. Daí se segue que o comportamento social típico
dessa população tem um caráter bipolar; de um lado
há a lealdade para com a sociedade global comum a
toda população da federação, de outro lado, a lealdade
para com cada uma das comunidades menores,
diferenciada pela distribuição territorial da população.
E o que é singular é o fato de que o sentimento de
apego à união coexiste com o de apego a cada uma de
suas partes e nenhum deles prevalece sobre o outro,
como acontece num sentido no Estado nacional e no
sentido oposto numa confederação de Estados.
Com efeito, uma sociedade na qual a necessidade
de unidade, decorrente da necessidade de resolver de
forma unitária os problemas relativos à defesa e ao
desenvolvimento econômico, é tão forte que dá origem
a instituições políticas independentes mas limitadas, e a
necessidade de autonomia das comunidades
territoriais, diferenciadas
FEDERALISMO
do ponto de vista das tradições, dos costumes, das
instituições políticas e às vezes também da língua, é
tão forte que lhes permite sustentar Governos
independentes, pode funcionar somente com
instituições federais, instituições que permitem uma
divisão substancial do poder entre o povo federal e
cada um dos povos dos Estados federados.
Destas considerações resulta já claramente que o
comportamento social típico da sociedade federal é
compatível somente com uma situação na qual a luta
de classes e os conflitos de poder não permitem
perceber toda a sua influência sobre a sociedade. De
fato, de um lado, a luta de classes dividindo a
sociedade inteira no antagonismo entre burgueses e
proletários tende a fazer prevalecer o sentido de
pertença a uma das duas partes sociais em conflito
sobre qualquer outra solidariedade de grupo e impede
a instauração de fortes laços de solidariedade a nível de
coletividades locais, indispensáveis ao aparecimento e
à persistência da bipolaridade social típica da sociedade
federal. De outro lado, a pressão dos conflitos de
poder determina o fortalecimento do poder central às
custas dos poderes locais, necessário para uma rápida
mobilização da sociedade em caso de guerra.
Rompendo o equilíbrio político interno entre o centro
e a periferia, essa pressão favorece a afirmação do
nacionalismo e do monismo social às custas da
lealdade para com as coletividades locais e do
pluralismo social.
Portanto, as experiências federalistas se têm
desenvolvido naqueles Estados aos quais o sistema
mundial das potências atribui um papel neutral (Suíça)
ou isolacionista (Estados Unidos), que os mantinha
resguardados dos efeitos centralizadores dos conflitos
internacionais. De outra parte se manifestaram em
regiões onde a ameaça de fortes tensões sociais tem
sido contida pela possibilidade oferecida aos oprimidos
e aos insatisfeitos de colonizar imensos espaços livres
(e de fato o Federalismo nos Estados Unidos, no
Canadá e na Austrália tem muitos aspectos em comum
com o colonialismo) ou no pequeno Estado, como a
Suíça, onde os problemas de Governos têm mais
caráter administrativo do que político, isto é, em
situações nas quais a luta de classe não assumiu
formas tão radicais que impeçam a formação de uma
certa solidariedade no interior das comunidades de
base.
Apesar destas circunstâncias favoráveis, o
Federalismo até agora se apresentou, em toda a parte,
de modo imperfeito e instável. De fato, onde a luta de
classe se apresenta em formas somente atenuadas, as
relações sociais comunitárias não se podem
desenvolver plenamente e, de outro lado, nas
sociedades onde o choque
483
entre as potências se faz sentir em formas somente
atenuadas, a lealdade para com o Governo central,
responsável pelas relações internacionais, tende a
prevalecer sobre a lealdade para com as comunidades
territoriais menores. Além disso, a crescente
interdependência de todos os Estados do mundo
eliminou já o privilégio das ilhas políticas, que
favoreceu o desenvolvimento do Federalismo à
margem do cenário principal da história. Nesta fase
histórica é hoje concebível uma só ilha, a formada por
todos os Estados do mundo unidos e desarmados numa
federação, que generalizaria, aperfeiçoando-a, a
situação insular. Pode-se, portanto, concluir que o
regime federal está destinado a degenerar, se ficar
confinado num só Estado (como demonstra a crescente
centralização do poder nos Estados Unidos após a
Primeira Guerra Mundial e, sobretudo, após a
Segunda) e que se pode realizar de modo perfeito
somente se assumir dimensões mundiais.
Esta lei de desenvolvimento das instituições
federais se manifestou, embora parcialmente, numa
atitude particular da sociedade federal para com as
sociedades vizinhas. Enquanto a organização fechada,
rígida e monolítica do Estado nacional se traduz numa
política hostil e belicosa para com os Estados
confinantes, a estrutura aberta, flexível e pluralista das
federações permite associar os vizinhos ao primeiro
núcleo federal, embora continuando estes últimos a
manter uma larga autonomia. A abertura da sociedade
federal ao mundo, atuante enquanto a pressão das
relações de potência não impõe o fechamento e a
centralização, representa, pois, uma autêntica
alternativa à soberania absoluta dos Estados e à
violência nas relações internacionais. Em substância,
pode-se afirmar que a dialética da unidade na
pluralidade, que anima a sociedade federal, só atinge
sua forma final quando seus pólos são a sociedade
federal mundial e as comunidades.
A análise do aspecto histórico-social e do
institucional
permite,
portanto,
identificar
respectivamente as condições históricas e os
instrumentos práticos que tornam possível realizar os
fins pacíficos, cosmopolitas e comunitários que Kant
atribui ao Federalismo.
VI. O PACIFISMO: DA UTOPIA À CIÊNCIA. —
Identificados os aspectos que definem o Federalismo,
que se apresenta como uma doutrina social de caráter
global, é mister colocá-lo em relação com as outras
ideologias. O Federalismo é a teoria política que, pela
primeira vez na história, põe o valor da paz como
objetivo específico de luta. E se distingue de todas as
expressões modernas de pensamento político e social,
que consideram a paz como uma conseqüência
automática e
484
FEDERALISMO
necessária da transformação das estruturas internas dos
Estados era sentido liberal, democrático e socialista e
lhe atribuem uma posição subordinada.
A divergência fundamental se refere, então, à
avaliação dos fenômenos da política internacional, da
paz e da guerra, Na teoria do Federalismo a política
de poder e as tendências belicosas que se formam nas
relações
internacionais
são
imputadas
substancialmente à anarquia internacional, isto é, à
pura e simples divisão do gênero humano em Estados
soberanos, em conseqüência da qual cada Estado,
independentemente do regime político e do sistema
produtivo, deve obedecer à lei da força para tutelar
sua autonomia. Isto não significa que seja negada uma
influência subordinada às estruturas internas. Tanto é
assim que Kant afirmou que a paz exige premissas de
valor liberais e democráticas, isto é, em substância, a
paz social, que, entretanto, como vimos, não poderá
realizar-se senão de um modo parcial e precário
dentro de cada Estado, se não for garantida por uma
ordem pacífica universal, fundada sobre um poder
superior aos Estados.
No horizonte teórico das outras ideologias a política
internacional é explicada através das mesmas
categorias da política interna e as tensões
internacionais assim como as guerras são imputadas
exclusivamente à natureza das estruturas internas dos
Estados. Os liberais, os democratas e os socialistas,
tendo-se l i mi t a d o a transformar as estruturas
internas do Estado, não somente não souberam
subordinar a política internacional, que ficou a área
das relações de força, às exigências que impuseram na
política interna, mas se submeteram a compromissos
com o imperialismo, a violência e os privilégios
sociais.
Como teoria do Governo supranacional, capaz de
controlar as relações entre os Estados, o Federalismo é
a teoria que permite conhecer de forma científica as
relações internacionais. Ele explica o processo
histórico no curso do qual se formou uma pluralidade
de Estados, identifica as forças reais que determinam
o antagonismo entre os Estados e as conseqüências
que se vêm a criar no interior deles, identificando
também os instrumentos necessários para a superação
da anarquia internacional. De um lado, esclarece como
o mesmo fator histórico-social, que representou a base
de formação dos Estados nacionais (a evolução do
modo de produção, que através da Revolução
Industrial unificou os comportamentos humanos nos
espaços de dimensões nacionais), os está destruindo,
porque estende a integração social além das barreiras
nacionais, destruindo as próprias bases de sua
autonomia e criando as dos Estados continentais e, em
perspectiva, as da unificação do gênero humano. De
outro lado, mostra como as relações entre os Estados
estão dominadas pela lei da força, enquanto um poder
comum não vem regulá-las, e como a luta entre os
Estados influencia a sua estrutura interna em sentido
autoritário.
Portanto, os valores democráticos, liberais e
socialistas estão inevitavelmente subordinados às
necessidades belicosas e autoritárias que a
sobrevivência do Estado na arena política internacional
alimenta. Daí segue-se que a subordinação da política
internacional a esses valores não depende tanto da
transformação da ordem interna dos Estados, quanto
especialmente da superação da anarquia internacional
através da criação de um Governo democrático
mundial. É, em definitiva, a ausência de uma teoria
adequada, capaz de conhecer e dominar a política
internacional, que explica a impotência das ideologias
tradicionais perante as guerras mundiais e a falência
dos princípios da colaboração pacífica entre os
Estados, da irmanação entre os povos e da
solidariedade internacional do proletariado, afirmados
em teoria, mas constantemente sacrificados, na prática,
aos egoísmos nacionais. Pode-se, então, concluir que o
pacifismo, quando, graças à teoria federalista, supera
os limites do internacionalismo, torna possível a
passagem da utopia à ciência.
VII. A UNIDADE EUROPEU. — A exigência da paz se
fez sentir, na forma mais aguda, na Europa, onde o
problema da coexistência entre os Estados assumiu
características bem diferentes das que se apresentaram
nos vastos espaços desabitados da ilha política norteamericana, que a história tinha resguardado das
trágicas conseqüências dos conflitos entre os Estados e
entre as classes. lá que nenhum dos membros daquela
federação tivera uma longa história como Estado
independente e soberano, a experiência federalista não
representou a superação de nações historicamente
consolidadas. Por outra parte o caráter atenuado que
assumiu a luta de classe não deve ser atribuído ao
sucesso do movimento socialista, que nunca foi capaz
de marcar o desenvolvimento histórico dos Estados
Unidos, mas é o resultado de circunstâncias históricas
favoráveis. Embora Hamilton se servisse do exemplo
do sistema europeu dos Estados, com a anarquia
internacional e o autoritarismo das suas instituições de
Governo, como termo de referência para ilustrar o que
se teria evitado escolhendo a federação em vez da
confederação, isto é, a unidade em vez da divisão, ele
concebeu a fundação dos Estados Unidos como um
meio para concretizar o isolacionismo e não tomou
consciência do fato de que as instituições federais
forneciam os instrumentos práticos para realizar a paz
universal.
FEDERALISMO
Por conseqüência o Federalismo americano não foi
uma experiência política autônoma, mas se apresentou
como um elemento subordinado ao liberalismo e à
democracia, como um instrumento institucional que,
tornando os Estados Unidos uma ilha política, teria
protegido as instituições democrático-liberais da
degeneração que infalivelmente sofrem por causa da
anarquia internacional.
Mas a Europa, onde o nacionalismo pôs em perigo
as próprias bases da convivência civil, foi o campo em
que a experiência federalista, embora condenada a não
ter por muito tempo resultados concretos, se
desenvolveu no sentido de uma visão global da
sociedade, que foi definida, como vimos, como
consciência teórico-prática do curso supranacional da
história. Examinamos as características essenciais
desta visão do curso da história.
Na primeira fase da Revolução Industrial o
desenvolvimento das forças produtivas desencadeou a
luta de classe, que em seguida se atenuou devido ao
reconhecimento dos principais direitos das classes
subalternas e sua integração na vida política dos
Estados nacionais. E na medida em que foram sendo
removidos os obstáculos mais graves que se opunham à
emancipação do proletariado como classe (direito de
voto, de associação, de greve, de salários superiores ao
nível de subsistência, redução do horário do trabalho,
controle parcial da programação, etc), embora a
exploração não tenha sido eliminada, a história põe na
pauta do dia a luta pela libertação do indivíduo através
da criação de relações sociais comunitárias, impossível
enquanto a sociedade inteira continuar dividida pelo
ódio de classe. Numa fase sucessiva, que se abriu na
Europa após a Segunda Guerra Mundial, os Estados
nacionalistas, destruídos como centros independentes
de poder e reduzidos à condição de satélites das duas
superpotências, não freando mais a evolução das forças
produtivas, deram início à integração européia,
processo em cujo curso a sociedade civil, junto com o
caráter exclusivamente nacional, adquire o europeu e
tende a se tornar uma sociedade federal. Trata-se da
manifestação mais avançada de uma nova fase
histórica de integração da atividade humana para além
das barreiras dos Estados, que tem dimensões
mundiais e que criará as condições sociais da
federação mundial.
O desenvolvimento técnico-produtivo, que
determina estes efeitos, transformando as condições
de vida de todo o gênero humano, apresenta também
fortes aspectos negativos. De um lado, as armas
nucleares abrem a possibilidade da
485
destruição física da humanidade; de outro lado, a
produção industrial ameaça destruir o meio ambiente
urbano e natural, que representa o habitat de toda a
atividade humana. Estas contradições dependem da
importância das instituições políticas herdadas do
passado para controlar as forças suscitadas pelo
progresso técnico. O problema tem natureza política e
o Federalismo parece fornecer o instrumento
institucional para realizar, de um lado, a paz e, de
outro lado, o controle das comunidades sobre o
desenvolvimento econômico e sobre a vida social.
Somente a superação das nações européias, a
expressão da mais profunda divisão política do gênero
humano e da mais forte centralização do poder que a
história moderna já conheceu, permitirá ao Federalismo
conseguir uma primeira realização significativa no
plano da história universal. Afirmando a ilegitimidade
do Estado nacional, que ainda hoje é considerado a
forma mais alta de organização da sociedade (como
demonstra a experiência dos países que saíram
recentemente da dominação colonial), a federação
européia se apresentará como uma formação política
pluralista e aberta a todo o gênero humano. A tensão
que a impulsionará fará surgir os valores que
qualificam o Federalismo: o cosmopolitismo, que
permitirá aos homens tomarem consciência de pertencer
à humanidade e não apenas às nações, e o
comunitarismo, isto é, a aspiração dos homens a
fixarem-se em comunidades, a participarem ativamente
do Governo local e a afirmarem sua autonomia.
Mas a federação européia será um Estado entre os
Estados. Terá que defender a própria independência
com as armas, e a lógica de poder das relações
internacionais a obrigará a fechar-se em si mesma. Por
outra parte o desenvolvimento insuficiente das forças
produtivas e a pressão centralizadora das relações de
poder impedirão superar a divisão social do trabalho e,
portanto, o domínio e a exploração. Mesmo que a
federação européia contribua para a realização de um
equilíbrio internacional mais pacífico e uma ordem
social mais livre na medida em que concorrer para
formar um equilíbrio mundial mais flexível, de tipo
policêntrico, e destruir o Estado nacional com seu
autoritarismo e sua impotência perante os problemas
fundamentais de política externa e econômica (que já
têm dimensões européias), a negação do Estado
nacional que realizará será completamente inadequada
em relação aos valores sobre os quais terá que basear
sua legitimidade. Apesar destas limitações, a federação
européia, superando pela primeira vez nações
historicamente consolidadas, assumirá o significado da
486
FELICIDADE PÚBLICA
negação da divisão política do gênero humano e abrirá
o caminho para a luta pela realização plena dessa
negação através da federação mundial.
BIBLIOGRAFIA. - M. ALBERTINI, LO Stato nazionale. Giuffrè,
Milano 1960; Id.. Il Federalismo. Antologia e definizione. Il
Mulino. Bologna 1979: Studi su federalismo, ao cuidado de R. R.
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EINAUDI. La guerra e l'unità europea. Comunità. Milano 1948;
C. FRANTZ, Der Föderalismus als das leitende Prinzip für die
soziale staatliche und internationale Organisation. Scientia Verlag
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Torino 1944; A. SPINELLI e E. Rossi. Problemi della Federazione
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europea. Roma 1944: K. C. WHEARE. Del governo federale
(1945). Comunità, Milano 1949. B. WOOTTON, Socialismo e
federazione (1940). in AUT. VÁR.. Federazione europea. La
Nuova Italia. Firenze 1948.
[LUCIO LEVI]
Federalismo Europeu. — v. Federalismo: Unificação
Européia.
Felicidade Pública.
É o valor mais invocado pela ética utilitarista,
definido classicamente por J. Bentham como "a maior
felicidade para a maioria" (v. UTILITARISMO).
Feminismo.
I. DEFINIÇÃO. — Com este termo, indica-se um
movimento e um conjunto de teorias que têm em vista
a libertação da mulher. Esse movimento nasceu nos
Estados Unidos, na segunda metade da década de 60,
e se desenvolveu rapidamente por todos os países
industrialmente avançados, entre os anos 1968 e 1977.
O termo libertação é entendido como contraposto
ao conceito de emancipação dos movimentos do
século XIX, de que o Feminismo contemporâneo
constitui a fase extrema e, ao mesmo tempo, a
superação. A luta pela emancipação consistia na
exigência da igualdade (jurídica, política e econômica)
com o homem, mas mantinha-se na esfera dos valores
masculinos, implicitamente reconhecidos e aceitos.
Com o conceito de libertação, prescinde-se da
"igualdade" para afirmar a "diferença" da mulher,
entendida
não
como
desigualdade
ou
complementaridade, mas como assunção histórica da
própria alteridade e busca de valores novos para uma
completa transformação da sociedade.
O ponto fundamental da doutrina feminista, muito
variada e articulada sobre cada um dos problemas e
soluções propostos, é de que existe uma peculiar
opressão de todas as mulheres. Esta opressão, que se
manifesta tanto a nível das estruturas como a nível das
superestruturas, assume formas diversas nas várias
classes. Além disso, não se pode resolver, nem com
melhorias jurídicas na sociedade liberal, nem com uma
revolução econômica, a despeito das previsões
formuladas pelos socialistas, de Marx e Engels a Bebei e
Clara Zetkin. O exemplo da URSS, onde, após algumas
medidas revolucionárias, voltou-se gradativamente a
uma concepção pequeno-burguesa da família,
demonstra, com efeito, que não basta abolir a
propriedade privada e introduzir a mulher no mundo
da produção, mas que é preciso, além disso, mudar o
próprio modo de produzir, toda a superestrutura
psicológica e cultural, e que é às mulheres que cabe
gerir diretamente o seu poder.
Em seu significado mais amplo, o Feminismo, como
denúncia da opressão da mulher, como recusa do
conceito de desigualdade natural e, portanto, de
inferioridade, como visão conflituosa da relação entre
os sexos e como reivindicação de igualdade, revelouse, no decorrer dos tempos, de formas variadas, todas
elas estreitamente dependentes da sociedade onde
tiveram origem e da condição histórica das mulheres.
II. O FEMINISMO NA CONTRA-REFORMA. —
Conquanto o debate sobre o problema feminino ocorra
sempre a diversos níveis, uma vez que a mulher se
acha integrada nas estruturas fundamentais da
sociedade, é possível, contudo, individualizar alguns
dos temas mais importantes. No clima misógino da
Contra-Reforma, as reivindicações feministas deveram
partir do princípio da inferioridade da mulher, a que se
contrapunha com freqüência, segundo o esquema da
obra do humanista Cornélio Agrippa (De nobilitate et
FEMINISMO
praecellentia foeminei sexus, 1529), o princípio da sua
superioridade.
Na primeira metade do século XVII, na Itália, três
estudiosas venezianas apresentam, com extraordinário
vigor e eficácia, o problema da condição feminina no
seu tempo. Lucrécia Marinelli, em La nobilità e
1'eccelenza delle dorme (Ciotti, Venezia, 1601),
defende a igualdade fundamental dos dois sexos e
descobre nas teorias aristotélicas, segundo as quais o
papel social é determinado por diferenças qualitativas
naturais, a origem de um certo antifeminismo cultural.
Questionando a historiografia masculina, que não
levava em conta as "belas obras e egrégias ações das
mulheres" (p. 34), L. Marinelli quer dar novo e maior
valor às chamadas "mulheres ilustres" e, por
conseguinte, à contribuição que tantas mulheres de
ciência, filósofas e guerreiras, malgrado as proibições
formais e as dificuldades materiais, deram à história da
civilização, que não pode ser senão uma história
comum. Merito delle donne (Imberti, Venezia, 1600),
de Moderata Fonte, reflete, ao invés, a situação da
dona de casa do seu tempo. Longe da presença
masculina, num diálogo amiúde cheio de poesia, um
grupo de mulheres medita sobre a sua vida e sobre o
próprio destino. Estas amigas criticam uma condição
de vida insuportável ("como animais encurralados
entre
paredes"),
expressando
a
desilusão
experimentada no matrimônio, com que, em vez da
suspirada liberdade, haviam conseguido "um odioso
guardião" (p. 27). Sem instrução, sem meios
econômicos, a mulher se sentia em poder do homem,
pai, marido ou irmão, senhores da sua vida, únicos
árbitros capazes de decidir se havia de ser entregue em
casamento ou findar sua vida "servindo aos sobrinhos"
(p. 23).
Um caso verdadeiramente particular e único é o da
figura e escritos de Arcângela Tarabotti. Obrigada pelo
pai, aos dezesseis anos, a entrar, em 1620, no convento
das beneditinas de Santa Ana, A. Tarabotti ali passou a
existência, com grandes sofrimentos, vindo a morrer
em 1652. Nesses trinta e dois anos, em suas obras e
nas cartas escritas do "cárcere feminino", como
chamava o convento, Tarabotti, privada como estava
de esquemas culturais e de referências eruditas, teima
numa original denúncia da condição de inferioridade da
mulher. Nas suas obras, Antisatira, Difesa delle donne
contro Horatio Plata, até a mais importante, Semplicità
ingannata ou La tirannia paterna (Sambix, Leida,
1654), A. Tarabotti denuncia os falsos moralismos
masculinos, a falta de liberdade feminina, a violência
sofrida quando, ainda muito jovem, colhida com a
pena na mão, foi obrigada a voltar à "agulha e à roca".
Ligada aos ambientes libertinos, faz crítica a
487
certos formalismos religiosos, chegando mesmo a
conceber uma espécie de religião punitiva para os
homens, condenados a expiar no além, num imenso
círculo dantesco, todos os erros e enganos cometidos
contra o sexo feminino.
Em suas obras, A. Tarabotti antecipa alguns
motivos racionalistas que encontrarão expressão mais
cabal no racionalismo cartesiano e na obra de Poullain
de la Barre, De 1'égalité des sexes (1673), onde se
desenvolve o tema cartesiano da luta contra o
preconceito, incluído o mais velho dos preconceitos, o
da superioridade do sexo masculino.
III. DO LIBERTINISMO AO ILUMINISMO. — A
difusão do iluminismo e, portanto, da confiança na
capacidade de melhorar o homem e os efeitos positivos
da cultura veio favorecer, no século XVIII, a discussão
sobre a instrução da mulher.
Pelo que respeita ao iluminismo francês, seus
principais intérpretes, de Montesquieu a Diderot,
mantiveram, em geral, quanto ao problema da mulher,
atitudes ambíguas e incertas; em todo caso, sustentam
Albistour e Armogathe, não é no artigo "Femme" que
se há de buscar o caráter revolucionário da
Encyclopédie. No Émile, Rousseau traçou o retrato de
Sophie, cuja educação tinha como fim agradar ao
homem, mesmo que, quem defende um Rousseau mais
aberto, aluda à Julie da Nouvelle Heloise. Contudo, em
geral, o pensamento iluminista acerca da mulher está
ligado ao estudo da sua "natureza" e fechado, por
conseguinte, a toda possibilidade de conhecimento
histórico.
Na Itália, o problema posto em 1723 pela
Accademia de' Ricovrati di Padova — "Se as mulheres
deveriam ser admitidas ao estudo das ciências e das
artes nobres" — gerou uma longa polêmica sobre a
"utilidade" da instrução feminina, onde intervieram
Aretafila Savini de' Rossi e Diamante Medaglia Faini,
que se declararam claramente favoráveis. A par desta
tendência, se bem que com numerosas limitações, de
abrir às mulheres o acesso ao saber, existe a tentativa
correspondente de pôr as ciências ao seu alcance. Com
a obra de F. Algarotti, Il newtonianismo per le dame
(Napoli, s.e., 1737), inicia-se uma série de obras de
divulgação, referentes a matemática, botânica, física e
economia doméstica. Há também nesta literatura, não
isenta de um certo narcisismo, um desejo de comunicar
nada desconhecido, que é visto como um aspecto de
uma inclinação mais geral pelo primitivo, pelo
incontaminado. Na Europa, nos salões aristocráticos, a
mulher representa um pouco o "bom selvagem".
A Revolução Francesa assinala, para muitos
estudiosos, o início do Feminismo moderno. Em
488
FEMINISMO
1791, Olímpia de Gouges compôs a Déclaration des
droits de la femme et de la citoyenne (s.e., s.d.), onde
proclamava que a mulher possui, tanto corno o homem,
direitos naturais e que deve participar na formação das
leis, direta ou indiretamente pela eleição de
representantes. Esta obra incluía um projeto de
Contrato social entre os sexos e constitui a expressão
mais orgânica do Feminismo racionalista e democrático.
De Gouges foi guilhotinada em 1793 e, nesse mesmo
ano, a Convenção rejeitou a proposta da igualdade
política dos dois sexos, ignorando as corajosas teses
de Condorcet, que tinha defendido o direito das
mulheres au droit de cité.
Os limites desta revolução foram previstos por Mary
Wollstonecraft (Vindication of the rights of women,
1792), que auspiciava uma revolução no
comportamento das mulheres e a abolição de todas as
tiranias e de todos os privilégios, inclusive os do sexo.
Na Itália, a idéia dos "direitos" da mulher foi
defendida por Rosa Califronia com Breve difesa del
diritti della donna (1794).
IV. O FEMINISMO EMANCIPACIONISTA. — Na
segunda metade do século XIX, o Feminismo se
desenvolve como movimento de emancipação, tendente
a obter a igualdade jurídica (voto, instrução, profissões
liberais), estendendo-se da Inglaterra a todos os outros
países europeus.
Efetivamente, a situação da mulher contrastava com
os princípios de uma sociedade que se proclamava
liberal; por outro lado, o desenvolvimento industrial,
que reclamava a participação das mulheres e, com
freqüência, das crianças, veio mostrar a elasticidade de
conceitos e fórmulas como os da missão doméstica da
mulher. Conforme pôs de relevo J. Stuart Mill (On the
subjection of women, 1869), "a incapacidade das
mulheres era o único exemplo em que as leis marcam
um indivíduo desde o nascimento e decretam que ele
não será nunca, por toda a sua vida, autorizado a
concorrer a determinadas posições" (p. 40). As
interdições legais por via do sexo contrastavam com
os princípios da liberdade e da livre concorrência. Mill
retomava o princípio de Fourier, segundo o qual o
grau de elevação ou rebaixamento da mulher constitui
o critério mais seguro para avaliarmos a civilização de
um povo; propunha o fim da desigualdade dos direitos
na família, a admissão das mulheres a todas as
funções e ocupações, a participação nas eleições e uma
melhor instrução.
Na Itália, A. M. Mozzoni comandou, de 1864 a
1920, uma longa peleja pela inserção da questão
feminina em todos os problemas que a Itália pósunitária devia enfrentar (reforma do Código Civil,
reforma da lei eleitoral). De formação
iluminística, consciente do debate europeu sobre a
questão, as teses de Mozzoni adquirem destaque no
panorama de uma Itália cultural e economicamente
atrasada. A originalidade da sua posição se põe em
evidência já numa obra de 1864, La donna e i suoi
rapporti sociali, onde, unindo-se a César Beccaria,
criticava a concepção patriarcal, segundo a qual a
sociedade é antes formada pelos chefes de família do
que por um conjunto de indivíduos. A mulher devia
ser considerada em sua relação com a sociedade e não
apenas na família. Era necessário, portanto, dar à
mulher o direito ao voto, reformar o sistema educativo
e as relações no seio familiar, bem como oferecer-lhe
a possibilidade de trabalho e de acesso a todas as
profissões e empregos. Particularmente sensível aos
problemas da mulher trabalhadora, foi A. Kuliscioff
quem, com sua ação e seus escritos, manteve viva a
questão feminina no partido socialista italiano. A
elaboração socialista desta questão havia sido
formulada por Bebei em Il socialismo e la donna
(1889). Este autor aceitava o esquema de Engels da
transição da sociedade de uma fase matriarcal mítica e
feliz a uma fase patriarcal baseada na propriedade
privada. Assim, a emancipação da mulher estava
ligada, e de algum modo subordinada, à supressão da
propriedade privada.
Mozzoni opinava, em vez disso, que a opressão
feminina não era de natureza exclusivamente
econômica, temendo que, após qualquer revolução
social, a mulher viesse a se encontrar de novo
igualmente "pupila, interdita, excluída, subordinada,
acessória, tal como hoje" (A. M. Mozzoni, I socialisti
e l'emancipazione della donna, in La liberazione della
donna, ao cuidado de F. Pieroni Bortolotti, 1975). A
discrepância quanto ao modo diverso de entender as
exigências e as formas específicas da luta feminina, o
radical e o socialista, surgiu improvisadamente em
torno às leis de tutela, votadas em 1902. Defendidas
por Kuliscioff, foram, ao invés, criticadas por
Mozzoni, que receava que, em virtude de ser
"tutelado", o trabalho feminino fosse reduzido e
limitado ao trabalho doméstico.
A campanha de emancipação, da qual participaram
numerosos intelectuais, não teve os resultados
esperados. As "sufragistas", escarnecidas pela
burguesia conservadora, tidas por burguesas pelo
partido socialista e por perigosas pelos católicos (que
se mantiveram fiéis a Gioberti e Rosmini), ficaram
politicamente isoladas. A reforma eleitoral de Giolitti
estendeu, em 1912, o chamado sufrágio "universal" aos
próprios analfabetos, mas excluiu as mulheres, os
menores, os condenados e os dementes. Vencido
politicamente, o movimento também o foi no plano
histórico e cultural.
FEMINISMO
Quando, em 1945, após duas guerras e o fascismo, as
mulheres italianas conseguiram o voto, todo o
precioso material de reflexão e propostas acumulado
em tantos anos de luta tinha sido esquecido. Para o
Feminismo o mito de Sísifo era mais atual do que
nunca: mais uma vez era preciso começar tudo de
novo.
489
aprofundam-se os problemas específicos da condição
feminina, desde a sexualidade à família e ao trabalho.
O movimento se consolida, empenhando-se em torno
de certos objetivos, como o divórcio e o aborto (Lei
194, de 1978).
Com o surgimento da crise econômica e do debate
acerca da violência e do terrorismo, o Feminismo, um
movimento pacifista, parece atravessar, desde 1977,
V. O FEMINISMO CONTEMPORÂNEO. — No momento um momento de crise, sendo difícil prever sua futura
em que, na Europa, as mulheres conquistavam o
evolução. Os elementos que haviam determinado o
direito ao voto e pareciam cair as proibições legais seu desenvolvimento, a falta de organização, a
mais notáveis, numa obra que não alcançou no carência de líderes e a pluralidade de posições, se
momento grande ressonância, Le deuxième sexe revelaram incapazes de lhe assegurar a permanência
(1949), Simone de Beauvoir mostrava que a opressão num período de graves crises.
feminina tinha raízes muito profundas. Na história, na
Contudo, é preciso observar que as idéias
visão do mundo, o homem estabelece uma relação
feministas penetraram, embora de forma reduzida, em
direta com a natureza e a cultura, situando-se como
alguns partidos, nos sindicatos, nos mass media e, em
sujeito, enquanto que a mulher se posiciona com
geral, na mulher politizada e inserida nas instituições.
relação ao homem, sendo considerada como o "outro".
Nos Estados Unidos e nas principais universidades
Entretanto, verificava-se um fenômeno inteiramente
européias (exceto na Itália), afirma-se o valor
novo na história: entre 1950 e 1960, um número
científico de novos setores de pesquisa conhecidos
sempre crescente de mulheres tinha acesso à instrução
como Women's Studies e, recentemente, fevereiro de
superior e introduzia-se no mundo da produção e do
1981, o próprio Parlamento europeu votou uma
trabalho, se bem que em trabalhos inerentes ao
resolução sobre a situação da mulher nos diversos
desempenho feminino e sub-remunerados. Mas as
países da Comunidade, resolução que, embora fruto de
características da opressão da mulher haviam apenas
um compromisso entre os partidos, demonstra o
mudado. As obras das teóricas americanas da década
caminho andado pelas idéias feministas, mas, ao
de 60 encontraram uma imediata resposta entre o vasto
mesmo tempo, o muito que ainda resta por fazer.
público feminino que, mediante a sua análise, chegou a
compreender as razões do próprio mal-estar e
BIBLIOGRAFIA. - L. ABENSOUR, Histoire générale
insatisfação Em A mística da feminilidade (1963),
Betty Friedan explicou as novas características da du féminisme (1921), Slatkine Repriots, Genève 1979;
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exercidos, entre os valores masculinos predominantes Histoire du féminisme fronçais, Ed. des femmes. Paris
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desempenha, como compradora, uma importante Breve difesa del diritti della donna, s. e., Assisi, s. d.
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base de todo poder (A política do sexo, 1970) e S. AUT. VÁR., L'emancipazione femminile in Italia, La
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de autoconsciência
sesso (1970), Mondadori, Milano 1971; J. MITCHELL,
La condizione della donna (1966), Einaudi, Torino
1972; J. STUART MILL, La servitù delle donne (1869),
Partisan, Roma 1971; La liberazione
490
FEUDALISMO
delia donna. ao cuidado de F. PIERONI BORTOLOTTI,
Mazzotta, Milano 1975; M. WOLLSTONECRAFT, I diritti
delle donne. (1792), Editori Riuniti, Roma 1977.
[GINEVRA CONTI ODORISIO]
Feudalismo.
I. QUESTÕES GERAIS. — O sistema feudal na sua
maturidade, outra coisa não é senão o produto da
tentativa régia, parcialmente conseguida, de substituir
uma nova classe dirigente de origem monárquica pelas
velhas castas dirigentes, formadas tradicionalmente,
pelos diversos grupos étnicos populares germânicos.
Só que a capacidade insuspeita desta nova classe se
auto-reproduzir fez com que os monarcas perdessem
quase completamente o controle do sistema: portanto,
concebido
como
realidade
substancialmente
centralizada, o ordenamento feudal assumiu, em
breve, as características do mais acentuado
fracionismo. E a história do Ocidente ficou
irremediavelmente marcada.
Estas observações permitem imediatamente duas
constatações de métodos: a primeira é que, por
feudalismo, nos referimos aqui exclusivamente àquele
fenômeno tipicamente europeu-ocidental, que viu sua
aurora concreta na época carolíngia (séculos VIII-IX) e
conheceu seu definitivo ocaso — como sistema de
Governo local — na época da Revolução Francesa:
isto é, àquele fenômeno que, nascido entre os francos,
na própria França viu consagrada sua condenação. As
outras formas ou sistemas feudais que, em diferentes
civilizações e em épocas diversas, se manifestaram (o
chamado Feudalismo "chinês", "indiano", "otomano",
etc.) não são, a nosso ver, senão sociologicamente — de
acordo com a tentativa de Max Weber —
aproximáveis ao Feudalismo ocidental; mas,
historicamente, os antecedentes e a evolução não
podem ser comparados.
A segunda constatação de método é que um tipo de
avaliação como o indicado aqui faz derivar o sistema
feudal substancialmente da realidade social e política,
dos níveis culturais e das crises do mundo germânico
da Alta Idade Média. Fossem quais fossem, em época
antiga ou tardo-antiga, os fatores determinados ou as
técnicas de Governo que podem ser considerados
como precedentes do Feudalismo (a immunitas, por
exemplo), parece-nos dever concluir que aqueles
fenômenos tardo-romanos não podem ser vistos, no
máximo, senão como uma indicação de tendência. Mas,
na realidade — sem fazer arqueologia jurídica —, tais
institutos, práxis ou indicações
mostraram seu sentido muito particular somente à luz
da experiência germânica e assumiram, dessa forma,
um valor original, de acordo com a experiência
particular e substancialmente novíssima do
Feudalismo franco-carolíngio.
II. A PRÁXIS DA FIDELITAS GERMÂNICA. — O
fenômeno do Feudalismo parece nascer daquela antiga
práxis dos povos germânicos — povos por muito
tempo nômades e, portanto, guerreiros — de fazer
entrar no séquito (trustis) do rei adolescentes muito
jovens, para que se aperfeiçoassem no uso das armas e
ganhassem dessa forma honras e riquezas. De fato, o
rei germânico não era, na origem, senão um chefe
político ocasional; na realidade, era apenas o chefe
militar da natio germânica, eleito a cada vez pelo
povo para guiá-lo nas diversas expedições. Assim, o
rei era um pouco (e somente) o símbolo e o modelo
das virtudes militares de seu povo. Um mestre, quase
diríamos, de escola de armas, junto de quem os jovens
das famílias mais nobres iam aprender.
Embora um tanto convencional, esse esquema
interpretativo — baseado em algumas famosas
passagens de Tácito — permite facilmente reconstruir
as origens daquela "comitiva" régia que vemos agir
em idade histórica, na época das migrações dos povos
nos territórios do Império Romano, quando o instituto
monárquico se estabilizara como forma continuativa de
guia político-militar das nationes germânicas. As
figuras do vassus franco e do gasindio longobardo
estão bem documentadas pelas mais antigas fontes
literárias e jurídicas existentes.
Mais tais fideles, ligados ao rei pelo vínculo de uma
consaguinitas quase sagrada, porque decorrente do
comum risco e solidariedade em batalha, perante a
morte, originariamente não eram titulares de nenhum
poder particular ou função específica, embora sua
ligação com o chefe do povo lhes assegurasse uma
posição honorífica notavelmente influente. Além disso,
o povo continuava a ser governado segundo o
tradicional esquema familiar-gentilício, segundo o
qual os chefes de cada grupo (Fara, Sippe, etc.) eram
definidos, não com base na sua relação com o rei, mas
somente em decorrência de seus laços de influência,
prestígio ou predomínio perante o próprio povo. De
modo que, quando esse povo se fixava em sedes
estáveis, em conseqüência das conquistas no Oeste ou
no Sul da Europa, o mesmo mecanismo definia a
hierarquia provincial e territorial. O chefe do grupo,
eleito pelo grupo, se tornava automaticamente chefe
do distrito.
Por outra parte, porém, a evolução do instituto
monárquico, comportando uma acentuação de
FEUDALISMO
funções, fez com que, para os nascentes ofícios do
palatium régio, fossem natural e predominantemente
chamados os fideles da "comitiva" régia, que
começaram assim a desempenhar um poder político
concreto, não porém como vassi, mas somente como
funcionários, embaixadores e ministros do rei. Na
ausência de qualquer autêntico conceito de Estado,
pareceu natural aos novos reis germânicos do Ocidente
apoiarem-se preferentemente em pessoas que tinham
ligado os próprios destinos à sua pessoa, física e
individual. Os fideles do rei foram, portanto, chamados
a desempenhar funções centrais e também provinciais,
em concorrência, porém, e em condições de fraqueza
em relação às estruturas e às formas substancialmente
autárquicas do poder político territorial.
Nesta permanente diarquia e conflito de poderes
entre o rei, no centro, e os diversos grupos familiares
e tribais, nas províncias, residia — como é sabido —
a causa principal de todas as fraquezas das
fragilíssimas construções políticas criadas pelos
germânicos no Ocidente (agravadas por outras tensões:
as havidas com os grupos românicos mais numerosos,
o conflito religioso entre arianismo e catolicismo,
etc). Por conseqüência, estas estruturas, ou se
arruinaram uma após outra devido aos ataques
externos (visigodos, longobardos, borgonheses,
vândalos, etc), ou ficaram largamente paralisadas (o
exemplo maior dessa paralisia é o conhecidíssimo dos
reis francc-merovíngios: os chamados rois fainéants).
III. O ENFEUDAMENTO DOS VASSI RÉGIOS
COMO INSTRUMENTOS DE GOVERNO. — Foi
exatamente a necessidade de reforçar o poder régio
entre os francos que levou à utilização sistemática da
estrutura vassálica tradicional na área política; a
mudança da dinastia, isto é, a substituição dos
merovíngios pelos carolíngios, induziu estes últimos —
desde o tempo de Pepino o Velho e de Carlos Martelo
(portanto, antes ainda da ascensão ao trono dos
grandes mordomos do reino) — a procurarem novos
laços diretos com o mundo popular, ligado aos
esquemas tradicionais (e à própria dinastia
tradicional). Não podendo ampliar, por motivos
objetivos, para além de um certo limite, o poder
baseado na relação de sangue e de família — a única
relação sólida e verdadeira no mundo germânico —,
foi preciso recorrer à utilização daquela relação
particular de affectio, de familiaritas, criada pelo
vínculo vassálico.
Dessa forma, essa relação se enriqueceu e se
transformou: para ter fideles nas diversas regiões, para
enraizá-los na terra, o rei concedia em beneficium ao
seu vassalo uma porção de terra tirada
491
originariamente dos bens do fisco ou das Igrejas,
território concedido, não como propriedade, mas
como precarium (isto é, ad nutum regis, através de
um instrumento patrimonial unilateral e concessão
graciosa revogável a qualquer momento), de cuja
exploração agrícola o vassus tinha que tirar os meios
para se manter, armar-se e zelar pelos interesses do
soberano na região circunstante.
A relação vassálica se completou, então, através do
benefício, com um conteúdo concreto (embora ainda
com valor obrigatório e não real), constituído, em
geral, por aquele bem que, numa economia
predominantemente natural como a da época
carolíngia, não podia senão apoiar-se na terra: a
concepção do beneficium-feudum se tornou o fator
característico do Feudalismo franco, primeiro, e
ocidental, depois, tanto que aquilo que era o simples
objeto do negócio dará significativamente seu nome a
toda relação (relação feudal). A necessidade de criar
com o vassus enfeudado um válido contrapeso à
tradicional organização territorial trouxe, como
conseqüência, que o mesmo vassus fosse isento das
prestações públicas que eram geridas nas províncias
pelos poderes tradicionais: desta forma, o vassus não
pagará ao comes nenhum imposto, não se enquadrará
na repartição militar do território local, não estará
sujeito à jurisdição do magistrado local: em
conseqüência de todos estes privilégios, o vassus
estará subordinado direta e somente ao rei.
Uma ampla ramificação feudal deste tipo permitiu
ao rei um controle muito maior sobre a realidade tribal
da província tradicional, assegurando-lhe uma fidelitas
geral bem maior.
A função militar do vassus é certamente primária,
mas não é exclusiva. Isto permite rejeitar a famosa
tese de Brunner sobre a difusão do feudo franco como
relacionada com as necessidades militares em que se
encontrou Carlos Martelo, na época da ameaça árabe
contra a França centro-meridional; na realidade o
processo de transformação do vassus em feudatário
começou muito- tempo antes, por motivos políticos
bem precisos, embora as necessidades militares
criadas pela invasão árabe certamente favorecessem a
sistemática difusão do instituto.
Com base em todas as fontes conhecidas, o
instituto feudal, como negócio jurídico, pode ser
definido como uma espécie de contrato-desigual,
privado, mas com crescente relevância pública. O
vassus jura fidelitas ao seu dominus, que lhe promete,
por sua vez, a própria tuitio (defesa); a cerimônia é
freqüentemente acompanhada de palavras sagradas,
do abraço e do beijo. Logo após, o dominus transmite
ao seu novo homo a
492
FEUDALISMO
titularidade — cujo conteúdo foi se transformando em
possessio e em plenum dominium sobre os territórios
doados com as respectivas imunidades. Nesta relação,
a importância beneficiária cresceu cada vez mais em
relação à importância sacramentai, de tal maneira que,
na Itália, ainda em época muito remota, a concessão
do feudum precedia, ao invés de seguir, o
sacramentum fidelitatis; isto é, a fidelitas (relação
ético-espiritual) estava também externamente
subordinada à concessão do feudo (relação
patrimonial).
IV. AS REAÇÕES PARTICULARES: A FRAGMENTAÇÃO
DA SOCIEDADE. — Nestas bases, o complexo e híbrido
instituto feudal se difundiu por toda a Europa do
século IX, levado pela conquista franca, e assumiu
tanto maior importância quanto maiores eram as
exigências do novo imperador franco-germânico em
controlar realidades estrangeiras e populações
ciumentas da própria autonomia. Mas as limitações da
aplicação de esquemas privados para governar
realidades públicas, mesmo no "Estado de associação
individual", que foi a máxima experiência política
germânica, segundo Mitteis, apareceram logo que a
própria difusão do sistema . feudal induziu ou obrigou
o rei a conferir, a título feudal, os grandes cargos
centrais ou o Governo das repartições provinciais, isto
é, transformando o officium em beneficium. Desse
momento em diante, que teoricamente foi o de
máximo esplendor do Feudalismo monárquico,
porque permitia a substituição integral de todos os
velhos grupos dirigentes locais e provinciais por vassi
de origem régia, o sistema feudal começou a
funcionar contra a centralização monárquica: de
instrumento nas mãos do rei, o Feudalismo se
transformou em instrumento fundamental nas mãos
das novas aristocracias locais.
De fato, à parte de que, muito freqüentemente, o
vassalo régio investido dos máximos poderes feudais
(condado, marquesado, missado, etc.) não era outra
coisa senão o novo expoente dos velhos poderes
locais de estirpe ou de família, o próprio dado do
sucesso do instituto induziu a grande feudalidade a
utilizá-lo em seu favor, construindo com os mesmos
meios à sua disposição uma hierarquia feudal
substancialmente idêntica àquela que o soberano tinha
difundido em todo o Estado. Em decorrência disso,
devido à fraqueza crescente e natural da relação
hierárquica dominus-vassus, criara-se uma parede
impenetrável ao poder soberano nas províncias que
iniciavam aquela progressiva autocefalização e
fragmentação, que constituem o dado mais
característico da sociedade feudal no seu apogeu
(séculos X X I I ) .
O Estado feudal permanecia intacto, mas, de fato, o
soberano tinha-se afastado progressivamente dos
habitantes do Estado (não se pode obviamente falar
de súditos). Isto parece claro, quando um soberano
como Carlos o Calvo teve de aderir ao capitular de
Kiersy (Capitulare Carisiacum), no ano de 877, no
qual, para além das distinções e limitações formais, a
praxe consuetudinária feudal baseou a sucessão
hereditária quanto aos grandes benefícios. A fidelitas
do herdeiro do feudatário defunto — herdeiro
identificado segundo as estritas regras do direito de
família — era imposta ao soberano como válida para
a sucessão no vínculo feudal e no gozo da função
pública; a relação fiduciária bilateral, em suma, era
destruída pela necessidade dos feudatários em
assegurar aos próprios descendentes a sucessão no
cargo público. O beneficium e o seu usufruto eram já
mais importantes do que a fidelitas, causa originária e
fundamental do negócio.
É notório como este processo se desenvolveu e
chegou à Itália — sede de uma experiência feudal
muito mais particular — para assegurar a sucessão
hereditária nos próprios benefícios menores (Edictum
de beneficiis, de Conrado II, 1037), uma decisão pela
qual a monarquia conseguiu, de alguma forma,
revidar, à grande aristocracia feudal, o golpe sofrido
um século e meio antes, mesmo que esse ato,
aprofundando a desagregação do sistema feudal
italiano, selasse sua fragmentação que devia perdurar
por séculos, identificando-se com a atomística
experiência comunal. É muito fácil, de fato,
identificar no Edito de Milão de 1037 o antecedente
da sucessiva experiência das comunas urbanas, como
nova forma de organização da pequena e média
feudalidade italiana.
Nos lugares onde as terras, que não conheceram
essa fragmentação estabilizada e definitiva,
conseguiram, em presença de outros elementos,
recuperar mais rapidamente seu tecido nacional
unitário através do reaparecimento do instituto
monárquico, a experiência histórica italiana era
condenada, pela pulverização do sistema feudal como
instrumento de Governo local, a uma larga e secular
pulverização política.
BIBLIOGRAFIA. - M. BLOCH, La società feudale
(1939-1949), Einaudi, Torino 1962; R. BOLTROUCHE,
Signoria e feudalesismo - Ordinamento curtense e
clientele vassalatiche (1968), Il Mulino, Bologna 1971;
R. BRANCOLI BUSDRAGHI, La formazione storica del
feudo lombardo come diritto reale. Quaderni di "Studi
Senesi", II. Giuffrè. Milano 1965; K. LEHMANN. Das
langobardische Lehenrecht.
FILOSOFIA DA POLÍTICA
Dietrich, Göttingen 1896; H. MITTEIS, Le strutture
giuridiche e politiche dell'età feudale (1933), Morcelliana,
Brescia 1962.
[PAOLO COLLIVA]
Filosofia da Política.
I. CONCEITO DE FILOSOFIA DA POLÍTICA. — Estabelecer
com clareza e precisão o que se entende ou o que se
deva entender por Filosofia da política (ou Filosofia
política, como prefere o uso comum) não é tarefa
fácil. É tão grande a variedade de opiniões a respeito,
que o melhor caminho a seguir parece ser o de propor,
como ponto de partida, não uma definição a priori ou
estipulativa, mas uma definição do tipo que hoje se
chamaria ostensiva, isto é, deduzida do trabalho
realizado pelos historiadores do pensamento político,
através do material coletado por eles, partindo dos
casos particulares para chegar ao problema geral, o
problema da existência e da própria possibilidade de
uma reflexão filosófica sobre o fenômeno político.
Entre as muitas perguntas que se apresentam à
nossa mente quando nos colocamos nesta perspectiva,
algumas são de caráter eminentemente crítico,
atingindo e colocando em questionamento os próprios
cânones da historiografia, os critérios que os
historiadores das doutrinas políticas seguiram para
delimitar o campo de sua pesquisa e para expor e
discutir as idéias e os autores que eles cada vez
analisaram. Uma pergunta preliminar poderia ser esta:
com base em que premissas, explícitas ou implícitas,
são selecionadas estas idéias e tornadas objeto de
reconstrução e de história? Por que — em termos mais
simples — alguns escritores são considerados
"políticos" e julgados merecedores de ser inseridos nesta
"história", e outros excluídos ou catalogados sob
outros rótulos, como autores de teorias econômicas ou
mais genericamente sociais? E, entre estas três grandes
categorias propostas, que relações exatamente
intercorrem, em que medida as idéias políticas se
diferenciam propriamente das outras duas? Quem são,
em substância, os escritores "políticos", quais as razões
e as características que nos autorizam a chamá-los
como tais? A esta primeira pergunta é quase natural
fazer seguir uma outra: desde o momento em que
saibamos quem são, que faziam ou que pretendiam
fazer estes escritores políticos? Propunham-se somente
a estudar, a analisar e a descrever o fenômeno, ou
também a avaliá-lo? E se o avaliavam, com base em
que escala de valores o faziam e
493
com quais fins? Era para recomendar ou propugnar
um tipo ideal e perfeito de relações políticas e
estatais, ou simplesmente para indicar remédios,
correções, ajustamentos à realidade política existente?
Chegamos, assim, à última questão: estes valores e
estes ideais, que inspiraram os pensadores políticos
do passado e que através da sua obra se demonstraram
prenhes de conseqüências, a ponto de provocar às
vezes revoluções ou mudanças radicais nos
acontecimentos humanos, que significado assumem
hoje para nós, como podemos ou devemos julgá-los?
É claro que esta breve lista não circunscreve e não
esgota todos os questionamentos e as perplexidades
que a leitura dos "políticos clássicos" suscita na nossa
mente moderna. Ela fornece, porém, uma abordagem
que constitui um primeiro passo para entender e
definir a natureza ou, se se prefere, as características
marcantes da disciplina que se denomina Filosofia
política. Determinar a essência própria do fenômeno
político e os elementos que o distinguem no campo
mais vasto e complexo dos fenômenos sociais; avaliar
criticamente o método seguido cada vez pelos
estudiosos que se ocuparam desses fenômenos; avaliar
as razões por eles propostas para explicar essas
relações; examinar, enfim (nem que seja só por
interesse histórico), os vários modelos ideais de uma
sociedade perfeita que, de tempo em tempo,
inspiraram e, às vezes, obsecaram as mentes de
grandes pensadores (ou como tais considerados pelo
consenso comum): estas quatro tarefas correspondem,
de fato (embora em progressão inversa), à
classificação que Norberto Bobbio
propôs
recentemente sobre os vários modos em que a
Filosofia política foi e pode ser entendida — como
descrição do Estado perfeito, como procura do seu
fundamento, como identificação da "categoria do
político" e. enfim, como metodologia das ciências
políticas em geral. A cada uma destas formas de
entendê-la corresponderia um significado diferente da
expressão Filosofia política. Não uma mas muitas
seriam, portanto, as definições que se poderiam dar
desta disciplina, excetuado o caso em que, para
declarar legítima uma delas, se declarem ou
demonstrem ilegítimas as demais.
II. FILOSOFIA POLÍTICA COMO DETERMINAÇÃO DO
ESTADO PERFEITO. — Apesar da conclusão um pouco
desanimadora a que leva, a classificação aqui
sumariamente esboçada pode-se mostrar muito útil
também para os nossos fins e parece certamente
confirmada pela investigação histórica. De fato, não é
difícil exemplificar historicamente, isto é, associar a
nomes precisos as quatro formas de filosofar sobre a
política que
494
FILOSOFIA DA POLÍTICA
especificamos. Começando pela primeira forma — a
Filosofia política considerada como procura de optimo
statu reipublicae —, o exemplo mais antigo, mais
notório e clamoroso é e continua sendo a República
platônica, modelo ideal de Estado, construído
mediante um procedimento lógico-abstrato e dedutivo,
com tranqüila indiferença perante a possibilidade de
sua realização efetiva. Na categoria de filósofos
políticos de tipo platônico, podem ser agrupados
todos os utopistas, descritores e teóricos de modelos
de sociedade perfeita: modelos em que o historiador
moderno reconhece, com sua visão crítica, reflexos, às
vezes dolorosos, de experiências concretas, mas que
expressam todos igualmente a certeza de encontrar
uma solução definitiva do problema político, solução
baseada num valor supremo e absoluto de justiça. Por
esta razão, podem também ser incluídos nesta
categoria escritores menos radicais do que Platão e do
que os utopistas, dispostos (como Cícero ou Tomás de
Aquino) a reconhecer a distância entre teoria e
prática, mas não a renunciar a indicar o ordo iustitiae
como a condição indispensável para realizar um
ordenamento social e político perfeito. Poderiam,
enfim, ser incluídos nesta categoria autores que,
embora rejeitando desdenhosamente a pecha de
utopismo, julgam todavia possível apontar a meta final
da longa luta da humanidade como libertação das
cadeias da exploração e da opressão: pense-se na
"passagem do reino da necessidade para o da
liberdade" preconizada pelos marxistas, ou nas muitas
formas de "contestação" que presenciamos em nossos
dias. Se a característica comum dos teóricos do
Estado perfeito era a de crerem possuir um critério de
valor absoluto, a característica comum dos
contestadores modernos é a convicção de possuírem
um critério de desvalor seguro, que lhes permita a
condenação inapelável da ordem existente, deixando
indeterminada a criação de uma nova ordem, imune
dos defeitos passados. É supérfluo acrescentar que
esta última observação é apenas um paradoxo (como é
paradoxal o termo "utopias às avessas", com que
Bobbio designa esta atitude de pensamento), e que,
com exceção de algum fiel retardatário da "grande
tradição", como Hayek ou Strauss, ou de algum profeta
messiânico de uma nova condição humana, poucos
hoje ousariam atribuir à Filosofia política a tarefa de
elaborar uma teoria do Estado perfeito.
III. FILOSOFIA POLÍTICA COMO PROCURA DO CRITÉRIO DE
LEGITIMIDADE DO PODER. — Muito menos ambiciosa e
mais rica e complexa é a segunda categoria na qual,
como disse, podem ser
agrupados os escritores políticos que, ao invés de
teorizarem um modelo de Estado ideal, se propuseram
a analisar o fundamento das relações políticas, as
razões do vínculo de dependência que elas
comportam, em suma, a determinar o porquê do
Estado, os motivos que explicam a obediência que os
homens prestam ou negam ao poder. O objeto da
investigação não é mais o Estado perfeito, mas aquilo
que — com um termo caído em desuso mas
recentemente restaurado — é chamado sua
"legitimação": problema que junta pensadores antigos
e modernos, apesar da grande variedade de soluções
que dele por vezes foram apresentadas e que Max
Weber procurou classificar com sua merecidamente
famosa tipologia das três legitimidades: a tradicional, a
carismática e a racional. Que a legitimação do poder
seja procurada na sua origem divina ou numa
determinação humana consciente, no culto do passado
ou num cálculo utilitário, no direito do sangue ou no
consenso popular, não tem, a este respeito, particular
importância: o que conta é o recurso a um determinado
princípio (ou a um conjunto de princípios) — a uma
particular "ideologia", como hoje se diz — para
justificar, exigir ou contestar o respeito devido ao
detentor ou aos detentores do poder. Neste sentido,
podem ser designadas como ideologias, quer a teoria
patriarcal de Filmer, quer a do contrato social de
Hobbes, Locke e Rousseau, ao último dos quais se
deve até o de ter sido o primeiro a distinguir
claramente, no início da sua obra principal, entre a
existência do poder e a legitimação. Mas — perguntase — pelo fato dessas teorias se fundamentarem numa
premissa de valor, não são elas uma simples
subespécie das relativas ao Estado perfeito, ao Estado
ideal que, afinal, também são ideologias, só que mais
ampla e perfeitamente desenvolvidas? A diferença é
sutil, mas é importante, porque as teorias da
legitimação permitem uma latitude muito maior de
interpretação e de aplicação do que as do Estado
perfeito; limitam-se de costume a indicar a que
condições o poder deve. se submeter para ser (ou
merecer ser) aceito como válido, deixando
indeterminados os modos pelos quais essas condições
podem ser de fato realizadas: pense-se na variedade e
na multiplicidade dos sistemas políticos hoje
justificados em nome do "princípio democrático". Nem
são raros os casos em que princípios de legitimidade
muito diferentes convivem lado a lado, sobrepondo-se
uns aos outros, sem que os homens percebam
plenamente sua diversa proveniência e sua possível
incompatibilidade: pense-se na fórmula "por graça de
Deus e vontade da Nação'', até ontem ainda aceita na
Itália como princípio de legitimação da monarquia
FILOSOFIA DA POLÍTICA
constitucional. Ideologia, ou melhor, teoria da
ideologia, sob este ponto de vista é a Filosofia política:
no mesmo nome já está contida a sua definição, mas
também para muitos a sua condenação.
495
políticos mais recentes, como Mosca e Pareto, para os
quais a essência do fenômeno político consiste na
imposição do poder por parte de uma minoria sobre a
maioria; nem se pode deixar de mencionar, neste
contexto, uma outra teoria ainda mais recente, que
IV. FILOSOFIA POLÍTICA COMO IDENTIFICAÇÃO DA afirma identificar a categoria do político na relação
CATEGORIA DO POLÍTICO. — A terceira possível acepção amigo-inimigo, na solidariedade do grupo perante o
da Filosofia política é a determinação do conceito geral desafio ou a ameaça de um adversário: teoria
de política, daquilo que caracteriza o fenômeno formulada uns trinta anos atrás por um escritor nazista
político e o torna tal, distinguindo-o e diferenciando-o (Carl Schmitt) e retomada recentemente por dois
dos outros fenômenos sociais. Isto nos lembra logo filósofos políticos, o francês Julien Freund e o italiano
Croce que, num famoso ensaio, punha o início da Sergio Cotta. Também neste caso, à Filosofia política é
Filosofia política em sentido próprio na descoberta da atribuída a função de determinar as características
"autonomia da política", autonomia que significa diferenciais do fenômeno político, e este é reduzido,
identificação das características próprias da atividade em última instância, a uma relação de forças.
política e das leis que a governam, leis que são
diferentes (e, às vezes, opostas) das próprias de outras
V. FILOSOFIA POLÍTICA COMO METODOLOGIA DAS
atividades humanas, e especialmente das da moral. CIÊNCIAS POLÍTICAS. — De acordo com as tendências
Segundo Croce, o autor desta descoberta teria sido dos filósofos mais modernos e experimentados, esta
Nicolau Maquiavel, e, devido à grande influência do quarta acepção é a forma mais correta de entender a
ensino crociano, esta é certamente a acepção Filosofia política: isto é, de entendê-la como simples
predominante desta disciplina na Itália.
metodologia, como reflexão crítica sobre o discurso
Mas é também necessário destacar os limites e político, quer dos modernos cientistas, quer dos
(chamando as coisas pelo seu nome) a parcialidade da teóricos políticos do passado.
tese crociana, que conduz, antes de tudo (conforme as
A Filosofia política aparece aqui como uma
próprias palavras de Croce), a uma paradoxal pesquisa de segundo grau, que visa analisar,
deformação histórica. Quem ousaria hoje, seguindo esclarecer e classificar a linguagem, os argumentos e
Croce, pôr a origem da história da Filosofia política em as finalidades de todos aqueles que fizeram ou fazem
Maquiavel, procurá-la nos enfadonhos escritos dos da política o objeto de discussão e de estudo. Neste
teóricos da Razão de Estado, continuá-la em Vico e sentido, pode-se falar de Filosofia política como de
Galiani, excluindo Rousseau e concedendo somente uma "metaciência", isto é, de uma verificação
um modesto lugar a Hegel e Marx? Para fazer justiça rigorosa dos procedimentos com os quais é conduzida
e reconhecer como filósofos políticos Aristóteles ou a pesquisa da ciência política empírica; em termos
Marsílio de Pádua, Jean Bodin ou John Stuart Mill, é gerais, pode-se atribuir à Filosofia política a tarefa de
também necessário admitir que filosofaram sobre a identificar os componentes do pensamento político
política outros autores de tipo não maquiavélico, tradicional, pensamento que se revela à análise como
autores que admitiam ou explicitamente afirmavam as metodologicamente "impuro", resultando na maioria
estritas relações de interdependência que ligam a dos casos da confluência de três propósitos muito
política aos múltiplos aspectos da experiência prática; diferentes: a) a assunção de conceitos nem sempre
também eles tinham, sem dúvida, uma noção, embora criticamente acertados; b) uma descrição considerada
confusa, do que seja política, já que não hesitaram em objetiva e "avaliativa" de situações fatuais e das leis
descrever suas características, nem em definir seus que regulam seu curso, e c) uma indicação dos fins
confins. É preciso também considerar a necessidade de para os quais tende ou deveria tender a atividade
esclarecer desde o início, ao tratar de qualquer política, fins que por sua vez são usados como medida
pensador político, o conceito que esse autor tem de para avaliar e julgar a realidade política existente.
política, tarefa que é própria do estudioso; e é preciso Entendida somente nesta forma, é possível que a
também ter em vista que o particular conceito que Filosofia política venha a ser justificada e aceita por
Maquiavel dela formava constitui, sem dúvida, uma alguns filósofos modernos, mas talvez com a
ideologia (uma ideologia, aliás, muito antiga): a condição de que sejam eliminadas, como ilegítimas
ideologia da força como elemento constitutivo e ou privadas de significado, as três formas anteriores,
legitimador do Estado. Não é, portanto, sem motivo mais ou menos tradicionais, em que esta, como vimos,
que precisamente como adeptos de uma tal ideologia pôde ser concebida. Eliminadas as primeiras duas
tenham sido denominados "maquiavelistas" alguns
teóricos
496
FILOSOFIA DA POLÍTICA
acepções, ou, mais exatamente, reunidas sob o nome
de ideologias posições apodíticas de valor não
suscetíveis de um discurso controlado e significante;
tomada a terceira na análise da linguagem e na função
atribuída à Filosofia política, à qual caberia, como
metaciência, apurar em primeiro lugar o conceito de
política e delimitar o campo em que se realiza ou se
poderia realizar a pesquisa empírica, não é difícil
descobrir nestas teses radicais a influência das
correntes neopositivistas, hoje prevalecentes na
filosofia do mundo ocidental, e da polêmica
"antimetafísica" que a inspira e a caracteriza.
VI. FILOSOFIA POLÍTICA E ANÁLISE DA LINGUAGEM.
— Ao término desta rápida visão de conjunto, é mister
concluir que é preciso partir da última posição
examinada, não para aceitar supinamente suas
conclusões, mas para refazer o caminho andado e ver
se é possível chegar a um juízo mais justo e positivo
sobre os modos tradicionais de conceber a Filosofia
política. Não é de fato possível prescindir hoje daquele
esclarecimento preliminar da linguagem, que é uma
exigência fundamental do pensamento filosófico
moderno, a característica fundamental daquela que,
com toda objetividade, foi considerada uma verdadeira
revolução no modo de filosofar. Poderia acontecer,
todavia, que a análise da linguagem política levasse a
resultados até mais radicais do que aparece nas
observações dos neopositivístas, isto é, levasse a
reconhecer que qualquer discurso político é (pelo
menos no estado atual) condicionado pela linguagem
de que é obrigado a servir-se; trata-se de uma
linguagem "impura", ou melhor, de uma linguagem
"com várias dimensões", que no próprio ato em que é
usada desempenha funções diferentes: designa, avalia,
descreve e, ao mesmo tempo e quase
inconscientemente, prescreve; e isto pela simples
razão de que os vocábulos de que se serve têm, já de
antemão, uma coloração emotiva, são palavras
"carregadas", que contêm uma conotação apreciativa
que não é possível eliminar (pelo menos até o presente
momento). Os exemplos são numerosos: basta lembrar
o uso que se faz correntemente, ao discorrer de política,
de palavras tais como "liberdade" ou "igualdade", que
designam, ao mesmo tempo, um fato e um valor ou a
possibilidade de dar, ao mesmo fato político, um
significado diferente e às vezes oposto, chamando-o
mais com um nome do que com outro ("pena""repressão", "força"-"violência"); basta refletir na
incerteza que reina atualmente sobre o exato
significado de termos tais como "poder" e "autoridade"
e a sua delimitação recíproca; basta
lembrar o que dissemos sobre a dificuldade de definir
com exatidão o que se entende por "política"
VII. FILOSOFIA POLÍTICA E CIÊNCIA POLÍTICA. —
Vista nesta perspectiva, a Filosofia política aparece
então (e pode ser provisoriamente definida na quarta
acepção mencionada) como uma operação crítica, que
visa questionar qualquer discurso (indagação ou
raciocínio) que tenha por objeto a política. Como tal,
ela se distingue antes de tudo (e esta distinção é
atualmente talvez a mais importante) da chamada
ciência política, das diretrizes hoje prevalecentes no
estudo dos problemas políticos e sociais. E dela se
distingue — é preciso acrescentar — colocando-se a
respeito da ciência política nem sempre numa relação
de integração recíproca (como se crê), mas às vezes
também numa relação de clara oposição; porque pode
muito bem acontecer que a crítica filosófica não se
limite a esclarecer e aperfeiçoar os processos e os
instrumentos da pesquisa científica, mas chegue a
contestar ou até demonstrar como inúteis seus
propósitos; isto é, pode acontecer (para usar uma
metáfora hoje muito em voga, entre os defensores da
Filosofia política como "metaciência") que a "terapia",
ao invés de curar, mate o paciente. Não é aqui o lugar
de examinar detalhadamente a natureza e a temática de
uma ciência que nestes últimos decênios encontrou
amplo consenso e é objeto de estudo constante por
parte de autores famosos. Nem se trata de instituir um
processo contra ela, colocando as objeções que podem
ser levantadas (e que suscitariam acirradas discussões)
aos três assuntos fundamentais (a empiricidade, a nãoprescritividade e a avaliatividade), com base nos quais
essa ciência procura legitimar-se e inserir-se na lista das
ciências mais desenvolvidas. A objeção básica fica
sendo aquela de que já se falou: a ambigüidade da
linguagem, que tem como referente o fenômeno
político, e a incapacidade até agora aparente da ciência
política em criar uma linguagem apropriada, livre
(como a das ciências exatas) de qualquer ressonância
de valor, "esterilizada" e puramente factual. Citei
alguns exemplos de termos "pluridimensionais" que
ocorrem na linguagem política; é preciso acrescentar
que as tentativas até agora realizadas pelos cientistas
políticos, no sentido de reduzir tais termos a um
significado único, não me parece que tenham tido
sucesso. É de ontem uma interessante polêmica
("Rivista di Filosofia", LV-LVI, 1964-1965) sobre a
possibilidade de dar uma definição "neutra", científica
e objetivamente válida do conceito de liberdade
política. A conclusão a que chegou Oppenheim, um dos
seus mais animados sustentadores, é por si só suficiente
FILOSOFIA DA POLÍTICA
para nos deixar perplexos acerca das vantagens de
uma noção tão limitada; porque, de acordo com este
autor, seria absurdo discutir se há mais liberdade numa
democracia ou numa ditadura. É somente uma questão
de distribuição: numa ditadura a liberdade é do
ditador, numa democracia é dos cidadãos. Isto poderá
também ser verdadeiro de um ponto de vista empírico,
mas não impede que a palavra liberdade continue a
sacudir e entusiasmar os corações; e não se
compreende por que vale a pena discutir de política se
não se procura entender primeiro as razões pelas quais
isso acontece. Citei outro caso, também muito
significativo, o do colorido emotivo diferente que é
possível dar ao mesmo fato usando termos diferentes:
o uso ou o mau uso que deste expediente fazem, hoje
em dia, os que "contestam" a ordem estabelecida é um
exemplo disso. Ao chamar de repressão a pena s de
violência qualquer intervenção coativa dos órgãos
estatais, eles interpolam um juízo de valor (ou, mais
exatamente, de desvalor) naquela que pretende ser
simplesmente a descrição de um fato; na verdade, nem
os cientistas políticos, desconfiados como são de toda
conotação normativa dos fenômenos sociais, mostramse muito sensíveis à diferença qualitativa, e não
somente quantitativa, que existe entre o exercício
arbitrário da força e a força exercida em nome de uma
lei.
Mas o exemplo mais claro e decisivo da
impossibilidade de um cientista político prescindir, na
determinação da própria função, de uma tomada de
posição valorativa (ou, se se preferir, ideológica) pode
ser encontrado na atribuição, por ele feita de início, de
um significado particular e específico à palavra
"política"; atribuição não menos apolítica e
preconcebida do que a dos filósofos políticos do
passado. Atribuir a determinados fenômenos o caráter
político é simplesmente dar-lhes uma relevância
particular em relação a outros fenômenos, relevância
que é em si uma conotação de valor. Originada pela
experiência característica do mundo grego, a palavra
política foi diferentemente estendida ou restringida à
designação de experiências assaz diversas (pense-se na
tradução medieval de polis por civitas vel regnum).
Considerada por muito tempo como arte suprema de
"bem viver" e como ciência coordenadora e
"arquitetônica" da convivência humana, a política foi
reduzida por Maquiavel a mero instrumento de
domínio; por Hobbes a pura "gramática da
obediência"; e por Locke a simples segurança sobre a
vida e os bens. Varia sua competência de acordo com os
tempos e os lugares: aspectos da vida que antigamente
eram considerados políticos hoje não são mais; as
convicções religiosas dos cidadãos, irrelevantes para o
497
Estado moderno, não o eram para o Estado
confessional; as relações econômicas, consideradas
politicamente indiferentes por um liberal, não são
certamente tais para um socialista.
Definir a política é, portanto, tomar posição acerca
dos fins de agir humano, é estabelecer uma hierarquia
entre as diversas formas da vida associada, é, em
suma, uma opção de valores, prenhe de conseqüências
práticas e indicativas de uma particular visão da vida e
do homem. Pergunta-se, então, se o próprio conceito
moderno da ciência política e o propósito de tratar
"cientificamente" e de maneira distinta e imparcial
uma determinada esfera de relações humanas tidas
como políticas não serão também o resultado de uma
opção, o sinal de uma particular ideologia. Desta
maneira, acabar-se-ia por dar razão aos seus críticos
mais acirrados, a cujos olhos a ciência política
ocidental, com o ideal de uma "política científica'' que
a caracteriza e inspira, seria unicamente o produto de
um contexto histórico e social bem determinado.
Demonstrada sem fundamento a sua pretensa
"cientificidade", à ciência política não restaria senão
esperar sobreviver como Filosofia política do mundo
contemporâneo.
VIII. FILOSOFIA POLÍTICA E IDEOLOGIA. — Se a
análise do discurso político conduz ou pode conduzir
a tão singulares conclusões, é claro que a reflexão
filosófica não pode parar aqui, porque reconhecer o
caráter valorativo ou ideológico deste tipo de discurso
levanta na mente um outro problema, o do porquê de
tal caráter, isto é, da necessidade de entender as razões
pelas quais a qualificação política é uma qualificação
valorativa e não apenas descritiva, de encontrar uma
explicação das opções que os homens fazem ao atribuir
a alguns fenômenos uma relevância política que
excluem de outros, e, especialmente, de estabelecer
com exatidão o que significa essa atribuição, quais as
conseqüências que daí decorrem, o que, enfim, está
realmente posto em jogo. A essas perguntas
respondiam sem dúvida, ou tentavam responder, as
Filosofias políticas tradicionais, mencionadas nas duas
primeiras categorias anteriormente examinadas, que se
apresentam claramente como ideologias. É preciso,
portanto, enfrentar finalmente e com coragem o uso
ou o abuso tão corrente que hoje se faz dessa palavra e
indagar com que base, por meio dela, se tentam
imponentes construções conceptuais, das quais
outrora nos aproximávamos com maior respeito.
Segundo uma definição hoje geralmente aceita, por
asserção ideológica se entende "um juízo de valor
transformado em ou confundido com uma asserção de
fato". Ideologias, isto é, programas ético-políticos
camuflados de teorias
498
FILOSOFIA DA POLÍTICA
científico-filosóficas, seriam, portanto, com base nessa
definição, todas ou quase todas as Filosofias políticas
do passado; a tarefa do estudioso moderno seria a de
"desmascará-las", pondo em claro, além do mais, os
concretos e, às vezes, sórdidos interesses que atrás
dessas construções se escondiam e que elas visavam
defender ou consagrar, pretendendo apresentar como
verdades irrefutáveis (enquanto demonstráveis,
empírica ou dedutivamente) algumas premissas
necessárias ou úteis para convalidar um determinado
sistema de relações políticas e sociais. É claro que, por
este caminho, é possível realizar uma verdadeira obra
de desmantelamento das mais famosas teorias
políticas, um verdadeiro jeu de massacrei Tome-se, por
exemplo, a doutrina aristotélica da desigualdade
"natural" entre os homens: quem poderia negar que
essa doutrina serviu egregiamente para justificar o
instituto da escravatura? E quando Aristóteles
acrescenta que a mesma natureza parece ter criado
mais robustos os corpos dos escravos, destinando-os
aos trabalhos mais pesados, não é porventura claro que
ele troca por um juízo de fato aquilo que na realidade
era um triste preconceito dos antigos? Tome-se,
também, o exemplo da teoria do contrato social: ao
projetar no passado a origem do Estado e ao
identificar essa origem com um ato deliberado e
consciente de cada um dos componentes deste, seus
teóricos não partiam talvez de uma premissa de valor (a
atribuição ao indivíduo de um direito originário à
liberdade e aos bens), procurando corroborá-la em
relação a um fato que se verificou somente em
particulares circunstâncias históricas e ambientais? Em
casos como estes, e outros que poderíamos ainda citar,
é perfeitamente exato dizer que os filósofos políticos do
passado camuflavam de teorias científicas seus
programas ético-políticos e trocavam por uma
asserção de fato aquilo que na realidade era um juízo
de valor.
fatos, porque eles não têm nada a ver com o
problema"; ou enfim, o mais significativo de todos,
Kant, que, ao pôr o contrato social como critério de
legitimidade do Estado, expressamente acrescentou
tratar-se, não de um acontecimento real, mas de um
princípio normativo: "simples idéia". Mas não é
somente porque os filósofos políticos do passado
atribuíram aos fatos um peso diferente daquilo que nós
somos levados a atribuir-lhes que suas estruturas
conceptuais resistem ao "desmascaramento", que delas
quiseram fazer os modernos. Mas o que realmente
importa é que aquilo que nos parece ser (ou querer
ser) "provas", não eram na realidade provas, mas
"razões"; em outras palavras, aqueles filósofos não
pretendiam descrever fatos, mas ditar opções, ou
propugnar por valores; e eles bem sabiam (talvez
melhor do que nós) que os valores não se "provam"
mas se "propõem", se "argumentam", se "ensinam", se
"testemunham", apelando não somente (como muito
facilmente somos hoje levados a crer) para os instintos,
para as paixões e para o lado irracional do homem,
mas também para a sua capacidade de entender e
raciocinar, de corrigir os instintos, de dominar as
paixões, para efetuar as opções, para julgar a realidade
política, para aceitá-la e melhorá-la, e, se necessário,
para rejeitá-la e também transformá-la. Só um
exemplo é suficiente para esclarecer este ponto: o
exemplo da chamada doutrina do direito natural, que
erroneamente tem sido amiúde interpretada pelos seus
críticos como uma afirmação do que é a natureza
humana, enquanto nos seus mais insígnes defensores
ela é, mais do que tudo, uma reivindicação daquilo que
no homem deve ser considerado e respeitado. Dizer que
os homens são iguais por natureza, notava Lincoln
num de seus mais nobres discursos, não quer dizer que
eles sejam iguais de fato (o que seria loucura), mas
que devem ser tratados como iguais potencialmente e
que somente é legítimo aquele ordenamento político
em que as desigualdades de fato não constituem um
IX. FILOSOFIA POLÍTICA E TEORIA DOS VALORES. — fator de discriminação.
Observando as coisas mais de perto, a explicação
Constituem um discurso sobre os valores e não um
proposta falseia um pouco os intentos S a própria obra discurso sobre os fatos as Filosofias políticas
daqueles que, outrora. filosofavam sobre a política. É tradicionais, quer se trate daquelas (menos freqüentes)
preciso observar, inicialmente, que nem todos que elaboravam modelos de Estado ideal, quer
atribuíram aos fatos "aquela função de prova decisiva daquelas (mais numerosas) que investigavam as razões
e definitiva", que lhes é imputada. Poderiam até ser e o porquê das relações políticas e aprofundavam
citados casos de filósofos políticos que, desde o início, critérios de legitimação das relações existentes, ou
descartaram os fatos porque irrelevantes para seus ameaçavam suas bases em nome de valores novos e
propósitos: Grócio por exemplo, que declara nos revolucionários. Reconhecer a validade deste modo de
Prolegomena ao De iure belli ac pacis querer tratar filosofar não significa, de modo algum, negar a
do direito "abstraindo o pensamento de qualquer possibilidade de qualquer outra abordagem,
circunstância particular", ou Rousseau que, no início "científica" e "moderna", do problema político de que
do Discurso sobre a desigualdade, proclama: falamos. Significa simplesmente reconhecer que
"Começamos por deixar de lado todos os
existem
FILOSOFIA DA POLÍTICA
duas maneiras de abordar e olhar aquele problema,
que (para usar uma fórmula desgastada a escolástica,
mas sempre oportuna) existem duas perguntas
diferentes que podem ser formuladas sobre a realidade
que nos circunda: uma sobre o "como" e outra sobre o
"porquê". O cientista político, desde que consciente
das limitações de seu horizonte e das dificuldades
provenientes da imperfeição dos instrumentos de que
dispõe, tem pleno direito de propor como objeto de sua
pesquisa aquele conjunto de fenômenos que,
selecionados na esfera mais ampla dos fenômenos
sociais, são considerados, na época em que ele realiza
sua investigação, fenômenos políticos. Mas tem
também a obrigação de admitir que aqueles mesmos
fenômenos podem ser objeto de uma pesquisa de tipo
radicalmente diferente; que a própria existência
daquele "poder", que ele assume como dado último e
incontrovertível de tais fenômenos, "existe" somente
porque existem homens que o reconhecem, tornando-o
tal. E para que os homens o tornem tal e como tal o
reconheçam, é preciso que existam razões (medo,
covardia, indolência, dizem alguns; consciência,
aceitação livre e racional, dizem outros) pelas quais
eles se submetam e obedeçam às suas ordens. Estas
razões são necessariamente o objeto da Filosofia da
política, que surge, assim, tal como a entendiam
aqueles que por muitos séculos a praticaram, como
investigação crítica sobre a natureza do dever político,
indagação sobre um problema que, apesar do variar
dos tempos e dos lugares e apesar da imensa variedade
das soluções propostas, ficou substancialmente
imutável; de fato, dela depende uma grande parte da
nossa existência, não somente de nossa inevitável
condição de cidadãos, mas também de nossa ainda
mais inevitável condição humana.
X. NATUREZA DO DEVER POLÍTICO. — Sobre a
natureza do dever político, parecem ser
substancialmente três os problemas que se impõem à
consideração filosófica. Vou mencioná-los brevemente
como conclusão.
O primeiro problema se refere ao significado a ser
atribuído à palavra "dever" na locução proposta; isto
é, se é preciso entender por esta expressão
simplesmente a situação de quem, num contexto
político (entendido no sentido mais amplo como
relação de dependência de um poder constituído), é
induzido a um certo comportamento pela presença de
uma sanção, ou se é preciso entendê-la, pelo contrário,
como condição daquele para quem tal comportamento
parece desejável, necessário ou "obrigatório",
independentemente da possibilidade da sua imposição
coativa por parte do poder superior. A primeira
499
interpretação (apenas para mencioná-la) corresponde à
tradicionalmente aceita pelos juristas para assinalar a
característica do dever jurídico: o elemento da sanção
(ou da coercibilidade) é, de fato, um tópico na
distinção entre direito e moral. Mas não há quem não
considere o dever político, entendido no primeiro
sentido, como um termo para descrever uma condição
de fato, uma situação real, em que o elemento
determinante é o domínio da força por parte de quem
manda e a sua capacidade de impor a obediência de
um determinado comportamento aos seus súditos. Não
faltaram na história do pensamento político autores
que, ao dever político, deram este significado. A eles
respondeu Rousseau, em nome de todos, num célebre
trecho: "A força é um poder físico" — lê-se num dos
capítulos introdutórios do Contrato social — "e eu não
sei ver que conseqüência moral ela possa ter. Ceder à
força é um ato de necessidade, não de vontade; no
máximo pode ser um ato de prudência. Em que
sentido poderia constituir um dever? Portanto, temos
que concordar em que a força não gera o direito e que
somos obrigados a obedecer somente aos poderes
legítimos".
O segundo problema está estritamente relacionado
com o primeiro. Rousseau, como vimos, fala de uma
conseqüência "moral" da legitimidade do poder.
Deveríamos, portanto, concluir que o dever político se
confunde, em última instância, com o dever moral?
Esta é a posição mais comum assumida pelos teóricos
políticos tradicionais e especialmente pelos fautores da
doutrina do direito natural, os quais faziam
exatamente depender a exigência de fidelidade
imposta ao cidadão do valor moral encarnado na
vontade do legislador.
A lei "justa" obriga in foro conscientiae; as leis
iníquas magis sunt violentiae quam leges. Apesar
disso, bastaria ler o Criton ou lembrar casos mais
recentes, para nos convencermos de que o dever
político não implica absolutamente a atribuição de um
valor moral a todas as leis a que, num contexto
político, se reconhece um caráter obrigatório. Sócrates
neste ponto não deixa sombra de dúvida. Se, ao invés
de procurar salvação na fuga, ele obedece à injusta
condenação, é porque acha que este é o seu dever de
cidadão ateniense. Nos nossos dias, o juiz que, em
nome do princípio dura lex sed lex, aplica uma lei que
ele prefere ver reformada ou ab-rogada, obedece a um
dever diferente daquele que lhe imporia a sua
consciência moral. De outro lado, o objetor de
consciência, que se nega a empunhar as armas em
nome do princípio da não-violência, não contesta por
isso a ordem
500
FISIOCRACIA
constituída, nem, na maioria dos casos, os demais
deveres de bom cidadão.
Existe, portanto, uma diferença substancial entre o
dever político e os demais deveres que se impõem ao
homem; e a tarefa da Filosofia política é de analisar
essa diferença, deixando claro aquilo que, em
primeiro lugar, distingue este dever e que constitui
seu caráter inclusivo ou global: este, portanto, implica
e convalida um conjunto de outros deveres, abstraindo
dos casos particulares e impondo comportamentos
que podem, às vezes, encontrar-se (como nos casos
mencionados de Sócrates, do juiz e do objetor de
consciência) em aberto e trágico conflito com o dever
moral.
São poucos, porém, aqueles que refletem
seriamente sobre todas as conseqüências implícitas na
existência do dever político; a maioria está disposta a
usufruir dos benefícios na pacífica existência diária,
mas pronta a contestá-lo de maneira radical quando os
tempos se tornam difíceis e as exigências da
convivência civil aparecem em contraste com a
aspiração por novos ideais. A uma mais madura e
consciente compreensão da natureza deste dever
conduz ou pode conduzir a Filosofia política: esta, de
fato, é a terceira função que a ela se pode e deve
atribuir. Com efeito, é exatamente aqui que se
demonstra
oportuna
e
necessária
aquela
"argumentação" sobre os valores, de que se falou
anteriormente: a única que permite avaliar a
consistência do dever político e eventualmente
transformar aquela que, na maioria dos casos, é uma
aceitação passiva ou um destino casual (a dependência
de um particular sistema político, o pertencer a um
determinado Estado), numa aceitação deliberada e
convicta, justificando a preferência por um
determinado tipo de sistema mais do que por outro.
Por exemplo, a justificativa que poderia ser proposta
para o ordenamento democrático: através dessa
justificativa, não se trata de "provar" que a democracia
é um sistema perfeito de Governo, mas simplesmente
de "apresentar razões" para preferi-la como sistema
que, assegurando a maior participação de todos nas
decisões fundamentais, torna menos prováveis a
divergência e o conflito entre os deveres que se
impõem ao homem como cidadão e aqueles que se lhe
impõem como homem, ou pelo menos diminui sua
freqüência e atenua suas tensões, providenciando uma
forma pacífica para resolvê-las e superá-las.
FRIEDRICH, Introduzione alla teoria política (1970),
Istituto Librario Internazionale, Milano 1971; F. E.
OPPENHEIM, Etica e filosofia política (1968), Il
Mulino, Bologna 1971; A. PASSERIN D'ENTREVES,
Obbedienza e resistenza in una società democratica,
Ed. di Comunità, Milano 1970; Id., Il palchetto
assegnato agli statisti. F. Angeli Editore, Milano 1979;
Political philosophy, ao cuidado de A. QUINTON,
Oxford University Press. Oxford 1967; L. STRAUSS,
Che cos'è la filosofia política (1959), Argalia, Urbino
1977; E. WEIL, Filosofia política (1956), Guida,
Napoli 1973; S. S. WOLIN, Politics and vision.
Continuity and innovation in western political thought,
Little, Brown and Company, Boston 1960.
Em direta relação com este tema, recordamos as
seguintes coleções: "Annales de Philosophie
Politique", ao cuidado do Institut International de
Philosophie Politique, 1956 e ss.; "Philosophy,
Politics and Society", ao cuidado de P. LASLETT e,
posteriormente, de P. LASLETT e W. G. RUNCIMAN,
1956 e ss.; "Nomos", ao cuidado da American Society
for Political and Legal Philosophy, 1958 e ss.
[ALLESSANDRO PASSERIN D'ENTREVES|
Fisiocracia.
I. DEFINIÇÃO. — Os que na história do pensamento
político são chamados fisiocratas eram conhecidos dos
contemporâneos apenas como économistes. O termo
physiocratie (do grego fusiz, natureza, e
cratoz, domínio) aparece pela primeira vez em
1767, quase a dez anos de começo do movimento,
numa antologia que, sob esse título, reunia os escritos
mais importantes da escola. Para os adeptos, a
Fisiocracia era "a ciência"; para os adversários, "uma
seita". O neologismo refletia a aspiração a uma visão
científica, universal, da história acontecida e por
acontecer, a confiança num modelo natural que era
preciso descobrir, um modelo a que fosse possível
adaptar-se: o melhor possível, por ser o único capaz de
propiciar a máxima e harmoniosa satisfação dos
interesses da autoridade soberana e das classes que
compõem o país. Mas foram justamente as pretensões
universais, a convicção de poder dar uma resposta a
todos sobre todas as coisas, a forma catequética dos
seus ensinamentos, a linguagem para iniciados e o
culto da personalidade de François Quesnay que
tornaram mais fácil a acusação de sectarismo contra os
BIBLIGRAFIA. - E. Barker , Principies of social and fisiocratas, que coarctava suas ambições de
political theory. Clarendon Press. Oxford 1951; A. objetividade científica.
BRECHT, Political theory. The foundations of XXth
II. HISTÓRIA. — A data de nascimento da
century political thought, Princeton University Press.
Fisiocracia é dezembro de 1758, quando Luís XV se
Princeton 1959; C. J.
divertiu a compor, na tipografia real, as poucas
páginas do Tableau économique, que se conver-
FISIOCRACIA
terá no texto fundamental da escola e será, para Karl
Marx, o fruto de "uma idéia genialíssima".
O autor, François Quesnay (1694-1774), médico da
Pompadour, dedicará à economia apenas pouco mais
de dez anos da sua longa vida. Os seus escritos de
interesse econômico, político e social remontam todos
eles ao período compreendido entre 1756, ano em que
iniciou sua breve colaboração para a Encyclopédie
com o artigo Fermiers, e 1768. Dedicou-se à
economia quando já alcançara a idade de sessenta
anos, abandonando-a para se dedicar a estudos de
geometria, precisamente quando o movimento
físiocrático se difundia pela França e pela Europa,
preparando-se para coroar, com Turgot, as ambições
de Governo que, desde 1758, com a publicação do
Tableau économique, tinham constituído a origem das
iniciativas de Quesnay.
Uma segunda versão do Tableau foi publicada em
1760, na parte sexta (pp. 119-279) de Ami des hommes
do marquês de Mirabeau (1715-1789), primeiro
discípulo do doutor. Outras elaborações do mesmo
Tableau encontram-se em Philosophie rurale de 1763,
também em colaboração com Mirabeau, e num
trabalho de 1766, Analyse de la formule arithmétique
du tableau économique de la distribution des dépenses
annuelles d'une nation agricole, publicada em
"Ephémérides du Citoyen", a revista que divulgava as
idéias da escola. A sistematização definitiva da
"ciência" ocorre na já citada antologia Physiocratie, ao
cuidado de Du Pont de Nemours (1739-1817), e em
Ordre naturel et essentiel des sociétés politiques
(1767), de Le Mercier de La Rivière.
III. Os TABLEAU. — As representações gráficas do
sistema de produção e de consumo como processo
circular constituem um instrumento analítico que é
uma antecipação daquilo que a ciência econômica
chama hoje "modelo". É por isso que, de Marx a
Wassily Leontief, a "modernidade" de Quesnay tem
sido constantemente reafirmada. O Tableau define o
papel fundamental do capital: explica como todo
mecanismo econômico é movido pela iniciativa de
quem antecipa o capital e reparte os lucros. Mas
Quesnay foi naturalmente criticado por haver
confundido o modo de produção de um determinado
período histórico com uma espécie de mecanismo
universalmente válido, querido pela natureza para
garantir a prosperidade aos homens de todos os
tempos e de todos os lugares, mediante o
desenvolvimento ilimitado da poupança dos
capitalistas privados.
IV. AÇÃO POLÍTICA. — Além de uma teoria
econômica (a análise da produção capitalista que tanto
impressionou Marx), podemos ver
501
também na Fisiocracia uma utopia social, com
pressupostos pseudocientíficos e um projeto político
que, ideado já em 1758, será levado avante, até o
ministério de Turgot (1774-1776), por um movimento
organizado com o objetivo de influir na opinião
pública com publicações periódicas (o "Journal
d'Agriculture", primeiro, e, depois, "Ephémérides du
Citoyen") e com uma torrente de brochures, saídas da
pena de Abeille, Baudeau, Du Pont de Nemours, Le
Trosne, Mercier de La Rivière, Mirabeau, etc.
O Tableau, como toda atividade de Quesnay
referente ao decênio de 60, insere-se num projeto
político orientado a evitar a catástrofe da monarquia,
mediante o incremento da receita do Estado e o
estabelecimento de um equilíbrio social duradouro.
Quesnay tinha consciência da gravidade da crise e
confiava na possibilidade de que, mais cedo ou mais
tarde, se recorresse às curas aconselhadas pela sua
"medicina". De fato, a Fisiocracia inspirou os últimos
projetos sérios de reforma antes da Revolução, desde
os editos respeitantes ao comércio dos cereais às
iniciativas de Turgot.
V. A CIÊNCIA POLÍTICA. — A inclusão dos
fisiocratas na história do pensamento político é
conquista recente. A sua fama de economistas ofuscou
sempre os contornos de um sistema que partia de uma
certa concepção do mundo e da sociedade para
desenvolver uma teoria política e, em sua atuação, uma
política econômica. Com o tempo, esta realidade
histórica se transtornou e os pressupostos filosóficos e
políticos foram vistos como nobilitações ulteriores de
instâncias econômicas.
É verdade que, em ordem cronológica, a enunciação
das diretrizes de política econômica antecede a
elaboração dos escritos de teoria política. Mas também
é verdade que os fundamentos da concepção do mundo
e da sociedade já se encontram em Essai sur
l'économie animale (1747, redação definitiva) e nos
artigos Evidence (1756) e Grains (1757), destinados à
Encyclopédie.
Já se disse que o movimento físiocrático se
desenvolve a partir de uma necessidade prática: suas
origens estão estreitamente ligadas à crise financeira
que alcançou sua fase aguda no auge da Guerra dos
Sete Anos, com a monarquia isolada no país e sem
outra política senão a da vontade de prosseguir as
hostilidades contra a Prússia e a Inglaterra a qualquer
custo. Quesnay, primeiro só, depois apoiado em sua
ação por discípulos entusiastas, viu claramente que a
crise não podia ser superada com simples economias,
como proclamava o Parlamento de Paris, procurando
evitar que fossem atacados antigos
502
FISIOCRACIA
privilégios. Mas a política econômica dos fisiocratas
nasce de uma visão da sociedade que aspira a ser
considerada como ciência. Este sistema, tido como
válido para todo tempo e lugar, está já totalmente in
nuce na obra de Quesnay, antes de tudo no Tableau
économique e em seus apêndices, tal como foram sendo
explanados nas sucessivas redações desse documento
fundamental da Fisiocracia. Escreve, em 1768, Du Pont
de Nemours, primeiro historiador do movimento
fisiocrático: "Há um caminho necessário para
aproximar-se o mais possível do objetivo da
associação entre os homens e da formação dos corpos
políticos. Há, portanto, uma ordem natural, essencial e
geral, que encerra as leis constitutivas e fundamentais
de todas as sociedades; uma ordem da qual as
sociedades não se poderão afastar sem se diminuírem
como sociedades, sem que o Estado político perca
consistência, sem que os seus membros se achem mais
ou menos desunidos numa situação de violência; uma
ordem que não se poderia abandonar totalmente sem
cair na dissolução da sociedade e, bem depressa, na
total destruição da espécie humana. É isso o que
Montesquieu não sabia". Quesnay, "encorajado com a
importância desta visão e com a perspectiva das
notáveis conseqüências que daí havia de tirar, aplicou
todo o poder da sua penetrante inteligência à pesquisa
das leis físicas relativas à sociedade, conseguindo,
enfim, certificar-se do fundamento indestrutível de tais
leis, abrangê-las em seu conjunto, entender a sua
concatenação, deduzir e demonstrar seus resultados".
Quase cinqüenta anos depois, Du Pont de Nemours
escreveria a J.-B. Say uma carta amarguradíssima em
defesa dos princípios e dos ideais fisiocráticos,
sustentando que a economia não deve ser apenas uma
"ciência das riquezas", mas "a ciência do direito
natural aplicado às sociedades civilizadas... a ciência
das Constituições, que ensina e ensinará, não só o que
os Governos não devem fazer pelo próprio interesse e
pelo das suas nações, ou das suas riquezas, mas o que
não devem fazer diante de Deus... A economia política
é a ciência da justiça iluminada em todas as relações
sociais e exteriores... Quesnay... fundou a nossa
ciência;... assentou os alicerces do templo;... construiu
os seus grossos muros. Nós e vós colocamos nele
cornijas, florões, astrágalos e algum capitei sobre
colunas já erguidas".
Tratando-se de uma adequação às leis naturais, o
legislador, ao emitir leis positivas, não fará senão ter
presente, declarar a validade de um modelo perfeito. A
teoria contratualista do Estado é superada por uma
organização social que não é criação arbitrária, mas
necessária derivação da
natureza do homem e das coisas. É neste sentido que
se interpreta a resposta que Le Mercier de La Rivière
teria dado a Catarina II: "Dar ou fazer leis, Senhora, é
incumbência que Deus não deixou a ninguém". Daí a
teoria do "despotismo legal'', contraposta à do
"despotismo iluminado": aquele, domínio de leis
imutáveis, descobertas de uma vez para sempre; este,
arbítrio pessoal, condicionado pelo acaso.
Mas, em que consiste esse modelo ideal? Quais são
as características do "Governo evidentemente mais
perfeito", daquele governo que pode permitir a
máxima expansão do direito natural? Os princípios
fundamentais estão fixados nas trinta Maximes
générales du gouvernement économique d'un royaume
agricole, antecipadas, dez anos antes, em apêndice ao
artigo Grains e, depois, em Tableau économique.
Nelas encontramos a indicação dos elementos
fundamentais de toda organização social (propriedade,
liberdade, segurança) e a determinação das funções do
Governo (despotismo legal) e das classes (critério de
produtividade) na ordem social teorizada pela
Fisiocracia.
Propriedade, liberdade, segurança: os três princípios
se resumem no primeiro, já que os dois últimos servem
para garantir o máximo de desfrute da propriedade
pessoal. São postos, dissemos, como condições para a
existência de qualquer sociedade. A teoria política,
ligada intimamente aos princípios da economia
política e às prescrições da política econômica, está já
expressa no artigo Hommes (1757) em luminosa
síntese, quando se sustenta que "os Estados são
vivificados pela liberdade e pelo interesse privado",
enquanto que o despotismo dos soberanos e dos seus
ministros, a insuficiência e a instabilidade das leis, os
abusos do Governo, a incerteza da propriedade dos
bens e as imposições desordenadas destroem a
sociedade.
Observe-se que, em Quesnay, a instituição da
propriedade é defendida transferindo o fundamento da
discussão do terreno moral e jurídico para o social e
econômico. Leiamos, numa formulação mais completa
e categórica, a quarta das Maximes générales: "Seja
garantida aos legítimos possuidores a propriedade dos
bens imóveis e das riquezas mobiliárias, já que a
segurança da propriedade é o fundamento essencial
da ordem econômica da sociedade. Sem a certeza da
propriedade, o território ficaria inculto. Nem haveria
proprietários nem arrendatários para fazer os gastos
necessários à sua valorização e cultivo, se não fosse
garantida a conservação dos terrenos e da sua
produção àqueles que antecipam tais despesas. É a
segurança da posse permanente que estimula o
trabalho e o emprego das riquezas
FORÇA
no melhoramento e cultivo das terras e em
empreendimentos comerciais e industriais. Só o poder
soberano assegura a propriedade aos súditos e o
direito primitivo à repartição dos produtos da terra,
única fonte de riqueza".
A mesma tolerância é reclamada em matéria de
religião, tendo em vista o interesse econômico: "A
liberdade da religião atrai os homens e as riquezas. A
intolerância excessivamente rigorosa os afasta" (artigo
Hommes). Não diremos com Tocqueville que os
fisiocratas "adoravam a igualdade até a servidão", nem
tampouco com Louis Blanc que- eles "inauguram o
reino do individualismo". Quesnay defende os
princípios liberais, que vão além da liberdade
econômica (o laissez faire, laissez passer), mas o seu
fundamento assenta sempre numa avaliação
exclusivamente economicista. Ao contrário de um
d'Argenson, por exemplo, cujo Pas trop gouverner se
opunha ao Laissez nous faire de Colbert.
Chega-se assim ao ponto mais embaraçoso do
pensamento político de Quesnay e da Fisiocracia:
como é que se concilia a teoria do "despotismo legal"
com a liberdade econômica e, prescindindo das demais
liberdades invocadas, com as constantes advertências a
não fazer pesar demasiado a autoridade do Estado? A
contradição é apenas aparente, se aceitarmos os
pressupostos do sistema, se recordarmos, antes de
tudo, que o legislador não deve fazer outra coisa senão
declarar as leis positivas, adequando-as às leis
naturais, o Governo controlar a sua aplicação e o
cidadão, gozando da sua liberdade moral, observá-las,
conscientes de estender o direito natural até o máximo
possível. Despotismo, portanto, não de um homem ou
de uma aristocracia, não em conformidade com
qualquer ordenamento social que vise à defesa de
interesses particulares, mas despotismo da "forma de
Governo claramente mais perfeita", por responder aos
princípios da ordem social natural e à máxima
satisfação possível dos interesses de todos.
BIBLIOGRAFIA. - François Quesnay et la
physiocratie, t. II: Textes annotés, Ined, Paris 1958;
Ökonomische Schriften, ao cuidado de M. KUCZYNSKI,
Akademie Verlag, Berlin 1971-1976, 2 vols. em 4
tomos, Quesnay's Tableau économique. ao cuidado de
M. KUCZYNSKI e R. L. MEEK, Macmillan, London-New
York 1972; E. FOX-GENOVESE, The origins of
physiocratie. Cornell University Press. Ithaca and
London 1976; A. MAFFEY, li pensiero político della
fisiocrazia, in Storia delle idee politiche, economiche e
sociali, ao cuidado de L. FIRPO, UTET, Torino 1975,
vol. IV, t. 2, pp. 491-530; R. L. MEEK, The economics of
503
physiocracie. Harvard University Press. Cambridge
1963; G. WEULERSSE, Le mouvement physiocratique en
France (de 1756 à 1770). Alcan, Paris 1910, 2 vols.
[ALDO MAFFEY]
Força.
No campo das relações políticas e sociais, por
Força entende-se qualquer intervenção física
voluntária de um homem ou grupo contra um outro
homem ou grupo, objetivando destruir, ofender ou
coartar. Neste sentido puramente descritivo, Força é
sinônimo de "violência". Para um exame do
significado e das funções políticas destas intervenções
físicas, v. VIOLÊNCIA. Convém lembrar, aqui,
brevemente, as distinções que foram feitas entre Força
e violência, especialmente na filosofia política, na
doutrina jurídica e em certas formulações ideológicas,
e apontar as razões que desaconselharam sua aceitação
na literatura politológica e sociológica.
Em filosofia política, a distinção mais difundida é a
que chama Força às intervenções físicas justas, que
preservam a ordem social ou perseguem o bem
comum, e chama violência às intervenções físicas
injustas, que destroem a ordem social ou impedem o
bem comum. Na doutrina jurídica, tende-se a designar
com o termo Força as intervenções conforme a lei, e
portanto lícitas, e com o termo violência as
intervenções que violam as normas jurídicas, e são,
portanto, ilícitas. Enfim, entre as concepções
ideológicas podemos mencionar a de Georges Sorel
que, numa perspectiva de exaltação da violência, via
na Força o instrumento do domínio autoritário de uma
minoria sobre a maioria e. na violência, o instrumento
de libertação da maioria da exploração de poucos. É de
evidência imediata que todas estas distinções estão
fortemente impregnadas de juízos de valor. Trata-se de
uma avaliação diferente (ética, jurídica ou éticopolítica), que se formula sobre o fim, o efeito ou as
modalidades de dois eventos exteriormente análogos,
avaliação que permite chamar o primeiro, em sentido
positivo, de Força, ou no sentido oposto, à maneira de
Sorel, violência, e o segundo, em sentido negativo, de
violência, ou, no sentido oposto, de Força. Ora, estes
juízos de valor, enquanto são formulados
adequadamente pelo filósofo, pelo jurista ou pelo
ideólogo, são legítimos num discurso abertamente
prescritivo; mas não o são num discurso científico e
descritivo como o da ciência política e da sociologia.
504
FORÇAS ARMADAS
Naturalmente, também o politólogo e o sociólogo
precisam distinguir entre as intervenções físicas que
em certo âmbito social são consideradas legítimas das
que não o são. Neste caso, o estudioso não pronuncia
propriamente um juízo de valor, mas descreve o
"sentido" (que compreende também avaliações) que
aqueles que pertencem a um determinado contexto
social atribuem a certas relações. Somente assim é
possível distinguir, numa dada sociedade, entre uma
morte que é considerada "assassínio" e uma morte que
é considerada "execução capital". Todavia, usar neste
sentido os dois termos Força e violência é
freqüentemente despropositado, porque o emprego de
dois termos diferentes tende a objetivar a distinção, a
torná-la muito rígida, a sugerir que haja um consenso
unânime ou quase unânime acerca das intervenções
físicas que devem ser consideradas legítimas ou
ilegítimas. Entretanto, do ponto de vista científico, a
amplitude da difusão da crença na legitimidade de
determinadas intervenções físicas não pode ser dada
como certa pelo fato de se usar os mesmos termos,
mas deve ser averiguada, de cada vez, por meio de
pesquisa empírica. Pode acontecer, por exemplo, que
amplas camadas da população de um Estado, embora
não a contestem ativamente, não aceitem a crença na
legitimidade de muitas das intervenções físicas
determinadas pelo Governo. Podem também existir
grupos rebeldes ou revolucionários que proclamam a
legitimidade das próprias intervenções físicas e a
ilegitimidade das do Governo, e que chamam a estas
últimas de Força, à maneira de Sorel, ou de violência,
usando a palavra no sentido depreciativo.
Nesta situação, aquilo que os fautores do Governo
julgam um assassínio, pelos fautores da revolução
pode ser considerado como a execução de uma
sentença pronunciada em nome do povo ou da justiça;
e aquilo que para os fautores do Governo é uma
execução capital mencionada pela lei legítima do
Estado, para os fautores da revolução pode ser um
simples assassínio. Portanto, para evitar qualquer
equívoco, parece mais oportuno, de acordo com o uso
já muito comum nos estudos de ciência política e de
sociologia, renunciar à mencionada distinção entre
Força e violência, usando os dois termos como
sinônimos ou empregando somente um deles para
significar as intervenções físicas, e distinguir, através
de uma fórmula que tem a vantagem da imediata
clareza, entre empregos da Força ou violência
"considerados legítimos" e empregos "considerados
ilegítimos" em determinados grupos ou agregados
sociais, como também distinguir entre os diversos
sistemas de valores, com base nos quais
diferentes grupos sociais consideram legítimos ou
ilegítimos certos usos da Força ou violência.
[MARIO STOPPINO]
Forças Armadas.
I. DEFINIÇÃO. — As Forças Armadas constituem o
complexo das unidades e serviços militares do Estado:
seu núcleo tradicional e central é formado pelo
Exército, pela Marinha e pela Aeronáutica militares.
O Exército é a força militar típica da terra,
preparada e equipada para desenvolver operações de
defesa no território nacional e de ofensiva no território
inimigo. A sua organização permite operar em todos os
terrenos, usando pequenas, médias e grandes unidades,
de acordo com as características do teatro das
operações e das necessidades da guerra. Neste século,
porém, o uso tático de grandes massas de soldados
tem-se revelado cada vez menos adequado às
exigências da guerra moderna, e a utilização bélica do
Exército tem reconhecido a ação de pequenas e ágeis
unidades, unidas sob comandos centralizados e
estruturadas
segundo
diversas
especialidades
operacionais e técnicas.
A Marinha militar atende à defesa das águas
territoriais, das infra-estruturas portuárias e receptivas
e, em tempo de guerra, à proteção das comunicações
marítimas e dos comboios comerciais. Em colaboração
com o Exército, assegura o transporte marítimo de
tropas de terra e, com a Aeronáutica militar, o emprego
de porta-aviões. Cuida do ataque a unidades navais
adversárias e da destruição da infra-estrutura portuária
do inimigo. Opera geralmente com comboios, que
compreendem unidades diversamente especializadas,
com vistas à comum defesa e a um mais incisivo uso
ofensivo dos meios.
A Aeronáutica militar, a última historicamente
formada das três armas, não só provê ao apoio tático
das tropas de terra e dos comboios marítimos, como
também realiza operações autônomas de destruição,
por meio de bombardeamento, de unidades ou infraestruturas militares inimigas e, quando necessário, do
próprio aparelho industrial e infra-estruturas civis
(centros habitados, etc.) dos países adversários. A
Aeronáutica opera com aeronaves individuais em
operações de reconhecimento e com aeronaves
organizadas em esquadrilhas para maior concentração
do esforço ofensivo nos bombardeamentos.
A tradicional distinção do lugar físico de uso
peculiar das três armas (terra, mar, ar) tende
FORÇAS ARMADAS
lentamente a desaparecer, e vai se consolidando cada
vez mais o uso de um sistema defensivo-ofensivo
integrado, orientado e organizado por um único
comando central. Criaram-se especialidades de
coligação entre as três armas: na Itália, por exemplo,
as unidades de "incursores" e de "lagunares" da
Marinha, os grupos de helicópteros também da
Marinha, a aviação ligeira do Exército, etc. Todas as
unidades formalmente organizadas das três armas
dependem, na Itália, do Ministério da Defesa (v.
DEFESA).
A estas três Forças Armadas se foram juntando
pouco a pouco outros corpos armados, preparados
para desenvolver principalmente tarefas de ordem
interna, formalmente organizados dentro das Forças
Armadas, disciplinados por códigos militares comuns,
mas sujeitos à observância de regulamentos diferentes.
Estes corpos, na Itália, dependem do presidente da
República, como chefe das Forças Armadas, e de
diversos ministérios, de acordo com as tarefas que lhes
são confiadas. São corpos armados o Corpo de
Guardas de Finanças, dependentes do Ministério das
Finanças, o Corpo de Agentes de Custódia,
dependentes do Ministério de Graça e Justiça, e b
Corpo de Guardas Florestais, dependente do Ministério
da
Agricultura
e
Florestas.
Tem
feito
ininterruptamente parte dos corpos armados o Corpo
dos Vigilantes do Fogo, dependente do Ministério do
Interior.
Os corpos armados desempenham funções típicas da
polícia (v. POLÍCIA) e têm pouco relevo do ponto de
vista militar. Um corpo que exerce funções tanto
militares (de polícia militar) como civis (de polícia
civil) é a Arma dos Carabineiros; faz inteiramente
parte do Exército, dependendo, quanto aos problemas
hierárquicos e organizativos, do Ministério da Defesa
e, quanto aos deveres de polícia, ao financiamento e
operações, do Ministério do Interior. É, no entanto,
considerada como parte integrante do Exército e
equipada como tal.
II. ORGANIZAÇÃO. — Do ponto de vista técnico-militar,
as Forças Armadas são internamente organizadas com
vistas à sua preparação para as tarefas que
institucionalmente lhes são confiadas. Busca-se a
maximização do potencial ofensivo e defensivo, melhor
equação entre as despesas e a qualidade do
equipamento e um grau mais estreito e funcional de
integração entre os vários corpos.
Para coordenação de esforços e consecução dos fins
propostos, mas também por tradição histórica, as
Forças Armadas, especialmente o Exército, estão
subdivididas em Armas e Serviços: aquelas são
estruturas orgânicas autônomas que se distinguem
pelas especialidades técnico-operativas (Arma de
Cavalaria, de Infantaria, de
505
Artilharia, de Engenharia, . . .); estes são estruturas
complementares daquelas, caracterizadas pelo emprego
de técnicas particulares de apoio (Serviço Sanitário,
Veterinário, dos Transportes, das Transmissões, . . .).
Esta organização formal não corresponde hoje a
razões militares e operativas, mas a necessidades de
funcionamento e de continuidade burocrática e
hierárquica, visando ao desenvolvimento da carreira
do pessoal e a uma distribuição funcional dos meios e
das infra-estruturas militares. De fato, na guerra, as
unidades operacionais das Forças Armadas são
geralmente estruturadas em exércitos e corpos,
organizados por um comando centralizado com a
contribuição das várias Armas e Serviços.
É, por isso, difícil analisar as Forças Armadas de
um ponto de vista político, com base no sistema
orgânico-burocrático das Armas e dos Serviços, uma
vez que ele possui escasso valor operativo e funcional,
sendo um resultado histórico e tradicional de antigas
unidades e corpos militares.
Em lugar disso, é mais interessante a análise da
relação que existe entre as Forças Armadas e a classe
política em termos de resposta à solicitação de
serviços militares que esta lhes dirige, e entre as
Forças Armadas e a sociedade civil, no que respeita às
formas
de participação dos cidadãos no
funcionamento das Forças Armadas e ao tipo de
recrutamento adotado
III. Os SERVIÇOS MILITARES. — Entre os vários
serviços militares, é a "defesa da pátria" que constitui,
sem dúvida, o que mais comumente se pede às Forças
Armadas. Numa primeira acepção, "defesa da pátria"
significa defesa de uma agressão externa ao
território, ao espaço aéreo e às águas territoriais
nacionais. A preparação para tal defesa compreende o
adestramento do pessoal militar, o aprontamento de
planos defensivos capazes de repelir a agressão, e a
correspondente atividade de espionagem e contraespionagem.
Uma segunda acepção de sentido moderno e
democrático do serviço de "defesa da pátria'' estende
os seus objetivos à defesa das instituições que
garantem o funcionamento e a vida democrática do
Estado: o Parlamento, o Governo, as regiões, as
administrações locais, etc. Segundo esta acepção, as
Forças Armadas estão igualmente chamadas a
defender o Estado de agressões internas, que tenham
por objetivo a destruição e ruína dos sistemas político
e administrativo. Ambas as acepções vinculam
estritamente a resposta militar aos atos de agressão
realmente efetuados, limitando, por isso, o serviço de
"defesa da pátria"
506
FORÇAS ARMADAS
a uma posição defensiva e excluindo as ações
preventivas ou agressivas.
Historicamente, porém, por "defesa da pátria"
também se entendeu a conquista de territórios
considerados parte integrante da "pátria" por razões
históricas, étnicas e culturais, mas sujeitas ao domínio
e jurisdição de países estrangeiros, ou então a
conquista de territórios considerados essenciais para
a sobrevivência e desenvolvimento econômico do
Estado, postas de parte as considerações de caráter
nacional e étnico (saída para o mar, etc).
Desta concepção, não já apenas defensiva mas
também agressiva, de "defesa da pátria" originou-se
depois a extensão do conceito à defesa dos territórios
de algum modo controlados pela administração estatal
e à conquista dos territórios considerados necessários
pela classe política para o desenvolvimento e
consideração internacional do país. Tornou-se assim
possível confundir a "defesa da pátria" com a
conquista de territórios coloniais e dissimular a
função colonialista e imperialista sob a função
"patriótica". Para os últimos países colonialistas
(Portugal, por exemplo), esta dissimulação se revelou
tão precária que eles se viram obrigados a transformar
as colônias em províncias de pleno direito da mãepátria. As Forças Armadas foram assim oficialmente
usadas contra os movimentos militares locais de
libertação nacional, "em defesa da pátria ameaçada
numa das suas províncias ultramarinas".
Outro serviço militar ligado em parte ao da "defesa
da pátria" é o que concerne à salvaguarda da ordem
pública e da estabilidade interna. Este serviço é
exigido, quer no caso de calamidades naturais, em que
as Forças Armadas são empregadas em tarefas de
socorro e proteção das zonas sinistradas, em
colaboração com as forças de polícia, quer para um
verdadeiro e autêntico controle da vida política e das
suas manifestações de rua. Neste último caso, a classe
política que está no poder faz coincidir o conceito de
"defesa da pátria" e das suas instituições com o da
defesa da ordem social e econômica vigente: as Forças
Armadas assim utilizadas tornam-se instrumento de
regulação interna dos conflitos e das tensões
econômicas e sociais do país, chegando a
desempenhar verdadeiras e autênticas atribuições
policiais (v. POLÍCIA).
Outros serviços, não diretamente militares, que são
pedidos às Forças Armadas em situações históricopolíticas particulares, são a alfabetização dos recrutas
e a formação de uma ideologia nacional. O primeiro
resulta do encontro entre a estrutura organizacional
das Forças Armadas, articulada e distribuída por todo
o território nacional, e a conexão coativa existente
entre as
Forças Armadas e os cidadãos dentro do sistema de
recrutamento obrigatório. Os cidadãos que fugiram à
obrigação da escola primária, quando existente, logo
que ingressados como recrutas nas Forças Armadas,
são inscritos em cursos de alfabetização acelerada, ao
mesmo tempo que fazem o usual adestramento militar.
Historicamente, porém, a importância deste serviço
não esteve tanto na real função da alfabetização de fato
realizada, quanto no uso propagandístico que dela se
fez para apresentar as Forças Armadas como uma
organização útil ao progresso civil do país. É daqui
que se originou a visão das Forças Armadas,
particularmente das organizadas com o recrutamento
obrigatório, como escola da nação, ou então como
organismo formativo a par do sistema escolar e, como
tal, funcional ao desenvolvimento das capacidades do
país.
Atualmente, o serviço de alfabetização dos recrutas
quase não existe nas Forças Armadas dos países
industrializados, possuidores além disso de um
eficiente serviço escolar, enquanto que, nos países em
vias de desenvolvimento, à alfabetização propriamente
dita se veio juntar a obra de preparação de pessoal
técnico especializado. Faltando, na realidade, um
sistema escolar especializado no campo técnico, os
quadros militares, justamente por estarem em contato
com sistemas de armamento tecnologicamente
avançados, exercem a função de elemento formador de
pessoal especializado. As dificuldades de realização
deste serviço residem na diferença fundamental que
existe entre a tecnologia necessária para o
funcionamento dos sistemas de armamento das Forças
Armadas e aquela que pode ser usada no aparelho
industrial civil. Num contexto produtivo pouco
desenvolvido, tais diferenças podem ser tidas como
secundárias e a preparação de pessoal técnico pelas
Forças Armadas poderá oferecer uma utilidade definida.
Porém, num país suficientemente industrializado, esse
serviço será de escassa importância, embora continue
sendo um chamariz para o alistamento voluntário de
jovens sem especialização.
O serviço de formação e difusão de uma ideologia
nacional é próprio das Forças Armadas de países
confederativos ou que alcançaram há pouco a unidade
nacional. Uma organização das Forças Armadas única
e centralizada e a possibilidade de contato e de
colaboração que se cria entre cidadãos provenientes de
diferentes situações étnicas e sociais permitem atuar
com vistas à formação de uma ideologia e de uma
mentalidade nacional unitárias, aliás dificilmente
conseguíveis. Todavia, tal como aconteceu com o
serviço de alfabetização, também este tem sido
instrumentalmente usado e propalado: na estrutura
FORÇAS ARMADAS
disciplinar das Forças Armadas, caracterizada por uma
situação objetiva de coação moral e física dos
cidadãos em armas, pelo isolamento do mundo do
trabalho e das forças sociais economicamente ativas, a
formação da ideologia nacional tem coincidido muito
amiúde com a. transmissão forçada da ideologia das
classes que estão no poder, vindo a sobrepor-se aos
interesses de toda a comunidade nacional a maneira de
ver de uma parte da sociedade e do país. O próprio
sistema hierárquico que distingue as Forças Armadas
de qualquer outra organização de serviços é usado para
o condicionamento ideológico dos cidadãos em armas:
o parcelamento das tarefas e funções, o isolamento e a
rejeição da concepção social e cooperativa do trabalho
militar têm constituído elementos de profundo
condicionamento ideológico. A transmissão da
ideologia continua ainda quando os jovens retornam às
suas ocupações civis: é tradição muito comum que os
ex-militares se inscrevam em Associações de Arma, de
acordo com a especialidade a que pertenceram
(Alpinos, Infantes, Aviadores, Serviços Motorizados,
Páraquedistas. Caçadores, etc). Estas associações
organizam reuniões e desfiles por ocasião de
ocorrências militares, recriando e perpetuando
momentos de vida coletiva em que se robustece e
reaviva a ideologia transmitida quando do serviço
militar.
507
armas, para garantir os serviços militares essenciais
em tempo de paz.
O dever do adestramento militar não abrange as
mulheres na maior parte dos países. É uma exclusão
historicamente relacionada com a exclusão da mulher
da vida política e do gozo dos principais direitos civis.
Em Estados de nova formação (Cuba, Israel, por
exemplo), as mulheres são chamadas a alistar-se do
mesmo modo que os homens, enquanto que, nas
democracias ocidentais, o problema da extensão da
conscrição obrigatória às mulheres — apresentado às
vezes como uma réplica polêmica aos movimentos
feministas — não surtiu até hoje algum efeito. E que
isso veio coincidir com a crise da credibilidade da
conscrição obrigatória. Esta é, na realidade, comumente
considerada como o tipo de recrutamento que melhor
corresponde ao espírito democrático dos modernos
ordenamentos estatais: o dever de cumprir o serviço de
recruta e, portanto, de se preparar para a "defesa da
pátria'' é tido como um direito historicamente
adquirido, em oposição ao monopólio da defesa e do
poder militar mantido antes pela aristocracia e pelos
militares de profissão. Contudo, a conscrição
obrigatória só conservou formalmente o caráter
democrático uma vez que esse monopólio veio
normalmente a reproduzir-se com a profunda diferença
qualitativa que existe entre a preparação militar dos
elementos de carreira das Forças Armadas e a dos
IV. O RECRUTAMENTO. — As Forças Armadas são elementos provisórios provenientes do alistamento. O
organizadas de modos diversos, em consonância com domínio e emprego das armas modernas e dos
os serviços que lhes são pedidos. Elemento comum a sistemas de armamento apresentam, com efeito, uma
todos os tipos de organização é a presença de um complexidade tal que só pessoal altamente
conjunto de quadros voluntários permanentes, postos especializado deles pode dispor. É um problema que
como garantia da continuidade da preparação das não pode ser resolvido com o emprego de pessoal
unidades e como centro propulsor das Forças Armadas alistado, não só pelo pouco tempo em que é adestrado,
em caso de conflito. As Forças Armadas caracterizam- mas também pelo desperdício de recursos que
se, portanto, pelo tipo de recrutamento adotado no representaria investir somas enormes na preparação de
preenchimento dos quadros e do pessoal necessário a pessoal que só vai ser utilizado durante o breve
assegurar os serviços requeridos.
período do serviço militar.
O modelo de recrutamento que se foi impondo cada
Na Aeronáutica e na Marinha principalmente, estas
vez mais a partir da Revolução Francesa é o da diferenças de grau de especialização têm ido reduzindo
conscrição masculina obrigatória: todos os cidadãos de pouco a pouco o peso do pessoal proveniente do
sexo masculino, nascidos ou residentes no território do recrutamento em relação ao pessoal de carreira. Este,
Estado, logo que atingirem um limite de idade fixado além disso, tem podido manter a vantagem sobre
por lei, são inscritos pela administração local em listas aquele por um melhor conhecimento do aparelho
de recrutamento apropriadas e, após o exame médico militar e do seu funcionamento, ao passo que o
de idoneidade, efetuado pela autoridade médica pessoal de recruta, chamado uma só vez em tempo de
militar, são encaminhados às diversas armas.
paz para o adestramento nas armas, nunca mais pôde
O serviço militar assim prestado se configura como utilizar, para um controle democrático eficaz desse
um dever do cidadão e tem uma duração que é mesmo mecanismo, os conhecimentos adquiridos no
estabelecida por lei, tendo em vista o contingente que tempo em que serviu.
se julga necessário manter em
Cada vez vai perdendo mais valor a idéia de que a
conscrição obrigatória constitua um modelo
508
FORÇAS ARMADAS
de recrutamento "democrático": o pessoal proveniente
do alistamento se encontra, de fato, não só inserido
num mecanismo cujo funcionamento ignora, como
também posto numa situação de subordinação
marginal com respeito ao cumprimento das funções
confiadas às Forças Armadas. O caráter democrático
da conscrição obrigatória deixou, por isso, de ter
razão de ser, transformando-se em instrumento de
propaganda nas mãos dos elementos de carreira das
Forças Armadas, em confronto com a classe política e
com a opinião pública. É como um cômodo biombo a
resguardar de um controle eficaz a vida interna das
Forças Armadas.
Esta diferenciação dentro das Forças Armadas
constitui também o fundamento de outro tipo de
recrutamento, que prevê obter, com a conscrição
obrigatória, apenas uma parte da tropa necessária, e a
outra, com o recrutamento voluntário de especialistas
por tempo mais longo. As Forças Armadas recrutadas
por este sistema são, pois, constituídas, não só de fato,
mas também oficialmente, em seus quadros de oficiais
e suboficiais e nos papéis especializados da tropa, por
pessoal só de carreira e, na tropa em geral, por pessoal
de recruta, sujeito ao tradicional período de
adestramento militar e, logo em seguida, reenviado
para casa.
Este tipo de recrutamento misto da tropa, por
alistamento obrigatório e por alistamento voluntário,
está atualmente em uso nos exércitos da maior parte
dos Estados europeus: estes tiveram que enfrentar o
duplo problema de não subtrair por longo tempo
forças produtivas ao processo do trabalho, com
prolongados períodos de serviço militar, bem como o
da necessidade de aprontar umas Forças Armadas
eficientes sem renunciar aos mais modernos e
complexos sistemas de armamento. A presença
institucionalizada de pessoal profissional na tropa
sempre se deu nos exércitos modernos. O fenômeno a
que aludimos aqui não consiste na presença de
militares de carreira entre a tropa, mas na absoluta
concentração em suas mãos do controle dos sistemas
defensivos e ofensivos mais eficazes. Foi assim
possível, por exemplo, encarar a divisão das Forças
Armadas em dois setores operativamente distintos: por
um lado um setor de pronta utilização, caracterizado
por sistemas de armas não convencionais (nucleares),
formado por profissionais (veja-se a force de frappe
francesa), e, por outro, um setor formado por unidades
convencionais, predominantemente constituídas por
pessoal alistado e usadas como apoio logístico dos
primeiros.
Um tipo de recrutamento que resolve parcialmente
os problemas políticos postos pela conscrição
obrigatória até aqui descritos é o ligado
à concepção defensiva da nação armada. Trata-se de
um tipo particular de recrutamento, de uma conscrição
masculina obrigatória em que, a um primeiro período
de adestramento de alguns meses, feito por cidadãos
de vinte anos de idade, segue-se uma série de
convocações mais breves e espaçadas, até ser
alcançado um limite compreendido entre os 40 e os 50
anos. O cidadão é assim adestrado e mantido
permanentemente atualizado, não só quanto às
inovações técnicas no campo militar, como quanto à
doutrina defensiva elaborada pelo Estado maior. Este
tipo de recrutamento é adotado pela Confederação
Helvética, que dispõe assim de uma força militar
eficiente, permanentemente adestrada e pronta para a
defesa do território; além disso, para eliminar o perigo
de um ataque imprevisto por parte de forças inimigas
e, conseqüentemente, as dificuldades ligadas à
mobilização e armamento dos combatentes, todo
cidadão-soldado guarda, durante todo o seu tempo de
serviço, ou até a última convocação, a sua própria arma
individual, por cuja manutenção e condições de
eficiência é chamado periodicamente a responder.
Além das reais vantagens em termos de eficiência
defensivo-militar de um tal tipo de recrutamento, o
sistema das convocações freqüentes faz com que os
cidadãos, já providos de conhecimentos suficientes
sobre o funcionamento da máquina militar, possam
exercer um controle decisivo sobre o funcionamento
das Forças Armadas e, por conseguinte, sobre os seus
elementos de carreira.
Outro sistema de recrutamento que representa mais
uma modificação da conscrição obrigatória é o
organizado em tomo do conceito da guerra por grupos
(v. GUERRILHA), para a defesa descentralizada das
cidades e das instalações industriais das várias zonas
do país, a cargo dos próprios habitantes. A
constituição de grupos armados, com a contribuição
dos jovens de ambos os sexos, é o sistema adotado,
por exemplo, na República Iugoslava. O grau de
autonomia destes grupos em relação ao comando
central, a limitação geográfica fundamental dos seus
objetivos à defesa do território, o perfeito
conhecimento do terreno das operações e a estreita
ligação que se cria entre os militares e a realidade
sócio-política levam a considerar este sistema de
recrutamento como o mais adequado à defesa do
Estado dentro dos limites nacionais; existe ainda a
garantia, de não somenos importância, de que tal
sistema não poderá ser usado em ações bélicas
agressivas nos territórios de outros Estados.
A condição essencial para a realização deste tipo de
recrutamento e de organização militar
FORMAÇÃO SOCIAL
é o estreito vínculo que deve existir entre a classe
política e as instituições estatais, por um lado, e o
povo e os assuntos políticos, por outro: do contrário, o
parcelamento da força militar e das suas instâncias
decisórias, num sistema de participação política
instável, seria contraproducente para a estabilidade
das instituições e da ordem do Estado.
Mais clara parece, enfim, a escolha do voluntariado
como único tipo de recrutamento da tropa das Forças
Armadas em tempo de paz: ela é formada apenas de
pessoal voluntário, inscrito com base em contratos de
trabalho por tempo fixo bem definidos. Este sistema é
adotado na Europa pela Grã-Bretanha; permite dispor
de um eficiente mas limitado contingente de Forças
Armadas, sem desviar mão-de-obra do mercado de
trabalho. Em caso de guerra, em torno desta pequena
estrutura de Forças Armadas, organizam-se
contingentes obtidos com o chamamento obrigatório.
O recrutamento voluntário apresenta, aliás, a
vantagem de equiparar, aos olhos da classe política e
da opinião pública, as Forças Armadas com as forças
da polícia, solicitando um mesmo tipo de controle para
a ação e possíveis desvios de ambas as organizações
militares.
Querendo, finalmente, relacionar o tipo de serviço
militar exigido às Forças Armadas com a organização
do recrutamento, poderemos notar que, se o serviço
militar requerido consiste na "defesa da pátria" de
agressores externos e existe um estreito ligame entre a
população e as instituições do Estado, os sistemas de
recrutamento de conscrição obrigatória do tipo da
nação armada ou dos grupos armados são os mais
seguros. Quando, pelo contrário, com a ampliação do
conceito de "pátria", criou-se o distanciamento entre
uma concepção do Estado e dos seus interesses,
peculiar à classe política de posse do poder, e a
concepção que deles tem a maioria da população, é o
sistema da conscrição obrigatória de longa ou mista
duração que permite utilizar, numa função
subordinada, a capacidade militar da população, sem
estender a gestão dos objetivos estratégico-militares. O
sistema do voluntariado total, enfim, põe as Forças
Armadas em condições de responder a qualquer
solicitação de serviços militares, mas pode trazer
consigo o agravamento da despesa, devido à
necessidade de assegurar ao pessoal voluntário
estipêndios competitivos com os das profissões civis, e
um perigo político não descurável, devido à presença
de um corpo organizado de militares acrescido aos das
forças policiais e ao conseguinte aumento das
possibilidades de involução pretoriana das próprias
Forças Armadas.
509
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR. Le istituzioni militari e
1'ordinamento costituzionale. Editori Riuniti, Roma
1974; Id., Cittadini in uniforme, Lerici, Cosenza 1976;
V. AGRESTI e M. PACELLI, Codice delle leggi sulle
Forze Armate, Giuffrè, Milano 1966 e 1971 (I ap.); A.
BOLDRINI e A. D'ALESSIO, Esercito e política in Italia,
Editori Riuniti, Roma 1974; S. BOVA e G. ROCHAT, Le
forze armate in Italia, in "Inchiesta", 2, 1971; G.
FRANCESCONI, Servizio militare e democrazia, in "Il
Mulino", 229, 1973; A. GIOBBIO, L'esercito e i suoi
criteri, in "Comunità", 166, 1972; R. RONZA, Il Pierino
va soldato. Esperienze e proposte sul servizio militare
in Italia, Jaca Book, Milano 1968; C. TRON, Il servizio
militare, Torre Pellice 1967.
[SERGIO BOVA]
Formação Social.
I. TRÊS ACEPÇÕES DO TERMO. — Pode ser designado
com este termo qualquer ordem claramente
discernível de entidades sociais.
Na linguagem comum o conceito de formação
oscila entre uma acepção estática: a forma, a
disposição de objetos no espaço, e uma acepção
dinâmica: o processo de um sujeito dar ou assumir
forma. O atributo social aplica este conceito às
relações entre os homens.
O conceito de Formação social assume valor
científico na doutrina jurídica e nas ciências sociais,
em
virtude
de
convenções
terminológicas
estabelecidas
ou
de
procedimentos
intersubjetivamente controláveis. Na literatura são três as
acepções principais:
a) um conceito descritivo: o termo Formação social
é um expediente taxonômico para designar as mais
variadas configurações, autônomas e empiricamente
distinguíveis, de interações sociais estabilizadas;
b) um conceito teórico-marxista: por Formação
social se entende a totalidade histórico-social
constituída por um modo de produção e pela sua
superestrutura política e ideológica;
c) um conceito teórico-sociológico: a Formação
social é definida como um conjunto de estruturas da
personalidade, do sistema social, da cultura e dos seus
mecanismos de reprodução congruentes entre si.
As três acepções se distinguem: a descritiva
designa a parte; as teóricas, o todo; a descritiva é
comum à doutrina jurídica e às ciências sociais,
enquanto as teóricas são usadas somente nas ciências
sociais; e, enfim, as teóricas são tais porque,
diferentemente da acepção descritiva, determinam a
definição dos componentes de Formação social e do
nexo que as liga mediante teorias
510
FORMAÇÃO SOCIAL
sociológicas e epistemológicas particulares: o
maierialismo histórico e a abstração determinada, a
primeira; o estrutural-funcionalismo, o empirismo e o
método dos tipos puros, a segunda. A acepção
dinâmica da linguagem comum, ausente no conceito
descritivo, está, porém, presente nos conceitos
teóricos.
II. CIÊNCIAS JURÍDICAS E FORMAÇÃO SOCIAL. — 1)
Os juristas entendem por Formações sociais aquelas
associações,
comunidades
ou
sociedades
intermediárias entre os indivíduos e o Estado, nas
quais o indivíduo se realiza como pessoa e mediante
as quais interesses particulares se expressam e se
agregam. A família, a Igreja, o partido político, a
empresa, o sindicato, a escola, as minorias étnicas são
as Formações sociais mais importantes de uma
sociedade.
Os direitos e os valores que esta concepção
pretende tutelar são: a democracia pluralista, o
desenvolvimento da personalidade humana nas
relações sociais, a liberdade de associação, a
participação democrática. É polêmica sua atitude para
com a concepção liberal-estatal, contrária ou
indiferente às sociedades intermediárias entre
indivíduo e Estado, e para com a concepção totalitária
que absorve dentro do Estado qualquer forma
associativa. Indiferença, hostilidade, repressão para
com as formas associativas surgidas fora do Estado
foram historicamente praticadas na Itália pelos
Governos e pela administração pública, quer no
período liberal quer no fascista. Não foi por acaso,
portanto, que essa concepção foi introduzida, após as
lutas de resistência antifascista, na Constituição da
República italiana, que no art. 2.º afirma: "A
República reconhece e garante os direitos invioláveis
do homem quer como indivíduo quer nas Formações
sociais, onde se desenvolve a sua personalidade, e
exige o cumprimento dos deveres inderrogáveis de
solidariedade política, econômica e social".
G. La Pira, em sessão da Assembléia Constituinte,
sustentou que "os direitos essenciais da pessoa
humana não serão respeitados — e o Estado, portanto,
não realiza os fins para os quais foi constituído — se
não forem respeitados os direitos da comunidade
familiar, da comunidade religiosa, da comunidade de
trabalho, da comunidade local e da comunidade
nacional: porque a pessoa é necessariamente membro
de cada uma destas comunidades, que lhe dão um
status". A discordância do correlator L. Basso foi
superada por uma intervenção de Dossetti: "Este
conceito fundamental da anterioridade da pessoa, da
sua visão integral e da integração que ela sofre em um
pluralismo social, que deveria ser recebido de bom
grado pelas correntes
progressistas aqui representadas, pode ser afirmado
com o consenso de todos". Nessa intervenção P.
Togliatti identificou um "amplo campo de
entendimento" possível. G. La Pira e L. Basso
elaboraram um texto que foi, em seguida, apresentado
pela subcomissão à assembléia plenária da Constituinte:
as "comunidades naturais" que G. La Pira tinha
extraído do projeto de código Mounier, se diluíram em
"formas sociais" e, por fim, em Formações sociais. O
texto definitivo, mais breve, foi apresentado e
aprovado em duas emendas idênticas cujos primeiros
signatários foram, respectivamente, A. Fanfani e G.
Amendola. O acordo relativo tinha sido atingido com
base, sugerida por A. Moro, na "polêmica
antifascista".
A sucessiva discussão doutrinai dos juristas
encontra particularmente empenhados na defesa e
divulgação deste conceito de Formação social C.
Mortati e P. Rescigno e suscita interlocutores no
âmbito do pensamento social católico e críticos entre
os estudiosos leigos do direito (N. Bobbio). Essa
concepção revela nesta discussão sua dupla natureza:
ela é sem dúvida progressista quando reconhece a
existência de ordenamentos marginais ao Estado, mas
a ele homólogos — enquanto interessam a mais sujeitos
organizados segundo normas, fonte de salutares
contrapoderes, indispensáveis à ordem econômica e
política de uma sociedade pluralista, e que, portanto,
devem ser garantidas constitucionalmente — e quando
destaca com pesar que o único destes ordenamentos
intermediários, verdadeiramente tutelado pelos códigos,
é a empresa privada capitalista; mas é também
inegavelmente conservadora, quando afirma o objetivo
conciliatório da participação democrática garantida
dessa forma, não reconhecendo em nenhum caso, como
estruturais para o nosso tipo de sociedade, certos
conflitos de interesse, e quando convalida um modelo
organicista de sociedade com a constatação de que
estes grupos intermediários são portadores de interesses,
embora não muito manifestos, mas gerais, e chega a
considerá-los meios para um único e verdadeiro fim.
Estas referências, de todo inadequadas para descrever a
evolução do pensamento católico atual, testemunhada
pela Encíclica de João XXIII Mater et Magistra, visam
indicar o contexto em que se situam as discussões
doutrinárias para estabelecer a compreensibilidade do
conceito de formação social: a Constituição italiana
tutela explicitamente as associações em geral (art. 18),
as comunidades religiosas (art. 8.°, 19), a família (art.
29), o sindicato (art. 19), o partido (art. 49), a empresa
(privada e cooperativa: arts. 41, 42, 43, 45) e
estabelece como limite da tutela a tentativa do crime e
o bando armado; alguns intérpretes acrescentam a esse
elenco a
FORMAÇÃO SOCIAL
511
universidade, a escola, as minorias étnicas, a greve. O
instrumento terminológico de delimitação são os
vários sinônimos de Formação social no uso jurídico:
corpos intermediários, sociedades intermediárias,
comunidades naturais, comunidades intermediárias,
ordenamentos intermediários. Cada um pode ser
utilizado para indicar uma acepção juridicamente
relevante de formação social, enquanto o termo mais
genérico já entrou a fazer parte das instituições
fundamentais do direito. Um autorizado manual
afirma "que o termo 'Formação social' é usado no art.
2.° num sentido que compreende todas as entidades
superindividuais de base associativa voluntária ou
necessária (como as entidades públicas) ou as
entidades com elementos comuns a umas e a outras
(como a família), corporativas ou institucionais, com
ou sem personalidade jurídica" (Mortati).
Estado interessa não como instrumento cognitivo mas
como idéia que a história dinamizou talvez demais em
direção a rumos quiçá incertos, tantas quantas são pelo
menos as concepções do PLURALISMO (v.) e as suas
práticas, devido à indeterminação da noção e hipoteca
integralista que pesa sobre ela.
2) Nas ciências sociais o conceito que mais
corresponde a este uso jurídico do termo Formação
social é, talvez, o de grupo secundário, no contexto
de observações empíricas e teóricas sobre as relações
entre indivíduo e Estado, elaboradas por E. Durkheim
em algumas lições ministradas na Sorbone, entre 1898
e 1900, e publicadas postumamente sob o título
Leçons de Sociologie •— Physique des moeurs et du
droit (Paris, 1950).
III. MARXISMO E FORMAÇÃO SOCIAL. — 1) Formação
social é abreviação de formação econômico-social,
termo preferível para indicar o conceito marxista de
Formação social que designa o conjunto das relações
que com a evolução de um modo de produção se vão
determinando historicamente entre este, a sua
superestrutura política e ideológica, aspectos de
outros modos de produção e de outras superestruturas.
Uma Formação social é composta: a) de forças
produtivas, isto é, instrumentos, máquinas, edifícios
para a produção, organizações de trabalho, meios de
transporte, infra-estruturas, conhecimentos técnicos e
científicos, força-trabalho humana; b) de relações
sociais, não somente econômicas mas também,
segundo alguns autores, políticas e ideológicas, que
dão lugar a uma estrutura de classe; c) do Estado,
como instituição e como conjunto de organizações; d)
dos aspectos da consciência social (crenças, valores,
doutrinas) e das instituições (como a família, a Igreja, a
escola, os partidos políticos, a indústria cultural no
caso das sociedades modernas) que veiculam essa
consciência.
A tendência das solidariedades orgânicas que
prevalecem sobre as solidariedades particulares, isto é,
dos grupos secundários cuja formação — constata o
autor — "é inevitável porque em cada sociedade de
grandes dimensões existem sempre interesses
particulares, locais e profissionais, que tendem a reunir
as pessoas de acordo com esses interesses". De outro
lado, "a força coletiva do Estado, para se tornar
libertadora do indivíduo, precisa de contraforça, de ser
contida por outras forças coletivistas, isto é, por esses
grupos secundários". Esses grupos, portanto, não
servem somente para regular e administrar os
interesses de sua competência. Têm um papel mais
geral: são uma das condições indispensáveis para a
emancipação individual" (lição V).
A análise sociológica corrente usa, todavia, no estudo
destas formações sociais ou grupos secundários,
conceitos menos compreensivos e teoricamente mais
densos, como organização, grupo de interesse, grupo
de pressão. O texto citado pode, no entanto, ser
considerado
como
antecipação
do
modelo
"neocorporativo" de funcionamento do sistema
político, consistente na negociação constante do
Governo entre representações de interesses não
sujeitos ao controle eleitoral.
A concepção das Formações sociais como
intermediários posititivos entre o indivíduo e o
Lembramos, enfim, que o termo Formação social é
usado para traduzir o alemão Soziale Gebilde; termo
empregado por Max Weber, Werner Sombart e
Leopold von Wiese quando se referem ao Estado, aos
grupos humanos, às sociedades, às instituições mais
diferentes, e aceito, em seguida, na linguagem corrente
da sociologia alemã (por exemplo, Dahrendorf, Fuchs)
juntamente com o sinônimo Formation. O termo
francês correspondente foi usado para análoga
finalidade classificatória por H. Jeanne.
As forças produtivas e as relações de produção,
inter-relacionadas num modo de produção, constituem
a estrutura que qualifica a Formação social, a base real
para caracterizar os componentes da Formação social e
suas relações, e a evolução da Formação social e suas
contradições. Do conjunto dos elementos que
compõem a Formação social depende a reprodução
das relações sociais dominantes em uma sociedade.
Isto é, os componentes antes mencionados não são
elementos extrínsecos uns aos outros, colocados no
mesmo plano, tendentes ao equilíbrio estático; são,
pelo contrário, interligados pelos sociais, subordina-
512
FORMAÇÃO SOCIAL
dos à configuração do modo de produção e movidos
por tensões.
O caráter das relações entre os componentes foi
definido de diferentes maneiras pelos estudiosos
marxistas como reflexo ou interdependência ou
articulação de domínio ou correspondência, de acordo
com a teoria do conhecimento implícito no pensamento
desses estudiosos. A determinação das modalidades
históricas dessas relações, e de sua própria existência,
cabe às pesquisas histórico-sociais que adotam o
conceito de Formação social para fornecer explicações
estruturais (e não estruturalísticas) mais do que
fatoriais do desenvolvimento das sociedades. O termo
Formação social não pode, portanto, ser usado como
um sinônimo, da mesma forma como se usa época ou
sociedade, sem pressupor como já admitida uma
totalidade que, pelo contrário, é um produto histórico.
Cabe à pesquisa reconhecê-lo como tal.
Mediante o conceito de Formação social o clássico
problema das relações entre estrutura e superestrutura
pode ser recolocada em termos heuristicamente mais
válidos. O problema mais recente da coexistência de
modos de produção diferentes e dos seus efeitos
sociais, até agora somente apresentado na área
historiográfica, pode ser abordado por meio de uma
teoria.
2) Os clássicos: Marx e Lenin. — Na medida em
que o conceito de Formação social exprime o núcleo
teórico do materialismo histórico, ele está presente
implicitamente em toda a obra de Marx. A seguinte
definição explícita de Formação social aparece no
Prefácio à obra Para a crítica da economia política
(1859): "o modo de produção de vida material que
condiciona, em geral, o processo social, político e
espiritual da sociedade" é designado como uma
"Formação social que não perece enquanto não se
tenham desenvolvido todas as forças produtivas a que
pode dar origem". "Em grandes linhas, os modos de
produção asiático, antigo, feudal, burguês, moderno
podem ser designados como épocas que marcam o
progresso da formação econômica da sociedade" e a
sociedade do modo de produção capitalista-burguês é
"a Formação social com que se encerra a pré-história da
sociedade humana".
No texto citado e em outras passagens que podem
ser encontradas nos Grundrisse (1857-58) e no
Capital
(1867),
o mesmo termo
alemão
Gesellschaftsformation (ou também Ökonomische
Gesellschaftsformation) é usado para dois conceitos
semelhantes, mas distintos: o primeiro, traduzido para
o português com a expressão formação econômica da
sociedade, designa o lugar teórico da continuidade
entre os modos de produção; o outro, traduzido para o
português com a expressão formação econômicosocial, abreviada freqüente-
mente em Formação social, indica o lugar do
condicionamento exercido pelas relações sociais e
pelas forças produtivas sobre o sistema político e sobre
a consciência social.
Este segundo conceito, Formação social, foi
assumido por Lenin. Definições explícitas aparecem
em passagens muito claras de Quem são os amigos do
povo e como lutam contra os social-democratas?
(1894), O conteúdo econômico do populismo e o livro
do senhor Struve (1894-95), Karl Marx (1914). Esse
conceito está implícito numa das maiores obras de
pesquisa de Lenin: O desenvolvimento do capitalismo
na Rússia (1898). Nestes escritos o significado de
Formação social é sempre o mesmo: "a base da
sociedade — o sistema das relações de produção —
que se reveste de formas jurídico-políticas e de certas
tendências do pensamento social". Do conceito de
Formação social Lenin sublinha com força polêmica o
valor científico do instrumento conceptual para
conhecer a sociedade da qual reconstrói uma ordem
estruturada ("organismo" é, às vezes, a metáfora usada
pelo autor) e explica o desenvolvimento segundo sua
base real.
A introdução do "critério científico geral e objetivo
da reiterabilidade" no estudo das sociedades, mediante
o conceito de Formação social, é o fundamento dessa
ciência social.
Na obra de Marx e Lenin a aplicação da teoria do
materialismo histórico como método de pesquisa
prevalece sobre o interesse por uma definição precisa e
explícita dos componentes da Formação social, do
caráter de suas relações, da proposição das categorias
subjacentes à formulação do conceito. Tais definições
foram deduzidas pelos estudiosos sucessivos que
tentaram várias interpretações das metáforas
freqüentemente usadas pelos dois autores.
Em seguida, no marxismo o conceito e o termo de
Formação social caíram em desuso. Nos dicionários do
marxismo-leninismo o verbete "Formação social" é
praticamente uma enésima repetição dos cânones do
materialismo histórico soviético. Também aos maiores
expoentes do marxismo ocidental é alheia a
possibilidade de uma teoria especial das Formações
sociais.
Termo e conceito reaparecem na década de 1960 na
obra de dois sociólogos, Z. Bauman e J. Hochefeld, e
de um economista, O. Lange, estudiosos do marxismoleninismo e das ciências econômicas e sociais
"burguesas". Estes autores concebem a Formação
social como o conjunto do modo de produção e de sua
superestrutura. Através da contribuição da sociologia
ocidental tentam uma definição mais precisa dos
componentes da Formação social, especialmente dos
componentes supra-estruturais. O caráter da
FORMAÇÃO SOCIAL
513
ligação é concebido em termos de causalidade,
interdependência, ou funcionalidade. A teoria social
adotada é a das leis de desenvolvimento permanente
das forças produtivas e de correspondência entre estas
e as relações de produção e entre o modo de produção
e a superestrutura. A epistemologia implícita mistura
categorias positivista e mecanicista. A assimilação do
conceito de Formação social aos da época e sociedade
é a conseqüência lógica da concepção homogênea
unilinear do desenvolvimento histórico, tal como foi
sustentada por J. Stalin com base numa interpretação
literal e determinista de uma passagem de Marx
anteriormente citada, que estes autores subentendem.
O sucessivo debate sobre o "modo de produção
asiático" desmistificou e falsificou esta hipótese
unilinear e impôs a exigência de uma nova conceituação
da Formação social (Sofri, 1969).
qual vê nesta ambigüidade estático-dinâmica a
intenção de Marx de formular uma categoria
compreensiva do processo e do seu resultado do duplo
significado de formação de sociedade e de formação
social, expresso por A. Labriola com as palavras
"estádio morfológico no fluxo de um processo".
Segundo V. Gerratana, Marx preferiu, ao invés, o uso
da palavra estrangeira Formation ao da alemã Bildung
— que indica um processo de construção —
exatamente para que ao termo Formação social fosse
atribuído o valor de resultado de conjunto estruturado.
O argumento filosófico de E. Sereni a substituição de
formation por form para acentuar o caráter processual
do conceito de Formação social — parece errado a V.
Gerratana que coloca os conceitos expressos pelos dois
termos numa relação de gênero (Gesellschaftsform) e
espécie (Gesellschaftsformation).
IV. O DEBATE CONTEMPORÂNEO. — 1) O interesse
por este tema, renovado no Ocidente por um ensaio de
G. Luporini, publicado em 1966, e por um livro de M.
Poulantzas de 1968, foi sentido especialmente por
estudiosos italianos e franceses próximos ao P.C.I. e
ao P.C.F., como E. Sereni, G. Luporini, V. Gerratana,
G. La Grassa, G. Labica, J. Texier, M. Godelier, E.
Glucksmann, R. Gallissot, G. Dhouquois, os quais
deram vida, entre 1970 e 1972, a um amplo debate nas
revistas "La pensée" e "Critica marxista", centrado
mais na dimensão sintática do conceito de Formação
social do que, talvez, na semântica. A discussão,
suscitada por um ensaio de E. Sereni intitulado "De
Marx a Lenin: la categoria de formazione economicosociale" (in "Quaderni di critica marxista", 4, 1970),
foi particularmente animada sobre os problemas de
interpretação do texto marxista — no qual aparecem
diversos
termos:
Gesellschaftsform,
Gesellschaftsformation,
Form,
com ou
sem
Ökonomische — e sobre os problemas da relação entre
o conceito de Formação social e os de modo de
produção e de superestrutura.
Os principais problemas de interpretação são: a) o
valor da expressão "Formation" e não "Form ou
Bildung"; b) o valor do adjetivo Ökonomische, isto é, o
significado, único e duplo, de õkonomisch
Gesellschaftsformation é para entender formação
econômica da sociedade ou formação social?
b) A junção do adjetivo Ökonomische significaria uma
indicação exata do fundamento, do critério de
distinção das Formações sociais, constituído não pelas
relações de propriedade em sentido jurídico, mas pelas
relações de produção em sentido econômico-social,
segundo E. Sereni. Não daria lugar a um novo
conceito, como pelo contrário sustenta C. Luporini —
concordando neste ponto com G. Labica e J. Texier —
que baseia nessa junção a própria tese de que
Ökonomische Gesellschaftsformation indicaria um
conceito diverso, formação econômica da sociedade,
definido como "o lugar teórico da continuidade das
forças produtivas na descontinuidade das épocas
históricas", exclusivamente marxista.
a) A expressão Gesellschaftsformation teria sido
preferida a Gesellschaftsform. a fim de acentuar o
caráter processual do fenômeno designado sem perder
a metáfora geológica presente em Marx ao descrevêlo: o seu valor seria a "unidade das diversas esferas na
continuidade e na descontinuidade do processo
histórico", segundo Sereni, o
Com relação a isso o conceito leninista seria
original, porque em Marx Formação Social seria pouco
mais do que uma expressão funcional para indicar o
efeito do modo de produção na sociedade de uma
época. Godeher, ao contrário, admite a presença dos
dois significados no texto de Marx.
c) A questão da relação entre Formação social e
superestrutura pode ser resumida nos dois conceitos de
Formação social, marxista e leninista, diferenciados em
b): o destaque refere-se ao modo de produção para os
pesquisadores interessados em encontrar uma
continuidade entre mais épocas e sociedades nas
forças produtivas, e à superestrutura para os
pesquisadores interessados em configurar como
Formação social uma articulação específica das áreas
econômica, social, política, ideológica num contexto
histórico determinado (cf. Luporini e Sereni).
d) A relação entre Formação social e modo de
produção é concebido pelos marxistas franceses
514
FORMAÇÃO SOCIAL
ou como relação entre concreto histórico e modelo ou
como relação entre combinações de modos de
produção e abstração determinada, decorrentes
respectivamente de uma conceito descritivo de
Formação social ou de um conceito teórico (cf.
Dhouquais e Labica).
e) Quanto às conseqüências semânticas de tais
soluções, a escolha do primeiro termo das alternativas
c) e d) — unida à preferência pela concepção marxista
e pela dimensão sintática em relação à semântica do
conceito de Formação social — originou sua
fragmentação em um número tal de acepções
(formação sócio-econômica, sócio-política, econômica,
social, econômica da sociedade) que tornou
problemática sua utilização na pesquisa social (cf.
Gallissat e Texier), enquanto a escolha do segundo
termo pode ser o fundamento teórico de uma definição
heuristicamente válida, como a fornecida por M.
Godelier num breve ensaio sobre os componentes de
Formação social do antigo império inca.
A escolha do primeiro termo da alternativa c) e do
segundo da alternativa d) caracteriza a posição de G.
La Grassa, centrada no conceito de reprodução social
como arma teórica eficaz contra o mecanismo e certo
hiperempirismo.
Toda a discussão se dá, na realidade, entre uma
corrente "historicista" e uma corrente "estruturalista"
do marxismo e chega à formulação de dois conceitos
de Formação social: o primeiro define os componentes
da Formação social em termos análogos aos marxistas
e leninistas, concebe suas relações como unidade de
uma totalidade histórica em devir, adota as teorias
próprias da escola marxista italiana de Gramsci e
tende, em última análise, a um uso historiográfico e
descritivo do conceito de Formação social, enquanto
que o segundo, por sua vez, atribui ao conceito de
Formação social a pretensão teórica de uma ciência da
sociedade. Entre seus principais defensores, devemos
lembrar N. Poulantzas e M. Godelier.
Em Poder político e classes sociais, N. Poulantzas
formula uma teoria marxista do problema político na
qual o conceito de Formação social tem um papel
central. A Formação social é "uma unidade complexa e
dominante de um certo modo de produção sobre outros
que a compõem", "uma totalidade social num
momento de sua existência histórica", caracterizada
por "uma articulação particular — um índice de
dominância e de superdeterminação — de seus níveis
ou instâncias, do econômico, do político, do ideológico
e do teórico, que, em geral, considerando os desvios
que se encontram, é o do modo dominante de
produção".
O problema do Estado, considerado "fator de
coesão dos níveis de uma Formação social" e
"estrutura em que se condensam as contradições"
entre eles, está formulado, na obra citada, a partir da
configuração do modo de produção e da Formação
social, porque, segundo o autor, se cada modo de
produção tem seu tipo de Estado, cada tipo tem
formas diferentes, normais e anormais, dependentes
da relação que se determinou entre as contradições da
Formação social.
Os componentes da Formação social são, portanto,
as instâncias econômica, política, ideológica,
articuladas num modo dominante de produção e as
instâncias de outros modos de produção coexistentes e
subordinados ao principal. A Formação social é uma
estrutura capaz de se reproduzir: o mecanismo da
reprodução ampliada é também o mecanismo de
subordinação das instâncias colaterais. As relações
entre as instâncias são concebidas em termos de
correspondência e desvio. O aparato conceituai
utilizado é o do marxismo de L. Althusser e de E.
Balibar.
Avesso à construção conceptual althusseriana, M.
Godelier está, no entanto, igualmente preocupado em
dar um ordenamento teórico ao conceito de Formação
social e, conjuntamente, à investigação historiográfica e
"sociológica" marxista. Poucas pesquisas cumprem,
porém, plenamente aquele que parece ser o "programa
científico" contido no conceito marxista de Formação
social. Segundo Godelier, ele consistiria numa
pesquisa comparativa, histórica e teórica como a de
Karl Marx em O capital (I, 12), tendente não a
identificar sociedades concretas, mas a construir
conceptualmente a natureza do modo de produção que
fundamenta uma forma pura de sociedade
historicamente determinada (por exemplo, a sociedade
burguesa), as suas leis de funcionamento e evolução, os
elementos desenvolvidos em conformidade com as
formas e leis do modo de produção, e a articulação
interna dessa conformidade, para se poder reconhecer
se uma sociedade determinada pertence ou não a uma
Formação social. Numa pesquisa assim, é útil o estudo
de sociedades particularmente avançadas no
desenvolvimento de um modo de produção (como o foi
a Inglaterra para o capitalismo analisado por K. Marx).
2) Pesquisas marxistas. — Até agora se tem usado o
conceito de Formação social principalmente no estudo
das sociedades mistas.
O caráter misto da sociedade, constatação óbvia em
si, torna-se problema de investigação nos casos dos
países
subdesenvolvidos,
de
sociedade
a
desenvolvimento fortemente desigual como a italiana,
dos períodos de transição da afirmação de um modo de
produção para a de um outro (por
FORMAÇÃO SOCIAL
exemplo,
feudalismo-capitalismo,
capitalismosocialismo).
Alguns estudiosos dos países ex-coloniais,
reconhecidas as carências da teoria da dependência de
A. Gunder Frank, que consistem num tratamento das
características específicas do desenvolvimento
econômico, das estruturas de classe, dos regimes
políticos presentes nesses países e no escurecimento da
possibilidade de uma práxis política emancipadora
conseqüente, realizaram pesquisas sobre modos de
produção locais, anteriores e contemporâneas em
relação à colonização, para explicar o tipo particular de
subordinação ao modo de produção capitalista,
externo e interno, das estruturas econômicas, sociais,
políticas e das características étnicas locais. Dessa
forma, identificaram na Formação social o lugar
teórico, além de histórico da coexistência entre
diversos modos de produção e superestruturas, S.
Amin, S. Arrighi, C. Bettelheim, A. Cordova, S.
Divitciouglu, T. dos Santos, M. Godelier, M. Rodinson.
E Sereni, reconhecida a utilidade de reexaminar o
problema do desenvolvimento do capitalismo na Itália
e da permanência de resíduos feudais mediante o
conceito de Formação social, considera-o apto para
explicar o caráter estrutural da passagem do
feudalismo ao capitalismo, operação já realizada em
seu tempo por Lenin no estudo sobre o capitalismo na
Rússia (cf. Introdução a O capitalismo nos campos,
1968).
Enfim, uma vasta literatura sobre a transição para o
socialismo, cujos expoentes principais são até agora C.
Bettelheim e C. Palloix, utiliza o conceito de
Formação social para definir o lugar das instâncias
numa sociedade em transição para a dominação do
modo de produção socialista, tirando argumentos da
precedente transição do feudalismo para o capitalismo,
sobre a qual também M. Poulantzas escreveu páginas
interessantes (obra citada 1968).
Nestes três casos o objeto da investigação é sempre
a relação entre modo de produção dominante e modos
de produção subordinados, ou em declínio, que
caracterizam uma sociedade "mista". Esta relação tem
seu lugar na Formação social, cujos componentes
superestruturais são reconhecíveis para a coexistência
estrutural através de mediações mais ou menos
complexas. Um exemplo destas mediações nos é dado
por Fascismo e ditadura de N. Poulantzas.
V. SOCIOLOGIA E FORMAÇÃO SOCIAL. — O conceito
sociológico de Formação social foi elaborado para
caracterizar o modo de ser global e integrado de
determinados tipos de sociedade. Mas não é o único
que pretende satisfazer essa necessidade dentro da
teoria sociológica.
515
O funcionalismo americano resolve-a, por exemplo,
com os conceitos de sociedade, sistema societário,
sistema social: valha por todos o exemplo de T.
Parsons com Sistemas de sociedade (1972). O conceito
de fenômeno social total, elaborado pelo sociólogo
francês G. Gurvitch, não poderia exprimir melhor essa
necessidade de atentar para a realidade social,
abrangendo a profundidade e integridade dos seus
níveis, qualquer que seja o objeto da análise,
instituição ou sociedade global. Nesta linha de
raciocínio, dois sociólogos, como J. Habermas e L.
G a l l i n o , escolheram, em vez disso, o termo
Formação social para indicar dois conceitos diversos
que, não obstante, possuem bastantes referências
teóricas comuns, como o estrutural-funcionalismo, a
teoria dos sistemas e o marxismo.
Em primeiro lugar, a Formação social é, pois,
definida por L. Gallino como: "Um conjunto de
estruturas de personalidade, de relações sociais
sistemáticas e de elementos culturais, não
necessariamente da mesma extensão que a sociedade
global e caracterizado: a) por um determinado nível de
desenvolvimento das forças produtivas dentro de um
quadro de relações de produção quase que constantes;
b) pelo fato de as estruturas dos três níveis parecerem
relativamente integradas e se susterem mutuamente,
havendo um alto grau de coerência recíproca".
A Formação social está composta por: um tipo modal
de estrutura das motivações dos indivíduos; um
conjunto de instituições e organizações políticas,
econômicas, integrativas, reprodutivas, que constituem
um sistema social (no caso, por exemplo, de uma
sociedade moderna: Estado, empresas, comunicações
de massa, família); uma cultura, no sentido
antropológico do termo, compreendendo tanto
símbolos e valores, como manufaturas e técnicas de
produção; um sistema ecológico.
Este conceito foi aplicado no estudo do caráter
misto da sociedade italiana no tocante aos problemas
da educação formal, sujeita a instâncias sociais
contraditórias (Gallino, 1968), e da ação das classes
sociais que o evoluir da estrutura de classe levou, na
Itália, a um equilíbrio de forças, causa de paralisação
(Gallino, 1970). Ambas as pesquisas reconstroem, na
sociedade italiana, três tipos de Formação social —
tradicional-agrária,
moderno-competitiva,
contemporâneo-dirigística — em que se baseia a
formulação das explicações e previsões respeitantes
aos fenômenos em exame. Este modo de descrever a
sociedade italiana permite uma maior articulação em
relação às hipóteses dualistas comumente adotadas. A
sua aplicação aos problemas do Estado e da política
italianos configura diversos sistemas políticos e
variados tipos de organização da administração
pública
516
FORMAÇÃO SOCIAL
(burocrática, recessiva, processiva), exigidos e
parcialmente postos era ato pelas três formações
sociais coexistentes na sociedade.
O desenvolvimento da teoria dos sistemas e da
sócio-biologia trouxe novos elementos ao conceito de
Formação social, levando Gallino, em 1980, a
reformulá-lo e a acentuar sua dinâmica e precisão: o
sistema social possui um núcleo interno de relações
mais densas, concernentes à sua reprodução, que se
articula na reprodução biopsíquica dos indivíduos, na
reprodução sócio-cultural da identidade coletiva, na
organização política e na produção econômica.
Tais mecanismos operam extraindo recursos de
outros sistemas viventes: organismos, população,
sistema
psíquico,
cultura.
Podem
operar
individualmente de modos diversos, mas exige-se uma
certa integração entre eles, sem a qual toda a ação
social se torna impossível. A forma como os modos de
reprodução se combinam possui uma especificidade e
uma determinação histórica peculiares. O resultado da
sua combinação é a Formação social. A mesma
sociedade-Estado pode abranger mais de uma
Formação social: um sistema social concreto pode,
com efeito, apresentar diversos modos de reprodução
sócio-cultural, diversos modos de produção, e diversos
modos de organização política, entre os quais vigora,
não obstante, uma certa integração, diferente, contudo,
e menor se comparada com a existente entre os
mecanismos de reprodução de sistemas diversos que
constituem a Formação social, um tipo puro.
São conhecidos na análise sociológica os seguintes
tipos de Formação social: comunitária, teocrática,
antiga, latifundiário-escravista, feudal, camponêsartesanal,
latifundiário-mercantil,
capitalistaconcorrencial, capitalista-oligopolista, e estadual. Cada
uma delas incorpora elementos que representam um
estádio evolutivo da civilização, na ordem suprareferida. Esta ordem, porém, não constitui uma escala
evolutiva, porquanto toda a Formação social representa
uma resposta histórica particular à necessidade de
adaptação ao ambiente natural, à população existente,
à cultura disponível, aos tipos psicológicos mais
comuns de gerações sucessivas de indivíduos, bem
como ao arco vital de onde o sistema social se
reproduziu.
A teoria da Formação social de Habermas privilegia
mais a função de controle e a problemática da crise
dos sistemas sociais do que sua reprodução e
evolução. Habermas julga, com efeito, remontando a
Marx, que, mesmo mudando o princípio de
organização do macrossistema conforme a Formação
social (a disposição privilegiada dos meios de
produção característica das Formações sociais
classistas), a maioria dessas notas
institucionaliza uma relação de domínio que, com o
tempo, mina a integração social do sistema, criando os
pressupostos de uma crise peculiar de legitimação, ao
se revelar a sua incapacidade de resolver os problemas
de controle suscitados pela garantia de uma
distribuição de excedentes desigual mas legítima. Para
Habermas, a Formação social é um macrossistema
constituído por subsistemas — sistema sócio-cultural,
político, econômico — organizados segundo um
mesmo e único princípio, historicamente determinado
e característico. A Formação social é também para ele
um tipo puro, não uma sociedade concreta. Distingue
uma Formação social pré-cultural, constituída pelos
papéis primários da idade e do sexo ao redor do
núcleo institucional do sistema de parentelas; uma
Formação social tradicional, constituída por um
domínio político de classe em torno à instituição do
Estado; uma formação liberal-capitalista constituída
em tomo da relação econômica entre trabalho
assalariado e capital e baseada no mercado; uma
formação social tardo-capitalista, constituída em torno
da administração das crises de legitimação; e uma
formação social futurível, pós-moderna, constituída
em torno de um princípio não classista.
A análise de Habermas se detém sobretudo na
Formação social tardo-capitalista da qual se depreende
que todo o sistema possui uma função e está sujeito a
um tipo de crise particular: função política é produzir
opções administrativas racionais e crises de
racionalidade; função econômica é produzir recursos
econômicos e crises econômicas; funções sócioculturais são a legitimação do sistema, a motivação dos
indivíduos, seus membros, e as respectivas crises. O
característico desta Formação social é que as suas
crises não se traduzem numa crise de identidade do
sistema global, como acontecia nas demais Formações
sociais, mas podem ser administradas, reconvertidas
de um sistema em outro (como acontece, por exemplo,
nas crises de legitimação originadas numa elevada
conflituosidade industrial que se resolvem com crises
econômicas, isto é, com processos de inflação que
reduzem drasticamente o conflito).
O conceito de Formação social, em qualquer das
suas versões, orienta, contudo, a análise sociológica
para as interdependências globais. A sua conseqüente
utilidade na pesquisa empírica foi confirmada em tal
sentido, no caso italiano, por A. Bagnasco. Constituem,
de fato, uma Formação social peculiar, uma "terceira
Itália", entre o Norte desenvolvido e o Sul
subdesenvolvido, as condições sociais, políticas e
culturais, que favoreceram, nas regiões do Nordeste e
do centro do país, a difusão de pequenas empresas
que, com baixos investimentos e elevado emprego de
FORMAS DE GOVERNO
mão-de-obra qualificada, produzem e exportam os
manufaturados pelos quais a Itália goza das melhores
posições no mercado internacional: confecções,
tecidos, móveis, instrumentos musicais, objetos de
ouro. As condições de desenvolvimento desta
economia, "periférica" em relação à divisão
internacional do trabalho, parecem ser: a
disponibilidade de oferta de trabalho manual precário,
mas qualificado, famílias dotadas de economias
invisíveis de bens e serviços (hortas domésticas,
mútua ajuda de parentes e vizinhos), elevada
integração social, subculturas políticas homogêneas e
hegemônicas (católicas ou socialistas). Bem diversas
são as condições que existem nas Formações sociais
"centrais" do Nordeste e "marginais" do Sul,
favorecedoras da grande empresa ou do
assistencialismo estatal.
517
de todos, exercido para utilidade de um, de poucos, ou
de todos; sejam definidas em termos modernos como
regimes autoritários, totalitários e democráticos;
enfim, fiquem na simples distinção entre monarquia
(cujo titular ocupa um cargo hereditário) e república
(cujo titular ocupa um cargo eletivo), respeitam a
problemas diversos dos evocados pelas Formas de
Governo propriamente ditas.
Deixando de lado tanto a variedade de regimes
autoritários, caracterizados pelo poder arbitrário de
um chefe ou, consoante é dado observar mais amiúde,
pela instituição militar, como a diversidade dos
regimes totalitários, de poder centralizado num partido
político, fixaremos principalmente a nossa atenção na
distinção das diferentes Formas de Governo no âmbito
das formas de Estado democrático. Fazendo assim, se
verá, entre outras coisas, que a distinção
monarquia/república perde toda a importância prática.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., in ""Quaderni di Critica
Em síntese, a análise das Formas de Governo
Marxista" 1970, 4 e in "Critica Marxista" 1971, IX, 4;
1972, X, 1, 2-3; S. AMIN, Sullo sviluppo ineguale delle atende à dinâmica das relações entre o poder
formazioni sociali. in "Terzo Mondo" 1972, V, 18; executivo e o poder legislativo e respeita, em
ASSEMBLEA COSTITUENTE, COMMISSIONE PER LA particular, às modalidades de eleição dos dois
COSTITUZIONE, Prima Sottocommissione: Discussioni e organismos, ao seu título de legitimidade e à
Assemblea Plenaria: Discussioni. Roma 1946 e 1947; comparação das suas prerrogativas. Além disso, dada
A. BAGNASCO, Tre ltalie, Il Mulino. Bologna 1977; Id., a natureza dos regimes democráticos modernos,
"Quaderni" da Fundação G. Feltrinnelli 1981, 14 e 16; assume uma importância fundamental na compreensão
Z. BAUMAN, Lineamenti di sociologia marxista (1964), e explicação do funcionamento das diversas Formas
Editori Riuniti, Roma 1971; L. GALLINO, Personalità e de Governo a organização dos sistemas partidários
mdustrializzazione. Loescher, Torino 1968; Id., neles presentes e operantes.
L'evoluzione della strultura di classe in Italia. in
II. A BIPARTIÇÃO CLÁSSICA. — A bipartição clássica
"Quaderni di Sociologia" 1970, XIX, 2; ID., La società,
perchè cambia, come funziona. Introduzione sistematica distingue a Forma de Governo parlamentar e a Forma
alla sociologia. Paravia, Turino 1980; M. GODELIER, de Governo presidencial. É preferível manter estas
Formazione economico-sociale, in Enciclopedia, expressões a usar, em vez delas, a distinção entre
Einaudi, Torino 1979, vol. VI; J. HABERMAS, La crisi república parlamentar e república presidencial, uma
della razionalità nel capitalismo maturo (1973), vez que, enquanto o presidencialismo é apenas típico
Laterza, Bari 1975; V. I. LENIN, Che cosa sono gli Amici de um sistema republicano, a Forma de Governo
del popolo (1894), Editori Riuniti, Roma 1972; C. parlamentar se encontra tanto no âmbito dos sistemas
LUPORINI, in "Critica Marxista" 1977, 3; K. MARX, Per monárquicos quanto no dos sistemas republicanos.
la critica dell'economia política (1859), Editori Riuniti, Mais: sob muitos pontos de vista, é de salientar que o
Roma 1967; N. POULANTZAS, Potere político e classi Governo parlamentar nasceu, se desenvolveu e atingiu
sociali (1968), Editori Riuniti, Roma 1971; Id., sua mais elevada expressão no âmbito das monarquias
Fascismo e dittatura (1970), Jaca Book, Milano 1971; constitucionais, especialmente no da monarquia
P. RESCIGNO, Persona e comunità, Il Mulino, Bologna britânica. Mas há outros exemplos luminosos, os das
1966; G. SOFRI, Il modo di produzione asiatico. monarquias escandinavas: Dinamarca, Noruega,
Suécia. Segundo alguns autores, este desenvolvimento
Einaudi, Torino 1969.
positivo seria devido ao fato de que a exclusão da
competição política pela conquista do mais alto cargo
[SERGIO SCAMUZZI]
do Estado — ao mesmo tempo que o Parlamento lhe
limitava e contrastava o poder — exerceu um efeito
moderador na luta política dos países acima
Formas de Governo.
mencionados.
I. PROBLEMÁTICA. — A análise das Formas de
Governo é tida como conceptualmente distinta da
análise referente às formas de Estado ou de regime.
Estas, sejam definidas recorrendo aos critérios
aristotélicos do poder de um, de poucos,
518
FORMAS DE GOVERNO
A primeira e mais clara distinção que conhecemos
das duas formas de Governo é a formulada por Walter
Bagehot. No seu famoso estudo sobre a Constituição
inglesa (1865-1867), este estudioso britânico punha em
contraste a Forma de Governo parlamentar do ReinoUnido, por ele definida como cabinet government,
com a Forma de Governo dos Estados Unidos,
também por ele definida como presidential
government. Esta distinção, não obstante a publicação
um pouco mais tardia do volume Congressional
government (1885) por parte do futuro presidente dos
Estados Unidos, Woodrow Wilson, continua
conceptual e concretamente válida. A grande maioria
das Formas de Governo contemporâneas remontam ou
ao protótipo britânico ou ao estadunidense; mas essas
duas formas mantiveram-se substancialmente intactas
durante o século passado. Os países de emigração
branca de língua inglesa, por exemplo, como a
Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia, a África do Sul
e muitas ex-colônias da África e da Ásia, adotaram o
cabinet government, enquanto a quase totalidade dos
países do continente latino-americano introduziram o
presidential government. Pelo que concerne à Europa
continental, se excluirmos o Governo presidencial da V
República francesa, que depois analisaremos, a forma
dominante é a parlamentar. Por sua vez, as diferenças
que existem entre o parlamentarismo inglês clássico e
os vários tipos continentais, são quase inteiramente
devidas às diferenças características dos sistemas
partidários.
influenciado com a presença de um partido de
oposição que possa apresentar-se, por si só, como
alternativa legítima e acreditável de Governo.
O modelo inglês é precisamente caracterizado pelo
revezamento periódico, recentemente tornado um
pouco mais difícil, de um ou outro dos maiores
partidos na condução do Governo. Dadas as
características
da
competição
eleitoral
em
circunscrições uninominais de um só turno e a
existência de dois únicos partidos com possibilidades
de obter a maioria absoluta das cadeiras, a
incumbência de formar Governo é automaticamente
confiada, pelo chefe do Estado (no caso inglês, o
monarca), ao líder do partido de maioria. Esta praxe,
entre outras, torna obsoleta a afirmação que se cita de
Bagehot sobre a função mais importante do Parlamento
e acentua a primazia do party government sobre a
assembléia, até quanto aos limites da quantidade e
qualidade da produção legislativa que dela provém.
Nos sistemas parlamentares formados segundo o
modelo britânico, o primeiro-ministro o é enquanto
líder do partido da maioria. Esta coincidência de
cargos é de decisiva importância para manter a coesão
e a disciplina do grupo parlamentar e, por conseguinte,
para garantir a tradução do programa governamental
em leis. Não é só o grupo parlamentar do partido da
maioria que tem interesse em manter a sua unidade de
ação. Por seu turno, o partido da oposição constitui em
seu interior um Governo fantasma (shadow cabinet),
com o duplo objetivo de exercer um estreito controle
sobre as atividades e decisões governamentais e de
III. O GOVERNO PARLAMENTAR. — A Forma de apresentar ao eleitorado uma articulação ministerial
Governo parlamentar é caracterizada pelo fato de as alternativa, de algum modo já consistente.
articulações governativas surgirem do seio do
Ao lado do sistema do cabinet government de tipo
Parlamento (tanto que Bagehot punha na boa eleição do
Governo a função mais importante do Parlamento) e de britânico, baseado no Governo exclusivo do partido de
maioria
e na sua coesão, existem os Governos de
ele ser responsável perante esse mesmo Parlamento
que, em caso extremo, pode decretar a sua queda. Por coalizão, característicos das democracias continentais
sua vez, nos sistemas parlamentares, o Governo tem o européias. Nestas, o problema fundamental é o da
poder de dissolver o Parlamento ou de pedir a sua formação de uma maioria governativa entre vários
dissolução ao chefe do Estado, quando não obtiver o partidos que dê garantias de uma suficiente
seu voto de confiança ou, em certos casos, como no homogeneidade e de uma adequada duração. Nestes
multipartidários,
particularmente nos
típico caso inglês, para convocar novas eleições em sistemas
escandinavos, a consistência política e eleitoral dos
circunstâncias melhores.
partidos social-democráticos e a reduzida distância
O elemento diferenciador de maior relevo entre os ideológica entre os partidos "burgueses" da oposição
vários tipos de Governo parlamentar está na natureza têm permitido a formação de uniões ministeriais
do sistema partidário. De fato, onde existem só dois estáveis. Em outros sistemas, especialmente nos da
partidos ou, então, um partido obtém sozinho a Europa meridional (incluída a França da IV
maioria absoluta das cadeiras, a Forma de Governo República),
a
instabilidade
das
coalizões
parlamentar apresenta características de solidez e de governamentais parece endêmica, embora raramente
estabilidade maiores que quando o Governo é formado leve à mudança da classe política e dos ministrables,
por coalizões de vários partidos. Do mesmo modo, o justamente por não conseguir fazer circular o pessoal
funcionamento de um sistema será positivamente
político.
FORMAS DE GOVERNO
Contra a estabilidade do Governo parlamentar nos
sistemas multipartidários têm sido tentados diversos
corretivos. Baseando-se na dramática experiência da
instabilidade governativa da República de Weimar e
na preocupação de evitar o vácuo do poder, a lei
fundamental
da
República
Federal
Alemã
(Grundgesetz) ratifica a necessidade de que a
desconfiança relativa a um chanceler não possa ser
declarada senão através de um voto de desconfiança
construtivo, um voto com o qual se eleja um novo
chanceler. Embora se duvide que em condições de
crise real tal mecanismo possa assegurar a estabilidade
da Forma de Governo, ele pode operar como elemento
de dissuasão, principalmente em relação aos
componentes turbulentos da maioria governativa, e
também como instrumento de esfriamento de tensões
emergentes.
Há ainda uma observação necessária. A análise
comparada das variedades concretas das Formas de
Governo parlamentar revela que o caso italiano é hoje
o único a fazer exceção à norma generalizada de que o
líder do partido ou da coalizão de partidos vitoriosos
nas eleições se torne automaticamente primeiroministro, uma prática que confere assim maior peso e
importância imediata à escolha dos eleitores e atribui,
ao mesmo tempo, uma clara responsabilidade ao
partido da maioria, relativa ou absoluta, e ao seu líder.
IV. O GOVERNO PRESIDENCIAL. — A Forma de
Governo presidencial é caracterizada, em seu estado
puro, pela acumulação, num único cargo, dos poderes
de chefe do Estado e de chefe do Governo. O
presidente é eleito pelo sufrágio universal do
eleitorado, subdividido ou não em colégios. Nesta
forma de Governo, o presidente ocupa uma posição
plenamente central em relação a todas as forças e
instituições políticas. Pelo que se refere ao caso
estadunidense, o presidente é ali, pelo menos
nominalmente, o chefe do seu partido; é o chefe do
Governo ou administration, escolhe pessoalmente os
vários ministros ou secretários de departamentos, que
terão de abandonar o cargo a seu pedido e não são
responsáveis perante o Congresso. O presidente
representa a nação nas relações internacionais;
estipula, se bem que sujeito ao advice and consent do
Senado, os tratados internacionais; é a ele que cabe o
poder de declarar a guerra. Além disso, é ele quem tem
a iniciativa e é fonte das decisões e das leis mais
importantes.
A centralidade do seu papel lhe advém do fato de
haver sido eleito pela totalidade do corpo eleitoral. A
ele contrapostos estão os representantes da Câmara,
eleitos em circunscrições uninominais de tamanhos
similares e porta-vozes de interesses
519
setoriais, e os senadores, eleitos em colégios que
cobrem todo o território dos diversos Estados, dois por
cada um dos cinqüenta Estados da União. Observe-se,
além disso, que a duração ou tenure do executivo e dos
membros do legislativo é significativamente diferente.
Enquanto os Congressmen se submetem a novas
eleições de dois em dois anos e os senadores
permanecem no cargo seis anos, com renovação de um
terço do Senado também de dois em dois anos, o
mandato presidencial é de quatro anos, renovável uma
só vez (emenda expressamente introduzida, depois que
Franklin D. Roosevelt obteve a eleição por quatro
mandatos sucessivos).
A centralidade do presidente dentro do sistema de
tipo norte-americano ressalta ainda mais claramente se
considerarmos o papel exercido pelas outras
instituições. Pelo que respeita aos partidos políticos
americanos, seu momento de maior relevo,
visibilidade e dinamismo, a única fase em que
cumprem uma função nacional, está no processo de
seleção do candidato presidencial, a chamada
nomination, e no folclore, muito mais que debate
político, que caracteriza as respectivas conventions. A
seguir às recentes reformas que ampliaram e
reforçaram a democraticidade do processo de eleição e
escolha dos delegados à Convention, o declínio dos
mecanismos partidários nacionais mais se veio a
acentuar.
Reflexo imediato deste processo, o presidente acaba
por ser o chefe visível de um partido evanescente (o
dos delegados à Convention), enquanto os
representantes do seu próprio partido na Câmara e no
Senado não estão muitas vezes a ele ligados por
qualquer orientação específica, não apresentam
características de homogeneidade ideológica ou
política, nem possuem uma disciplina de voto. A
crescente impossibilidade de o presidente fazer passar
o seu programa legislativo é uma das mais relevantes
conseqüências deste estado de coisas. Uma vez que o
Congresso reage às iniciativas presidenciais, mas
raramente tem a capacidade ou a vontade de assumir
ele próprio a iniciativa, o que daí se origina é a
paralisia institucional. E isso se deve, em grande parte,
à decadência dos partidos, causa e efeito da
fragmentação da representação política, e à sua falta
de coesão.
Contudo, o presidente é, no bem e no mal, o fulcro
do sistema. Além de escolher os membros da
administration, em tempos mais recentes ele criou
para si, ampliando-o, um verdadeiro e autêntico staff
na Casa Branca, incumbido não só de manter contatos
com o Congresso, desempenhar a atividade de relações
públicas e de controlar o próprio desempenho dos
vários departamentos, mas também de fazer funcionar
a máquina da
520
FORMAS DE GOVERNO
reeleição. Enfim, ele possui amplos poderes de
nomeação, alguns particularmente importantes como
os relativos ao judiciário e, mais especificamente, à
escolha dos juizes da Corte Suprema. Embora o
Senado exerça às vezes, com vigor e rigor, os seus
poderes de confirmation, a discricionariedade do
presidente mantém-se bastante ampla e os casos de
rejeição são limitados, freqüentemente clamorosos,
raras vezes devido ao facciosismo do Senado.
Devido precisamente a que o sistema gira em torno
da figura do presidente, a sua capacidade e
personalidade têm influído, de forma decisiva, tanto
na evolução da instituição como no funcionamento
global do sistema. Historicamente, o sistema
presidencial norte-americano se consolidou graças ao
primeiro presidente, Washington, e a outro dos que lhe
sucederam,
Andrew
Jackson;
aumentou
consideravelmente seus poderes primeiro com Lincoln,
que afirmou a preeminência do Governo federal sobre
os direitos dos Estados, depois com Theodore
Roosevelt, Woodrow Wilson e, principalmente, em
virtude também dos desafios internos e externos, na
paz e na guerra, com Franklin D. Roosevelt, até à
chegada da tão criticada presidência imperial de
Lyndon Johnson.
Que a instituição depende grandemente, tanto em
seu funcionamento como em seus poderes efetivos, de
quem ocupa o cargo revela-o claramente a passagem,
em menos de dez anos, da preocupação predominante
da imperial à imperiled presidency (presidência em
perigo). Uma Forma de Governo como a presidencial,
que depende, em tão larga medida, da capacidade do
sistema em escolher uma leadership à altura dos
tempos e dos problemas, não pode deixar de
experimentar as conseqüências fortemente negativas
dos contragolpes derivados do mau funcionamento do
processo de seleção. Então, o passo do credibility gap
johnsoniano ao escândalo nixoniano do Watergate é
deveras curto. E a reforma total da administração,
fenômeno sem precedentes decidido por Carter no
verão de 1979 para reforçar o seu vacilante mandato e
para fazer subir o seu índice de popularidade, parece
um subterfúgio que não consegue fazer desaparecer os
sintomas de uma crise que, de política, pode tornar-se
institucional.
A mais importante e conhecida das variantes do
Governo presidencial é a do modelo constitucional da
V República francesa. As diferenças formais e
substanciais em relação à forma presidencial norteamericana são muitas; mas também existem algumas
semelhanças importantes. Destas, a mais relevante é a
que respeita à eleição direta do presidente da
República por parte da população (processo
introduzido sob emenda constitucional em 1962,
depois que a eleição de De Gaulle, em
1958, tinha sido obra de um colégio de notáveis) e,
conseqüentemente, a sua legitimação por parte de um
corpo eleitoral nacional. O contraste é com a
Assembléia Nacional, composta de representantes
eleitos em circunscrições uninominais com votação
majoritária e desempate.
Além desta semelhança, importante pelo título de
legitimidade que o presidente adquire, existe uma
gama de diferenças que o modelam globalmente como
um sistema não assimilável ao de tipo norteamericano. Antes de tudo, o presidente da República
não é, ao mesmo tempo, chefe do Governo. Contudo, é
da sua competência a nomeação do primeiro-ministro,
que dependerá dele de fato, tal como os ministros
escolhidos mediante minuciosa consulta e acordo.
Teoricamente, o Governo não tem necessidade de um
voto explícito de confiança da Assembléia; esta, não
obstante, pode votar uma moção de desconfiança.
Neste caso, o presidente da República poderá decidir
se aceita a demissão do Governo ou dissolve a
Assembléia. Mas à dissolução só se poderá recorrer
um ano após as eleições legislativas.
O mandato do presidente francês dura sete anos e é
renovável. Não é de excluir uma evolução do sistema
em sentido presidencialista, nem tampouco uma
reafirmação do poder da Assembléia. O período de
pouco mais de vinte anos de vigência da Constituição
da V República, com a sucessão de quatro presidentes
(De Gaulle, Pompidou, Giscard e Mitterrand) tão
diferentes pela origem e personalidade, não permite
aventar hipóteses fundadas. O mandato da Assembléia
é de cinco anos. A primazia do presidente no sistema
foi muitas vezes reafirmada no confronto com as
articulações governamentais, com o primeiro-ministro
e com a Assembléia, tanto por De Gaulle como por
Giscard d'Estaing.
Diversamente do que ocorre no sistema norteamericano, o papel dos partidos na eleição do
presidente francês e na formação de uma maioria
parlamentar é muito importante, talvez decisivo.
Especialmente depois do desaparecimento de De
Gaulle que, pela sua personalidade e pelo seu passado,
pôde, até um certo ponto e um certo momento (o
desempate com Mitterrand em 1965 constituiu uma
reviravolta), desempenhar o papel de representante,
super partes, as sucessivas eleições presidenciais de
Pompidou, em 1969, e, sobretudo, de Giscard, em
1974, e de Mitterrand, em 1981, puseram a descoberto
a divisão do corpo eleitoral em dois campos opostos,
de acordo com as linhas partidárias. De igual modo, as
eleições legislativas de 1973 e 1978 tiveram de passar
por uma segunda votação em cada uma das
circunscrições para uma decisão entre o candidato da
maioria e o da oposição. Coisa inteiramente
FRAÇÕES
diversa de meros agrupamentos de tendências
particularistas, mas, ao mesmo tempo, não tão
disciplinados e coesos como os partidos britânicos e,
de qualquer modo, obrigados a recorrer à formação de
coalizões governativas, os partidos franceses
constituem o suporte indispensável de qualquer
maioria presidencial.
Mantém-se, contudo, aberto o problema,
constitucionalmente muito delicado, da convivência
entre um presidente de uma facção política e uma
maioria parlamentar suficientemente forte e unitária
de outra facção. Enquanto no caso norte-americano,
onde não existe o poder de dissolução das Câmaras, a
ampla discricionariedade do voto de cada um dos
representantes e os meios de negociação de que
dispõe o presidente permitem levar adiante pelo
menos parte do programa legislativo e, de qualquer
modo, evitar um confronto institucional; no caso
francês não só existe o risco de provocar choques
frontais, como também de que as coisas declinem para
uma verdadeira e autêntica crise constitucional.
Em conclusão, este sistema de Governo
presidencial que, na aparência, parece responder
eficazmente à dupla exigência dos modernos
Governos constitucionais — estabilidade e eficiência
do executivo — mas que tira grande autoridade à
iniciativa e ao próprio poder de controle da
assembléia parlamentar (que o presidente pode
suspender com os poderes extraordinários que lhe
concede o art. 16), apresenta alguns inconvenientes,
potencialmente bastante sérios. Enquanto não for
experimentado com êxito em situação de crise,
continuará a não inspirar inteira confiança.
V. NOTA SOBRE O GOVERNO DIRETORIAL. — Esta
resenha das Formas de Governo ficaria incompleta, se
não se examinasse, se quer sumariamente, a chamada
forma diretorial que caracteriza o Governo da
Confederação Helvética. Por um conjunto de motivos
históricos (guerras entre cantões protestantes e
católicos), étnicos (diferenças profundas entre os
grupos lingüísticos que formam a Confederação) e
constitucionais (natureza confederativa do sistema), o
Conselho Federal, rigorosamente oriundo do poder
legislativo, é de natureza colegial. Não pode dissolver
as Câmaras, é eleito tida em conta a representação
proporcional da consistência dos diversos partidos e
funciona com o revezamento periódico rotativo do
presidente do Conselho.
Alguns autores quiseram ver na forma de Governo
suíço apenas a racionalização específica de um
fenômeno ou, pelo menos, de uma tendência que se
manifesta também em outras pequenas democracias
ocidentais (particularmente na Áustria e na Holanda):
o enfraquecimento do poder
521
da oposição e o surgimento de acordos básicos de tipo
consociativo, chamem-se eles Proporzdemokratie ou
agrément amical. Continuar nesta linha de pesquisa
relativa aos tipos de regimes democráticos — de
alternância, centristas não rotativos, consociativos —
seria ir muito longe. É útil, contudo, observar a este
propósito como é o papel dos partidos, a sua base
subcultural e o tipo de competição em que se
empenham que diferenciam os tipos de regimes
democráticos, tal como têm servido para diferenciar,
para além da própria ordem constitucional, as várias
formas de Governo democrático. Uma vez que a
democracia moderna se baseia no sistema de partidos,
será a evolução e transformação destes que
introduzirá as mais importantes variações nas formas
de Governo que conhecemos e que aqui brevemente
analisamos.
BIBLIOGRAFIA. - P. AVRIL, Le régime politique de la V
Republique. Libraine Générale de Droit, Paris 1964;
N. BOBBIO, La teoria delle forme di governo nella storia
del pensiero político. Giappichelli. Torino 1976; L.
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cuidado de F. I. GREENSTEIN e N. W. POLSBY, AddisonWesley, Reading Mass., 1975, vol. 5, pp. 173-256; Id.,
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New York, 19763 ; Presidents and prime ministers. ao
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SCHLESINGER, JR., The Imperial Presidency, Houghton
Mifflin, Boston 1973.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Frações.
I. DEFINIÇÃO. — As Frações são grupos que se
organizam autonomamente no interior de um partido a
fim de impor a própria linha política e/ou de
conquistar uma parte maior de postos-chaves de
"despojos'" para os próprios membros. Se
consideramos a organização autônoma como uma
característica distintiva das Frações, poderemos
identificar sua presença focalizando não somente os
grupos que competem abertamente nas eleições
internas, mas também aqueles grupos que
522
FRAÇÕES
— embora se apresentem unidos aos outros nas
consultas partidárias — conservam uma organização
distinta (sedes, órgãos de imprensa, convenções, etc.)
e contratam autonomamente o seu ingresso nas
coalizões que governam o partido ou a sua adesão a
cada decisão da maioria, em troca de uma aceitação
pelo menos parcial da própria linha política e/ou de
recompensas para os próprios membros.
A Fração pode ser considerada como a
especificação de um fenômeno mais amplo, que
Lasswell define: "um grupo que pertence a um
conjunto mais vasto e que opera em favor de pessoas
particulares ou de particulares linhas políticas".
Porém, nem todos os autores que se ocuparam de
Frações se preocuparam também em distinguir
terminologicamente o fenômeno do dissenso organizado
no partido de fenômenos a ele assimiláveis. Os autores
da língua inglesa, por exemplo, usam o mesmo termo
faction para indicar as facções em sentido clássico, as
agremiações a nível social que influenciam as
formações políticas sobretudo nos países em vias de
modernização, as formações pré-partidárias a nível
parlamentar, as tendências ideológicas intra e
interpartidárias, os fenômenos de dissidência no voto
parlamentar e, enfim, as Frações como foram já
definidas. Esta definição muito ampla e ambígua tem
comportado imensas dificuldades — e especialmente
ambigüidades — no confronto histórico e na
comparação do fenômeno das Frações nos diferentes
sistemas políticos. É portanto preferível não adotar a
tradução literal de faction (facção), para evitar essa
ambigüidade.
Outro vocábulo comumente usado para indicar a
Fração é "corrente", termo que apresenta muitas falhas
por causa do seu caráter eufemístico e minimizante;
corrente, de fato, se prestaria melhor a designar uma
tendency, uma linha ideológica ou programática do
que a presença e a ação de um grupo organizado.
Também o termo Fração se presta, na verdade, a ser
criticado pela sua polivalência: na Alemanha, por
exemplo, por fraktion se indica em geral a
representação parlamentar dos diversos partidos.
Apesar disso, este parece ser o termo a ser preferido,
pelo menos por duas razões: a sua proveniência da
linguagem matemática (Fração como subdivisão de um
todo) permite, de fato, distanciá-lo ao máximo de
implicações valorativas e, ao mesmo tempo, sob o
ponto de vista lingüístico, traduzi-lo com maior
facilidade. Trata-se, portanto, do termo mais idôneo
para a comparação; além disso, é preciso considerar o
fato de que o termo Fração historicamente já foi
validamente usado. Lembrem-se, por exemplo, os
partidos socialistas e comunistas europeus, onde o
termo Fração é usado para indicar
aqueles grupos internos não somente dissidentes da
maioria no plano ideológico (os chamados
desviacionistas), mas também e especialmente os
grupos com organizações autônomas (os fracionistas).
II. CLASSIFICAÇÃO E TIPOLOGIAS. — As primeiras
tentativas de classificação das correntes não foram
muito além da distinção feita por Hume entre facções
"de interesse" e facções "de opinião". Ou seja, tratavase de classificações de difícil aplicação no plano
empírico. Nos últimos anos, assistimos a tentativas de
classificação de maior capacidade efetiva. A par dos
aspectos concernentes às aptidões: Frações orientadas
para os valores e Frações voltadas para os despojos,
Frações ideológicas e Frações programáticas, Frações
situadas ao longo dos diversos intervalos da curva
direita-esquerda, têm-se evidenciado outras dimensões:
a amplitude, a duração temporal, o papel no seio das
coalizões partidárias e governamentais, o tipo de
liderança (Frações personalistas e Frações não
personalistas), a composição em termos de
assentamento geográfico, em termos de dependência
e/ou proveniência de uma ou mais associações
colaterais, em termos, enfim, de dependência e de
proveniência social, e de grau de instrução dos
integrantes da Fração. O caminho a percorrer nesta
direção parece, porém, ainda bastante longo, não só
porque o campo não está até agora desembaraçado de
classificações que deveriam pertencer à esfera das
definições (como a classificação em Frações
organizadas e não organizadas), mas sobretudo porque
não se encontrou um acordo entre a necessidade de
que as dimensões observadas sejam relevantes e a
necessidade de que sejam releváveis.
III. INFLUÊNCIA DO FENÔMENO SOBRE OS PARTIDOS E
SOBRE O SISTEMA POLÍTICO. — O juízo sobre o tipo de
ação realizada pelas Frações quer dentro dos próprios
partidos em que atuam, quer em geral nos sistemas
políticos em que eles fazem sentir sua presença, parece
concordar bastante com uma valoração negativa.
Segundo a grande maioria da literatura sobre o
fracionismo:
a) as Frações levam à instabilidade e ambigüidade no
Governo dos partidos. A presença da Fração comporta
normalmente a necessidade de gerir o partido através
de uma coalizão de Frações. Além disso, o caráter,
menos definido ideologicamente e menos estável no
tempo, das Frações em relação aos partidos, faz com
que estas coalizões internas apresentem uma
instabilidade e uma incoerência superiores à já alta
instabilidade
e
incoerência
das
coalizões
governamentais;
FRAÇÕES
b) as Frações aumentam também a instalibidade e a
conflitualidade interna dos Governos de coalizão. De
fato, à instabilidade e à conflitualidade decorrentes da
necessidade de aplanar as divergências e de distribuir
os despojos entre os partidos, se acrescentam a
instalibidade e os conflitos decorrentes da necessidade
análoga de aplanar divergência e dividir despojos
dentro de cada partido, entre as Frações. Este problema
foi eficazmente descrito por D'Amato (1966) com a
fórmula da "dupla instabilidade";
c) as Frações não são representativas do eleitorado,
que, pelo contrário, vota de acordo com a imagem
global (ou majoritária) do partido; constituem,
portanto, um elemento de distorsão da representação.
Alguns autores, porém, consideram positiva a ação
desempenhada pelas Frações, especialmente num
sistema rigidamente bipartidário ou num sistema de
partido hegemônico ou predominante. Partindo do
pressuposto de que um sistema bipartidário é incapaz
de representar as diversas posições políticas realmente
presentes no país — isto é, de que ele efetua uma
redução forçada da representação — julga-se que as
Frações podem desempenhar uma função positiva
representando opiniões e posições diferenciadas em
relação às de dois únicos partidos. Igualmente, num
sistema partidário fracamente competitivo, e
especialmente na presença de um partido hegemônico,
das Frações cobririam a falta de oposição no sistema
político, desempenhando essa função dentro do
partido majoritário. A este respeito se tentou também
identificar uma relação na ausência de competição entre
os partidos e surgimento do fracionismo no interior do
partido.
IV. FATORES QUE ESTIMULAM OU DESESTIMULAM o
FRACIONISMO. — Entre os principais fatores que
parecem determinar o fracionismo intrapartidário as
pesquisas até agora realizadas indicam: o sistema
constitucional presidencial, em que a ausência de
responsabilidade do executivo em relação às
assembléias
parlamentares
comporta
menores
necessidades de partidos homogêneos ou coesos; o
pluralismo extremo e polarizado. O sistema
parlamentar não é garantia suficiente de coesão nos
partidos. É preciso considerar também o tipo de
sistema partidário. Por exemplo, uma extrema
fragmentação e uma radicalização das forças políticas
obstaculam a alternância no Governo de partidos ou
de coalizões de partidos. Num sistema partidário deste
tipo, onde o eleitor não pode decidir qual o partido ou
qual a coalizão de partidos ocupará o Governo, e
onde, por conseqüência, quer o Governo, quer
523
a oposição, quer cada um dos partidos se tornam
praticamente irresponsáveis em relação ao eleitorado,
as decisões políticas são tomadas, considerando mais
as relações de poder dentro dos partidos do que as
reações previsíveis do eleitorado. O jogo das Frações,
dessa forma, vai encontrar um campo bastante amplo e
favorável. Além disso, desde o momento em que a
queda do Governo não implica automaticamente uma
derrota política definitiva, os grupos internos do
partido podem permitir-se atitudes contrastantes com a
linha majoritária e até com as opiniões do próprio
eleitorado; os sistemas eleitorais externos de
competição intrapartidária. Todos aqueles sistemas
eleitorais que prevêm a competição não só entre os
partidos, mas também (e, às vezes, especialmente)
entre os candidatos do mesmo partido, favorecem a
conflitualidade interna e estimulam a formação de
Frações. Estas, de fato, oferecem aos próprios
candidatos a organização e os meios necessários para
enfrentar as eleições: o voto secreto nas assembléias
parlamentares, que torna impossível identificar e punir
a dissidência intrapartidária a nível parlamentar. E,
vice-versa, a possibilidade de verificar a indisciplina
parlamentar (através da chamada nominal e o voto
aberto) permite à maioria penalizar os parlamentares de
minoria, que coincidem freqüentemente com os
dirigentes das Frações. Parecem, portanto, menos
expostos
ao
fracionismo
aqueles
sistemas
parlamentares em que não é permitido o voto secreto;
o sistema eleitoral proporcional interno a cada
partido, que, pelo fato de não penalizar os pequenos
grupos, favorece uma contínua proliferação destes.
Deste modo, a gestão do partido por parte de uma
maioria compacta é substituída por gestões de coalizão
que estão expostas à chantagem de qualquer grupo
capaz de fazer perder à coalizão seu caráter
majoritário. Portanto pequenos grupos acabam por
adquirir um poder superior à sua consistência
numérica; a descentralização político-administrativa.
Conferindo uma relevância considerável ao poder local,
a descentralização faz com que os representantes locais
do partido, ocupando cargos públicos importantes,
usufruam de recursos, de prestígio e de poder tais que
lhes permitem se opor ao partido central; a
articulação funcional do partido, no sentido de que a
articulação do partido em organizações colaterais —
tais como os sindicatos, as associações profissionais e
juvenis — a fim de recrutar os membros, socializá-los
e integrá-los, de organizar o voto e de captar os
financiamentos, representa um campo ideal de
proliferação do fracionismo intrapartidário. De fato,
quando tais organizações fogem ao controle do
aparelho central do partido, ou não dependem dele
(pense-se
524
FRAÇÕES
na relação entre certas organizações católicas e a
democracia cristã na Itália), nelas se constituem,
facilmente núcleos de Frações e delas partem estímulos
e ajudas para as Frações. Mais: se os membros das
organizações locais ou os membros das organizações
colaterais interagem entre si mais do que com o partido
no seu conjunto, servindo-se de estruturas de
comunicação preferenciais (reuniões, convenções,
sedes, imprensa), cria-se um verdadeiro "diferencial de
comunicação'' entre eles e o partido, que pode
provocar, por sua vez, uma diferenciação política. Além
disso, os grupos locais e os das organizações colaterais,
que fogem a um efetivo controle do centro, podem
gozar de um acesso, pelo menos parcialmente
autônomo, aos principais recursos do partido: os votos
e os financiamentos. As preferências e os
financiamentos são também os principais recursos das
Frações, desde que permitam aos candidatos
dissidentes ser reeleitos também sem o apoio do
partido. Parece evidente, portanto, a influência da
organização
partidária sobre
o fracionismo
intrapartidário. A este respeito alguns autores
consideram a excessiva dimensão do partido causa
suficiente para produzir o fracionismo, porque esta
dimensão implicaria automaticamente num fraco
controle sobre os membros; a falta de disciplina
interna. Em alguns partidos, a constituição de Frações
é proibida e duramente punida, podendo levar à
expulsão dos seus componentes. A possibilidade de
constituir Frações está, portanto, ligada à ausência ou
debilidade das sanções disciplinares respeitantes aos
comportamentos divisionistas; a composição social
heterogênea do partido, no sentido de que a coesão dos
partidos — especialmente de classe — dependeria da
unidade de interesses e da homogeneidade cultural de
seus membros; a ideologia: segundo alguns autores,
os partidos, que premiam ideologicamente a dissensão
e o conflito, legitimam os próprios membros a transpor
esta teoria para dentro do partido e, portanto, estão
mais expostos ao fracionismo; a base empírica da
comparação permitiu descobrir nos sistemas eleitorais
externos, na articulação funcional e no tipo de
disciplina, as determinantes principais do fracionismo.
V. TÉCNICAS ANTIFRACIONISTAS. — Se estas são as
causas principais do fracionismo identificadas pela
literatura, os remédios propostos não são — como se
poderia presumir — simétricos a elas; quer porque em
alguns casos se deveriam enfrentar revisões
constitucionais (abolição do sistema presidencial e da
descentralização político-administrativa) muitas vezes
inoportunas ou não proponíveis, quer porque em
outros casos a atuação de medidas antifracionistas
choca com
situações consolidadas ou conflitua com os valores
políticos dos estudiosos, a literatura se preocupou mais
com a identificação das causas do que com a procura
de técnicas para minimizar o fenômeno. Esta cautela
foi inspirada, provavelmente, também pelo nível
pouco avançado das pesquisas nesta área.
Dever-se-á, todavia, ter presentes pelo menos quatro
propostas: a de rever o sistema eleitoral proporcional
externo (D'Amato); a de abolir o voto de preferência
(Pasquino); a de rever o sistema eleitoral proporcional
interno (Sartori); a de financiar publicamente os
partidos (Zincone).
À primeira se podem fazer as mesmas criticas
respeitantes à revisão constitucional, levada em conta
a essência da intervenção. A modificação de uma lei
eleitoral envolve ou um difícil acordo entre as forças
políticas interessadas, ou um perigoso golpe de
surpresa da maioria. Além disso, deve-se recordar que,
segundo alguns autores, o sistema eleitoral uninominal
não impediu o surgir do fracionismo na Grã-Bretanha
(veja-se o caso dos social-democratas no partido
trabalhista inglês).
A segunda proposta sofre, em parte, das
contraindicações da primeira, contraindicações todavia
menores, tanto em virtude do menor valor da
intervenção como da maior facilidade de encontrar um
acordo vantajoso para os componentes majoritários de
todos os partidos.
A terceira proposta pode ser aplicada sem
excessivos dramas, mas corre o risco de ter apenas
efeitos temporários: não atinge a raiz do problema e é
facilmente reversível. É verdade que um sistema
eleitoral interno de tipo majoritário (quorum e/ou
prêmio à maioria pela eleição dos delegados ao
congresso e/ou pela eleição dos órgãos centrais do
partido) induz as Frações a coligarem-se para obter o
galardão da maioria e/ou para não ser excluídas da
competição: o quorum encoraja a formação de Frações
de médio talhe; o prêmio de maioria, favorecendo os
cartéis majoritários, deveria reduzir o número das
Frações. Mas as velhas Frações poderiam continuar a
agir dentro das novas macrofrações; além disso, é
difícil imaginar uma revisão eleitoral que não leve em
conta as relações de força entre as mesmas Frações
que a deviam levar a efeito, uma revisão que seja,
portanto, eficaz e duradoura. A revisão do sistema
eleitoral interno continua sendo, em todo o caso, um
dos poucos instrumentos facilmente utilizáveis para
quem se proponha o problema de modificar o número
e a dimensão das frações.
O financiamento público dos partidos, se deixado
ao controle dos seus aparelhos centrais e majoritários,
poderia contrabalançar o acesso
FRANQUISMO
525
autônomo das Frações a outras fontes de
financiamento. Tal medida tem o defeito de ser pouco
popular; além disso, se é verdade que o financiamento
público fortalece os aparelhos centrais e majoritários
dos partidos em relação aos locais e minoritários,
trata-se de um reforço relativo, isto é, de um reforço
que não exclui que as Frações continuem a receber
seus próprios financiamentos por outros canais e
consigam assim sobreviver.
1976; R. ZARISKI, Party factions and comparative
politics: some preliminary observations. in "Midwest
Journal of Political Science", IV (1960).
VI. CONCLUSÃO. — Até meados da década de 70, as
pesquisas sobre Frações diziam respeito a estudos
acerca de cada um dos sistemas partidários, se não de
cada um dos partidos ou até de cada uma das Frações.
Por muito tempo, o fenômeno foi sem dúvida
ignorado, com a honrosa exceção de Duverger que, no
entanto, não se detivera longamente sobre o tema. O
primeiro estudo sistemático se deve a Zariski (1960) e
o primeiro estudo amplo comparado a Ozbudun
(1970). Este último trabalho se resumia, contudo, num
elenco dos possíveis fatores capazes de influir no
fenômeno, elenco que dava preferência aos fatores
capazes de explicar o fracionismo nos partidos
estadunidenses. A expansão, a partir da metade da
década de 60, dos estudos de política comparada e a
formulação de redes de conhecimento para a recolha
dos dados produziu depois os seus frutos mesmo neste
campo longamente descurado: na segunda metade dos
anos 70, Sartori (1976) ensaia um estudo sistemático
do tema; Beller, Belloni e Zariski (1978) tentam
extrair o fio do trabalho desenvolvido. Mas falta ainda
hoje uma conceituação unívoca e precisa do
fenômeno, não tendo as tipologias do fracionismo
alcançado, por enquanto, um grau suficiente de
exaurimento e operabilidade. Em conjunto, tem havido
alguns avanços decisivos, mas, se não se resolverem
esses dois pontos, a pesquisa empírica poderá
continuar a progredir sob o aspecto quantitativo, mas
não atingirá os níveis qualitativos alcançados em
outros campos.
I. DEFINIÇÃO DO REGIME. — Do ponto de vista
exclusivamente cronológico, o Franquismo foi o
regime que dominou na Espanha desde 1939 até à
morte de Francisco Franco (20 de novembro de 1975).
O que foi efetivamente este regime, quais as
características que o distinguiram, quais os momentos
decisivos e mudanças por que passou durante os 36
anos da sua existência, isso é que é bem mais difícil de
dizer e vem sendo objeto de apaixonado debate entre
os diversos estudiosos, espanhóis ou não, que
encararam o problema. Linz (1964) é o primeiro
cientista político que tentou discriminar as
características principais do regime franquista. Mais: a
sua análise do Franquismo serviu-lhe de base para a
elaboração de um modelo de regime autoritário (v.
AUTORITARISMO) aplicável também a outros países.
Depois (1975), tornou a apresentar o seu modelo no
âmbito de uma complexa tipologia dos regimes
políticos. Entretanto, os elementos que ele indicou
como próprios do Franquismo — pluralismo político
limitado, escassa articulação ideológica, carência de
mentalidade, baixa mobilização política nas fases mais
importantes, poder de um chefe ou de um grupo
dentro de limites previsíveis — já haviam sido postos
em discussão, parcial ou totalmente, por diversos
outros autores. Deste modo, o Franquismo foi definido
às vezes como um caso de CESARISMO (V.), de
BONAPARTISMO (v.), de "democracia orgânica" de
cunho corporativo (v. CORPORATIVISMO), ou ainda
como uma DITADURA (V.), talvez de feição
pragmático-conservadora, como uma forma de
FASCISMO (V.), como um regime totalitário (v.
TOTALITARISMO), como um despotismo moderno e
como um regime neobismarckiano.
Todas estas definições do Franquismo assentavam
em ópticas diferentes da de Linz, dando maior
primazia aos aspectos sociais ou econômicos do que
aos exclusivamente políticos. Por outro lado, à
definição de Linz se lhe achacava em geral estar
ideologicamente muito condicionada a favor do
regime franquista. Quem criticou especificamente a
definição do Franquismo como um caso de
autoritarismo fê-lo principalmente em três sentidos: a)
a noção de pluralismo limitado é substancialmente
inaceitável, porque
BIBLIOGRAFIA. - F. P. BELLONI e D. C. BELLER,
Faction politics Political parties and factionalism in
comparative perspective. ABC Clio Press. Oxford 1978;
L. D'AMATO, Correnti di partito e partito di correnti.
Giuffrè, Milano 1965; Id., L'equilibrio di un sistema di
"partito di correnti", Editori di Scienze Sociali, Roma
1966; E. OZBUDUN, Party cohesion in western
democracies: a causai analysis, Comparative Politics
Series, n.º 01-006, vol. 1, Sage, Beverly Hills 1970;
Correnti. frazioni e frazioni nel partiti politici italiani, ao
cuidado de G. SARTORI, Il Mulino, Bologna 1973; G.
SARTORI, Parties and party systems: a Framework for
analysis. Cambridge University Press. Cambridge
Mass.
[GIOVANNA ZINCONE]
Franquismo.
526
FRANQUISMO
contraditória: o PLURALISMO (v.) é um termo destituído
de significado fora do contexto das democracias
competitivas; b) não é verdade que o Franquismo não
tenha tido uma ideologia própria, mas apenas modos
particulares de ver as coisas; pelo contrário, ele
mostrou possuir ideologias parcialmente diferentes em
períodos diversos da sua história; c) em todo caso, não
é exato atribuir ao Franquismo as mesmas
características durante quase 40 anos de existência. Se
quanto aos dois primeiros pontos a distância entre Linz
e o resto dos autores continua inalterada, em virtude de
uma diversa avaliação dos mesmos eventos, ou, como
se disse, por se haver dado maior relevo a outras
variáveis, quanto ao terceiro ponto até o próprio Linz
está de acordo (1975).
Do que se afirmou até aqui se deduz que uma
avaliação mais correta da experiência franquista tem
de partir da sua clara periodização. Mas também sob
este aspecto não existe acordo entre os estudiosos,
que, por vezes, têm sustentado que o Franquismo
deveria ser dividido em duas, três, quatro e até cinco
fases. Em geral, também aqui a periodização proposta
dependia das variáveis mais acentuadas. Contudo,
podemos pensar que todos os autores aceitariam uma
distinção mínima de duas fases: uma que começa bem
antes de 1939, mais precisamente com o golpe de
Estado militar de 17-18 de julho de 1936, e termina
com o findar da Segunda Guerra Mundial (1945); a
outra que, após um período confuso de mudanças e de
crises, se desenrola, caracterizando-se melhor, entre o
fim dos anos 50 e final da década de 60, terminando
com o início da transição para a democracia (1975).
II. O FRANQUISMO COMO FASCISMO
FRACASSADO. — O processo de instauração de um
regime, que se inspirou antes no modelo fascista
italiano do que no nacional-socialista alemão, teve
início no golpe de Estado militar de julho de 1936.
Prova disso são não tanto os dois decretos (25 de
setembro de 1936 e 10 de janeiro de 1937) com que
são postos fora de lei todos os partidos e sindicatos de
inspiração socialista e anárquica, quanto a criação de
um partido único e de sindicatos verticais. O decreto
de unificação (19 de abril de 1937) cria o partido
único, a Falange Española Tradicionalista y de la
JONS, reunindo as duas forças políticas que haviam
apoiado o golpe de Estado militar, os falangistas e os
carlistas, atores importantíssimos nestes anos, mas de
muito menos relevo nas décadas de 50 e 60, apesar das
tentativas de revitalização e institucionalização do
Movimiento, como será depois chamado o partido
único.
A estrutura sindical corporativa fica delineada com
o Fuero del Trabajo (9 de março de 1938), a lei de
unidade sindical (26 de janeiro de 1940) e a lei de
base da organização sindical (6 de dezembro de
1940). Ressalta destas três disposições, com grande
evidência, a doutrina corporativo-fascista que se
inspirava nos princípios de unidade, totalidade e
hierarquia. O sindicato vertical, que reunia todos os
que pertenciam a um mesmo ramo produtivo, do
empregador ao operário, era a instituição destinada a
tornar concretos os três princípios referidos.
A própria lei que instituía as Cortes (17 de julho de
1942) visava a uma representação corporativa que se
baseava nas três "unidades naturais" de que fala José
Antonio Primo de Rivera, o líder falangista, morto
durante a guerra civil: família, município e sindicato.
Neste período, a par da ideologia fascista-corporativa
e dos atores mencionados — falangistas, carlistas,
militares e o próprio Franco como árbitro — possuem
também grande importância outros dois atores
políticos, os monárquicos e a Igreja. Esta, que jamais
havia aceitado a política anticlerical da república,
apoiara imediatamente o Alzamiento, oficializando a
sua posição numa pastoral coletiva dos bispos
espanhóis (julho de 1937). Por isso, quando por força
dos contrastes internos entre monárquicos e falangistas
(1942-43), mas sobretudo por influência dos fatores
internacionais — a guerra que as forças do Eixo estão
perdendo — o regime se acha em evidentes
dificuldades, surge logo uma solução ideológica de
substituição. Então o Franquismo não se baseia mais
numa doutrina fascista e corporativa, mas numa versão
essencialmente tradicional e autoritária, do solidarismo
católico, a que se sobrepõe um verniz democrático. O
Fuero dos espanhóis (17 de julho de 1945), a lei do
referendum (22 de outubro de 1945) e o próprio
referendum, que faz do regime uma monarquia (6 de
maio de 1947) são uma demonstração da mudança
ocorrida. Durante esses anos, se assiste, pois, à
acentuação dos aspectos católicos do regime, à
passagem do falangismo para segundo plano, a um
notável desaparecimento dos carlistas dentre os atores
principais do regime, a um renovado desempenho de
monárquicos e católicos, à afirmação obsessiva do
anticomunismo tanto com propósitos internos como
internacionais, ao desenvolvimento da ideologia do
caudillaje, que racionaliza o papel de Franco como
protagonista e árbitro absoluto do regime, e a uma
política de desmobilização (v. MOBILIZAÇÃO) e de
repressão das resistências que ainda restavam contra o
regime. Tudo isto permite ao Franquismo continuar
FRANQUISMO
a existir, com o apoio internacional em clima inicial
de guerra fria, mas a troco da sua transformação
interna.
III. O FRANQUISMO COMO AUTORITARISMO
MODERNIZANTE. — O Franquismo sai da década de
40 ainda não plenamente consolidado nem
fundamentalmente transformado em seus traços
políticos distintivos. Os seus maiores problemas são,
nos anos 50, de caráter econômico: a política
autárquica teve efeitos desastrosos, desembocando
numa situação de séria crise (1955-1956) em que até
as altas esferas militares se mostraram preocupadas e
inquietas. O regime sai desta crise e deste período,
assumindo definitivamente suas características de
autoritarismo modernizante. Os militares continuam a
apoiá-lo, sendo-lhes concedida uma melhor posição
econômica com a oportunidade de um segundo
trabalho. O partido único passa a ter um papel cada
vez mais secundário, mesmo depois da proclamação
dos Princípios del Movimiento (17 de maio de 1958):
o projeto Arrese, que antecedera a proclamação, e toda
a oposição e discussões que ele suscitou dentro do
Franquismo, deixaram definitivamente claro que o
partido, não será nunca uma estrutura de mobilização
desde o alto, mas está condenado a ser, com os
sindicatos, uma instituição burocrática de clientela,
fonte de poder para os dirigentes do Movimiento. A
Igreja continua a apoiar o Franquismo; é até mesmo
dentre os católicos que emerge uma nova elite
tecnocrática, em grande parte constituída por membros
do Opus Dei. Através do Plano de Estabilização e de
sucessivas políticas econômicas, estes desempenharão
um papel essencial no esforço por fazer sair a Espanha
do túnel do subdesenvolvimento a que a haviam
condenado as destruições da guerra e a política
autárquica.
É assim que surge claramente o novo Franquismo,
um regime autoritário que é capaz de promover o
desenvolvimento econômico, de melhorar o teor de
vida das classes médias, de admitir a contratação
coletiva, se bem que no âmbito da velha concepção
corporativa dos sindicatos verticais.
E claro, parte essencial deste novo quadro são as
disposições de relativa e aparente "abertura
democrática" dos anos 60. Antes de tudo, está a lei da
Reforma Orgânica, aprovada mediante referendum (14
de dezembro de 1966), a qual, embora repelindo como
nefasta a existência de partidos, admite "um legítimo
contraste de opiniões"; modifica, além disso, as formas
de eleição dos membros do Conselho Nacional do
Movimiento e das Cortes, amplia as possibilidades da
527
greve por razões econômicas e elimina das leis
fundamentais anteriores o fraseio de tipo corporativo e
fascista. Depois está uma lei sobre a imprensa que,
aparentemente, delimita o anterior poder de censura.
Há também uma série de leis, publicadas de 1958 até
1971, que reconhecem a legitimidade da contratação
coletiva e prevêem o sistema de eleições sindicais com a
nomeação de delegados e comissões de fábrica. Há
ainda uma lei a tutelar a liberdade religiosa (28 de
junho de 1967) e, finalmente, o novo Estatuto do
Movimiento, de dezembro de 1968.
Toda esta obra legislativa é prova da mudançaadaptação por que passou o regime nesses anos. Quanto
a este período, tem mais sentido falar de pluralismo
limitado e ressaltar que não existe mais uma
verdadeira ideologia, mas tão-somente um conjunto de
valores ambíguos, escassamente articulados, a que Linz
chamou mentalidade, tomando de empréstimo este
termo do sociólogo alemão Geiger. Por isso,
conquanto alguns autores ponham acertadamente em
evidência
o
papel-chave
constantemente
desempenhado por Franco, a quem são atribuídas todas
as decisões cruciais tomadas nesses anos, não se pode
negar que sejam numerosos os atores que, num
contexto não democrático, desempenham um papel
importantíssimo: não é já só a Igreja ou o Exército,
mas também uma elite burocrática e tecnocrática,
expressão direta dos interesses industriais e financeiros
que nesse período se haviam desenvolvido. Mais ainda:
embora se tente sublinhar a existência de elementos
ideológicos como o desenvolvimentista e consumista
que caracterizam o autoritarismo tecnocrático de então,
é também inegável que estes elementos, por si sós, não
são suficientes para caracterizar uma verdadeira e
autêntica IDEOLOGIA (v.), capaz de suster um regime,
mas sim uma mentalidade.
IV. O FRANQUISMO COMO MODELO. — O Franquismo
tem sido apresentado como modelo de regime político
não democrático, mas também não totalitário, que
conseguiu ser politicamente conservador e, ao mesmo
tempo, instigar o desenvolvimento sócio-econômico.
Assim entendido, tem sido apontado como um
exemplo a imitar por parte de líderes políticos que
queriam evitar os riscos de instabilidade das
democracias ou não podiam seguir a via totalitária.
Mas poderá o Franquismo ser realmente um modelo
"exportável" de autoritarismo modernizante, capaz de
uma existência mais ou menos longa?
Se considerarmos o que aconteceu na Espanha, a
resposta tem de ser negativa. Na realidade, dentro do
contexto econômico e político europeu,
528
FRENTE POPULAR
a Espanha se desenvolveu efetivamente, mas isso
conduziu a mudanças sócio-econômicas profundas,
como a urbanização, a industrialização, a
secularização cultural, e, em conjunto, à ativação de
alguns conflitos típicos, desde o conflito regional e
autonomista, já existente na Espanha pré-franquista,
ao conflito de classe, particularmente entre industriais
e operários. Graças a essas mudanças, a própria
coalizão que sustentou o Franquismo se modificou
profundamente, não tanto pelo papel de simples
clientelismo assumido pelo partido único, quanto por
outras razões. Antes de tudo, pelo gradual afastamento
da Igreja do Franquismo, a partir do momento em que
se deu conta da secularização ocorrida e dos perigos a
que estaria exposta, se continuasse a apoiar o regime.
Em segundo lugar, pelo afastamento da própria elite
industrial que, em determinado momento, achou até
mais conveniente fazer acordo com sindicatos
clandestinos, mas representantes autênticos dos
operários, do que com simulacros de sindicatos
verticais. Finalmente, pela neutralização essencial do
exército num país estrategicamente importante, mas
periférico e reduzido à condição de potência
secundária, aliada aos Estados Unidos.
A par da esfoliação da coalizão que tinha
sustentado o Franquismo, originada sobretudo pela
mudança radical da estrutura social que antes lhe dera
vida, cresciam também vários tipos de oposição
dentro e fora do próprio regime. A base social desta
oposição era constituída por intelectuais, estudantes e
operários, mesmo católicos. Em face deles, foi bem
pouco
o
que
conseguiram
a
aparente
"democratização" ou as várias disposições repressivas
adotadas pelo regime.
Foi nesta situação que começou e se aprofundou,
portanto, a crise do Franquismo, que morreria com o
seu fundador. Por outros termos, paradoxalmente, a
mecha da crise fora acesa no preciso momento em que
o Franquismo acabava de se transformar num regime
que promovia a modernização da sociedade e da
economia. O Franquismo, como autoritarismo
modernizante, continha em si mesmo os germes da
autodestruição e de nada serviram os esforços
desenvolvidos
por
Franco
para
a
sua
institucionalização, nem o complexo mecanismo de
sucessão que fora predisposto para a continuação do
regime após a sua morte. De resto, isto não impede
que, num contexto geopolítico não europeu e num
país, ao mesmo tempo, escassamente desenvolvido
sob o aspecto sócio-econômico, um novo
autoritarismo modernizante não possa desempenhar as
mesmas funções do Franquismo e até talvez ficar por
mais longo tempo, conseguindo institucionalizar-se.
BIBLIOGRAFIA — AUT. VÁR., El régimen franquista,
in "Papers", VIII, n.° 8, 1978; F. ALMENDROS
MORCILLO e outros, El sindicalismo de clase en Espana
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1974: J. J. Linz, An authoritarian regime: Spain, in
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POLSBY, Addison Wesley Publishing Co., Reading
1975; S. G. PAYNE, Politics and the military in modern
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M. RAMIREZ JIMENEZ, España 1939-1975 (Régimen
político e ideologia). Editorial Labor, Barcelona 1978;
S. VILAR, La naturaleza del franquismo, Ediciones
Península, Barcelona 1977; K. VON BEYME, Vom
faschismus zur entwiklungsdiktatur: machtelite und
opposition in Spanien, Piper, München 1971.
[LEONARDO MORLINO]
Frente Popular.
A Frente popular é um tipo de aliança centrada na
unidade de ação dos partidos de esquerda,
democráticos e antifascistas, experimentada pela
primeira vez no período de 1934-1935 em alguns
países europeus. Remete historicamente à sua
antecedente, a frente única, fórmula política fundada
no acordo dos partidos que aderiram à Segunda e à
Terceira Internacional, com o fim de fomentar e
sancionar a unidade de ação em torno de objetivos
econômicos e políticos transitórios da classe operária,
salvaguardada a fisionomia ideológica e orgânica de
cada partido. A tendência à unidade de ação do
proletariado, expressa na frente única "desde baixo" (e
sustentada pelos
FRENTE POPULAR
primeiros congressos da Internacional Comunista), é
depois integrada, desenvolvida e orientada pela frente
única "desde cima", tomada realidade por acordos
estipulados pelas direções dos partidos operários.
A Frente popular constitui uma retomada e um
desenvolvimento da frente única, após o período da
divisão entre os partidos operários. Consiste na
unidade de ação em torno de objetivos comuns,
estendida não só aos partidos operários e às classes
trabalhadoras, como também aos partidos democráticos
e radicais e às classes pequeno-burguesas dos campos e
das cidades. Enquanto a frente única é, de preferência,
uma aliança proletária e anticapitalista, a Frente
popular é "democrática" e "antifascista".
Esta coalização entre partidos políticos da esquerda
em torno de objetivos comuns intermédios pode e, em
certos casos, deve ter um prolongamento e uma sanção
a nível parlamentar e governamental, com a formação
de acordos eleitorais, de programas comuns e de
Governos de frente popular, cuja composição pode
variar segundo as características histórico-políticas de
cada país, mas hão de ter necessariamente como
núcleo propulsor a aliança entre partidos comunistas e
partidos de origem socialista. Os primeiros exemplos
de Frente popular ampliada ou aberta a forças
populares diversas das operárias e a organizações
políticas radical-burguesas são a espanhola e a
francesa, ambas remontantes a 1936.
A política de Frente popular representa uma
viragem tática assaz acentuada no âmbito do
movimento comunista internacional hegemonicamente
dominado pela URSS de Stalin, viragem que se
concretiza na resolução do VII Congresso da
Internacional Comunista (1935) e no relatório ali
apresentado por G. Dimitrov. O cenário político onde
se situam as primeiras experiências e os primeiros
Governos de Frente popular é o cenário caracterizado
pela generalização, em escala européia e mundial, de
movimentos, partidos e regimes de origem ou
inspiração fascista e pelo ressurgir dos perigos da
guerra como conseqüência da crise econômica
internacional e do declínio da liderança das classes
políticas liberal-oligárquicas. A ameaça de guerra e de
uma reação fascista generalizada levou o movimento
operário a uma nova, menos esquemática e menos
sectária análise da natureza do fascismo internacional e
a uma inversão drástica do juízo sobre a socialdémocracia, até então tachada de "social-fascismo":
reconhece-se no fascismo o inimigo principal, enquanto
que a social-democracia se converte no aliado
fundamental na luta antifascista (v. ANTIFASCISMO).
Daí o conteúdo defensivo e ofensivo ao
529
mesmo tempo das políticas de Frente popular, que
incluíam reivindicações de caráter econômico e
político, a breve e médio prazo: desde a tutela das
condições de vida e de trabalho das classes
trabalhadoras à luta por reformas estruturais no campo
econômico e social destinadas a enfraquecer as
posições de domínio dos grupos capitalistas mais
reacionários, desde o objetivo universal da defesa da
paz à renovação ou salvaguarda, entre os comunistas
da União Soviética, das liberdades democráticas
"burguesas", mesmo que estas fossem consideradas
mais como precondições da transição para o socialismo
do que como valores autônomos.
Outro alargamento das Frentes populares, a
confirmar o favor de que gozavam entre vastos setores
da opinião pública antifascista, é o que se dá em
numerosos países europeus e asiáticos durante o
segundo conflito mundial, com as alianças
antifascistas (Frentes nacionais) que se estenderam a
todas as forças políticas empenhadas na defesa nacional
ou na resistência. A plataforma programática é, nestes
casos, acentuadamente defensiva, ficando circunscrita,
com o tempo, ao período da emergência nacional. O
método é, de ordinário, o da luta armada ou da
guerrilha que desemboca na insurreição. Um exemplo
da aplicação deste modelo é a frente única chinesa
contra a invasão nipônica.
A derrota do fascismo encerra uma fase da história
das Frentes populares e abre uma nova que, se mantém
pontos extrínsecos de contato com a anterior, denota
sobretudo diferenças profundas. São estratégias de tipo
frentista que caracterizam as relações entre comunistas,
socialistas e forças radical-democráticas em algumas
situações européias e extra-européias do pós-guerra.
Esse o caso, na Itália, do Fronte del popolo (19471948), aliança eleitoral entre o Partido Comunista e o
Partido Socialista, severamente derrotado nas eleições
de 1948. Fora da Itália, são conhecidos os
acontecimentos dramáticos de alguns países do bloco
oriental onde, no momento da libertação, se
constituem Governos de coalizão, ditos de Frente
popular, de frente nacional democrática, de união
nacional antifascista, de frente da pátria, etc,
congregando todos os partidos da resistência contra os
alemães. De 1945 a 1948, na Tchecoslováquia, na
Romênia, na Hungria e na Polônia, os Governos de
coalizão se convertem em regimes quase
exclusivamente dirigidos pelos comunistas. Dentro dos
moldes do frentismo, como é freqüentemente
designada, não sem uma clara intenção depreciativa, a
tentativa de dar vida a alianças que imitam o esquema
da frente popular, podem-se também classificar as
experiências da Unidad Popular (1970-1973) e da
Union de gauche; a
530
FRENTE POPULAR
experiência chilena de Salvador Allende teve seu
desfecho trágico com o golpe fascista de Pinochet,
enquanto que a unidade programática entre
comunistas e socialistas franceses não resistiu às
divisões internas e terminou também com a derrota
dos seus protagonistas.
Não é de estranhar que esta série de insucessos e de
tragédias tenha levado os estudiosos e políticos a
opinar que a experiência das Frentes populares é uma
experiência já encerrada e, de qualquer modo, não
aconselhável:
alternância,
grandes
coalizões,
democracia associativa, parecem aos seus defensores
formas de aliança parlamentar e governamental mais
adaptadas aos desafios das modernas sociedades
industriais. Sobre o frentismo pesa a suspeita de ser
um expediente tático para preparar a hegemonia
comunista, a
acusação de dar maior preferência ao campo eleitoral
e parlamentar que ao das alianças sociais, de deixar
sem solução o problema crucial da relação entre
democracia e socialismo.
BIBLIOGRAFIA - A. AGOSTI, La svolta del VII
Congresso in alcuni recenti studi sull'Internazionale
comunista, in "Studi Storici", Il (1974); F. CLAUDIN,
La crisi del movimento comunista. Dal Cominter al
Cominform, Milano, Feltrinelli. 1974 (1970);
Fascismo, democrazia. fronte popolare, ao cuidado de
F. DE FELICE, Fronti popolari, in Il mondo
contemporaneo. Storia d Europa 1, ao cuidado de B.
BONGIOVANNI, G. C. JOCTAU e N. TRANFAGLIA,
Firenze, U Nuova Italia, 1980.
[SILVANO BELLIGNI]
Galicanismo.
I. DEFINIÇÃO. — O termo Galicanismo é recente.
Aparece nas controvérsias político-religiosas do
século XIX tratando da autoridade pontifícia e das
relações entre a Santa Sé e a França, porém numa
época em que o assunto perdeu muito da sua
importância. Sob esta denominação juntam-se várias
teorias sobre a divisão dos poderes da Igreja e o
relacionamento entre a autoridade secular e a sede de
Roma, que se formaram aos poucos, no curso de um
longo período histórico, tendo a característica comum
de ser, antes de mais nada (mas, não exclusivamente),
francesas e de propor certos limites ao excesso do
poder pontifício.
Apesar desta tentativa do século XVII e XVIII, a
doutrina galicana nunca mais foi claramente definida
e a lista de suas proposições essenciais ("as liberdades
e as franquias da Igreja galicana", esta última
expressão que se refere geograficamente à França era,
porém, antiqüíssima) nunca foi fixada oficialmente,
nem sequer oficiosamente.
Algumas vezes distinguiu-se, por clareza de
exposição, um "Galicanismo episcopal" (ou
eclesiástico), preocupado em afirmar os direitos dos
bispos em face do primado romano, e um "Galicanismo
político" (às vezes subdividido em "Galicanismo régio"
e "Galicanismo parlamentar"), que desenvolvia o tema
de uma certa autonomia da Igreja de França em
relação à de Roma e, ao mesmo tempo, lembrava a
estreita vinculação desta Igreja com a monarquia. O
Galicanismo é, antes de tudo, um produto da história,
resultante, em suas várias formas, de situações
conflitantes. Portanto, não pode ser examinado senão
colocando essas formas dentro deste processo histórico.
Mesmo sem nos determos em épocas no âmbito das
quais não é possível — sem forçar o significado das
palavras — encontrar um Galicanismo mesmo
embrionário, podemos distinguir três épocas na sua
história: a do aparecimento progressivo das atitudes e
das teses galicanas (séculos XIV e XV), com seus dois
momentos mais importantes:
o conflito entre Felipe o Belo e Bonifácio VIII (12961303) e a crise provocada pelo Grande Cisma (13781438); a fase de seu apogeu, com a constituição de uma
doutrina e de sua aplicação (desde o fim do século
XVI até a época da Revolução Francesa); e,
finalmente, a fase na qual vê-se o prolongamento do
desenvolvimento das teorias precedentes, durante o
período revolucionário e imperial (1789-1815). Não
devem ser esquecidas as manifestações de
Galicanismo do século XIX e seus traços, que
podemos ainda encontrar no início do século XX.
No século XV, após sua paulatina estruturação na
época da disputa que contrapôs Felipe o Belo a
Bonifácio VIII, a propósito da jurisdição reivindicada
pelo Papa contra o rei (1296-1303), e ainda mais na
crise do Grande Cisma e do movimento conciliar
(1378-1449), o Galicanismo adquiriu, finalmente, suas
características essenciais: a estreita união entre o rei e
a Igreja (que não é isenta de graves dificuldades); a
independência do rei no temporal em relação ao Papa;
a subtração da Igreja a certas intervenções romanas em
nome da liberdade e das franquias da Igreja galicana e
— como que em contrapartida — o reconhecimento de
certos direitos do rei sobre bens da Igreja: tutela
(garde), regalia (régale), impostos; recusa de "receber''
sem exame, para aplicação na França, a legislação
pontifícia e, inversamente, a possibilidade de o rei
legislar em matéria de disciplina eclesiástica;
finalmente, superioridade do Concilio sobre o Papa.
Estas máximas (e outras, como a condenação do
tiranicídio) apareceram aos poucos, suscitadas pelas
circunstâncias do momento, mas não formaram,
todavia, um corpo doutrinai bem definido. Será
preciso aguardar o fim do século XVI para que
apareçam os primeiros tratados sobre as "liberdades
galicanas".
II. O GALICANISMO ENTRE O FIM DO
SÉCULO XVI E O INÍCIO DO SÉCULO XVII. — Na
França, a oposição dos Parlamentos em aceitar os
decretos do Concilio de Trento (1545-1563) fornece
aos galicanos a ocasião para definirem as suas
532
GALICANISMO
teses e para apresentarem visões de conjunto. Foi este o
momento no qual multiplicaram-se os tratados, que
seriam até hoje as "bíblias" do Galicanismo; em 1594,
publicou-se uma série de opúsculos sobre as
"liberdades": os de Guy Coquille, Des droits
ecclésiastiques et libertés de l'Église gallicane et les
raisons et moyens d'abus contre le Bulles décernées
par le pape Grégoire XIV contre la France en 1591
(publicado nas Oeuvres de G. Coquille, t. I, Paris, J.
Guignard, 1665); de P. Pithou (Paris, M. Patisson),
Traité des Libertez de l'Église gallicane; de A. Hotman,
Traité des droits ecclésiastiques, franchises et libertez
de l'Église gallicane. No ano seguinte, publica-se o
Traité des libertez de l'Église gallicane, de Guy Lanier
de Leffretier. Em 1609, L. Bochel (Bouchel) publica os
seus Decretorum ecclesiae gallicanae Libri VIII
(Paris, Mace); em 1617, o De sacra politia forensi, de
Choppin, é traduzido para o francês com o título Trois
livres de la police ecclésiastiques, que trata des droits
royaux sur les personnes et les biens des
écclésiastiques. Pithou deu uma lista com 85
proposições, mesmo reconhecendo que ainda havia
outras, tanto é que os doutores — teólogos ou juristas
— nunca conseguiram estar de acordo com relação ao
seu número exato. Divergências persistiram no século
XVII, por exemplo, sobre a regalia universal ou sobre
o apelo por abuso. A mesma imprecisão desta lista se
ajustava às pretensões anglicanas.
O elenco das liberdades redigido por Pithou era
dedicado a Henrique IV na qualidade de "Rei
cristianíssimo, primeiro filho e protetor da Igreja,
patrono particularmente daquela do vosso reino".
As principais normas especificadas por Pithou
indicam que o seu Galicanismo, que se preocupava
antes de mais nada em fazer valer as prerrogativas
régias e em limitar as intervenções pontifícias nos
negócios da Igreja da França, não deixava também de
lembrar a necessidade de respeitar certas máximas da
disciplina eclesiástica.
Pithou reservou-se o direito de expor num "mais
amplo Tratado" as provas que justificavam estas
máximas. Estes textos, recolhidos após a morte de
Pithou por P. Dupuy, foram finalmente publicados em
1639 por este último, juntamente com alguns ensaios
de Pithou e com alguns outros tratados sobre as
"liberdades galicanas". A nova obra tomou o nome de
Traitez des droits et libertez de l'Église galicane, mas
os bispos franceses a condenaram, considerando-a
"um amontoado quase infinito de falsas e heréticas
servidões, e não de liberdades".
Na origem desta condenação estavam os atentados
que a mesma perpetrava contra a autoridade pontifícia
e os obstáculos que interpunha ao exercício da
jurisdição eclesiástica. Apesar das
críticas, o episcopado reafirmava seu apego às
"liberdades galicanas". Por isso, as evidentes
conseqüências da ambigüidade desta noção e da
variabilidade de seu conteúdo: o Galicanismo
parlamentar não deve ser confundido com o episcopal.
Sobre um ponto essencial, porém, ambos estavam de
acordo: a condenação do tiranicídio, antigo debate
bastante presente desde o século XV e que tomou
maior impulso na época das guerras de religião com o
assassinato de Henrique IV.
Uma outra máxima foi, no mesmo momento, objeto
de acirradas controvérsias: a que negava ao Papa o
direito de depor o soberano, sustentada pelos galicanos
desde o início do século XIV, isto porque, achando que
o poder do rei era delegado (transferido) pelo povo,
eles admitiam que somente o povo poderia depor um
rei excomungado pela Igreja. Professada pelos
protestantes, depois pelos ligueurs, a doutrina da
soberania popular continuou muito viva mesmo na
segunda metade do século XVI. Em 1615, ela era
ainda professada pela Assembléia do Clero, mas
apenas como uma sobrevivência. No século XVII, o
triunfo do absolutismo de direito divino tornou
insustentável a idéia de uma deposição do príncipe,
qualquer que fosse a razão de sua deposição.
Deste modo, malgrado as tentativas feitas, em fins
do século XVI, para lhe fixar os princípios básicos, o
Galicanismo manteve-se como uma doutrina
multiforme.
E é a diversidade destas correntes que Richelieu,
bispo e cardeal, mas também primeiro servidor do rei,
tem de conciliar entre 1624 e 1642. Guarda zeloso das
prerrogativas da coroa, ele quer também assegurar ao
Papa o "respeito e a reverência que lhe são devidos".
Chefe do Governo, Richelieu professa um
Galicanismo político que o leva a afirmar a
independência absoluta do rei no domínio temporal;
bispo e cardeal, quer evitar o cisma a que poderia
conduzir um Galicanismo ferrenho. Daí a sua vontade
de conter os excessos da Sorbone e dos Parlamentos.
Uma política prudente que se expressa nos preceitos
do 'Testamento político": "se os reis estão obrigados a
respeitar a tiara de São Pedro, também estão
obrigados a salvaguardar o poder da sua coroa".
III. DA DECLARAÇÃO DE 1682, NO FINAL DO ANCIEN
RÉGIME. — Para defender sua própria posição
absolutista em relação ao poder de Inocêncio XI, Luís
XIV se apoiou na Assembléia do Clero. Sem chegar a
uma convocação do Concilio nacional, que alguns
consideravam necessário, reuniu uma Assembléia
extraordinária do Clero que publicou, a 19 de maio de
1682, a célebre Declaração dos quatro artigos, em que
a
GALICANISMO
doutrina galicana é afirmada de uma forma
particularmente vigorosa.
Não sendo mais apresentada como simples
codificação dos usos da Igreja na França, ela quer
agora ser considerada como ensino doutrinai. O artigo
1.º, que retoma com maior firmeza as teses dos três
artigos de 1626 sobre a independência e a autoridade
do rei, cita o Evangelho de São Paulo, apresentando a
própria "doutrina... inteiramente conforme à palavra
de Deus". O artigo 2.° confirma a autoridade dos
Decretos do Concilio de Constança, invocando a
"prática dos pontífices romanos" e a tradição da Igreja
galicana, quando se trata de "plenitude do poder" da
Sede de Roma. Isto significava adotar, mesmo sem que
fosse dito. formalmente, a teoria da superioridade do
Concilio sobre o Papa. O artigo 3.° limita o excesso
de poder pontifício do qual "é preciso regular o uso",
mediante a obrigação de respeitar os cânones e os
usos, especialmente os da Igreja galicana. Finalmente,
o artigo 4.º estabelece que o juízo do Papa não é
irrefutável, a menos que intervenha o "consenso da
Igreja".
Os quatro artigos, obra substancialmente do bispo
de Meaux, Bossuet, serão, por mais de um século, a
Carta do Galicanismo e seu ensinamento, nas
faculdades de teologia, será prescrito pela autoridade
política. Em 1691, com a Constituição Inter
multiplices, Alexandre VIII tornará nula a Declaração.
As contínuas críticas levantadas contra a Declaração,
desde sua publicação, na França, na faculdade de
teologia e também em vários países estrangeiros,
levarão o rei a encarregar Bossuet de escrever uma
defesa da mesma. A Defensio declarationis cleri
gallicani. acabada em 1685, constitui a summa mais
completa do Galicanismo. Mas não foi publicada
imediatamente, pois o rei queria, sem dúvida, evitar
que se agravasse a tensão com Roma. Só seria
divulgada, em mais de uma edição, nos primeiros anos
do século XVIII. Porém, em 1684, era publicado o
Tractatus de libertatibus ecclesiae gallicanae, de A.
Charles.
No século XVIII, o "Galicanismo régio" fica um
tanto obscurecido. A monarquia, ocupada com as
disputas jansenistas, precisa da autoridade de Roma e,
amiúde, as tendências ultramontanas se manifestam no
Conselho do rei.
No final do Ancien Régime, Guyot, no seu
Répertoire universel et raisons de jurisprudence (t. X,
Paris, 1785, sobre Libertés gallicanes), propõe uma
definição mais moderada e prudente das "liberdades
galicanas": "A palavra 'liberdade' que, aos espíritos
servis dos ultramontanos, parece designar privilégios
exorbitantes indica apenas o antigo direito comum a
todas as Igrejas, direito comum que os franceses
souberam
533
conservar e defender contra todas as iniciativas da
corte de Roma, com maior firmeza e constância do
que os magistrados e doutores de outras nações
católicas".
Doutrina oficial, mas entendida de maneira sempre
diferente pela monarquia, pelos Parlamentos e pelo
Clero, o Galicanismo não foi somente argumento de
tratados e discursos. Durante todo o século XVIII
podemos encontrar suas manifestações concretas,
quando defende o apelo por abuso, os impostos sobre
o clero, a jurisdição eclesiástica ou a não aceitação na
França das Bulas pontifícias (por exemplo, a de
Clemente XII, que canonizava São Vicente de Paula).
IV.
O
PROLONGAMENTO
DO
DESENVOLVIMENTO DAS TEORIAS GALICANAS
NA ÉPOCA REVOLUCIONÁRIA E IMPERIAL (17901815). — A 12 de julho de 1790, a Assembléia
Constituinte vota a Constituição civil do Clero,
realizando assim uma aplicação das doutrinas
galicanas como não teriam ousado fazer, nem a
monarquia, nem os Parlamentos do Ancien Régime.
A própria iniciativa é profundamente galicana,
porque constitui um decreto da autoridade política
que, sem nenhum acordo e sem nem sequer consultar
Roma, delibera o novo estatuto da Igreja da França. A
Constituição mantém o apelo por abuso.
É também uma idéia galicana a da eleição dos
bispos e dos párocos, mesmo se os colégios eleitorais
dos departamentos e dos distritos não possam ser
considerados como uma volta aos antigos usos da
Igreja. O bispo eleito pelos cidadãos será depois
"instituído" canonicamente pelo metropolita. O Papa
receberá apenas uma notificação que comunica esta
nomeação "como afirmação da unidade, da Fé e da
comunhão" (t. II, art. 19).
A Concordata de 1801, que pretende acabar com a
crise religiosa provocada pela Constituição, e ainda
mais os "Artigos orgânicos" (1802), que a
acompanhavam, não renunciam ao Galicanismo. Como
a Constituição civil do Clero, estes conferem à Igreja da
França uma organização que emana exclusivamente do
poder civil e são apresentados como ampliação das
disposições demasiado sumárias da Concordata mas,
na realidade, eles têm muito mais alcance e
manifestam um espírito muito diferente.
Mais de vinte artigos especificam os princípios
gerais que figuram na Concordata. Eles concernem à
nomeação e ao juramento dos bispos e dos párocos, aos
seminários, às circunscrições diocesanas e paroquiais,
aos emolumentos e à moradia dos ministros do culto, e
à utilização dos edifícios destinados a este fim.
534
GALICANISMO
A Concordata, porém, não faz qualquer referência
aos outros artigos. Suas disposições, trate-se das
relações entre Roma e a França ou da disciplina
eclesiástica, estão muito mais ligadas à tradição mais
formal do Galicanismo parlamentar.
Refutados pelo Papa Pio VII, em 24 de maio de
1802, os "Artigos orgânicos" foram sempre
"ignorados" por Roma, mas figurarão na legislação do
Estado até a promulgação da Lei de Separação, de 9
de dezembro de 1905; e nas dioceses de Metz e de
Strasburgo, que mantêm até hoje o regime
concordatário, são ainda aplicados (em particular para
a nomeação dos bispos).
Não é possível fazer uma exposição detalhada das
manifestações do Galicanismo na França do século
XIX. O episcopado da Restauração ainda mostra um
forte espírito galicano. Em 1818, Mathieu de Barrei,
arcebispo de Tours, publicava uma Défense des
libertés de 1'Êglise gallicane. Um outro escrito
similar foi publicado pelo bispo-duque de Langres,
monsenhor de La Luzerne, cardeal e par de França.
O
Galicanismo
episcopal
preocupa-se
especialmente em salvaguardar as prerrogativas dos
bispos em relação a Roma. Conforme a opinião do
núncio apostólico, os bispos faziam uma transposição
da célebre fórmula e sustentavam que "o Papa na
França reina, mas não governa". Isto ficará bem claro
na metade do século, quando explodirá a controvérsia
sobre a introdução da liturgia romana; se, de um lado,
o Galicanismo afirma a independência da Igreja, de
outro, não impede aos seus sustentadores de apelarem,
caso necessário, ao poder civil.
Nos primeiros anos da Terceira República, quando
o anticlericalismo se tornou mais agressivo, o
procedimento galicano do apelo por abuso será
utilizado pelos republicanos contra seus adversários.
Aos poucos, porém, o Galicanismo vai declinando.
Conserva-se ainda numa parte do alto clero, na
Companhia dos Padres de São Sulpicio, que dirige
numerosos seminários (entre outros o de Paris), em
alguns altos funcionários, em certos magistrados e
homens políticos, mas seria difícil encontrá-lo no
baixo clero da França, que se dirige de preferência a
Roma para buscar nela apoio contra o autoritarismo
episcopal. A influência ultramontana é dominante
também entre os religiosos que exercem uma forte
influência, seja junto à população católica, seja nas
camadas sociais mais altas. Aos poucos, difunde-se
também entre o episcopado, mas sem se generalizar.
Em 1853, a Encíclica Inter multiplices excomunga
o Galicanismo e são colocados no index
obras galicanas. Pode-se considerar como última
manifestação coletiva do Galicanismo episcopal a
partida de Roma, seguindo Monsenhor Dupanloup, de
uns sessenta bispos, que não quiseram subscrever, no
Concilio Vaticano I, o decreto sobre a infalibilidade
pontifícia.
Após as deliberações do Vaticano I, o Galicanismo
não tem muitas possibilidades de expressar-se
oficialmente. As profundas mudanças políticas trazem
à tona novas tendências. A tomada de Roma traz ao
mundo católico a questão da liberdade do Papa. Na
França, a luta republicana, o anticlericalismo e o
ateísmo provocam novas agregações favorecendo uma
tendência ultramontana cada vez mais difundida.
A conclusão do conflito, com a separação da Igreja
do Estado, faz surgir novos parâmetros para a questão
das relações entre os dois poderes, assim como entre
Roma e as Igrejas locais. As teses galicanas não
oferecem mais soluções e as novas agregações
formam-se ao redor de um ultramontanismo que vai
dominando toda a Europa. Mesmo que o Galicanismo,
enquanto doutrina, pertença ao passado, ainda por
longo tempo certos tipos de sensibilidade mostrarão
seus traços.
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Monarchie. Univ. Grégorienne. Roma 1959, 2 vols.;
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[JEANGAUDEMET]
Gandhismo.
"Não existe nada como o Gandhismo." Com esta
afirmação, na qual insistiu durante toda a sua vida,
Gandhi (1869-1948) pretendia enfatizar duas coisas: a)
o caráter não definitivo, aberto, experimental de suas
concepções
éticas,
sociais,
políticas
e,
conseqüentemente, b) sua tomada de posição contra
toda forma de sectarismo que se referisse ao seu nome.
Em 1936, escrevia: "As opiniões que formei e as
conclusões a que cheguei não são definitivas. Poderei
modificá-las a qualquer momento" (Teoria e prática da
não-violência, 1973, p. 5). Novamente, insistia em 1939:
"Meu intento não é o de ser coerente com as minhas
afirmações precedentes. .. mas sim, de ser coerente
com a verdade como se apresenta em um dado
momento" (Harijan, 30 de setembro, 1939). "A verdade
e a ahimsa — escrevia em 1940 — nunca mais serão
destruídas, mas o Gandhismo, se ele for apenas um
nome diferente para uma forma qualquer de sectarismo,
merece ser destruído" (Harijan. 2 de março, 1940).
Inúmeras vezes ele afirmou que, pelo menos
enquanto estivesse vivo, seria impossível escrever um
tratado a respeito da concepção da não-violência, e se
ele viesse a ser escrito seria "certamente incompleto".
Sempre declinou qualquer proposta de escrever este
tratado, afirmando que não tinha nenhuma propensão
"para redigir escritos acadêmicos", porque seu
domínio era o da ação. A maior parte de seus escritos é,
realmente, constituída de milhares de artigos,
geralmente muito breves, de reflexões, cartas, apelos,
redigidos na ocasião de determinados acontecimentos,
com a finalidade de esclarecer, a si mesmo e aos outros,
aspectos e implicações da sua concepção da nãoviolência. A maior parte desses escritos apareceram em
língua inglesa em duas publicações semanais Young
Índia e Harijan (literalmente, "o povo de Deus",
expressão com a qual Gandhi costumava dirigir-se aos
intocáveis).
535
Através destas publicações, Gandhi, durante quase
trinta anos, dirigiu-se ao povo indiano e ao mundo
inteiro. A coleção completa dos seus escritos continua
ainda sendo publicada e já chegou ao septuagésimo
quinto volume.
Desta imensa obra pode-se extrair todo um conjunto
de idéias filosóficas e religiosas, de conceitos éticopolíticos, de proposições em relação ao sentido da
história e da vida humana, de teses sobre a natureza do
homem e dos conflitos humanos, de conceitos sobre a
educação, sobre a vida associativa e o poder político,
assim como de propostas de estratégia e métodos de
luta política que, sistematizados, conforme uma
determinada interpretação, podem apresentar-se como
"doutrina" particular, à qual poderíamos nos referir
com o termo Gandhismo.
A ausência de sistematicidade nos estudos de Gandhi
(sob vários aspectos, muito parecidos com os de
Gramsci), assim como as incoerências algumas vezes
neles encontradas, tornam a tarefa de fornecer uma
reconstrução sistemática e coerente da "doutrina" de
Gandhi extremamente árdua, e a de defender a clareza
da interpretação proposta bastante difícil.
As interpretações do Gandhismo (assim como a
avaliação da conduta política de Gandhi) são muitas e
variadas; elas vão das extremamente negativas, dos que
acham que não se pode falar de uma doutrina original,
mas apenas de um acervo eclético de teses colhidas um
pouco de todos os lugares, até aquelas extremamente
positivas, que vêem no Gandhismo a única doutrina
verdadeiramente nova do nosso século (leninismo e
maoísmo não trazem nada de novo para a teoria
marxista). Entre esses dois extremos ficam os que
acham possível, na concepção de Gandhi, distinguir "o
que é vivo daquilo que é morto", o que é relativo à
cultura, à época e à situação histórica precisa na qual
Gandhi teve que agir, do que, afora isso, ainda é válido
e de grande interesse atual. Entre o que é vivo, neste
sentido, são geralmente consideradas:
a) A crítica de Gandhi ao industrialismo enquanto tal
e não somente sob o aspecto de sua variante
capitalista.
b) Sua concepção de um "Estado não-violento".
c) Suas idéias a respeito da educação, fundadas na
participação no trabalho produtivo, especialmente o
manual.
d) Sua filosofia dos conflitos de grupo.
e) Sua concepção das relações entre ética e política.
f) Sua doutrina do satyagraha como modalidade
muito especial de luta política.
536
GANDHISMO
A seguir, nos limitaremos a uma exposição sobre
estes dois últimos assuntos em suas linhas gerais.
I. ÉTICA E POLÍTICA. — Freqüentemente; distingue-se
entre ética individual e ética de grupo ou política
remontando a Maquiavel, a Lutero, aos teóricos da
razão do Estado, a Meinecke, a M. Weber e inúmeros
outros teóricos e filósofos políticos. A primeira
coincide muitas vezes,
embora um tanto
superficialmente, com uma ética universalista, que
engloba toda uma série de obrigações (não- mentir,
não matar, etc), às quais o indivíduo deve conformarse no seu relacionamento, mesmo quando conflituoso
com outros indivíduos, a cujos interesses deve abrir-se
de maneira imparcial ou até altruísta. Está subjacente a
esta doutrina ética uma concepção do indivíduo como
ser racional, influenciável pela argumentação e apelo
moral, capaz de sentir simpatia em relação a outros
indivíduos com os quais se relaciona e capaz de um
comportamento não-violento, mesmo em situações de
conflito interindividual muito agudas.
Ao contrário, a ética de grupo ou política é
identificada, sempre superficialmente, com uma ética
particularista, que coloca o critério de justificação
moral do agir coletivo, ou de um indivíduo que age
em nome do grupo, na máxima realização possível do
interesse coletivo (do Estado, da nação, da classe ou
ainda do partido, enfim, de um certo grupo).
A finalidade, ou seja, o interesse do Estado, da
nação, da classe, etc, justifica todo e qualquer meio
que permita sua realização de maneira eficaz e,
portanto, justifica-se até o uso de meios violentos. A
esta doutrina normativa sujeita-se uma concepção
própria dos grandes grupos (nacionais, econômicos,
etc), movidos exclusivamente por motivos de egoísmo
coletivo ou quando pouco interessados nas
necessidades, mesmo vitais, de outros grupos, portanto
pouco influenciáveis ao apelo das razões de justiça.
Surgem assim as relações conflituosas entre eles,
sempre por questão do uso do poder; daí a ameaça de
violência e, finalmente, de seu emprego efetivo.
A política está assim necessariamente ligada ao poder
e à violência ("Ihrem Wesen nach Ümgang mil der
Gewalt", como diz Jaspers, repetindo Weber) e a ética
política, enquanto diferente da ética individual, outra
coisa não é senão a ética da justificação do poder e da
violência em vista de fins bem definidos em termos de
interesses de grupo legítimos ou assim considerados.
Conforme uma interpretação muito comum, um dos
momentos mais interessantes do Gandhismo consiste
precisamente na recusa da concepção
dualista mostrada acima. Gandhi escreve: "O que é
eticamente mau para o indivíduo é igualmente mau
para uma comunidade ou para uma nação" (Harijan,
26 de abril, 1942). Esta afirmação nada tem de
particularmente original. Benthan, por exemplo, já
tinha implicitamente se recusado a distinguir entre ética
individual e ética de grupo, enfatizando (no primeiro
capítulo dos Principies of morais and legislation) que
o princípio de utilidade sobre o qual se fundamenta sua
doutrina ética é válido indistintamente, tanto na esfera
privada, quanto na política. Tolstoi, que teve influência
notável na formação do pensamento de Gandhi, já
havia precedentemente recusado a concepção dualista,
sustentando que havia uma única ética válida, tanto
para os indivíduos, como para os grupos, isto é, a ética
do amor, a qual proíbe toda forma de força e
constrangimento, prescrevendo que o indivíduo deve
suportar os sofrimentos em si mesmo, cada vez que
esta seja a única alternativa para evitar infligir
sofrimento aos outros. "A renúncia a toda forma de
oposição que implique o uso da força... é quanto
prescreve a lei do amor não adulterado por sofismas''
(assim Tolstoi afirmava a Gandhi numa famosa carta
de setembro de 1910). Acontece, porém, que o
pensamento de Tolstoi não consegue transformar em
"lei" operante sua afirmação, pois, recusando toda
forma de força e constrangimento, não oferece
nenhuma alternativa concreta e eficaz contra a
violência, tendo assim que renunciar totalmente a
qualquer ação política. Este não era, porém, o
pensamento de Gandhi. Recusando a violência e o
poder baseado na ameaça desta, ele não renuncia,
todavia, à ação política, ao contrário, participa dela
vivamente como ator de primeiro plano e como líder,
por muitos anos íncontestado, do movimento nãoviolento de libertação da Índia do jugo do imperialismo
britânico. Pôde fazer isto por duas exatas razões:
a) Porque sua recusa à violência não implica na
recusa de toda forma de força e pressão.
b) Porque conseguiu criar uma modalidade de luta
largamente não-violenta, aplicável a nível de massa e
singularmente eficaz, à qual deu o nome de
satyagraha.
A
contribuição
particularmente
interessante do Gandhismo à questão das relações
entre ética e política consiste, portanto, em ter
conseguido colocar em discussão o assunto pessimista
do "agir em grupo", que está subjacente à concepção
dualista, mostrando, através de suas "experiências" de
luta satyagraha, que também grandes grupos em
situações conflitantes agudas, aquelas cujo tipo obriga,
geralmente, ao recurso à violência, podem também
comportar-se de modo altamente moral e não-violento,
conseguindo bloquear a violência do adversário e
alcançar
GANDHISMO
determinados objetivos justificáveis como eticamente
legítimos, com base numa concepção ética
universalista.
II. O SATYAGRAHA. — Gandhi distingue três tipos
de não-violência: "a não-violência do forte", "a nãoviolência do fraco" e "a não-violência do covarde". Com
esta última expressão ele entende denunciar a atitude
daqueles que fogem da violência por pura covardia ou
por outros motivos sempre egoístas. A estes Gandhi
aconselha o recurso à violência, quando for necessário
lutar pelos próprios legítimos interesses ou pelos
interesses legítimos de terceiros. Ele afirma: "... estou
convencido de que a não-violência é infinitamente
superior à violência. . . (mas) acredito que no caso em
que a única escolha possível fosse entre a covardia e a
violência, eu aconselharia a violência. . . Preferiria que
a Índia recorresse às armas para defender sua honra e
não ficasse covardemente como testemunha impotente
da própria desonra (Teoria e prática da não-violência,
1973, pp. 18-9).
Por "não-violência do fraco", Gandhi entende a
posição daqueles que, numa situação conflitante
aguda, não recorrem ao uso da violência pela simples
razão de que não dispõem dos meios necessários para
conduzir uma luta violenta. É justamente o caso
daqueles que praticam a resistência passiva, mas
procuram organizar-se e armar-se para conduzir a luta
de maneira violenta. Gandhi formulou muitas vezes a
opinião de que a não-violência à qual o partido do
Congresso tinha dado sua aprovação durante a luta
pela libertação do jugo britânico era deste tipo.
A "não-violência do forte" e, ao contrário, para
Gandhi, a posição daqueles que, tendo os requisitos
necessários (coragem, espírito de abnegação, vontade
de resistir, etc.) para fazer uso da violência por uma
causa justa, recusam-se a recorrer a este método de
luta por determinadas razões de ordem moral e
enquanto julgam que podem conduzir a luta de
maneira eficaz com outros métodos diversos. É nisto
que se apóia o discurso de Gandhi sobre a violência e o
satyagraha.
A recusa que Gandhi opõe à violência não se refere
apenas ao uso da força armada, mas compreende
qualquer forma intencional e coercitiva de homicídio
ou de imposição de sofrimentos físicos ou psíquicos
"por incumbência ou por omissão" a qualquer ser
sensível. Compreendida assim em modo mais lato, a
violência não tem possibilidade de ser totalmente
eliminável em nossa vida; "visto que toda atividade,
numa certa maneira, implica violência, tudo o que
podemos fazer é reduzi-la ao mínimo" (obra cit., p.
77).
537
Vemos, portanto, que a doutrina da não-violência de
Gandhi não é tanto a que prescreve a abstenção da
violência, mas, mais exatamente, a que prescreve agir
de tal modo que nossa ação leve à maior redução
possível da violência ao longo do tempo e em todas as
suas formas. Com base nesta norma, não se pode
excluir a priori o recurso à violência armada, na
medida em que, numa determinada situação de
conflito, é uma questão empírica saber se o recurso à
violência conduz ou não à máxima redução possível
desta no mundo. Gandhi, todavia, tinha plena
convicção de que o recurso à violência armada, de
qualquer forma, além de corromper toda boa finalidade
perseguida por ela, acabaria aumentando, em lugar de
diminuir, a violência no mundo. Toda história humana
poderia provar esta tese de Gandhi. Os fatos históricos,
quando vistos de um certo ângulo, apresentam-se como
uma progressiva emancipação da violência ("a história
é, na realidade, o registro de cada interrupção da
constante ação da força do amor", obra cit., p. 65).
Mas ela se apresenta também como um processo de
contínua scalation da violência armada, desde os
tempos em que os homens combatiam com armas de
alcance destrutivo bastante limitado, até nossos dias,
em que os homens dispõem de meios de destruição
que colocam seriamente em perigo a existência de
todo gênero humano, e até de toda forma de vida sobre
a Terra. "O ponto de saturação da violência", conforme
Gandhi, é constituído pela Segunda Guerra Mundial,
confirmado pelo massacre atômico de Hiroshima e
Nagasaki: "a menos que o mundo aceite agora a nãoviolência, estará caminhando seguramente para o
suicídio" (Harijan, 29 de setembro, 1946). A nãoviolência, à qual Gandhi se refere, é o satyagraha,
termo inventado por ele e que significa,
aproximadamente,
uma
modalidade
de
luta
caracterizada pela firmeza da verdade. Esta modalidade
de luta é definida por seis princípios fundamentais, que
são os seguintes:
1) Numa situação conflitual, não se deve perseguir
objetivos incompatíveis com a concepção ética da
doutrina da não-violência: "É impossível praticar o
satyagraha a serviço de uma causa injusta" (Gandhi,
obra cit., p. 22).
2) Numa situação conflitual, deve-se proceder
desde o início da luta de maneira a não ameaçar o
adversário nos interesses vitais (a vida, a integridade
física e psíquica), escolhendo técnicas de luta
deliberadamente dirigidas a minimizar o sofrimento
que o conflito possa trazer à parte adversária.
3) Numa situação conflitual, é necessário aceitar
sacrifícios que podem ser muito pesados. A parte o
fato de que quem recorre à violência
538
GAULLISMO
deve se dispor a arcar com todos os sacrifícios
conexos a este método de luta, inclusive o sacrifício da
própria vida, Gandhi baseia o requisito do satyagraha
num dúplice propósito. O primeiro, de natureza moral,
transparece na seguinte afirmação: "A doutrina da
violência relaciona-se com a ofensa causada por uma
pessoa a outra. Sofrer a ofensa na própria pessoa, ao
contrário, faz parte da essência da não-violência e
constitui a alternativa à violência contra o próximo"
(obra cit., p. 6). O segundo propósito, de ordem
psicológica, é aquele pelo qual, diante da firmeza
testemunhada pelos sofrimentos aos quais o
satyagraha se submete em benefício de sua causa e
com a finalidade de evitar ao máximo os sofrimentos
que a luta comporta para o adversário, este último,
diante dessa atitude, terá que reagir de maneira
positiva, ficando mais propenso a ceder ou, ao menos,
a voltar à mesa das negociações: "o satyagraha
procura conquistar o adversário através do sofrimento
da própria pessoa" (obra cit., p. 18).
4) O quarto princípio do satyagraha prescreve
que, num conflito, deve-se usar da máxima
objetividade e imparcialidade, apelando para a razão,
procurando compreender os motivos e os argumentos
da parte adversária, buscando sempre não operar na
clandestinidade.
5) Um requisito fundamental do satyagraha é de
um empenho contínuo e constante em favor de um
programa construtivo, fundado em parte na
individualização de finalidades acima estabelecidas,
tal que sua realização seja de interesse de ambas as
partes em conflito, o que seria possível somente
através de uma certa colaboração entre as mesmas.
Isto serviria para criar o mínimo de comunicação sem
a qual uma luta do tipo satyagraha jamais seria
possível. "A melhor preparação para a não-violência e
a sua melhor expressão consistem na incansável
atuação de um programa construtivo. Quem acreditar
que, sem o apoio de um programa construtivo, poderá
ter condições no momento decisivo de demonstrar
uma verdadeira força não-violenta, estará destinado a
um miserável desastre" (obra cit., p. 240).
6) O último princípio fundamental da luta
satyagraha é o que Gandhi chamava de "lei de
progressão dos meios": pode-se recorrer a formas mais
radicais de luta não-violenta somente quando os meios
mais brandos se tenham mostrado claramente
ineficazes.
Gandhi achava que suas "experiências'.' de luta
satyagraha, na África do Sul e na Índia,
demonstraram a validade das três hipóteses seguintes:
a) Com uma adequada preparação e organização, é
possível levar grandes massas a praticarem
formas de luta que satisfaçam plenamente os
requisitos do satyagraha.
b) O método satyagraha constitui uma concreta e
eficaz alternativa à violência armada, na luta em favor
de causas justas.
c) O satyagraha tende a bloquear, pela força de seus
fatores morais, psicológicos e políticos, a reação
violenta do opositor e a conduzir a soluções aceitas e
construtivas dos conflitos e, como conseqüência, à
máxima redução da violência no mundo.
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[GIULIANO PONTARA]
Gaullismo.
I. DEFINIÇÃO. — O que define o Gaullismo é, ao
mesmo tempo, uma doutrina político-constitucional,
um movimento político e um regime. A
GAULLISMO
denominação de todos os três deriva do general
Charles De Gaulle, cuja personalidade e pensamento
são a verdadeira base do fenômeno. Uma definição
geral contém a necessidade de elementos para fixar três
aspectos.
Podemos caracterizar o Gaullismo como um
nacionalismo de tipo moderno, personificado na
figura de um salvador nacional. Este, voltando a
propor a ideologia e os instrumentos da tradição
democrática plebiscitária, impõe uma reestruturação,
do alto, de instituições e forças políticas que, porém,
perdem legitimidade e poder real quando enfrentam
uma violenta crise nacional. Em tal situação, o líder se
apresenta como portador de uma legitimidade de tipo
extralegal, que deriva do papel positivo que ele
desenvolveu precedentemente em favor do país e das
qualidades consideradas intrínsecas à sua pessoa.
II. As RAÍZES DO GAULLISMO. — O primeiro núcleo
de fiéis do general tem origem numa União gaullista,
que se organizou na ocasião da libertação de Paris.
Era formado pelos mais leais companheiros de De
Gaulle que com ele colaboraram na permanência
londrina (1940-1943) e no Governo provisório de
Argel (1943-1944). Os elementos mais significativos
da ideologia gaullista concretizam-se politicamente
neste período.
Em Londres, De Gaulle e alguns seguidores
opõem-se à paz com a Alemanha e ao regime francês
que a aceitou, enquanto toda classe política da III
República se dispersa ou se compromete. Toda
referência para a ação do general é, desde o início,
"uma certa idéia da França" como um organismo vivo
numa história de "completos sucessos ou de
exemplares desgraças", na qual os períodos de
mediocridade eram considerados "chocantes e
absurdas anomalias imputadas aos erros dos franceses
e não ao gênio da pátria" (De Gaulle, 1954).
Na ocasião da derrota militar e da crise política
francesa, De Gaulle considerou-se o único
representante desta transfiguração e guardião de uma
legitimidade histórica superior àquela puramente legal
do regime de Vichy. Este modo de considerar-se o
"vigário terreno" de uma França perene permitiu-lhe
cumprir uma completa equação, com conotações
românticas, se não místicas, entre o interesse nacional
francês e ele mesmo.
É importante a atitude que disto tudo surgiu em
relação aos franceses, considerados ambíguos e
instáveis, sempre prontos, após um período de grandes
realizações, a seguir mais seus interesses particulares e
a lançar-se nas lutas de facção mais violentas,
esquecendo o papel histórico de seu país no mundo.
539
Para obter aquela unidade nacional de intentos,
característica dos momento» de esplendor, era
necessário que fossem guiados por um líder forte e
acima de qualquer parte em conflito. Um chefe que
servisse de mediador entre os grandes destinos da
França, como De Gaulle os concebia, e a realidade
contingente, quase acidental, dos franceses.
Desejando assumir o papel de representante da
unidade nacional, é compreensível que o general tenha
sempre reservado suas palavras mais duras para
aquelas forças e instituições do Estado e da sociedade
que reclamavam um papel de intermediário entre a
população e a sua pessoa. Estas forças, na linguagem
gaullista, são sempre descritas como elementos
centrífugos e desagregadores, determinados a
assegurar apenas seus interesses sobre os da França e
do seu representante. Organizando-se ao redor de
diferenças e opiniões intelectuais, elas terminaram por
"organizar a divisão dos franceses" (De Gaulle, 1956).
O "regime dos partidos" era, portanto, por definição,
não representativo e não plenamente legítimo, porque
articulava ao longo de linhas de divisão alguma coisa
indivisível. Nesta coerente visão ideológica, o Estado
nacional
e
sua
política
externa
tinham,
conseqüentemente, uma posição de primeiro plano.
Desde os primeiros escritos sobre política militar
do general De Gaulle, transparece uma consideração
do Estado nacional, não apenas como unidade
fundamental da política internacional, mas também
como única realidade capaz de englobar, seja as
aspirações e as glórias, seja as tradições culturais e
históricas de um povo. Devido a isto, a nação e seu
todo estatal são únicos e não podem ser, nem
assimilados, nem unidos a nenhuma outra. As forças
armadas à sua disposição são a garantia de
autodeterminação e o símbolo de soberania.
A partir deste conceito, surgirá a suspeita posição
de De Gaulle face às organizações supranacionais —
desde a CEE até a ONU — e das formas de
integração militar — desde a CED até a NATO.
De Gaulle considerava o interesse nacional a única
matriz prevalente de uma política internacional
caracterizada pelo conflito e pela luta para conseguir
vantagens nacionais, e julgava as motivações
ideológicas
neste
campo
como
elementos
sobreestruturais.
III. O GAULLISMO NA OPOSIÇÃO. — Na
ocasião da libertação da França, De Gaulle chefiou os
Governos provisórios, mas logo se desentendeu com a
primeira Assembléia eleita em outubro de 1945. O
Governo provisório tinha sempre
540
GAULLISMO
governado por meio de decretos e de ordens. De Gaulle
não tinha, portanto, nem as qualidades, nem a vontade
de comportar-se como um líder parlamentar. Além
disso, a nova Constituição, que as forças políticas
estavam delineando, apresentava traços daquele
parlamentarismo por ele depreciativamente definido
como "regime dos partidos". Demitindo-se em janeiro
de 1946, o general durante onze anos será um duro
opositor do regime da política da IV República.
O clima político dos anos de 1947-1949 deu
impulso e característica ao primeiro movimento
gaullista de massa: o Rassemblement du Peuple
Français. A doutrina de Truman e o início da guerra
fria, com a conseqüente onda de anticomunismo e a
psicose muito bem organizada de uma guerra entre
Leste e Oeste, ofereceram a De Gaulle a possibilidade
de reapresentar-se para a opinião pública francesa
como o único em condições de salvar o país da
iminente catástrofe. Seus apelos tiveram notável efeito
e o R.P.F. presidido pelo general e organizado
piramidalmente pelos seus fiéis adeptos de sempre
conseguiu 40% dos sufrágios nas eleições municipais
de 1947. Os temas utilizados na propaganda gaullista
contra o regime foram os que já citamos, mas o tom do
general e a prática política do movimento assumiram
características marcadamente de direita, tanto que
induziram um escritor estudioso do Gaullismo a
definir o De Gaulle deste período como um
"demagogo fascista" (Werth, 1967). As espetaculares
reuniões dos gaullistas com as bandeiras que
ostentavam a Cruz de Lorena, os discursos cada vez
mais violentos e provocadores do general, onde
predominavam os temas do perigo vermelho
constituído pelos "separatistas" do partido comunista
francês, talvez não seriam suficientes para considerar
válida a definição de Werth. De qualquer maneira, a
própria idéia, não de um partido, mas de um
Rassemblement que deveria "estender-se até alcançar a
nação inteira", juntamente com as solicitações
antiparlamentares e antipartidárias, apresentava, sem
dúvida, elementos totalitários. Os projetos de
"associação entre capital e trabalho", tema preferido
dos gaullistas de esquerda, assumiram caráter de
reforma profunda, que poderia conduzir ao
enfraquecimento dos sindicatos e até a sua abolição.
Com a nova Constituição "não seria necessário
reconhecer os sindicatos" (La France sera la France,
1951).
O Gaullismo como regime não assumirá quase
nenhum dos tons mais fortes e dos traços da prática
político-organizativa do R.P.F.; muito provavelmente
o general considerou a tentativa de voltar ao poder,
através de um movimento de massa organizado em
seu nome, como uma
derrota. Para conseguir impor-se como salvador
nacional à maior parte da opinião pública, seria
necessário uma situação bem mais crítica do que aquela
artificial da guerra fria e também um assentamento
ideológico-político mais atenuado.
No início dos anos 50, a pregação messiânica e
catastrófica de De Gaulle perdeu sua capacidade de
sensibilizar a opinião moderada do país. O R.P.F.
recolhe somente 20% dos votos nas eleições
legislativas de 1951 e, após algumas tentativas de
acordos parlamentares com outros partidos, foi
dissolvido por De Gaulle, que o considerava
demasiadamente comprometido com o regime.
Entre 1953 e 1958, o Gaullismo parlamentar
dissolveu-se em outras siglas partidárias, mesmo
mantendo os contatos com seu inspirador que, por sua
vez, em 1955, anunciava sua saída da vida pública.
IV. O GAULLISMO NO PODER. — A volta ao
poder de De Gaulle foi possível por causa do levante
dos colonos franceses da Argélia contra as perspectivas
da descolonização do país e da insubordinação de um
exército fortemente politizado. A situação crítica
criada entre Argel e Paris permitiu a decisiva mudança
de direção devido ao sucesso obtido pelos fiéis
partidários do general, que conseguiram dar seu nome
ao levante. A maior parte das forças da IV República,
incapazes de dominar o descontentamento do aparato
administrativo e policial francês, aceitaram De Gaulle
como o único em condições de afastar o perigo de uma
guerra civil.
Voltando ao Governo em condições excepcionais,
mas que eram de acordo com sua natureza, o general
impôs uma nova Constituição que, aprovada com
referendum popular em 1958, delineou todos os traços
institucionais do novo regime.
O presidente da República, eleito por um grande
colégio eleitoral local, aumentava de maneira notável
seus poderes e seu papel era ambiguamente definido
como árbitro e representante dos interesses nacionais.
É sua prerrogativa recorrer a poderes excepcionais em
situações de grave perigo para a República e suas
instituições. O primeiro-ministro detém a substância do
poder executivo, dispondo de vastos poderes de
regulamentação. A Assembléia é a verdadeira
destronada com respeito às tradições da III e IV
Repúblicas. Não somente as matérias sobre as quais
ela pode legislar são estritamente indicadas, como uma
severa regulamentação parlamentar inibe muitas de
suas possibilidades de controle e reforma. A
responsabilidade do Governo junto à Assembléia é
garantida pelo mecanismo da moção
GAULLISMO
de censura exercida sobre os projetos governamentais.
O presidente pode, por sua iniciativa, dissolver as
Assembléias não mais do que uma vez por ano.
Na realidade, a situação e a personalidade de De
Gaulle impuseram processos extraconstitucionais e até
decisivamente anticonstitucionais. Nenhum presidente
de Conselho, nenhum ministro usufruiu da mínima
autonomia depois que De Gaulle foi eleito presidente
(dezembro, 1958). O pessoal recrutado entre "os
gaullistas de sempre" recebia as diretivas diretamente
do Eliseu ou do staff pessoal do presidente. Este
recorreu a poderes excepcionais por um longo período
e em ocasiões que não justificavam essa medida,
segundo a interpretação constitucional.
A delimitação do papel da Assembléia foi agravada
ainda mais pela prática do referendum. Este
instrumento, anulando completamente os chamados
intermediários, serviu admiravelmente às instituições de
um nacionalismo personificado e ao carisma de De
Gaulle. De 1958 a 1962 a França assistiu a quatro
referenda por iniciativa presidencial, sendo que o mais
significativo foi o da modificação constitucional, que
introduzia a eleição do presidente por sufrágio
universal e direto. Nesta ocasião, todos os partidos,
exceto o gaullista, juntaram-se contra esta modificação e
a campanha assumiu o significado de um embate entre
a legitimidade do general e a legitimidade da
Assembléia. A vitória de De Gaulle marcou o fim
definitivo das aspirações de volta à prática parlamentar
clássica e deu início a uma série de profundas
transformações do sistema partidário francês. Este
referendum é exemplar para delinear o estilo de
leadership de De Gaulle e a natureza do
relacionamento que ele estabeleceu com o povo. Seus
apelos pelo rádio e pela televisão, instrumentos de que
dispunha a seu talante, longe de assemelhar-se aos
violentos discursos do período da oposição, oscilavam
entre tons paternalistas, a evocação às memórias
coletivas e as ameaças de deixar o poder em caso de
derrota. A capacidade de estabelecer um modo de
identificação dele com a França, e dele e a França dos
momentos mais difíceis, lhe permitia suscitar adesões
de tipo emotivo e transformar as questões específicas
numa escolha entre a sua pessoa e o caos.
Neste período, a maior parte da opinião pública
francesa estava cansada do desgaste da descolonização,
da insubordinação do exército e do terrorismo do
F.L.N. e do O.A.S. Nesta situação é significativo
notar que o carisma de De Gaulle ligava-se muito
mais à afirmação de um caráter, de uma segura
identidade na hora da desordem e no perigo do que à
realização de um programa
541
preciso. O sucesso das mais obscuras palavras de
ordem de De Gaulle indicam que o dom carismático
do qual o general dispunha era, sobretudo, resultado
das adesões psicológicas com base nos mecanismos
coletivos de defesa.
Uma outra característica do regime de De Gaulle
deriva diretamente da escassa consideração que ele
tinha pela classe política da IV República e pelos
políticos em geral. Os Governos da V República
foram caracterizados pela presença numerosa de
pessoal técnico, proveniente das camadas mais
elevadas da administração pública ordinária e especial.
Esta situação, juntamente com a destronização da
Assembléia, não mais o locus das decisões de maior
relevância, produziu importantes conseqüências para
as principais personagens deste sistema social.
Chegou-se assim a um tipo de sistema político no
qual grupos mais fortes, que compreendiam,
naturalmente, a grande indústria e a finança, tiveram a
possibilidade de ter acesso diretamente aos grandes
centros de decisão localizados junto à alta burocracia
dos ministérios e ao staff presidencial. Os mais fracos,
ao contrário, não tinham outra alternativa que a de
dirigir-se aos parlamentares, cuja função legislativa,
totalmente reduzida, não constituía mais a fonte
principal para o recrutamento do pessoal de Governo.
V. A U.N.R. — Com a volta de De Gaulle ao poder
nascia o segundo grande movimento gaullista, a Union
pour la Nouvelle République. Este movimento era
organizado e dirigido pelos mesmos homens que
deram vida à experiência do R.P.F. (Rassemblement du
Peuple Français) e demonstraram inabalável
fidelidade às idéias do general. O relacionamento de
De Gaulle com o novo partido foi, no início, bastante
distante. Fiel ao seu personagem de unificador
nacional acima dos partidos, o general aceitou apoiar
abertamente sua formação. Somente quando, após
uma dolorosa crise interna motivada pela política de
autodeterminação da Argélia, o partido garantiu sua
incondicional fidelidade ao general e que este teve, a
seu cargo, a tarefa exclusiva de organizar o suporte de
sua ação política é que ele o reconheceu
explicitamente junto ao eleitorado.
De 1958 a 1962, a U.N.R. viveu exclusivamente a
luz refletida pelo general e deste derivava sua
legitimidade. Em 1963, o partido procedeu à
organização de sua própria atividade interna e à sua
penetração no país, além de um rejuvenescimento e
ampliação da sua base militante.
Um fenômeno muito indicativo dos últimos onze
anos da presidência de De Gaulle foi que os votos
alcançados pelo general nos vários
542
GAULLISMO
referenda e na eleição presidencial diminuíram
constantemente, enquanto os de seu partido
aumentaram, até o grande sucesso obtido nas eleições
legislativas de junho de 1968. A tendência indica que,
ao delinear-se uma concreta política interna gaullista, o
apelo do general diminuía, perdendo aquele eleitorado
de esquerda e do centro que, no período de 1958-1962,
não tinha aceitado as indicações de seus partidos,
contrárias à eleição de De Gaulle. A U.N.R. recolhia
então sua herança e congregava os vários componentes
históricos de direita num grande partido conservador.
Como conseqüência, a figura de De Gaulle
transformava-se, de presidente de uma unanimidade
nacional, em representante de um partido de linha
nitidamente direitista.
VI. POLÍTICA INTERNA E EXTERNA. — O Gaullismo
nunca quis aceitar a qualificação de unificador da
direita, vangloriando-se da presença no partido de
correntes de esquerda, cujo constante empenho tendia
a pôr em prática o grande projeto da associação entre
capital e trabalho. Nas palavras dos principais líderes,
faz-se seguidamente referência ao Gaullismo como a
um terceiro caminho entre capitalismo e comunismo,
mas, com referência à política concretamente
desenvolvida, é lícito considerar tais enunciações
como apelos de tipo bastante demagógico.
A política econômica de linha gaullista foi sempre
gerida pelo ministro das finanças, ex-intendente,
Giscard d'Estaing, segundo cânones de moldes
liberais. Alguns estudiosos, longe de verem no
Gaullismo um terceiro caminho, o consideraram um
regime político particularmente adaptado para
corresponder às exigências de uma estrutura
econômica não mais caracterizada pelo mercado e pela
concorrência, mas pelo predomínio dos grandes
monopólios públicos e privados, com suas exigências
de programação de mercado. A política interna
gaullista aspirava, na realidade, a um rígido controle
do desenvolvimento da economia francesa, que se
resumia, de fato, em fazer pagar às classes
trabalhadoras o aumento da capacidade de
concorrência do neocapitalismo francês, em confronto
com o dos países mais avançados industrialmente.
Uma balança de pagamentos ativa, o controle dos
salários,
a
estabilidade
do
franco
eram,
definitivamente, objetivos necessários à política
externa de De Gaulle, atrás da qual podia-se entrever
freqüentemente a tendência para fazer-se intérprete do
neocolonialismo do grande capital francês, em
concorrência com o expansionismo dos Estados
Unidos. Juntamente com a defesa, a política externa
era reconhecida como "domínio reservado" do general
e seguia suas idéias
básicas, que serviam também às exigências de seu
apelo popular.
O culto da independência econômica, política e
militar e a afirmação do papel da nação e da cultura
francesas no mundo encontram-se na base de suas
iniciativas mais espetaculares: o veto ao ingresso da
Grã-Bretanha no Mercado Comum Europeu, a force de
frappe atômica, o neutralismo em relação aos
problemas do Terceiro Mundo, a reaproximação com a
Rússia, o reconhecimento precoce da China, a
polêmica antiamericana e a retirada das forças
francesas da NATO. O favorecimento da política
externa reduziu a política interna a instrumento da
primeira. Na realidade, esta atitude para com o exterior
oferecia ocasiões muito propícias para unir os
franceses atrás do general, fazendo-os esquecerem,
muitas vezes, problemas mais concretos.
Consciente de ser um líder cujo carisma aumentava
em tempos de crise, De Gaulle era mestre em criar, de
vez em quando, através do estilo e da temática de sua
política externa, situações de tensão, pequenas crises,
que tornavam atuais os seus apelos. A capacidade de
catalisar a atenção dos franceses proporcionava-lhe
reafirmar simbolicamente seus valores, rebelando-se
contra a hegemonia das superpotências, o poder do
dólar, o Vietnã americano, o Quebec inglês, etc.
VII. O GAULLISMO SEM DE GAULLE. — Charles De
Gaulle demitiu-se em abril de 1969, derrotado num
referendum que se destinava à reforma do Senado e à
regionalização e ao qual, como de costume, havia
ligado a sua permanência no poder. O verdadeiro sinal
prenunciador do seu declínio tinha sido a crise de
maio de 1968, de onde saíram vencedores tanto o
regime como o movimento gaullista, mas não De
Gaulle. Seu apelo pessoal já não se revelou capaz de
controlar uma crise interna de cunho exclusivamente
social.
Para avaliarmos o que resta do Gaullismo sem De
Gaulle e para decidirmos em que sentido é possível
falar de Gaullismo como fenômeno distinto da
personalidade do general, é mister voltarmos à
distinção inicial entre doutrina, movimento e regime.
Sob o aspecto ideológico, é indubitável que o
fenômeno gaullista apresenta traços de uma tradição
política que, "em sua primeira apresentação na França,
assumiu o aspecto do bonapartismo" (Rémond). Neste
sentido histórico, há uma corrente doutrinária gaullista
que continua a estar presente na cultura francesa, nela
representando a versão moderna — como sociedade
industrial amadurecida — da tradição bonapartista e,
ao mesmo tempo, jacobina.
Não obstante, por suas características intrínsecas,
esta tradição não se pode exprimir
GENOCÍDIO
plenamente nem robustecer senão na referência
explícita à figura de um líder mediante uma grande
convocação popular. Sem De Gaulle, a ideologia e a
doutrina gaullista perdem sua referência essencial e
acabam por reduzir-se a uma exaltação e defesa do
passado, privadas de um projeto positivo. É isto,
efetivamente, o que o movimento gaullista parece hoje
representar. "Reduzido, primeiro, eleitoralmente, às
suas justas dimensões e internamente dividido,
privado, depois, do controle da presidência e do
Governo, obrigado, por fim, à oposição parlamentar
pela vitória da esquerda ...", o partido gaullista não
sofreu o colapso global que alguns esperavam, mas,
apesar disso, parece carente de uma perspectiva
política e incapaz de se livrar completamente do
simples papel de estrênuo defensor das características
e normas da Constituição de De Gaulle.
Mas deve ser outro o juízo referente ao regime
gaullista. Isso porque, diversamente do que ocorreu
com a experiência bonapartista, o Gaullismo não
terminou numa catástrofe político-mílitar e muitos dos
seus aspectos concretos sobreviveram ao seu fundador,
convertendo-se, parte deles, ao se institucionalizarem,
em patrimônio comum dos franceses. A desabusada
prática constitucional de De Gaulle não pôde, como é
óbvio, ser seguida pelos seus sucessores, mas as
características essenciais do regime — eleição direta
do presidente, papel predominante do executivo, poder
reduzido do Parlamento, lei eleitoral majoritária em
dois turnos — não sofreram as conseqüências da
retirada do general. Se a prova definitiva da
institucionalização do regime nascido da Constituição
de 1958-62 só pode ser oferecida pelo seu
funcionamento nas mãos da oposição de esquerda,
também é verdade que muitos dos aspectos de tal
regime se fortaleceram com a saída de De Gaulle, no
sentido de que foram sendo cada dia mais aceitos pela
maioria dos franceses. Globalmente, na década de 80,
o Gaullismo ainda pode ser identificado nos traços
salientes de um esquema constitucional que está em
vigor e num movimento político que visa, de
preferência, à sua defesa.
BIBLIOGRAFIA. - P. AVRIL., UDR et gaullistes.
Presses Universitaires de France, Paris 1971; S.
BARTOLINI, Riforma istituzionale e sistema político. La
Francia gollista, Il Mulino, Bologna 1981; J. CHARLOT,
L'UNR. Étude du pouvoir au sein d'un parti politique,
Colin, Paris 1967; Id., Le phénomène gaulliste, Fayard,
Paris 1970; Le gaullisme, ao cuidado de J. CHARLOT,
Colin, Paris 1970; Les français et de Gaulle, ao
cuidado de J. CHARLOT, Plon. Paris 1971; H. CLAUDE,
Gaullisme et grand capital, Éditions Sociales, Paris
1960; P. CONTENS, Gaullisme et proletariat, Éditions
543
du Scorpion, Paris 1960; B. CROZIER, de Gaulle, Eyre
Methuen, London 1973, 2 vols.; CH. DE GAULLE, La
France sera la France. Ce que veut Charles de Gaulle.
Rassenblement du Peuple Français, Paris 1951; Id.,
Mémoires de guerre. I (1940-1942), Plon, Paris 1954,
Il (1942-1944), ibid. 1956, III (1944-1946). ibid. 1958;
Id.. Mémoires d'espoir, I (1958-1962), Plon, Paris
1970, Il (1962-...), ibid. 1971; A. HARTLEY, Gaullism.
The rise and fall of a political movement. Routledge &
Kegan Paul, London 1972; S. HOFFMANN, Decline or
renewal? France since the I930's, The Viking Press.
New York 1974; De Gaulle: implacable ally. ao
cuidado de R. MACRIDIS, Harper & Row, New York
1966; S. MALLET, Le Gaullisme et la gauche, Seuil,
Paris 1965; CH. PURTSCHET, Le R. P. F. Cujas, Paris
1965; R. REMOND, La destra in Francia (1967), Mursia,
Milano 1970; S. SERFATY, France. De Gaulle and
Europe. Johns Hopkins University Press. Baltimore
1968; J. SOUSTELLE, Gollismo (1968), Edizioni del
Borgghese, Milano 1969; S. TUTINO, Gollismo e lotta
operaia, Einaudi, Torino 1964; P. VIANSSON-PONTÉ,
Histoire de la rèpublique gaullienne, Fayard, Paris
1970, 2 vols.; A. WERTH, Repubblica di un uomo
(1965), Il Saggiatore, Milano 1967.
[STEFANO BARTOLINI]
Genocídio.
No significado atual, o termo foi, usado pela
primeira vez em 1944 por R. Lemkin para indicar a
destruição em massa de um grupo étnico, assim como
todo projeto sistemático que tenha por objetivo
eliminar um aspecto fundamental da cultura de um
povo. Assim definido, o Genocídio é tão antigo
quanto a história humana, mas somente após a
Segunda Guerra Mundial a comunidade internacional,
estarrecida pelos enormes crimes cometidos pela
política racista do nazismo, sentiu necessidade de
fixar normas de direito internacional para coibir tal
delito.
Nasceu assim uma nova figura de delito relevante na
esfera do direito penal internacional e pertencente à
categoria dos crimes contra a humanidade (v. CRIMES
DE GUERRA). A Assembléia da ONU, numa resolução
de 11 de dezembro de 1946, declarou o Genocídio —
definido como "a recusa do direito à existência de
inteiros grupos humanos" — um "delito do direito dos
povos, em contraste com o espírito e os objetivos das
Nações Unidas, delito que o mundo civil condena" e
determinou a elaboração de um projeto de Convenção
sobre o assunto. O projeto definitivo foi aprovado pela
Assembléia Geral, em 9 de dezembro de 1948. O
artigo 2° desta Convenção define o Genocídio como
segue: "por
544
GEOPOLÍTICA
Genocídio entende-se qualquer um dos seguintes atos,
cometidos com a intenção de destruir no seu todo, ou
em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou
religioso, enquanto tal:
a) Extermínio de membros do grupo.
b) Atentado grave contra a integridade física ou
mental dos membros do grupo.
c) Submissão intencional do grupo a condições de
existência tendentes a provocar sua destruição física,
total ou parcial.
d) Medidas tendentes a impedir os nascimentos no
âmbito do grupo.
e) Transferência forçada de crianças de um grupo
para outro grupo".
A Convenção estabelece o princípio da
responsabilidade individual para pessoas que cometem
atos de Genocídio e determina também a punição para
quem os comete. Prescreve punições para a pública
instigação, tentativa e cumplicidade no Genocídio. Os
Estados que aderiram à Convenção têm como
obrigação introduzir no seu ordenamento interno as
providências necessárias para executar as normas
puramente pragmáticas da Convenção. Os imputados
do crime de Genocídio que, para efeito de extradição,
não deve ser considerado como crime político devem
ser julgados pelos tribunais do Estado no qual foi
cometido o ato ilícito ou então por uma corte penal
internacional, quando esta venha a ser instituída.
A Convenção das Nações Unidas, à qual aderiram
numerosos Estados (entre outros a Itália, que, em
1967, promulgou uma lei que modificou seu código
penal), foi criticada sob vários aspectos. Em
particular, focalizou-se a indeterminação da questão
da penalidade deixada integralmente ao arbítrio dos
Estados signatários. Foi também criticada a pretensão
irreal na qual esta se baseia, isto é, que em presença de
crimes como o de Genocídio, que não podem ser
cometidos sem a anuência, a participação, instruções
ou até a cumplicidade estatais, um Estado pode aceitar
punir ou fazer punir aqueles que agiram de acordo
com as suas instruções superiores ou valendo-se de
sua aquiescência.
BIBLIOGRAFIA. - R. LEMKIN, Axis rule in occupied Europe.
Washington 1944; Id., Genocide: a new international crime,
purishment and prevention, in "Revue Inter. de Droit Pénal",
1946; G. PERSICO, Sul delato di "Genocídio", in "Arch. Pen.", I,
1951; G. CHIARELLI, La convenzione sul genocídio in "Riv.
St. Pol. Internaz", 1959.
[GIORGIO BIANCHI]
Geopolítica.
Os redatores da "Zeitschrift für Geopolitik", em
1927, definiram a Geopolítica como a ciência que
"indaga os liames que ligam os eventos políticos à
Terra e quer indicar as diretrizes da vida política dos
Estados, deduzindo-as de um estudo geográficohistórico. dos fatos políticos, sociais e econômicos e de
sua conexão". O comportamento político e as
capacidades militares podem ser explicados e
previstos com base no ambiente físico. Este influencia
ou até determina a tecnologia, a cultura e a economia
dos Estados, sua política interna e externa, e as
relações do poder entre os mesmos.
As correntes fundamentais da Geopolítica são as
formuladas na linha dos conceitos propostos por F.
Ratzel e R. Kjellen (o Estado como organismo vivente
no espaço) e por K. Haushofer, T. Mackinder, A. T.
Mahan e J. Spykman. Provavelmente, todos os estudos
de Geopolítica sofreram as conseqüências da má fama
que a obra de K. Haushofer suscitou, pois foi o
pensamento deste geógrafo e general alemão uma
racionalização do expansionismo territorial hitleriano.
A Geopolítica de Haushofer, que é unanimemente
considerada como um aglomerado pseudocientífico de
"metafísica geográfica", economia, antropologia e
racismo, pode ser reduzida à afirmação de que a raça
alemã é destinada a levar a paz ao mundo através de
sua dominação e, portanto, os outros Estados "devem
assegurar à Alemanha todo o seu espaço vital
(Lebensraum).
O pensamento de Haushofer tinha sua origem na
afirmação feita alguns anos antes por um geógrafo
inglês, J. Mackinder, defensor da heartland theory. Com
base nesta teoria, o domínio da zona central ou
heartland (Alemanha oriental, Rússia, Sibéria) e da
World Island (Eurásia) permite o controle da faixa
periférica ou rimlands (Europa ocidental. Oriente
Médio, Índia e China); e o controle desta última faixa
assegura o controle das "ilhas circunstantes" (GrãBretanha, África, Indonésia e Japão), assim como das
"ilhas" transoceânicas (América e Austrália). Com base
nesta teoria, Mackinder prognosticava a instauração de
um equilíbrio que viesse impedir que um único Estado
tivesse condições de dominar a zona central, também
chamada de pivot area.
Outras duas teorias de Geopolítica foram
elaboradas pelos americanos A. T. Mahan e J.
Spykman, mas não devemos esquecer que todos os
estudiosos de Geopolítica dependem substancialmente
da experiência histórica da Inglaterra. A. T. Mahan é o
iniciador da teoria do poder naval (sea power theory):
o Estado que controlar as
GOLPE DE ESTADO
545
II. A MUDANÇA DOS ATORES. — A expressão coup
d'État ganhou, sem dúvida alguma, direito de
cidadania na literatura francesa, tanto que Gabriel
Naudé escrevia, já em 1639, as suas Considérations
politiques sur le coup d'État. Para Naudé, o Golpe de
Estado tem as mais variadas acepções e chega até a
confundir-se com a "razão de Estado". Dessa forma,
Golpe de Estado foi a decisão de Catarina del Medici
de eliminar os huguenotes na noite de São Bartolomeu,
e também a proibição do imperador Tibério à sua
cunhada viúva de contrair novas núpcias, para evitar o
perigo de que os eventuais filhos dela pudessem
disputar a sucessão imperial com seus próprios filhos.
Entretanto, os múltiplos exemplos citados por Naudé
sob o nome de Golpe de Estado têm em comum o
serem um ato levado a cabo pelo soberano para
reforçar o próprio poder. Esta decisão é geralmente
tomada de surpresa, para evitar reações por parte
daqueles que deverão sofrer as conseqüências (e neste
sentido a condenação à viuvez perpétua da pobre
cunhada do imperador era menos um Golpe de Estado
do que a sanguinolenta determinação de Catarina del
Mediei).
O termo foi-se precisando paulatinamente, sobretudo
com o advento do constitucionalismo: durante a
vigência deste, faz-se referência às mudanças no
Governo feitas na base da violação da Constituição
legal do Estado, normalmente de forma violenta, por
parte dos próprios detentores do poder político. O
Dicionário Larousse consagra a tradição francesa do
termo definindo o Golpe de Estado como uma
violation déliberée des formes constitutionelles par un
government, une assemblée ou un groupe de personnes
(FULVIO ATTINÀ] qui détiennent l'autorité. Neste sentido, o Golpe de
Estado por antonomásia foi o que Luís Bonaparte
realizou em 1851, quando deu um golpe de graça na
11 República de que era presidente, conseguindo
Golpe de Estado.
proclamar-se o novo Imperador da França.
Tomando como objeto de pesquisa os anos recentes,
I. A EVOLUÇÃO DO SIGNIFICADO. — O significado da achamo-nos frente a uma verdadeira proliferação de
expressão Golpe de Estado mudou no tempo. O golpes, embora com características bem diferentes. Na
fenômeno em nossos dias manifesta notáveis verdade, no início dos anos 70, mais de metade dos
diferenças em relação ao que, com a mesma palavra, países do mundo tinha Governos saídos de Golpes de
se fazia referência três séculos atrás. As diferenças Estado e o Golpe de Estado, por conseguinte, tornouvão, desde a mudança substancial dos atores (quem o se mais habitual como método de sucessão
faz), até a própria forma do ato (como se faz). Apenas governamental do que as eleições e a sucessão
um elemento se manteve invariável, apresentando-se monárquica. Mas os atores do Golpe de Estado
como o traço de união (trait d'union) entre estas mudaram. Na maioria dos casos, quem toma o poder
diversas configurações: o Golpe de Estado é um ato político através de Golpe de Estado são os titulares de
realizado por órgãos do próprio Estado. Uma breve um dos setores-chaves da burocracia estatal: os chefes
síntese histórica esclarecerá melhor as citadas militares. O golpe militar ou pronunciamento,
diferenças quanto à permanência deste último segundo palavra cunhada pela tradição espanhola,
elemento.
tornou-se, assim, a forma mais freqüente do Golpe de
Estado.
vias aquáticas controla a política mundial. O papel que
teve em outros tempos a Grã-Bretanha pode hoje ser
desempenhado também pelos Estados Unidos, que
gozam de uma posição semelhante. J. Spykman retoma
também a teoria de Mackinder e declara que os
Estados Unidos podem intervir no "ciclo" que o
geógrafo inglês indicou, subvertendo-o. Os
governantes americanos certamente compreendem que
a segurança do seu país está em impedir que as "ilhas
circunstantes" e as rimlands caiam sob o controle das
Grandes Potências da heartland, já que, de outra forma,
a América ficará completamente sitiada, como
sustentou Mackinder.
A Geopolítica como estudo do determinismo do
ambiente físico sobre a política dos Estados está hoje
completamente desaparecida. Após vários anos de
recusa de foros de cidadania entre as ciências sociais,
por fim, o estudo dos fatores geográficos voltou a ser
visto em sua relação com os fenômenos políticos. A
análise das relações internacionais do último decênio
dirigiu novamente a sua atenção para variáveis como
ambiente físico, distância, recursos, etc, que hoje, por
toda parte, são chamadas de variáveis ecológicas ou de
ambiente não-humano. H. e M. Sprouts, em Towards
a politics of the planet Earth (Van Nostrand, Reynold,
New York, 1972), são os líderes desta aproximação
global com o estudo da política internacional que tem
estreitas relações com a análise sistêmica. É sobretudo
mediante os conceitos e as proposições analíticas do
paradigma sistêmico que, na verdade, os fatores
geográficos podem ser inseridos num exame global da
sociedade do "planeta Terra".
546
GOLPE DE ESTADO
Através deste itinerário, de Naudé aos nossos dias,
o elemento decisivo para caracterizar o fenômeno
acha-se na resposta à pergunta: quem o faz? No
primeiro caso, o soberano; no segundo, o titular ou os
titulares do poder político legal; no terceiro, um setor
de funcionários públicos, ou seja, os militares (cuja
fatia de poder, de fato, vai, desde a importante
influência que exercem em certos países, até o papel
de verdadeira tutela ou ocupação interna, em outros).
III. MODALIDADES DO GOLPE DE ESTADO. — Como
se faz um Golpe de Estado? Diferentemente da
guerrilha e da guerra revolucionária, cuja primeira
finalidade é desgastar até ao aniquilamento ou derrota
as forças armadas ou policiais a serviço do Estado, o
Golpe de Estado é executado não apenas através de
funcionários do Estado, como vimos no parágrafo
precedente, mas mobiliza até elementos que fazem
parte do aparelho estatal. Esta característica diferencia
o Golpe de Estado, igualmente, da sublevação
entendida como insurreição não organizada, que tem
escassas ou nenhuma probabilidade de triunfar na
tentativa de derrubar a autoridade política do Estado
moderno. Curzio Malaparte já colocara em destaque em
1931, em seu livro Tecnica del copo di Stato, que
atacar as sedes do Parlamento ou dos ministérios nos
dias de hoje é uma ingenuidade. Embora isso possa ser
considerado um objetivo final, mais do que simbólico,
o primeiro objetivo, para coroar de êxito o Golpe de
Estado, é ocupar e controlar os centros de poder
tecnológico do Estado, tais como as redes de
telecomunicações, o rádio, a TV, as centrais elétricas,
os entroncamentos ferroviários e rodoviários. Isso
permitirá o controle dos órgãos do poder político. É
esta característica indiscutível do Golpe de Estado que
nos coloca diante da pergunta: quais podem ser
possíveis protagonistas do fenômeno hoje em dia?
IV. GOLPE DE ESTADO E GOLPE MILITAR. — A
complexidade do aparelho tecnológico do Estado
moderno é fonte, tanto da sua força, como da sua
eventual fragilidade. Para além dos técnicos
encarregados em assegurar o funcionamento e a
vigilância desses entroncamentos estratégicos, o Estado
prevê a manutenção da prestação destes serviços,
mesmo perante a chamada insurreição ou guerra
interna. Esta tarefa é geralmente atribuída às forças
armadas e às forças policiais. Dado que o primeiro
objetivo da estratégia do Golpe de Estado é a conquista
dos centros tecnológicos do aparelho estatal, para
alcançar o intento é necessário, ou que aquelas forças
sejam neutralizadas (o que implicaria num prévio
desgaste das mesmas através de uma luta de guerrilha
ou de
guerra revolucionária), ou que se consiga a
participação de um setor-chave dessas forças no Golpe
de Estado que se imponha aos restantes setores. A
terceira possibilidade seria uma eventual neutralização
das forças armadas por ocasião do evento e que na
realidade implicaria num apoio passivo ao Golpe de
Estado.
Nesta ordem de idéias, para Edward Luttwak, autor
de um dos mais modernos tratados sobre o assunto, o
Golpe de Estado consistiria na "infiltração dentro de
um setor limitado, mas crítico, do aparelho estatal e na
utilização dela para privar o Governo do controle dos
demais setores". Esta caracterização, todavia, é
abstrata e entre outras coisas não é rigorosamente
verdadeira. Apesar do próprio Luttwak sublinhar que
hoje o Golpe de Estado se faz basicamente utilizando
setores-chaves do sistema — empregados estatais de
carreira, forças armadas e polícia —, sua tese de que
bastaria a infiltração num destes setores críticos,
mesmo que seja da parte de um pequeno grupo não
militar, não é confirmada pelos exemplos mais
modernos. Antes de tudo, não existem Golpes de
Estado baseados apenas na burocracia ou na polícia, se
excetuarmos pequenos Estados, onde a polícia é a
única força armada. Além disso, a existência de
aperfeiçoadíssimos serviços de informação em cada um
dos setores das forças armadas, o rígido controle que
elas exercem sobre oficiais, tanto da própria como das
demais armas, implica que a mera infiltração de um
grupo não militar não é suficiente para influenciar um
grupo de oficiais. Hoje não existe Golpe de Estado sem
a participação ativa de pelo menos um grupo militar ou
da neutralidade-cumplicidade de todas as forças
armadas.
Na grande maioria dos casos, o Golpe de Estado
moderno consiste em apoderar-se, por parte de um
grupo de militares ou das forças armadas em seu
conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder
político, mediante uma ação repentina, que tenha uma
certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral,
a violência intrínseca do ato com o mínimo emprego
possível de violência física.
V. DISTINÇÃO ENTRE GOLPE DE ESTADO E REVOLUÇÃO.
INDICADORES EMPÍRICOS DO FENÔMENO. — Até agora
caracterizamos o Golpe de Estado sem fazermos
distinção entre Golpe de Estado e revolução. A
propósito deste problema, porém, gira a maior parte
dos estudos feitos sobre o assunto. Parte-se da
caracterização da revolução como processo que
instaura um novo ordenamento político e jurídico, e
contrapõe-se a mesma ao Golpe de Estado que só
realiza mudanças de menor porte. É por isso que o
golpe de Estado é
GOVERNABILIDADE
entendido por certos autores como uma "revolução
menor". Este tipo de conceituação foi herdado da
teoria jurídica, mas neste foro o problema não tem
solução. Kelsen já demonstrou na Teoria geral do
direito e do Estado como o próprio Golpe de Estado
instaura sempre um novo ordenamento jurídico, dado
que a violação da legalidade do ordenamento
precedente implica também na mudança da sua norma
fundamental e, por conseguinte, na invalidação de
todas as leis e disposições emanadas em nome dela.
Por outras palavras, o Golpe de Estado implica na
instauração de um novo poder de fato, que imporá por
sua vez a legalidade. Este poder de fato poderá
também, se assim quiser, convalidar todas as leis e
providências resultantes do ordenamento anterior, mas
o ordenamento jurídico deverá considerar-se novo por
ter mudado o motivo de validade. E é por estas razões
que, segundo o direito internacional, o Governo criado
por um Golpe de Estado tem de pedir um novo
reconhecimento dos outros Estados.
Com isto não se pretende dizer que o Golpe de
Estado produz modificações substanciais nas relações
políticas, econômicas e sociais (a experiência histórica
mostra até o contrário), mas tão-somente que em seu
aspecto jurídico não há diferença entre Golpe de
Estado e revolução. Partindo deste dado, certos
estudiosos caracterizaram o Golpe de Estado como
uma "revolução no campo do direito e não no campo
da política", uma definição que não oferece princípios
operacionais para ulteriores aprofundamentos.
Para evitar o beco sem saída a que conduzem as
exposições de tipo jurídico e a polêmica sobre se o
Golpe de Estado — que é tradicionalmente um
método da direita para conquista do poder político —
pode também provocar um processo em sentido
contrário, uma parte dos doutrinadores prefere definir
o Golpe de Estado como politicamente neutro e
sustentar que, se o Golpe de Estado for pelo menos o
primeiro passo de um processo revolucionário (quanto
aos fins últimos, sociais e econômicos), isso dirá
respeito às ações futuras daqueles que conquistam o
poder. Em si mesmo, o Golpe de Estado constituiria
pura e simplesmente um método para conquistar o
poder, sem conotações políticas ou sócio-econômicas.
Esta definição está ligada ao estudo da configuração
do Golpe de Estado sem indagar as conseqüências
dele sobre o sistema político ou sobre outros sistemas
sociais.
Por outro lado, o Golpe de Estado poderá ser
melhor definido e melhor conhecido se nos apoiarmos
em indicadores empíricos do fenômeno, segundo a sua
manifestação histórica concreta.
547
Nesta base, podemos identificar indicadores como
estes:
1) Na tradição histórica, o Golpe de Estado é um
ato efetuado por órgãos do Estado. Em suas
manifestações atuais, o Golpe de Estado, na maioria
dos casos, é levado a cabo por um grupo militar ou
pelas forças armadas como um todo. Num caso
contrário, a atitude das forças armadas é de
neutralidade-cumplicidade.
2) As conseqüências mais habituais do Golpe de
Estado consistem na simples mudança da liderança
política.
3) O Golpe de Estado pode ser acompanhado e/ou
seguido de mobilização política e/ou social, embora
isso não seja um elemento normal ou necessário do
próprio golpe.
4) Habitualmente, o Golpe de Estado é seguido do
reforço da máquina burocrática e policial do Estado.
5) Uma das conseqüências mais típicas do
fenômeno acontece nas formas de agregação da
instância política, já que é característica normal a
eliminação ou a dissolução dos partidos políticos.
BIBLIOGRAFIA. - C. BARBÉ, Colpo di Stato, in
Política e società, vol. I, La Nuova Italia, Firenze
1979; E. N. LUTTWAK, Tecnica del colpo di Stato
(1968), Longanesi, Milano 1969; C. NAUDÉ,
Considerazioni politiche sui colpi di Stato (1639),
Boringhieri, Torino 1958; D. C. RAPOPORT, Coup (1'État
the view of the men firing pistols. in Revolution. ao
cuidado de C. J. FRIEDRICH, Alberton Press. New York
1967.
(CARLOS BARBÉ)
Governabilidade.
I. DEFINIÇÃO. — O termo mais usado atualmente
seria o oposto, ou seja, não-Governabilidade. A
palavra, carregada de implicações pessimistas (crise
de
Governabilidade)
e,
freqüentemente,
conservadoras, presta-se a múltiplas interpretações.
Em particular, a distinção mais clara é daqueles que
atribuem a crise de Governabilidade à incapacidade
dos governantes (alguns são levados a ver nisso o
emergir insanável das contradições dos sistemas
capitalistas), e daqueles ainda que atribuem a nãoGovernabilidade às exigências excessivas dos
cidadãos. Esta segunda versão define a nãoGovernabilidade como um termo carregado de
problemas. Em linhas gerais, as duas
548
GOVERNABILIDADE
interpretações apresentam vários pontos de contato;
porém, quando estritamente distintas, podem chegar,
freqüentemente, até a atos de acusação (contra
governantes ou alguns grupos sociais, quase sempre
os sindicatos), ou a posições ideológicas (volta ao
mítico estado de "tranqüilidade" do sistema e de
obediência dos cidadãos, ou de avanço para o
socialismo, ou, de qualquer modo, de superação do
capitalismo).
A fraqueza substancial destes posicionamentos
consiste na falta de ajuste, a nível analítico, dos dois
componentes fundamentais, capacidade e recursos, em
sentido lato, dos Governos e dos governantes, e
solicitações, apoio e recursos dos cidadãos e dos
grupos sociais.
A Governabilidade e a não-Governabilidade não são,
portanto, fenômenos completos, mas processos em
curso, relações complexas entre componentes de um
sistema político.
II. HIPÓTESES SOBRE A NÃO-GOVERNABILIDADE. —
Não é tarefa fácil extrair da bibliografia que trata do
assunto, vasta, mas pouco sistemática, ampla, mas
freqüentemente confusa,
hipóteses claramente
delineadas. Com um mínimo de simplificação é
possível sustentar que os autores que se ocuparam
desta problemática aderiram, no todo ou em parte, a
uma das seguintes hipóteses (ou a uma combinação de
várias):
1.°) A não-Governabilidade é o produto de uma
sobrecarga de problemas aos quais o Estado responde
com a expansão de seus serviços e da sua intervenção,
até o momento em que, inevitavelmente, surge uma
crise fiscal. Não-Governabilidade, portanto, é igual à
crise fiscal do Estado (O'Connor).
2.°) A não-Governabilidade não é somente, nem
principalmente, um problema de acumulação, de
distribuição e de redistribuição de recursos, bens e
serviços aos cidadãos, mas é, de preferência, um
problema
de
natureza
política:
autonomia,
complexidade, coesão e legitimidade das instituições.
Na sua exposição mais sintética e mais incisiva "a
Governabilidade de uma democracia depende do
relacionamento entre a autoridade de suas instituições
de Governo e da força das suas instituições de
oposição" (Huntington).
3.°) A não-Governabilidade é o produto conjunto
de uma crise de gestão administrativa do sistema e de
uma crise de apoio político dos cidadãos às
autoridades e aos Governos. Na sua versão mais
complexa, a não-Governabilidade é a soma de uma
crise de input e de uma crise de output. Diz
Habermas: "As crises de output têm a forma da crise
de racionalidade: o sistema administrativo não
consegue compatibilizar, nem
agilizar eficientemente, os imperativos de controle
que lhe chegam do sistema econômico. As crises de
input têm a forma das crises de legitimação: o sistema
legitimador não consegue preservar o nível necessário
de lealdade da massa, impulsionando assim os
imperativos de controle do sistema econômico que ele
assumiu".
Antes de analisar em particular e nos seus vários
componentes as três teses sucintamente já expostas, é
oportuno formular uma pergunta preliminar relativa ao
"porquê", no início dos anos 70, se viu o proliferar de
hipóteses, teses, interpretações, que tentam provar a
validade do conceito de não-Governabilidade. De certo
modo é evidente que os estímulos para a elaboração
das três teses acima descritas foram bem variados, seja
a nível teórico, seja a nível prático contingente. É fora
de dúvida que, além disso, teve muita influência um
processo comum a todos os sistemas políticos
ocidentais: a expansão da política, da participação dos
cidadãos e da intervenção do Estado. Esta expansão
constituiu o impulso para um fenômeno que apresenta
traços peculiares em relação ao passado. Mesmo
assim, não se deve absolutamente acreditar que todas
as características atualmente associadas à nãoGovernabilidade apresentem elementos de absoluta
novidade. Crises fiscais do Estado, falta de
institucionalização de organizações e processos
políticos, colapso dos aparelhos administrativos e
anulação da legitimidade das estruturas políticas são
fatos que se verificaram em todos os tempos e em
todos os lugares, e foram muito freqüentes também os
casos modernos que conduziram a revoluções, guerras
civis e golpes de Estado. Não se deve, portanto,
aceitar a pretensão própria de quem têm uma memória
histórica muito curta e que costuma acentuar
excessivamente a peculiaridade da fase atual. Além do
fenômeno, certamente novo, da expansão política, a
fase atual apresenta outras características novas que
devem ser claramente individualizadas e postas em
relação com a não-Governabilidade.
Não só o Estado, com seus aparelhos ideológicos e
administrativos, se transformou na referência
principal das atividades políticas dos cidadãos e dos
grupos, mas o fato de ele intervir de maneira crescente
e sutil na sociedade incidiu sobre as fontes da sua
legitimidade. Além disso, mudaram não somente as
relações de força dentro de cada Estado, como também
foram paulatinamente transformando-se em relações
entre Estados. Em particular, um cartel de países do
Terceiro Mundo tornou cada vez mais difícil a
aquisição, a baixo preço, de matérias-primas e de
fontes energéticas, introduzindo um fator de forte
desequilíbrio na
GOVERNABILIDADE
acumulação e distribuição de recursos por parte dos
sistemas políticos ocidentais.
A crise atual, seja qual for sua interpretação,
poderia ter como fundo comum uma série de
acontecimentos, sendo que o mais importante é,
talvez, em sentido lato, o político. Cidadãos e grupos
organizados dos sistemas políticos ocidentais,
habituados a um crescimento constante e ininterrupto,
desde o final dos anos 50 até o início dos anos 70, de
improviso enfrentaram, primeiro, uma parada no seu
progresso e, depois, uma inversão do mesmo
processo. Para manter afastadas as conseqüências
desagradáveis e aproveitando as possibilidades de
participação, cidadãos e grupos fizeram constante
pressão junto aos respectivos Governos para que
fossem mantidos nos mesmos níveis os serviços sociais
de seus países. Nos sistemas competitivos, os vários
Governos concordaram com estas solicitações para não
perderem as eleições, de tal modo que o desequilíbrio
entre entradas e saídas tornou-se cada vez maior,
introduzindo a espiral inflacionária, sem com isso
reduzir a insatisfação dos vários grupos.
Segundo os sistemas, a disponibilidade de recursos,
a capacidade dos Governos, o grau de associabilidade e
de controle das associações sobre os processos
políticos, a taxa de inflação e a crise de
Governabilidade manifestaram-se de maneira diversa.
O processo, porém, influiu sobre todos os sistemas
políticos. Analisaremos agora mais de perto as três
teses já citadas.
III. SOBRECARGA E CRISE FISCAL DO ESTADO. —
Sobrecarga e crise fiscal do Estado representam,
respectivamente, a versão fraca e a versão forte da
tese que particulariza a raiz econômica da perda, mais
ou menos gradual, de legitimidade por parte do Estado.
Ambas as versões acentuam, se bem que de maneira
diversa, o crescimento do papel do Estado na
economia, mas enquanto a primeira se preocupa com
processos de curta duração e esquiva-se a propor uma
interpretação conjunta do Estado capitalista, a segunda
entende criar uma teoria da crise do Estado capitalista
que derive da assunção de novas funções.
A versão do mais prolífico expoente da tese da
sobrecarga é um tanto simples: "quando o produto
nacional aumenta mais lentamente do que os custos
dos programas públicos e das solicitações salariais, a
economia é 'sobrecarga' " (Rose, 1978). As
conseqüências desta sobrecarga podem ser de vários
tipos. Em primeiro lugar, elas podem incidir sobre a
eficácia do Governo, ou seja, sobre sua capacidade de
conseguir os objetivos prometidos, assim como de ser
fiel aos seus compromissos. Em segundo lugar,
influem no consenso dos cidadãos, isto é, sobre sua
disposição de
549
obedecer espontaneamente às leis e as diretrizes do
Governo, mesmo quando estas contrariem seus
interesses contingentes.
Um Governo que mantenha o consenso dos
cidadãos, mas perca sua eficácia, tornar-se-á
improdutivo. Quando a situação persiste por um
período longo, a perda de eficácia levará a uma
diminuição do consenso, até chegar à ilegitimidade
perante os cidadãos, e a um possível colapso. Mais
raramente, o Governo goza de escasso consenso, mas
é eficaz e, portanto, pode recorrer à coerção na
confrontação com seus opositores. Somente o Governo
que se baseie na sua eficácia e no consenso público é,
na verdade, um Governo plenamente legítimo; mas, de
maneira
crescente,
nos
sistemas
políticos
contemporâneos, a legitimidade é o resultado de
serviços governamentais que satisfaçam todas as
exigências dos vários grupos sociais.
Mais recentemente, os expoentes desta versão da
sobrecarga dos sistemas políticos se perguntaram se
esta não acabará levando os Governos à bancarrota.
Uma questão que tem sua origem no constante
desequilíbrio entre "entradas e saídas" e na
impossibilidade de alguns Governos reduzirem de
maneira significativa os gastos públicos ou de
aumentarem de modo adequado as entradas. A resposta
a esta questão é que os Governos não podem chegar à
bancarrota como os comerciantes ou as empresas
industriais. Opõem-se a este fenômeno os intrincados
vínculos de solidariedade existentes entre os Governos
ocidentais e a avaliação da repercussão internacional
de um tal acontecimento. Existe, porém, e fica em
aberto, o problema da erosão da legitimidade de um
Governo que se tome insolvente e se revele como tal.
Os que sustentam a versão da sobrecarga, quando se
aventuram a propor soluções, acabam sempre caindo
nas receitas de cunho neoliberalista. Em especial, a
primeira destas soluções surge como clássica: "reduzir
de maneira substancial a atividade do Governo".
Receita de longo prazo, devido aos compromissos de
gastos assumidos pelos Governos em inúmeros
programas e devido também às pressões eleitorais, esta
solução foi até agora somente parcialmente adotada.
Nem os chamados Governos burgueses que sucederam
à social-democracia sueca quiseram ou puderam tirar
a nação de seu estado de bem-estar.
A segunda receita, de maior complexidade, consiste
em procurar reduzir as expectativas dos grupos
sociais, em mudar a convicção de que antes ou depois
o Estado intervirá para salvar ou sanar qualquer
situação. Mesmo que se chocasse com valores e
crenças muito generalizadas, esta receita.
550
GOVERNABILIDADE
se tivesse sucesso, introduziria um importante
elemento a "aliviar" os Estados.
A terceira receita seria aumentar os recursos e as
entradas à disposição do Estado; apesar do benefício
parcial da inflação, isto parece muito difícil.
Finalmente,
uma
receita
tratada
apenas
superficialmente pelos estudiosos da sobrecarga
consiste na corajosa reorganização das instituições
estatais, no sentido de uma ampla simplificação, pois
sua complexidade é um obstáculo para a sua eficácia.
Esta é a temática que enfrentam, tanto a versão forte
dá crise fiscal do Estado, quanto as teses da crise da
democracia e da crise da racionalidade do Estado.
A tese da crise fiscal do Estado parte da premissa
de que o Estado capitalista, com a finalidade de
assegurar sua reprodução, deve desenvolver duas
funções fundamentais: garantir a acumulação e manter
a legitimação. Em síntese, "o Estado deve esforçar-se
por criar ou conservar condições idôneas a uma
rentável acumulação de capital. Por outra parte, o
Estado deve esforçar-se por criar ou conservar
condições idôneas de harmonia social. Um Estado
capitalista que utilizasse abertamente as próprias
forças de coerção para ajudar uma classe a acumular
capital à custa de outras classes perderia toda a sua
legitimidade e chegaria mesmo a minar as próprias
bases de lealdade e de consenso. Um Estado, porém,
que ignorasse a necessidade de estimular o processo de
acumulação do capital, correria o risco de secar a
fonte do próprio poder: inutilizaria a capacidade de a
economia gerar um superávit e os impostos decorrentes
deste" (O'Connor).
Apresentada quase exclusivamente em referência
ao contexto norte-americano e à evolução do balanço
estatal e dos setores econômicos daquele país, a tese da
crise fiscal do Estado parece carente sob diversos
aspectos. Antes de mais nada, a premissa fundamental
da necessidade que tem o Estado (capitalista) de
garantir a acumulação e de preservar a legitimidade
parece esquecer que estas são praticamente funções
indispensáveis, diríamos essenciais, de todos os
Estados contemporâneos, desde que foi superada a fase
do Estado como "guardião".
Neste caso, variam os modos como tais funções são
exercidas, assim como o peso e o papel da coerção e
do consenso no processo de acumulação e de
distribuição dos recursos. Falta, porém, uma
explicação mais aprofundada das razões pelas quais a
crise fiscal do Estado se apresenta mais grave a partir
da metade dos anos 60 (mesmo que o caso dos Estados
Unidos possa ser parcialmente interpretado à luz da
excessiva expansão dos gastos públicos, que
derivaram da decisão
de Johnson em financiar, seja o welfare state, isto é,
os programas da Great Society, seja o warfare state,
isto é, a guerra no Vietnã), e estão ausentes os
mecanismos políticos que conduziram a este estado de
coisas. Não nos é dado, porém, um estudo
aprofundado e adequado das relações entre a função
de acumulação e a função de legitimação que,
segundo O'Connor, seriam caracterizadas por uma
inerente contraditoriedade. Na análise econômica da
crise fiscal do Estado americano, o autor não dá
importância ao papel dos mecanismos ideológicos e da
legitimação simbólica. Sua tese pode, no máximo,
destacar alguns problemas da crise fiscal do Estado,
como o déficit econômico, devido à incapacidade de
financiar o aumento das despesas com o adequado
incremento dos tributos.
Como bem observou Antonio Pedone, uma coisa é
a crise fiscal do Estado e outra é a crise do Estado
fiscal. Esta última verifica-se somente quando se
produz uma contração drástica na esfera das atividades
econômicas sujeitas à iniciativa privada, que tenha
como conseqüência uma exaustão das "próprias bases
do Estado. A experiência demonstra, porém, que a
dissolução mais ou menos rápida do Estado fiscal pode
ser acompanhada por uma expansão e um
fortalecimento da organização estatal" (Pedone).
Os defensores da crise fiscal do Estado não
propõem deliberadamente qualquer solução para um
problema, que antes consideram favorável, na medida
em que descobre as bases e mina os alicerces do
Estado capitalista, apressando sua queda. A solução é,
portanto, esperar por esta queda (que pode,
paradoxalmente, ser o produto não desejado e não
intencional da rebelião dos contribuintes da classe
média contra os impostos), ou então consiste, mais
raramente, na mudança do relacionamento entre as
várias classes. É, porém, exatamente esta mudança
que, em breve tempo, torna-se a causa mais poderosa
da necessidade de o Estado desenvolver
conjuntamente as funções de acumulação e
legitimação. Fica assim em aberto o problema de a
organização estatal, que se seguirá ao soçobrar das
relações de classe, estar em condições de fazer frente
à própria exigência de mudança e de reprodução sem
crise fiscal e sem coerção de massa.
E da tese da crise da democracia que ressurge os
problemas políticos de organização do consenso,
enfrentados de maneira direta, dentro do quadro
capitalista e democrático.
IV. A CRISE DA DEMOCRACIA. – O ponto
central desta tese é que uma democracia toma-se tanto
mais forte quanto mais organizada, sendo que o
crescimento da participação política deve
GOVERNABILIDADE
ser acompanhado pela institucionalização (isto é, pela
legitimação e aceitação) dos processos e das
organizações políticas. Quando, porém, diminui a
autoridade política, temos a não-Governabilidade do
sistema. Mesmo que a síntese seja novamente referida
ao caso dos Estados Unidos, sua aplicabilidade parece
mais ampla: "A vitalidade da democracia nos anos 60
(que se manifestou com o crescimento da participação
política) gerou problemas para a Governabilidade da
democracia dos anos 70 (como se evidenciou pela
diminuição da confiança do público nas autoridades
do Governo)" (Huntington).
A situação mostra-se particularmente grave porque a
expansão da intervenção do Governo se verifica numa
fase na qual é evidente uma contração da sua
autoridade e isto provoca um desequilíbrio
democrático. Automaticamente, segue-se que a
diminuição da confiança dos cidadãos nas instituições
do Governo e a queda de credibilidade dos
governantes provocam uma diminuição de sua
capacidade para enfrentar os problemas, dentro de um
círculo vicioso que pode ser definido como a espiral
da não-Governabilidade.
As causas desse fenômeno devem ser buscadas nas
transformações culturais de grande porte, que
culminaram nos anos 60 em sociedades altamente
escolarizadas, expostas aos meios de comunicação de
massa e inclinadas a uma participação reivindicatória, e
que desafiaram autoridades em todas as instituições e
em todos os setores, da família à escola, da fábrica à
burocracia. Os efeitos positivos da ruptura dos modelos
político-culturais, fundados amiúde no paternalismo e
no autoritarismo, revelaram-se, porém, de breve
duração, porque nada de positivo substituiu o desafio
antiautoritário, permitindo assim uma recomposição
dos valores e uma nova agregação de interesses. O
resultado global foi apenas um consenso sem nenhuma
finalidade.
Individualizadas as causas da crise da
Governabilidade da democracia na relação entre
transformações culturais, em sentido lato, e estruturas
e processos políticos, os autores da Comissão Trilateral
buscaram as soluções dentro da mesma esfera.
Realmente, as tensões inflacionárias e as dificuldades
fiscais podem, nesta perspectiva, ser facilmente
reconduzidas à dinâmica da esfera política e social:
alta participação política, forte competição eleitoral,
total dependência dos governantes das preferências dos
governados, ampla aceitação dos valores democráticos
de igualdade e individualismo.
A solução mais controvertida que surge deste
relacionamento consiste, não tanto na imediata
utilização de praxes não-democráticas, quanto na
diminuição paulatina do processo de
551
democratização ("existem também limites que podem
potencialmente prognosticar a ampliação indefinida da
democracia política"), na tentativa de "descarregar" o
sistema político das solicitações que lhe aumentem as
funções e diminuam a autoridade ("é necessário, por
esta razão, substituir a menor marginalização de
alguns grupos por uma maior autolimitação de todos
os grupos"), da reintrodução de diferenciações ("cada
organização social exige, numa certa medida,
disparidade de poder e diferenças de função") e,
finalmente, da descentralização política ("a
Governabilidade de uma sociedade a nível nacional
depende da medida como ela é governada eficazmente
a níveis subnacionais, regionais, locais, funcionais e
industriais").
Embora estas receitas possam parecer, de um lado,
conservadoras e, de outro, pouco incisivas, seu valor
real consiste em individualizar terrenos imediatamente
operativos, nos quais o êxito parece ter sido já
favorável aos países que mais conseguiram livrar-se da
crise de Governabilidade. Da Áustria à Suécia, da
Suíça à Noruega, a credibilidade dos Governos é o
resultado da diferenciação do poder e da presença de
uma vasta rede de associações, capaz de aglutinar
eficazmente os interesses e de reivindicar com
sucesso, dentro de um quadro de compatibilidades.
Mesmo assim, podemos afirmar com esta base que
não existe uma verdadeira crise de Estados
contemporâneos?
V. A CRISE DA RACIONALIDADE. — A tese de
Habermas compartilha de alguns dos pressupostos
sobre os quais se fundam as outras teses que explicam a
crise da Governabilidade. De um modo particular,
aceita a premissa da expansão do papel do Estado e do
crescimento de sua intervenção na esfera da economia
e evidencia as características políticas da crise,
conseqüência da mudança de relação entre valores e
estruturas na área da participação, das preferências e
das expectativas políticas. A tese da crise da
racionalidade quer, porém, ir além dessas premissas e,
em certo sentido, superá-las, numa ambiciosa tentativa
de propor uma teoria, cujo conjunto abranja toda a
crise do "capitalismo maduro''.
Indo buscar numerosos conceitos à teoria dos
sistemas e procurando sua inserção num esquema
interpretativo que remonta a uma leitura moderna de
Marx, a tese da crise de racionalidade parte da análise
dos Estados capitalistas (e, na realidade, de todas as
formações
sócio-econômicas)
como
sistemas
complexos, que têm por base um "princípio
organizador". Este princípio tem duas faces: de um
lado, consiste na afirmação de um domínio não
político de classe ("despolitização da relação entre as
classes e conversão ao
552
GOVERNABILIDADE
anonimato do domínio de classe"); do outro,
desenvolve-se na instituição do mercado, onde se dá
"intercâmbio de equivalentes", e a ação orientada para
o interesse substitui a ação orientada para o valor.
Este princípio de organização contém, em si, no
entanto, uma contradição considerada fundamental. O
Estado encontra-se na contingência de ter que proteger
a propriedade privada, ao mesmo tempo que afirma
sua existência, enquanto cumpre funções sociais.
Deste modo a incapacidade de desenvolver as funções
sociais essenciais para a manutenção da integração
social reflete-se imediatamente na crise de todo o
sistema. Segundo palavras de Habermas, "nas
sociedades liberal-capitalistas, as crises tornam-se
endêmicas, pois os problemas de controle,
temporariamente não resolvidos, que o processo de
crescimento econômico gera a intervalos mais ou
menos regulares, ameaçam, enquanto tais, a
integração social".
Herdeiro fiel da tradição de pensamento da Escola
de Franckfurt, Habermas estende sua interpretação até
torná-la tal que compreenda todo o sistema social em
seus vários componentes e individualize quatro
tendências da crise:
"— o sistema econômico não cria a medida
necessária de valores de consumo, ou
— o sistema administrativo não produz a medida
necessária para escolhas racionais, ou
— o sistema legitimador não fornece a medida
necessária de motivações generalizadas, ou
— o sistema sócio-cultural não cria a medida
necessária de sentido que motive a ação".
Ficando sempre no âmbito da tradição da Escola de
Franckfurt, Habermas não apresenta soluções
específicas para o problema da crise da racionalidade.
Todavia, partindo da contradição fundamental, assim
se expressa: "na medida em que os recursos
econômicos não são suficientes para alimentar
plenamente as vítimas capitalistas do crescimento do
capitalismo, surge o dilema de imunizar o Estado
contra estas pretensões ou de paralisar o processo de
crescimento". Sugere então algumas soluções que
devem ser evitadas. De um modo especial, polemiza
contra a teorização de Niklas Luhmann, rejeitando
uma solução fundada no planejamento e na criação de
um Estado administrativo protegido pelos partidos e
pela opinião pública e imunizado por uma participação
que seja válida e marcante.
Concluindo, embora articulada e profunda na
análise, esta tese da crise da racionalidade do Estado,
mesmo captando melhor que qualquer outra tese as
conexões entre as várias esferas que, sozinhas, podem
explicar a não-Governabilidade dos sistemas
complexos, parece, porém, pecar por falta de
realismo. Com efeito, algumas
das categorias utilizadas, entre as quais, por exemplo, a
de propriedade e a de classe social, já foram
submetidas a severa e drástica crítica e reformulação.
Outras, como, por exemplo, a de participação,
sofreram atualmente uma profunda revisão. Habermas
não discute plenamente três dos mais importantes
conceitos desenvolvidos lúcida e friamente por
Luhmann, quer dizer, a substituição da explicação
fundada na estratificação em classes, a baseada na
diferenciação funcional e a categoria da
"complexidade social".
VI. PERSPECTIVAS DE PESQUISA. — É exatamente a
hierarquia da complexidade social que indica o
caminho potencialmente mais fecundo para a análise
dos problemas da Governabilidade e da nãoGovernabilidade
dos
sistemas
políticos
contemporâneos. Não há dúvida de que, de qualquer
ponto de vista que se enfrente a temática, parece claro
que os sistemas políticos atuais são bem mais difíceis
de governar e de transformar do que os sistemas
políticos historicamente já existentes. Por isso, o termo
Governabilidade denota, efetivamente, um problema
novo. Dito isto, porém, fica em aberto a discussão
sobre as características das teorias novas e de suas
implicações. A discussão das várias teses até hoje
formuladas sugeriu que o problema é de tal dimensão
que não pode ser interpretado de maneira reduzida,
como uma simples crise de sobrecarga ou crise fiscal
do Estado e tampouco como simples crise dos
aparelhos políticos, mas deve ser entendida como uma
crise global de transformação da ordem de um sistema
social (seja limitando-o, como foi substancialmente
feito, aos sistemas capitalistas seja ampliando-o, como
seria oportuno, a todos os sistemas contemporâneos
avançados).
E diante desta perspectiva que a indicação do
método de Luhmann adquire todo o seu valor. A
necessidade de considerar todas as interações
complexas e não reduzíveis a intercâmbios bilaterais,
a relações nas quais não sejam imediatamente
identificáveis todos os elementos, nos leva
diretamente a uma análise sistêmica. Esta apóia-se na
individualização dos campos funcionais e no acerto
das possibilidades existentes para a ação e
conseqüente seleção de escolhas. Luhmann, porém, não
procede concretamente à indicação das perspectivas de
pesquisa.
Apesar de algumas das teses precedentemente
expostas mostrarem a falta de uma estrutura
indispensável para transformá-las em verdadeiras
teorias interpretativas (este é o caso, seja das teses de
sobrecarga, seja da tese da crise fiscal do Estado),
ambas têm, porém, o mérito de ser facilmente
falsificáveis. A tese da crise de democracia parece
formulada em termos tais que permitem
GOVERNO
levar a uma verificação empírica, mesmo graças à
individualização exata das áreas nas quais tal
verificação é possível e prognosticável. A tese da crise
de racionalidade, porém, embora aspirando a uma total
compreensibilidade, é de um nível de abstração
excessivamente elevado que necessita de uma
tradução em termos operativos. Assim sendo, ela está
destinada a defrontar-se com alguns dos processos reais
individualizados por Luhmann e também a reformular
alguns dos conceitos-chaves por ela utilizados.
BIBLIOGRAFIA. - J. HABERMAS. La crise della razionalità nel
capitalismo matuto (1973), Laterza, Bari 1975; S. P.
HUNTINGTON, Stati Uniti d'America, in M. CROZIER, S. P.
d'America, in M. CROZIER, S. P. HUNTINGTON e J. WATANUKI. La
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Milano, 1977; N. LUHMANN, Potere e complessità sociale
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Bologna 1976; Challenge to governance, studies in overloaded
polities, dirigido por R. ROSE, Sage Publications, London 1980;
R. ROSE e G. PETERS. Can government go bankrupt?. Basic
Books, New York 1978.
[GIANFRANCOPASQUINO]
Governo.
I. DEFINIÇÃO. — Numa primeira aproximação e
com base num dos significados que o termo tem na
linguagem política corrente, pode-se definir Governo
como o conjunto de pessoas que exercem o poder
político e que determinam a orientação política de uma
determinada sociedade. É preciso, porém, acrescentar
que o poder de Governo, sendo habitualmente
institucionalizado, sobretudo na sociedade moderna,
está normalmente associado à noção de Estado. Por
conseqüência, pela expressão "governantes" se entende
o conjunto de pessoas que governam o Estado e pela
de "governados", o grupo de pessoas que estão sujeitas
ao poder de Governo na esfera estatal. Só em casos
excepcionais, quando as instituições estão em crise, o
Governo tem caráter carismático e sua
555
eficácia depende do prestígio, do ascendente e das
qualidades pessoais do chefe do Governo.
Existe uma segunda acepção do termo Governo
mais própria da realidade do Estado moderno, a qual
não indica apenas o conjunto de pessoas que detêm o
poder de Governo, mas o complexo dos órgãos que
institucionalmente têm o exercício do poder. Neste
sentido, o Governo constitui um aspecto do Estado.
Na verdade, entre as instituições estatais que
organizam a política da sociedade e que, em seu
conjunto, constituem o que habitualmente é definido
como regime político as que têm a missão de exprimir
a orientação política do Estado são os órgãos do
Governo.
O significado que a palavra Governo tem na língua
italiana difere da que a palavra government tem nos
países anglo-saxônicos. Com efeito, esta última
significa, grosso modo, o que no continente europeu se
designa com a expressão REGIME POLÍTICO (v.) e tem
portanto uma acepção muito mais ampla do termo
Governo, enquanto, para indicar o que nós
entendemos com a palavra Governo, na língua inglesa
se usam outros termos como cabinet na Grã-Bretanha
e administration nos Estados Unidos.
Ainda que sob a influência do uso anglo-saxônico,
em muitos estudos políticos publicados na Europa
continental tem sido, também, freqüentemente usada a
noção ampla do termo Governo, parecendo oportuno
reenviar, para este conceito, ao verbete REGIME
POLÍTICO (v.) e definir o Governo na acepção mais
limitada proposta antecedentemente, por estar mais de
acordo com a linguagem corrente.
II. ORIGEM HISTÓRICA — Vimos acima que o termo
Governo está habitualmente associado à noção de
Estado. Ora, o Estado não é senão uma das formas
que a organização política da sociedade assumiu no
decorrer da história (a mais evoluída e a mais
complexa), na qual se manifestou um poder de
Governo. Se o Estado é um tipo de organização
política relativamente recente (habitualmente sua
origem se situa no início do século XVI), a formação
de um poder de Governo remonta a uma fase
histórica muito anterior. Por exemplo, a cidade-Estado
e o Império feudal são formas pré-estatais de
organização política, nas quais é possível identificar
um poder de Governo.
A partir do momento em que a evolução da divisão
do trabalho determinou, de um lado, a formação das
relações sociais mais complexas das relações de
parentela e, de outro, a consolidação de profundas
desigualdades sociais entre os indivíduos e os grupos,
criaram-se conflitos tão fortes que nasceu a
necessidade de organizar a
554
GOVERNO
população sob o comando de um chefe, a quem se
confiou a função de impor as regras necessárias para
a produção e limitar os efeitos desagregadores de tais.
conflitos. Acontece assim, em seus termos mais gerais,
a passagem da comunidade primitiva para a
organização política da sociedade, na qual aparece
uma primeira forma rudimentar de Governo.
Porém, o poder de Governo é tanto o resultado de
determinantes internas como de necessidades externas
na comunidade política. Uma vez que o mundo sempre
foi e ainda é, hoje, politicamente, dividido e dominado
pela anarquia internacional, todo Governo deve
assumir a defesa no confronto com as outras
comunidades políticas. A concentração de poder nos
órgãos do Governo constitui, portanto, o instrumento
mais eficaz para enfrentar as exigências de segurança
e de potência da comunidade política.
Ora, se a existência de um Governo central que
detém o monopólio da força é indubitavelmente um
aspecto típico do Estado moderno, e representa
portanto o ponto de chegada de uma longa e
complexa evolução histórica, o uso da força ou a
ameaça de recorrer a ela foi sempre o meio específico
que as autoridades de Governo tiveram à disposição
para garantir a supremacia dó seu poder.
Se agora nos propomos a especificar as
determinações ulteriores do conceito de Governo em
relação às funções do Estado, como lentamente se
foram verificando no curso da história e como foram
formuladas na doutrina da divisão de poderes,
devemos afirmar que o Governo coincide com o poder
executivo, ou melhor, com os órgãos de cúpula desse
poder, com a execução do aparelho de funcionários,
que tem a função de colaborar no funcionamento dos
serviços públicos, dando execução às decisões do
III. FUNÇÃO E ESTRUTURA DO GOVERNO — Assim Governo, e que é a administração pública.
como em nenhuma comunidade se realiza jamais uma
Da definição proposta se segue também que os
conformidade espontânea e automática às normas órgãos legislativos e judiciários não fazem parte
sobre as quais se funda o desenvolvimento normal e diretamente dos órgãos de Governo, ainda que estes
ordenado das relações sociais, em toda comunidade exerçam seu poder em concorrência mais ou menos
política existe um órgão que tem o cômpito de impor direta, mais ou menos ampla, segundo os casos, com
as regras de conduta e de tomar as decisões os primeiros. Naturalmente, o fato de que tais órgãos
necessárias para manter a coesão do grupo. Este órgão concorram para o exercício do poder implica também
é o Governo. Por este motivo, em todo o curso de que podem delimitar e controlar de qualquer maneira
evolução histórica da humanidade, a partir de uma a ação do Governo.
determinada fase de desenvolvimento, em toda a
No Estado moderno, o Governo se compõe
sociedade se pode individualizar uma forma de normalmente do chefe de Estado (monarca ou
Governo, entendido este como uma forma de poder presidente da república) e do conselho de ministros,
relativamente autônomo em relação aos vários grupos dirigido pelo chefe de Governo. Nas repúblicas
sociais, com a função específica de realizar a presidencialistas, o chefe do Estado é a figura
integração política da sociedade e a sua defesa no preeminente. Em alguns tipos de federação, como nos
confronto com os grupos externos.
Estados Unidos da América, o presidente reúne os
Contudo, pode-se dizer que um Governo é forte poderes de chefe de Estado e de chefe de Governo.
quando se baseia no consenso, enquanto que nenhum Assim, nas monarquias absolutistas, todo poder
Governo poderia subsistir por longo tempo se tivesse pertence ao monarca.
que se impor pela força. Conquanto o liberalismo, a
Mesmo se do ponto de vista constitucional o
democracia e o socialismo tenham contribuído para o Governo é definido como órgão no qual se manifesta
alargamento da base social do poder e tenham dado o poder estatal em toda a sua plenitude, do ponto de
origem a um processo de humanização da vida vista sociológico constata-se que nos Estados
política, o exército, a polícia, as prisões, etc, modernos, nos quais se realizam quaisquer das formas
constituem ainda hoje o fundamento último em que se de participação eleitoral do povo, de forma mais ou
apóia o poder do Governo.
menos livre, os centros de poder aos quais
A força e o consenso são, pois, as duas alternativas normalmente o Governo
está subordinado
dialéticas que definem o Governo. São termos (subordinado mas não de um modo absoluto nem
contraditórios que podem, no entanto, harmonizar-se mecânico, porque possui sempre uma relativa
numa situação, que jamais se realizou na história, a autonomia) são o partido ou a coligação de partidos
não ser como aspiração, onde a força se qualifique de Governo. Nos regimes de partido único, o poder
como autoconstrição da sociedade sobre si mesma, e, do Governo está nas mãos do chefe ou dos chefes do
em conclusão, força e consenso tendam a confundisse. partido; nos regimes bipartidários, o chefe do Governo
é habitualmente o chefe do partido de maioria; nos
GOVERNO MISTO
regimes pluripartidários, a designação do chefe de
Governo nasce de um compromisso entre os partidos
de coligação de Governo.
Por outra parte, pode acontecer que o poder de
Governo esteja concentrado em parte ou no todo num
grupo de tecnocratas da administração pública, de
chefes militares, de chefes religiosos, etc, aos quais,
segundo o esquema constitucional da divisão dos
poderes, deveria ser tirado o poder de decisão política,
pelo menos no que toca à administração pública e ao
exército, que deveriam ter institucionalmente funções
de execução e cujo papel, em qualquer caso, não
deveria exceder o da pressão ou influência sobre os
homens que estão no poder. Mas onde quer que se
possa especificar a sede efetiva do poder de Governo,
em toda a comunidade política é possível identificar
um conjunto de funções estáveis e coordenadas
ligadas ao uso do monopólio da força, nas quais reside
o poder de decidir de modo determinante a orientação
política. Do ponto de vista da teoria da classe política,
entendida como esquema classificatório dos
comportamentos daqueles que dedicam a maior parte
da sua atividade à política, os papéis de Governo
constituem apenas uma parte da classe política, a
cúpula da classe política de Governo, com exclusão
da parte residual da classe política de Governo e da
classe política da oposição.
BIBLIOGRAFIA. — AUT. VÁR., Gouvernés et gouvernants. in
Recueils de la sociétè Jean Bodin pour l'histoire comparaiive des
institutions. XXII-XXVII, Bruxelles 1965-69; G. MOSCA,
Elementi di scienza política. Laterza, Bari 19533; M. WEBER,
La política come professione (1919), in Il lavoro intellettuale
come professione. Einaudi, Torino 19662.
[LUCIO LEVI]
Governo Misto.
I. NA ANTIGÜIDADE. — Para se compreender o que é
que se entende por Governo misto na história do
pensamento político, é preciso partir da tipologia
clássica das formas de Governo, segundo a qual
existem três formas boas — a monarquia, a
aristocracia e a democracia — e três formas más — a
tirania, a oligarquia e a demagogia —, bem como da
idéia, comum entre os maiores escritores políticos da
antigüidade, segundo a qual as três formas boas
tendem fatalmente a degenerar nas respectivas formas
más. A doutrina do Governo misto consiste na
555
enunciação e defesa do princípio de que a
degeneração de uma forma boa numa má pode ser
evitada pela constituição de um Governo que resulte
da mistura, combinação, conformação, recíproca
integração ou até fusão das três formas boas. Em
suma, o Governo misto constitui uma quarta ou, se se
levar em conta as formas más, uma sétima forma de
Governo, cujo estudo pertence não tanto à análise
descritiva das formas de Governo e à sua
conseqüente tipologia, quanto ao debate acerca da
melhor forma de governar.
A primeira referência à boa natureza da mistura se
encontra numa conhecida passagem das Leis de
Platão, onde, de resto, não se enuncia a doutrina
clássica do Governo misto, porque as formas de
Governo levadas em consideração são apenas duas:
depois de haver dito que as duas formas de Governo
que geram todas as outras são a monarquia, cuja
expressão mais alta se encontra na Pérsia, e a
democracia, cuja manifestação mais elevada se dá
entre os gregos, Platão acentua que "para haver
liberdade e concórdia num Estado... é absolutamente
necessário que o Governo participe de uma e de outra
dessas duas formas. ..; um Estado não poderá ser bem
governado se nele faltarem tais condições" (693 d). No
segundo livro da Política, Aristóteles acrescenta, ao
criticar essa afirmação platônica: "A melhor escolha é
a daqueles que pretendem misturar os vários tipos de
Constituição, pois a melhor forma é a da Constituição
resultante da fusão de muitos tipos diversos" (1266 a).
Pouco antes, o mesmo Aristóteles citara o exemplo de
Esparta: "Alguns sustentam que a melhor Constituição
há de ser formada pela mistura de todos os tipos de
Constituição, louvando por isso a de Esparta:
sustentam que esta deriva, com efeito, da monarquia,
da oligarquia e da democracia" (1265 b). Também
Platão, nas Leis, tinha-se referido à Constituição de
Esparta como a uma Constituição composta, parecida
em certos aspectos com uma tirania, em outros com
uma democracia, em outros ainda com uma
aristocracia e uma monarquia, não tanto para a
apresentar como um modelo quanto para constatar a
dificuldade de a incluir neste ou naquele modelo de
Constituição (712, d-e). A Constituição de Esparta se
converterá, em toda a história do pensamento político,
a começar de Políbio, em ponto de referência
obrigatório na discussão favorável ou contrária ao
Governo misto.
É justamente com Políbio que tem começo a
verdadeira e específica ideologia do Governo misto e
é a ele que se referem geralmente tanto os que a
aceitam, adaptando-a às várias situações históricas,
como os que a rejeitam. No livro sexto das Histórias,
depois de haver narrado as
556
GOVERNO MISTO
vicissitudes da batalha de Canas (216 a.C), Políbio se
detém a descrever a Constituição romana, "já que a
Constituição de um povo há de ser considerada como a
primeira causa do êxito e fracasso de qualquer nação"
(VI, 2). Ora, a excelência da Constituição romana
reside precisamente no fato de ela ser uma
Constituição mista, porque, "olhando em parte ao
poder dos cônsules, o Estado parecia sem dúvida
monárquico ou régio, se se olhava ao senado, parecia
aristocrático, e, se tomado em conta o poder da
multidão, parecia seguramente democrático" (VI, 12).
Esta excelência depende de que só as Constituições
mistas garantem Governos estáveis. Políbio parte da
tipologia das seis formas de Governo, três boas e três
más; sustenta em seguida que cada uma das formas
boas está destinada a degenerar na correspondente
forma má, dando origem a um ciclo histórico
constituído por seis fases (monarquia, tirania,
aristocracia, oligarquia, democracia, oclocracia), o
qual, completada sua realização, volta ao começo (é a
famosa teoria dos ciclos ou anacicloses). A primeira
Constituição mista e também modelar é, segundo
Políbio, a de Esparta: ha vendo-se apercebido de que
"todo Governo simples e baseado num só "princípio
era precário por se converter bem depressa na forma
corrompida", Licurgo elaborou uma Constituição que
reunia "todos os valores e características dos melhores
sistemas políticos, de modo que nenhum deles,
adquirindo uma força maior que a necessária,
desviasse para os males congênitos, mas, pelo
contrário, a força de um neutralizasse a força dos
outros, os vários poderes se equilibrassem, nenhum
levasse vantagem e o sistema político se mantivesse por
muito tempo em perfeito equilíbrio, tal qual nave que
vence a força de uma corrente contrária" (VI, 10).
Desta passagem se depreende, além disso, que a
superioridade do Governo misto não depende apenas
do fato dele garantir melhor a estabilidade que as
formas simples, mas também do equilíbrio que
consegue estabelecer entre as diversas forças sociais,
ao atribuir a cada uma delas uma parte do poder,
permitindo assim que o poder de uma controle o poder
da outra (verdadeiro e autêntico precedente histórico
do balance of powers). Este mesmo valor do Governo
misto é posto bem em evidência por Políbio a propósito
da Constituição romana, com esta descrição já perfeita
do poder limitado pelo poder: "Quando um dos órgãos
constitucionais, crescendo em importância, se
ensoberbece e prepondera mais do que convém, é
claro que, não sendo qualquer das partes autônoma... e
podendo qualquer plano ser afastado ou impedido,
nenhuma dessas partes excede a sua competência e
ultrapassa as medidas. Todos se mantêm, pois,
dentro dos limites prescritos, porque, de um lado, são
impedidos de todo impulso agressivo; do outro,
temem, desde início, a vigilância dos demais" (VI,
18).
Também o maior filósofo da república romana,
Cícero, teceu elogios ao Governo misto. Depois de
mencionar as três formas usuais de Governo, afirma
que a melhor, de longe, é a monárquica, mas que
ainda superior a ela é a equilibradamente resultante de
todas as três. Cícero usa duas expressões em
hendíadis, "aequatum et temperatum", onde é de notar
esse temperatum, palavra-chave até os nossos dias
para indicar uma forma de Governo no que contrapõe
ao rigor do absolutismo o controle do poder por parte
das forças sociais organizadas. Também para Cícero,
que tem diante dos olhos a república romana, se bem
que em seu último ato (finda um ano depois do
assassinato de César), o valor do Governo misto em
relação a todas as demais formas de Governo está na
estabilidade (firmitudo): "Não há motivo de mudança
onde cada um está firmemente colocado em seu lugar
e não se põe em condições de se precipitar e cair" (De
republica, I, 45).
II. NA IDADE MODERNA. — Desde a antigüidade
clássica até à Idade Contemporânea, passando pela
tardia Idade Média (especialmente depois da
redescoberta da Política de Aristóteles), pelo
humanismo, pela Renascença e pela Idade Moderna, a
idéia de que o Governo misto constitui a melhor
forma de Governo está tão enraizada, que leva os
escritores políticos a apresentarem como modelo os
Estados onde se reconhece qualquer forma de tal
Governo e a proporem reformas constitucionais que
tornem possível transformar em Governos mistos
Estados que jamais adotaram esse modelo ou dele se
afastaram.
Durante séculos, os Estados apresentados como
modelos por sua excepcional estabilidade, por não
haverem estado sujeitos às "mutações" a que estão
habitualmente sujeitos os Estados simples, são a
monarquia inglesa e a república de Veneza, cuja
estabilidade é atribuída à sua natureza de Governos
mistos.
A idéia de que o Estado inglês constitui um
Governo misto é corrente nos escritores políticos
ingleses, ao menos desde que John Fortescue (segunda
metade do século XV) definiu a monarquia inglesa
como Governo misto, servindo-se da expressão de
Santo Tomás, dominium politicum et regale, que
indica uma forma de regime contraposta por um lado
ao dominium regale (ou monarquia absoluta) e, por
outro, ao dominium politicum, ou Governo sujeito às
leis.
GOVERNO MISTO
Na realidade, Santo Tomás falara bem mais clara e
corretamente de Governo misto numa passagem da
Summa theologica, onde, remontando ao livro
segundo da Política de Aristóteles, defende que o
melhor regime é aquele em que todos participam do
poder. E fala de uma "politia bene commixta ex regno,
in quantum unus preest, ex aristocratia, in quantum
multi principantur secundum virtutem, et ex
democratia, id est potestate populi, in quantum ex
popularibus possunt eligi príncipes et ad populum
pertinet electio principum" (I*, II", q. 105, art. 1.°).
Quando, na Inglaterra, durante o século XVII, explode
a controvérsia entre os defensores da primazia do rei e
os defensores da primazia do Parlamento, uns e outros
se apresentam como fautores do Governo misto, tanto
se convertera em communis opinio a tese de que o
Estado inglês era um Estado misto e de que constituía
uma boa forma de Governo, na medida em que havia
conseguido manter em perene equilíbrio a oposição dos
diversos estales. Para os defensores do rei, é exemplar
a interpretação de Carlos I na Answer to the nineteen
propositions (1642), onde se lê: "A experiência e
sabedoria dos nossos antepassados modelaram este
Governo mediante a combinação destas três formas
(monarquia, aristocracia, democracia), de modo que
dessem a este reino... as vantagens de todas as três.
sem os inconvenientes de cada uma delas, a fim de
existir equilíbrio entre os três estales e eles fluírem
vizinhos em seu próprio canal". Da parte oposta, não é
menos exemplar este trecho da Reformation in
England (1641), de John Milton: "Os Governos
melhor constituídos e menos bárbaros tiveram em mira
uma certa combinação das suas características,
participando das várias qualidades de qualquer outro
Estado, de modo que cada parte, no que lhe coubesse,
pudesse manter em comum a estabilidade e a
integridade. . . Não existe Governo civil conhecido,
nem o espartano nem o romano, se bem que ambos
tenham sido elogiados pelo sábio Políbio, mais divina e
harmoniosamente ordenado, mais eqüitativamente
equilibrado pela mão e pela balança da justiça do que
o da nação inglesa, onde, sob a regência de um
monarca livre e hereditário, os homens mais nobres,
ricos e prudentes têm em suas mãos, com a plena
aprovação e sufrágio do povo, a decisão final e
suprema dos assuntos mais importantes".
Os próprios escritores políticos ingleses, ao se
referirem a precedentes famosos (Esparta e Roma),
não tinham esquecido a república de Veneza, cuja
descrição como ideal de Governo misto era devida
particularmente ao De magistratibus et republica
venetorum (1544) de Gaspare Contarini e ao Delia
perfezione della vita política
557
(1579) de Paolo Paruta, bem como aos escritos
políticos do republicano florentino Donato Gianotti,
que apresentara o Governo misto da república de
Veneza como um modelo para a república de
Florença. Contarini, cuja obra se tornara um texto
respeitável, quer para os seus defensores, quer para os
seus opositores (como, por exemplo, Bodin), após
haver comparado a república de Veneza à de Esparta
em virtude da sua característica comum, os Governos
mistos, explicou que o Doge representava a
autoridade régia, o Senado, com o Conselho dos Dez
e o Colégio, os órgãos de uma república dos
optimates, e o Conselho maior o órgão popular do
Estado. Este mesmo conceito é repetido por Paolo
Paruta: "Querendo ordenar um Estado, tão perfeito
quanto possível e longamente duradouro, é necessário
unir estas formas diretas de Governo, de tal modo que
uma venha a corrigir os defeitos da outra" (Opere,
Firenze, Le Monnier, 1852, vol. I, p. 393). Partindo
da idéia de que a melhor república é aquela em que
todos os cidadãos podem satisfazer os seus desejos,
principalmente de liberdade, honra e grandeza,
Gianotti chega à conclusão de que, para "instituir um
Governo numa cidade onde existam tais inclinações, é
preciso pensar em ordená-la de modo que cada uma
das partes alcance o seu desejo: as repúblicas assim
ordenadas se pode dizer que são perfeitas" (Delia
repubblica fiorentina, Liv. I, cap. III).
Em Florença, o modelo do Governo misto contou
com o reconhecimento da autoridade de Maquiavel
que, no capítulo segundo dos Discorsi, repisando em
diversos lugares, quase literalmente, o texto de Políbio,
declarou que todos os Governos simples são
"pestíferos" por sua breve duração, pelo que os
legisladores prudentes, tendo conhecimento deste
defeito, escolheram uma forma de Governo "que desse
participação a todos, julgando-o mais firme e mais
estável, porque um vigia o outro, sendo numa mesma
cidade o principado, os optimates e o Governo
popular". Embora em polêmica com o Maquiavel
político, Francesco Guicciardini se declara em geral
favorável ao Governo misto. Visando em particular a
sua pátria, escreve o Dialogo del reggimento di Firenze
(1526), em que um personagem histórico, Bernardo del
Nero, ao expor a dois amigos, dos quais um é o pai do
próprio Guicciardini, suas idéias sobre a reforma do
Estado, diz que o Governo livre e popular que tem em
mente "tem enorme semelhança com o Governo
veneziano, que, se não me engano, é o mais belo e o
melhor Governo, não só dos nossos tempos, mas ainda
como talvez jamais alguma cidade dos tempos antigos
o tenha tido, porque participa de todas as espécies de
Governos, de um, de poucos e de
558
GOVERNO MISTO
muitos, e é uma mistura de todos, de modo que reuniu
a maior parte dos bens que possui em si qualquer
Governo e evitou a maior parte dos males".
III. Os CRÍTICOS. — O exemplo inglês mostra mais
que qualquer outro argumento que o princípio da
combinação das três formas de Governo como
princípio de bom Governo está historicamente
associado à defesa do Estado moderado contra toda a
forma de Estado absoluto. São, com efeito, os
próprios teóricos do absolutismo que, servindo-se de
vários argumentos históricos e teóricos, atacam a
doutrina tradicional do Governo misto, enquanto num
país como a França, orientada, ao contrário da
Inglaterra, para o absolutismo, invocam o Governo
misto os defensores da monarquia moderada. No
Prohème d'Appien (1510), prefácio à tradução da
história romana de Apiano, Claude de Seyssel
interpreta a monarquia da França como uma espécie de
Governo misto, dado que o poder absoluto do
soberano é freado pela nobreza e pelo terceiro Estado
com suas prerrogativas e liberdades (embora depois,
na obra maior, De la monarchie de la Trance, não
recorra mais ao modelo do Governo misto e use a
expressão monarchie réglée). Também Bernard de
Girard, senhor do Haillan, em seu De l'estat et succez
des affaires de France (1570), aplica à monarquia
francesa o modelo do Governo misto: o rei representa
o princípio monárquico, o Conselho e os funcionários
a aristocracia, e os Estados gerais a democracia.
O primeiro grande ataque à doutrina do Governo
misto vem de Jean Bodin. No capítulo dedicado às
formas de Governo em sua obra, Six livres de la
république (1576), encara esse problema com presteza
e decisão e com uma ampla documentação histórica.
As formas de Estado são três, não mais: monarquia,
aristocracia e democracia, uma vez que o critério
segundo o qual se podem distinguir é a titularidade do
poder soberano e o poder soberano é indivisível. Para
demonstrar a sua tese, Bodin usa essencialmente dois
argumentos. Antes de tudo, o argumento histórico:
Esparta, Roma e Veneza, que a tradição tem como
exemplos de Governos mistos, foram de quando em
quando, ao sabor dos tempos, monarquias,
aristocracias, democracias. Casos extremos, como o
reino da Dinamarca, onde o rei e a nobreza dividem
entre si a soberania, demonstram que, onde a
soberania é dividida, o país não tem paz e o regime
daí resultante mais parece uma corruptela de Estado
que um verdadeiro Estado. Em segundo lugar, um
argumento doutrinai, a que se referirão, para o aprovar
ou criticar, autores posteriores como Vico:
a distinção entre Estado e Governo, hoje diríamos
entre a titularidade da soberania e o seu exercício, pela
qual um Estado monárquico, que continua monárquico
enquanto Estado, pode ser governado democrática ou
aristocraticamente, segundo o rei se sirva de um
número restrito de privilegiados para exercer seu poder
ou confira indiscriminadamente cargos e ofícios aos
humildes e aos grandes, sem estabelecer privilégios
para ninguém. A monarquia aristocrática e a
monarquia democrática não são formas de Governo
misto, são mera e simplesmente formas diferentes de
monarquia. Na esteira de Bodin (citado em Elements
of law natural and politic, 1640, II, 8, 7), também
Hobbes refuta a doutrina do Governo misto, partindo
do mesmo pressuposto da indivisibilidade do poder
soberano, e condena-a ainda com maior força, pois a
considera uma teoria sediciosa que pode ter por
resultado, como aconteceu na Inglaterra, a guerra civil.
É talvez de observar que, ao discorrer sobre a
indivisibilidade do poder, Hobbes tem em vista não só
a divisão entre o rei e o Parlamento, mas também a
divisão entre Estado e Igreja: a unidade do poder tem
de ser garantida, tanto pela união do poder legislativo
com o executivo, quanto pela união do poder temporal
com o espiritual.
Entre os escritores antigos, Tácito já havia negado a
existência do Governo misto, ao afirmar "unum esse
reipublicae corpus et unius animo regendum"; daí que
"cunctas nationes et urbes populus aut primores aut
singuli regunt" (Ann., IV, 33). A Tácito se une Vico
para sustentar que "além destas três formas de Estados
públicos, ordenadas pela natureza dos povos, outras
mais, combinadas por deliberação humana, são mais
para se desejar do céu do que para alguma vez se
conseguir; e, se porventura as houver, não são de
modo algum duráveis" (Scienza nuova seconda, cpv.
1.004). No entanto, Vico, como historiador, tenta
encontrar a razão por que certos regimes do passado
ou mesmo do seu tempo foram interpretados como
Governos mistos. Não recorre à explicação doutrinai de
Bodin, que distingue o Estado do Governo, mas propõe
uma explicação histórica: partindo da realidade de que
"mudando-se os homens, mantém por algum tempo a
impressão do seu hábito antigo", observa que, na fase
ulterior de uma forma de Governo, não desaparecem
nunca modos e formas do Governo da fase
precedente. Por isso, se não pode haver Estados
mistos no sentido próprio da palavra, há, na realidade.
Estados onde as formas subseqüentes se acham
"misturadas" com as formas precedentes que ainda
sobrevivem, o que acontece em Roma, depois que a
república se transformou de aristocrática em popular e
depois
GOVERNO MISTO
que a república popular se converteu em principado.
Se houvesse Governos mistos verdadeiros e
autênticos, eles seriam "monstros". A comparação dos
Governos mistos com os monstros já tinha sido feita
por Hobbes, quando a idéia desse Governo lhe
inspirou a imagem do homem "que tem outro homem
saindo do seu flanco" (Leviathan, c. XXIX).
IV. GOVERNO MISTO E MONARQUIA CONSTITUCIONAL.
— Não obstante os ataques dos fautores dos Governos
absolutos, o ideal do Governo misto jamais esmoreceu.
Pelo contrário, ele renasceu com a teoria e a prática da
monarquia constitucional, conquanto, por vezes,
inadvertidamente confundido com a doutrina da
separação dos poderes. O fato de se encontrar em
Montesquieu, tanto a defesa da separação dos poderes,
quanto a da monarquia moderada (sempre entendida
como uma espécie de Governo misto), não deve induzir
a identificar, como tantas vezes se tem feito, os dois
problemas. Em seu significado original, o Governo
misto é o resultado da distribuição do poder entre as
diversas forças sociais, cuja colaboração há de servir
para manter a concórdia necessária à convivência civil.
A separação dos poderes resulta, em vez disso, da
distribuição das três funções principais do Estado,
legislativa, executiva e judiciária, por órgãos diversos.
Poderia haver uma certa correspondência entre ambas
as concepções, se cada força social fosse titular de
uma função específica, se, por outras palavras,
houvesse correspondência entre os sujeitos a quem é
distribuído o poder e as funções exigidos aos
detentores do poder político, ou seja, se se pudessem
estabelecer estas três equações: rei — poder executivo,
aristocracia = poder judiciário, democracia = poder
legislativo. Mas tal correspondência não é de modo
algum o escopo do Governo misto, que visa não tanto
a evitar a concentração das diversas funções do Estado
numa só mão, mas à participação das diversas forças
sociais, com seus respectivos órgãos, no exercício do
poder, particularmente na função principal que é a
legislativa. A confusão pode nascer e tem nascido de
fato de ambas haverem sido excogitadas para resolver
um problema de equilíbrio. Mas um é o equilíbrio das
forças sociais que tem em vista o Governo misto e
outro o das funções e seu respectivo exercício a que
mira a separação dos poderes. A melhor prova da sua
diversidade pode ser encontrada na diferença dos
respectivos opostos: a negação do Governo moderado
é o despotismo; a negação do Governo misto são as
várias formas de Governo simples, que não são
necessariamente despóticas.
559
A mais autorizada interpretação da monarquia
constitucional como Governo misto se encontra na
Filosofia do direito de Hegel. A crítica que Hegel faz
à distinção clássica das formas de Governo, baseada
num elemento extrínseco como o número dos
governantes e incapaz de compreender a
complexidade da monarquia moderna e as suas
articulações internas, se segue a afirmação de que as
três formas antigas "se reduziram", na monarquia
constitucional, a estes seus momentos: "O monarca é
um; com o poder governativo intervém alguns poucos;
com o poder legislativo, a maioria em geral" (§ 273). A
Hegel dá melhor resultado que aos escritores
precedentes a identificação da monarquia moderada
com o Governo misto, porque os três poderes
constitucionais a que se refere não são os típicos da
doutrina da separação dos poderes e falta ali, como
cada um pode ver, o poder judiciário. Embora neste
contexto Hegel não use a expressão Governo misto, a
idéia é clara. Aliás, num curso posterior realizado nos
anos de 1824-1825), na passagem correspondente,
Hegel explica que a "Constituição racional" (por
"Constituição racional" entende a Constituição da
monarquia constitucional) é a "Constituição mista".
Entre os constitucionalistas contemporâneos, esta
mesma interpretação foi aceita por Carl Schmitt, na
Verfassungslehre (1928). Para Schmitt, a Constituição
do Estado de direito burguês é sempre uma
Constituição mista, porque nela existem, unidos e
misturados entre si, diversos princípios e elementos
formais, ou então o princípio monárquico, o
aristocrático e o democrático. Como tal, reflete uma
antiga tradição segundo a qual o ordenamento estatal
ideal repousa numa união e mistura (Verbindung und
Mischung) de diversos princípios.
Sem se referir particularmente à monarquia
constitucional, Gaetano Mosca, que, de resto,
demonstrou sua fidelidade a essa mesma monarquia
no momento em que sobre o regime liberal italiano se
abateu o machado do fascismo, teceu repetidas vezes
elogios ao Governo misto em suas obras políticas. Na
segunda edição dos Elementi di scienza política
,1923), depois de ter citado os clássicos do Governo
misto, atribui aos "grandes pensadores" a idéia comum
de que "a solidez das instituições políticas depende de
uma oportuna fusão e mistura de princípios e
tendências diversos, mas constantes, que atuam
inevitavelmente em todos os organismos políticos" (p.
144). Nas páginas finais da Storia delle dottrine
politiche, quase à guisa de conclusão da longa
exposição histórica, afirma: "Do estudo objetivo da
história, talvez se possa tirar a conclusão de que os
560
GREVE
melhores regimes, ou seja, os que tiveram maior
duração e por longo tempo souberam evitar as crises
violentas que, de vez em quando, como aconteceu
com a queda do Império romano, levaram de novo a
humanidade à barbárie, são os regimes mistos" (p.
307).
V. AS RAZÕES VÁLIDAS DO GOVERNO
MISTO. — Das palavras de Mosca se pode deduzir a
razão fundamental pela qual a ideologia do Governo
misto obteve tanto sucesso. A vantagem principal que
o Governo misto garante a uma coletividade é a
estabilidade. Naturalmente, a estabilidade é tida como
uma característica positiva (e, inversamente, a
mudança como uma característica negativa) numa
concepção da história como a dos gregos, a começar
por Platão, onde a mudança das formas de Governo é
entendida como passagem de uma forma de Governo
boa a uma forma de Governo má, através de uma
contínua degradação, comparada com a corrupção das
coisas da natureza. Um dos maiores argumentos a
favor dos Governos mistos consistiu sempre em
apresentar exemplos de Governos de longa duração, o
reino de Esparta, a república romana, a monarquia
inglesa, a república de Veneza, e em mostrar que essa
longa duração foi justamente devida à sua natureza de
Governos mistos.
Mas o argumento da estabilidade não é o único.
Pode-se aduzir outros dois. Pode-se efetivamente
sustentar que o Governo misto obedece a um
princípio de justiça, ao princípio segundo o qual é
justo dar a cada um o que é seu, se o ponto de vista é
o de quem pede justiça, ou é justo que cada um faça o
que lhe concerne, se o ponto de vista é o de quem
outorga justiça. Numa linguagem de hoje se poderia
dizer que o Governo misto obedece ao critério de uma
justa distribuição do poder entre as diversas forças
sociais, a fim de que uma não prevarique sobre a
outra. Em segundo lugar, se sustentou, e é este o
argumento que acabou por prevalecer, que o Governo
misto, instituindo um regime fundado no ajustamento
das forças sociais, permite o controle recíproco dos
vários poderes, impedindo assim o abuso do poder,
que é o pior dentre os males que podem corromper
um Estado. Este conceito do equilíbrio dos poderes já
havia sido expresso com a máxima clareza por
Políbio, que, também por este motivo, pode com justa
razão ser considerado o verdadeiro e autêntico
inspirador da doutrina, ao falar de Esparta e de Roma,
como se disse no § 1. Foi esta interpretação sobretudo
que garantiu a vitalidade da doutrina e permitiu a sua
utilização por parte de autores modernos e
contemporâneos.
BIBLIOGRAFIA. - F. BATTAGLIA, La dottrina della
Stato misto nei politici fiorentini del Rinascimento, in.
"Riv. int. fil. dir", VII, 1927, pp. 286-304; G. CADONI,
Libertà republicana e governo misto in Machiavelli. in
"Riv. int. fil. dir", XXXIX, 1962, pp. 462-84; L.
D'AVACK, I nodi del potere. La teoria del governo
misto nell'Inghilterra del Seicento. Giuffrè, Milano
1979; R. DE MATTEI, La fortuna della formula del
governo misto nel dottrinarismo político italiano del
Cinque e Seicento. in "Riv. int. fil. dir", L, 1973. pp.
633-56; K. FRITZ, The Theory of the Mixed
Constitution in Antiquity. Arno Press. New York,
1975.
[NORBERTO BOBBIO]
Governos Social-Democráticos.
— V. Social-Democráticos, Governos.
Greve.
I. GREVE E CONFLITO INDUSTRIAL. — A Greve é a
forma mais difundida através da qual se expressa o
conflito industrial organizado (V. CONFLITO
INDUSTRIAL). Diferentemente de outras formas de
conflito de trabalho ou, mais em geral, de luta
operária, a Greve consiste na abstenção organizada do
trabalho de um grupo mais ou menos extenso de
trabalhadores.
Os dois elementos da definição que delimitam as
fronteiras do fenômeno são: o sujeito e a modalidade
da ação conflitual. O sujeito pode variar, desde a
inteira força de trabalho, organizado e dirigido por um
sindicato, até um pequeno grupo de trabalhadores
(uma equipe, um departamento, um escritório), guiado
por um líder informal; mas nunca pode ser só um
indivíduo, como no caso do absenteísmo, atrasos ou
outras formas de "desafeição ao trabalho". A Greve é
sempre uma ação coletiva que exige um grau, embora
mínimo, de organização. Além disso, esta ação
assume sempre a forma de uma abstenção do trabalho,
acompanhada ou não por outras formas de luta
(piquetes, passeatas, etc...). As ações conflituais
realizadas no lugar do trabalho, sem interrupção da
atividade de trabalho (sabotagem, diminuição da
produção, etc), embora coletivas e organizadas, não
são consideradas Greve propriamente dita.
Estes limites esclarecem que a Greve é apenas uma
das formas possíveis, e coletivamente praticadas, do
conflito industrial. Todavia, tem sido a forma
historicamente prevalecente. "Retirar-se do trabalho",
é, de fato, a ameaça mais direta e óbvia que os
trabalhadores podem usar na negociação com os
empregadores, que se verifica na
GREVE
contratação coletiva (Crouch e Pizzorno, 1977, 40733). A Greve acarreta um dano efetivo à contraparte,
porque bloqueia a produção (diversamente de outras
formas "expressivas" de protesto), embora sem
prejudicar normalmente as instalações e, portanto, a
continuidade da ocupação (como no caso da
sabotagem). Diversamente da aplicação da "operaçãotartaruga" à produção e de outras formas semelhantes,
a Greve exige somente um mínimo de organização
enquanto provoca um impacto notável sobre a opinião
pública e sobre as autoridades do Governo.
Além de sua eficácia no processo da contratação
coletiva, a Greve tem sido freqüentemente considerada
uma arma essencial na luta de classe. A Greve, de fato,
não é somente uma prova de força no confronto com o
adversário. Antes de tudo, pode ser um fator de
identidade, um elemento que permite ao grupo dos
trabalhadores, que participam da Greve, se
reconhecerem como classe em oposição a uma outra.
Além disso, tem sido e é um recurso importante
também no conflito político. No fim do século XIX e
no início do século XX, as massas operárias
procuravam através da Greve conseguir, não somente
um melhoramento das próprias condições de salário e
de trabalho, mas também a extensão do sufrágio. Ainda
hoje muitos movimentos operários se servem da Greve
(especialmente a Greve geral) para impor ao Estado a
adoção de políticas econômicas e sociais ou de leis a
eles favoráveis.
II. TIPOS DE GREVE. — Se estes aspectos
determinaram a prevalência histórica da Greve sobre
outros tipos de conflitos, suas características, porém,
mudaram no decorrer do tempo. Mudaram os sujeitos,
isto é, a extensão e a organização do grupo dos
trabalhadores que dá vida à greve, assim como
mudaram os objetivos e os destinatários da mesma.
Nos sistemas de relações industriais maduras (V.
RELAÇÕES INDUSTRIAIS), em que um percentual
relevante de toda a força-trabalho na indústria e nos
serviços — e não somente os núcleos centrais da
classe operária — é sindicalizada e em que o sindicato
é reconhecido pelos empresários e pelos Governos
como legítimo representante dos trabalhadores e
partner na contratação, assiste-se freqüentemente a um
desdobramento do fenômeno Greve. De um lado,
grandes greves organizadas pelos sindicatos em torno
de temas ligados às suas estratégias de longo período
(ocupação, direitos sindicais, etc); de outro lado,
microconflitualidade informalmente organizada por
parte de cada um dos grupos de trabalhadores, sobre
questões estritamente relacionadas com a própria
posição — de salário ou de trabalho — relativa. Entre
as Greves
561
organizadas pelos sindicatos, ao lado dos temas
contratuais crescem os temas dirigidos, direta ou
indiretamente, aos poderes públicos, para que
intervenham
com
decisões
favoráveis
aos
trabalhadores. A Greve adquire, então, o sentido de
uma demonstração de força, mais do que sentido de
uma ação voltada a provocar um prejuízo efetivo ao
adversário. Também as Greves dirigidas contra os
empresários podem ser diferenciadas em Greves
"instrumentais", isto é, usadas efetivamente para
impor à contraparte as próprias reivindicações na
contratação coletiva, e Greves "demonstrativas" ou
simbólicas, voltadas para a garantia das bases e para o
fortalecimento da adesão.
A microconflitualidade encontra, por sua vez, razão
de ser na fragmentação das situações operárias e no
diferente poder contratual dos vários grupos de
trabalhadores, além de buscar-se na institucionalização
do sindicato, que não lhe permite representar
adequadamente todas as reivindicações da base. Nestes
casos, trata-se freqüentemente de Greves de "lance" ou
de "imitação" de situações relativamente privilegiadas.
Às vezes, trata-se de Greves de "protesto" contra
certas condições consideradas insustentáveis, ou, até,
contra o sindicato que não representa eficazmente
certos interesses particulares.
III. O ANDAMENTO DAS GREVES E SUAS
CAUSAS. — O andamento descontínuo das Greves
no tempo constituiu sempre um tema de pesquisa
importante nas ciências sociais, além de ser um
desafio para qualquer visão simplista do
desenvolvimento unilinear do conflito (para a sua
institucionalização ou, pelo contrário, para uma saída
revolucionária).
Em muitos países capitalistas, as Greves se têm
sucedido "em cadeia" (Sharter e Tilly, 1974) ou "em
ciclos" (Crouch e Pizzorno, 1977), mais do que
através de mudanças graduais. Isto, quer do ponto de
vista quantitativo, quer do ponto de vista das
características da Greve (objetivos, formas de luta,
relações entre base e sindicato). As pesquisas que
visaram explicar o manifestar-se de ciclos de lutas
operárias com particulares características radicais
chegaram a interpretações um tanto elaboradas.
Crucial na explicação é a formação periódica de novas
"identidades coletivas", que tende a atingir os modelos
existentes de mediação (Crouch e Pizzorno, 1977, 40733; Pizzorno, Reyneri, Regini, Regalia, 1978).
Quando, porém, se tentou explicar o andamento
quantitativo das Greves em longos períodos históricos
ou em diversos contextos (nacionais ou setoriais),
recorreu-se, de cada vez, aos diferentes tipos de
variáveis como possíveis fatores de
562
GRUPOS DE PRESSÃO
explicação. Variáveis econômicas, tais como o índice
de desemprego, o de inflação e a relação entre
salários e rendas, foram consideradas, por muito
tempo, os principais fatores que explicam o
andamento descontínuo das greves (Rees, 1952;
Ashenfelter e Johnson, 1969). A estas, mais
recentemente, se acrescentaram variáveis políticas ou
sindicais, tais como a presença de partidos da classe
operária do Governo, o grau de sindicalização e o
grau de concentração das relações industriais (Hibbs,
1976; Korpi e Shalev, 1980). Além da
descontinuidade no tempo, foi estudada também a que
existe entre os diversos setores produtivos (Kerr e
Siegel, 1954; Shorey, 1977); a atenção, dessa forma,
foi voltada também para variáveis relativas à estrutura
produtiva e da força-trabalho. Não obstante o grande
volume de pesquisa empírica, estes estudos
quantitativos chegam só parcialmente a conclusões
satisfatórias, quer no plano estatístico, quer no
interpretativo (Cella, 1979: 583-627).
Na origem destas dificuldades parece estar a
incerteza sobre a própria conceituação do fenômeno
Greve. De acordo com uma importante linha teórica, a
Greve é essencialmente uma forma de "protesto"
operário; ela, portanto, seria explicada através das
condições que provocam ou impedem o protesto. Uma
outra linha teórica, hoje prevalecente na literatura,
considera, porém, a greve como um "instrumento
tático" que os sindicatos usam se e quando lhes é
conveniente; ela se explicaria, portanto, através
daqueles fatores que fazem aumentar a sua utilidade
ou diminuir os riscos que pode comportar para as
organizações sindicais. Voltando à tipologia das
Greves analisada no parágrafo anterior, é fácil reparar
que nos sistemas de relações industriais maduras estes
dois aspectos estão presentes. As limitações
interpretativas das pesquisas sobre o andamento das
greves estão provavelmente na heterogeneidade do
fenômeno que pretendem explicar, posto que
fenômenos sociais diferentes exigem também tipos
diferentes de explicação.
BIBLIOGRAFIA - O. ASHENFELTER e G. JOHNSON,
Bargaining theory, trade unions and industrial strike
activity. in "American economic review", 40. 1969; Il
movimento degli scioperi nel XX secolo. ao cuidado de
G. CELLA. Il Mulino, Bologna 1979; Conflitti in
Europa, ao cuidado de C. CROUCH e A. PIZZORNO,
Etas libri. Milano 1977; D HIBBS. Industrial Conflict in
Advanced Industrial Societies. •American Political
Science Review", LXX/4, 1976; R. HYMAN, Strikes.
Fontana. London 1972; C. KERR e J. SIEGEL, The interindustry propensity to strike. in Industrial Conflict. ao
cuidado de A. KORNHAUSER, R. DUBIN e A. Ross,
McGraw-Hill. New York 1954; W. KORPI e M.
SHALEV, Strikes, Power and politics in the western
nations, 1900-1976, in Political Power and Social
Theory. ao cuidado de M. ZEITLIN, JAI PRESS.
GREENWICH, Conn. 1980, vol. I; A. PIZZORNO, E.
REVNERI, M. REGINI e I. REGALIA, Lotte operate e
sindacato; il ciclo 1968-1972 in Italia, Il Mulino.
Bologna 1978; A. REES, Industrial conflict and business
fluctuations. "Journal of political economy", 60/5,
1952; J. SHOREY, An inter-Industry analysis of strike
frequency, "Economica", 43, 1977; E. SHORTER e C.
TILLY, Strikes in France. 1830-1968, Cambridge
University Press. London, 1974.
[MARINO REGINI]
Grupos de Pressão.
I. TEORIA DOS GRUPOS DE PRESSÃO. — É costume
começar a discussão sobre grupos de interesse ou de
pressão partindo da chamada teoria dos grupos, na
formulação que lhe foi dada por Arthur Bentley, na
obra The process of government (1908), retomada
depois por David Truman em The governmental
process (1951), onde muitos capítulos são dedicados
especificamente, e não por acaso, aos grupos de
interesse. Tudo somado, é inteiramente justificável
esta referência, uma vez que Bentley procurava,
exatamente com sua exposição polêmica, chamar a
atenção e o interesse dos politólogos das instituições
jurídico-formais para as atividades informais
desenvolvidas por vários grupos da sociedade. E é
exatamente como tentativa de provocar o rompimento
do predomínio das disciplinas jurídicas e
parafilosóficas no estudo dos fenômenos políticos e de
propor uma análise descritiva e empírica — embora
apenas dentro de um critério restrito — que é
compreensível a sua afirmação, de que a grande
função "do estudo de qualquer forma da vida social é
a análise destes grupos. Quando os grupos são
devidamente apresentados, tudo é apresentado, e, se
digo tudo, entendo tudo" (208-09).
Outras tendências intelectuais levaram a uma
análise da atividade política em termos de atividades
de grupos. Havia, antes de tudo, a reação dos
pluralistas ingleses — Figgis e Maitland, G.D.H. Coli
e Laski — e dos alemães, sobretudo de Gierke, contra
a teoria monística do Estado como única organização
autorizada a pedir obediência e obediência absoluta
(teoria proposta na Inglaterra por Austin e na
Alemanha exemplificada pela ação de Bismarck). Em
segundo lugar, sociólogos europeus, como
Gumplowicz, Simmel e Ratzenhofer, tiveram parte
notável no esforço de compreender e explicar os
processos sociais por meio da categoria analítica do
grupo. É nestas
GRUPOS DE PRESSÃO
duas tendências que se insere a obra de Bentley que,
influenciado por Dewey, procura superar a reificação
das categorias jurídicas, políticas e psicológicas
predominantes no início do século.
A primeira observação, para constituirmos um ponto
de partida para uma análise da teoria dos grupos, é que
Bentley entendia seu estudo, não tanto como a
elaboração de uma teoria verdadeira, mas como uma
tentativa de construir um instrumento analítico. E, com
efeito, de teoria não se pode falar propriamente, já que,
reduzida ao essencial, a teoria dos grupos não diz
senão que "a política é o processo por meio do qual os
valores sociais são indicados imperativamente; este é
feito por meio de decisões; as decisões são produzidas
por atividades; cada atividade não está separada das
outras, mas essa massa de atividades tem tendência
comum a respeito das decisões; esta massa de
atividades são os grupos; assim, a luta entre grupos
(ou interesses) determina o tipo de decisões que
devem ser tomadas" (Ekstein e Apter, 1963, 391).
Esta formulação é falha de atributos próprios de
uma teoria. Não especifica as relações entre as
variáveis, não indica relações entre causa e efeito, não
coloca em correspondência relações formais e
fenômenos reais e, enfim, não é falsificável.
Finalmente, afirma que toda atividade política se reduz
a uma luta entre grupos e, uma vez que a definição de
grupo é tão vasta que é onicompreensiva e identificável
com a definição de atividade, esta afirmação torna-se
tautológica. O grupo é uma massa de atividade, um
grupo político é uma massa de atividades que tendem
numa direção política comum (um grupo não é um
conjunto de indivíduos que interagem, como quer a
definição sociológica mais difundida); um interesse
existe quando se produzem certas atividades tendentes
a satisfazê-lo; assim também os indivíduos, as
instituições e as idéias estão reduzidos a grupos, cujas
interações terminam por produzir as ações
governamentais. Assim sendo, porém, desaparece toda
a distinção entre os tipos de grupos presentes numa
sociedade, primários e secundários, formais e
informais, voluntários ou não, de tal modo que não é
possível avaliar a incidência dos vários grupos sobre o
processo político e sobre a distribuição dos valores
sociais e os grupos mais complexos e formalmente
organizados, como o Governo, a burocracia e o
exército são colocados no mesmo plano que os outros
grupos.
Mas Truman vai mais além quando fala de "grupos
potenciais" — distinção que Bentley tinha adotado
quando falou de underlying groups e de
representative groups — que são atitudes de grupos,
interesses largamente difundidos na
563
sociedade, que incidem sobre o processo político
mesmo sem estarem organizados formalmente.
Graças a este artifício, Truman consegue dar conta
das regras de jogo e dos procedimentos de uma certa
sociedade, do sistema de crenças, catalogando-as na
categoria de grupos potenciais. A crítica mais quente a
esta exposição é que, para além da sua não
falsificabilidade, a realidade política não pode ser
reduzida sem resíduo a um paralelograma de forças,
constituído por grupos de interesses, e os indivíduos
não podem ser considerados protagonistas efetivos dos
processos políticos, só enquanto membros de grupos
mais ou menos organizados. Da mesma forma, os
governantes não podem ser considerados simples
árbitros de um conflito entre grupos e órgãos de
registro e de ratificação dos êxitos destes conflitos.
Por causa do defeito de uma série de definições
vagas, aproximativas, genéricas, quando não
tautológicas, dos conceitos-chaves de grupo, interesse e
atividade, que nem os discípulos mais devotos e
preparados souberam remediar, a teoria dos grupos
não pode aspirar legitimamente ao status de teoria
geral da política. Em sua forma menos ambiciosa,
todavia, ela atraiu e despertou a atenção sobre a
análise das forças em jogo na atividade política, e em
particular sobre a interação dos grupos semipolíticos
que procuram obter decisões favoráveis dos grupos
governamentais organizados e institucionalizados,
despertando o interesse dos estudiosos para a
atividade dos Grupos de pressão, e permitiu levantar
algumas questões significativas concernentes à sua
presença, importância, intensidade e âmbito de
atividades e às condições que favorecem ou impedem
seu sucesso.
II. GRUPOS DE INTERESSE, DE PRESSÃO, LOBBYING E
— O primeiro e o mais importante dos
problemas que se coloca neste momento é o da
distinção entre expressões que são comumente usadas
a modo de intercâmbio, a saber: grupos de interesse,
Grupos de pressão e lobbying (ou lobby). Em segundo
lugar, é necessário distinguir entre Grupos de pressão
e partidos e analisar as relações entre os grupos e os
partidos. Desembaracemo-nos, antes de mais nada, da
expressão lobbying. Como indica a própria expressão,
trata-se do corredor dos edifícios parlamentares e do
ingresso dos grandes hotéis, onde freqüentemente
residem os parlamentares. Trata-se de uma atividade,
ou melhor, de um processo, mais do que de uma
organização. É o processo por meio do qual os
representantes de grupos de interesses, agindo como
intermediários, levam ao conhecimento dos
legisladores ou dos
PARTIDOS.
564
GRUPOS DE PRESSÃO
decision-makers os desejos de seus grupos. Lobbying
é portanto e sobretudo uma transmissão de mensagens
do Grupo de pressão aos decision-makers, por meio
de representantes especializados (em alguns casos,
como nos Estados Unidos, legalmente autorizados),
que podem ou não fazer uso da ameaça de sanções.
Grupo de interesse é a expressão mais difundida das
três ora em exame, e sua definição mais explícita se
acha em Truman, para o qual grupo de interesse é
"qualquer grupo que, à base de um ou vários
comportamentos de participação, leva adiante certas
reivindicações em relação a outros grupos sociais,
com o fim de instaurar, manter ou ampliar formas de
comportamento que são inerentes às atitudes
condivididas". Esta definição sofre porém de três
inconvenientes: de um lado, os vários autores que a
usam terminam por fazer de cada erva um feixe,
tornando muito genérica a noção de interesse, e por
isso analiticamente inservível, de tal modo que,
praticamente, cada grupo crescente numa sociedade se
torna um grupo de interesse; por outro lado, há, em
outros autores, a tendência a reduzir inscônscia mas
significativamente todo interesse a um interesse
meramente econômico, deixando de lado outros
interesses presentes e organizados, como os interesses
culturais, religiosos e outros, enfim, esta definição não
nos permite dizer nada sobre as modalidades de
interação entre os vários grupos presentes na
sociedade e também sobre o modo preciso em que os
mesmos procuram fazei prevalecer seus interesses.
Bentley não tinha colocado este problema, pois que,
antes de tudo, considerava o grupo como uma
categoria analítica e não concreta e, em segundo lugar,
identificava o interesse com a atividade. Fazendo
assim dava como descontado que todo interesse se
exterioriza em formas de atividades, já que podem
existir interesses não ativados. Truman procura
superar estas objeções usando a expressão grupos de
interesse político, mas também ela não é satisfatória na
medida em que interesses não políticos podem levar à
necessidade de pesquisa de decisões políticas
favoráveis, com o fim de se adotar, manter ou ampliar.
Resta portanto a expressão Grupos de pressão. Ela
indica, ao mesmo tempo, a existência de uma
organização formal e a modalidade de ação do
próprio grupo em vista da consecução de seus fins: a
pressão. Entendemos por pressão a atividade de um
conjunto de indivíduos que, unidos por motivações
comuns, buscam, através do uso de sanções ou da
ameaça de uso delas, influenciar sobre decisões que
são tomadas pelo poder político, seja a fim de mudar a
distribuição prevalente de bens, serviços, honras e
oportunidades,
seja a fim de conservá-la frente às ameaças de
intervenção de outros grupos ou do próprio poder
político. Pressão, é, portanto, não tanto como pensam
alguns autores, a possibilidade de obter acesso ao
poder político, mas a possibilidade de recorrer a
sanções negativas (punições) ou positivas (prêmios), a
fim de assegurar a determinação imperativa dos valores
sociais através do poder político. Depois de
distinguirmos as expressões lobbying, grupos de
interesse e Grupos de pressão, resta o problema mais
delicado que é o de diferenciar os Grupos de pressão
dos partidos políticos.
Se aderirmos à teoria dos grupos, torna-se difícil,
para não dizer impossível, efetuar esta distinção, que é
de fundamental importância. A definição de grupos de
interesse dada por Truman e analisada mais acima não
permite nenhum passo em frente, pois que tanto os
grupos de interesse quanto os partidos aparecem
ambos como species do genus grupo. As primeiras
tentativas de diferenciação tiveram em mira
características que não estavam em grau de distinguir
claramente os Grupos de pressão dos partidos
políticos, mas serviam mais para distinguir, a partir de
dentro, as duas categorias. Não pode servir, para este
fim, a continuidade ou a intermitência da atividade: a
este propósito foi já notado que, pelo menos no
contexto anglo-saxônico, "comparadas à intermitência
das atividades partidárias e ao caráter abstrato e à
generalidade da propaganda dos partidos, as
campanhas dos grupos aparecem concretas e
constantes" (Ehrmann, 1968, 487). Também não pode
servir para diferenciar a dimensão da organização,
porque muitos partidos são bem menores do que
muitos Grupos de pressão — pensemos não apenas
nas confederações industriais mas também nos
próprios sindicatos —, nem o âmbito das atividades
enquanto existem Grupos de pressão de caráter
nacional e partidos apenas locais ou regionais, nem a
finalidade enquanto Grupos de pressão e partidos em
conjunto se vangloriam da finalidade de caráter geral,
nem, enfim, a articulação dos interesses como função
própria dos Grupos de pressão e a agregação dos
interesses como função específica dos partidos
políticos.
Mas, enquanto para todas as dimensões precedentes
é fácil especificar linhas de continuidade (continua),
que vão do máximo de persistência ao mínimo de
atividade, do máximo ao mínimo de organização, e
assim por diante, a articulação e a agregação de
interesses parecem, ao menos, em princípio, fornecer
um critério adequado de diferenciação. Mas não é
bem assim. Se, na verdade, por articulação de
interesses entendermos "o processo através do qual os
indivíduos e o;
GRUPOS DE PRESSÃO
grupos propõem questões às estruturas de decisões
políticas", não há dúvida de que este processo pode
ser iniciado e controlado indiferentemente pelos
Grupos de pressão e pelos partidos e que a linha
distintiva terá caráter quantitativo e não qualitativo.
De modo análogo, se por agregação de interesses
entendermos "a conversão das perguntas em opções
políticas alternativas", existem muitos tipos de
partidos que não têm esta função, e há alguns Grupos
de pressão — as gigantescas confederações industriais,
agrícolas e sindicais — que, além da tutela dos
interesses de seus associados, põem-se explicitamente
o objetivo de formular opções políticas alternativas.
Finalmente, mesmo em relação a estas duas funções,
não podemos dizer que os Grupos de pressão sejam a
organização (ou as estruturas) especializada no
cumprimento da função de articulação dos interesses,
assim como não podemos afirmar que os partidos
sejam a estrutura especializada na agregação de
interesses. Poder-se-ia objetar que a distinção entre
Grupos de pressão como articuladores de interesses e
os partidos políticos como agregadores de interesses
existe, pelo menos, a nível genético. Quer dizer, os
Grupos de pressão surgem se esforçando por fazer
frente a um problema imediato, na base de um só
interesse, e depois se transformam para prestar
serviços necessários aos seus associados, enquanto os
partidos, já no momento da sua constituição, se
colocam como representantes de muitos interesses.
Mas também esta distinção não é correta, porque
muitos Grupos de pressão surgiram com a intenção de
defender muitos interesses e, por outro lado, muitos
partidos foram criados na base de um só interesse,
ampliando depois o âmbito de suas atividades. Esta
distinção não poderia responder pelos partidos flash
que vivem o espaço de uma só eleição.
Talvez uma solução para este problema possa ser
encontrada fazendo referências às funções que são
atribuídas comumente aos grupos e aos partidos e
procurando especificar aquelas que só os partidos
desempenham. As funções de transmissão do
questionamento político, de mediação entre sociedade
e Governo, de recrutamento político, de participação
política, e de integração social são todas desenvolvidas,
de uma forma ou de outra, por ambas as estruturas. É
todavia possível especificar pelo menos três funções
que são desenvolvidas apenas pelos partidos e não
pelos Grupos de pressão: a função de competição
eleitoral, a função de gestão direta do poder e talvez a
função de expressão democrática (Fisichella, 1972,
21). Finalmente podemos concluir que são Grupos de
pressão aqueles grupos organizados que, embora tendo,
em mira influenciar sobre a distribuição
565
dos recursos numa sociedade, seja para mantê-la sem
alteração, seja para introduzir mudanças em seu favor,
não participam diretamente no processo eleitoral e por
isso mesmo não estão interessados em gerir in proprio
o poder político, e sim em aproximar-se dele com
facilidade e freqüência e a influenciar as opções.
Antes de passar a examinar quais são os canais de
acesso dos Grupos de pressão ao poder político e os
recursos' que lhes permitem desenvolver um papel
importante no processo político da sociedade,
democrática ou não, é necessário aprofundar as
relações entre Grupos de pressão e partidos. O
primeiro problema diz respeito ao tipo e grau de
interpenetração entre partidos e Grupos de pressão.
Primeiro caso: os Grupos de pressão controlam os
partidos, isto é, não financiam apenas a atividade dos
partidos, mas podem até decidir significativamente
tanto o recrutamento dos dirigentes quanto o tipo de
política a seguir e a atuar. Neste caso, os Grupos de
pressão obstaculam fortemente a capacidade dos
partidos de combinar interesses específicos em
programas que olhem à obtenção de um apoio mais
amplo, e portanto o processo legislativo termina por
dever enfrentar uma série de questões grosseiras e
particulares ou rígidas e vagas. Segundo caso: os
Grupos de pressão são verdadeiras emanações dos
partidos ou pelo menos recebem deles uma sustentação
indispensável. Neste caso, o controle dos partidos
impede os Grupos de pressão de articularem
autonomamente as questões atuais da sociedade, de
representarem interesses específicos e pragmáticos e
termina por transmitir um conteúdo ideológico a toda
a atividade dos Grupos de pressão, impedindo que as
suas questões possam ser colocadas em termos de
contratação e compromissos. O terceiro caso é mais
difundido nos sistemas democráticos: existe identidade
de interesses entre alguns grupos e alguns partidos
sobre temas importantes, mas jamais sobre todos os
temas politicamente relevantes; em todo caso, os
programas dos partidos não são nunca completamente
redutíveis às pressões dos grupos.
O problema das relações entre partidos e grupos é
porém interessante mesmo em outro sentido, quando
se analisa a influência dos sistemas partidários sobre a
atividade dos grupos de pressão. Não há um acordo na
bibliografia especializada sobre o grau de influência
exercido, pelos vários tipos de sistemas partidários,
sobre o número e a intensidade da atividade dos
Grupos de pressão. No caso de sistema de partido
único, quando ainda se pode falar devidamente de
Grupo de pressão (v. infra), os grupos, na maior parte
das vezes, operam dentro do próprio partido e seu
número será tanto mais elevado quanto mais
566
GRUPOS DE PRESSÃO
complexa for a sociedade, e a sua atividade tanto mais
intensa quanto mais aberto o sistema de recrutamento
de partido (que não seja receptivo apenas para uns e
hostil para outros). O desacordo entre os estudiosos
surge a propósito dos sistemas bipartidários e dos
sistemas multipartidários. O contexto bipartidário,
segundo foi sustentado (Key, 1964, 177), encoraja a
formação dos Grupos de pressão, pois que é um
grande risco para os partidos tornarem-se portadores de
interesses muito específicos e excessivamente
caracterizados, desde o momento em que a sua vitória
fica ligada a um apelo mais generalizado. Exatamente
para obter um apelo mais amplo, conforme se afirmou
(Ekstein e Apter, 1963, 414), os partidos nos sistemas
bipartidários são muitas vezes compostos de alas e
frações que se fazem porta-vozes de interesses
particulares ou seccionais, mas não de qualquer tipo.
Portanto, os sistemas bipartidários não desalentam a
constituição dos Grupos de pressão e sim, talvez mais
propriamente, o seu acesso ao partido através dos
canais
internos,
enquanto
nos
sistemas
multipartidários, alguns partidos têm as características
de Grupos de pressão.
Na verdade, esta análise não é, de per si, suficiente
porque, não são apenas as características dos sistemas
partidários a condicionar o número dos Grupos de
pressão e a intensidade das suas atividades, mas
também, de um lado, as características da organização
interna dos vários partidos e, de outro, as
características do funcionamento, da mecânica do
sistema partidário. Num sistema bipartidário, por
exemplo, um Grupo de pressão que tenha relações
privilegiadas com um dos dois partidos se achará
inevitavelmente em desvantagem quando o outro
partido estiver no poder, e deverá necessariamente
buscar outros canais de acesso para os decisionmakers. Se, porém, a disciplina interna dos dois
partidos não é muito rígida, o Grupo de pressão poderá
tentar influenciar um número suficiente de deputados
para conseguir medidas legislativas não inteiramente
desfavoráveis. Num sistema multipartidário em que
exista uma certa alternância de poder, os Grupos de
pressão têm boas possibilidades operacionais, mesmo a
nível dos partidos; daí, ao contrário, como nos
sistemas de partido predominante ou com um partido
de maioria relativa sempre no Governo esta
alternância é inexistente ou quase, os Grupos de
pressão "parentes" do partido em posição de
preeminência terão acesso privilegiado e obterão
decisões favoráveis, enquanto os outros grupos
procurarão, ou influenciar cada um dos representantes
do partido de maioria — que normalmente não é muito
disciplinado nem muito coeso —, ou pressionar
diretamente sobre a administração pública,
procurando, em ambos os casos, não se deixar
facilmente identificar com os partidos de oposição (ou
com outros partidos em geral). Naturalmente, uma
vez que o objetivo dos Grupos de pressão é o de obter
decisões favoráveis, a análise desenvolvida até aqui
seria insuficiente se não se levasse em conta a medida
em que os partidos ocupam diretamente (mesmo por
meio de um controle efetivo sobre o Governo) o
centro do processo decisional e a medida em que a
administração pública intervém na formulação e na
aplicação das decisões políticas.
III. RECURSOS DOS GRUPOS DE PRESSÃO E CANAIS DE
— Passemos agora para uma análise dos
recursos à disposição do Grupo de pressão e sua
estrutura organizativa para vermos as linhas de suas
modalidades de ação e também as suas probabilidades
de sucesso. É evidente que o sucesso do grupo
depende, em grande parte, da organização formal e
informal do sistema em que o grupo opera. Esta
análise deve por isso considerar a atividade do grupo,
entre outras coisas, como uma série de respostas e de
adaptações à estrutura do processo decisional do
sistema. Alguns autores sustentam que um dos índices
mais positivos onde reside o poder real consiste na
especificação de onde os Grupos de pressão aplicam
mais seus recursos. Outros chegam até a afirmar que,
para aumentar suas probabilidades de sucesso, o
Grupo de pressão procura assemelhar-se à organização
que pretende influenciar, assumindo substancialmente
algumas
características
importantes
dessa
organização.
Um exemplo significativo diz respeito ao efeito da
organização centralizada ou descentralizada, unitária
ou federal, do Estado. Se as decisões concernentes a
uma categoria profissional, por ex., a dos professores
não-universitários, forem tomadas, não a nível
nacional ou federal, mas a nível regional e estadual, o
Grupo de pressão representado pelos professores não
será presumivelmente organizado de maneira
centralizada em nível nacional, mas será
descentralizado e mais aguerrido a nível local.
Permanecendo ainda por algum tempo sobre este
terreno, a organização federal do Estado pode produzir
uma ulterior conseqüência, desejada ou inesperada, e
pode criar Grupos de pressão representados pelos
Estados ou pelas regiões. Assim, na Alemanha, os
Läender são autênticos Grupos de pressão, não só
porque têm representação no Bundesrat, onde cada
Land dispõe de um gabinete e de um staff, mas ainda
porque, por exigências constitucionais, todos os
projetos de lei devem ser submetidos ao Bundesrat e
os ministros dos vários Läender
ACESSO.
GRUPOS DE PRESSÃO
gozam das prerrogativas de dirigir-se diretamente ao
Bundestag e às suas comissões para destacar os
interesses em jogo nos vários projetos de lei.
Devemos perguntar-nos agora quais são os fatores
que determinam a forma que assume a atividade dos
Grupos de pressão. Segundo os vários autores, este
problema, essencialmente, diz respeito às interações
entre os Grupos de pressão e os órgãos do Governo —
Governo e administração pública —, mas é evidente
que, de acordo com o ordenamento estatal, a atenção
do estudioso e dos Grupos de pressão deve voltar-se
de vez em quando também, em nome dos próprios
interesses, para os grupos parlamentares e para os
partidos (v. supra). Mais raro é o caso em que os
Grupos de pressão agem simplesmente sobre a opinião
pública por meio de amplas campanhas publicitárias.
Neste caso, fala-se de grupos de promoção e de
propaganda. Também os Grupos de pressão podem
recorrer à sensibilização da opinião pública, mas
apenas como etapa intermediária ou como um dos
modos possíveis através dos quais se desenvolve uma
atividade de pressão.
Qual é a razão, em alguns sistemas políticos, da
atividade dos Grupos de pressão e do seu número
aparecerem notavelmente superiores aos dos outros
sistemas? Uma das condições pelas quais o número
dos grupos é elevado nasce da diferenciação estrutural
da sociedade, mas esta condição não está ainda em
grau de explicar por que os representantes
profissionais e as associações voluntárias criadas pela
modernização se transformam em e operam na
qualidade de Grupos de pressão. Com efeito, é
necessário examinar outros três fatores: o grau e o tipo
de consenso social, a legitimidade dada aos Grupos de
pressão e o funcionamento do sistema partidário.
Sobre este último fator já raciocinamos longamente e,
por isso, vejamos melhor os outros dois.
Se o consenso social é muito limitado nos sistemas
totalitários e nos países novos, é evidente que sempre
que os grupos conseguirem organizar-se procurarão
apoderar-se diretamente do poder e mudar as
modalidades e os procedimentos de exercício mais do
que usufruir destes procedimentos, a fim de obter
decisões favoráveis. A sua politização será, ao mesmo
tempo, mais intensa mas também mais sujeita a crises
radicais — com o conseqüente abandono e a expulsão
da arena política — nos freqüentes casos de insucesso.
0 número dos grupos que entram em competição em
um nível inferior ao do Governo e uma elevada
competição entre grupos são, numa certa medida,
índices do grau de aceitação do sistema — isto é, do
consenso social e da vitalidade do próprio sistema,
mesmo que as
567
características desta competição e o grau de
autonomia do Governo dos vários grupos forneçam
índices talvez mais seguros e mais valiosos como
avaliação da vitalidade e democraticidade do processo
político.
Quanto à legitimidade, é necessário distinguir entre
legitimidade que a cultura política do sistema concede
às atividades de grupos organizados, e que vai de um
mínimo nos sistemas totalitários e nos países novos
até um máximo nos países anglo-saxônicos — embora
com matizes diferentes —, e a legitimidade sobre a
necessidade de chegar a uma organização formal e
também sobre a maneira correta de empreender certas
iniciativas, a coberto dos próprios interesses, além da
legitimidade de como é considerada a liderança e a
condição de membro do próprio grupo (pense-se, em
planos diferentes, que as greves de soldados e
policiais são não apenas ilegítimas mas ilegais e a dos
médicos é muitas vezes considerada ilegítima pelos
próprios médicos).
As diferenças mais significativas entre as várias
formas das atividades dos Grupos de pressão podem
se fazer relacionar, de um lado, com as características
do processo decisional e, de outro, com a cultura
política do sistema em que eles operam. Comecemos
pelo segundo fator. Nos países em que sua atividade
evoca o fantasma do Governo invisível e da
corrupção, ou onde ela é considerada nociva e
ilegítima, os Grupos de pressão tenderão a
desenvolver um trabalho de persuasão e de pressão,
não à luz do sol, mas através de consultas e
negociações mais ou menos secretas, e o locus da sua
atividade não será o Parlamento nem o Governo mas
os ministérios em especial. Esta derivação é, além
disso, respectivamente favorecida e inibida pela
vastidão ou pela estreiteza do âmbito de discrição que
gozam os ministérios na aplicação das leis aprovadas
pelo Parlamento. Na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos, este âmbito de discrição é mais elevado; na
França e na Itália é muito mais restrito, por causa da
proliferação de pequenas leis a respeito dos
regulamentos administrativos.
Um outro fator que influencia a forma de atividade
dos Grupos de pressão é dado pela expansão da esfera
de intervenção governamental. O Estado do bem-estar
e assistencial, com a crescente absorção em torno de
verbas para programas de caráter econômico,
previdenciário e social, ampliou notavelmente a área
em que é necessário fazer pressão sobre o Governo
para obter decisões favoráveis ou impedir decisões
desvantajosas, obrigando os grupos de interesse a se
organizar. Ao mesmo tempo, a esfera da expansão
governamental fez também que órgãos
568
GRUPOS DE PRESSÃO
paraestatais se erguessem na qualidade de Grupos de
pressão.
As probabilidades de sucesso de um Grupo de
pressão são fortemente influenciadas por recursos à
sua disposição. Entre estes recursos, os mais
importantes parece que são: a dimensão (ou entidade
da membership), a riqueza, a qualidade e a amplitude
de conhecimentos, a representatividade. Ao lado
destes recursos, parece, além disso, que as
probabilidades de sucesso de um Grupo de pressão
são notavelmente acrescidas quando os associados e
os líderes da organização provêm de estratos sociais
superiores, quando o grupo procura promover fins
que não estejam em conflito com os valores sociais
dominantes e quando o grupo é considerado legítimo
pelos decision-makers. Nem todos os grupos, porém,
possuem a mesma quantidade de recursos e uma
avaliação real da incidência de recursos em sua posse
e, por conseqüência, táticas de ação aumentam as
probabilidades de sucesso, uma vez que cada um dos
recursos referidos torna o grupo capaz de negociar, a
partir de uma posição mais favorável, com uma
contrapartida a mais.
Por exemplo, o órgão de associados do grupo —
lembremo-nos dos sindicatos dos trabalhadores —
pode por um lado influenciar, de maneira explícita, a
tomada de posição dos partidos que sabem que
dependem dos votos do grupo, mas por outro lado,
mesmo se de modo menos claro, as opções
governamentais, se forem efetuadas em nítida
oposição com as pretensões do grupo, deverão ser
aplicadas com custos muito maiores. A riqueza pode
ser utilizada de vários modos: para corromper tout
court aqueles que devem tomar ou fazer aplicar as
decisões — os parlamentares ou os burocratas —, o
que, se não é freqüente nos sistemas políticos
ocidentais, é também uma possibilidade real — para
desenvolver amplas ações políticas, e, enfim, para
favorecer as campanhas eleitorais de cada deputado.
Os conhecimentos são sobretudo úteis na fase da
elaboração dos projetos de lei — de modo particular
quando a matéria a regulamentar é complexa e a sua
redação é pedida a cada um dos deputados ou a órgãos
ministeriais dotados de um staff não adequadamente
preparado —, na fase de discussão das emendas e na
fase de aplicação das leis, sobretudo quando estas não
são rigidamente formuladas, mas permitem aos
burocratas a elaboração de regulamentos integrativos.
A representatividade pode ser entendida de dois
modos: ou que a liderança do grupo é realmente
expressão da base, isto é, goza da confiança e é
receptiva às suas exigências — representatividade que
é muitas vezes negada aos líderes sindicais —, ou que
o grupo absorve a
grande maioria das unidades que operam no setor.
Assim, os líderes sindicais podem também ser
representativos de suas bases, mas, se em vinte
milhões de trabalhadores os inscritos no sindicato são
apenas cinco milhões, os sindicatos não poderão
considerar-se representativos. Assim, também uma
confederação industrial pode associar uma notável
percentagem de indústrias que operam na sociedade,
mas, se duas ou três indústrias, com o mais elevado
número de associados e com o mais alto faturamento,
não fazem parte dela, a representatividade da
confederação industrial será muito diminuta. O
mesmo raciocínio é válido quando existem
organizações sindicais competindo entre si. Este fato
diminui a percepção da representatividade dos
sindicatos e contemporaneamente aumenta os custos
de decisão, tornando complicadas as operações de
consulta entre Governo, burocracia e sindicatos, e
quase impossíveis as negociações em sentido estrito,
requerendo estas últimas a concentração da autoridade
na outra parte, com o fim de obter o máximo das
decisões adotadas de comum acordo.
Para nada serve a posse de certos recursos se estes
não se fizerem valer dos canais apropriados. A
dimensão da membership e a sua coesão são recursos
que podem ser usados nas competições eleitorais e não
apenas nos casos de pequenas circunscrições ou
municípios com sistema eleitoral e de representação
proporcional. O caso das estreitas ligações entre trade
e unions e partido trabalhista na Inglaterra é muito
conhecido para ser mais uma vez destacado. Para a
Itália, a Federação dos Cultivadores diretos constitui o
caso mais macroscópico do momento, o qual se
vangloria, com toda a probabilidade de razão, de poder
"mandar" ao Parlamento quarenta deputados para a
legislatura (todos da democracia cristã).
A riqueza pareceria, apesar de tudo, o recurso de
menor peso na atividade dos Grupos de pressão, se
não fosse o fato de que, além de poder ser aplicada
para tornar difícil a atuação das preferências
governamentais, a riqueza é muitas vezes a chave para
usufruir de consultores preparados e influentes, para
financiar campanhas eleitorais de partidos inteiros e
de deputados, e para influenciar a opinião pública
através da imprensa e da publicidade. Embora a
riqueza seja considerada o recurso típico das
organizações industriais, acontece freqüentemente que
os próprios sindicatos dos trabalhadores dispõem dela
de uma forma notável, embora nunca ao nível dos
industriais. Enquanto as dimensões da membership, a
coesão do grupo e a sua riqueza podem influenciar, ao
menos teoricamente, apenas os decision-makers, a
posse de conhecimentos e a
GRUPOS DE PRESSÃO
representatividade da organização que delas faz uso
podem influir, numa certa medida, sobre o tipo de
decisões a serem tomadas e sobre o como serão
aplicadas. Estes dois últimos recursos se fazem valer,
normalmente, no confronto entre Governo e
administração pública.
No que diz respeito às relações entre Grupos de
pressão, partidos e administração pública, podem ser
especificadas três importantes categorias: a relação de
parentesco a que o partido se mostra receptivo nos
casos de pressões e sugestões dos grupos da mesma
matriz ideológico-política; a relação de clientela, em
que os ministérios, para funcionar adequadamente,
procuram a colaboração de alguns grupos de pressão
que se tornam, ao mesmo tempo, os interlocutores
privilegiados e os beneficiários máximos das opções
políticas; e a relação de colonização, por meio da qual
alguns grupos de pressão, por costume ou por real
poder de recato, ficam em posição de vetar a
nomeação de importantes funcionários administrativos
ou de impô-la. Em alguns países, sobretudo nos Estados
Unidos, desenvolve-se uma luta análoga pela
nomeação, não só dos vários secretários de
departamento, mas também dos juizes federais, a
favor ou contra os industriais, a favor ou contra os
trabalhadores, a favor ou contra os negros. A
representatividade, enfim, é o recurso que permite um
acesso aos decision-makers. acesso formal ou informal,
institucionalizado — onde existem organismos como o
Conselho Nacional de Economia e do Trabalho — e
que de certo modo legitima também as atividades dos
Grupos de pressão. — tanto mais representativos tanto
mais legítimos, ou pelo menos, tanto menos ilegítimos.
Ainda uma palavra no que diz respeito ao papel dos
organismos consultivos. Em muitos países existem
organismos deste tipo nos quais acham lugar, junto de
peritos não pertencentes a grupos, os próprios
representantes dos grupos mais importantes, as
chamadas associações de cúpula, cuja função, pelo
menos teoricamente, é dupla: estimular o acolhimento
das questões antes destas chegarem à mesa do ministro
e favorecer a contratação e o compromisso antes que
o problema se torne politicamente queimado e penetre
no terreno das controvérsias partidárias. O sucesso
destes organismos está ligado ao funcionamento do
próprio sistema político. Onde as condições de partida
não estão muito longínquas, como na Inglaterra e na
Alemanha, o resultado parece ser satisfatório, mas
onde o conflito é bastante alto, como na Itália e na
França, a conciliação dos interesses não acontece
senão raramente e deixa sempre vencidos e
vencedores.
569
Um tema de pesquisa particularmente interessante é
constituído pela função desenvolvida por um
representante de um Grupo de pressão que seja eleito
membro parlamentar ou nomeado alto funcionário de
um ministério ou juiz (nos Estados Unidos).
Habitualmente, pensa-se que seu comportamento na
nova posição é inspirado fundamentalmente pela sua
origem e que portanto ele se esforce por favorecer de
qualquer maneira e em qualquer circunstância os
interesses do grupo de que provém e ao qual deve sua
nova posição (e ao qual presumivelmente pode dever
até sua permanência na nova posição). Deve ser
aprofundada a medida em que as expectativas do
papel que o representante do Grupo de pressão
conseguiu ocupar, as normas formais e informais, que
regulam sua atividade, influem sobre suas decisões e
provocam tensões não fáceis de resolver e de superar
na base da simples adesão às normas do grupo de que
ele é o representante. A frustrante e fugidia noção de
interesse geral e público pode levar o representante a
uma tomada de posição incompreensível se olharmos
apenas seu background intelectual e sua proveniência.
Como o processo de decisão não pode ser reduzido a
uma simples análise de Grupo de pressão em campo e
ao peso relativo das suas pressões, assim a atividade
dos representantes dos Grupos de pressão que ocupam
posições legislativas, administrativas ou judiciárias
não pode ser determinada a priori com base na sua
simples ligação com o grupo, mas requer uma análise
mais cuidada e atenta aos conflitos entre tensões
diferentes (de representação e de função).
IV. DEMOCRACIA E GRUPOS DE PRESSÃO. — A
discussão das relações entre Grupos de pressão e
democracia pode ser enfrentada de duas maneiras:
antes de tudo, analisando se a atividade dos Grupos de
pressão é possível apenas nos sistemas democráticos e,
em segundo lugar, procurando avaliar o seu papel
dentro dos sistemas democráticos para saber se eles
representam uma degeneração destes sistemas ou se
não desenvolvem funções úteis à manutenção e
adaptação destes sistemas, em que condições e com
que riscos.
Se aderirmos ao group theory of politics, não será
possível negar a existência de grupos até dentro dos
sistemas totalitários, não obstante o monolitismo que a
própria noção totalitarista implica. Mas o que nos
interessa é avaliar a existência de duas condições
essenciais para a atividade dos Grupos de pressão:
antes de tudo, a possibilidade de organização,
possibilidade não apenas garantida por lei, mas
possibilidade real; e, em segundo lugar, a
possibilidade de pressionar, de entrar nas decisões
tomadas pelo sistema.
570
GRUPOS DE PRESSÃO
Pois bem, sem negar a existência de grupos informais
nos sistemas políticos autoritários e totalitários,
estamos habitualmente na presença de grupos que
procuram controlar, como já notamos acima, o
Governo, tratando-se mais de uma luta pelo poder do
que de uma luta por influenciar as decisões a tornar;
em segundo lugar, existe habitualmente nestes
sistemas uma parte de orientação, que pode ser a
burocracia partidária ou a burocracia militar ou a
burocracia tout court, e é escassa a autonomia dos
outros grupos, de tal forma que, em terceiro lugar, a
liberdade de associação é quase sempre unicamente
formal. Finalmente, mesmo que não possamos negar
que o processo de industrialização e de modernização
cria nos sistemas autoritários e nos sistemas totalitários
associações formais e informais (de escritores, de
economistas, de cientistas, de managers, de técnicos),
é todavia inexato denominar estes grupos como
Grupos de pressão enquanto se fundam nas condições
fundamentais de autonomia dos grupos e da
possibilidade efetiva de incidir sobre o processo
decisional.
Por esta razão, os Grupos de pressão, em sentido
estrito, são organizações típicas dos sistemas
democráticos, mas isto não quer dizer que eles sejam,
hodiernamente, inteiramente aceitos. Na verdade, nem
a teoria liberal clássica, que via a atividade política
como a soma dos interesses individuais e sua
composição autônoma, nem a teoria democrática de
Rousseau, em que a vontade geral não era a soma dos
interesses dos cidadãos, mas algo mais transcendente,
deixavam muito espaço aos corpos intermediários da
sociedade entre o cidadão e o Estado. E a polêmica
longamente dirigida contra os partidos não podia
deixar de ter em mira organizações como os Grupos
de pressão que, pela sua própria natureza não
institucionalizada e menos visível, eram ainda mais
difíceis de controlar. E não obstante a famosa
afirmação de Tocqueville que, "a fim de que os
homens permaneçam civis e se tornem tais, é
necessário que, entre eles, a arte de associação se
desenvolva e se aperfeiçoe, na mesma medida em que
aumenta a igualdade de condições", os Grupos de
pressão permaneceram por longo tempo, e
precisamente nos Estados Unidos, aos quais
Tocqueville se referiu, um fenômeno em relação ao
qual deveria ser mantida distância.
Todavia, nos meados do século XX, os Grupos de
pressão aparecem como elemento já provavelmente
ineliminável do processo político dentro dos sistemas
democráticos. A primeira questão a ser colocada é se
estes sistemas funcionariam melhor ou pior sem os
Grupos de pressão. A segunda questão é quais são as
garantias necessárias a fim de que os Grupos de
pressão operem
como instrumento de estabilidade e desenvolvimento
democrático e não como fator de degeneração. Na
maior parte dos casos, para responder à primeira
questão, os sistemas democráticos contemporâneos
funcionariam pior se não existissem os Grupos de
pressão. Na verdade, os partidos tendem atualmente a
concentrar os problemas políticos em larga escala
numa medida não muito freqüente e em ocasiões
limitadas às eleições. Assim fazendo, os partidos
muitas vezes não ficam em sintonia com as novas
questões vigentes na sociedade. Os Grupos de pressão
operam, de uma forma mais constante e mais
específica, e atuam numa tramitação eficaz entre os
grupos sociais organizados e o Governo. Além disso,
eles podem proporcionar uma participação mais
significativa a seus associados do que a atividade que
eles têm no seio do partido. Não se pode avaliar com
segurança se as decisões tomadas por intervenção dos
Grupos de pressão são mais consoantes com o
interesse público ou geral. Primeiro porque é difícil
determinar o que seja interesse público, segundo
porque não dispomos de outro termo de comparação.
Pode-se supor que as decisões tomadas sem a
intervenção dos Grupos de pressão teriam sido menos
custosas em termos de tempo e de complexidade de
consultas, mas mais custosas para aquisição de
informações e de conhecimentos necessários, e muito
mais custosas em termos de aplicação frente à
resistência dos grupos não consultados.
Entre os problemas mais espinhosos, além do de
achar o modo de dar expressão aos interesses não
organizados — porque mais fracos e eleitoralmente
talvez de menor interesse para cortejar: os interesses
dos marginais, dos aposentados, dos pobres, dos
velhos e dos consumidores —, existe o tema da
garantia que a atividade dos Grupos de pressão
requer: antes de tudo, menos segredo e, portanto,
publicação dos balanços e, em segundo lugar,
democracia interna contra a perpetuação de
oligarquias e, portanto, regulamentação explícita das
suas atividades. Parece certo que o aparecimento dos
Grupos de pressão como fator dominante num sistema
político assinala uma grave crise, seja a nível de
administração pública, seja a nível dos órgãos
representativos e talvez mesmo as medidas sugeridas
poderão chegar muito tarde.
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[GIANFRANCO PASQUINO]
Guerra.
I. SIGNIFICADO DA ANÁLISE CIENTÍFICA DA GUERRA.
— A Guerra sempre foi objeto de reflexão da parte do
homem, mas somente há pouco tempo os cientistas
sociais estudam sistematicamente o fenômeno (apesar
de que, desde 1516, Maquiavel tratou do assunto), na
tentativa dele tirar sua mística de força inelutável, que
o caracteriza ab antiquo, e de fazê-lo voltar ao âmbito
dos fenômenos conhecidos e, portanto, controláveis e
previsíveis. Neste sentido, falou-se oportunamente de
"profanação da Guerra" (F. Fornari).
II. DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE GUERRA. — Várias
foram as definições deste conceito. Entre as mais
conhecidas estão as que se inspiram no
571
direito. Os internacionalistas estudaram os critérios
com base nos quais é possível distinguir exatamente o
estado de Guerra do estado de paz, a fim de aplicar as
normas denominadas de direito bélico. Estas
definições, porém, não visam tanto colher a essência
do fenômeno, quanto evidenciar seus determinados
momentos formais, os quais, contudo, vão
desaparecendo cada vez mais na praxe atual. O
resultado é que também os juristas devem prestar
cada vez mais atenção à natureza substancial deste e
de outros fenômenos, quando recorrem ao chamado
princípio da "efetividade".
Do ponto de vista substancial, Q. Wright define a
Guerra, numa primeira análise, como "um violento
contato de entidades distintas mas semelhantes".
Obviamente, esta definição compreende numerosas
facetas, mas está também sujeita a duas críticas: 1)
não consegue exaurir o conceito de Guerra; 2) nem
tudo aquilo que ela compreende é catalogável,
conforme o sentido comum, como Guerra.
A tradição doutrinai tem insistido muito sobre o
fato de que a violência se expressa na Guerra por
meio da "força armada". Isto reduziu bastante os
casos que podemos configurar como Guerra; mas,
mesmo assim, se se ganhou em matéria de precisão,
perdeu-se um pouco o contato com a realidade do
nosso tempo. Hoje, a "força" não se expressa mais
(nem é mais assim concebida) apenas em termos
militares, mas em termos econômicos, psicológicos, e
de outros tipos. Conforme, porém, o direito bélico,
suas normas são hoje aplicáveis somente ao fenômeno
da Guerra entendida como contato violento mediante a
força armada. Todos os outros tipos de Guerra
(Guerra psicológica ou Guerra fria, Guerra
econômica, etc), que têm tanta influência sobre as
relações internacionais atuais, fogem a esta norma
específica.
Tudo isto equivale a dizer que é muito vago o
limite entre a Guerra e a paz e os escritores que se
ocuparam deste assunto têm pleno conhecimento do
problema.
Von Clausewitz, fixando-se na forma exterior das
relações internacionais, sustentou que a Guerra é a
continuação da política por outros meios. Outros
quiseram aprofundar-se mais e declararam que a
essência da Guerra depende do grau de hostilidade
psicológica que caracteriza, num dado tempo, as
relações entre Estados. Também Hobbes afirmou: "the
nature of war consisteth not in actual fighting, but in
the known disposition thereto...". Observando o que
foi dito por Hobbes, verificamos que tudo está
estritamente ligado à conhecida problemática sobre a
paz negativa e a paz positiva. Na tentativa de conciliar
as várias
572
GUERRA
interpretações do fenômeno, Q. Wright concluiu que
a Guerra é a "condição jurídica que permite,
igualmente a dois ou mais grupos hostis, conduzir um
conflito com a força armada". É claro, porém, que
também esta definição, como todas as fórmulas de
compromisso, não é imune a críticas no plano
substancial. Deve-se destacar, contudo, como a
doutrina não foi muito além desta definição, e isto é
uma prova da complexa natureza do fenômeno.
Para Bouthoul, por exemplo, as características
distintivas da Guerra são três: 1) é um fenômeno
coletivo; 2) é luta a mão armada; 3) tem caráter
jurídico. A partir da individualização de tais
elementos, o autor apresenta a seguinte definição de
Guerra: "Luta armada e cruenta entre grupos
organizados", onde a caracterização jurídica, porém,
não aparece em toda a sua evidência.
A análise da doutrina nos leva a concluir que não
existe uma definição unívoca do conceito de Guerra.
Mais próxima da realidade poderia estar uma
definição que considerasse — como propõe alhures Q.
Wright — a análise dos fatos históricos concretos, que
foram chamados "Guerras". Tais fatos se caracterizam
por: a) atividade militar; b) alto grau de tensão na
opinião pública; c) adoção de normas jurídicas
atípicas, referentes às vigentes no período de paz; d)
uma progressiva integração política dentro das
estruturas estatais dos beligerantes. Assim, a Guerra
se configura, ao mesmo tempo, como uma espécie de
conflito, uma espécie de violência, um fenômeno de
psicologia social, uma situação jurídica excepcional e,
finalmente, um processo de coesão interna.
III. CLASSIFICAÇÕES POSSÍVEIS: A GUERRA COMO
INSTRUMENTO POLÍTICO. — São muitos os
critérios segundo os quais pode ser decomposto o
conceito de Guerra. Por exemplo, com referência aos
grupos em luta, a Guerra se classifica como
internacional quando conduzida entre grupos sujeitos
ao ordenamento jurídico internacional; interna ou
civil, se conduzida entre membros de um mesmo
grupo organizado (cidadãos de um mesmo Estado);
colonial, se os grupos con-tendentes são povos de
civilizações diferentes, uma das quais é considerada
inferior à outra. Conforme a intenção ou a psicologia
dos protagonistas, a Guerra se subdivide em ofensiva,
defensiva, preventiva, de nervos.
Com referência ao tipo de armamentos utilizados, a
Guerra pode ser convencional ou nuclear. Finalmente,
com referência às finalidades perseguidas, ela pode ser
limitada (Guerra política, segundo o conceito de
Clausewitz) ou então total
ou absoluta (quando ela é levada às suas
conseqüências extremas).
A Guerra merece uma consideração particular como
instrumento político. Enquanto a Guerra absoluta tem
como objetivo a destruição total do adversário, a
Guerra limitada (a que R. Aron chama de "Guerra
real") é instrumental, ligada a uma finalidade
desejada. A política, "inteligência do Estado
personificado", utiliza-se de dois instrumentos: a
diplomacia e a Guerra. Porém, se os meios são
diferentes, é único o desígnio que guia a ação. A
diplomacia se retira quando seus fins podem ser
conseguidos somente através da força armada, sempre
pronta, no entanto, a fazer sentir o peso de sua ação,
logo que isso seja considerado possível. O objetivo
final não é a anulação completa do contendor, mas
sim a modificação de algumas de suas motivações.
IV. FASES HISTÓRICAS E GUERRA. — A história da
Guerra pode dividir-se em quatro fases históricoqualitativas: a Guerra animal (em sentido psicológico),
a Guerra primitiva (em sentido sociológico), a Guerra
histórica entre grupos civilizados (em sentido
jurídico), a Guerra atual (em sentido tecnológico).
Assim, a definição da Guerra se enriquece cada vez
mais de novas dimensões com o progresso da
civilização, ficando cada vez mais perto da natureza
complexa do fenômeno. Correlativamente, as
interpretações sobre as causas da Guerra são de ordem
psicológica, sociológica, jurídica e tecnológica.
O estudo da Guerra animal é extremamente
instrutivo para uma compreensão cada vez mais clara
dos instintos que movem os homens a combater entre
si. Apesar das semelhanças, são também importantes
as diferenças, que refletem as diferentes funções da
Guerra animal e da Guerra humana. Por exemplo, a
Guerra animal é, sobretudo, uma Guerra entre espécies
diferentes, enquanto a Guerra humana é um conflito
entre membros da mesma espécie. As estatísticas
mostram uma alta correlação entre Guerra e grau de
interdependência entre Estados (Q. Wright, 1942).
Assim,
a primeira
deve ser
interpretada
funcionalmente em termos de espécie, enquanto a
segunda deve ser interpretada funcionalmente em
termos de sociedade e cultura. A primeira assegura o
equilíbrio, a segunda a mudança. Como declara,
porém, Q. Wright, "mesmo quando a Guerra teve
como função assegurar mudanças na civilização, seu
efeito último foi o de produzir oscilações no
surgimento e na queda de Estados e de civilizações.
Toda e qualquer evolução persistente que tenha
acontecido na história humana nunca dependeu da
Guerra, mas do pensamento. Os Alexandres, os
Césares e os Napoleões
GUERRA
produziram oscilações, mas os Aristóteles, os
Arquimedes, os Agostinhos e os Galileus produziram
o progresso".
V. CAUSAS DA GUERRA. — Uma análise das causas
das Guerras pode levar a resultados tanto mais
concretos quanto mais nos referimos a dados
oferecidos pela realidade histórica. O estudo cuidadoso
de um grande número de Guerras reais (Q. Wright)
mostra, como conclusão, que as causas dos conflitos
bélicos podem ser subdivididas em cinco categorias:
causas ideológicas, econômicas, psicológicas, políticas
e jurídicas.
Dizer isto, porém, não é suficiente. O analista deve
indagar mais profundamente, e faz isso a três níveis
distintos (D. V. Edward): o individual, o de grupo
(Estado) e o de sistemas de grupos (sistema
internacional).
A nível individual encontram-se as decisões
conscientes e as motivações inconscientes. A respeito
das primeiras, deve ser aqui assinalado o que afirma
K. Deutsch, isto é, que as Guerras pressupõem sempre
a organização. De um outro ponto de vista, mas na
mesma linha de pensamento, Theodore Abel
afirmava, em 1941, em seu artigo (The element of
decision in the pattern of war. in "American
Sociological Review", 1941, 6) — após uma análise
minuciosa de 25 guerras históricas —, que "a decisão
racional e calculada é conseguida muito antes da
eclosão efetiva das hostilidades... a decisão de iniciar
uma Guerra precede sempre de um a cinco anos o
início das hostilidades".
A respeito das segundas, bastará evocar aqui a
escola psicanalítica e, a título de exemplo, o estudo de
Sigmund Freud e William Bullitt sobre Thomas
Woodrow Wilson.
A nível de grupo (Estado), devemos levar em
consideração subsistemas, como o governativo, o
burocrático, o legislativo, o econômico, os grupos de
pressão, assim como a natureza do Estado (caráter
nacional, geográfico, etc). A análise realizada a este
nível deu frutos concretos mostrando, por exemplo,
como a Guerra não estaria mais em relação causai
direta com um regime absolutista do que com um
regime democrático. É apoiado em precisas e
importantes estatísticas que Q. Wright pode afirmar
que: "a paz produziu a democracia, mais do que a
democracia produziu a paz". Através de análises feitas
a este nível, constata-se que as grandes potências
desencadeiam maior número de conflitos do que as
médias e pequenas potências. Este resultado parece
que poderia ser contestado no período mais recente,
visto à luz da nova natureza da Guerra como
conseqüência da revolução nuclear. Diante dos fatos
de hoje, parece estar muito perto da
573
verdade a afirmação segundo a qual as Guerras são
agora "privilégio" das pequenas potências.
Não obstante a indubitável importância dos fatos
oferecidos pelas análises realizadas a este nível,
outros estudos mostram que a política externa dos
Estados é mais influenciada pelas situações exteriores.
Aqui a análise coloca-se a nível de sistema
internacional (sistema de grupos). Com base no fato
de que cada sistema tende à autoconservação
(conceito de homeostase), a Guerra é explicada em
termos sistêmicos como um instrumento para manter
o equilíbrio (balance of power). A nosso ver, este
nível de análise é particularmente adequado para o
estudo das possíveis causas de uma Guerra nuclear.
Neste caso, a interação parece prevalecer sobre a ação.
Herman Kahn enumera quatro hipóteses sobre sua
origem: 1) Guerra não-intencional; 2) Guerra como
resultado de um cálculo errado; 3) Guerra calculada;
4) Guerra catalítica (quando é provocada por uma
terceira parte).
Como se vê, o ambiente externo assume um papel
predominante, apreciável somente no plano da análise
sistêmica.
Obviamente, uma explicação completa dos conflitos
bélicos pressupõe uma pesquisa cuidadosa para cada
um desses níveis. As explicações oferecidas situam-se
numa escala temporal, que vai das condições-bases,
que são inelutáveis (nível do processo decisório), até
as causas indiretas ou mediatas, que necessitam de um
fato ou evento particular (nível de grupo) e até as
específicas e imediatas (nível do sistema de grupos).
Vistas de um outro ângulo, as causas da Guerra
podem ser classificadas com base nas propostas
substancialmente homogêneas feitas por cientistas,
historiadores e publicistas, mesmo quando tais
categorias de escritores — conforme lembra Wright
— dão significados diferentes ao conceito de causa: 1)
forças materiais (os cientistas falam de balance of
power, os historiadores de fatores políticos e os
publicistas de necessidade); 2) influências racionais
(direito internacional, interesse nacional, razão); 3)
instituições sociais (organização internacional,
ideologia, cultura ou costumes); 4) reações da
personalidade (opinião pública, fatores psicológicos e
econômicos, capricho ou emoção).
É óbvio que serão bem diferentes as concepções
sobre as causas da Guerra, de acordo com o
significado atribuído a este último conceito (Guerra
como conflito de armas, de leis, de culturas e de
indivíduos).
VI. PARA UMA ANÁLISE DE PREVISÃO DA GUERRA. —
Entre as causas dos conflitos bélicos, poderiam e
deveriam ser medidas as conexas com
574
GUERRA
a opinião pública. A instituição e a atualização
contínua dos "mapas" da tensão coletiva deveriam ser
tarefa das Nações Unidas ou também da UNESCO,
que assim assumiriam o papel de instituiçõessentinelas, tão necessárias ao nosso tempo.
Na via da medição dos fatores úteis para o estudo
das causas da Guerra, colocou-se há tempos J. David
Singer (The correlates of War project), o qual
construiu uma "taxonomia" geral para a descrição e
análise dos conflitos internacionais que, em diferentes
níveis de análise, prevê três classes de variáveis: os
atributos — físicos ou materiais, estruturais e
culturais — das entidades sociais, os liames e relações
entre elas e o comportamento que as mesmas
manifestam. Uma das hipóteses importantes que está
na base da pesquisa é que a estrutura do sistema é mais
importante do que seus atributos culturais e talvez
mesmo do que seus atributos físicos ou materiais.
Com base na hipótese de que a probabilidade de
uma Guerra é função das "distâncias" intercorrentes
entre os Estados e das políticas por eles perseguidas, e
na tentativa de evitar previsões vãs, Q. Wright
distingue oito aspectos ou categorias de tais
"distâncias": tecnológica (T), estratégica (Est),
intelectual (I), jurídica ou legal (L), social (S), política
(P), psíquica (Ps) e de expectativa (atitude diante da
força, expectancy) (E). Tais "distâncias" são
mensuráveis mesmo que não seja de maneira perfeita,
e constituem importantes índices de previsão.
A análise das políticas dos Estados é, porém, mais
importante para os fins de previsão do que o exame
das "distâncias" entre eles. Entre os métodos
utilizados para avaliar a probabilidade de um conflito
armado, devemos lembrar o que consiste em
extrapolar as tendências de certos índices, como, por
exemplo, os balanços militares e o comércio
internacional (L. F. Richardson), e que mede
periodicamente (usa-se falar de "tensiômetros"
internacionais) algumas variáveis relevantes, como
atitude, comportamento, capacidade (O. Holsti).
VII. O CONTROLE DA GUERRA E AS
ALTERNATIVAS
PARA
OS
CONFLITOS
ARMADOS. — Fala-se
freqüentemente da função social das Guerras. Estas
têm sido vistas como mecanismos de estabilização do
poder ou da economia, ou da regulação da pressão
demográfica, ou de desvio das tendências anti-sociais,
ou ainda de promoção do desenvolvimento da ciência
e da tecnologia. Pode-se afirmar, porém, que o
advento das armas nucleares privou-as praticamente de
qualquer das funções acima citadas.
Como conseqüência disto, desenvolveu-se uma
tendência cada vez maior a buscar, seguindo o
caminho científico e tecnológico, quais os meios de
controle de que o homem dispõe e quais as alternativas
que existem para os conflitos armados. Esta busca
parte da constatação de que os instrumentos
tradicionais de controle, ou seja, as normas jurídicas e
éticas, não conseguiram impedir o deflagrar das
Guerras (segundo estudos recentes, em 3.400 anos da
história da humanidade, o mundo teve apenas 234
anos de paz, definível em termos de ausência de
conflitos armados; conforme os cálculos de Singer,
desde o Congresso de Viena até hoje, ocorreram 93
Guerras). Diante disto, faz-se necessário trilhar os
caminhos do "ser" e não os do "dever ser". Damos o
exemplo de Etzioni, que sugeriu, como muito útil para
estes fins, o estudo de como as indústrias aprendem a
mudar seus objetivos de competição, de negativos e
destrutivos (Guerra de preços), em positivos e
construtivos (concorrência qualitativa). Esta pesquisa,
que tem a finalidade de controlar a Guerra e de
construir para ela várias alternativas, é hoje conhecida
pelo nome de peace research.
VIII. — DO BELLUM JUSTUM À GUERRA
COMO CRIME CONTRA A HUMANIDADE. — A
história da avaliação moral da Guerra pode ser
dividida em três fases, ao menos com referência às
obras relativamente mais recentes: a do bellum
justum, a da raison d'État e a da Guerra como crime.
O que equivale a afirmar que, com o desenvolvimento
da consciência social dos povos e com o progresso da
tecnologia militar, a Guerra transformou-se, cada vez
mais, num problema "quente" que exige uma solução
pronta e radical.
As justificações da Guerra com base no direito, já
bastante freqüentes, quando ainda vigorava a tese do
bellum justum, mas não mais consideradas
necessárias, quando estava no auge a teoria da raison
d'État, encontraram novamente uma função bem
precisa do quadro de um sistema internacional que
agora considera ilícita a Guerra como instrumento de
solução para os conflitos internacionais. A Carta de
São Francisco, que instituiu as Nações Unidas, é
muito clara neste ponto. Num certo sentido, pode-se
dizer que voltou à atualidade a distinção medieval
entre jus ad bellum e jus in bello. Resumindo, nas três
frases citadas, o direito considerou a Guerra: 1) como
um possível meio de justiça; 2) como uma prerrogativa
da soberania; 3) como um crime.
Não há dúvida de que a fase da raison d'État
coincidiu com a afirmação de um paradigma
interpretativo das relações internacionais já superado
pela doutrina, que vê o sistema internacional
GUERRA
como sede de anarquia e de conflitos permanentes e
necessários. De acordo com esta teoria, que teve
início com os preceptistas italianos dos séculos XVI e
XVII e chegou ao seu ápice com a doutrina do Estadopotência no século XIX e princípios do século XX
com Hegel, Ranke, Treitschke e Meíneck, qualquer
Estado, independentemente de sua estrutura interna, é
condicionado em sua política externa pela natureza
anárquica do sistema internacional. Por isso, tende
continuamente a buscar a consolidação da própria
potência, em prejuízo da dos outros Estados, mesmo à
custa de violar toda e qualquer norma moral e
jurídica. Conforme esta teoria, a Guerra seria justa,
porque necessária.
Um paradigma interpretativo diferente está
implícito nas fases 1) e 3), mas especialmente na
última fase. De acordo com esta interpretação, que
precede e, em parte, segue a explicitada na teoria da
raison d'État, a Guerra é necessária quando é
considerada justa.
É interessante, portanto, insistirmos no estudo da
evolução da doutrina do bellum justum.
A primeira distinção entre Guerra justa e Guerra
injusta é de Santo Agostinho, mas é com Santo Tomás
que são teorizadas as condições — uma formal e
objetiva, as outras duas substanciais, mas subjetivas
— de uma Guerra justa. Elas são:
1) A declaração de Guerra deve ser formulada
pela autoridade legítima.
2) Deve existir uma "justa causa".
3) O beligerante deve possuir uma "justa intenção".
Uma quarta condição especificada na doutrina será
a da necessidade, isto é, da impossibilidade de fazerse justiça com outros meios.
Com o emergir dos Estados-nação cristãos, cada um
dos quais invocava a mesma doutrina, ficou
confirmada, na visão de Grócio, a posição escolástica,
segundo a qual, diante de uma única justiça "objetiva",
podiam coexistir duas ou mais inocências "subjetivas".
Tal visão, teoricamente, levou a conferir aos Estados
neutros determinadas obrigações, que tinham como
conteúdo uma discriminação entre as partes
beligerantes.
As tentativas feitas para incorporar a doutrina do
bellum justum no direito positivo foram, infelizmente,
inúteis. Assim sendo, a tendência do direito
internacional foi a de desenvolver as normas para o
controle das hostilidades, quando fossem iniciadas
(jus in bello). O sistema do balance of power do
século XIX foi o quadro político ideal para uma tal
concepção realista do aspecto lícito da Guerra.
575
O que foi dito acima não diminui a grande
importância que a doutrina do bellum justum teve a
partir da Idade Média. Tal importância, porém,
mostrou, provavelmente, também efeitos negativos no
sentido de que atrasou o desenvolvimento de um
sistema de normas jurídicas, capazes de impedir a
atuação desenfreada dos conflitos bélicos. É, porém,
indubitável que buscou, sem grande êxito, fazer
derivar as normas do jus in bello das premissas jus ad
bellum (uso da força proporcional à injúria sofrida,
direito dos combatentes e dos prisioneiros, etc).
É fato que o jus in bello desenvolveu-se depois
separadamente, como conseqüência da perda da
convicção de se poder estabelecer, de forma concreta, a
legitimidade do recurso à Guerra, já então considerado
como um fato extrajurídico.
A dissolução do sistema europeu do balance of
power, como conseqüência do primeiro conflito
mundial, atraiu novamente a atenção sobre a
necessidade de reconsiderar a possibilidade de um jus
ad bellum.
Conforme alguns autores, a Sociedade das Nações,
o Pacto Briand-Kellog, as Nações Unidas foram todos
eles mecanismos jurídicos inspirados na doutrina do
bellum justum. Segundo outros, levava em
consideração as violações do direito positivo e do
direito natural na construção da teoria do bellum
justum, enquanto os mecanismos aos quais fizemos
agora referência levariam em consideração
unicamente as violações do direito positivo. O
condicional se impõe no que respeita às Nações, cuja
análise deveria ser mais aprofundada.
De fato, tanto a Sociedade das Nações, quanto as
Nações Unidas, mesmo consideradas suas diferenças
básicas quanto ao problema da legitimidade do recurso
à Guerra — mas, especialmente as Nações Unidas —,
superam a doutrina do bellum justum, ao menos no
sentido de vincularem ao consenso da comunidade dos
Estados a determinação da legitimidade dos atos
bélicos internacionais.
O pressuposto da doutrina tradicional, ao contrário,
tendia a considerar cada Estado habilitado a decidir
sozinho sobre a natureza justa ou injusta de tais atos.
É, porém, com o Pacto Briand-Kellog, que
encontrará confirmação mais tarde na Carta de São
Francisco, que ocorre uma mudança fundamental, isto
é, a passagem do jus ad bellum, retomado pelo
covenant, ao jus contra bellum. Isto significa, na
especificação normativa das Nações Unidas, que é
considerada ilícita toda e qualquer forma de Guerra
que não seja a iniciada no quadro dos mecanismos de
tutela coletiva ou a admitida a título provisório de
legítima defesa.
576
GUERRA
Com o nascimento do jus contra bellum, começam
também as tentativas para uma definição concordante
dos atos de agressão.
Obviamente um estudo mesmo sumário do
problema da legitimidade da Guerra não pode
prescindir do exame da teoria leninista que trata da
matéria, segundo a qual somente as Guerras
resultantes das lutas de classe podem ser definidas
como justas. Pertencem a esta categoria, por exemplo,
as Guerras nacionais revolucionárias contra as
potências imperialistas.
A atitude do partido comunista e do proletariado
em relação a uma Guerra nunca é, nem deve ser,
determinada por força das razões de oportunidade
política. Por exemplo, não se deve apoiar uma Guerra
"justa" que possa dar lugar a conseqüências
reacionárias a nível mundial.
Devido a isto, a importância da doutrina leninista
do bellum justum está subordinada, especialmente nas
interpretações sucessivas dos escritores marxistas, a
considerações concernentes à praxe política.
Pode-se sustentar que, apesar das indubitáveis
diferenças entre as posições do marxismo-leninismo e
as
sustentadas
pelo
pensamento
político
contemporâneo não comunista, a propósito da
liceidade das Guerras, tanto umas quanto outras
evoluíram de preferência em direção ao jus contra
bellum. Acompanharam esta tendência as teorias
produzidas recentemente nos Estados de nova
formação e nos Estados em desenvolvimento.
Na base de tudo isto está, certamente, a mudança da
natureza da Guerra contemporânea e a inconcebível
potencialidade destrutiva das armas produzidas
especificamente pela tecnologia nuclear. Foi
exatamente esta evolução tecnológica que contribuiu
para pôr em crise a validade moral da doutrina do
bellum justum, considerada por muitos perigosa,
enquanto se desenvolve mais em torno do conceito do
jus ad bellum, do que em torno do de jus contra
bellum.
Outros, porém, consideram a doutrina tradicional
ainda aplicável na época contemporânea e acham até
que ela é necessária, na medida em que, ainda hoje, a
abolição da Guerra é considerada como uma utopia.
O argumento principal, porém, contra a doutrina do
bellum justum parece que se refere ao mesmo
pressuposto que lhe dá vida, ou seja, ao fato de que
ela postula a liceidade de fazer justiça por si e —
implicitamente — a iliceidade do não recurso às
armas, quando exista uma causa justa. O assunto é
bastante complexo e se apóia na problemática da paz
e da não-violência. Parece, porém, que se pode
afirmar
que,
num
sistema
internacional
profundamente mudado e numa situação de tecnologia
destrutiva como a atual,
o perigo maior para os Estados deriva, exatamente, da
área de "domínio reservado", que foge ao controle e
ao consenso da comunidade internacional.
A exigência de assegurar a justiça não pode,
portanto, prescindir da exigência paralela de seguir
processos multilaterais, que encontram substância
jurídica, política e moral nas normas das Nações
Unidas.
IX.
A
EVOLUÇÃO
DO
DIREITO
INTERNACIONAL. — É fácil, após esta breve
exposição da doutrina do bellum justum, compreender
como sua evolução se une com a do direito
internacional. Este último nem sempre conseguiu
incorporar tal doutrina, mas, seguramente, foi por ela
profundamente influenciado.
O direito internacional de Guerra e o da
neutralidade foram dois setores do direito
internacional que evoluíram em função da influência
exercida por esta. Mesmo quando tal influência
diminui ou é contestada — exatamente por este
motivo — estes setores sofreram transformações
profundas e, muitas vezes, radicais, até o ponto de
chegar a tornar ilegítima, no espírito das Nações
Unidas, a própria condição do Estado neutro.
A neutralidade clássica, baseada no dever da
imparcialidade em relação aos beligerantes,
independentemente da legitimidade ou não de sua
conduta, pôde afirmar-se no período da raison d'État,
quando já tinha sido superada a diferença entre
Guerras lícitas e Guerras ilícitas.
A volta de tal distinção, o progresso tecnológico, a
mudança da natureza das relações internacionais, a
recente dificuldade para diferenciar nitidamente a
Guerra da paz marcaram o declínio, aparentemente
irreversível, deste clássico instituto do direito
internacional.
Como bem disse Sereni, "a neutralidade é um
aspecto da Guerra e esta adquiriu uma fisionomia
precisa somente quando a distinção entre paz e Guerra
foi nitidamente estabelecida". Hoje, que a Guerra é
considerada um crime contra a humanidade, todo
recurso a ela é tido como contrário à moral e ao
direito.
BIBLIOGRAFIA. — R. ARLON, Pace e guerra tra le nazioni
(1962), Feltrinelli, Milano 1970; G. BOUTHOUL, Traité de
sociologie: les guerres, élements de polémologie. Payot, Paris
1951; K. VON CLAUSEWITZ, Delta guerra (publicado depois de
1831), Mondadori, Firenze 1970, 2 vols.; S. A. COBLENTZ, From
arrow to atom bomb, Barues, New York 1953; D. V. EDWARDS,
International political analysis. ibid. 1969; F. FORNARI e AUT. VÁR.,
Dissacrazione della guerra. Dal pacifismo alla scienza del
conflitti, Feltrinelli, Milano 1969; Satura e orientamenti delle
ricerche sulla pace. ao
GUERRILHA
cuidado de li. GORI. F. Angeli, Milano 1978; H. KAHN,
Thinking about the unthinkable, Avon, New York 19662; On
thermonuclear war (1960), ibid. 19692; A. P. SERENI, Diritto
internazionale — IV, Giuffrè, Milano 1965; J. D. SINGER, et
alii, Explainmg war: Causes and correlates of war. Sage,
London 1980; War. in The international encyclopedia of the
social sciences. XVI, Free Press. New York 1968.
[UMBERTOGORI]
Guerrilha.
A Guerrilha é um tipo de combate caracterizado
pelo choque entre formações irregulares de
combatentes e um exército regular. Os objetivos por
ela perseguidos são mais políticos que militares. A
destruição das instituições existentes e a emancipação
social e política das populações são, de fato, os
objetivos precípuos dos grupos que recorrem a este
tipo de luta armada. Por este motivo, os termos
Guerrilha e guerra revolucionária foram, cada vez
mais identificando-se.
A Guerrilha é típica dos Estados nos quais existem
profundas injustiças sociais e onde a população está
disposta a lutar por uma mudança.
As possibilidades de conduzir pesquisas para uma
análise político-social neste campo são bastante
problemáticas. Assim sendo, os estudos de cientistas
políticos e sociais são poucos e gerais. Existe, porém,
uma vasta produção de estudos políticos e militares
que abordam a Guerrilha do ponto de vista prático a
partir da condução das operações.
Querendo isolar as características principais da
Guerrilha, é preciso concentrar-se em três setores de
pesquisas que são intimamente conexos: relações entre
guerrilheiros e população, aspectos estratégicomilitares e ambiente físico.
O êxito dos movimentos de Guerrilha baseia-se,
quase sempre, na longa duração do tempo de luta,
visando
isolar,
moralmente,
fisicamente
e
politicamente, os governantes da população e da
comunidade internacional. A Guerrilha muito
prolongada torna-se possível com a ajuda da população,
persuadida por uma ideologia conforme seus
sentimentos, e da ajuda (sobretudo de armas) de
potências externas. O apoio da população assume
formas diversas, mas todas vitais: desde o
fornecimento de bens e de alimentos, até a assistência
aos guerrilheiros feridos; desde a organização de
refúgios, até o trabalho como guias; e, finalmente, a
recusa de divulgar informações às forças
antiguerrilha.
O controle psicológico sobre as massas foi, por isso,
considerado, juntamente com o controle das
577
áreas rurais (o "campo"), o eixo principal da vitória
dos movimentos de Guerrilha.
Segundo uma pesquisa corrente, verificou-se que,
geralmente, 20% da população nas zonas de Guerrilha
são favoráveis aos guerrilheiros, enquanto 20% são
contrários e o restante 60% assumem atitude neutra e
é, por conseqüência, alvo seja da propaganda dos
guerrilheiros, seja dos governantes. Uma atitude
neutra torna-se, porém, uma vantagem para as forças
de Guerrilha, porque significa uma não-colaboração
com as forças do Governo.
A influência sobre a população é obtida de vários
modos: com uma doutrina política que condena as
injustiças sofridas pela população, com o terrorismo,
com a demonstração da superioridade militar da
Guerrilha sobre as forças regulares, com extensas
campanhas de propaganda.
Do ponto de vista da conduta militar, a Guerrilha
confia muito na improvisação e nas possibilidades de
aproveitar a ocasião favorável. Os guerrilheiros fogem
dos combates que não permitem agir em condições de
superioridade. O bom conhecimento do terreno e o
apoio da população permitem adotar uma tática que
frustra e reduz ao mínimo o número dos ataques
maciços do inimigo e desfecha golpes decisivos sob a
forma de sabotagens e emboscadas contra as unidades
isoladas do exército e da polícia, as linhas de
comunicação e de fornecimento e as fontes de riqueza
do Governo.
As grandes concentrações de forças por longos
períodos são sempre evitadas, seja para não serem
forçadas à defensiva, seja para criarem nas forças
regulares a impressão de que a Guerrilha está em toda
parte e em qualquer momento. Chama-se a isto efeito
paralisante, que se obtém agindo sempre na ofensiva.
A mobilidade do exército regular vem a ser assim
notavelmente reduzida; as tropas são obrigadas a
concentrar-se e devem limitar-se às atividades
defensivas. Esta situação influi bastante na população,
que vê assim o exército do Governo como incapaz de
manter a ordem. Entre as várias atividades dos
guerrilheiros, figura também o terrorismo, que se
desenvolve contra pessoas ou grupos diretamente
ligados à classe que mantém o poder. O terrorismo
pode também ser dirigido com fins punitivos contra a
população de alguma zona ou vila que não queira
colaborar com a Guerrilha. Sendo, porém, um índice de
fraqueza, as forças guerrilheiras procuram fazer uso
desta técnica o menos possível, porque ela pode, de
fato, provocar reações contrárias na população.
Com referência às forças de contraguerrilha,
caracterizam-se por uma grande superioridade de
armamento e têm condições de dispor sempre de
578
GUERRILHA
meios cada vez maiores e mais eficientes. Tais forças,
porém, terão sempre dificuldade, quando não
impossibilidade em controlar contemporânea e
continuamente todo o país, teatro de movimentos de
Guerrilha.
O ambiente físico, o "terreno", no qual agiu até
hoje a Guerrilha, foi sempre montanhoso e coberto de
uma vegetação compacta. Este terreno reduz a
mobilidade dos grandes exércitos convencionais e dá
às forças irregulares a vantagem de poder esconder-se
sem dificuldade e de não ser distinguidas facilmente.
Os guerrilheiros utilizam bases (os chamados
"santuários"), onde preparam os seus planos, formam
seus homens e desenvolvem todas as atividades
necessárias à preparação do combate. Estas bases
devem ser particularmente seguras; por esta razão,
encontram-se, muitas vezes, em território de Estados
contíguos que aceitam ou toleram estas atividades.
Quando a atividade de Guerrilha consegue a
formação de uma forte organização política com o
apoio da população, os fatores naturais perdem quase
toda a sua importância, enquanto assume peso muito
maior o controle da população. Nesta altura, o apoio
externo, material e político, torna-se patente e
aumenta quando cresce a confiança nos êxitos da ação
dos guerrilheiros.
A intervenção externa suscita considerações gerais
sobre a função que a Guerrilha, fenômeno político
interno, pode assumir no sistema internacional.
O potencial destrutivo das armas nucleares é de tal
monta que alerta os Estados sobre a periculosidade de
uma guerra aberta, por isso é provável que a Guerrilha
seja a forma de violência mais aceitável, à qual
podem recorrer potências antagônicas que, inserindose em conflitos internos, querem modificar a
distribuição do poder existente em algumas regiões.
O que foi exposto indica claramente que as regiões
nas quais a Guerrilha é possível são apenas aquelas
economicamente subdesenvolvidas, com uma rede de
comunicações pouco extensa e na qual exista uma
ampla faixa da população sem nenhuma orientação
política.
BIBLIOGRAFIA. - R. B. ASPREY, War in the shadows;
The guerilla in history. Garden City (N. Y),
Doubleday 1971; H. HALHWEG, Storia della
guerriglia. Tallica e strategia della guerra senza
fronti, Feltrinelli, Milano 1973; W. LAQUEUR, The
origins of the guerilla doctrines, in "Journal of
contemporary. history", 1975, n.° 3.
[FULVIO ATTINÀ]
Hebraica. Questão — V. Anti-semitismo.
Hegemonia.
I. O USO DO TERMO NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS. — Parte da literatura política
designa com o termo Hegemonia — decalque latino
da palavra grega egemonia, que significa "direção
suprema", usada para indicar o poder absoluto
conferido aos chefes dos exércitos, chamados
precisamente egemónes, isto é, condutores, guias — a
supremacia de um Estado-nação ou de uma
comunidade político-territorial dentro de um sistema.
A potência hegemônica exerce sobre as demais uma
preeminência não só militar, como também
freqüentemente econômica e cultural, inspirando-lhes e
condicionando-lhes as opções, tanto por força do seu
prestígio como em virtude do seu elevado potencial de
intimidação e coerção; chega mesmo a ponto de
constituir um modelo para as comunidades sob a sua
Hegemonia.
O conceito de Hegemonia não é, portanto, um
conceito jurídico, de direito público ou de direito
internacional; implica antes uma relação interestatal
de potência, que prescinde de uma clara
regulamentação jurídica. Segundo este critério, poderse-ia definir a Hegemonia como uma forma de poder
de fato que, no continuum influência-domínio, ocupa
uma posição intermédia, oscilando ora para um ora
para outro pólo.
Alguns autores como Triepel sublinham seu caráter
de "influência particularmente forte", exercida sem o
recurso direto às armas e à força e, por isso, não
privada de um certo fundamento de legitimidade. Neste
sentido, Hegemonia é uma subespécie de um conceito
mais geral, o de direção, libertando-se quase
totalmente do seu significado original de supremacia
político-militar. É análogo o sentido em que Gioberti
usa este conceito em Primado moral e civil dos
italianos, o de uma "preeminência (...) não legal, nem
jurídica, propriamente falando, mas de eficácia moral",
como primado ético e cultural, baseado não na
força armada, mas na tradição e na história. Assim,
para Gioberti, a Itália anterior ao Ressurgimento pode
contrapor a sua Hegemonia ao domínio do estrangeiro,
e Roma, sede histórica do papado, goza da Hegemonia
moral numa Itália que tem no Piemonte saboiano o
seu braço armado.
Contudo, outros autores preferem defender para o
conceito de Hegemonia um significado mais
estreitamente ligado à sua etimologia, o de domínio
fundado na força das armas. É esse o caso dos
historiadores alemães da tradição baseada na doutrina
da razão de Estado, sobretudo Ranke e Dehio, que
elevaram a categoria da Hegemonia a cânone
interpretativo fundamental, pondo-a como centro da
sua reflexão sobre a história da Europa e do mundo, em
antítese com o conceito de equilíbrio. Sendo vocação
intrínseca ao comportamento de qualquer Estado e da
máxima expansão da própria potência, a história das
relações internacionais não é senão um perpétuo
alternar-se de equilíbrios instáveis e de tentativas
hegemônicas por parte de Estados, que se situam dentro
ou fora de sistemas internacionais pouco a pouco
consolidados: desde as cidades-Estados gregas à Itália
dos principados e à Europa das grandes monarquias.
Neste processo, tiveram uma importância decisiva as
potências periféricas ou até os espaços coloniais
externos: as contínuas tentativas hegemônicas que se
sucederam no continente europeu desde Carlos V a
Hitler deram-se graças principalmente à contribuição
das grandes potências externas, que ocupavam uma
posição insular ou periférica (Inglaterra, Rússia,
Estados Unidos). Elas foram capazes de favorecer
vastas coalizões contra o Estado que ameaçava impor a
sua supremacia, ocasionando assim o triunfo do
princípio do equilíbrio sobre o da Hegemonia e
ampliando progressivamente as dimensões do sistema
internacional.
É também dentro dos limites da acepção políticomilitar do termo que se situa a categoria de
hegemonismo de origem chinesa. O hegemonismo
consiste num conjunto de comportamentos,
diplomáticos e militares, imputados ao
580
HEGEMONIA
social-imperialismo da URSS e dos seus satélites
(Cuba, Vietnã), tendentes a modificar o equilíbrio
mundial e a impor progressivamente a liderança
soviética. Derivando da degeneração imperialista da
URSS, o hegemonismo tenta suprir, pela força das
armas, o declínio do seu prestígio de país-guia no
campo socialista e opor à perda de Hegemonia uma
política de potência agressiva e sem princípios, cujo
desfecho inevitável, mas diferível, será a guerra.
II. O uso MARXISTA.— Nos casos antes
mencionados, o conceito de Hegemonia tem como
campo de aplicação o sistema internacional e as
relações entre os Estados. Mas hoje também se fala de
Hegemonia, principalmente entre os escritores
marxistas, mas não apenas entre eles, em referência
sobretudo às relações entre as classes sociais e entre os
partidos políticos, bem como a propósito das
instituições e dos aparelhos públicos e privados.
Mas também nesta segunda acepção do conceito
encontramos a oscilação entre os dois significados
predominantes que já sublinhamos a propósito do seu
uso tradicional. Um dos significados tende a
equiparar, ou, em torno do caso, a aproximar.
Hegemonia e domínio, acentuando mais o aspecto
coativo que o persuasivo, a força mais que a direção, a
submissão de quem suporta a Hegemonia mais que a
legitimação e o consenso, a dimensão política mais
que a cultural, intelectual e moral. É este o uso
preponderante nos escritos dos teóricos da Terceira
Internacional, Lenin em primeiro lugar, mas também
Bukharin, Stalin, etc. A par deste significado, parece
hoje prevalecer, sobretudo na cultura política italiana,
um outro que vê na Hegemonia, acima de tudo,
capacidade de direção intelectual e moral, em virtude
da qual a classe dominante, ou aspirante ao domínio,
consegue ser aceita como guia legítimo, constitui-se
em classe dirigente e obtém o consenso ou a
passividade da maioria da população diante das metas
impostas à vida social e política de um país. É este o
significado que se depreende da "teoria da
Hegemonia" que Antônio Gramsci transformou em
centro da sua reflexão sobre a política e o Estado
modernos e se acha registrada nas páginas dos
Quaderni del carcere.
Segundo Gramsci, numa sociedade de classes, a
supremacia de uma delas se exerce sempre através das
modalidades complementares e, de fato, integradas, se
bem que analiticamente dissociáveis, do domínio e da
Hegemonia. Se o domínio se impõe aos grupos
antagônicos pelos mecanismos de coerção da
sociedade política, a Hegemonia se exerce sobre
grupos sociais aliados ou neutrais, usando dos
"mecanismos hegemônicos" da sociedade civil. Uma
conjugação de força e de
consenso, de ditadura e de Hegemonia é fundamental
em todo o Estado; o que varia é a proporção entre
ambos os elementos, em razão do grau de
desenvolvimento da sociedade civil, que, como sede da
ação ideologicamente orientada, é o locus de formação
e difusão da Hegemonia, o centro nevrálgico de toda a
estratégia política. Quando a sociedade apresenta uma
"estrutura maciça", como ocorre no Ocidente industrial
e mobilizado pelo capitalismo, o papel da ação
hegemônica torna-se crucial, não só na gestão como até
mesmo na conquista e construção do Estado, um papel
privilegiado em relação ao da força, no entanto
sempre necessariamente presente. Não só será inviável
que o domínio se possa segurar aqui por longo tempo
faltando a Hegemonia, como, diversamente do que
acontece nos países onde "o Estado é tudo" e a
sociedade civil é informe e indistinta, tornar-se-á
impossível conquistar o poder, se a força que
ambiciona "fazer-se Estado" não se fizer primeiro
hegemônica no bloco social antagônico ao bloco que
está no poder. Por outros termos, no Ocidente, a
Hegemonia não é apenas uma modalidade necessária
do exercício do poder para a classe dominante, é
também um pré-requisito estratégico para qualquer
classe revolucionária. Gramsci expressa este conceito
fundamental da sua teoria revolucionária em confronto
polêmico com o economismo dominante, usando as
metáforas da "guerra de posição" e da ocupação
gradual das "casamatas" do campo inimigo por parte
do sujeito revolucionário.
Compreende-se à luz desta fundamentação teórica
como a crise do Estado, quando é "orgânica", tem por
conteúdo uma crise de Hegemonia, uma quebra na
aptidão dos grupos dominantes se tornarem também
dirigentes, um grave déficit de legitimidade em quem
poderia preparar a transição a novas formas de Estado,
a equilíbrios orgânicos mais avançados (é este o caso
da revolução jacobina) ou estáticos (como no
Ressurgimento italiano, no fascismo e nas numerosas
variações históricas da "revolução passiva").
É óbvio que toda classe social se serve, no processo
da sua organização em classe dirigente, de uma
peculiar
instrumentação
hegemônica:
o
parlamentarismo, os partidos liberal-democráticos, a
opinião pública com os grandes órgãos de informação,
quando se trata da burguesia capitalista mais
avançada, com apoio estrutural do mercado e da
própria organização fabril; os conselhos operários, no
primeiro momento, o sindicato e, sobretudo, o partido
revolucionário, quando é o proletariado que luta pelo
poder. A este incumbirá a tarefa de selecionar os
intelectuais que compõem a classe operária, organizar
a sua Hegemonia, muni-los de uma teoria e de uma
estratégia
HISTORICISMO
capazes de confrontar vitoriosamente a Hegemonia
das classes dominantes.
Seguindo o caminho indicado por Gramsci, o
debate acerca da Hegemonia continuou até os nossos
dias, definindo melhor o conceito e enriquecendo-o de
novas particularidades. Alguns estudiosos marxistas,
especialmente Nicos Poulantzas, defenderam a
importância de uma função hegemônica no seio do
próprio bloco que detém o poder, destinada a regular
as contradições existentes entre as diversas classes e
frações de classe que o compõem. A Hegemonia de
uma classe ou fração sobre as demais que compõem o
bloco do poder dominante faz com que cada uma
renuncie aos seus interesses imediatos, interesses
econômico-corporativos, em benefício do comum
interesse político pela exploração e domínio das
classes subalternas. A Hegemonia atua como princípio
de unificação dos grupos dominantes e, ao mesmo
tempo, como princípio de disfarce do domínio de
classe. Simetricamente, no bloco revolucionário
entendido como unidade contraditória entre classes
dominadas, a Hegemonia indica a transformação
política, para além de todo particularismo e
corporativismo, do interesse da classe operária em
interesse geral de todos os explorados.
BIBLIOGRAFIA. - C. BUCI-GLUCKSMANN, Gramsci e lo
Stato (1975), Editore Riuniti, Roma 1976; L. DEHIO,
Equilíbrio o egemonia (1948), Morcelliana, Brescia 1954;
A. GRAMSCI. Quaderni del carcere, Einaudi, Torino 1975; L.
GRUPPI, Il conceito di egemonia in Gramsci, Editori
Riuniti, Roma 1972; N. POULANTZAS, Potere político e classi
sociali (1968), Editori Riuniti, Roma 1971; H. TRIEPEL,
L'egemonia (1938), Sansoni, Firenze 1949.
[SILVANO BELLIGNl]
Historicismo.
1. DEFINIÇÃO GERAL. — Tal como no contexto do
pensamento filosófico, assim também no do
pensamento político o termo Historicismo não possui
um significado unívoco. Para determinar os
significados fundamentais com que pode ser
entendido, convém, pois, partir da identificação do
seu conteúdo mais genérico e, por isso, comum aos
diversos significados dele resultantes. Deste ponto de
vista, pode-se sem dúvida aceitar a opinião de
Meinecke (As origens do historicismo, Introdução),
para quem o Historicismo, que é uma atitude de
pensamento nascida
581
conscientemente a partir mais ou menos do período
que intermedeia entre os séculos XVIII e XIX,
constitui, fundamentalmente, uma reação contra a
tendência jusnaturalista até então dominante. Esta
tendência é assim definida, de modo sintético, pelo
mesmo autor: "A atitude jusnaturalista do pensamento,
predominante desde a antigüidade, inculcava a crença
na imutabilidade da natureza humana, mais, na
imutabilidade da razão humana. Os assertos da razão,
diziam, podem ser ofuscados pelas paixões e pela
ignorância, mas, se liberta de tais ofuscações, a razão
afirma as mesmas coisas em todos os tempos e é capaz
de descobrir verdades eternas, de valor absoluto, que
correspondem plenamente à racionalidade de todo o
universo". Em oposição, o primeiro princípio do
Historicismo está, para Meinecke, na substituição de
uma consideração generalizante e abstrativa das forças
histórico-humanas pela consideração do seu caráter
individual, na convicção de que a aplicação de juízos
generalizados em relação ao homem e aos fenômenos
culturais e sociais a que o homem deu origem não
permite entender as profundas transformações e a
variedade de formas que a vida moral e espiritual do
indivíduo e das comunidades consente e assume, não
obstante a permanência inalterada de qualidades
humanas fundamentais.
No que se refere ao contexto específico do
pensamento político, a atitude jusnaturalista, contra a
qual reage a tendência historicista, está na doutrina dos
direitos do homem, resultante da versão moderna,
racionalista, do jusnaturalismo e afirmada pelas
Revoluções Americana e, sobretudo, Francesa, onde
se acha implícita a convicção de que a forma de
Estado liberal constitui um modelo de valor absoluto e
universal, enquanto fundado nas exigências eternas e,
portanto, idênticas, em todo o tempo e lugar, da razão
humana. Contra tal pretensão, a tendência historicista
apresenta geralmente a afirmação do caráter
historicamente relativo das formas de organização
política e social e, portanto, mais globalmente, dos
valores políticos.
Identificado assim o conteúdo mais genérico da
tendência historicista dentro do contexto político,
poder-se-á proceder à distinção das tendências teoricopráticas fundamentais em que se articula, precisando
os diversos modos como tem sido entendida a
relatividade histórica dos valores políticos e,
conseqüentemente, a individualidade das diversas
formas históricas de organização político-social, por
parte dos críticos que se opõem às pretensões
absolutas e universais do jusnaturalismo moderno.
Historicamente, a primeira forma de reação
historicista significativa contra a doutrina dos
582
HISTORICISMO
direitos do homem encontra-se na reavaliação
romântica (coincidente com as lutas contra a França
revolucionária e com a política da Restauração após o
Congresso de Viena) dos aspectos irracionais na vida
dos Estados, ou seja, da força das tradições, do
costume, dos instintos e dos senti: mentos populares,
que condicionam de maneira decisiva, segundo esta
tendência de pensamento, o desenvolvimento histórico
concreto dos Estados. O romanticismo político atribui,
em suma, uma importância histórica central aos
aspectos do comportamento humano individual e
coletivo que, segundo o moderno racionalismo
jusnaturalista, nada mais são senão preconceitos
irracionais, destinados a ser muito em breve
eliminados pela razão iluminada, desde que se
conceda a esta a mais ampla possibilidade de ação. O
reconhecimento da importância dos aspectos
irracionais na vida política leva, por outro lado, a
sustentar não só a impossibilidade de sujeitar a uma
norma racional e universal comum a vida e o
desenvolvimento de qualquer povo e, portanto, de
qualquer Estado, como também a impossibilidade
mais geral, afora limitações assaz restritas, de a
vontade, guiada pela razão, orientar segundo seus fins
o desenvolvimento das instituições políticas e sociais,
que possui, muito pelo contrário, um caráter
essencialmente orgânico e inconsciente. Daí uma
ulterior conseqüência: a de que as únicas instituições
válidas e vitais para um povo são as que
correspondem às suas peculiaridades, à sua irredutível
individualidade, formada através de processos
históricos seculares e incompatível com rupturas
bruscas na continuidade do seu desenvolvimento.
II. O HISTORICISMO ROMÂNTICO. — A expressão
mais equilibrada e coerente desta concepção é-nos
oferecida pela teoria do "espírito do povo"
(Volksgeist), formulada pela escola histórica alemã,
especialmente por Savigny e pelos irmãos Grimm, e
adiantada por E. Burke e A. Müller. O espírito do
povo, que é constituído, não pelo conjunto das
vontades individuais, mas por uma união orgânica e
racionalmente insondável enquanto ponto de encontro
e convergência de forças essencialmente irracionais, é
concebido pela teoria homônima como o princípio
criativo unitário das múltiplas manifestações da vida
de cada povo e, portanto, também das suas
instituições políticas e sociais, dos seus valores
políticos, dotados, por conseguinte, de um valor
normativo apenas respeitante ao espírito do povo
singular e irredutível que os produziu, e não de um
valor absoluto e universal. O processo histórico é visto,
em conseqüência, como o âmbito de realização dos
diversos espíritos nacionais, em sua ação
fundamentalmente incônscia, em suas relações e em
sua luta.
É claro o significado político-conservador do
irracionalismo romântico. Negando à ação política a
possibilidade de transformar, segundo planos racionais,
indicadores de fins determinados e das respectivas
instituições necessárias para os alcançar, as relações
econômicas, sociais e políticas inconscientemente
criadas pela misteriosa alma popular, essa corrente de
pensamento forneceu os instrumentos ideológicos
fundamentais de defesa das instituições absolutísticofeudais
contra
as
tendências
reformadoras,
desencadeadas em toda a Europa pela Revolução
Francesa e pelas guerras revolucionárias. Conquanto
mudasse, como é óbvio, em suas manifestações mais
específicas e aceitasse várias achegas, em suas
manifestações mais gerais, esta forma de Historicismo
conservador manteve sempre, até os nossos dias, uma
certa vitalidade na esfera da praxe e da cultura
política,
revelando-se
continuamente
como
desconfiança mais ou menos clara em face da
tendência a racionalizar as instituições sociais e
políticas e como preferência por um desenvolvimento
lento, sem rupturas bruscas e o mais espontâneo
possível (v. CONSERVADORISMO). Existe, não obstante,
um aspecto na temática do irracionalismo romântico
que não tem um significado conservador: é a
exigência de salvaguardar as particularidades culturais
(tradições, línguas, costumes) dos diversos grupos
étnicos contra as tendências de nivelamento e
uniformização do moderno centralismo burocrático.
Esta exigência foi aceita pela doutrina federalista e
posta em prática através das instituições do
autogoverno local.
III. A DOUTRINA ALEMÃ DO ESTADO-POTÊNCIA. — Das
várias tendências que, de algum modo, se acham
ligadas ao irracionalismo romântico, há uma que
apresenta um particular interesse, na medida em que
configura uma importante versão do Historicismo no
contexto político: a doutrina do Estado-potência,
formulada por Ranke e seus sequazes, uma doutrina
que representa uma fase de aprofundamento teórico
assaz avançado dentro da tradição de pensamento
fundada no conceito de razão de Estado e iniciada por
Maquiavel (v. RAZÃO DE ESTADO). É indubitável que
esta doutrina também constitui uma reação à doutrina
moderna dos direitos do homem. Ela sustenta, de igual
modo, contra as pretensões de validade absoluta e
universal do modelo de Estado característico das
revoluções ocidentais, que toda a experiência estatal se
desenvolve segundo um princípio individual peculiar
em que, inevitavelmente, se inspiram os responsáveis
pelo Estado em questão. A origem da individualidade
irredutível de
HISTORICISMO
toda a experiência estatal e, por conseguinte, dos
valores que nela despontam não é, porém,
principalmente, o agir misterioso e incônscio da alma
popular (cuja influência, aliás, esta doutrina
reconhece, em medida, todavia, menos relevante) mas,
fundamentalmente, a posição de poder do Estado no
sistema dos Estados, com a decisiva influência que daí
resulta para a política externa e interna de cada
Estado. A individualidade do Estado coincide, em
última análise, com o "primado da política externa",
que, no caso dos Estados continentais europeus, por
exemplo, impediu, segundo este ponto de vista, uma
evolução político-institucional e econômico-social
análoga à dos países liberais ocidentais e impôs, ao
invés, estruturas de tipo mais conservador e
autoritário. A doutrina rankiana do Estado-potência,
precisamente por tender, conquanto vinculada à linha
romântica, a transferir o interesse dos conceitos
nebulosos e indecifráveis do irracionalismo romântico
para dados cognoscíveis e descritíveis em termos
conceptuais mais claros, como política de potência,
sistema dos Estados, influência da política externa
sobre a interna, não possui um significado
univocamente conservador como o da teoria
romântica do espírito do povo. Em muitos casos, a
doutrina rankiana é usada (e decerto pelo seu autor)
com propósitos mais ou menos conscientemente
conservadores, ou seja, para rejeitar, com relação às
necessidades da segurança e da defesa, as reformas
políticas e sociais postas na ordem do dia pela evolução
histórica. Mas pode também harmonizar-se com uma
tendência historicista progressiva que reconheça, contra
o abstracionismo de origem jusnaturalista, o
condicionamento decisivo que exerce, sobre a
evolução interna de um Estado, sua posição no quadro
internacional, vendo isso, porém, como uma
dificuldade que se há de procurar vencer de acordo
com as possibilidades históricas.
583
Com a escola romântica, Hegel tem de comum o
recurso ao conceito de espírito do povo para explicar a
individualidade de cada uma das diversas épocas e
situações da história e, conseqüentemente, a dos
valores políticos que elas exprimem. O conteúdo deste
conceito é, no entanto, por ele definido em termos
bastante diferentes. Antes de mais nada, os diversos
espíritos dos povos são nele entendidos como
encarnações do "espírito do mundo", ou seja, da razão
universal que governa a história e se realiza
principalmente através da ação dos "povos históricos",
os povos que exercem uma função de guia numa
determinada época histórica e nos quais se exprime o
grau de progresso alcançado pelo espírito universal
nesse momento. Além disso, entre os elementos que
definem a individualidade de cada povo histórico e,
portanto, de cada época histórica fundamental, Hegel
atribui uma importância decisiva à estrutura da
"sociedade civil", que entende, na esteira dos
ensinamentos da economia clássica, como o sistema
das necessidades e do trabalho dos homens. Neste
quadro teórico, embora se apóie em bases idealistas
para as quais toda a realidade econômica e social tem
origem na idéia, ele sabe captar a relação existente
entre as estruturas econômicas e sociais e as diversas
formas que estas assumem em cada uma das várias
épocas e situações históricas, por um lado, e as
instituições políticas e os respectivos valores em sua
evolução
histórica,
por
outro.
Considera
nomeadamente o direito natural moderno e o modelo
liberal de Estado que a ele está ligado como expressões
da sociedade burguesa moderna, fundada na
propriedade privada e na livre concorrência. Faz,
portanto, depender em geral (como é óbvio, de modo
ainda não satisfatório) as instituições e os valores
políticos das diversas fases históricas da evolução das
estruturas econômicas e sociais. É precisamente por
este aspecto que a filosofia hegeliana, cujo significado
político nem sempre é fácil definir com precisão (de
qualquer modo, tal problema pode aqui ser posto de
IV. O MATERIALISMO HISTÓRICO. — Além
parte), se adianta e nos introduz ao materialismo
da
orientação historicista que emerge do irracionalismo histórico.
romântico, a tendência historicista de maior relevo no
Se se quiser agora identificar o conteúdo essencial
contexto político é a que tem por fundamento o do materialismo histórico como uma versão
materialismo histórico, cujas implicações políticas são fundamental da atitude historicista no contexto
diametralmente opostas às do Historicismo de origem político, poder-se-á afirmar que ele constitui uma
romântica. Antes de examinarmos em que grau o radicalização e um aprofundamento dos enunciados
materialismo histórico configura uma forma de atitude hegelianos acerca da relação entre a evolução histórica
historicista no sentido inicialmente indicado, é das estruturas econômicas e sociais e a
necessário determo-nos num filósofo, cujas teses acerca individualidade das instituições e dos valores políticos
da problemática aqui examinada ocupam uma posição nas diversas épocas e lugares. O materialismo histórico
em certo sentido intermediária entre o irracionalismo elaborado por Marx e Engels pressupõe, em última
romântico e o materialismo histórico. Trata-se de instância, a eliminação de todo componente
Hegel.
idealístico e, em geral,
584
HISTORICISMO
metafísico da filosofia hegeliana da sociedade e da
história; traduz-se na concepção do desenvolvimento
histórico como processo de revolucionamento
ininterrupto de todos os aspectos da vida coletiva
humana, cuja força motriz fundamental é constituída
pela evolução do modo de produção (v. MARXISMO).
Nesta perspectiva, a individualidade das instituições e
dos valores políticos surgidos nas diversas épocas e
situações históricas parece determinada pelas várias
fases da evolução do modo de produção e com elas
relacionada. Pelo que se refere à doutrina dos direitos
do homem e ao modelo liberal do Estado, esses, longe
de ser considerados como normas de valor universal,
são concebidos como superestruturas do modo de
produção
burguês-capitalista
e,
por
isso,
historicamente condicionados e destinados a ser
superados com a passagem ao modo de produção
socialista.
A historicização das instituições e dos valores
políticos em relação à evolução do modo de
produção, proposta pelo materialismo histórico,
possui um significado político evidentemente
progressista. Com efeito, esta orientação teórica,
embora critique o racionalismo abstrato do
jusnaturalismo moderno, aceita a sua tendência
racionalista fundamental, que se traduz numa crítica
às instituições existentes do ponto de vista das
possibilidades racionais do homem, e lhe acrescenta a
consciência de que o progresso rumo a instituições
cada vez mais racionais é condicionado pela evolução
histórica das estruturas econômicas e sociais. De
resto, a atitude progressista do Historicismo de
origem marxista pode assumir um pendor
revolucionário ou reformista, segundo que o
desenvolvimento econômico-social e,
conseqüentemente, político seja concebido como um
processo que se desenrola através de contradições e
rupturas, ou então como evolução gradual.
Para completar este quadro, há de se recordar ainda
que, dentro da corrente marxista, é patente a
tendência a considerar baseada numa atitude
historicista a teoria das "vias nacionais para o
socialismo". Esta teoria constitui, na realidade, uma
reação contra a tendência do marxismo oficial
soviético a considerar a experiência revolucionária e
de construção do socialismo efetuada na Rússia como
um modelo de valor universal para todos os
movimentos socialistas e comunistas. Ela acentua a
necessidade de se levar em conta, na luta pela
instauração do socialismo, as diferenças das situações
nacionais, definidas não só em termos de evolução
econômico-social, mas também em relação à cultura,
às tradições e aos costumes.
BIBLIOGRAFIA. - N. BOBBIO, Hegel e il
giusnaturalismo, in "Rivista di filosofia". LVII, n.º
4,1966; K. MANNHEIM, Das konservative Denken, in
"Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik", 57,
1926, agora in Wissenssoziologie. Berlin-Neuwied
1964; K. MARX, Per la critica della filosofia del diritto
di Hegel (1843), in Scritti poluía giovanili, Einaudi,
Torino 1950; K. MARX e F. ENGELS, L'ideologia
tedesca (1846), Editori Riuniti, Roma 1968; K. MARX,
Per la critica dell'economia política (1859), Editori
Riuniti, Roma 19693; F. MEINECKE, Le origini dello
storicismo (1936), Sansoni, Firenze 19672; Id.,
Cosmopolitismo e Stato nazionale (1908), La Nuova
Italia. Perugia-Venezia 1930; F. TESSITORE, Profilo dello
storicismo político, UTET, Torino 1981.
[SERGIO PISTONE]
Ideologia.
I. PRELIMINAR. — Tanto na linguagem política
prática, como na linguagem filosófica, sociológica e
político-científica, não existe talvez nenhuma outra
palavra que possa ser comparada à Ideologia pela
freqüência com a qual é empregada e, sobretudo, pela
gama de significados diferentes que lhe são atribuídos.
No intrincado e múltiplo uso do termo, pode-se
delinear, entretanto, duas tendências gerais ou dois
tipos gerais de significado que Norberto Bobbio se
propôs a chamar de "significado fraco" e de
"significado forte" da Ideologia. No seu significado
fraco, Ideologia designa o genus, ou a species
diversamente definida, dos sistemas de crenças
políticas: um conjunto de idéias e de valores
respeitantes à ordem pública e tendo como função
orientar os comportamentos políticos coletivos. O
significado forte tem origem no conceito de Ideologia
de Marx, entendido como falsa consciência das
relações de domínio entre as classes, e se diferencia
claramente do primeiro porque mantém, no próprio
centro, diversamente modificada, corrigida ou alterada
pelos vários autores, a noção da falsidade: a Ideologia
é uma crença falsa. No significado fraco, Ideologia é
um conceito neutro, que prescinde do caráter eventual
e mistificante das crenças políticas. No significado
forte, Ideologia é um conceito negativo que denota
precisamente o caráter mistificante de falsa
consciência de uma crença política.
Na ciência e na sociologia política contemporânea,
predomina nitidamente o significado fraco de
Ideologia, tanto na acepção geral quanto na particular.
A primeira acepção se acha nas tentativas mais
acreditadas de teoria geral, tradicionais e inovadoras.
Acha-se também na interpretação dos vários sistemas
políticos e na análise comparada dos diversos
sistemas. Encontra-se ainda na investigação empírica
dirigida à averiguação dos sistemas de crenças
políticas como se apresentam nos estratos politizados
ou na massa dos cidadãos. Na acepção particular,
aquilo que é "ideológico" é normalmente contraposto,
de modo
explícito ou implícito, ao que é "pragmático". E o
caráter da Ideologia é atribuído a uma crença, a uma
ação ou a um estilo político pela presença, neles, de
certos elementos típicos, como o doutrinarismo, o
dogmatismo, um forte componente passional, etc, que
foram diversamente definidos e organizados por vários
autores. A este uso particular ou, melhor, a este grupo
de usos particulares do significado fraco de Ideologia
se liga o tema do "fim" ou do "declínio das
ideologias" nas sociedades industriais do Ocidente,
originado entre os anos 50 e 60 pelas interpretações
de sociólogos como Raymond Aron, Daniel Bell e
Seymour Martin Lipset, terminando, depois, num
complexo e longo debate que, em certos aspectos, dura
ainda hoje.
O significado forte de Ideologia sofreu, por sua vez,
singular evolução. Em Marx, Ideologia denotava idéias
e teorias que são socialmente determinadas pelas
relações de dominação entre as classes e que
determinam tais relações, dando-lhes uma falsa
consciência. Na evolução sucessiva do significado da
palavra, perdeu-se geralmente, salvo na linguagem
polêmica da política prática, a conexão entre Ideologia
e poder. Quanto ao mais, o destino deste significado
de Ideologia foi centrado nas relações entre dois dos
elementos constitutivos da formulação originária: o
caráter da falsidade da Ideologia e a sua determinação
social. De uma parte, manteve-se e se generalizou o
princípio da determinação social do pensamento, com
o resultado de perder de vista o requisito da falsidade:
a Ideologia se dissolveu no conceito geral da sociologia
do conhecimento. De outra parte, manteve-se,
generalizou-se e reinterpretou-se o requisito da
falsidade, com o resultado de perder de vista a
determinação social da Ideologia: o ponto de chegada
é, neste caso, a crítica neopositivista da Ideologia.
Na primeira direção, a virada fundamental foi feita
por Karl Mannheim, onde a crítica do uso polêmico,
que Marx fez da palavra Ideologia, traz consigo, quase
que inadvertidamente, o abandono da interpretação
marxista da gênese social da Ideologia (as relações de
dominação); e onde,
586
IDEOLOGIA
sobretudo, com a passagem da noção de "especial"
para a de "geral" de Ideologia, a atenção se desloca
para o fenômeno muito generalizado da determinação
social do pensamento de todos os grupos sociais
enquanto tais. Segundo Merton, esta generalização,
que envolve "não apenas o erro ou a ilusão ou a
crença não autêntica, mas também a descoberta da
verdade", é a "revolução copemicana" no campo da
sociologia do conhecimento. Do ponto de vista da
criação da disciplina geral da sociologia do
conhecimento, a observação de Merton é verdadeira.
Mas, ao mesmo tempo, não devemos omitir ou
desmerecer o fato de que a generalização da
determinação social do pensamento foi tomada ao pé
da letra e muito banalmente, produzindo uma
concepção que coloca no mesmo plano todas as
crenças, limitando-se a julgar igualmente verdadeiras
todas as visões do mundo das diversas sociedades,
classes, igrejas, seitas, etc, e colocando
definitivamente de lado o conceito de Ideologia no seu
significado originário (por ex., W. Stark, Sociology of
knowledge, London, 1958, trad. ital., Milano 1963).
Na segunda direção, a virada fundamental encontrase no pensamento de Vilfredo Pareto, onde a crítica
das Ideologias é, em grande parte, uma crítica
minuciosa e incansável da falsidade e dos tipos
particulares de falsidade, das teorias sociais e
políticas. Aí, também, em relação à gênese da
Ideologia, o domínio social passa para segunda ordem
e deixa lugar para os instintos fundamentais da
natureza humana. Segue-se daí que "aquilo que para
Marx é um produto de uma determinada forma de
sociedade, para Pareto torna-se um produto da
consciência individual", objeto de uma análise
psicológica (Bobbio, 1969, p. 117). Pareto abre, assim,
o caminho para a interpretação neopositivista,
segundo a qual Ideologia designa as deformações que
os sentimentos e as orientações práticas de uma
pessoa operam nas suas crenças, travestindo os juízos
de valor sob a forma simbólica das asserções de fato.
Deste modo, é mantido o requisito da falsidade da
Ideologia, mesmo se interpretado de modo muito
particular; mas perdeu-se completamente a sua gênese
social.
Sendo as coisas deste modo, não é de surpreender
que a ciência política contemporânea tenda a pôr de
lado o significado forte de Ideologia, relegando-o para
o domínio da crítica ou da sociologia do conhecimento
e considerando-o explícita ou implicitamente pouco
útil para o estudo empírico dos fenômenos políticos.
Giovanni Sartori exprimiu com clareza este ponto de
vista. "As discussões sobre a Ideologia", escreve ele,
"caem geralmente em dois grandes setores: A
Ideologia no conhecimento e/ou a Ideologia na
política. No que se refere à primeira área de
indagação, o problema é se o conhecimento do
homem é condicionado ou distorcido ideologicamente
e em que grau o pode ser. Quanto à segunda área de
indagação, o problema é se a Ideologia é um aspecto
essencial da política e, uma vez concluído que o seja,
o que é que ela é e como pode ser explicada. No
primeiro caso, a Ideologia ê contraposta à verdade, à
ciência e ao conhecimento válido, em geral. No
segundo caso, o que importa não é o valor da verdade,
mas, por assim dizer, o valor funcional da Ideologia".
A objeção que se pode apresentar contra esta
posição é que, na interpretação originária do conceito,
ou seja, na interpretação de Marx, a falsidade e a
função social da Ideologia não são reciprocamente
independentes e sim estreitamente ligadas entre si. De
uma parte, a falsa consciência, velando ou mascarando
os aspectos mais duros e antagônicos do domínio,
tende a facilitar a aceitação da situação de poder e a
integração política e social. De outra parte, porque
falsa consciência, a crença ideológica não é uma base
independente do poder e a sua eficácia e sua
estabilidade dependem, em última análise, das bases
efetivas da situação de domínio (para Marx, as
relações de produção). Ora, se a estas proposições se
pode conferir um significado descritivo e empírico,
mais do que polêmico-descritivo e meta-empírico, o
conceito forte de Ideologia torna-se, por isso mesmo,
um conceito importante para o estudo científico do
poder e portanto para o estudo científico da política.
A averiguação do caráter ideológico de uma crença
política permitiria, na verdade, tirar conclusões
significativas sobre a relação de poder a que a crença
se refere: por exemplo, sobre sua potencial
conflitualidade e sobre sua estabilidade.
Por conseguinte, um discurso sobre o estado dos
empregos e da utilidade do conceito de Ideologia na
análise política não pode deixar de ocupar-se do
significado forte da palavra, ao mesmo tempo que de
seu significado fraco. É isto que faremos na parte
restante deste ensaio, que, por isso mesmo, será
dividido em duas seções distintas. Na primeira,
passaremos em resenha alguns dos usos principais do
significado fraco da Ideologia, tanto na acepção geral
como na acepção particular; e lembraremos os aspectos
mais importantes do debate que se acendeu em torno
da tese "declínio das Ideologias". Na segunda parte,
examinaremos as perspectivas atuais de uma
reformulação do significado forte de Ideologia, de
modo a convertê-lo num instrumento legítimo e
promissor para a ciência política; e
IDEOLOGIA
mostraremos, em particular, os problemas que
emergem, tomando esta direção de indagação
relação com a estrutura da Ideologia, isto é,
primeiro lugar, em relação ao seu caráter
"falsidade".
daí
em
em
de
II. O SIGNIFICADO FRACO DE IDEOLOGIA.
A) ALGUNS usos. — Entre os usos mais gerais do
significado fraco de Ideologia, podemos lembrai o de
Carl J. Friedrich, segundo o qual as Ideologias são
"sistemas de idéias conexas com a ação", que
compreendem tipicamente "um programa e uma
estratégia para a sua atuação" e destinam-se a "mudar
ou a defender a ordem política existente". Têm, além
disso, a função de manter conjuntamente um partido
ou outro grupo empenhado na luta política (Man and
his government, New York 1963, p. 89). Pode-se
lembrar, também, o significado de David Easton que
vê nas Ideologias aquelas "interpretações" e aqueles
"princípios éticos" explícitos e elaborados que
definem "o escopo, a organização e as fronteiras da
vida política" e oferecem uma "interpretação do
passado, uma explicação do presente e uma visão do
futuro" (A systems analysis of political life, New York
1965, p. 290). Em relação à sua distinção entre
Governo, regime e comunidade política, Easton
distingue as Ideologias em partidárias, destinadas a
organizar o consenso para tipos particulares de linhas
políticas e de praxes de Governo; legitimantes,
destinadas a sustentar ou a contestar o regime político
e o direito de governar para os governantes; e
comunitárias, voltadas para o apoio da persistência ou
da transformação da comunidade política em seu
conjunto. Esta classificação é analítica e diz respeito,
mais do que às Ideologias propriamente ditas, aos
diversos níveis do sistema político aos quais as
mesmas podem referir-se. Na realidade, cada um dos
três tipos de Ideologias não é, normalmente, mais do
que um aspecto de Ideologias mais gerais (como o
conservadorismo, o liberalismo, o socialismo, e assim
por diante), que Easton chama Ideologias para todos
e que exprimem orientações, tanto para a comunidade
política, como para o regime e para o Governo.
Uma outra definição geral de Ideologia é a que foi
proposta por Zbigniew K. Brzezinski: "um programa
adaptado para a ação de massa, derivado de
determinados assuntos doutrinais sobre a natureza
geral da dinâmica da realidade social, e que combina
certos assertos sobre a inadequação do passado e/ou
do presente com certas tendências explícitas de ação
para melhorar a situação e certas noções sobre o
estado final e desejado de coisas" (Ideology and power
in soviet politics, New York 1962, pp. 4-5). Esta
definição
587
destaca, de modo particular, a dimensão ativista e
transformadora da Ideologia. E provavelmente, por
esta razão, Clement H. Moore a ela recorreu para
construir sua classificação das Ideologias dos partidos
orientadores dos diversos sistemas monopartidários
(sejam eles de partido único, sejam de partido
dominante). Este politólogo tem presentes dois
parâmetros: o escopo oficial da Ideologia, distinguindo
entre transformação total e transformação parcial da
sociedade, e a função efetiva de Ideologia, distinguindo
entre função "instrumental" ou prática, de persistente
guia de ação, e função "expressiva", ou seja, sem
efeitos diretos sobre a ação, mas exprimindo o sentido
de solidariedade e os sentimentos comuns dos
membros do partido. Combinando entre si estes dois
parâmetros, obtém-se quatro tipos de Ideologia dos
sistemas monopartidários: as Ideologias totalitárias,
que são instrumentais e que visam a uma
transformação total da sociedade (por exemplo, o
comunismo soviético durante o período estaliniano);
as Ideologias tutelares, também instrumentais e
visando a uma transformação parcial (por exemplo, o
comunismo iugoslavo); as Ideologias quiliásticas, de
função expressiva com intuitos de uma transformação
total da sociedade (exemplo: fascismo italiano), e
Ideologias administrativas, de função expressiva e
visando a uma transformação parcial (exemplo, a
Ideologia do Partido Revolucionário Institucionalista
do México).
Um conceito geral de Ideologia que sublinha o
caráter da sistematicidade e da coerência foi também
utilizado principalmente na América, nos estudos
empíricos das crenças políticas do público, seja através
de prolongados colóquios com poucas pessoas (R.
Lane, Political Ideology, New York 1962), seja
sobretudo por meio de questionários aplicados sob a
forma de amostragem entre a população. Herbert
McClosky, autor de uma das mais interessantes
pesquisas, define, por exemplo, as Ideologias como
"sistemas de crenças explícitas, integradas e
coerentes, que justificam o exercício do poder,
explicam e julgam os acontecimentos históricos,
identificam o que é bom e o que é mau em política,
definem as relações entre política e outros campos de
atividade, e fornecem uma orientação para a ação"
(Consensus and Ideology in american politics, in
"American political science review", LVIII, 1964, p.
362). Estas pesquisas chegaram, de um modo geral, à
conclusão de que os caracteres da sistematização e da
coerência distinguem nitidamente as crenças das elites
políticas das crenças fragmentárias e incoerentes do
homem da rua. O significado específico desta
diferença, e as conseqüências que daí derivam, são
porém diferentes. Lane, embora achando que o
homem comum americano tem
588
IDEOLOGIA
opiniões políticas grosseiras e não estruturadas,
defende todavia que suas atitudes e suas crenças estão
substancialmente alinhadas na defesa do sistema
democrático. Outros investigadores, ao contrário,
destacaram no público geral um estado de confusão
muito difundido, e também muita incompreensão e
desacordo sobre o significado dos valores
fundamentais da Ideologia democrático-constitucional
americana. E disto concluíram com preocupação,
acerca da solidez do sistema democrático americano,
ou ainda, e com mais freqüência, sobre a necessidade
de redimensionar, de modo bastante drástico, a
importância do consenso da população sobre os
valores políticos fundamentais, como requisito para o
bom funcionamento e para a estabilidade de um
regime democrático. Mais recentemente, na bibliografia
especializada sobre os sistemas de crenças políticas,
configurou-se uma corrente que tenta contestar e
corrigir, ao menos parcialmente, a afirmativa da
existência de um destaque radical entre as crenças
políticas das elites e as do homem comum. E
começou-se a estudar o grau da coerência das atitudes
e das crenças do público em geral, também, dentro 'de
uma perspectiva diacrônica, ou seja, na sua evolução
temporal, verificando-se um incremento substancial, e
um aumento da orientação ideológica do homem
comum americano entre 1956 e 1972.
Os caracteres da sistematização e da coerência, que
aparecem em algumas das definições gerais de
Ideologia acima relatadas, e especialmente na última,
se relacionam com as noções particulares do
significado fraco de Ideologia, através das quais se
instaura, habitualmente, uma contraposição entre
"ideológico" e "pragmático", ou outro conceito
análogo. Nestas acepções particulares, porém, a
Ideologia e o que é ideológico é diferenciado através de
outros requisitos específicos. Edward Shils, por
exemplo, apresentou uma contraposição entre "política
ideológica" e "política civil", na base da qual a política
ideológica é caracterizada pela preeminência férrea de
um sistema geral e coerente de princípios, por uma
perspectiva totalizante, pela obsessão do futuro, por
uma visão dicotômica amigo-inimigo, pela hostilidade
para com os compromissos, por uma tendência
extremista, e por outros mais ainda (Shils, 1958).
Voltando ao assunto dez anos depois, Shils
identificou as Ideologias, entre todas as variantes de
sistemas gerais de interpretações e de ideais morais
concernentes ao homem e à sociedade, com base na
presença conjunta de nove traços característicos: 1)
uma formulação explícita; 2) um alto grau de
integração e de solidez sistemática, obtida através de
uma concentração apoiada em algumas proposições
cognitivas e
valorativas; 3) o destaque da própria diversidade (em
vez da similaridade), a respeito de outros sistemas de
crenças e de outras Ideologias; 4) a resistência às
inovações do sistema ideológico e a tendência a negálas ou a diminuir-lhes o significado; 5) a
imperatividade com a qual a Ideologia exige a
obediência no pensamento e na conduta de todos os
que a ela aderem, e a própria atuação prática; 6) uma
forte carga emotiva que acompanha tanto a
promulgação quanto a aceitação e a aplicação da
Ideologia; 7) o consentimento completo exigido a
todos os que a ela aderem; 8) o caráter autoritário que
os seguidores reconhecem à sua promulgação
explícita; 9) o nexo com qualquer forma de associação
coletiva, com a finalidade de manter a disciplina entre
os aderentes e de traduzir em realidade o sistema
ideológico. As Ideologias, assim definidas, não têm
primariamente, por necessidade, natureza política. Só
a partir do século XVII é que o seu componente
político se tornou crucial e, a partir do século XIX,
decisivamente preponderante. As Ideologias surgem
normalmente em períodos de crise, quando a visão do
mundo dominante não consegue satisfazer novas e
pressionantes necessidades sociais e pedem
imperiosamente aos próprios seguidores uma
transformação total da sociedade, ou um afastamento
dela.
Giovanni Sartori elaborou expressamente uma
contraposição entre Ideologia e pragmatismo, fundada
sobre uma dupla dimensão dos sistemas de crenças
políticas: a dimensão cognitiva e a dimensão emotiva.
Os sistemas ideológicos de crenças são caracterizados,
a nível cognitivo, por uma mentalidade dogmática
(rígida, impermeável, tanto aos argumentos quanto aos
fatos) e doutrinária (que faz apelo aos princípios e à
argumentação dedutiva) e, a nível emotivo, por um
forte componente passional, que lhes confere um alto
potencial ativista, enquanto os sistemas pragmáticos
de crenças são caracterizados por qualidades opostas.
Segundo Sartori, este conceito de Ideologia serve para
explicar os conflitos políticos. A contraposição de dois
sistemas ideológicos de crenças tende a vitalizar
conflitos mais ou menos radicais, desde o momento
em que aqueles sistemas de crenças estão associados a
uma mentalidade fechada e de forte carga emocional
ou passional. A contraposição de dois sistemas
pragmáticos de crenças tende a vitalizar o consenso e
os compromissos e as transações pragmáticas, desde o
momento em que esses sistemas de crenças estão
associados a uma mentalidade aberta e a uma carga
passional mais ou menos baixa. Além disso, a
Ideologia, assim analisada, pela sua pronunciada
heterogeneidade de composição, é o instrumento
fundamental que as elites
IDEOLOGIA
políticas têm à disposição para conseguir a mobilização
política das massas e para levar, a um grau máximo, a
sua manipulação.
Robert D. Putnam empregou, por sua vez, o
conceito de "estilo ideológico", conotando-o como um
modo de raciocínio político, dedutivo, fundado em
princípios gerais, que sublinha a importância das
idéias e comporta uma visão utópica do futuro.
Estudando as crenças políticas de uma amostragem
sobre os homens políticos italianos e de uma
amostragem sobre os homens políticos ingleses,
Putnam concluiu que o estilo ideológico é mais
freqüente na Itália do que na Inglaterra. Ele procurou
averiguar se existem correlações entre estilo
ideológico e certos comportamentos que, como
mostram as definições de Shils e de Sartori acima
expostas, são muitas vezes associadas à política
ideológica, e chegou, a propósito, a resultados algumas
vezes positivos e outras vezes negativos. Em geral,
encontrou um nexo positivo entre estilo ideológico de
uma parte e extremismo (através do eixo direitaesquerda) alienação (no sentido de afastamento e de
oposição radical aos ordenamentos políticos e sociais
prevalecentes) e propensão a perceber os problemas
políticos em termos de conflito, de outra parte; mas
não encontrou uma relação significativa na hostilidade
para com os compromissos, no fanatismo, no
dogmatismo e em geral na atitude negativa em relação
ao comportamento do pluralismo político. Quanto à
hostilidade e intolerância para com os opositores, não
existe, segundo Putnam, uma correlação direta com o
estilo ideológico, a nível da atitude do comportamento
de cada político, mas existe uma correlação indireta, a
nível do sistema político, em seu complexo.
III. B) O DEBATE SOBRE O "DECLÍNIO
DAS
IDEOLOGIAS". — A tese do "fim" ou do "declínio das
Ideologias" está ligada a certas conotações da acepção
particular de Ideologia, como o dogmatismo, o
doutrinarismo, a forte carga passional, a propensão
para os conflitos radicais, a tendência extremista,
avaliados, de forma geral, de modo negativo. Esta tese
ganhou forma por volta da metade dos anos 50, na
atmosfera criada por um forte desenvolvimento
econômico do Ocidente, pelo degelo soviético e pela
crescente desilusão a propósito das possibilidades de
uma afirmação do comunismo nos países
industrializados. Essa tese apoiava-se numa ou em
ambas as proposições seguintes: que nos últimos vinte
anos houvera uma relativa atenuação do extremismo
com que se tinham manifestado os fins e os objetivos
ideológicos; que tinha havido um desaceleramento
relativo da intensidade emotiva com a qual aqueles
fins e aqueles objetivos eram perseguidos.
589
A primeira oportunidade para a difusão da tese foi um
seminário sobre o "Futuro da liberdade", organizado
pelo Congresso para a Liberdade da Cultura,
celebrado em Milão em setembro de 1955, no Museu
da Ciência e da Técnica. Participaram dele cerca de
cento e cinqüenta escritores, políticos, jornalistas e
professores universitários, provenientes de todas as
partes do mundo. Depois de alguns dias de discussão
e de debates entre os participantes ocidentais à
convenção, formou-se um consenso bastante amplo
sobre o fato de que as Ideologias extremistas estavam
em declínio, que este declínio se espelhava numa certa
convergência entre as Ideologias tradicionalmente
antagônicas e que isso devia ser relacionado com o
desenvolvimento econômico e o aumento do bemestar das sociedades industriais avançadas.
Entre 1955 (antes da convenção de Milão) e 1960,
foram redigidas as formulações mais conhecidas e mais
influentes da tese do "declínio das Ideologias": as de
Aron, Shils, Bell e Lipset. Em 1955, Raymond Aron
destacava o declínio do fanatismo associado às crenças
políticas, a perda de importância, a progressiva erosão
das Ideologias tradicionais, outrora rígidas e
imperativas, e observava que, nos países ocidentais, a
atenuação dos contrastes ideológicos dependia do fato
de que a experiência tinha ensinado que as questões
políticas divergentes podem ser conciliadas. Em 1958,
no mesmo ensaio em que propunha a distinção entre
"política ideológica" e "política civil", Edward Shils
manifestava a convicção de que a política ideológica
estava em declínio nas sociedades industrializadas do
Ocidente e oferecia uma avaliação positiva do
fenômeno. Em 1960, Daniel Bell observava que as
velhas Ideologias sistemáticas, totalizantes, repassadas
de paixão e visando transformar toda forma de viver
do homem estavam definhando no mundo ocidental
por um conjunto de razões históricas, que tinham
desacelerado suas posições e haviam produzido um
consenso suficientemente amplo entre os portadores de
Ideologias — os intelectuais — sobre os principais
problemas políticos. A aceitação, hoje em voga, do
Welfare state, de uma organização descentralizada do
poder, de uma união de economia mista e de
pluralismo político tendia a derrubar os ásperos
contrastes ideológicos de outros tempos. No mesmo
ano, Seymour Martin Lipset formulava, de modo
análogo, a tese do "declínio das Ideologias",
chamando sobretudo a atenção para um substancial
decréscimo da polarização ideológica e uma decidida
atenuação dos contrastes entre direita e esquerda.
"Esta transformação da vida política ocidental",
escrevia ele, "é devida ao fato de que os problemas
políticos fundamentais colocados pela Revolução
590
IDEOLOGIA
Industrial foram resolvidos: os trabalhadores obtiveram
um reconhecimento de seus direitos econômicos e
políticos; os conservadores aceitaram o conceito do
Estado do bem-estar; e a esquerda democrática
reconheceu que um aumento indiscriminado dos
poderes do Estado, em vez de conduzir à solução dos
problemas econômicos, comporta uma séria ameaça
para a liberdade. Este triunfo da revolução social e
democrática nos países ocidentais pôs um termo à
política interna para aqueles intelectuais que, para
serem induzidos à ação política, têm necessidade de ser
estimulados por Ideologias ou por utopias".
A tese do "declínio das Ideologias" provocou
numerosas e vivas críticas e um intenso e prolongado
debate do qual participaram, além dos defensores
originários da tese, especialmente Bell e Lipset, autores
como C. W. Mills, J. Meynaud, I. L. Horowitz, H. D.
Haiken, J. LaPalombara, D. H. Wrong, M. Harrington
e vários outros, cujas intervenções foram quase todas
recolhidas em dois volumes antológicos (Waxman,
1969; Rejai, 1971). Entre as muitas críticas que se
fizeram, as mais importantes e as mais freqüentes são
quatro. As duas primeiras dizem respeito à validade
científica ou cognoscitiva da tese: a sua verdade ou
falsidade. Enquanto que as outras concernem a seu
componente valorativo ou diretivo. A primeira crítica
sustenta que a tese é fatualmente falsa: não é verdade
que as Ideologias e os contrastes ideológicos acabaram
ou estão acabando, do momento em que, também, no
sistema americano — que oferece as condições mais
propícias para consumar-se o fim das Ideologias —,
explodiram os problemas racial e da pobreza e surgiram
uma direita radical e uma nova esquerda. A segunda
crítica sustenta que a tese é uma interpretação errada
de um fenômeno real, no sentido que descreve como
declínio das Ideologias o que é simplesmente um
deslocamento da área do conflito ideológico. Enquanto
foram atenuados os contrastes ideológicos em torno
dos velhos problemas políticos, novos ou mais intensos
contrastes ideológicos emergiram em novos setores. A
terceira crítica defende que a tese do "declínio das
Ideologias" é ela própria uma Ideologia: uma
Ideologia moderada, fundada sobre uma avaliação
positiva da política pragmática, dos compromissos do
Estado do bem-estar e assim por diante, e, por isso,
fundamentalmente favorável ao status quo. A quarta
crítica, finalmente, sustenta que a tese é um ataque
contra a visão política geral e contra os ideais
humanos e éticos, que não seriam mais importantes.
Ela exprime um "feiticismo do empirismo", para usar
as palavras de C. W. Mills, que fecha e torna
irrelevante qualquer capacidade de superar a situação
de fato.
Passando da exposição à avaliação, começaremos
pelas críticas que têm em mira o componente diretivo
da tese do "declínio das Ideologias". A que
mencionamos por último, e segundo a qual a tese do
"declínio das Ideologias" é um ataque contra as visões
gerais e os ideais ético-políticos, é a menos fundada.
Não obstante uma certa confusão de termos, e ainda
que os defensores da tese não distingam de modo
sistemático as Ideologias dos outros sistemas de
crenças, perspectivas ou concepções, que não são
ideológicas; a partir de seus escritos, parece claro que
aquilo a que se referem quando falam de declínio,
declínio que eles avaliam positivamente, é um modo
particular de empregar as idéias e os ideais em
política, e não as idéias e os ideais políticos em geral.
"O fim da Ideologia", escreve por exemplo Bell, "não é
— não deve ser — o fim da utopia. . . Hoje, mais do
que nunca, a utopia é necessária, no sentido de que os
homens têm necessidade — como sempre tiveram
necessidade — de uma visão de suas potencialidades,
que lhes permita unir a paixão à inteligência" (Bell,
1960, p, 405). A terceira crítica — segundo a qual a
tese do "declínio das Ideologias" é ela própria uma
Ideologia — pode ser aceita com a condição de que se
adote, neste caso, uma acepção ampla e geral de
Ideologia. É incontestável, na verdade, que os
defensores da tese — desde Aron a Shils e desde Bell
a Lipset — não se limitam a afirmar que as Ideologias
estão em declínio no Ocidente, mas manifestam ainda
uma avaliação positiva do fenômeno. Com isto, fazem
uma escolha a favor de um certo tipo de política e
contra um outro tipo de política: e fazendo uma
escolha política, fazem uma escolha, lato sensu,
ideológica. Lipset reconheceu isso explicitamente numa
polêmica com LaPalombara. Ora, é claro que esta
escolha pode ser aceita ou rejeitada. Mas também é
claro que tudo isto nada tem a ver com o valor
científico ou cognoscitivo da tese: com a sua verdade
ou falsidade.
Passemos agora às críticas concernentes à validade
cognoscitiva da tese. A primeira crítica, que nega o
"fim" das Ideologias, é certamente plausível, mas não
atinge o alvo. Não obstante a imprecisão de tais
formulações, é suficientemente claro que os fautores da
tese não defendem o "fim", em sentido literal, das
Ideologias, mas mais o seu declínio, ou, se quisermos
usar essa palavra, o "fim" das Ideologias extremistas
pervadidas de paixões, totais, etc. De igual modo, os
fautores da tese, mesmo quando a posição de alguns
possa parecer menos unívoca, não entendem o declínio
das Ideologias como um fenômeno que se manifestou
de uma vez para sempre e, portanto,
irreversivelmente. Mas afirmam mais
IDEOLOGIA
simplesmente que, na abóbada do tempo que me-deia
entre os anos 30 e os anos 50 e 60, houve um declínio
das Ideologias nas sociedades industriais avançadas,
que provavelmente poderá manter-se por um certo
tempo. Da primeira destas duas explicações segue-se
que os exemplos de novos setores e de novos
contrastes ideológicos não conseguem demolir a tese
do "declínio das Ideologias" — em sentido relativo —
, a menos que com estes exemplos não se queira
sustentar que a intensidade da política ideológica não
foi diminuída, mas que apenas se deslocou para áreas
diferentes das tradicionais. É quanto afirma,
efetivamente, a segunda crítica, que é também a mais
interessante. A ela foi respondido que os movimentos
políticos mais importantes que emergiram nas
sociedades industriais do Ocidente, especialmente na
América do Norte, como o movimento estudantil, os
movimentos em favor da paz e dos direitos civis, o
movimento da nova esquerda e outros, são falhos de
um sistema geral e coerente de princípios, da
definição de fins políticos compreensivos e de uma
estratégia para atualizá-los, sem os quais não se pode
falar de Ideologia no sentido aceito pelos defensores
da tese do "declínio das Ideologias". Não temos,
porém, a propósito, análises articuladas e indagações
empíricas que enquadrem e enfrentem de maneira
conveniente toda a questão. De resto, a ausência de
pesquisas bem orientadas e controladas, até da parte
dos fautores da tese, que jamais tentaram uma
verificação elaborada e empírica das mesmas,
contribuiu para tornar difícil e parcialmente
inconcludente todo o debate.
Uma tentativa de averiguação direta da tese do
"declínio das Ideologias" foi feita recentemente por
John Clayton Thomas, por meio de um estudo das
mutações nas posições dos partidos, em relação a
vários problemas políticos, em doze países
industrializados, e tendo como principais pontos de
referência os períodos de 1931-1935, 1950-1956,
1957-1962. Decompondo a tese do "declínio das
Ideologias" em quatro hipóteses distintas, Thomas
achou-a confirmada, quer no sentido de uma
"convergência", ou de menor divergência, entre os
partidos políticos, quer no de uma substancial
"desradicalização" das exigências de mudança, tanto
por parte dos partidos operários como por parte dos
partidos não operários. A desradicalização dos
partidos operários não parece depender, por outro
lado, de uma sua significativa "despolarização", isto é,
do seu desvio para a direita, mas antes de uma
despolarização assaz firme (desvio para a esquerda)
do conjunto dos partidos não operários. Enfim, pelo
que respeita ao "afastamento das Ideologias
tradicionais", as conclusões não são unívocas: é
591
confirmado nos partidos liberais, socialistas e socialdemocráticos, mas não nos partidos trabalhistas da
Commonwealth e nos comunistas.
IV. O SIGNIFICADO FORTE DE IDEOLOGIA.
A) A "FALSIDADE" DA IDEOLOGIA COMO
FALSA REPRESENTAÇÃO. — Já dissemos que o
caminho mais apto para recuperar o significado forte
de Ideologia na sociologia e na ciência política é o de
uma reformulação, em termos empiricamente
aceitáveis, do conceito marxista de falsa consciência e
do nexo entre falsidade e função social da Ideologia,
que nela está presente. Esta direção de pesquisa é
mais árdua e requer que se enfrentem e se resolvam
vários problemas difíceis. Os mais importantes são os
que dizem respeito à estrutura, à gênese e à função da
Ideologia. Quanto à estrutura, trata-se de dar um
significado preciso e empiricamente plausível à
"falsidade" da crença ideológica. Quanto à gênese,
trata-se de dar um significado preciso e empiricamente
plausível à relação de determinação entre os interesses
e as exigências práticas dos homens envolvidos no
poder, de uma parte, e a crença ideológica, do outro.
Quanto à função, trata-se de dar um significado
preciso e empiricamente plausível à ação que a crença
ideológica desenvolve, no sentido da justificação do
poder e da integração política, tanto do lado da
obediência como do lado do comando.
Este trabalho de reformulação foi feito em parte,
em parte está ainda por fazer. Recentemente tem sido
encarado o tema da função da Ideologia, havendo sido
proposta, entre outras, uma solução para o problema
mais espinhoso desta área: o de explicar como uma
crença, que encobre e mascara in primis os interesses
dos detentores do poder, pode atuar como falsa
consciência até dos que a ela estão subordinados. O
ponto fundamental a tal respeito parece consistir na
distinção entre interesses de curto prazo (insertos na
situação de poder) e interesses de longo prazo
(relativos à mudança da situação de poder). Os
interesses de curto prazo existem, tanto entre os que
dominam como entre os que são dominados, embora,
para os dominadores, eles sejam predominantemente
positivos, ou seja, voltados para a obtenção ou
conservação de vantagens, e, para os dominados,
possam ser de preferência e até acentuadamente
negativos, isto é, tendentes a evitar os males maiores
que adviriam da rebelião. São estes interesses que
explicam a aceitação de uma comum justificação
ideológica do poder. Esta crença ideológica relaciona
com ideais ético-políticos, e, por isso, disfarça e
idealiza, por um lado, a luta pelas próprias vantagens
e, por outro, o temor de sanções e o sentimento de
humilhação. Ao mesmo tempo, por força desta mesma
592
IDEOLOGIA
idealização da situação existente, a Ideologia tende a
tornar escassamente perceptíveis os fatos que
poderiam favorecer uma mudança na situação de
poder e, portanto, os interesses de longo prazo — que
podem ser mais ou menos contrapostos entre si —
tanto dos que dominam como dos que são dominados
(Stoppino, 1978).
Em relação à gênese da Ideologia, W. G. Runciman
mostrou a legitimidade e a plausibilidade empírica da
idéia de um possível nexo causai entre os interesses e
as exigências práticas de um indivíduo ou de um
grupo, de uma parte, e suas crenças, de outra; e
indicou também a direção que importa tomar para
chegar a uma definição do interesse, em sentido
objetivo, útil para este fim. Falta entretanto uma
especificação analítica de todos os termos do
problema e dos processos incônscios e semicônscios
que nela estão implicados.
Mas, antes de qualquer outra indagação, impõe-se
uma reformulação empiricamente manipulável da
estrutura da Ideologia, antes de mais nada do
significado da sua "falsidade". Aos vários modos como
esta pode ser entendida dedicarei o que resta ainda
deste ensaio, repetindo em grande parte uma análise
feita anteriormente sobre este tema (Stoppino, 1974).
Um primeiro modo de definir a "falsidade" da
Ideologia é o de a entender como uma falsa
representação: uma crença ideológica é falsa porque
não corresponde aos fatos. A aplicação deste conceito
de falsidade às teorias sociais e políticas constitui um
aspecto importante da crítica das Ideologias de Pareto.
"Em geral", escreve ele a tal propósito em Sistemi
socialisti (1902-1903), "é preciso distinguir sempre o
fenômeno objetivo concreto da forma sob a qual o
nosso espírito o percebe, forma que constitui um outro
fenômeno que se pode chamar subjetivo. Para
explicar isto com um exemplo banal, a imersão de
uma vara reta na água é o fenômeno objetivo: nós
vemos essa vara como se estivesse quebrada e, se não
conhecêssemos o nosso erro, descrevê-lo-íamos como
tal: é o fenômeno subjetivo" (trad. ital., Torino 1974,
p. 136). Em obras posteriores, esta distinção entre
"fenômeno objetivo" e "fenômeno subjetivo" foi
reafirmada por Pareto, se bem que com palavras
diferentes. O que importa é que, para ele, as doutrinas
sociais e políticas são geralmente doutrinas que
descrevem a realidade social do mesmo modo como
nós descreveríamos a vara imersa na água, se
disséssemos que estava quebrada. A sua crítica se
baseia, em grande parte, no fato de que tais doutrinas
são, exatamente, falsas representações.
A própria crítica marxista da Ideologia se apresenta,
muitas vezes, sob a forma de uma crítica de falsas
"representações" da realidade. Basta
lembrar a passagem fundamental da Ideologia alemã,
onde Marx e Engels afirmam que na, sua teoria, "não
se parte do que os homens dizem, imaginam ou
representam, para chegar daqui aos homens vivos.
Mas, parte-se realmente dos homens em ação e na
base do processo real da sua vida se explica até o
desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideológicos
deste processo de vida" (trad. ital., p. 13). Esta
formulação se refere, por um lado, à gênese da
Ideologia e afirma que as imagens e as representações
que os homens fazem da situação social e de si
próprios são determinadas (são "reflexos" ou "ecos")
pelo processo real da vida em que operam. E se refere,
por outro lado, à "falsidade" da Ideologia, que é
entendida como uma falsa representação, no sentido
de que as imagens que os homens fazem da situação
social e de si próprios são imagens que não
correspondem à realidade. Na verdade, como acabamos
de ler antes, o que conta é o processo de vida de
"indivíduos determinados", "não como podem
aparecer nas representações próprias ou alheias, mas
como são realmente" (p. 12). Ora, seria absurdo
reduzir o conceito marxista da falsa consciência a uma
pura e simples e falsa representação. Mas permanece o
fato de que a "falsidade" da Ideologia aparece aqui,
prevalentemente, a par de outras passagens, como uma
descrição falsa da realidade.
Ao mesmo tempo que é o mais simples e o mais
óbvio, o conceito de "falsidade", como falsa
representação da realidade, é também o mais fraco:
aquele do qual mais facilmente nos podemos
desembaraçar. Ele tem contra si, em nosso contexto,
duas objeções grandes. Em primeiro lugar, é
pertinente a distinção de Sartori entre o valor de
verdade e o valor funcional da Ideologia, com a
conseqüência de que a "falsidade" como falsa
representação é pouco ou muito útil no estudo das
funções que os sistemas de crenças desenvolvem no
processo político. De resto, foi o próprio Pareto que
distinguiu, com maior vigor e maior coerência, entre a
verdade e a falsidade de uma doutrina, entre sua
eficácia ou ineficácia e entre sua utilidade ou prejuízo
social. Limitando-nos aos dois primeiros aspectos da
distinção, que são os que interessam nesta discussão,
podemos dizer, com Pareto, que, entre a verdade ou a
falsidade de uma doutrina e a sua eficácia ou
ineficácia, não existem relações significativas. Há
doutrinas verdadeiras e eficazes, doutrinas falsas e
eficazes, doutrinas falsas e ineficazes. Da verdade ou
falsidade de uma doutrina não se pode deduzir nada
sobre sua eficácia ou ineficácia; e da eficácia ou
ineficácia de uma doutrina não se pode deduzir nada
acerca da sua verdade ou falsidade. Ora, este
dualismo de Pareto pode talvez ser corrigido
IDEOLOGIA
em determinados casos, no sentido de que, em certas
ocasiões, a eficácia de uma doutrina social ou política
pode comportar uma certa proporção, por assim dizer,
de verdade. Mas, em sua proposição fundamental, o
dualismo paretiano parece incontestável. Por
conseqüência, não podemos fundar-nos numa noção de
falsa representação para dar uma interpretação do
conceito marxista de Ideologia que torne explícito o
nexo, que nele existe oculto, entre a "falsidade" e a
função social da crença ideológica.
A segunda objeção é ainda mais radical, porque
ataca a própria aplicabilidade aos sistemas de crenças
políticas da noção da falsa representação. Os sistemas
de crenças políticas não são teorias científicas, que se
limitam à descrição e à explicação descritiva. Neles se
encontram elementos descritivos e elementos
prescritívos. E estes últimos são essenciais, desde o
momento em que as crenças políticas têm uma função
eminentemente prática. O "dar um sentido" à situação
política é, de uma parte, uma interpretação da
realidade social na qual os homens se movem; mas é
também, e sobretudo, por outra parte, uma orientação e
um guia dos seus comportamentos coletivos. Tudo
isto é óbvio, mas leva consigo uma notável
conseqüência para o nosso tema: as crenças políticas
podem dizer-se falsas apenas em seus elementos
descritivos, não em seus elementos prescritívos. Se
aceitamos a distinção fundamental entre asserções de
fato e juízos de valor, então o caráter da "falsidade",
como falsa representação, pode ser predicado das
primeiras, mas não dos segundos. Com base no critério
da correspondência com os fatos, os juízos de valor
não são verdadeiros nem falsos. Mas deste modo
podemos referir a qualificação de "falsidade" apenas a
uma parte, e não à mais importante das crenças
políticas.
É evidente, por outro lado, que o conceito marxista
da falsa consciência — que procuramos esclarecer e
reformular de uma forma empiricamente manipulável
— diz respeito a todo sistema de crenças. Para Marx,
é falsa consciência não apenas as asserções e as
interpretações, mas também e sobretudo os valores e
os ideais da Ideologia burguesa. Se tirarmos à noção
de falsa consciência este requisito de solidez, tira-selhe também grande parte de sua força sugestiva. O
nosso problema torna-se portanto o seguinte: existe
um significado de "falsidade" que possa traduzir, em
termos empiricamente plausíveis, esta força sugestiva
da noção marxista de Ideologia? Podemos predicar a
"falsidade" de certos valores num sentido que não seja
simplesmente polêmico e que não seja fundado sobre
uma concepção incontrolável da realidade e da
história? A possibilidade
593
de dar uma resposta positiva a esta interrogação está
ligada a possibilidade de resolver, de modo
satisfatório, o problema conexo da restauração de um
nexo significativo entre "falsidade" e função social da
Ideologia.
V. B) A "FALSIDADE" DA IDEOLOGIA COMO
FALSA REPRESENTAÇÃO. — Na interpretação
neopositivista da Ideologia podemos encontrar um,
modo de atribuir o caráter de "falsidade" a certos
juízos de valor. Esta interpretação é exposta por
Gustavo Bergmann do seguinte modo: "Se tomarmos
em consideração a história humana, penso que não
podemos fugir da seguinte conclusão: o poder que
motiva um juízo de valor é muitas vezes incrementado
quando no 'racional' de quem o tem (isto é, no
complexo dos conhecimentos e dos ideais que
constituem a base geral do seu modo de pensar); isso
aparece não tanto sob a bandeira lógica apropriada ou
como juízo de valor, mas travestido como asserção de
fato. Chamarei uma asserção deste tipo ou um juízo de
valor travestido, ou trocado por uma asserção de (ato,
de 'asserção ideológica'. Chamarei de Ideologia um
'racional' ou uma importante parte dele que contenha
em alguns lugares logicamente cruciais asserções
ideológicas. E, enfim, defino o homem 'animal
ideológico' porque, ao menos até este ponto da sua
história, os seus 'racionais' não foram, muitas vezes,
mais do que Ideologias, e porque, agrade ou não, o
poder motivante dos seus critérios resulta, pelo menos,
às vezes, notavelmente incrementado quando assumem
a forma de Ideologias".
Segundo esta perspectiva de Bergmann, que é
análoga à de Theodor Geiger, e que é substancialmente
acolhida por Ernst Topitsch, o caráter ideológico de
uma proposição não está na sua falta de
correspondência aos fatos. A proposição ideológica
não é um juízo de fato, apesar de ter dele o status
simbólico: é um juízo de valor. Enquanto tal, a
proposição não "representa" a realidade e por
conseqüência não é, deste ponto de vista, nem
verdadeira nem falsa. Melhor dito, sua "falsidade" é
compreendida como uma falsa apresentação. Na
consciência da pessoa, a avaliação se apresenta sob a
falsa veste de uma asserção da realidade.
Analiticamente, a "falsidade" da proposição consiste
na incompatibilidade entre seu conteúdo (que é uma
avaliação) e a sua forma simbólica (que é típica das
asserções de fato). O que é falso é portanto o seu
status simbólico, o seu modo de apresentação à
consciência.
Esta interpretação é indubitavelmente brilhante e
individualiza um fenômeno importante. Todavia, com
respeito ao nosso problema, ela dá o flanco a duas
objeções que me parecem
594
IDEOLOGIA
difícilmente superáveis. A primeira é que a
interpretação bergmanniana é muito mais útil no
campo da crítica do conhecimento do que no da
pesquisa política- Serve para mostrar as distorções
que os valores e as inclinações práticas infiltram nas
teorias científicas e filosóficas, mas serve muito
menos para estudar e comparar, no plano empírico, os
sistemas de crenças políticas.
A sua aplicação prática, de fato, pressupõe uma clara
distinção entre as formas simbólicas "corretas" para os
juízos de valor e as formas simbólicas corretas para as
asserções de fato. O ponto importante é que esta
distinção deve estar presente, não apenas no discurso
de quem aplica o conceito de Ideologia, mas também
no discurso ao qual tal aplicação se refere. Se, neste
último discurso, a distinção é inexistente, ou tênue ou
inconstante, e as mesmas formas simbólicas são
empregadas com significados diversos, tanto para
exprimir valores como para asserir fatos, então a
aplicação do conceito de Bergmann a respeito de
Ideologia torna-se muito difícil e pouco concludente.
Quanto mais cresce a diferença entre a distinção das
formas simbólicas no discurso do crítico da Ideologia e
a indistinção das formas simbólicas no discurso que é
submetido à crítica, tanto mais a operação crítica tende
a transformar-se na superimposição de uma linguagem
técnica, e com significados unívocos, a uma
linguagem não técnica e com significados
polivalentes.
Por este motivo, este conceito de Ideologia é útil
sobretudo para analisar criticamente as teorias
científicas e filosóficas que são caracterizadas por um
uso controlado dos símbolos. Mas é útil também para
as doutrinas políticas que, embora não tenham uma
função direta político-prática, representam, entretanto,
um sério empenho de reflexão e comportam um
emprego mais ou menos rigoroso da linguagem. Mas,
torna-se muito menos fértil quando se trata de aplicá-lo
às crenças políticas, consideradas em sua existência
efetiva e prática. Tais crenças envolvem grandes
multidões de gente comum e se expressam através da
consciência e da linguagem do homem comum, os
quais estão longe das sutilezas do cientista e do
filósofo e nos quais a distinção entre juízos de fato e
juízos de valor é, para não dizer outra coisa, muito
confusa e incoerente, além de não existir uma
separação clara entre as formas simbólicas usadas para
asserir fatos e as usadas para expressar valores.
Em todo caso, mesmo se admitíssemos a sua
aplicabilidade às crenças políticas, o conceito de
Ideologia de Bergmann iria ao encontro da segunda
objeção: isso não resolve nosso problema de achar um
significado controlável para a idéia de que os juízos
de valor podem constituir uma
falsa consciência de uma situação de poder. A falsa
consciência, tal como a entendia Marx, é qualquer
coisa que ultrapassa o modo em que uma crença é
formulada ou o status simbólico através do qual se
apresenta à consciência. A falsa apresentação é uma
coisa; a falsa consciência, outra. Uma crença não
deixa de ser ideológica se nela é corrigida a
apresentação dos juízos de valor, e estes últimos são
reduzidos ao status simbólico apropriado. De outra
maneira, teríamos de dizer, por exemplo, que a crença
de dois escravos, que justifica como bom e legítimo o
poder que o senhor tem sobre eles, é ideológica para o
primeiro escravo, porque na sua consciência os juízos
de valor se apresentam sob a forma de asserções de
fato, mas não o é para o segundo, porque na sua
consciência os juízos de valor se apresentam na forma
simbólica correta.
A verdade é que entre a noção de Ideologia de
Bergmann e a de Marx existe uma diferença de fundo.
A primeira é ditada principalmente pelo intuito de
purificar a teoria ou o intelecto das incrustações da
praxe; a segunda, pelo intuito de liberar a praxe das
incorreções da teoria ou da consciência. O inimigo
último da primeira colocação é o dogmatismo e a
intolerância; o da segunda, a dominação do homem
sobre o homem. Por isso, entendida em sentido
bergmanniano, a crítica da Ideologia produz a clareza
intelectual, a consciência da distinção entre fatos e
valores; entendida em sentido marxista, produz o
desmascaramento da opressão e da exploração. Daqui
se conclui que as crenças políticas podem ser
reconduzidas ao conceito marxista de falsa
consciência, independentemente da forma simbólica
que nelas assumem os juízos de valor: a apropriada ou
a imprópria, que pertence às asserções de realidade.
As duas objeções até aqui feitas à noção de falsa
apresentação são decisivas e irrefragáveis. Deve-selhes acrescentar, no entanto, ainda uma terceira, que
parece igualmente decisiva para os nossos fins e lança
por terra uma das críticas apresentadas no devido
tempo à noção de falsa representação. Pois que
respeita ao status simbólico dos juízos de valor, a
"falsidade", como falsa apresentação, pode ser aplicada
aos ideais, aos valores, às normas, e aos princípios
éticos, mas não pode ser aplicada às descrições, às
interpretações, às previsões, numa palavra, à asserção
de fatos. Não obstante, também as asserções de fatos
são parte integrante desse complexo aparelho
simbólico que dá sentido e justifica uma determinada
situação de poder e a que chamamos Ideologia. A
noção de falsa apresentação diz respeito apenas aos
juízos de valor, tal como vimos que a noção de falsa
representação só diz respeito às asserções
IDEOLOGIA
de fatos. O conceito de "falsidade" de que precisamos
deve poder ser aplicado, pelo contrário, tanto ao
componente diretivo como ao componente descritivo
de uma Ideologia.
VI. C) A "FALSIDADE" DA IDEOLOGIA COMO
FALSA MOTIVAÇÃO. — Voltamos assim à nossa
indagação: em que sentido os juízos de valor podem
constituir uma falsa consciência? E, além disso, de que
modo um mesmo tipo de "falsidade" pode ser
predicado tanto de juízos de valor como de asserções
de realidade? Para encontrarmos uma resposta
satisfatória a esta interrogação, penso que devemos
concentrar a atenção sobre os laços existentes entre
poder e Ideologia. Os sistemas de crenças políticas,
que podem ter caráter ideológico, interpretam e
justificam determinadas situações de poder. Neles, os
juízos de valor qualificam como legítimo, como bom
e/ou útil o poder. E dessa maneira motivam os
comportamentos de comando e os comportamentos de
obediência. Nesta base podemos identificar uma outra
noção de "falsidade": o juízo de valor pode ser uma
falsa motivação, que cobre' ou mascara os motivos
reais do comando ou da obediência. Por exemplo, o
juízo de valor com base no qual se crê na
superioridade moral e "natural" dos senhores em
relação aos escravos pode mascarar, em grau menor
ou maior, na consciência dos senhores e na dos
escravos, a motivação de fato prevalecente do
comando, que pode ser o interesse, e a motivação
predominante de fato da obediência, que pode ser o
temor da violência. Creio que este conceito de
"falsidade" é, de longe, o mais promissor para o
estudo empírico da política.
A noção de "falsidade" como falsa motivação se
acha em todos os escritores mais importantes que
deram origem ao significado forte de Ideologia ou
que desenvolveram, sob vários nomes, a crítica das
Ideologias. Encontra-se em Pareto, que em Sistemi
socialisti sublinha a circunstância singular que "muito
freqüentemente os homens não têm consciência das
forças que os impelem a agir" e "dão às suas ações
causas imaginárias, muito diversas das causas reais"
(trad. Ital., pp. 138-39); e cuja noção de "derivação",
um dos conceitos cruciais da crítica das Ideologias
desenvolvido no Trattado di sociologia generale,
designa os raciocínios pseudológicos com que o
homem estende um "véu sobre seus instintos e sobre
seus sentimentos" (§ 1.400), precisamente sobre
aqueles que são, para Pareto, os moventes de suas
ações. Está presente em Nietzsche, que pode ser
considerado o terceiro autor clássico no campo da
crítica das Ideologias, e para o qual os nossos juízos
de valor e a própria moral são "apenas a
595
linguagem figurada dos nossos impulsos" e por detrás
de nossos "motivos conscientes" existe "a luta dos
impulsos e das condições — a luta pelo poder" (cit. em
Barth, 1945, trad. ital., p. 291). Sobretudo, é central no
conceito marxista e engelsiano da falsa consciência,
que mascara os interesses materiais da classe
dominante com o véu dos valores morais e políticos, de
modo que, como está escrito na Ideologia alemã, "uma
época, por exemplo, imagina ser determinada por
motivos puramente políticos ou religiosos, quando, na
verdade, religião e política são apenas, formas dos
seus motivos reais" (trad. ital., p. 31). E como se lê
numa passagem famosa de uma carta de Engels a
Mehring (em 14 de julho de 1893), "a Ideologia é um
processo realizado pelo assim chamado pensador, de
modo consciente, é verdade, mas com uma falsa
consciência. Os reais motivos que o impelem ficam
desconhecidos para ele, de outra sorte não se trataria
de um processo ideológico real. Portanto, ele imagina
motivos falsos ou aparentes".
No seu dinamismo psicológico, a Ideologia como
falsa motivação é análoga ao conceito psicanalítico de
"racionalização", com o qual se designa, precisamente,
a elaboração de motivos fictícios para as próprias
ações ou para os próprios comportamentos, cujos
moventes reais permanecem inconscientes. Mas
diferentemente do conceito de racionalização, o
conceito de Ideologia tem natureza social, porque diz
respeito aos comportamentos coletivos e não aos
individuais;
e,
mais
especificamente,
os
comportamentos coletivos que se instauram numa
situação de poder. Segue-se que as crenças, às quais
se pode atribuir o caráter da Ideologia, são também
crenças coletivas, que encobrem ou mascaram os
verdadeiros moventes da conduta, a nível do grupo ou
do agregado social, e não a nível do indivíduo. Esta
formulação da específica natureza social da Ideologia é
claramente uma generalização do ponto de vista de
Marx; porque é exatamente em Marx, mais do que em
Pareto, e, de um modo mais concreto e determinado do
que em Nietzsche, que a Ideologia como falsa
motivação se insere explicitamente nas relações de
dominação do homem sobre o homem.
Outros aspectos significativos da noção de
"falsidade" como falsa motivação emergem quando
consideramos as relações que ocorrem entre esta e as
demais noções de "falsidade" anteriormente discutidas:
a falsa representação e a falsa apresentação. A
primeira relação parece, à primeira vista, muito
estreita, pois que a falsa motivação é, implicitamente,
uma falsa representação. O que é falso não é o juízo
de valor enquanto tal, mas a sua função de motivação,
e, por isso, a
596
IDEOLOGIA
descrição (implícita) que faz a força motivante
exclusiva ou principal da relação de poder. Por
exemplo, em relação a um dado poder, o juízo de
valor com base no qual "os chefes melhores são os
que são eleitos pelo povo" não é, de per si, nem
verdadeiro nem falso. Verdadeira ou falsa é a
representação (implícita) segundo a qual "a crença na
legitimidade democrática do poder é a motivação
dominante ou exclusiva dos comportamentos de
comando e de obediência".
Deve-se então dizer que a noção de falsa
representação absorve em si a de falsa motivação?
Que as crenças políticas são Ideologias quando dão
uma representação falsa do poder, com a advertência
de que os juízos de valor são interpretados como
descrições das motivações do comando e da
obediência? A resposta deve ser negativa, já que, se
aceitássemos esta conclusão, terminaríamos por
justapor dois critérios diferentes de avaliação da
"falsidade" ideológica de uma crença política. Para as
partes descritivas, julgá-las-emos com base em seu
conteúdo; para as partes prescritivas, julgá-las-emos
com base em sua função. Deste modo, estaríamos
desprezando o fato de que a função de "dar um
sentido", de justificar o poder e, portanto, de motivar
o comando e a obediência é coisa inerente não apenas
aos valores, mas também aos fatos verdadeiros ou
presumidos que estão contidos nas crenças políticas.
Uma asserção de realidade compreendida numa crença
política pode ser verdadeira no seu conteúdo descritivo
e falsa na sua função, ou seja, como elemento que
contribui para motivar os comportamentos que existem
na relação de poder. Ou, então, uma asserção de
realidade pode ser falsa em seu conteúdo descritivo,
mas irrelevante do ponto de vista ideológico, porque é
um elemento acessório e ininfluente a respeito da
função justificadora e motivante da crença de que faz
parte.
Portanto é a falsa motivação que prevalece sobre a
falsa representação, e não vice-versa. Ela fornece o
critério unitário na base do qual se deve avaliar o
caráter ideológico das crenças políticas. Isto não quer
dizer porém que as "falsidades" fatuais (asserções de
fato) sejam todas irrelevantes, por definição. Significa
apenas que têm caráter ideológico na medida em que
contribuem significativamente para o edifício
simbólico que, em medida maior ou menor, constitui a
falsa força motivante do comando e da obediência.
Este ponto é importante, porque permite superar o
dilema da contraposição entre a "falsidade" e a função
social da Ideologia. A afirmação de Pareto, de que
não há relações significativas entre o aspecto
"objetivo" (de acordo ou não com a experiência) e o
"subjetivo", (eficácia prática) da Ideologia, e a
distinção de Sartori entre o "valor
da verdade" (que é o que interessa no campo da
crítica ou da sociologia do conhecimento) e o "valor
funcional" da Ideologia (que é o que interessa no
estudo da política) são legítimas e corretas, enquanto
a "falsidade" é interpretada no sentido da falsa
representação da realidade, mas não valerão mais no
momento em que por "falsidade" se entender a falsa
motivação. Este último tipo de "falsidade" está ligado
diretamente ao aspecto prático e funcional das crenças
políticas e, precisamente, o caráter dependente ou
independente da sua eficácia orientadora dos
comportamentos coletivos da relação de poder. A base
desta interpretação, o significado forte de Ideologia
que se apóia na noção de "falsidade" readquire, por
isso, em linha de princípio, toda a sua pertinência e
importância no campo da interpretação empírica dos
fenômenos políticos.
Passemos agora à segunda relação. A respeito da
falsa apresentação, a "falsidade" como falsa
motivação constitui, se olharmos o lado substancial,
uma verdadeira reviravolta dos termos. No primeiro
tipo de "falsidade", um juízo de valor se disfarça de
asserção de fato. No segundo tipo de "falsidade", é
mais um fato que se disfarça de valor. Por exemplo,
aqueles interesses realmente particulares tornam-se o
bem comum; ou aquela que é de fato a necessidade de
dobrar-se a uma força superior torna-se o dever de
obedecer a um princípio ético. Esta reviravolta
esclarece ainda melhor a diferença de níveis aos quais
se referem o conceito aqui sugerido e o bergmanniano
de Ideologia. O primeiro, que é de origem marxista, se
refere ao estágio no qual as condições reais do poder
contribuem para forjar (e para deformar) a
representação-aceitação do poder e dos valores. O
conceito bergmanniano, pelo contrário, não coloca em
discussão o processo de formação dos valores e os
aceita como dados; e concentra a atenção sobre o
estádio que analiticamente se sucede, no qual os
valores já formados, para incrementar a própria
eficácia, se apresentam na forma simbólica das
asserções de fato. Em resumo, o primeiro conceito diz
respeito à formação (gênese) dos valores; o segundo
conceito, à sua formulação.
Em conclusão: pode-se dizer que a interpretação
da "falsidade" da Ideologia, no sentido da falsa
motivação, tem diversas vantagens. Em primeiro lugar,
ela dá um significado preciso à idéia de que os juízos
de valor possam ser elementos integrantes da falsa
consciência de uma situação de poder. Por
conseqüência e em segundo lugar, ela restaura o nexo
entre a "falsidade" e a função da Ideologia,
restituindo à palavra o seu significado forte, mesmo
no campo da análise política, e evitando tanto a
desvirilização implícita na
IGUALDADE
aceitação exclusiva do significado fraco, como o
afogamento na concepção bergmanniana da falsa
apresentação. Em terceiro lugar, estabelece uma
relação estrutural entre Ideologia e poder, evitando a
dissolução do conceito no mare magnum da
sociologia do conhecimento.
Em quarto lugar, esta interpretação, enquanto
recupera o fulcro da noção marxista da falsa
consciência (e a sua ligação com a situação de poder),
não é constrangida a dar entrada à ontologia. Do
ponto de vista da sociologia e da ciência política, a
Ideologia como falsa motivação é um caráter possível
das crenças que interpretam e justificam as diversas
relações de poder; que pode estar presente em vários
graus; e que, quando está presente, esconde outras
motivações e outros fatores determinantes da relação
de poder, os quais não podem ser estabelecidos
antecipadamente e de uma maneira geral, mas devem
ser individualizados, de cada vez, por meio da
indagação empírica. Por conseqüência e em quinto
lugar, esta interpretação abre caminho, pelo menos em
linha de princípio, a um possível tratamento empírico
da "falsidade" ideológica das crenças políticas. Uma
vez cortados os laços com a filosofia marxista da
história, a identificação da falsa consciência não se
funda mais sobre a posição prática privilegiada de
uma classe social; mas sobre os métodos de
averiguação e de controle da ciência, empregados para
investigar a possível divergência entre as condições
determinantes e as forças motivantes reais do poder e
a forma que as mesmas assumem nas descrições e nas
prescrições da crença política.
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[MARIO STOPPINO)
Igualdade.
Delimitemos, antes de mais nada, a expressão que
queremos definir. Impõe-se uma distinção. A
Igualdade pode ser afirmada, quer de certas
características pessoais, quer da distribuição feita por
alguém pelo menos entre outros dois, quer ainda de
normas que estabelecem como tal distribuição há de
ser efetuada. Do ponto de vista da nossa reflexão, a
Igualdade, nos dois primeiros significados, não
apresenta qualquer problema. Nós nos ocuparemos
principalmente da Igualdade como propriedade das
regras de distribuição.
I. IGUALDADE DAS CARACTERÍSTICAS PESSOAIS. —
Quando se diz que duas ou mais pessoas são iguais
quanto à idade, cidadania, raça, rendimentos, aptidão
ou necessidades, isso significa simplesmente que
possuem a mesma idade, nacionalidade, cor, renda,
habilidades ou necessidades (Bedau in Pennock,
1967, 8), ou que são, em substância, semelhantes sob
tais aspectos.
Ao afirmar que "a natureza fez os homens tão
iguais na capacidade física e intelectual" (Leviatã,
cap. XIII) que qualquer pessoa pode matar, mas
598
IGUALDADE
não superar outra em astúcia, Hobbes entende que
todos os homens possuem fundamentalmente a
mesma potência física e intelectual e que as diferenças
são insignificantes. Pessoas de diferente idade, raça ou
habilidade, consideramo-las desiguais nesses aspectos.
Podemos dizer que os seres humanos só são iguais ou
desiguais em relação a determinadas características que
devem ser especificadas. Não tem sentido afirmar que
"todos os homens são iguais". Alguns podem ser
quanto a uma característica particular; todos, não. A
única característica que é comum a todos é a "natureza
humana"; mas isto é uma afirmação tautológica.
Igualdade e desigualdade de características são, sem
dúvida, conceitos descritivos. Com efeito, que A e B
tenham a mesma idade, nacionalidade ou rendimentos é
coisa que pode empiricamente verificar-se; tanto como
a afirmação de que A tem maior habilidade ou aptidão
que B. Estas asserções, descritivas e não normativas,
têm sido chamadas juízos distintivos de valores.
igualitário relativo a uma regra, mas do caráter
igualitário da própria regra.
Igualdade e justiça possuem, na realidade, uma
importante característica comum: ambas só podem ser
sustentadas por regras que determinam como certos
benefícios ou gravames hão de ser distribuídos entre
as pessoas. Poderemos perguntar se é moral ou imoral
permitir ou proibir o aborto e o divórcio, mas não se
tais decisões são justas ou injustas (Frankena in
Brandt, 1962, 4), ou se não igualitárias ou não
igualitárias. Estas últimas categorias podem aplicar-se
a princípios que estabelecem o modo como o direito
de voto, os salários, o dever de pagar as contribuições
ou de prestar serviço nas forças armadas devem ser
distribuídos.
As regras de distribuição apresentam a seguinte
forma geral: todo benefício específico (o direito de
voto, por exemplo) ou ônus (um imposto geral sobre a
receita) deve ser distribuído ou negado a uma pessoa,
se ela possuir ou não uma característica específica (a de
II. IGUALDADE DE TRATAMENTO. — Se duas ou ser, por exemplo, um cidadão de mais de vinte anos,
mais pessoas são "tratadas de forma igual" ou não, branco, comprar cigarros). Ou, então, a cota de um
isso é também uma questão empírica. A e B são benefício específico (o salário, por exemplo) ou de
tratados de modo igual por C, se C atribui a A e B o um ônus (imposto sobre rendimentos) estará em
mesmo benefício específico (por exemplo, um voto), o relação com a totalidade ou grau de uma determinada
mesmo ônus (um ano de serviço militar), ou então a característica que a pessoa tem (sua habilidade, sua
mesma cota de um determinado benefício ou encargo renda).
(salário, gravame fiscal). Se A pode votar, mas B não,
Perguntamos então: existe um critério que nos
se A é chamado ao exército, mas B isentado, se A
recebe um salário maior do que B, então A e B têm permita classificar qualquer regra (efetiva ou
imaginável)
de distribuição como igualitária ou não
um tratamento desigual sob esses aspectos.
igualitária, prescindindo de toda consideração
O fato de que A e B tenham de receber uma
avaliatória ou normativa? Vamos examinar agora
distribuição igual ou desigual depende da norma de
alguns dos critérios tradicionalmente usados, embora
distribuição aplicável. Pelo que respeita à norma de
freqüentemente só de maneira implícita.
distribuição, A e B são tratados de rnaneira igual, não
porque ambos sejam alvos da mesma concessão, mas
IV. CRITÉRIOS TRADICIONAIS DE IGUALITARISMO.
porque a regra lhes é aplicada de modo imparcial.
PARTES IGUAIS PARA TODOS. — Essencialmente
Tratando-se do direito de voto reservado aos
concebido, um sistema moral ou jurídico é igualitário,
brancos, brancos e negros são tratados de modo igual
se todos os benefícios ou encargos forem distribuídos,
sempre que aqueles tenham o direito de votar e estes
em partes iguais, por rocios. É este o princípio
não. Qualquer regra de distribuição pode ser aplicada
aristotélico da Igualdade numérica — "serem igual e
de modo parcial ou imparcial. O tratamento segundo
identicamente tratados no número e volume das coisas
as regras predominantes, quaisquer que sejam suas
recebidas" (Política, 1301 b) —, aplicado a tudo
determinações, é sempre igualitário como imparcial.
quanto cada um deve receber ou renunciar. É também
esse o princípio utilitarista enunciado por Mill —
III. REGRAS IGUALITÁRIAS DE DISTRIBUIÇÃO. — Que duas
"todos contam por um, ninguém por mais de um" —
pessoas quaisquer sejam tratadas de modo igual em
na distribuição de todos os benefícios e gravames.
relação a uma determinada regra de distribuição, é
Um tratamento igual para todos sob todos os aspectos
coisa que se há de distinguir do fato de elas terem de
foi defendido por alguns anarquistas do século XIX: a
ser tratadas assim em virtude dessa regra. É este o
Igualdade de ocupação (participação dos intelectuais
problema que nos interessa: ocupar-nos-emos não do
nos trabalhos manuais), de consumo (comida e vestido
tratamento
semelhantes para todos) e, particularmente, de
educação eliminariam, enfim, as desigualdades das
características
IGUALDADE
pessoais, como as do talento e da inteligência,
acabando por forjar uma espécie humana uniforme. O
problema que nos interessa aqui não é se tal
sociedade' é desejável ou talvez possível, mas se
podem existir regras assim. As normas de distribuição
concernem sempre a certos benefícios ou encargos a
atribuir a determinadas pessoas. Há até princípios
gerais, como os da Revolução Americana ou da
Revolução Francesa, que proclamam que é necessário
reconhecer a todos os mesmos direitos fundamentais,
o que equivale a dizer que os respectivos Governos os
hão de reconhecer a todos os cidadãos, seja qual for o
sistema político. Se igualitarismo significasse partes
iguais de tudo para todos, todas as regras existentes
seriam, na prática, não igualitárias.
V. PARTES IGUAIS AOS IGUAIS. — O mesmo
Aristóteles ampliou o critério de igualitarismo pa
ra abranger as regras que atribuem "partes iguais
aos iguais", ou seja, partes iguais de qualquer
tipo especificado aos que forem iguais em alguma
característica específica. Inversamente, uma regra
é não-igualitária "quando os iguais têm partes de
siguais ou os não-iguais partes iguais" (Ética a
Nicômaco, 1131 a).
Cabe agora aqui a crítica contrária. Toda regra de
distribuição imaginável se revela igualitária em tal
sentido, já que toda regra atribui o mesmo benefício ou
ônus a todos os que possuem a mesma característica
específica, e não aos que são desiguais nesse sentido.
Sufrágio universal significa que qualquer cidadão
adulto terá um voto, mas que os menores ou dementes
não terão nenhum. O sufrágio dos brancos significa
que o direito de voto se concede a todos os cidadãos
adultos de raça branca, mas não às pessoas de cor. Ao
invés, uma regra não-igualitária neste sentido constitui
uma impossibilidade lógica. Uma regra não pode
estabelecer que os iguais — compreendidos aqueles
que possuem a característica especificada pela regra —
obterão partes desiguais e os não-iguais, partes iguais.
Praticar a discriminação racial significa dar o mesmo
tratamento aos da mesma cor e conceder partes
desiguais aos que não são iguais quanto a tal
característica.
VI. PARTES IGUAIS A UM GRUPO RELATIVAMENTE
— Já que a regra de distribuição se refere a
uma certa classe de pessoas que devem ser tratadas de
maneira igual, poder-se-ia obser var — como faz
Berlin (1961, 135) — que uma regra é mais igualitária
que outra se garante "a um maior número de pessoas
(ou classes de pessoas) o recebimento de um
tratamento análogo em circunstâncias específicas".
Para sermos mais precisos, uma distribuição de
benefícios é tanto
GRANDE.
599
mais igualitária quanto maior é a classe de pessoas que
os recebem, em comparação com o número das
excluídas. O sufrágio universal, que exclui apenas os
menores e os dementes, é mais igualitário que um
sistema que exclua também os negros. Privar do
direito de voto as mulheres é mais inigualitário que
privar os negros, se estes constituem menos da metade
da população, mas é menos inigualitário, se a maioria
é de cor. Ao sustentar a Igualdade de direitos políticos
para os proprietários, Locke era mais igualitário que
os seus predecessores, mas menos igualitário que os
defensores sucessivos do sufrágio universal. Por outro
lado, uma norma que atribui encargos é tanto mais
igualitária quanto maior é a classe de pessoas a que é
imposta. Isentar os estudantes do serviço militar é
menos igualitário do que alistá-los.
Este critério tem a grande vantagem de que
igualitarismo e inigualitarismo se tornam conceitos
comparativos. Do ponto de vista da ciência empírica,
ele é superior aos conceitos meramente classificatórios
e pode eventualmente permitir a quantificação.
A sua desvantagem é que todas as regras do gênero
"a cada um segundo a sua necessidade" se tornarão
altamente inigualitárias, a menos que ocorra ser
relativamente grande a parte da população que possua
o mesmo elevado grau de necessidade. Um imposto
geral sobre a receita seria muito igualitário; mas, ao
contrário, seria profundamente inigualitário o imposto
progressivo sobre a renda, porquanto dividiria os
contribuintes, não apenas em duas classes, mas num
grande número de níveis, impondo uma carga fiscal
maior ao número geralmente pequeno dos que gozam
de maiores rendimentos. O imposto progressivo sobre
a renda só se tornará mais igualitário quando a grande
maioria se situar no nível mais elevado. Até mesmo o
princípio da Igualdade de oportunidades seria, não
obstante a sua denominação, inigualitário, uma vez
que proporciona a quem carece de certas
oportunidades vantagens maiores que àqueles que já
as possuem.
VII. IGUALDADE PROPORCIONAL. — Contudo, nós
somos impelidos a considerar igualitárias a atribuição
de benefícios maiores aos mais necessitados e a
prescrição de impostos progressivos sobre a renda. E o
são se o igualitarismo for entendido no sentido da
"Igualdade proporcional" ou da "Igualdade das
relações" de Aristóteles (Política, 1301 b).
Pode-se dizer que uma regra de distribuição
satisfaz esta exigência desde que a quantidade de
benefício ou de ônus atribuída a uma pessoa constitua
uma função monótona crescente da
600
IGUALDADE
característica pessoal especificada pela regra: quanto
maior for a característica, tanto maior será a parte.
Dois indivíduos quaisquer são tratados de forma igual
neste sentido, quando a diferença da cota atribuída a
cada um corresponde igualmente ao grau em que
ambos diferem no que respeita à característica
especificada.
Todavia, com base neste critério, qualquer regra
imaginável se tornaria igualitária, como sucede
exatamente com o princípio das partes iguais aos
iguais. Com efeito, todas as regras de distribuição não
atribuem apenas "partes iguais aos iguais" e "partes
desiguais aos não-iguais", como o fazem também
"proporcionalmente" às desigualdades destes. Ambas
as regras, "a cada um conforme a sua necessidade" e "a
cada um conforme a própria estatura", atribuem partes
diferentes a pessoas diferentes, na proporção em que
estas diferem em necessidade e estatura. Um imposto
fixo e um imposto progressivo sobre a renda satisfazem
a ambas as exigências da Igualdade proporcional. O
ideal de Marx era antes o princípio de "a cada um
conforme a sua necessidade" do que o de "a cada um
conforme o seu trabalho". Contudo, ele não negou que
esta última regra também fosse igualitária, já que "o
direito dos produtores (receber meios de consumo) é
proporcional ao trabalho por eles prestado; a
Igualdade consiste em que a avaliação se baseia num
mesmo denominador, o trabalho". Ela é, portanto, um
princípio
igualitário,
conquanto
"reconheça
tacitamente os dotes desiguais dos indivíduos e,
portanto, a capacidade produtiva como privilégios
naturais". Até as regras que estabelecem apenas duas
categorias são igualitárias segundo este critério. Tanto
o sufrágio universal como o sufrágio restrito aos
brancos tratam as pessoas de harmonia com a sua
desigualdade — em relação à característica
especificada. Então a Igualdade numérica não é senão
um caso específico de Igualdade proporcional.
VIII. A CADA UM SEGUNDO O PRÓPRIO
MERECIMENTO. — Aristóteles contrapõe às vezes
a Igualdade, não à Igualdade proporcional em geral,
mas à "Igualdade proporcional ao mérito" (Política,
1301 a). A quantidade de benefícios há de ser
proporcionada ao grau, não de uma característica
qualquer dos beneficiários, hipoteticamente definida
por uma regra, mas de uma característica específica, o
mérito relativo. Quanto mais uma pessoa merece,
maior será a sua recompensa; por isso, partes iguais a
pessoas de iguais merecimentos. Qualquer critério de
distribuição que descure então o mérito não será
realmente igualitário.
Desta vez não se pode certamente afirmar que
qualquer regra se revela igualitária. A crítica é antes
de que o igualitarismo é neste caso definido mais em
termos avaliatórios do que em termos descritivos. O
próprio Aristóteles considera que uma distribuição é
igualitária, neste sentido, se "os valores relativos das
coisas dadas correspondem aos das pessoas que os
recebem" (Política, 1280 a). Ora, o valor relativo das
coisas dadas pode ser, em geral, objetivamente
verificado e mensurado; e isto vale igualmente para as
características pessoais, como a idade e a renda, e até
a inteligência e a aptidão para uma determinada
tarefa. Pelo contrário, o valor relativo da pessoa que
recebe, isto é, o grau do seu merecimento, é,
evidentemente, objeto de avaliação subjetiva e não de
verificação objetiva. Afirmações que estabelecem que
A possui mais mérito (ou duas vezes mais) que B, no
sentido de que A possui um maior valor moral, são
juízos genuínos de valor e não juízos caracterizantes.
Está aqui implícita a doutrina platônico-aristotélica,
segundo a qual os homens possuem essencialmente um
valor ou mérito desigual, uma doutrina oposta ao
ulterior ponto de vista estóico do igual mérito ou
dignidade de qualquer ser humano. Com base no
critério em questão, a Igualdade dos direitos políticos,
por exemplo, seria igualitária segundo o último ponto
de vista, mas inigualitária segundo o primeiro. Mais:
se os brancos são considerados "superiores" aos negros
(quanto aos méritos em geral e não, por exemplo,
quanto à inteligência), então, a discriminação racial se
torna igualitária; a mesma política seria inigualitária
para os que não julgam o valor da pessoa pela sua cor.
IX. DISTRIBUIÇÕES DESIGUAIS CORRESPONDENTES A
DIFERENÇAS RELEVANTES. — Atualmente, a versão
mais comum da Igualdade proporcional é a seguinte:
uma regra de distribuição é igualitária se, e apenas se,
as diferenças na distribuição correspondem a
diferenças relevantes das características pessoais; por
outras palavras, se a característica especificada é
relevante em relação ao gênero de benefícios ou
encargos a distribuir. Sendo a idade e a cidadania
relevantes com relação ao direito de voto, é igualitário
limitar o privilégio aos cidadãos adultos. A riqueza é
relevante para a imposição de impostos; portanto, o
imposto fixo ou o imposto progressivo sobre a renda
são igualitários. Inversamente, uma regra é
inigualitária, tanto se se baseia em diferenças de
características não relevantes, como se não leva em
conta as relevantes. Sexo, cor ou riqueza não são
relevantes para o fato de votar; a limitação deste
direito aos homens, ou aos brancos, ou aos
IGUALDADE
proprietários, não é igualitária. A riqueza é relevante
para a tributação; por conseguinte, o imposto indireto
é inigualitário, pois impõe uma contribuição de igual
medida aos adquirentes pobres e ricos.
Tal como o mérito do indivíduo, a relevância de
uma característica pessoal é um termo avaliatório e não
descritivo. Enquanto que o atribuir a uma pessoa
características como a idade ou a renda constitui um
dado de fato, os juízos que estabelecem que tais
características são relevantes ou não em relação a um
certo tipo de distribuição são juízos de valor. O fato
de que a idade seja importante para votar, mas que
não o seja a cor, não significa de modo algum que
seja justo exigir uma idade mínima para votar, mas
que seja injusto basear o direito do voto na cor. É
inigualitário — e isto quer dizer que é injusto — tratar
de modo desigual pessoas que possuem em comum a
mesma característica relevante; mas as concessões
desiguais a pessoas que são diferentes sob aspectos
relevantes são igualitárias, isto é, justas. Ou melhor,
"uma diferença de tratamento exige uma justificação
relativa às diferenças relevantes e suficientes que
existem entre quem tem direito" (Ginsberg, 1965, 79).
Defensores e opositores da discriminação racial
tendem a discordar quanto ao fato de que a raça
constitua uma diferença "relevante" e de que a
discriminação seja justa. Baseados na definição em
questão, eles também deviam ser discordes quanto ao
caráter igualitário de tal política.
Esta interpretação valorativa do conceito de
relevância tem sido ultimamente discutida. Bernard
Williams, por exemplo, considera "indiscutivelmente
falso" afirmar "que o problema de decidir se uma
determinada consideração é relevante em relação a
uma questão moral constitui um problema de
avaliação". Ele sustenta o seguinte: "O princípio de
que os homens deveriam ser tratados de maneira
diversa quanto ao bem-estar apenas com base na sua
cor não é um tipo especial de princípio moral, mas
(quando muito) uma afirmação meramente arbitrária
da vontade, como a de um tirano que resolvesse
justiçar todos os que tivessem um nome com três 'erres'
" (1962, 113). Parece-me, contudo, que o contraste
entre um princípio moral e uma afirmação arbitrária
da vontade não constitui uma dicotomia válida.
Segundo a teoria não-cognoscitiva dos valores, todos os
princípios morais (pelo menos os fundamentais) são
"afirmações arbitrárias da vontade", no sentido de que
exprimem compromissos morais subjetivos. Mais
importante do ponto de vista do nosso tema, a
afirmação de que a cor é relevante em relação aos
benefícios sociais não é descritiva; o mesmo autor não
exige que o seja.
601
Argumenta, além disso, que, "se se apresentam
razões" para a discriminação racial, "serão razões que
tentam pôr em correlação a cor da pele com outras
considerações aduzidas como relevantes para se
definir o modo como uma pessoa deveria ser tratada,
tais como a insensibilidade, a estupidez brutal, a
irresponsabilidade incorrigível, etc". Não nego que
uma asserção como "a cor é relevante para determinar
o grau de inteligência" seja descritiva. Ela significa
que a inteligência é função da cor e tal asserção pode
ser verificada — e desmentida — empiricamente.
Mas, neste caso, é a inteligência e não a cor que é
considerada determinante para o direito ao voto, por
exemplo. Ao contrário de "a cor é relevante em
relação à inteligência", a asserção "a inteligência é
relevante em relação ao direito do voto" é uma
asserção normativa; tanto quanto o é "a cor é
relevante em relação ao direito do voto". Seu
significado é de que tal direito deveria depender da
inteligência ou da cor e de que a regra que o
estabelece é justa. Chamar igualitária, em vez de
justa, uma regra baseada em diferenças julgadas
relevantes não modifica o caráter normativo da
asserção.
Mais recentemente, W. T. Blackstone explicou
assim o conceito de relevância: "Dizer que 'X é
relevante', quando se fala do tratamento de pessoas, é
dizer que X está efetiva ou potencialmente ligado, de
modo instrumentalmente útil ou nocivo, à consecução
de um determinado fim e, conseqüentemente, deveria
ser levado em conta ao decidir tratar alguém de uma
certa maneira" (1967, 241). Podemos convir com o
autor que a primeira parte desta definição é descritiva
e a segunda prescritiva, mas não no que respeita ao
"conseqüentemente". A tese de que uma afirmação de
relevância quanto ao que é implique em outra quanto
ao que deve ser é insustentável. Tomemos mesmo o
seu exemplo: "Se, por exemplo, a raça ou a cor fossem
apresentadas como base do tratamento diferencial das
pessoas em razão do direito ao estudo e se
demonstrasse que a cor ou a raça não têm nada a ver
com a capacidade de educação, então o pressuposto
empírico de quem apela para tais critérios se revelaria
falso e esses mesmos critérios não seriam relevantes
(no sentido empírico do termo)".
"A cor é relevante para a educabilidade", uma
asserção empírica; "a educabilidade é relevante para o
direito ao estudo", uma asserção normativa. Mas a
primeira não implica a segunda. Qualquer pessoa pode
pensar que a cor "não tem nada a ver com" a
educabilidade, isto é, não é relevante para ela.
Todavia, não poderá sustentar, sem incoerência, que
as maiores possibilidades de instrução deviam ser
oferecidas aos mais
602
IGUALDADE
educáveis, ou aos brancos, ou que todos deviam ter
igual direito ao estudo (ou seja, que nenhum grupo
devia receber um tratamento preferencial). Diz o
mesmo autor: "Poderá facilmente ocorrer que as
pessoas tenham a mesma opinião quanto à parte
empírica de um juízo de relevância (isto é, pensem
que certos fatos estão instrumentalmente relacionados
com certos fins), mas discordem quanto à parte
prescritiva desse juízo (ou seja, quanto ao fim
desejável)". Isto parece contradizer a afirmação antes
citada ("conseqüentemente"). A "relevância" não é um
critério descritivo de igualitarismo como característica
das regras de distribuição.
X. DISTRIBUIÇÕES DESIGUAIS JUSTAS. — O
igualitarismo é às vezes definido diretamente em
relação à justiça e não indiretamente, ou seja,
mediante a relevância. Segundo artigo recente, "o que
se opõe verdadeiramente à Igualdade é a desigualdade
de tratamento arbitrário, isto é, a desigualdade
injustificável ou iníqua". De onde se seguiria que uma
desigualdade de tratamento justificável ou eqüitativa
seria "verdadeiramente" igualitária. Então, se a
discriminação racial é igualitária ou não, é coisa que
dependeria ainda de ela ser considerada justa ou
injusta.
Isto é um exemplo do que desejaria chamar falácia
da definição ao revés. Consiste em definir um termo
de valor "bom" ou ".desejável", por exemplo, em
relação a termos descritivos como "felicidade" ou
"aprovação". Ora, se "bom" significa o mesmo que
"fator de felicidade", ou "desejável" o mesmo que
"aprovado pela maioria", seria autocontraditório
afirmar que uma coisa que causa felicidade é ruim ou
que uma coisa é indesejável, mas aprovada pela
maioria. A afirmação de Aristóteles de que "o injusto
é desigual, o justo igual" é outro caso da mesma
falácia. Aqui o conceito normativo de justiça é
definido em termos de igualitarismo, que, para
Aristóteles, é também um termo descritivo, como já
vimos ("dando partes iguais aos iguais"). Pelo
contrário, não é contraditório dizer que um imposto
progressivo sobre os rendimentos é inigualitário e,
contudo, justo.
Temos também o processo inverso. O igualitarismo,
um conceito que desejamos tenha uma função
descritiva, é definido mediante o conceito normativo
de justiça. Se a afirmação "a regra X é igualitária"
significa a mesma coisa que "a regra X é justa (ou
justificável ou eqüitativa)", então é contraditório
considerar justo e não igualitário um imposto
progressivo sobre os rendimentos, ou injusto mas
igualitário um imposto indireto.
XI. IGUALDADE PROCESSUAL. — A Igualdade está
também ligada à justiça para quem considera o
igualitarismo um princípio "processual": "tratem-se as
pessoas de modo igual, a menos que e enquanto não
exista uma justificação para tratá-las de modo
desigual" (Frankena in Brandt, 1962, 8). Tomado neste
sentido, o igualitarismo não se refere absolutamente a
uma característica das regras de distribuição, mas à
própria regra de distribuição, ou seja: "todas as
pessoas devem ser tratadas de modo igual, a menos
que se encontrem boas razões para tratá-las de
maneira diversa". É verdade que esta "injunção de
Igualdade não constitui por si mesma uma regra
positiva de ética, mas uma norma para adotar outras
regras" (Monroe, 1964, 36). É uma regra normativa
(para adotar regras fundamentais). Trata-se de um
princípio que não é meramente normativo, mas é
também exclusivamente processual, compatível com
qualquer regra discriminatória de distribuição que se
julgue "justificada" ou fundada em "boas razões". Tal
critério de igualitarismo não nos permite classificar
regras substanciais de distribuição em regras
igualitárias e não igualitárias.
A tentativa de uma determinação frutífera do
conceito de Igualdade tem sido baldada até agora.
Resumindo: se o igualitarismo se definisse como "partes
iguais a todos", nenhuma regra seria igualitária; se
significasse "partes iguais aos iguais" ou "Igualdade
proporcional", toda regra o seria; e qualquer regra
poderia ser igualitária se baseada em definições
relativas ao mérito, às diferenças relevantes ou à
justiça. A Igualdade processual não designa sequer
uma das características das regras de distribuição.
"Partes iguais a um grupo relativamente grande"
continua sendo a definição mais aceitável; mas já
chamamos a atenção para o fato de que a sua
aplicação conduz a resultados muitas vezes opostos à
intuição. Com efeito, até os fautores da discriminação
racial tendem a considerar inigualitário restringir os
benefícios
assistenciais
aos
brancos,
independentemente da necessidade (mesmo que a
grande maioria da população seja branca), e igualitário,
ao invés, efetuar pagamentos assistenciais em
benefício dos necessitados, independentemente da raça
(mesmo que os necessitados sejam uma pequena
minoria). Creio ser possível encontrar um critério
descritivo geral de igualitarismo que leve em
consideração tais distinções.
XII. REGRAS DE NIVELAMENTO. — Todas as
definições até agora examinadas levam em conta
apenas a quantidade de um benefício específico ou
gravame que há de ser atribuída a duas pessoas
quaisquer, A e B. As regras de distribuição também
podem ser consideradas do ponto de vista
IGUALDADE
dos resultados finais. Quanto terão A e B após lhes
haver sido aplicada a regra? Como é que se hão de
redistribuir os benefícios e os encargos entre A e B?
Neste momento, temos de distinguir três fases: 1) a
distribuição original — A, por exemplo, possui 8
unidades, B apenas 2; 2) a aplicação de uma certa
regra de distribuição — tomar 3 de A, por exemplo, e
dar 3 a B; 3) a redistribuição resultante da aplicação
da regra de distribuição — no exemplo específico,
tanto A como B acabam por ter 5.
Proponho que se chame igualitária uma regra de
distribuição quando ela nivele, ou pelo menos reduza,
as diferenças entre as quantidades de bens. As regras
igualitárias de distribuição também podem ser
chamadas regras de nivelamento. Ao contrário, uma
regra de redistribuição que deixe intactas as
desigualdades de benefícios ou ônus anteriores, ou até
as aumente, é inigualitária. O exemplo que
apresentamos antes é um caso de aplicação de uma
regra de nivelamento. Tirar 3 de A e nada de B seria
ainda igualitário, já que a diferença entre seus bens
(5—2 = 3) é agora menor que inicialmente (8—2 = 6);
mas é menos igualitário do que se seus bens fossem
totalmente igualados, como no primeiro exemplo. Por
outro lado, tirar 1 de A e 1 de B não seria igualitário,
pois não alteraria a diferença entre os seus bens, 6; e,
com maior razão, tirar 1 de A e 2 de B (a diferença
seria agora de 7).
Estes exemplos demonstram que uma regra de
redistribuição só poderá ser chamada igualitária ou
não em relação a uma distribuição anterior. O
igualitarismo converte-se num conceito ordinal —
vantagem que esta definição partilha em comum com
a "definição menos insatisfatória" antes examinada.
Pelo que respeita a uma determinada distribuição, uma
regra de redistribuição será tanto mais igualitária
quanto menor for, no fim, a diferença entre os bens
em comparação com início. Recapitulando: se
inicialmente A possui 8 e B 2, tomar 3 de A e dar 3 a
B é mais igualitário que tomar 3 de A e nada de B.
Os nossos exemplos tornam claro, além disso, que
as distribuições iguais podem conduzir a redistribuições
não igualitárias e vice-versa. Um imposto indireto é
uma regra de redistribuição inigualitária, porquanto
constitui um peso maior para os adquirentes mais
pobres e não reduz as diferenças de riqueza. Pelo
contrário, um imposto progressivo sobre a renda é uma
regra de nivelamento e, como tal, igualitária. O
conceito de nivelamento vem, nesse caso, remediar
justamente os defeitos da definição antes examinada.
Analisemos agora, à luz deste conceito de
Igualdade, algumas das regras de distribuição mais
importantes.
603
XIII. NIVELAMENTO DA RIQUEZA. — Mesmo
existindo Igualdade de direito à propriedade, ela é
distribuída de modo desigual em quase todas as
sociedades. Tal desigualdade é mais o resultado da
hereditariedade, do estado social ou da capacidade
pessoal do que de uma distribuição deliberada do
Governo. Um nivelamento total dos bens exigiria,
como é óbvio, o uso de distribuições acentuadamente
desiguais, ou seja, que se tirasse dos ricos para dar aos
pobres. Um resultado que se poderia alcançar pela
tributação ou pela socialização ao menos dos meios de
produção. Sua "posse comum" eliminaria, segundo o
Manifesto comunista, a possibilidade da exploração de
uma classe por outra; e, "com a abolição das
distinções de classe, todas as desigualdades sociais e
políticas delas derivadas desapareceriam por si,
automaticamente".
Um nivelamento completo dos bens, conquanto
almejável, é geralmente tido por utópico. Mesmo que
tal meta fosse atingida num determinado momento, as
diferenças reapareceriam depressa, não sendo por
outro motivo, ao menos porque "os homens são
desiguais" no que tange às qualidades pessoais; é por
isso que o poder e a influência se acham
necessariamente distribuídos de forma desigual em
todos os sistemas políticos e sociais. Nivelar a riqueza
significa, em geral, não tanto eliminar, como reduzir
as desigualdades existentes quanto à propriedade. De
acordo com a definição proposta, este gênero de
distribuição, embora menos igualitário, é igualmente
igualitário. O é nas palavras de Rousseau; "Por
Igualdade temos de entender, não que o grau de poder
e de riqueza é absolutamente idêntico para todos, mas
que... nenhum cidadão é bastante rico para comprar
outro, nem há nenhum tão pobre que seja forçado a
vender-se a si mesmo" (Contrato social, livro II, c.
XI).
Por outro lado, nem sequer a distribuição igual de
dinheiro levará a uma felicidade igual. Além disso,
felicidade, satisfação ou utilidade não são benefícios
tangíveis que possam ser distribuídos ou
redistribuídos a A e B por C, nem de modo igual nem
desigual.
XIV. IGUALDADE DE OPORTUNIDADES. — Tal como
as utilidades, também as oportunidades não podem ser
dadas ou distribuídas por C a A e a B. "A tem a
oportunidade de obter x": isto significa que não
existem obstáculos no caminho para obter x, de sorte
que ele pode fazer x, se quiser. C oferece a A a
oportunidade de alcançar x, eliminando determinados
obstáculos, e põe, por isso, A em condições de obter x;
por conseguinte, o fato de A lograr alcançar x depende
apenas da sua habilidade natural e adquirida e do seu
IGUALDADE
604
esforço. A e B têm igual oportunidade de ganhar uma
corrida, se partirem ambos da mesma linha. Se A está
inicialmente atrás de B, tem de deslocar-se para a
frente, para a linha comum de partida, para ter a
mesma oportunidade que B.
O princípio da Igualdade, ou melhor, do
nivelamento das oportunidades aplica-se por isso à
redistribuição do acesso a várias posições na sociedade
e não à atribuição dessas mesmas posições. O
problema é, pois, o de fazer combinar pessoas de
dotes desiguais com posições que oferecem uma
remuneração, um poder ou um prestígio desiguais. A
solução é torná-las acessíveis a todos mediante a
competição. Hipoteticamente, se a todos for dado um
mesmo ponto de partida, a posição que enfim
ocuparão dependerá exclusivamente da velocidade
com que tiverem corrido e da distância alcançada.
O liberalismo clássico afirmava que a Igualdade de
oportunidades é possível mediante a igual atribuição
dos direitos fundamentais "à vida, à liberdade e à
propriedade". Abolidos os privilégios e estabelecida a
Igualdade de direitos, não haverá tropeços no caminho
de ninguém para a busca da felicidade, isto é, para
que cada um, com sua habilidade, alcance a posição
apropriada à sua máxima capacidade.
Mais tarde veio a reconhecer-se que a Igualdade de
direitos não é suficiente para tornar acessíveis a quem
é socialmente desfavorecido as oportunidades de que
gozam os indivíduos socialmente privilegiados. Há
necessidade de distribuições desiguais para colocar os
primeiros ao mesmo nível de partida; são necessários
privilégios jurídicos e benefícios materiais para os
economicamente não privilegiados. Por isso, os
programas head start, conquanto intrinsecamente
inigualitários, são extrinsecamente igualitários, já que
levam a um nivelamento das oportunidades de
instrução.
XV. IGUAL
FUNDAMENTAIS.
SATISFAÇÃO
DAS
NECESSIDADES
— O princípio de nivelamento das
oportunidades está conexo com outro princípio de
nivelamento, o da igual satisfação das necessidades
fundamentais. Enquanto as necessidades pessoais
variam em gênero e medida, há um mínimo de
necessidades fundamentais que são substancialmente
idênticas em todos, numa determinada sociedade e
numa determinada época. De qualquer modo, as
pessoas são desiguais quanto às suas necessidades
fundamentais não satisfeitas. "Uma distribuição
desigual dos recursos seria necessária para nivelar os
benefícios em casos de necessidade desigual"
(Vlastos in Brandt, 1962, 43). Quanto maior é a
necessidade fundamental não satisfeita de alguém,
tanto
maiores são os benefícios que ele recebe. Aquele cujas
necessidades fundamentais já foram quase satisfeitas
pode não receber nada e talvez até tenha de renunciar
a alguma coisa supérflua para prover às necessidades
dos outros. O resultado final desta distribuição
desigual será, mais uma vez, um maior nivelamento
da riqueza e das oportunidades.
"A cada um segundo a sua necessidade" é outro
princípio de nivelamento ainda mais radical. Ele
impõe, pelo menos teoricamente, à sociedade e, em
especial, ao Governo o dever de satisfazer todas as
necessidades de cada um, por muito desiguais que
elas sejam em gênero e grau.
XVI. A CADA UM SEGUNDO A SUA
CAPACIDADE.
—
Alguns
defensores
contemporâneos do Estado assistencial democrático
tendem a propugnar os princípios menos extremos da
igual satisfação das necessidades fundamentais e da
Igualdade de oportunidades. Estas duas regras de
nivelamento, andam geralmente unidas a outra regra,
inigualitária, de redistribuição: a cada um segundo a
sua capacidade. Uma vez atendidas as necessidades
mínimas de cada um e tendo todos a mesma
possibilidade, inicia-se a competição; a posição
ocupada ao fim por cada um dependerá unicamente da
sua capacidade ou "habilidade", pelo menos em teoria.
Ao contrário do "mérito" de uma pessoa, sua
habilidade, entendida como capacidade para uma tarefa
específica, pode ser objetivamente determinada, pelo
menos teoricamente. Mas, tal como "a cada um
segundo o que merece" — e diferentemente de "a cada
um segundo a própria necessidade" —, "a cada um
segundo a própria capacidade" constitui uma regra
inigualitária de redistribuição.
Podemos distinguir esquematicamente as seguintes
fases: 1) uma desigual distribuição inicial dos bens; 2)
uma regra inigualitária de distribuição — mais aos
necessitados; 3) que se resolve numa redistribuição
mais igualitária — igual satisfação das necessidades
fundamentais, Igualdade de oportunidades; 4) daí uma
redistribuição inigualitária final — a cada um segundo
a sua capacidade.
Este conceito de Igualdade não é apenas geral e
descritivo, mas é também valorativamente neutro. O
autor de The rise of meritocracy, por exemplo, defende
"não uma aristocracia de nascimento, não a plutocracia
da riqueza, mas uma verdadeira meritocracia dos
talentos" (Young, 1961, 21). Segundo o critério
apresentado, todos esses princípios são inigualitários,
tanto o que ele propugna como os dois que rejeita.
Observe-se que o princípio inigualitário da
meritocracia está ligado com as regras igualitárias da
Igualdade
ILUMINISMO
de oportunidades e da satisfação das necessidades
fundamentais, mas é incompatível com outra regra de
nivelamento: a cada um segundo a sua necessidade,
não levada em conta a capacidade. Por outro lado, os
defensores da "meritocracia" não querem estender tal
princípio à participação política; mantêm-se a favor
do sufrágio igual, prescindindo da capacidade.
Isto nos leva à conclusão de que a moderna teoria
democrática não pode ser qualificada nem como
igualitária nem como inigualitária, mas é uma fusão
dos dois gêneros de princípios: nivelamento até um
certo ponto, mediante distribuições desiguais; afora
isso, redistribuições inigualitárias. Ela é, portanto,
menos inigualitária que as ideologias que
fundamentam a desigualdade de tratamento na
herança, na cor, na religião ou na riqueza.
Naturalmente não existe contradição em considerar
a meritocracia igualitária e justa ao mesmo tempo.
Pode até ser considerada injusta, mas desejável por
outras razões: injusta porque a capacidade de um
indivíduo depende, em parte, de fatores que ele não
controla, como uma inteligência inata, a educação ou
o treinamento (pelo menos na ausência de uma
completa Igualdade de oportunidades de instrução);
todavia, desejável, sob o ponto de vista utilitarista,
porque os incentivos a uma maior produção
aumentarão o bem-estar de todos.
Esta análise tem alguma relação com a questão da
justificação da Igualdade. Tem-se afirmado muitas
vezes que os homens são iguais e, portanto, que o
igualitarismo é justo ou que o inigualitarismo é
equitativo, já que os homens são desiguais. Um perito
em ciência política, por exemplo, considera, em
recente artigo, "a grande discrepância existente entre
os fatos de desigualdade observados e o valor da
Igualdade como um sério embaraço intelectual"
(Schaar, 1964, 868). Como se fosse incoerente
sustentar que os homens deveriam ter oportunidades
iguais, embora dotados de inteligência desigual, ou
então salários desiguais, não obstante suas
necessidades fundamentais serem iguais. Os
princípios normativos não podem ser deduzidos de
generalizações de fato; a Igualdade e a desigualdade
de uma característica pessoal não implicam a
desiderabilidade
do
igualitarismo
ou
do
inigualitarismo.
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[FELIX E. OPPENHEIM]
Iluminismo.
I. O ILUMINISMO, MENTALIDADE DIFUNDIDA
NOSÉCULO XVIII. — O termo Iluminismo indica
um movimento de idéias que tem suas origens no
século XVII (ou até talvez nos séculos anteriores,
nomeadamente no século XV, segundo interpretação
de alguns historiadores), mas que se desenvolve
especialmente no século XVIII, denominado por isso
o "século das luzes". Esse movimento visa estimular a
luta da razão contra a autoridade, isto é, a luta da "luz"
contra as "trevas". Daí o nome de Iluminismo,
tradução da palavra alemã Aufklärung, que significa
aclaração, esclarecimento, iluminação. O Iluminismo
é, então, uma filosofia militante de crítica da tradição
cultural e institucional; seu programa é a difusão do
uso da razão para dirigir o progresso da vida em todos
os aspectos.
Não se trata de um movimento homogêneo; não é
possível encontrar nele um sistema de idéias ou uma
escola; dir-se-ia que é, acima de tudo, uma
mentalidade, uma atitude cultural e espiritual, que não
é somente dos filósofos, mas de grande parte da
sociedade da época, de modo particular da burguesia,
dos intelectuais, da sociedade mundana e até de
alguns reinantes. O termo philosophe, com que o
próprio iluminista se autodefine, indica a figura de um
vivificador de idéias, de um "educador", isto é,
daquele que em tudo se deixa guiar pelas luzes da
razão e que escreve para se tornar útil, dar sua
contribuição para o progresso intelectual, social e
606
ILUMINISMO
MOral e debelar toda forma de tirania, seja esta
intelectual, moral ou religiosa. A philosophie visa levar
à instauração no mundo de uma ordem nova,
caracterizada pela felicidade, e quer, portanto, estar
ao alcance de todos, em oposição à filosofia antiga.
Este modo de pensar e de sentir é difundido, no
século XVIII, em muitos países da Europa. Suas
primeiras manifestações se encontram na Inglaterra e
na Holanda, mas é um movimento que interessa
especialmente à França, onde a decadência do
Governo absolutista leva a filosofia a focalizar a
doutrina política e social. Aqui, das classes
privilegiadas, o clero possui cerca de um quinto do
território nacional, com uma enorme renda e com
isenções e privilégios substanciais, e a nobreza tem
privilégios análogos e rendas feudais extraordinárias;
por isso, a burguesia, cuja cultura e importância
econômica aumentaram consideravelmente, a ponto
de se haver tornado um sustentáculo da sociedade,
não pode deixar de as considerar classes de parasitas.
Na primeira metade do século XVIII, foram
publicados numerosíssimos livros e folhetos sobre
assuntos direta e indiretamente políticos: obras
históricas sobre antigas instituições francesas ou sobre
as justificativas e as finalidades do Governo, obras
sobre a Constituição inglesa, relatórios de viagens a
países exóticos, apresentados, geralmente, como
contrapostos à França, propostas de reformas e obras
de propaganda, freqüentemente mais negativas do que
positivas. Na segunda metade desse século, o debate
sobre estes temas se generalizou e invadiu todo tipo de
literatura. Existe porém, com diferenças por vezes
importantes, um Iluminismo alemão, italiano,
espanhol, austríaco, e um Iluminismo dos países da
Europa oriental.
É claro que a esta complexidade correspondem
histórias diversas quanto à periodização, a
problemáticas, a relações entre estratos sociais, a
interesses econômicos, etc. Em cada país, o Iluminismo
tem peculiaridades próprias. Mas, levando isto em
conta, pode-se tentar, a título de orientação, uma
periodização muito geral, distinguindo uma primeira
geração que desenvolve as idéias iluministas na
primeira metade do século XVIII, e uma segunda fase,
que é a da geração dos "enciclopedistas" na França, de
Lessing na Alemanha e dos teóricos das reformas
jurídico-políticas na Itália. Esta segunda geração é a
que, principalmente a partir dos anos 70, vê com
agrado dissiparem-se as ilusões de colaboração com o
poder, e é em grande parte por isto que, a par das
doutrinas da Encyclopédie, encontramos idéias
igualitárias e desígnios utopistas.
II. RACIONALISMO E NATURALISMO. — O
Iluminismo é um movimento de originalidade teórica
fraca; é principalmente eclético. A ciência, interpretada
em sentido prático e utilitarista, é o núcleo ao redor do
qual gravita o pensamento. É a ciência que dá ao
século XVIII a segurança e a confiança na razão. O
sucesso das ciências experimentais alimentou a idéia de
que o mesmo método leva a um progresso concreto
em todas as áreas da cultura e da vida. Por isso
também o pensamento político tem fé na possibilidade
da felicidade e do processo sob a guia da razão.
A razão, de fato, é o órgão tipicamente iluminista,
que é contraposto à autoridade e aos preconceitos.
Para alguns, ela fornece poucas verdades elementares
e indubitáveis, que têm o valor dos postulados da
ciência e são considerados de per si evidentes, a
ponto de não exigir demonstração alguma; estes
constituem o fundamento do raciocínio e do
progresso do conhecimento. A razão é aplicada
especialmente aos dados fornecidos pelos sentidos; o
Iluminismo, de fato, assume a fórmula nihil est in
intellectu quod prius non fuerit in sensu e aspira,
procedendo com o método racional analítico próprio
das ciências, a atingir verdades indiscutíveis ou,
quando isto for impossível, generalizações legítimas,
que tenham uma fundada validade metodológica. A
explicação está no fato de que os iluministas têm na
razão uma confiança sem limites e querem libertar o
conhecimento humano de tudo aquilo que não seja
conforme à razão, especialmente se isto procede da
tradição ou da história. Por esse motivo, Kant atribui
ao Iluminismo a frase "sapere aude!".
Este espírito crítico, que quer submeter todo o
saber ao teste da razão, atinge todos os aspectos da
atividade humana. Nem faltam as exasperações do
procedimento racional analítico, que conduzem ao
mecanicismo determinístico de La Mettrie ou ao
materialismo do barão de Holbach, decorrentes da
pretensão de aplicar rigorosamente os critérios da
ciência a toda atividade humana, também à
sentimental, pretensão que atrai as críticas de muitos
dos próprios iluministas. Os resultados mais
interessantes deste novo modo naturalístico de
filosofar são as considerações de Montesquieu sobre o
nexo existente entre instituições políticas e leis
jurídicas, de uma parte, e ambiente físico e clima, de
outra.
Também no campo da filosofia jurídica todos,
embora com características diferentes, estão de
acordo em pôr como fundamento do direito a natureza
e se fala de direito natural ou lei natural, onde
"natureza" significa, antes de tudo, aquilo que não é
sobrenatural e, mais especificamente, a essência do
homem, isto é, a razão. Desta forma
ILUMINISMO
o Iluminismo se prende à escola do direito natural e
acredita poder construir um corpo de normas jurídicas
universais e imutáveis, que, no momento, constituem o
critério de juízo da legislação vigente, mas que num
Estado iluminado se tornam, ao mesmo tempo, causa
eficiente e final da própria legislação. Para explicar os
princípios do direito natural, recorre-se, como no
século XVII, à natureza humana em si, isto é,
abstraída das modificações resultantes da ação da
civilização sobre o homem, supondo, como hipótese,
um status naturae anterior à sociedade civil e
definindo os direitos que o homem já deve ter tido
neste estado primitivo, isto é, os direitos que
pertencem à sua dignidade de homem pelo simples
fato de ser homem. Seja qual for o motivo pelo qual o
homem passou à vida civil (quando o estado de
natureza não seja considerado como simples hipótese
ou termo de referência puramente racional, o que não
altera as conclusões), a questão dos direitos naturais é
importante para estabelecer os direitos inalienáveis do
homem, isto é, os direitos que a sociedade civil é
obrigada a considerar, como também para demonstrar
o fundamento racional do Estado.
Com base no mesmo processo racional, fala-se
também de uma moral natural e de uma religião
natural, onde a volta à natureza tem o mesmo sentido
de que se falou a propósito do direito natural. A moral
natural pretende, antes de tudo, ser uma moral
independente da religião, em função do homem
mundano, considerado pelo que é e não pelo que
deveria ser. Daí resultam uma antropologia e uma
psicologia iluministas, voltadas a relevar a inelutável
força das paixões e sua bondade original, entendendoas até como a condição indispensável para a
realização da perfeição, realização que será tanto
melhor quanto mais fortes e harmonizadas forem tais
paixões (veja-se, como exemplo, Diderot). Os
fundamentos da moral iluminista são alguns princípios
universais, percebidos igualmente por todos os homens
racionais, que se reduzem aos princípios de tolerância
moral; pensa-se, de fato, que também a moral está
relacionada com as características de um povo e com
os aspectos naturais do ambiente. Resulta daí uma
moral relativista, hedonista ou uma moral sentimental,
mas, de qualquer forma, uma moral utilitarista.
Quanto à religião, também aqui as idéias são muito
divergentes entre si; prevalece, porém, um modo de
sentir que se opõe ao mistério, considerado como algo
que não é conforme à razão. Daí a rejeição das
religiões reveladas em geral. A religião mais
tipicamente iluminista é o deísmo: reconhece-se a
existência de uma esfera sobrenatural e,
especialmente, a existência de um deus
607
pessoal e criador do universo, conceito ao qual se
chega racionalmente, a partir da observação da
harmonia que reina no universo, mas não se reconhece
nenhum outro atributo de Deus e, menos ainda, não se
admitem cultos, ritos, dogmas, etc. Afinal, também
neste campo são aceitos aqueles princípios que são
tidos por comuns a todas as religiões e a todos os
povos e que, desvinculados dos pressupostos
transcendentais, parecem conformes à razão ou à
natureza. A religião se torna um modo de sentir, um
íntimo sentimento de comunhão com Deus, que
decorre da adesão sentimental à harmonia da natureza.
Compreende-se como a passagem do deísmo ao
imanentismo e ao panteísmo seja fácil: especialmente
os mais jovens iluministas identificam, freqüentemente,
a natureza com Deus, quando não proclamam um
ateísmo materialista. Todavia, se o deísmo é a religião
de muitos iluministas, pode-se afirmar que quase
todos os iluministas, pelo menos em alguma fase de
sua vida, foram deístas. Esta religião natural não revela
somente uma exigência de rejeição do sobrenatural e
oposição às religiões históricas, mas também uma
necessidade de voltar a proclamar o princípio da
tolerância.
A natureza, em conclusão, é o fundamento da ética
e da religião, assim como é o centro para o qual
converge o conhecimento e do qual o conhecimento
tem origem. Ela fornece as leis da lógica, como
também da vida social, e unifica toda a ordem das
relações e finalidades humanas. É baseando-se na
natureza que o homem dirige seus interesses; ele sente
que a sua realização e a sua possibilidade de
aperfeiçoamento derivam do seu conhecimento da
natureza, o que significa também de sua possibilidade
de subtrair-se ao domínio da natureza e, até, de
dominá-la. Sob este aspecto, o homem do Iluminismo
é o herdeiro do renascimento. Se é verdade, então, que
a natureza está ao centro dos interesses, é também
verdade que tal interesse está em função do homem e
do crescimento do seu poder. O Iluminismo tem uma
confiança incondicionada na perfectibilidade do
homem e na sua capacidade de progredir para uma era
melhor. É, portanto, o mesmo humanismo que leva o
iluminista para aquela atitude, de que se falou, que
não é propriamente anti-historicismo. Antihistoricismo iluminista, portanto, não significa
simplesmente rejeição ou desinteresse por tudo aquilo
que a história traz, mas recusa daquilo que tem
autoridade, pelo simples fato de ser histórico, extensão
do crivo da razão também a tudo aquilo que, desde
séculos, é passivamente aceito; é, em conclusão, a
recusa do princípio de autoridade.
608
ILUMINISMO
Paradoxalmente, é justamente o chamado antihistoricismo iluminista que constitui a origem da nova
e riquíssima historiografia, que se apresenta como
"crítica", ou seja, que reexamina as fontes e reconstrói
a história com mente isenta de preconceitos políticos e
culturais, com "método científico", e dá lugar, dessa
maneira, às grandes obras históricas e históricopolíticas do século XVIII. Basta pensar nas obras de
Montesquieu e de Voltaire, cujos métodos podem ser
entendidos como típicas tentativas de inovação em
relação à história-relato de tipo tradicional, o primeiro
pela conexão que evidenciou entre a história e a
ciência da sociedade que dela se pode deduzir; o
segundo pela concepção da história como história da
civilização,
como progressiva conquista de
conhecimento, que é ao mesmo tempo conquista de
harmonia, felicidade e liberdade.
Este chamado anti-historicismo constitui, por um
lado, uma limitação do Iluminismo quando significa
abstratismo. Os iluministas, com efeito, não vêem o
homem e a sociedade como história, mas, antes, como
razão e natureza, não como entidades individuais, mas
universais. Não obstante, pode-se ver nesta
característica a força do Iluminismo, por estar conexo
com a confiança que o homem tem em si mesmo e nas
suas possibilidades e lhe dar a força de influir
profundamente na cultura européia do século XVIII,
suprimindo doutrinas e instituições já superadas. Na
realidade, mais que de anti-historicismo, dever-se-ia
falar de uma nova concepção da história, baseada na
experiência e na individualização de um seguro
ligame entre a história e o conhecimento da natureza,
que se vai tornando patrimônio cultural comum de
todos os homens. O sentimento de solidariedade entre
os povos e o cosmo-politismo iluminista têm seu
fundamento nesta concepção.
III. RAZÃO E INSTITUIÇÕES. — O Iluminismo dá
formas diferentes à tentativa de racionalizar a
condição do homem, isto é, de torná-la mais feliz. Ao
redor deste objetivo prático, concentra-se a obra dos
iluministas. Cientes disto, eles definem a idéia de
progresso, abandonando a imagem da história como a
imagem de uma decadência contínua e gradual, para
considerá-la
um
progressivo
e
indefinível
melhoramento institucional, econômico, moral e civil,
melhoramento que será tanto maior quanto mais
fortemente a razão assumir a guia desse processo.
Também por este motivo, o Iluminismo foi
considerado um movimento anti-histórico. Mas, pelo
mesmo motivo, o iluminista quer afirmar sua
libertação da história, tornando-se dela não mais
escravo mas dominador; quer afirmar sua libertação
das
coisas, das quais se livra, estendendo sobre elas, assim
como sobre a história, o domínio decorrente do
conhecimento das mesmas e da ciência, resultado desse
conhecimento, pois elas são um elemento
condicionante e inelutável em relação ao agir humano.
Se, por uma parte, se subtraem as realidades humanas
ao domínio do transcendente, por outra parte, afirmase uma vontade de construir sobre elas um novo
mundo livre e feliz e, para este fim, a razão inspira
projetos de reformas sociais e econômicas, novas
legislações e um sistema de educação coletiva, pela
qual se espera uma efetiva renovação da vida e um
crescimento geral de bem-estar. A obra iluminista por
excelência, a Encyclopédie, por um lado, se utiliza
como meio da crítica universal aplicada a todos os
campos do saber, por outro, se propõe, como fim,
coletar e unificar, num sistema geral, os
conhecimentos, para divulgá-los e transmiti-los aos
pósteros, com a convicção de que o estímulo à
instrução determina também o crescimento da virtude
e da felicidade.
A adesão a estes conceitos assume características
diferentes entre os iluministas, especialmente, entre os
philosophes da primeira e da segunda geração. Para os
philosophes mais velhos, a renovação social, implícita
nas doutrinas iluministas, é antes de tudo uma
conseqüência indireta, e a crítica às instituições é
menos radical do que a dos mais jovens, embora, em
geral, nenhum dos iluministas é propriamente um
revolucionário. No primeiro período assiste-se a uma
reflexão sobre as instituições, que é sobretudo uma
racionalização das mesmas, isto é, uma volta ao como
elas deveriam ser ou à sua natureza. É o sentido, por
exemplo, de grande parte da obra de Montesquieu, que
não nega absolutamente a bondade das instituições do
Ancien Régime, mas explica a íntima racionalidade
delas e focaliza a deontologia de seu funcionamento,
que consiste exatamente na garantia da liberdade; a
volta a essa garantia se traduz no retorno ao respeito à
Constituição.
Significação semelhante tem a teoria do
contratualismo, que pretende ser, especialmente, um
critério de legitimização do Estado. O motivo
acorrente na Constituição inglesa, baseado na idéia da
distribuição dos poderes, mais do que uma proposta
concreta, pretende ser uma descrição do modo com
que um Estado monárquico pode garantir a liberdade
ou uma exaltação da própria liberdade e da liberdade
de expressão em primeiro lugar.
A insistência dos iluministas sobre a natureza e o
espírito das leis e das Constituições deriva do temor
do perigo sempre presente do despotismo e do culto
genuíno da liberdade civil e
ILUMINISMO
política, que para eles tem o significado inequívoco
de que a obrigação se acha expressa e, ao mesmo
tempo, limitada na lei. Embora profundamente
diversos em suas doutrinas, Montesquieu, Voltaire,
Rousseau e Diderot acreditam firmemente em tal
princípio. Os temas ligados à reforma judiciária são
objeto de atenta reflexão. Depois, a cultura italiana
dedica particular atenção ao problema jurídico, ou
seja, ao problema da codificação e da administração
da justiça, partindo do pressuposto de que as leis
racionais podem e devem ser escritas e impostas como
leis positivas e rigorosamente aplicadas pelos juizes.
Quanto à forma de Governo, o ideal predominante,
aliás, é o do despotismo iluminado, isto é, o do
soberano filósofo, que seja um philosophe autêntico e
que, iluminado pela razão, por sua vez potenciada
pelos conhecimentos, promova reformas aptas a
instaurar o bem-estar e a felicidade dos súditos. Não é
por acaso que em muitos vocábulos da Encyclopédie
se repete o conceito de que a autoridade soberana se
baseia no consenso, princípio considerado como válido
para qualquer forma de Governo. Por isso, muitos se
opõem ao Ancien Régime e a toda a forma de tirania e
olham esperançosos para aqueles soberanos europeus
que são tidos como iluminados: Frederico da Prússia,
Catarina da Rússia. A atitude negativa dos iluministas
franceses para com a monarquia visa mais a pessoa do
monarca do que a instituição.
A própria economia, que pelos filósofos do século
XVIII é considerada um dos principais instrumentos
para a racionalização da vida, é vista, antes de tudo,
como um meio nas mãos do soberano. A doutrina
econômica tipicamente iluminista é a fisiocracia, que
se fundamenta na idéia de uma ordem natural regida
por leis eternas, às quais é racional conformar-se,
porque elas, se não obstadas, produzem a máxima
prosperidade e harmonia. A legislação positiva, para os
fisiocratas, deveria, portanto, favorecer a explicação
da ordem natural, concedendo a máxima liberdade
econômica. Mas os fisiocratas não pretendem derrubar
a monarquia; antes, para eles, a monarquia absoluta é
aceitável, desde que adote uma política econômica
iluminada.
Compreende-se que a filosofia do Iluminismo seja
a filosofia da burguesia. O burguês é o homem novo,
que luta pelas reformas progressivas contra o
obscurantismo e os privilégios da aristocracia e do
clero. Sua filosofia é a filosofia da libertação, isto é,
de um ideal realizado intelectualmente, mas não
socialmente. A liberdade de comércio, a abolição dos
privilégios e das imunidades das outras duas classes, a
divulgação da cultura, a revisão do sistema fiscal, etc,
são
609
os motivos da filosofia do século XVIII, mas são
especialmente as aspirações da burguesia. Poder-se-ia
afirmar que o Iluminismo é a filosofia do terceiro
Estado, mas não a filosofia do povo, em relação ao
qual, pelo contrário, os philosophes nutrem uma certa
desconfiança, pelo menos enquanto não for realizada a
sua educação.
IV. RAZÃO E RENOVAÇÃO SOCIAL. — Somente na
segunda geração iluminista se encontram os indícios
de uma radical renovação social, a idéia de uma
sociedade transformada em suas próprias estruturas
institucionais e de uma ordem social completamente
diferente da presente. Aparecem, então, em algumas
obras as idéias republicanas, que não são certamente
as idéias características do Iluminismo. Surgem, da
mesma maneira, o socialismo e o comunismo do
século XVIII, que dão lugar a construções utópicas,
semelhantes em muitos aspectos às dos socialistas
utópicos do século XIX. São, aliás, expressões
esporádicas, já que, em geral, os iluministas não
atacam, antes, defendem o direito à propriedade
privada. Nenhum, pois, destes socialistas concebe a
possibilidade concreta de realizar uma revolução em
campo político; como todos os demais philosophes,
repudiam toda ação revolucionária, porque vêem nela
um remédio sempre pior do que o mal que pretenderia
sanar. O ideal republicano destas obras é,
principalmente, um ideal literário.
Até quem levanta violentas acusações contra o
Governo e demonstra já uma consciência clara da
própria classe e da exploração a que a burguesia,
ainda excluída da vida pública, é submetida em favor
das classes superiores acaba, em seguida, propondo
medidas extremamente moderadas, como, por
exemplo, uma educação adequada, orientada
especialmente para os governantes, e que desenvolva
neles a razão, a fim de que possam compreender que
seu interesse pessoal é o mesmo interesse dos súditos.
Resulta daí uma concepção pela qual o verdadeiro
reformador fica sendo sempre o soberano e a tarefa do
philosophe continua sendo uma tarefa educativa, isto
é, uma tentativa de fazer entender ao soberano que a
política tirânica é uma péssima política. "Tout pour le
peuple, rien par le peuple" é a fórmula que resume a
doutrina do despotismo iluminado.
O ideal revolucionário pode ser excluído também
daqueles pensadores, que teorizam sociedades civis
fundadas na vontade do povo, ou melhor, na vontade
geral, termo que se refere a um dos conceitos
fundamentais do pensamento político de Rousseau,
mas que é também usado por outros iluministas (vejase Diderot no verbete Droit naturel da Encyclopédie).
São idéias
610
ILUMINISMO
dificilmente ajustáveis dentro do Iluminismo. O
pensamento tipicamente iluminista, se se pretende
identificá-lo num corpus literário, deve ser procurado
especialmente no espírito da Encyclopédie. As idéias,
ao contrário, que caracterizam estas novas construções
sociais indicam principalmente que está gradualmente
evoluindo um outro modo de sentir, que se está
apagando a esperança na obra reformadora dos
déspotas iluminados (a partilha da Polônia dá um duro
golpe às ilusões dos philosophes) e que a idéia do
exercício da soberania por parte do povo já tem suas
primeiras manifestações.
As construções de sociedades perfeitas, que
abundam especialmente na segunda fase do
movimento, são racionalizações do conceito de
harmonia, que o Iluminismo estende a todos os
aspectos da vida. Aqui, a harmonia, que é a condição
da felicidade ou a própria felicidade, se traduz
freqüentemente na transposição do mito do bon
sauvage, usado no século XVIII também como
instrumento de polêmica política e antiteológica. As
terras que os exploradores descobrem e dos quais, em
seguida, divulgam as características através de relatos
de viagens que publicam ao voltar, são o símbolo do
estado natural que a civilização corrompeu com suas
convenções. O selvagem parece viver uma vida
autêntica e espontânea; o iluminista sabe que o retorno
a um estado anterior à civilização é impossível, mas
tem a convicção de que é possível inspirar-se nas
sociedades primitivas para estruturar
bases
comunitárias tais que permitam ao homem, seja qual
for o país em que vive e o grau de civilização
alcançado, uma vida igualmente autêntica e
espontânea. O chamado anti-historicismo iluminista é
também este modo de abstrair os povos das situações
concretas.
O ideal revolucionário, então, é preparado pelo
clima que o Iluminismo ajudou a criar, mas não é um
ideal iluminista. Os philosophes não vão assistir à
Revolução Francesa, com exceção de Condorcet, o
mais jovem deles. Mas é indicativo o fato de que a
revolução que nasce daquele clima é uma revolução
burguesa e de que a Declaração dos direitos do
homem, redigida pela Assembléia Constituinte em
1789, é a expressão do individualismo e dos
interesses da burguesia.
V. O ILUMINISMO NO SÉCULO XX.
PROBLEMAS
HISTORIOGRÁFICOS
E
INTERPRETATIVOS. — No nosso século, sobretudo
a partir da Segunda Guerra Mundial, o Iluminismo é
entendido, em geral, como pensamento em contínuo
progresso e como uma abertura à prática concreta do
homem. Aos iluministas se atribui a descoberta da
razão, não como função especulativa, mas, antes de
tudo,
como conjunto de instrumentos conceptuais
operativos. Por isso, os valores do Iluminismo foram
apropriados pela Resistência, que os identificou com
os seus ideais e com o pensamento revolucionário
capaz de transformar o mundo, opondoos às filosofias
conservadoras da história.
A essência do Iluminismo está na opção, dado que
o iluminista pensa que a possibilidade do
aperfeiçoamento humano se pode transformar em
realidade no mundo dos homens e que, por
conseguinte, a atividade humana e o processo
histórico são condicionados, em primeiro lugar, por um
ato de escolha, sendo depois passíveis de uma
avaliação crítica. A sua concepção pragmática da
história, atenta a discernir as suas forças motrizes,
evita tenazmente buscar na meta-história a justificação
do agir humano, evitando, por isso, aceitá-lo
passivamente.
O alvo do Iluminismo é, ao invés, o domínio da razão
sobre a natureza interna e externa e a erradicação do
medo do sobrenatural. Por isso, o Iluminismo é
também a filosofia da ciência. Suspende o juízo sobre
tudo aquilo que não se explique pelos critérios do
cálculo e da utilidade. Esta recusa do princípio da
autoridade explica também por que, nas últimas
décadas, na França, o termo philosophe tem sido
adotado pelos que querem acentuar a novidade
absoluta, a ausência de raízes, de uma forma particular
de criatividade, tanto artística como crítica. O exemplo
mais recente é o de um grupo de intelectuais que se
definiram como nouveaux philosophes e que,
desconhecendo a eficácia das respostas dadas pelos
filósofos anteriores às inquietações dos homens e às
crises da sociedade, ressaltam uma estreita ligação
posta entre filosofia e política, entre saber e poder,
evidenciam-lhe o caráter repressivo e nela baseiam
uma crítica radical às formas culturais e institucionais
do passado e do presente; rejeitam o marxismo como
fundamento do seu gauchisme e reivindicam a
autonomia e liberdade do seu pensamento sobre temas
do nosso tempo.
Não é difícil explicar e compreender a condenação
romântica, particularmente hegeliana, do Iluminismo,
que fez com que houvesse de passar muito tempo, após
a revolução, para que se dedicasse séria atenção ao
movimento dos philosophes, e ele fosse novamente
valorizado. É preciso, com efeito, chegar ao limiar
deste século, altura em que a concepção romântica e,
em geral, as filosofias da história são submetidas à
crítica e postas em discussão, para que se inicie uma
séria historiografia do Iluminismo. É a Wilhelm
Dilthey e, mais tarde, a Ernst Cassirer e Friedrich
Meinecke que se deve esse mérito. Depois deles, a
historiografia sobre a idade das luzes torna-se
IMPERIALISMO
riquíssima, o é ainda, considerando os estudiosos que
há ainda numerosos pontos fundamentais sem solução.
Experimentaram-se também meios particulares de
interpretação tendentes a dar unidade a um movimento
tão vário, onde eram comuns os inimigos a combater,
mas não o eram certamente as soluções propostas.
Deste modo, a partir de uma análise sociológica, o
Iluminismo tem sido identificado tout court com o
pensamento da burguesia (por exemplo, L.
Goldmann); o estruturalismo tentou sua leitura e ainda
hoje estudiosos de algum modo a ele ligados dedicam
uma atenção especial aos problemas lingüísticos dos
textos dos iluministas.
O significado problemático e "dialético" é, ao
contrário, posto em relevo pelos mestres da Escola de
Frankfurt, M. Horkheimer e Th. W. Adorno, que,
longe da harmonia procurada pelos philosophes,
crêem, ao invés, que os iluministas pagam sua
conquista do domínio da natureza com a alienação da
própria natureza. A relação entre o iluminista e a
natureza foi comparada à existente entre o ditador e os
homens: o ditador conhece os homens na medida em
que é capaz de os manipular. Também o cientista
conhece as coisas na medida em que as pode
manipular, mas isto implicaria a transformação da sua
essência em mero substrato de um domínio total.
Portanto, se o Iluminismo é um paradigma da história
ocidental, o dilema que se apresenta é se é preciso
abandoná-lo ou introduzir nele corretivos que
eliminem sua tendência destruidora e autodestruidora.
É esta segunda hipótese que inspira o ressurgimento
iluminístico de parte da cultura alemã (exemplo, os
mais novos da Escola de Frankfurt).
A insatisfação em face de leituras parciais e a
sensação de que há ainda muitos problemas sem
solução para se chegar a uma interpretação segura,
tem levado ultimamente os estudiosos a uma pesquisa
histórica por vezes minuciosa, especialmente em
zonas até agora pouco exploradas. É por isso que,
atualmente,
se
observa
um
extraordinário
reflorescimento dos estudos sobre o Iluminismo.
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cosmopolitisme et unité européenne au dix-huitième
siècle, Stock, Paris 1966; F. VALJAVEC, Storia
dell'ilIuminismo (1961), Il Mulino, Bologna 1973; F.
VENTURI, Settecento riformatore. vol. 3, Einaudi,
Torino 1969, 1976, 1979; F. VENTURI, Utopia e
riforma nell'illuminismo, Einaudi, Torino 1970.
[SAFFO TESTONI BINETTI]
Imperialismo.
I. INTRODUÇÃO. — Se bem que os fenômenos
usualmente ligados à expressão Imperialismo —
expansão violenta por parte dos Estados, ou de
sistemas políticos análogos, da área territorial da sua
influência ou poder direto, e formas de exploração
econômica em prejuízo dos Estados ou povos
subjugados, geralmente conexas com tais fenômenos
— se hajam manifestado, sob formas e modalidades
diversas, em todas as épocas da história, esta
expressão é relativamente recente. B. Semmel crê que
ela se impôs pela primeira vez na década de 1870, na
Inglaterra vitoriana, sendo usada para designar a
política de Disraeli, que objetivava robustecer a
unidade dos Estados autônomos do império, ou seja,
criar a imperial federation. Mas é só pelos fins do
século XIX que se inicia o estudo sistemático dessa
série de fenômenos, isto é, só então surgem as
primeiras teorias sobre o Imperialismo, dando origem
a uma seqüência de análises que nunca deixaram de se
desenvolver, em quantidade e qualidade, até hoje. Isto
está evidentemente ligado ao fato de que, nas últimas
décadas do século XIX (particularmente depois de
concluída a unificação italiana e alemã, em 1870), se
iniciou uma fase histórica marcada por uma especial
intensidade e qualidade dos fenômenos imperialistas.
Com efeito, entre 1870 e a deflagração da Primeira
Guerra Mundial, deu-se a repartição quase completa
da África entre os Estados europeus e a ocupação (em
que participou também o Japão e, em medida mais
restrita, os Estados Unidos) de vastos territórios da
Ásia, ou sua
612
IMPERIALISMO
subordinação à influência européia (China, Pérsia,
império otomano).
Terminada esta fase, assistiu-se, entre 1914 e 1945,
ao desencadear de um Imperialismo particularmente
agressivo, o da Alemanha, que por duas vezes tentou
estender a sua hegemonia sobre a Europa, o do Japão,
que buscou fazer outro tanto na Ásia, e o da Itália
fascista, que ocupou o último território independente
importante da África, a Etiópia, querendo tornar
realidade, numa situação de aliança subalterna com a
Alemanha nazista, um plano hegemônico menos
ambicioso na área do Mediterrâneo. Depois de 1945,
apagou-se o impulso imperialista dos Estados
europeus e do Japão, tendo lugar o processo de
descolonização. Mas o fenômeno do Imperialismo
continuou a manifestar-se obviamente de formas
diversas, quer nas relações hegemônicas estabelecidas
entre as duas superpotências e os Estados dos
respectivos blocos, quer na política neocolonialista
praticada principalmente pelos Estados Unidos, mas
também, em menores proporções, pelas demais
potências capitalistas.
Daí a origem e desenvolvimento de uma vasta linha
cultural que é representada pelas teorias concernentes
ao Imperialismo, teorias que têm como objeto
essencial os fenômenos imperialistas daquela época,
conquanto não excluam, em muitos casos, seu cotejo
com os de outras épocas e, às vezes, a tentativa de
elaborar teorias mais gerais, isto é, relativas aos
fenômenos imperialistas de todos os tempos.
Causa disto é também, a nosso ver, a formação de
uma atitude crítica e condenatória do Imperialismo,
cada vez mais generalizada no mundo inteiro, inclusive
nos países imperialistas, correspondente ao fato de que,
com a expansão imperialista européia, o mundo todo se
transforma, pela primeira vez, num sistema
interdependente. Tal atitude assenta, em última
análise, no fato de que o Imperialismo começa a ser
entendido como uma contradição em relação ao
princípio da autodeterminação das nações, afirmado
pela Revolução Francesa e recalcado pela Revolução
Soviética. É, de fato, significativo que as teorias sobre
o Imperialismo partam, em sua grande maioria, de
uma perspectiva a ele adversa e que a própria
expressão Imperialismo tenha ido bem depressa
adquirindo, depois de haver surgido com um
significado positivo, um significado geralmente
negativo, interrompendo assim uma tradição histórica
onde a expressão império, de que deriva Imperialismo,
tinha também um significado positivo, sendo
entendida (como transparece, por exemplo, no De
monarchia de Dante Alighieri) como sinônimo de paz
internacional.
Isto considerado, passaremos agora a identificar os
pontos essenciais das principais teorias sobre o
Imperialismo, agrupadas em quatro correntes
fundamentais: as teorias de inspiração marxista que,
até há bem pouco, foram, de longe, as mais estendidas;
a orientação social-democrática, uma orientação que se
distingue tanto do liberalismo como do marxismo
revolucionário; a interpretação liberal; a interpretação
baseada na teoria da razão de Estado.
II. PRINCIPAIS
IMPERIALISMO. —
TEORIAS
MARXISTAS
SOBRE
O
É preciso, antes de tudo, acentuar
que não se encontra nas obras de Marx uma teoria
específica sobre o Imperialismo, nem, portanto, o uso
de tal termo em sua acepção moderna. O que se pode
encontrar são meras alusões ao problema, quase
sempre gerais, em seus escritos sobre o colonialismo.
A sua contribuição essencial para o estudo do
Imperialismo há de ser, por isso, buscada na teoria
relativa às contradições do capitalismo moderno
(nomeadamente à tendência à queda das taxas de lucro
e ao problema da obtenção da mais-valia, tidos como
fatores centrais do processo histórico contemporâneo,
destinado a desembocar na revolução socialista), a que
se ativeram mais ou menos fielmente os seus
seguidores que elaboraram as diversas teorias
marxistas sobre o Imperialismo. Estas, embora
divirjam claramente entre si na caracterização do
aspecto ou aspectos contraditórios específicos do
sistema produtivo capitalista, origem do Imperialismo,
são concordes em sustentar que, no período de pleno
desenvolvimento de tal sistema, com início nas últimas
décadas do século XIX, todas as formas de violência
internacional foram provocadas, em última análise, ou
de forma predominante, pelas contradições estruturais
do capitalismo, que consegue então fazer do Estado
um instrumento cada vez mais eficaz a serviço dos
seus fins. Por outro lado, o Imperialismo surge
também como um instrumento essencial para fazer
face às contradições do capitalismo e para prolongar a
sua sobrevivência, estendendo-as ao âmbito
internacional com a exploração de outros povos e
permitindo com isso fazer concessões à classe operária
das metrópoles capitalistas. Estreitamente ligada a esta
tese está a convicção de que a eliminação dos
fenômenos do Imperialismo e da guerra só é possível
mediante a superação do capitalismo e de que, por
outro lado, isso se torna factível pelas crises
profundas, potencialmente revolucionárias, que o
capitalismo tende infalivelmente a produzir, em
conseqüência precisamente das suas manifestações
imperialistas.
As teorias marxistas mais importantes acerca do
Imperialismo são as de Rosa Luxemburg e de
IMPERIALISMO
Lenin. No último pós-guerra, surgiu uma nova
interpretação, sem dúvida importante, devida aos
marxistas americanos Baran e Sweezy. É desta
corrente que nasceu a mais importante análise
marxista dos fenômenos do neocolonialismo e do
subdesenvolvimento, bem como a tentativa relevante
de uma explicação em termos marxistas do
Imperialismo soviético.
1. Teoria do subconsumo. — A explicação do
Imperialismo formulada por R. Luxemburg assenta na
inserção, no pensamento marxista, da teoria do
subconsumo, elaborada anteriormente e à margem
dessa orientação teórica sobretudo por Malthus,
Sismondi, Rodbertus e Hobson, e que pode ter alguma
ligação, conquanto forçada, com as teses de Marx
referentes ao problema da realização da mais-valia.
Podemos resumir a teoria do subconsumo segundo a
versão de R. Luxemburg dizendo que, dispondo a
classe trabalhadora inevitavelmente de um baixo
poder aquisitivo e sendo obrigada a um nível de vida
miserável como conseqüência das leis objetivas da
acumulação capitalista, torna-se indispensável, para
poder ser absorvida toda a produção corrente, a
existência de uma "terceira pessoa", de um comprador
extrínseco ao sistema capitalista. Tem de haver, em
resumo, um mundo não capitalista ao lado do mundo
capitalista, para que o funcionamento deste não fique
entravado.
Nos
primeiros
estádios
do
desenvolvimento capitalista, essa "terceira pessoa"
pode ser oferecida pela economia agrária, que vive
ainda à margem da capitalista. Mas depois, em
decorrência da transformação capitalista desse setor, os
mercados internos já não bastam e se tornam
necessários os mercados externos para a absorção da
produção, mercados que se conquistam com a
conquista das colônias. Sendo as áreas de exploração
limitadas, mais tarde ou mais cedo os conflitos serão
inevitáveis, como inevitável será também a catástrofe
final do sistema capitalista, quando os mercados
externos se tornarem igualmente insuficientes.
2. Teoria leninista do Imperialismo. — A teoria
marxista mais comumente aceita não é a do
subconsumo, mas a mais ortodoxa de Lenin. A
hipótese fundamental da teoria de Lenin não se apóia
no empobrecimento do proletariado e na sua falta de
poder de consumo, mas na tendência à queda das taxas
de lucro. Os monopólios financeiros dos Estados mais
avançados do capitalismo são obrigados a explorar o
mercado mundial, entrando em conflito com outros
grupos financeiros que tentam fazer o mesmo, pois os
lucros obtidos no mercado interno tendem a
desaparecer. A queda das taxas de lucro é explicada,
613
grosso modo, pela teoria marxista como resultado da
crescente concorrência entre os capitalistas. A lei do
mercado os obriga a investir enormes capitais em
maquinaria cada vez mais aperfeiçoada para vencer os
concorrentes. Mas, se estes responderem ao desafio, as
novas máquinas bem depressa se tornam obsoletas,
sendo necessário renová-las para não sofrer a derrota.
Esta luta sem trégua diminui o lucro dos capitalistas e,
por vezes, poderá levar ao aumento temporário dos
níveis de salário, visto os capitalistas estarem dispostos
a pagar mais aos trabalhadores para os monopolizar.
Além disso, a mais longo prazo (mas este aspecto da
análise de Marx não foi explicitamente retomado por
Lenin), com a substituição cada vez mais ampla da
força do trabalho ("capital variável") pelas máquinas
("capital constante"), restringe-se a própria fonte de
onde deriva a mais-valia, já que só o trabalho vivo é
capaz de produzir novo valor. A crescente e inevitável
mecanização provoca, por outro lado, a concentração
da produção nas mãos de uns poucos. A medida que o
capitalismo se desenvolve, passa-se da forma do
mercado concorrencial à do mercado monopólico. São
apenas alguns indivíduos, e em caso limite um só, os
que controlam enormes complexos com milhares de
trabalhadores. É essa a fase mais avançada do
capitalismo.
Naturalmente, com o crescimento e consolidação
dos monopólios, cresce também a tendência ao
controle do Governo do Estado pelo poder econômico.
A política nacional não é senão resultado desta
influência. Nesta fase do desenvolvimento capitalista,
dada a organização da produção a nível mundial, a
atividade dos monopólios não pode cingir-se aos
limites do Estado. O "capital financeiro", fruto da
fusão entre capital bancário e capital industrial, tenta
assegurar o controle das matérias-primas e dos
mercados mundiais. Mais cedo ou mais tarde, os
interesses entram em conflito entre si. O mundo é
dividido em áreas de influência entre os diferentes
monopólios, ou então, o que é o mesmo, entre os
diferentes Governos. Concluída a divisão do mundo
em áreas de influência, aumenta a tensão entre os
diversos grupos e a guerra se torna mais cedo ou mais
tarde inevitável, deixando assim aberto o caminho ao
desencadeamento da revolução socialista.
Como já se indicou, a doutrina leninista do
Imperialismo é a mais vulgarizada entre os defensores
do marxismo. Ainda hoje, se bem que complementada
em alguns aspectos, é ela que ocupa uma posição
central dentro da doutrina marxista, particularmente
na doutrina política oficial dos países de regime
comunista. As razões pelas quais ela tem sido
geralmente preferida à de
614
IMPERIALISMO
R. Luxemburg podem resumir-se fundamentalmente
nestas três considerações. Em primeiro lugar, a teoria
leninista, não se baseando na hipótese do
empobrecimento crescente do proletariado, pareceu
estar mais estreitamente ligada à realidade histórica,
que já no tempo de Lenin, mas sobretudo nos anos
posteriores, contrariou cada vez mais inequivocamente
essa hipótese. Em segundo lugar, Lenin soube criticar
de forma convincente R. Luxemburg no tocante ao
fato de que os interesses imperialistas não estão
voltados só para os países subdesenvolvidos, mas
também para áreas altamente capitalistas. As guerras
entre a França e a Alemanha para a conquista da
Alsácia-Lorena são disso um claro exemplo. Em
terceiro lugar, a análise de Lenin, embora tenha sido
formulada, como a de R. Luxemburg, numa época em
que a forma corrente do Imperialismo era o
colonialismo, sendo mais elástica, tem maior
capacidade de acolher em seu âmbito explicativo
fenômenos imperialistas diferentes dos da expansão e
guerras coloniais ou dos provocados entre potências
imperialistas em virtude da própria expansão colonial.
Particularizando, tal análise pôde, com alguns
retoques,
ser
aplicada
ao
fenômeno
do
neocolonialismo, típico do período posterior à Segunda
Guerra Mundial, ou seja, às situações em que os
países explorados possuem um Governo ao menos
formalmente independente dos Estados exploradores.
3. O "capitalismo monopólico" de Baran e Sweezy.
— Em face dos novos dados surgidos no último pósguerra (sobrevivência do capitalismo, não obstante a
descolonização e a consolidação de um bloco de
Estados
socialistas,
subdesenvolvimento
e
neocolonialismo, papel dos Estados Unidos nesta nova
fase do Imperialismo), muitos estudiosos marxistas, ou,
melhor, "neomarxistas", sentiram a urgência em
construir, antes, uma nova teoria do que em manter de
pé, a todo o custo, a estrutura conceptual elaborada
por Lenin (ou por R. Luxemburg). Entre eles, vale
recordar particularmente os economistas americanos
Baran e Sweezy, cuja intenção manifesta é a de
superar a teoria de Lenin, ainda demasiado vinculada a
uma economia de tipo concorrencial, e a de construir
um modelo teórico, que considere de forma mais
explícita a economia monopólica como o principal
fator de estímulo imperialista. A parte mais inovadora
desta teoria (que foi elaborada tendo como objeto
central do estudo a economia norte-americana) em
confronto com as teses de Lenin é a relativa ao
militarismo. Segundo estes autores, um dos principais
usos do surplus (novo conceito por eles introduzido
em lugar do conceito clássico da mais-valia, a seu ver
inadequado às condições do capitalismo monopólico)
é o representado pelas despesas militares. Os Estados
Unidos não teriam tido, depois da guerra, um
desenvolvimento econômico tão rápido e de dimensões
tão impressionantes, se não tivessem destinado parte
considerável do seu orçamento aos armamentos. Estas
despesas permitiram ocupar no serviço militar direto e
indireto (setores produtivos que trabalham para a
defesa) uma grande massa da população que, de outra
forma, seria improdutiva. Além disso, as despesas
militares são um meio sumamente eficaz para o
desenvolvimento tecnológico, pois grande parte das
mais importantes invenções, usadas também no setor
civil, provêm da atividade de pesquisa do setor militar.
Daí que, se a política americana de contenção da URSS
e de presença político-militar no Terceiro Mundo
responde, por um lado, à necessidade de obstar à
expansão da área socialista (o que explica a superação
dos conflitos interimperialistas e a duradoura aceitação
pelos países capitalistas da leadership do mais
poderoso entre eles, bem como das vantagens
econômicas que daí lhe advêm), atende, por outro
lado, ao desenvolvimento da sociedade opulenta.
No tocante ao problema do subdesenvolvimento,
esta teoria sustenta (ligando-se, porém, neste caso a
uma corrente de pensamento amplamente desenvolvida
depois da guerra, graças à obra de numerosos
estudiosos, marxistas ou não) que a exploração dos
países atrasados continuou, apesar da independência,
porque eles continuaram inseridos no sistema mundial
capitalista, dominado pelos países mais fortes e pelas
grandes empresas multinacionais (a expressão mais
típica da atual fase de desenvolvimento do capitalismo
monopólico). O sistema capitalista, tomado pela busca
do lucro, tal como tende de modo orgânico a provocar
desequilíbrios sociais e territoriais no seio dos Estados
capitalistas, a mesma coisa faz, de maneira ainda mais
desenfreada, no plano mundial, evidentemente em
prejuízo dos países mais débeis e pobres que,
carecendo do conveniente poder contratual no
conjunto das nações, cada vez ficam mais pobres. A
única alternativa válida que se lhes oferece é a saída
do sistema mundial capitalista por meio da guerra
revolucionária e a criação de uma economia socialista.
Na medida em que isso ocorrer e se ampliar cada vez
mais, minguarão as possibilidades de as metrópoles
capitalistas exportarem suas contradições para o resto
do mundo; por isso, a superação revolucionária do
capitalismo voltará, também nelas, à ordem do dia.
Para concluir, importa lembrar que um recente
desenvolvimento da análise de inspiração marxista
referente ao Imperialismo, onde Sweezy teve um
papel importante, se empenha em explicar,
IMPERIALISMO
baseada em categorias de origem também marxista, o
fenômeno do Imperialismo soviético. Depois que,
sobretudo a partir da invasão da Tchecoslováquia, se
tornou cada vez mais difícil para muitos estudiosos
marxistas não subordinados à ideologia oficial
soviética negar a existência de aspectos imperialistas
na política externa da URSS, tanto sob o aspecto da
imposição violenta da sua vontade aos Estados
satélites como sob o da sua exploração econômica,
Sweezy e outros surgiram com uma nova linguagem
baseada na tese da restauração do capitalismo na
URSS e, conseqüentemente, das tendências
imperialistas inerentes a esse sistema econômicosocial.
III.
INTERPRETAÇÃO SOCIAL-DEMOCRÁTICA DO
Ao falarmos de interpretação socialdemocrática do Imperialismo, queremos nos referir a
uma orientação interpretativa cujos elementos
característicos são os seguintes: a) rejeição (comum,
aliás, a todas as teorias não marxistas sobre o
Imperialismo) da tese relativa ao nexo orgânico entre
Imperialismo e capitalismo, de onde se deduz que só
com a abolição deste sistema sócio-econômico será
possível eliminar o Imperialismo e as guerras; b)
convicção de que as tendências imperialistas
existentes no capitalismo (aliáveis às tendências
imperialistas provenientes de grupos sociais précapitalistas, como as castas militares, por exemplo)
podem ser eliminadas com reformas democráticas e
reformas econômico-sociais.
Partindo destas premissas, podemos incluir nesta
tendência um dos expoentes da teoria já mencionada do
subconsumo, Hobson, mesmo que, sob o aspecto
ideológico, ele deva ser definido mais como um
liberal-democrata do que como social-democrata. Ele
exerceu, com efeito, uma notável influência nos meios
da esquerda não marxista, especialmente nos partidos
socialistas anglo-saxões, ao formular, em princípios
deste século, a tese de que a cura da praga do
subconsumo das classes populares, com suas
implicações imperialistas ligadas à busca aflitiva de
mercados externos onde vender e investir, está numa
política de reformas econômico-sociais tendente a
aumentar, no quadro de uma economia capitalista
concorrencial e de livre mercado, integrada, porém,
com a ação da despesa pública, a capacidade de
consumo dos trabalhadores, e a favorecer, em
conseqüência disso, o constante crescimento e regular
absorção da produção, sem necessidade de recorrer à
expansão imperialista.
Incluem-se também, como é óbvio, nesta tendência
as teses dos maiores teóricos da social-democracia
histórica. Entre eles lembremos sobretudo Kautsky
(com quem coincide
IMPERIALISMO. —
615
substancialmente Hilferding, mesmo que suas teses
acerca do capitalismo financeiro constituam um dos
elementos fundamentais da teoria leninista sobre o
Imperialismo), que sustenta, contra a tese dos
marxistas revolucionários sobre a inevitabilidade das
guerras imperialistas entre os países capitalistas, que o
Imperialismo agressivo constitui, não uma fase
necessária do capitalismo, mas uma das suas políticas,
que pode ser substituída por outra, por uma política
"ultra-imperialista", que implique uma pacífica
colaboração entre as potências capitalistas (mais
conveniente entre outras coisas porque o Imperialismo
agressivo apresenta custos muito maiores do que
vantagens), na organização do mercado mundial e na
admissão nele dos países ainda não incluídos. Tal
política não eliminaria a tendência dos países
capitalistas a repartirem entre si os países atrasados,
principalmente os fornecedores de matérias-primas, e a
explorá-los, já que a exploração desses países é
estrutural no sistema capitalista e só pode ser superada
mediante reformas socialistas tendentes a introduzir
um controle político cada vez maior do
desenvolvimento econômico e a orientar o
desenvolvimento ao interesse de todos (economia
mista, planejamento, etc). Com isto, Kautsky
desenvolve teses que antecipam as modernas teorias do
subdesenvolvimento, ou seja, um pensamento que os
marxistas revolucionários seus contemporâneos não
aprofundaram tanto, pois partiam do pressuposto de
que o capitalismo estava para ser suplantado pela
revolução socialista.
Mas o ultra-imperialismo eliminaria os conflitos
desastrosos entre as potências capitalistas e,
conseqüentemente, a corrida armamentista e as
guerras, tanto as que visassem à repartição das
colônias como as orientadas à expansão territorial na
própria Europa. Constituiria, por isso, uma situação
muito mais avançada que a da luta pelo socialismo. A
classe operária há de ter, por conseqüência, interesse em
favorecer a evolução nesse sentido, com uma política
que favoreça as tendências mais pacíficas do
capitalismo, que debilite o militarismo (fortalecedor
das tendências imperialistas do capitalismo) e abra
perspectivas progressiva criação de vínculos
federativos entre os Estados.
Este último aspecto do pensamento de Kautsky, isto
é, a relação entre militarismo e Imperialismo, foi
desenvolvido de uma maneira orgânica, depois da
última guerra mundial, tendo como referência o
Imperialismo alemão, por Hans-Ulrich Wehler, a
quem se deve a mais válida contribuição para a
elaboração da teoria do "social-Imperialismo". Esta
teoria explica resumidamente o Imperialismo
mediante o conceito de bonapartismo, isto é, sublinha
como seu fator decisivo a
616
IMPERIALISMO
tendência da casta nobiliárquica burocrático-militar,
dominante na Prússia-Alemanha, a pôr em ação, em
aliança com a indústria pesada, uma política externa
de expansão imperialista e de prestígio, não tanto ou
principalmente para obter vantagens econômicas
diretas, quanto para enfraquecer e derrotar as forças
político-sociais que lutavam por uma radical
transformação democrática, de orientação socialista,
das estruturas autoritárias, conservadoras e militaristas
do império alemão. Uma tese que, segundo Wehler, é
aplicável a muitos outros casos de Imperialismo e se
aproxima, em alguns aspectos, da posição, que ora
analisaremos, de Schumpeter, mas de que se
diferencia, aliás, de modo claro, devido à maneira
crítica de encarar o sistema capitalista que lhe é
subjacente.
Em conclusão, a linha interpretativa socialdemocrática do pós-guerra tem como característica
uma
posição
relativa
à
problemática
do
subdesenvolvimento (comum também aos partidos
que fazem parte da Internacional Socialista e para a
qual convergem, por exemplo, as teses do Clube de
Roma e as mais avançadas tendências revisionistas do
comunismo ocidental), que se pode resumir desta
maneira: assim como nos países industrializados mais
avançados as políticas encaminhadas a subordinar o
desenvolvimento econômico ao interesse geral, mesmo
sem eliminar radicalmente o papel da livre iniciativa e
do mercado (planejamento econômico, controle dos
investimentos, política regional, etc), estão em vias de
superar os desequilíbrios econômicos, sociais e
territoriais, provocados por um capitalismo
desenfreado, assim o mesmo poderá ocorrer em
dimensões mundiais no que concerne ao desequilíbrio
fundamental entre países ricos e países pobres, na
medida em que o mercado mundial for orientado
pelos meios da programação, da política regional, etc,
em vez de ser abandonado à ação sem controle das
grandes empresas multinacionais. Esta perspectiva é
considerada a alternativa mais válida, quando se optou
por introduzir nos países atrasados rígidos sistemas
coletivistas, que rompem os vínculos de dependência
do mercado capitalista mundial, mas têm de renunciar
com isso às vantagens derivadas da interdependência
com sistemas econômicos fortemente dinâmicos, pois
neles não se deu a completa burocratização da
economia (cujas limitações são já bastante evidentes),
como aconteceu nos países da esfera soviética.
IV. SCHUMPETER E A INTERPRETAÇÃO LIBERAL DO
— Se as doutrinas social-democráticas
se afastam claramente de alguns dos princípios
basilares do marxismo ortodoxo ou
IMPERIALISMO.
revolucionário, porquanto tendem a considerar
possível a correção dos aspectos imperialistas do
capitalismo, a teoria elaborada por Schumpeter, num
ensaio de 1919, representa completamente o oposto
da posição marxista.
Através de uma análise erudita dos fenômenos
imperialistas ocorridos desde a antigüidade até a
Primeira Guerra Mundial, este autor chega, de fato, à
conclusão de que o Imperialismo moderno, longe de
ser um produto do modo capitalista de produção, é, ao
contrário, o resultado de condições políticas, culturais,
psicológicas, sociais e econômicas pré-capitalistas, que
o desenvolvimento capitalista não conseguiu ainda
eliminar. Em resumo, o capitalismo (que, para
Schumpeter, na época em que escrevia o seu ensaio, não
existindo interferências políticas contrárias, devia
tender naturalmente a um equilíbrio fundado na livre
concorrência e no livre mercado, e não, ao invés, no
monopólio e no protecionismo) é, por sua natureza,
essencialmente pacífico, na medida em que lhe é
intrínseca uma forte tendência à racionalização — no
sentido do cálculo racional dos custos e dos lucros —,
que estende progressivamente a sua influência a todos
os aspectos da vida social. Ele tende particularmente a
neutralizar as atitudes agressivo-irracionais que se
revelam na praxe política interna e internacional, em
variadas formas de violência, entre elas a guerra e a
expansão imperialista, canalizando-as e orientando-as
para a racional e, portanto, pacífica competição
econômica no mercado, e fomentando com isso a
instituição de procedimentos democráticos. Dada esta
tendência do capitalismo, o fato de que haja
fenômenos importantíssimos de política imperialista
que se manifestam no âmbito da civilização capitalista
não se pode explicar senão em virtude de nele
persistirem atitudes psicológicas e culturais e
interesses concretos de origem e natureza précapitalistas, que manifestam sua influência através do
poder político, orientando-o para uma política
imperialista que contradiz a lógica do capitalismo.
Schumpeter chama concretamente a atenção para as
paixões nacionalistas irracionais que dominam vastos
estratos da opinião pública dos países europeus, e são
conseqüência da herança histórica das lutas de poder
que incessantemente se desenvolveram na Europa nos
séculos passados. Põe sobretudo em evidência a
orientação acentuadamente belicista e filo-imperialista
das castas militar-feudais e de amplos setores da
burocracia dos Estados continentais europeus. Estes
grupos sociais, que se formaram ou consolidaram no
período do absolutismo e das suas constantes guerras
de conquista, são ainda muito fortes na época
capitalista e concorrem de maneira decisiva
IMPERIALISMO
para o impulso imperialista, não por um interesse
econômico direto na expansão territorial, mas porque
tal política justifica a permanência e reforço de
ingente aparelho militar e burocrático, ou seja, da base
material do seu poder, dos seus privilégios e do seu
prestígio. Identificadas assim as raízes do
Imperialismo, Schumpeter pode, pois, chegar à
conclusão de que "o Imperialismo é um atavismo" e
confiar, por isso, na sua progressiva eliminação como
conseqüência do pleno desenvolvimento do
capitalismo.
Esta interpretação do Imperialismo alcançou
grande sucesso nos ambientes liberais, sobretudo nos
meios liberal-conservadores americanos, porque,
pondo um parêntese à problemática do Imperialismo
informal e, portanto, da exploração neocolonial dos
países atrasados, adapta-se perfeitamente à imagem
ideológica oficial de um país que é, ao mesmo tempo,
o mais importante dos países capitalistas e aquele que
nunca teve praticamente uma tradição colonial. Ela
inspirou, além disso, um modo de ver bastante difuso
ainda nos meios liberais que, partindo da relação
"pleno desenvolvimento do capitalismo e do sistema
liberal-democrático/eliminação do Imperialismo",
tende a considerar a política soviética como a forma
mais relevante, se não única, do Imperialismo deste
pós-guerra e estabelece um nexo orgânico entre o
Imperialismo e a alternativa coletivista totalitária, que
contrapõe ao sistema democrático-pluralista baseado
na economia de mercado. Enfim, à posição
schumpeteriana se podem reduzir também (conquanto
igualmente ligadas à teoria do social-imperialismo) as
análises do Imperialismo americano que se referem ao
chamado complexo militar-índustrial.
V. INTERPRETAÇÃO DO IMPERIALISMO BASEADA NA
TEORIA DA RAZÃO DE ESTADO. — Inserem-se nesta linha
interpretativa as análises do Imperialismo surgidas no
âmbito das correntes mais modernas da tradição de
pensamento que se refere à teoria da razão de Estado,
particularmente na doutrina alemã do Estado-potência
(lembramos, em especial, Paul Rohrbach, Max Weber,
Otto Hintze, Hermann Schumacher) e, sobretudo, na
corrente federalista (principalmente Lionel Robbins,
Lord Lothian, Luigi Einaudi, Ernesto Rossi, Altiero
Spinelli, Ludwig Dehio, Mario Albertini). O elemento
distintivo desta orientação assenta na tese da
autonomia da política externa em relação às estruturas
internas dos Estados, tese que se contrapõe à do
primado da política interna sobre a externa, que
constituía, ao contrário, o fundamento teórico das
tendências interpretativas anteriores e é um elemento
característico do internacionalismo. Em resumo,
enquanto para estas
617
tendências o Imperialismo deriva fundamentalmente
das estruturas políticas internas e/ou econômicosociais dos Estados, podendo, por isso, só ser superado
com a transformação de tais estruturas (obviamente
em diferentes direções, segundo os diversos pontos de
vista), a orientação que analisamos vê no Imperialismo,
em última análise, uma conseqüência da estrutura
anárquica, porquanto fundada na soberania estatal
absoluta, das relações internacionais — o que não
exclui que o bonapartismo (v. BONAPARTISMO) possa ser
importante fator concomitante da política de potência
e do Imperialismo. A anarquia internacional estabelece
entre os Estados, qualquer que seja o seu sistema
econômico-social e o seu regime político, a lei da
força, transformando, por isso, inexoravelmente, a
diversa distribuição do poder entre os Estados em
domínio dos mais fortes sobre os mais fracos e,
conseqüentemente, em possibilidade de exploração
econômica destes por aqueles; impele, por outro lado,
todo o Estado, em especial as grandes potências, a
reforçar incessantemente, por necessidade de
segurança, o próprio poderio, mesmo mediante a
conquista territorial, onde e quando se ofereça a
ocasião e a possibilidade, para prevenir a intervenção
das potências concorrentes. Em tal situação, o único
modo de eliminar pela raiz o Imperialismo, assim como
em geral as guerras, está (como afirma a corrente
federalista, v. RAZÃO DE ESTADO, IV) na superação da
anarquia internacional por meio de uma Constituição
federal mundial, que substitua a política de potência
pela defesa jurídica da independência das nações.
A tese referente à relação entre Imperialismo e
anarquia internacional (confirmada infinitas vezes
pela experiência histórica, que mostra a continuidade
da política de potência e do Imperialismo, embora com
mudança nos conteúdos econômicos e sociais, através
das transformações mais radicais das estruturas
internas dos Estados) assinala um aspecto essencial
dos fenômenos imperialistas, um aspecto de caráter
muito genérico, que, por si só, não permite uma
compreensão adequada de tais fenômenos em sua
concreta delimitação histórica, já que prescinde dos
concretos e específicos conteúdos econômico-sociais
das relações interestatais e da particular configuração
do sistema dos Estados. Se oferece a base
indispensável para uma teoria geral do Imperialismo,
ou seja, uma teoria também aplicável, evidentemente
com as necessárias complementações, a contextos
históricos diversos dos do Imperialismo moderno, a
explicação da especificidade dos fenômenos
imperialistas que nos apresenta esta tendência se
baseia no esclarecimento de ulteriores determinações.
Para reconstruir de modo
618
IMPERIALISMO
apropriado o desenvolvimento desta análise, é preciso
distinguir as análises relativas à fase situada entre 1870
e 1945, das relativas ao último pós-guerra.
1. O Imperialismo entre 1870 e 1945. — O fator
decisivo sobre o qual se chama a atenção para explicar
o Imperialismo neste período, em que as potências
européias e o Japão — no contexto asiático —
exercem um papel determinante e em que se passa do
colonialismo às tentativas hegemônicas da Alemanha e
do Japão, é a crise do Estado nacional. Com este
conceito (elaborado principalmente pela corrente
federalista, a que de preferência nos referiremos, mas
que se baseia também na contribuição dos teóricos
alemães do Estado-potência, que nele se basearam para
justificar o Imperialismo alemão), põe-se antes de tudo
em evidência a contradição que se vem manifestando
desde o final do século XIX entre as dimensões dos
Estados nacionais europeus (isto vale também em
certa medida para o Japão) e as exigências do
desenvolvimento produtivo que, em conseqüência do
início da produção de massa, instavam por mercados
de dimensões continentais. A condição fundamental
que tornou possível a manifestação e o progressivo
acentuar-se desta contradição está no predomínio, a
partir dos anos 70, da tendência a um crescente
protecionismo econômico. Seguindo-se daí o perigo de
muitos se verem cada vez mais excluídos dos mercados
externos e faltando a determinação política de pôr em
prática formas de integração supranacional, uma vez
que os Estados nacionais europeus se encontravam no
auge da sua força e não existia, por isso, um real
espaço para uma política de limitação da soberania,
prevaleceu a tendência a assegurar o controle político
direto ou indireto de um território o mais amplo
possível, isto é, a expandir a área protegida (que os
teóricos alemães definem como "espaço vital"),
subtraída, portanto, ao protecionismo de outros. Está
aqui a razão econômica fundamental pela qual até a
Grã-Bretanha (que, embora sendo até 1931 pelo livre
mercado, retoma uma expansão colonial de grande
estilo, para manter fora das políticas protecionistas dos
outros Estados o mais vasto território possível)
abandona a tendência ao Imperialismo informal, que se
manifestara claramente na época do livre mercado.
Aqui também a razão econômica da agressividade
característica da política imperialista levada a efeito
por Estados como a Alemanha, a Itália e o Japão, onde
o problema das dimensões territoriais, demasiado
limitadas para as exigências do desenvolvimento
econômico, se tornava particularmente grave, devido
também ao atraso com que haviam chegado a
participar na expansão imperialista formal e informal.
Daí o nexo bastante claro entre as fases de acentuação
da política protecionista e as fases de mais exasperado
expansionismo.
Para compreendermos melhor o alcance desta linha
de interpretação, é necessário mostrar com precisão
como ela põe em evidência o principal ponto fraco de
todas as outras interpretações. Em substância, os
teóricos anteriormente recordados, embora levem em
consideração o nexo entre protecionismo e
Imperialismo (Hilferding, Kautsky, Bucharin e o
próprio Schumpeter falam em termos explícitos de
tendência à expansão imperialista da área protegida
para nela poder exportar livremente mercadorias e
capitais), ou sustentam que o protecionismo é uma
conseqüência necessária da fase monopólica do
capitalismo (Bucharin), ou insistem igualmente não só
neste aspecto como também na necessidade que os
países relativamente atrasados têm de recuperar, com o
protecionismo, seu atraso em relação à Grã-Bretanha
(Hilferding), ou acentuam a necessidade que urge os
Estados capitalistas a criarem para si, também
mediante o protecionismo, áreas reservadas quanto
mais amplas possível, onde resolvam o problema da
realização da mais-valia (Luxemburg), ou então põem
a origem do protecionismo nas pressões feitas nesse
sentido pelas castas nobiliárquicas e militares précapitalistas (Schumpeter). Desse modo, descuram a
raiz fundamental do protecionismo, ou seja, a
soberania estatal absoluta. Isto é posto em evidência
precisamente pelos teóricos da corrente federalista,
que chamam a atenção para o fato de que, se as
tendências antes indicadas constituem, com efeito,
fatores que levam ao protecionismo, com todas as suas
conseqüências, no plano internacional, não produzem
conseqüências análogas nas relações entre as diversas
regiões de um Estado unitário e os diversos Estados de
um Estado federal. Isso significa que a condição
institucional que torna possível a tais fatores (e a eles
se juntam outros assaz importantes, como a
necessidade de desenvolver setores econômicos de
importância estratégica para a política de potência,
ainda que pouco ou nada produtivos do ponto de vista
estritamente econômico, e como a de defender o
emprego ou, em geral, as políticas orientadas a
enfrentar as crises econômicas, normalmente
causadoras de desequilíbrios nas contas externas)
operar de modo efetivo no sentido da introdução do
protecionismo, ou da sua exacerbação, é exatamente a
soberania estatal absoluta. Esta implica, por um lado, a
subordinação das exigências econômicas à razão de
Estado e significa, por outro, que não existe um poder
soberano superior aos Estados, encarregado de tutelar
o interesse comum e tendo, portanto, o poder de os
impedir de defender particularmente os próprios
interesses, o que provoca
IMPERIALISMO
inevitavelmente represálias. A incapacidade de ver na
soberania estatal absoluta a raiz essencial do
protecionismo, é necessário dizê-lo, está intimamente
ligada às limitações do ponto de vista internacionalista
que fundamenta as demais posições. Estando ele, com
efeito, baseado na tese do primado da política interna,
não questiona a soberania absoluta, mas se inclina a
considerá-la como um dado natural imodificável (ou,
como acontece em Kautsky, tende a ver a criação de
vínculos federativos entre os Estados como uma
conseqüência quase automática do fortalecimento das
tendências socialistas dentro dos Estados, e não como
o fruto de uma ação política deliberada e
especificamente voltada para tal objetivo) e, por
conseqüência, é levado a não o considerar como fator
decisivo do protecionismo e do Imperialismo. Este
obstáculo ideológico não existe, pelo contrário, nos
teóricos da corrente federalista, justamente porque
estes contestam praticamente a soberania absoluta.
Com isso, os teóricos federalistas puderam, entre outras
coisas, pôr em evidência que o Imperialismo não está
organicamente ligado ao capitalismo, mesmo que, num
determinado contexto histórico, os interesses
capitalistas tenham desempenhado um papel decisivo
e, com outros interesses, compreendidos os de
consideráveis grupos de trabalhadores, tenham levado
ao protecionismo. Por isso, eles previram que, num
futuro sistema de Estados socialistas soberanos,
caracterizados, em função das próprias exigências
objetivas da planificação, por fortíssimo protecionismo,
não cessará a necessidade econômica de expandir a
área protegida, nem cessarão os conflitos entre eles, a
menos que a ordem possa ser garantida por uma
potência socialista hegemônica. Apoiados nisto,
criticaram, além disso, a tese de Kautsky e de
Schumpeter acerca da não conveniência econômica do
Imperialismo, demonstrando como num contexto
protecionista a expansão imperialista tem, sobretudo,
a função de evitar as perdas que derivariam da
exclusão de certos territórios, quando caídos em mãos
alheias. Esta necessidade, mesmo que com muita
freqüência sejam os interesses particulares que
impõem o protecionismo, corresponde a um interesse
nacional, um interesse interclassista, já que a exclusão
dos territórios sujeitos ao protecionismo de outros
prejudica todas as classes, de um modo geral, e
principalmente a dos trabalhadores. Isso concorre de
modo decisivo para explicar que as políticas
imperialistas tenham merecido, em definitivo, o
consenso da grande maioria das populações dos países
do Imperialismo. Além de se chamar a atenção para o
nexo entre protecionismo e Imperalismo, com o
619
conceito de crise do Estado nacional se enquadra o
Imperialismo no contexto da crise do sistema europeu
dos Estados, determinada pelo triunfo da fórmula do
Estado nacional, em geral, e pelo nascimento do
Estado nacional alemão, em particular. No quadro de
uma paz armada, cada vez mais custosa e precária por
via do inaudito fortalecimento da potência dos Estados
europeus, só possível graças à industrialização e à
conscrição obrigatória (características típicas do
moderno Estado nacional), e também por via dos
fatores de conflito introduzidos pela própria ideologia
nacional (irredentismo, forte debilitação do
sentimento, resultante da comum herança cultural
européia, de pertencer a uma comunidade
supranacional, etc), a criação do Estado nacional
alemão, tão poderoso quão incertos eram os seus
limites, destruiu definitivamente, segundo este ponto
de vista, o equilíbrio europeu e abriu uma fase de
crescente desordem internacional. Em tal contexto, ao
declínio do poderio britânico correspondeu a sua
incapacidade de manter o livre comércio em escala
mundial, enquanto que a opção de enfrentar a
incipiente crise do Estado nacional com uma resposta
imperialista desembocou fatalmente, exauridos os
territórios extra-europeus ocupáveis, na última e mais
terrível tentativa hegemônica verificada na história do
sistema dos Estados europeus.
O Imperialismo das potências européias (bem como
o do Japão) se esgotou enfim com a absorção da
autonomia desses Estados no quadro do sistema
bipolar mundial, dominado pelos Estados Unidos e
pela URSS. Neste quadro, na zona de influência
americana (mas, em termos diferentes, também na de
influência soviética), foi ganhando corpo, com o
processo de integração européia, uma resposta
pacífica à crise do Estado nacional.
2. O Imperialismo neste pós-guerra. — Pelo que se
refere aos fenômenos imperialistas posteriores a 1945,
em que as superpotências, E.U.A. e URSS, têm
desempenhado um papel decisivo, a análise baseada
na teoria da razão de Estado se caracteriza
essencialmente pela tendência a acentuar a influência
autônoma que deriva da configuração concreta das
relações interestatais, relativas a manifestação dos
fenômenos imperialistas e às suas modalidades.
Com este critério, chama-se geralmente a atenção
para as implicações imperialistas do sistema bipolar
mundial. Tal sistema tem certamente o mérito
histórico de ter posto fim às convulsões cada vez mais
desastrosas do sistema dos Estados europeus e, por
isso, às aventuras imperialistas das potências
européias e do Japão. Neste quadro se desenvolveram,
além disso, o processo de liberalização das trocas (os
Estados Unidos utilizaram
620
IMPERIALISMO
de forma eficaz sua posição hegemônica com relação
aos Estados de economia de mercado, para retomarem a
política de livre comércio posta em prática pela GrãBretanha nas décadas centrais do século XIX) e o
processo de integração européia (desenvolvido de
formas diversas e mais limitadas também na esfera de
influência soviética), levando-se a termo igualmente o
grandioso processo da descolonização. Por outro,
lado, a criação de blocos sob a hegemonia das
superpotências, necessariamente originada na
estrutura bipolar do sistema (v. RELAÇÕES
INTERNACIONAIS), criou relações de forte dependência
entre as superpotências e os seus satélites, tornandose, por isso, possível que os interesses daquelas se
impusessem a estes, não excluídas também as formas
de exploração econômica, obviamente com
modalidades diversas (papel do dólar, empresas
multinacionais, dependência tecnológica, etc, na
esfera de influência americana, divisão internacional
do trabalho efetuada em função dos interesses
soviéticos no Comecon), relacionadas com a
diversidade dos sistemas políticos e econômicosociais em ambas as esferas hegemônicas. Daí a
necessidade da superação dos blocos que, no entanto,
só poderá evitar o retorno à balcanização da Europa,
se for conseqüência da unificação federativa do
continente.
No que respeita em particular ao neocolonialismo e
ao subdesenvolvimento, a reflexão vem a coincidir com
a tese desenvolvida pela tendência social-democrática
de que o capitalismo incontrolado tende a manter e a
aprofundar os desequilíbrios entre os países pobres e
os países ricos no mercado mundial, os quais só
poderão ser progressivamente superados com a
introdução de eficazes instrumentos de programação e
de uma política regional de dimensões mundiais. E
assim se realiza a integração da análise levada a cabo
pelos teóricos anteriores à guerra, que consideraram o
problema da exploração dos países atrasados pelos
países de economia capitalista desenvolvida, mas
insistiram sobretudo na relação entre a exploração e as
lutas de poder entre os países avançados, lutas que, no
contexto da crise do sistema internacional ocorrida
entre 1870 e 1945, envolviam a necessidade de
recorrer a qualquer meio para aumentar a força
econômica e, conseqüentemente, política dos Estados.
Com base neste ponto de vista, a preponderância da
solução federal sobre a imperial para o problema da
criação de mais amplos espaços econômicos, ao fazer
com que não existisse mais a necessidade objetiva de
tratar os povos coloniais e atrasados em geral em
função dos interesses vitais de potência dos países
avançados, abriria automaticamente caminho a uma
política comum, orientada por estes
últimos, no quadro de um sistema geral de livre
comércio, a desenvolver os países atrasados e a levar
gradualmente os povos coloniais a se autogovernarem.
Os limites desta visão estavam, pois, na carência de
uma análise rigorosa das tendências orgânicas de um
desenvolvimento desequilibrado, próprias de um
mercado mundial capitalista não ajustado por
instrumentos de intervenção pública, orientados a fazer
prevalecer o interesse geral contra os interesses
particulares. Isso refletia as convicções demasiado
otimistas de alguns teóricos (particularmente Robbins
e Einaudi) sobre os efeitos positivos de um sistema
generalizado de livre concorrência e de livre comércio,
não obstado pela intervenção de fatores políticos,
perturbadores como o protecionismo.
Se esta lacuna analítica é, pois, preenchida pela clara
visão da necessidade de apontar instrumentos de
política econômica capazes de submeter a um controle
eficaz as forças espontâneas do mercado mundial, a
específica contribuição da corrente federalista a tal
respeito consiste na explicação da situação de poder,
sem a qual tais instrumentos são incapazes de operar.
Esta situação de poder não pode em definitivo ser
constituída senão pela organização do sistema
democrático ao nível internacional, o que só é possível
mediante instituições federais (v. FEDERALISMO). Com
efeito, foi o triunfo e consolidação do sistema
democrático que permitiu tomar efetivas, no âmbito
dos Estados capitalistas, formas de controle,
conquanto ainda insuficientes por causa das
inadequadas dimensões estatais, do desenvolvimento
econômico em função do interesse geral. Isto porque a
necessidade de os Governos democráticos obterem o
consenso de todas as classes e regiões fez com que as
classes e regiões menos favorecidas conseguissem maior
consideração para as suas exigências. Este mesmo
processo se poderá verificar em escala mundial, se as
principais decisões governamentais sobre a economia
mundial não forem mais o fruto de meras relações de
força entre os Estados, mas de um processo
democrático mundial, organizável por meio de
estruturas federais, que, deixando aos Estadosmembros o máximo de autonomia compatível com a
manutenção da unidade e permitindo que todos os
povos façam valer democraticamente os seus
interesses, sejam capazes de conciliar as imensas
vantagens de um mercado mundial com as necessidades
de desenvolvimento dos países menos favorecidos.
Quanto a esta perspectiva de democracia federal
mundial, uma perspectiva, como é óbvio, a longo
prazo, a transição necessária está na evolução do
sistema mundial bipolar para um mais elástico sistema
multipolar (v. RELAÇÕES INTER NACIONAIS)
IMPÉRIO
que crie uma mais duradoura distensão e dê maior
autonomia, portanto maior capacidade de fazer valer
os próprios interesses até aos Estados mais débeis.
Uma tese que encontra clara confirmação na evolução
dos últimos anos, que demonstrou que o declínio da
força das superpotências abriu maiores possibilidades
de movimento aos países do Terceiro Mundo,
especialmente aos possuidores de matérias-primas.
Neste quadro parece de importância decisiva tornar
realidade (levando antes de mais nada a termo a
integração da Europa Ocidental) formas eficazes de
integração regional e de federação nas regiões mais
homogêneas, a fim de se criar comunidades políticas
de dimensões mais, adequadas às exigências do
desenvolvimento econômico e capazes de uma real
autonomia.
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[SERGIO PISTONE]
Império.
I. CARACTERÍSTICAS GERAIS. — Apesar de terem
sido tão diferentes, na história da Europa e do mundo
cristão em geral, os métodos e as formas de Governo
dó poder político pessoal ou de grupos restritos (v.
MONARQUIA, SENHORIAS E PRINCIPADOS), é certo
que o modelo mais completo e adiantado não foi o
Império. Modelo tipicamente romano, tanto pela
forma como pelo conteúdo, o Império representou
uma solução permanente para todos aqueles regimes e
instituições que, chegados a um determinado
momento crítico de sua evolução, procuraram
descobrir e definir uma forma superior de poder legal
e
622
IMPÉRIO
internamente centralizador, a fim de superar suas
dificuldades.
Desta forma, o Império foi sendo instrumento para
conciliar realidades políticas cada vez mais
conflitantes e divergentes na vida interna do Estado;
meio para definir uma forma superior de coesão e de
unificação em relação às entidades régias e
principescas em conflito; organização de poder
absoluto num aglomerado social para conquista de
espaços territoriais. Foi uma instituição que sempre
repetiu, até no nome, a experiência romana, que
considerava como um modelo perfeito, mas da qual
em geral copiava mais os vícios do segundo período
do que as virtudes unificadoras do primeiro.
A tendência típica comum a todos os modelos de
Império na Europa (romano, germânico-feudal,
bizantino-russo), excetuado talvez o carolíngio,
devido às desesperadas condições em que logo teve
que atuar, foi exatamente a tendência ao crescimento
progressivo do poder do imperator na política interna
e às pressões expansionistas na política externa. De
fato, no Império, o imperador procurava sempre se
tornar cada vez mais forte em prejuízo das realidades
a ele submissas e, com o passar do tempo, cada vez
mais tendia a propor uma forte ação expansionista
externa, para corrigir e integrar as limitações da
Constituição imperial, e encontrar na conquista aquela
contínua confirmatio do poder e aquela renovada
motivação de consenso popular, que não eram mais
expressas pelos órgãos representantes ou pela opinião
dos diversos grupos sociais.
A aplicação do modelo romano, e sobretudo do
tardo-romano,
constantiniano,
trouxe
claras
conseqüências comuns na concepção do poder
imperial, principalmente a unicidade. Se bem que
também na época romana este objetivo tenha sido
conseguido só parcialmente com a progressiva
bifurcação, do século IV em diante, das duae partes
coniunctissimi Imperii, fica bem claro que cada
imperio quis sempre se impor como o unicum, como
um centro coordenador de toda a humanidade ou
(mais concreta e conscientemente) de toda aquela
parte da humanidade que adotava os mesmos costumes
étnicos e político-culturais básicos: tal foi o Império
bizantino, gestor e titular do grecismo e do
cristianismo oriental; tal foi o Sacro Império romano
para a cristandade ocidental; tal foi também o Império
russo para o mundo eslavo.
Assim como Augusto fora o único chefe, o único
guia do Orbis romanus, assim também deveria ser o
Basileus para o mundo "civil" oriental de língua e
cultura grega, o piissimus Augustus germânico para a
Sancta romana respublica, o csar para o mundo
eslavo-oriental após a queda
de Constantinopla. Somente com o período
napoleônico e a definitiva destruição do mundo
medieval, entra-se numa era de concorrência paralela
e de não-unicidade também conceptual de Império,
vindo este termo a designar, daí em diante, somente
um particular e relevante tipo de Estado (Império dos
franceses, da Áustria, da Alemanha, de todas as
Rússias, etc).
Outra característica fundamental comum a todos os
modelos imperiais históricos consistiu, seguindo ainda
o modelo romano, na concepção da perpetuidade do
Império. Perpetuidade que se relacionava com o
conceito de continuidade e de necessidade; de fato, o
Império foi sempre visto como instrumento necessário
para a salvação de todo aquele mundo a ele ligado e,
até, como instrumento concebido pelo próprio Deus
para este fim, elemento especial e exclusivo de
salvação espiritual e temporal, guia único, absoluto,
perfeito e permanente.
Esta concepção era claramente decorrente da visão
e da doutrina cristã: Deus tinha concedido aos
romanos o Império sobre o mundo para a difusão,
primeiro, e, depois, para a tutela de sua religião
revelada. Antes hostil, o Império tinha-se tornado o
defensor e quase que o depositário da nova religião,
tanto que a permanência da religião postulava a
própria permanência do Império, da essencialidade da
religião decorria a essencialidade do Império, da
perpetuidade da religião se deduzia a perpetuidade do
mesmo Império. Assim, de fato, declaram tantos
documentos medievais: ... in perpetuum valiturum ...
Decorre daí a outra concepção comum da grandeza
e sublimidade do Império: na época romana, o
princeps, antes, e o dominus, depois, eram
circundados do esplendor e da dignidade viva e
substancial do Imperium populi romani. A
justificação, antes mundana e depois religiosa, dada,
no mundo romano, da perpetuidade do Império
continha em si a dignidade suprema de cargo e função
de quem era revestido desta autoridade. Esse
conceito, com o decorrer do tempo, não diminuiu mas
cresceu, especialmente na concepção bizantina e na do
restaurado Império Romano-Germânico. Neste, até a
sublimidade da idéia imperial parece substituir a
fragilidade substancial, a fraqueza ou a semiinexistência do poder real.
Omnis potestas a Deo...: portanto vem de Deus,
antes de tudo, e acima de tudo, o primeiro dos
poderes terrestres, a coroa imperial preordenada para
a Salus et bonum animarum de todos os cristãos.
Titular de um poder único e eterno, o imperador era
também investido da mais alta dignidade sobre a terra:
poder terrestre algum poderia competir com ele.
IMPÉRIO
Esta complexidade de dados tornam o império uma
realidade particular e significativa para a antigüidade
romana e, na época medieval e moderna, enquanto
conseguiram mantê-la. Pela capacidade, que sempre
teve o modelo imperial, de adaptar-se aos tempos,
assumindo as diversas motivações temporais e
religiosas que a sociedade foi-lhe fornecendo, ele se
apresenta como instrumento idôneo para organizar (ou
tentar organizar) sociedades ainda muito unitárias e
em fase de desenvolvimento.
O Império foi uma instituição que conseguiu se
manter somente em épocas com determinadas
condições culturais e sociais; de fato, ao ultrapassar os
limites do tempo, que lhe foram próprios, perdeu sua
essência e finalidade. Ficou apenas como puro
"imperialismo" de poder, bem enraizado em nosso
tempo, apesar de não existir mais sua matriz formal.
II. OS DOIS MOMENTOS DO IMPÉRIO DE
ROMA. — As raízes do sucesso da forma imperial
se encontram claramente em plena época romana, no
momento em que se constituiu o "principado" de
Augusto, uns trinta anos antes do nascimento de
Cristo. Investido, várias vezes, do consulado, em
seguida estavelmente da tribunicia polestas e do
imperium proconsulare maius, e, depois do ano 12 a.C,
da suprema autoridade pontificai, o "bom Augusto"
não era formalmente mais do que o primeiro dos
magistrados romanos da antiga Constituição
municipal.
Como ele mesmo — e melhor do que os outros —
nos diz nas Res gesta: "auctoritate omnibus prestiti,
potestatis autem nihilo amplius habuiquam ceieri qui
mihi quoque in magistratu conlegae fuerunt...".
Superior pelo poder, quanto à autoridade ele se
declarava igual aos seus "colegas" de magistratura
(cônsules, procônsules, etc). A fórmula que melhor de
todas expressa a realidade constitucional de Augusto é
a de princeps, de "primeiro" na República: forma que,
porém, é anticonstitucional ou, pelo menos,
aconstitucional, já que uma república não pode se
governar sob a tuitio de um princeps, sem a
decadência e a limitação substanciais da autonomia e
do poder.
Tratou-se, na realidade, disto; o compromisso de
Augusto entre o partido democrático vencedor e o
Senado depositário dos valores tradicionais do Estado
romano continha já in nuce todo o desenvolvimento
imperial e absolutista posterior. Aliás, Augusto
assumira já para si e sobre si um claro título
majestático, através da simples e fascinante fórmula
de Imperator Caesar Augustus, que devia conter
todos os progressos e as aspirações a serem definidos
no futuro.
623
De fato, Augusto, chefe do poder militar de acordo
com a tradição imperial, foi logo titular de
amplíssimos poderes em todas as províncias não
senatoriais, objeto de culto e de divinização no Egito,
depositário, também na Urbe e no antigo mundo
romano, do poder de intercessio, isto é, de veto ao ato
de qualquer magistrado urbano e provincial. Ele,
assim, reunia em suas mãos uma auctoritas vastíssima,
que levou historiadores e juristas a pensarem numa
diarquia toda especial em Roma, uma ordenação
republicana e uma principesca, ou melhor, numa
espécie de tuitio, isto é, de poder, de proteção e guia
exercido por um Estado "novo" (o princeps, o
"primeiro" com seus funcionários) em relação ao
Estado "velho" (representado pela respublica
romanorum, formalmente intata).
Respeitoso da civilitas romana, Augusto, de fato,
introduziu nela novos elementos: o Senatus e o
populus romanus foram largamente assumidos no novo
modelo principesco. Este modelo, justamente pela
sagacíssima contaminação entre o velho e o novo,
pelo ostentado respeito para com poderes que ele
vinha esvaziando, pelo senso de tranqüilidade e
segurança que soube difundir entre cultores do novo e
representantes da tradição, constituiu sem dúvida uma
ação política perfeita e uma sólida base para todos os
futuros endurecimentos.
O Governo monocrático do imenso Império romano
se foi, como é sabido, sempre acentuando, associandose constantemente a uma política de expansão externa
que fez realmente coincidir os confins do Império com
os do mundo conhecido; enquanto isto, o progressivo
declínio da sociedade itálica e quiritária ia
enfraquecendo cada vez mais um dos eixos que
sustentavam o compromisso de Augusto. A crise
econômica acompanhada da gravíssima crise política
do século III favoreceram a passagem para a fórmula
do Império absoluto, a mesma fórmula que será
herdada pela Idade Média.
Dominus legibus solutus em sentido pleno, o
Augusto, desde Constantino em diante, cercado de
fasto e honrado com títulos cada vez mais pomposos,
dominus do Império no sentido total, com o Senado
reduzido a uma simples Câmara para transmitir as
diretrizes do príncipe, com a legislação toda resumida
nas Constitutiones principis (daí se deduz a idade da
codificação), com a plena aceitação de um sistema
sucessório dinástico, representou sempre mais e
melhor um modelo daquele que as fontes bizantinas
definirão como auctocrator, o autocrata. Duro
autocrata de quem tudo dependia: do regime fiscal ao
militar, do tabelamento coativo ao sistema
624
IMPÉRIO
produtivo, da política internacional às questões
religiosas.
Adversário do cristianismo até o ano de 313 d.C, o
Império se tornou sucessivamente tolerante e, em
seguida, ativo protetor da nova religião, chegando a
convocar e a presidir aos primeiros Concílios
ecumênicos (a partir do de Nicéia de 325) e a
constituir-se guia e braço secular na luta contra
pagãos e hereges. Defensor da Igreja romana e da
ortodoxia contra a heresia romana e barbárica, o
penúltimo e último Império se tornou, assim, modelo
do Estado cristão, tutor da verdade assim como era
reconhecida e definida pelo Papa e pelo concilio,
assegurando-se aquela transformação que lhe permitirá
na Idade Média perpetuar com sucesso seu ideal (v.
também PRINCIPADO, DOMINAÇÃO).
III. O IMPÉRIO MEDIEVAL, — A partir de 476 d.C, o
Império praticamente desapareceu no Ocidente,
continuando vivo no Oriente, com características
helênicas e bizantinas cada vez mais acentuadas e
exclusivistas. Sem dúvida, o Império se conservou na
sua unidade formal; daí terem sido tomadas
importantes decisões, pelo menos na Itália, primeiro,
na época de Zenão (expedição de Teodorico, o
Grande), e, depois, na de Justiniano (guerra grecogótica); mas o que restou, concretamente, da antiga
herança romana nestas experiências é claramente
mostrado pela "passagem para a barbárie" de muitas
camadas das populações românicas italianas, primeiro,
e, depois, pela resistência insignificante que essas
populações opuseram, no fatal 568, à invasão dos
longobardos.
De fato, dividido entre diversos regna romanogermânicos, todos visando apoderar-se da herança
territorial e estatal de Roma, o Império desapareceu no
Ocidente, onde nada estava tão longe da concepção
augustana como o espírito tribal e nacionalista das
diferentes nações germânicas. Estas, bem longe do
ideal imperial, estavam duramente empenhadas na
aquisição do mesmo conceito e da mesma imagem do
regnum. Se no Ocidente se conservava alguma coisa
do Império como idéia superior e supranacional, não se
deve buscar nas cortes barbáricas, mas exclusivamente
na Cúria pontifícia, voltada para a defesa da própria
autonomia territorial recém-conquistada (Ducatus
romanus) contra os bizantinos e longobardos e
visando sempre, a fazer ressurgir uma concepção
imperial que lhe assegurasse ao mesmo tempo, a
defesa temporal e a missão apostólica universal.
Este dado explica a retomada, aparentemente
incompreensível, da idéia e do conceito do Império
em plena idade germânica e por intermédio de um
soberano germânico: a absurda coroação
no Vaticano por um Papa como Leão III — que
acabava de "se reabilitar" das acusações infamantes
que lhe foram movidas pela aristocracia romana —, a
favor de um "imperador" como Carlos Magno,
inteiramente ligado à tradição germânica, expressão de
uma sociedade ainda hostil ao nome romano, titular de
um poder popular extremamente diferente das
finalidades e dos conteúdos do poder romano. Conta
seu biógrafo que ele, o novo Augusto do Ocidente, foi
o primeiro a se admirar da encenação que pretendia
fazer crer que aquele poder tipicamente barbárico
derivava do Papa e do povo romano. Apesar de
anacrônica, a coroação do Natal do ano 800 (ou 799)
teve conseqüências incalculáveis, porque ligou de
forma ousada, repentina e absurda o conceito da
imperialidade romana à esquemática dominação
barbárica e inseriu na visão ainda totalmente
pragmática e popular da monarquia franca a
concepção de um poder majestático e absoluto, de
origem divina (v. MONARQUIA).
É claro que, com aquele título, o papado fez de
Carlos Magno um soberano bem diferente daquele
que era antes, separou mais uma vez o Ocidente do
Oriente, criou as bases iniciais do retorno ao Império
no mundo romano-germânico. E, ao mesmo tempo,
apossou-se, de forma estável, do momento criativo do
"Augusto", ligando indefectivelmente a sua sorte à do
papado e do catolicismo romano.
Se Carlos Magno e seus sucessores, por muitíssimos
anos, foram apenas soberanos germânicos, revestidos
de um título majestático pouco compreensível, com o
decorrer do tempo as coisas mudaram e a concepção
que o próprio imperador formou de si mudou também
sensivelmente. Os primeiros indícios apareceram já no
breve Governo de Otão III de Saxônia, no fim do
século X. Foi, porém, com o renascimento romanístico
posterior que se descobriram todos os frutos dessa
tentativa de restauração imperial, com o progressivo
despontar da primazia da dignidade do imperador na
sociedade feudal ocidental e com a aceitação de um
seu poder geral — conquanto genérico — de guia e
Governo: o imperador crescia de poder no Império e
suas características de supremacia, unicidade e
necessidade voltavam a ser reafirmadas.
Quem teve mais clara idéia da supremacia, não
somente formal mas também substancial, do imperador
na Respublica christiana, quem reapre-sentou sua
figura como a de um dominus, tomando a atitude
concreta de um auctocrator da antiga romanidade, foi,
pelo menos sob certos aspectos, Frederico I da Suábia,
o Barba-Roxa: numa sociedade ocidental em contínua
expansão, que via nascer novos regna nacionais a
Oeste, florescer com exuberância realidades comunais
ao Sul (v.
IMPÉRIO
COMUNA), crescer e solidificar-se os poderes feudais
territoriais ao centro e Leste, o jovem Frederico agiu
com extrema decisão.
Sua maior tentativa consistiu, inicialmente, no
esforço de controlar consensualmente realidades
feudais e mundo comunal italiano num equilíbrio
precário, que se rompeu definitivamente em Legnano
(1176): mas, a partir daí, o César germânico se
esforçou por reapresentar o Império como centro de
coordenação subcontinental e continental, como uma
realidade emergente e guia dos diversos "mundos"
locais. Neste caminho prosseguiram, com resultados
variados, os outros Augustos da dinastia sueva, até que
o processo imperializante se bloqueou definitivamente
com a morte de Frederico Il da Suábia (1250) e o
mundo feudal germânico-itálico tomou progressiva
consciência da impossibilidade real e formal de pôr-se
como centro coordenador e diretivo das vigorosas e
crescentes realidades particulares em todo o Ocidente.
Porém, ainda, ficou firme e vivo o ideal do modelo
imperial; prova disso foram as sucessivas experiências
de Henrique VII e de Ludovico, o Bávaro, o último
dos quais, especialmente, reviveu as apaixonadas
reconstruções teóricas dos escritores imperializantes,
tendo à frente as elevadas páginas do De Monarchia
de Dante. Segundo Dante, que escreveu no início do
século XIV, eram competência essencial e
fundamental do imperador duas supremas funções: a
de legislador universal em matérias fundamentais e de
interesse comum e a de supremo e inapelável juiz nas
controvérsias
entre
os
Estados,
realidades
independentes,
soberanas,
semi-soberanas
e
autônomas.
Segundo esta visão, o nexo imperial cobria todo o
Ocidente (.. In Italia — escreverá João de Legnano —
nulla terra est acephala...), exceção feita das regiões
(Itália centro-meridional e insular) diretamente
sujeitas ao papado romano; sobre estas terras, o
Império exercia um altum dominium de natureza ética
e quase espiritual, reservando-se sobre elas a mera
soberania, enquanto os plenos poderes de Governo
eram exercidos pelas entidades locais (reinos,
comunas, dinastas feudais).
Advocatus Ecclesiae, para quem o Império tinha
como confins reais os da catolicidade que se estendia
com a expansão da evangelização (excetuadas as terras
sujeitas ao Imperium Constantinopolitanum, entre as
quais, no Ocidente, somente a cidade de Veneza), o
imperador era o defensor da fé, o tutor dos direitos
das igrejas e de todos os pobres, fracos e
marginalizados sociais (menores, viúvas, miserabiles
personae, em
625
geral), garante da paz e da unidade na cristandade
ocidental.
A Sancta romana respublica era, assim, guiada pelo
Papa in spiritualibus e pelo Imperador in
temporalibus: um sublime modelo formal de estrutura
política, destinado a desgastar-se e a se dissolver
quando o nível cultural e o elevado espírito religioso,
sobre os quais se sustentava, já não encontrassem
receptividade e apoio nos novos caminhos mundanos
e temporais do pensamento ocidental.
IV.
AS
EXPERIÊNCIAS
DA
IDADE
MODERNA. — Desaparecidos os últimos vestígios do
Império bizantino com a queda de Constantinopla
(1453), enfraquecido cada vez mais o Império
ocidental pela insignificante consistência dos césares
da casa de Luxemburgo e pelas novas idéias
humanísticas já dominantes, a idéia imperial, no
Ocidente, viveu a sua última temporada significativa
no encontro entre o título cesáreo e o complexo dos
domínios da casa de Áustria.
Por este fato muito marcante, não em si mas pelo
complexo de dominações que o seu titular (Carlos, V
como imperador, mas 1 como rei da Espanha)
controlava, o Império sacro e romano exerceu
concretamente e de novo, na primeira metade do
século XVI, seu papel de coordenador e guia da
Europa ocidental e de defensor da Igreja romana,
ameaçada pela nova heresia luterana. Estes foram os
grandes objetivos tradicionais numa sociedade já toda
mudada; objetivos cuja consecução, se mostrou a
força inquietante da casa de Áustria, indicou também
claramente o total esgotamento e a dissolução até
formal do ideal imperial.
A partir desse momento, o Império, que, como é
sabido, ficou nas mãos de um ramo dos Habsburgos,
apenas conseguiu exercer um papel dominante na
baixa Alemanha, na alta Itália e numa parte da bacia
balcânica; não obstante, o Império permaneceu ainda
teoricamente único e só, sempre supremo, perpétuo e
necessário (feita exceção a experiência da casa dos
Romanoff que, na Rússia, com o título imperial
(Caesar = Czar), se propôs continuar, se bem que
tardiamente e de forma abstrata, o bizantinismo
constantinopolitano). Na realidade foi somente um
Estado, e não o mais forte, em processo de divisão e
fragmentação interna, que os tratados de Vestfália
definiram expressa e taxativamente.
Dessa forma, o Império, ainda formalmente "sacro"
e "romano", mas, na realidade, como dizia seu novo
título oficial, "da nação alemã", foi se definindo cada
vez mais em termos lingüísticos, territoriais e
ambientais, que eram exatamente o contrário do
antigo modelo romano e
626
INDUSTRIALIZAÇÃO
medieval. O Império estava, então, reduzido à forma
pura, até que o seu mesmo título entrou em desuso,
assim como acontecera com o seu conteúdo.
Mais que servir para designar o único chefe (pelo
menos potencial) de uma parte da humanidade,
repleto de funções sagradas e religiosas, guia moral
antes que político, o título imperial foi usado para
designar poderes monárquicos setoriais muito fortes
ou um superpoder específico, chamado exatamente
Império. Nesse sentido, Napoleão quis ser (e o foi)
"imperador" dos franceses, Francisco Il se intitulou,
em 1806, "imperador" da Áustria e, no momento da
unidade alemã, o título cesáreo em sentido
plenamente nacional (se não nacionalista) foi usado
para definir o poder de guia do rei da Rússia.
Realidades totalmente novas, relacionadas só
formalmente com o passado, capazes de criar
impressões tais que levaram à construção ridícula de
Impérios fictícios, como o que a recente história
italiana conheceu e que podemos considerar a forma
patológica extrema da instituição imperial.
BIBLIOGRAFIA. — E. Bussi, Il diritto pubblico del
Sacro romano impero alla fine del VIII secolo. vols. III, Giuffrè, Milano 1957-1959; R. W. -A. J. CARLYLE.
Il pensiero político medievale (1903-1909); vols. I-IV,
Laterza, Bari 1956-1968; P. DE FRANCISCI, Arcana
Imperii. vols. I-III, Bulzoni, Roma 1970; A. DEMPF,
Sacrum Imperium. La filosofia della storia e dello
Stato nel medioevo e nella rinascenza política (1962).
Principato, Messina-Milano s.a.; G. DE VERGOTTINI,
Lezioni di storia del diritto italiano. Il diritto pubblico
italiano nei secolo XII-XV, I, Giuffrè, Milano 19603; F.
ERCOLE, Dal comune al principato. Vallecchi. Firenze
1928; G. FALCO, La santa romana repubblica. Profilo
storico del medioevo, Ricciardi, Milano-Napoli 1950;
H. FICHTENAU, L'impero carolingio (1949), Laterza,
Bari 1958; P. E. SCHRAMM, Kaiser, Rom und
Renovatio. Studien und Text zur Geschichte des
Römischen Erneurungsgedanke vom Ende des
Karolingischen Reiches bis zum Investiturstreit,
Leipzig-Berlin 1929, com nova edição da
Wissenschaftliche Buchgesellschaft. Darmstadt 1975.
[PAOLO COLLIVA]
Industrialização.
I. DEFINIÇÃO. — Por Industrialização se entende,
em sentido geral, o processo pelo qual uma sociedade
com atividades predominantemente primárias se
transforma em uma sociedade com
atividades
predominantemente
secundárias
e
terciárias. Neste sentido. Industrialização é sinônimo
de
crescimento
econômico,
desenvolvimento
econômico, modernização econômica.
Em sentido mais restrito e para os fins de análise
política, a Industrialização se refere somente ao
período crucial em que se efetuou o processo
correspondente, isto é à transição que vai do seu
início até a fase de autopropulsão, período que é
caracterizado por mudanças drásticas e decisivas na
configuração política e social do país em questão
(Revolução Industrial).
Rostow distingue no processo de desenvolvimento
econômico seis fases, correspondentes a: 1) sociedade
tradicional; 2) reunião das condições preliminares
para o impulso inicial; 3) impulso; 4) passagem à
maturidade; 5) período do grande consumo de massa;
6) período da busca da qualidade (Rostow, 1962,
1971). Por Industrialização em sentido estrito
entenderemos, portanto, o período correspondente ao
terceiro e ao quarto estádio. Também Organski, que
subdivide o desenvolvimento político em quatro
etapas (1) política de unificação primitiva; 2) política
de industrialização; 3) política de bem-estar nacional;
4) política de abundância), faz corresponder a política
da Industrialização aos dois estádios mencionados do
desenvolvimento econômico (Organski, 1965).
O conceito de Industrialização não deve ser
confundido com o conceito de modernização. Quer
seja considerada como momento econômico de um
maior e geral processo de modernização, quer seja
considerada como fenômeno heterogêneo e
independente, a Industrialização, sendo mensurável
em termos quantitativos e sendo suscetível de uma
periodização mais precisa, pode ser examinada de
modo totalmente autônomo.
A relação entre modernização e Industrialização é
definida mais claramente na sucessão cronológica,
identificando o processo de modernização em sentido
estrito com a segunda fase de Rostow (conjunto das
condições preliminares para o desenvolvimento) e,
em particular, com o processo de unificação nacional
(Organski fala expressamente, a respeito deste
período, de política de unificação primitiva). Se o
Estado nacional fica sendo ainda a forma mais
moderna de organização política, é óbvio que a
vontade de construir um Estado nacional marca o
início de um processo de modernização, e que a
consecução da unidade nacional, num dado contexto
constitucional autônomo, é o primeiro ato deste
Estado.
Que a unidade nacional — que é uma fase do
processo de modernização — seja o pressuposto para
a Industrialização, é historicamente comprovado. Isto
não quer dizer que o processo de
INDUSTRIALIZAÇÃO
modernização termine com o nascimento do Estado
nacional e com o começo da Industrialização.
Todavia, após a unidade nacional, os dois processos
prosseguem de modo assincrônico e podem também
entrar em conflito. O processo de modernização visa,
de fato, a integração nacional, isto é, a introdução, no
circuito "político, de todos os membros da
comunidade, com iguais direitos de participação. O
processo de Industrialização, pelo contrário, produz,
na sociedade nacional, um efeito inicialmente
desintegrante.
II. ORIGENS. — A Industrialização não é um
movimento espontâneo. Corresponde a uma vontade
consciente de desenvolvimento e é um ato
fundamentalmente agressivo para com o ambiente
circunstante, a começar pelo ambiente natural
nacional cuja transformação se exige. A
Industrialização tardia, na qual o Estado exerce um
papel primordial, costuma-se contrapor o caráter
espontâneo da primeira Revolução Industrial. Estudos
recentes negam o papel passivo do poder na
Industrialização britânica e, enquanto se faz remontar
a Pitt, o jovem, o início de uma política econômica
pública programada, sublinha-se que a Revolução
Industrial coincide com a organização de uma
economia de guerra para a campanha antinapoleônica,
que se concluiu vitoriosamente (Deane, 1971).
Diferentemente do que ocorre com a vontade de
modernização, a vontade de desenvolvimento não
parece uma vontade desinteressada e se traduz sempre
na imposição, por parte da elite agressiva, sem
escrúpulos e protagonista do processo de
Industrialização, do pagamento do preço do
desenvolvimento aos setores mais fracos da sociedade
nacional e, às vezes, também a setores externos à essa
sociedade. O processo de acumulação que torna
possível o desenvolvimento autopropulsivo é, em
geral,
pago
pelos
setores
estranhos
ao
desenvolvimento. Malthus propõe, até, a eliminação
física dos elementos marginais. Lei de bronze da
política da Industrialização é a negação do bem-estar.
A carga agressiva da vontade de desenvolvimento
explica que esta aflore como reação a uma humilhação
nacional, isto é, reação a um evento que simboliza,
em forma traumática, as circunstâncias negativas
internas e externas que bloquearam a expansão do
potencial físico e humano de uma sociedade
considerada atrasada. Paradoxalmente, essa reação é,
ao mesmo tempo, imperialista no exterior e
antiimperialista no interior. Imperialista no exterior,
porque visa conseguir também fora da comunidade
nacional os meios para o desenvolvimento (teoria do
"espaço vital", do "lugar ao sol", etc).
Antiimperialista no
627
interior, porque visa considerar qualquer ingerência
estrangeira um fator de conflito na consecução do
desenvolvimento
autopropulsivo
(xenofobia,
protecionismo, tendências autárquicas, expulsão dos
capitais estrangeiros, etc). O colonialismo e o
belicismo dos países em vias de desenvolvimento, de
um lado, e, do outro, a hostilidade destes às
intervenções estrangeiras, embora economicamente
complementares, são fenômenos incoerentes sob o
ponto de vista da objetividade econômica, mas
inseridos perfeitamente na lógica agressiva da vontade
de desenvolvimento. A agressividade, enquanto
característica dessa vontade desenvolvimentista,
explica como a guerra, forma organizada dessa
agressividade, pode-se tornar, e, de fato, foi assim em
muitas ocasiões, um fator acelerador do
desenvolvimento. A vontade de desenvolvimento pode
também ter início numa derrota militar como
elemento coletor de uma agressividade reprimida ou
frustrada.
Também sob este aspecto, a primeira Revolução
Industrial, a britânica, não se afasta do paradigma: foi
uma reação da sociedade nacional contra o isolamento
internacional (Guerra dos Sete Anos) e contra a
derrota militar (perda das colônias americanas). As
guerras napoleônicas vão acompanhar o arranque, e o
imperialismo o prive for maturity.
III. INDUSTRIALIZAÇÃO E SOCIEDADE: O DUALISMO. —
Falou-se que, no seu começo, a Industrialização produz
efeitos contrários à modernização: em vez de acelerar o
processo de integração na comunidade nacional, ela
produz um efeito desagregador na comunidade
nacional. A presença de um setor sócio-econômico
dinâmico torna obsoleto o setor tradicional e,
portanto, as estruturas sociais e políticas do país, que
são legitimadas exclusivamente pela sociedade
tradicional. O crescimento do setor industrial torna
mais agudo o contraste e mais graves os
desequilíbrios sociais e políticos daí decorrentes. As
medidas de autodefesa tomadas pelos setores aos quais
é imposto o ônus da acumulação agravam a
fragmentação social e alimentam o particularismo
corporativo.
Os conflitos gerados pela Industrialização podemse resumir no conceito do dualismo. A sociedade parece
dividida em dois setores: um setor moderno e dinâmico
que está em vias de Industrialização, e um setor
tradicional estático, institucionalmente em condições
de opor uma resistência duríssima às novas forças
sociais. O dualismo tende a aprofundar-se até ao ponto
de gerar uma situação de guerra civil latente, que pode
ser solucionada através da imposição de uma
disciplina autoritária e/ou de uma mobilização geral
da sociedade nacional, ou que pode explodir
628
INDUSTRIALIZAÇÃO
num conflito aberto (Guerra de Secessão Americana,
Guerra Civil Espanhola, etc), quando as duas
sociedades apresentam entre si um nível de
irredutibilidade muito elevado ou a falta de um
modelo unitário eficaz.
Do ponto de vista político constitucional, o
dualismo destrói os mecanismos de conciliação
preexistentes (inclusive os sistemas políticos
representativos), que, reconhecendo, no melhor dos
casos, igual peso ao setor dinâmico e ao setor estático
da sociedade, paralisam o primeiro. Certos fenômenos
de retrocesso político, que acontecem no momento
dramático do dualismo e que aparecem em claro
conflito com a simplicidade abstrata do processo de
modernização, são tais somente na aparência e, de
qualquer forma, não estão em conflito com a lógica do
processo de Industrialização. Trata-se simplesmente de
uma superação drástica do dualismo.
O dualismo, exemplo típico da situação de
decomposição social que Jules Monnerot chama de
situation de détresse, tem como conseqüência
imediata uma "procura de poder" (Monnerot, 1969).
IV. INDUSTRIALIZAÇÃO E POLÍTICA: O PROBLEMA DA
DEMOCRACIA. — A relação entre Industrialização e
sistema de Governo deve ser analisada, considerando
a capacidade deste último de fornecer o suporte de
poder necessário para parar o processo de
desintegração nacional.
As fórmulas políticas que não se revelam capazes de
fornecer um suporte de poder são inexoravelmente
extrapoladas do processo de Industrialização. E entre
as primeiras a serem extrapoladas estão as ideologias
que nascem no período da Industrialização e que se
identificam com os interesses das classes nela
empenhadas. Referimo-nos, quer às ideologias
protetoras da classe operária (socialismo, comunismo,
anarquismo e sindicalismo anárquico, etc), quer às
ideologias típicas das classes técnicas e empresariais
(liberalismo,
radicalismo,
social-democracia,
utilitarismo, sansimonismo, etc.) e das vanguardas
culturais (futurismo). Ambas são funções de interesse
seccional e facilitam a formação de sistemas que, em
vez de superar o dualismo, o agravam. Essas
ideologias podem dar origem a sistemas de Governos
estáveis e capazes de gerir o processo de
Industrialização somente mudando de natureza (como
aconteceu com o comunismo soviético), ou
promovendo programas externos imperialistas que
unificam a sociedade nacional em cada um dos seus
setores, numa mística de agressão externa (liberalismo
vitoriano, a Jacksonian Democracy nos Estados
Unidos, radicalismo francês, democracia rural
israelense).
Têm, pelo contrário, possibilidade de sucesso no
período da Industrialização os sistemas capazes de
cicatrizar autoritariamente o dualismo, unindo as
partes da sociedade nacional.
Em si mesma, a Industrialização não se apresenta
como um fator de democratização. Ao contrário, ela
postula, pelo menos transitoriamente, uma
organização autoritária da sociedade. Não faz exceção
nem a primeira Revolução Industrial da história, a
britânica.
O quadro político oferecido pela Inglaterra durante
os vinte anos das guerras napoleônicas é, de fato,
desolador. O habeas-corpus é suspenso, os salários
reais vão se reduzindo, os rebeldes são recrutados à
força pela marinha. Qualquer tentativa associativa no
âmbito operário é reprimida pelos Combination Acts,
como prática restritiva do comércio. A repressão se
prolonga por um longo período de tempo também após
a conclusão das guerras napoleônicas. Os delitos
contra a propriedade, incluindo também os delitos
"sindicais", são punidos, por via administrativa, com a
pena de deportação. Os líderes das agitações operárias
se arriscam à pena de morte. O Reform Bill de 1832,
com que se inicia a abertura democrática do sistema
político inglês, representa simplesmente a cooptação,
por parte das classes dirigentes tradicionais, da classe
empresarial emergente (de Schweinitz Jr., 1964).
O principal obstáculo à democratização no período
da Industrialização é a impossibilidade, em que esta se
encontra, de oferecer uma melhoria do padrão de vida
às massas populares. O problema dos sistemas
políticos que promovem a Industrialização não é o de
melhorar o padrão de vida das massas populares, mas
o de apresentar uma justificativa válida para a falta
dessa melhoria e até do agravamento do padrão de
vida da maioria, considerando que também os
melhoramentos possíveis são moralmente anulados
pelo efeito negativo da visível opulência da elite
industrializante. Neste sentido, a guerra ou qualquer
organização militar do país contra uma ameça externa
mesmo fictícia se apresenta como um álibi místico de
uma inevitável austeridade.
Existem, contudo, sistemas compatíveis com a
intensificação do processo de democratização: é o
caso que denominaremos de "Industrialização
mimética" ou de "democracia dependente" ou
"satélite".
Esse
caso
acontece
quando
a
Industrialização é integralmente exportada de um país
para outro. A agressividade é, dessa forma,
neutralizada, porque a mesma vontade de
desenvolvimento é substituída por uma vontade
externa. Historicamente, temos o exemplo dos Estados
Unidos que devem a arrancada à expansão de
Industrialização britânica. Tal foi também, em
INDUSTRIALIZAÇÃO
sua inteira trajetória, a direção do processo de
Industrialização no Canadá, na Austrália, em vários
países menores da Europa (Bélgica, Holanda, Suécia,
Suíça). Pode ser chamada Industrialização mimética
também a da Itália no período anterior a 1915
(lembre-se o volume de capitais alemães, suíços,
franceses e ingleses nas suas primeiras iniciativas
industriais e a válvula de escape da emigração italiana)
e no período seguinte a 1945. Em tais modelos, o
dualismo e atenuado, quer pelo aumento dos recursos
disponíveis que permite conter os sacrifícios, quer pela
relativa fraqueza da elite industrializante, em parte
estrangeira. Também a luta de classe é atenuada pela
possibilidade de realizar contemporaneamente uma
política acelerada de Industrialização e uma política
acelerada de transformação social e de difusão do
bem-estar.
V. TIPOLOGIA POLÍTICA DA INDUSTRIALIZAÇÃO. — A
classificação mais conhecida dos regimes promotores
do desenvolvimento é fornecida por David Apter: 1)
mobilization system; 2) reconciliation system; 3)
modernizing oligarchy (Apter, 1970).
A classificação de Apter podem ser feitas as
seguintes críticas: o terceiro tipo se refere aos países
que estão ainda na pré-história da Industrialização
(alguns, até, num estádio "pré-rostowiano"); o
segundo tipo não oferece modelos duráveis válidos se
não forem ligados à Industrialização mimética (Apter
tomava como exemplo a Nigéria ainda não atingida
pela guerra civil). Somente o primeiro tipo é
historicamente aceitável: de fato, suas características
(1) autoridade hierárquica; 2) fidelidade total; 5)
flexibilidade tática; 4) unitarismo; 5) difusão
ideológica) lhe permitem ajustar-se às exigências
imediatas da sociedade dualista.
O politólogo brasileiro Jaguaribe oferece os
seguintes modelos: 1) o "nacional-capitalismo",
baseado na predominância da burguesia empresarial,
apoiado em um partido do desenvolvimento que, sob
uma liderança de tipo neobismarckiano, se torna o
partido majoritário e, como tal, exerce o poder com o
apoio das massas em oposição às forças reacionárias e
radical-revolucionárias e orienta a comunidade para o
desenvolvimento nacional, mediante uma apropriada
programação, assegurando aos empresários a direção
das empresas; 2) o "capitalismo de Estado", nos casos
em que predomina a classe média tecnocrática, que
assume o poder mediante um golpe de Estado e
constitui um partido revolucionário para, através
deste, fazer aliança com as massas rurais e proletárias e,
com o apoio destas, promover o desenvolvimento
nacional mediante uma progra-
629
mação adequada, assegurando à burocracia
tecnocrática a direção das empresas; 3) o "socialismo
desenvolvimentista", forma radical de capitalismo de
Estado, caracterizado pela socialização dos meios de
produção e pela abolição da economia de mercado,
que promove o desenvolvimento através da
planificação, assegurando à burocracia revolucionária
a direção das empresas.
A classificação de Jaguaribe tem um caráter, ao
mesmo tempo, preceptivo e determinista. De fato ele
sustenta que os países com baixo nível de renda
podem se industrializar somente aplicando o segundo
ou o terceiro modelo, enquanto que o primeiro
modelo é adequado somente para os países em vias de
desenvolvimento, com uma renda superior a 250
dólares (Jaguaribe, 1969).
Analisando empiricamente os esquemas destes e de
outros estudiosos (Organski e Graciarena), deduz-se
que no período da Industrialização emergem os
seguintes modelos políticos:
1) Modelos pluralistas:
a) democracias imperialistas (Inglaterra, Estados
Unidos, França, Bélgica, Holanda, atualmente Índia,
Israel); b) democracias dependentes (Canadá,
Austrália, países escandinavos. Suíça, atualmente
vários países sul-americanos).
2) Modelos de hegemonia militar:
a) com pluralismo imperfeito (Turquia desde 1960;
Espanha, 1945-1958; Portugal de Salazar-Caetano;
Hungria de Horthy; Grécia, 1967-1974); b)
semicarismáticos (Egito de Nasser, Peru, Argélia
atual).
3) Modelos nacional-populistas:
a) bipolares ou neotradicionais ou sincráticos (Itália
fascista, Argentina peronista, Brasil 1935-1938,
Espanha 1939-1945, Iraque, Síria, Argélia de Ben
Bella, Tunísia, México pós-revolucionário); b)
monopolares ou revolucionários ou totalitários (URSS
de Stalin, China, Cuba atual).
O mesmo país pode adotar durante a
Industrialização diferentes modelos. Assim, a Itália
antes de 1914 pode ser qualificada como uma
democracia dependente (com tentativas de sua
transformação, com Crispi e com Giolitti, em
democracia imperialista), de 1925 a 1943 como um
sistema nacional-populista, de 1943 até o término da
Industrialização novamente como uma democracia
dependente. A passagem da democracia dependente
para o modelo de hegemonia militar ou para o modelo
nacional populista é muito freqüente, devido à
incompatibilidade crescente entre Industrialização
tardia e Industrialização mimética. Outro fenômeno
típico de nossos dias e a dupla natureza imperialista e
dependente de alguns países em vias de
Industrialização de
630
INDUSTRIALIZAÇÃO
modelo pluralista (Índia, Israel). No passado, também
a Bélgica e a Holanda tiveram o duplo caráter de
satélites imperialistas. As formas típicas são, porém,
constituídas pelos modelos de hegemonia militar ou
nacional-populista, que representam já a norma nos
países em via de Industrialização.
VI. CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS POLÍTICOS DA
INDUSTRIALIZAÇÃO. — Também nos regimes pluralistas
democráticos é freqüente recorrer a um chefe militar
com capacidade carismática interclassista nos
momentos cruciais da Industrialização: Wellington na
Inglaterra, MacMahon na França (também Luís
Napoleão pode ser considerado portador de um
carisma militar), Jackson e, depois, Grant nos Estados
Unidos respondem ao appel au soldat. O líder é
considerado como o taumaturgo capaz de cicatrizar as
lacerações de uma sociedade em crise. A função desse
condutor nas sociedades modernas é assumida
complexamente pelas forças armadas. O recurso às
forças armadas, como "Estado de reserva", é a forma
mais simples para providenciar aquele suplemento de
poder exigido pela Industrialização. Com a sua
organização unitária e capilar, a estrutura militar se
sobrepõe à sociedade desagregada como uma
gigantesca engessadura. A intervenção militar se
traduz, substancialmente, na imposição de uma trégua
social e política que, na medida em que permite a
continuação do crescimento econômico e favorece a
marcha da história, tem possibilidade de uma duração
indefinida.
O sistema militar se apresenta, em geral, com
características de provisoriedade e pode não substituir
completamente o sistema representativo preexistente
para o qual reserva privilégios mais ou menos amplos,
promovendo igualmente coalizões de poder (Turquia,
Brasil, Argentina e Espanha franquista). Também,
quando o sistema representativo é totalmente suspenso
(sistemas carismáticos), o regime militar não cria uma
organização radicalmente nova. Eminentemente
protecionista, o regime militar é o guarda da
Industrialização. A estabilidade desta depende da
eficácia da ação tutelar daquela.
Os sistemas nacional-populistas são reduzíveis a
uma única matriz, o fascismo italiano do qual ainda
existem variações não declaradas (v. FASCISMO).
Podemos admitir a distinção de Graciarena entre
regimes nacional-populistas neotradicionais (ou
sincráticos, usando a terminologia de Organski, ou
bipolares, uma terminologia mais exata), que não
introduzem mudanças nas relações de propriedade e
realizam uma política de compromisso com as forças
tradicionais, e os
regimes nacional-populistas revolucionários, que
exigem alterações radicais na ordem jurídica do mundo
econômico (reforma agrária, socialização dos meios de
produção, supressão da economia de mercado, etc).
Neste caso, o modelo fascista pode ser reduzido aos
regimes nacional-populistas bipolares e considerar o
stalinismo como protótipo dos modelos populistas
revolucionários monopolares ou totalitários. Existem,
todavia, entre os dois sistemas semelhanças relevantes,
tanto que não podemos excluir que a lógica do sistema
possa produzir uma transformação, em sentido
revolucionário, do regime neotradicional e, em
hipóteses mais freqüentes, uma transformação em
sentido contrário ao regime revolucionário, em
correspondência a uma fase avançada do processo de
Industrialização (Brzenzinski fala de "social-fascismo"
a propósito da Hungria e da Romênia atuais; casos
típicos de transformação de regimes nacional-populistas
revolucionários em regimes nacional-populistas
neotradicionais são os do México e da Bolívia).
A distinção entre sistemas militares e sistemas
nacional-populistas é dada pela tendência dos
primeiros a resolver o dualismo com métodos
empíricos, isto é, com uma desmobilização do aparelho
político e ideológico, com um processo de
despolitização e com a acentuação dos componentes
econômicos do sistema. A política é subordinada à
economia e o desenvolvimento econômico goza de
uma prioridade absoluta, porque a problemática
política e social é considerada como efeito do estado
de atraso. A sua solução, portanto, está na
Industrialização, efetuada na confiança de que tal
problemática tenha perdido seu conteúdo dramático.
Os sistemas nacional-populistas propõem, pelo
contrário, uma ideologia global, ou melhor, um
programa nacional global encarnado numa liderança
carismática e capaz de atrair um consenso interclassista
e de realizar uma mobilização de massa, um processo
geral de politicização que atinja, sem distinção, todas
as classes e idades. A mobilização se realiza ao redor
de reivindicações de caráter nacional (grandeza do
país) à custa, talvez, de reduzir o ritmo da
Industrialização ou de deformá-la (política de
armamento). A própria pretensão desses regimes de
permanecer no poder e, portanto, a necessidade em que
eles se encontram de prolongar artificialmente a
tensão torna-os mais aventureiros e, por conseqüência,
mais vulneráveis, especialmente no exterior, que os
sistemas militares, paradoxalmente muito mais
prudentes e empíricos, a menos que a mobilização de
massa não seja sustentada por um aparelho totalitário
particularmente eficiente (stalinismo).
INSURREIÇÃO
Em substância, a realização da unidade nacional, não
no plano da disciplina repressiva (sistema militar),
mas no plano da mobilização emotiva e consensual,
se, de um lado, torna tais sistemas capazes de oferecer
aquilo que é chamado de um new deal of emotions
(Gerschenkron, 1965), de outro lado, os obriga a
manter permanentemente o país num estado de
ebulição próximo à explosão.
A fórmula nacional-populista contém, todavia,
elementos de sugestão tais, que é freqüentemente
imitada até pelos sistemas militares (especialmente os
semicarismáticos).
A transitoriedade é a característica comum a estes
sistemas não pluralistas. Passado o impulso inicial,
ultrapassado o desenvolvimento auto-sustentado,
subordinado ou eliminado o setor tradicional, a
Industrialização não exige mais a hibernação ou o
agravamento do aparelho político. O bem-estar de
massa não é um obstáculo, mas um incentivo à
Industrialização. E possível uma organização do
consenso baseada na difusão do bem-estar e não na
disciplina ou na neurose coletiva. A existência da
comunidade nacional não é mais posta em discussão.
No âmbito da sociedade industrial, aflora a dialética
dos grupos de pressão e dos grupos de interesse. O
pluralismo emerge no próprio interior do bloco
político de poder de origem nacional-populista (o
sistema colegial da URSS) ou militar (Espanha
franquista, Portugal, Argentina). Isto não evita,porém, que a descompressão política, como provam
diversos casos, se apresente muito mais longa e
complexa. De qualquer forma, o processo de
Industrialização, em suas fases avançadas, segue a
mesma direção do processo de modernização e de
democratização e não mais uma direção divergente.
VII. CONCLUSÃO. — Na atual conjuntura
internacional,
a
Industrialização
parece
só
excepcionalmente compatível com os sistemas
pluralistas e é associada quase sempre à suspensão do
sistema representativo, a graves restrições da
liberdade individual e a uma organização repressiva
ou instrumental das classes subalternas, em benefício
de uma onipotente elite de cúpula.
O caráter tardio dos processos de Industrialização
em curso tende a agravar as implicações políticas que
descrevemos, aumentando ainda a agressividade
latente nas sociedades atrasadas, isto é, nas chamadas
nações proletárias. A única tendência contrária
poderia ser representada por processos de integração
internacional, baseados na Industrialização mimética,
isto é, na assunção sistemática, por parte das potências
industrializadas, dos ônus do desenvolvimento dos
países não-industrializados.
631
BIBLIOGRAFIA. — D. APTER, System, process and
poluía of economic development, in Industrializatiom
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rivoluzione. Le ideologie politiche del paesi in via di
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MONNEROT, Sociologie de la révolution, Fayard, Paris
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político (1965), Laterza, Bari 1970; W. W. ROSTOW,
Gli stadi dello sviluppo economico (1953), Einaudi,
Torino 1960; Id., Politics and the stages of growth,
Cambridge University Press. Cambridge (Mass.) 1971.
[LUDOVICO INCISA]
Insurreição.
É o movimento generalizado de um núcleo de
indivíduos contra o poder dominante, normalmente
identificado com o Governo; coincide, em geral, com
qualquer rebelião de massa e é caracterizado pelo uso
da violência, mesmo que esta não se manifeste
necessariamente em forma física ou material, mas
somente moral. A Insurreição é uma espécie de
preâmbulo para a revolução, e o seu traço distintivo é,
sobretudo, sua limitada duração no tempo; de fato, ou
dá lugar à revolução e, nesse sentido, quer a
preparação tática quer os objetivos estratégicos fazem
parte de um mais amplo discurso que é a revolução,
ou tem fim em si mesma e, portanto, tende mais a
coincidir com manifestações de massa que implicam,
porém, uma menor participação de pessoas, como a
sedição ou o motim.
Sendo que o termo Insurreição deriva do latim
insurgere (levantar-se contra), no passado teve o mais
das vezes o sentido limitativo do movimento
"legítimo", guiado pelos fautores do direito e da
legitimidade, contra o usurpador ou os usurpadores,
que se apossaram do poder pela força e pela fraude.
Com a Revolução Francesa assumiu o sentido
moderno de movimento contra a opressão do povo e
em prol da libertação geral, conduzida de baixo para
cima, visando derrubar o Governo existente
(Insurreição com fins políticos) ou a classe dirigente
na sua totalidade (Insurreição com fins sociais).
632
INTEGRAÇÃO
Na Insurreição, o elemento tático é determinante.
De fato, nunca pode ser de caráter defensivo, pois,
dessa forma, ela estaria fadada ao fracasso; mas deve
ser de caráter ofensivo, isto é, embora promovida e
iniciada por grupos voluntários e espontâneos que a
provocaram, ela deve ser logo superada pela concreta
organização da revolução, que constitui o ponto alto e,
portanto, o fim da Insurreição. Existiu, durante a
Revolução Francesa e com base indireta no
pensamento de Locke, a tentativa de legalizar o
direito à Insurreição, isto é, de tornar legal o que
historicamente foi sempre resolvido através da
manifestação da força; de fato, no artigo 35 da
Declaração dos direitos do homem e do cidadão do
Ato Constitucional de 24 de junho de 1793, afirma-se
que, quando o Governo viola os "direitos do povo", a
Insurreição se torna, quer para o povo quer para os
indivíduos, "o mais sagrado dos direitos e o mais
indispensável dos deveres". Evidentemente, este é um
caso anômalo de legislação, típico de um Governo
revolucionário, mas é significativo, porque se repetiu
algumas outras vezes, no mundo contemporâneo, em
situações de emergência ou de alta tensão ideal.
[GIANMARIOBRAVO]
Integração.
I. INTEGRAÇÃO E UNIFICAÇÃO. — Integração, lato
sensu, significa a superação das divisões e rupturas e a
união orgânica entre os membros de uma organização.
De regra, esta organização é, atualmente, o Estadonação; trata-se, então, de dissensões entre os vários
grupos que fazem parte do Estado. Se a organização é
constituída de uma federação, as fraturas decorrem do
grau de heterogeneidade dos Estados-membros. A
Integração pode ser vista como um processo ou como
uma condição. Se for vista como uma condição, falarse-á de organizações mais ou menos integradas. O
nível de Integração dependerá dos setores específicos
que se leva em consideração. Assim, poder-se-á ter uma
alta Integração jurídica e econômica juntamente com
uma baixa Integração política; este parece ser um caso
muito admissível. Normalmente a Integração
econômica e a jurídica são duas condições que
favorecem a Integração política; quando, porém, o
poder político é o motor da Integração, um de seus
primeiros atos será a tentativa de promover a
Integração jurídica e econômica.
Não é possível, porém, estabelecer, a priori, em
qual dos setores do sistema é preciso chegar
a uma Integração mais estreita ou mais rápida a fim de
atingir uma Integração mais elevada em todos os
setores. Esta tentativa tem que se basear numa análise
da estrutura interna da ou das sociedades envolvidas no
processo de Integração. A este respeito, há entre os
autores duas correntes de pensamento. Uma, chamada
funcionalista, sustenta que a extensão gradual das
áreas de colaboração entre as várias organizações
estatais e o aumento dos benefícios garantidos aos
membros destas organizações acabarão por produzir
interesses constituídos para a manutenção das áreas
integradas até atingir uma Integração global de todas
as áreas. Outra corrente afirma que, sendo a maioria
dos problemas a serem enfrentados para chegar a uma
organização integrada, ou de natureza e caráter
políticos, ou incidentes de maneira relevante no
comportamento e na atividade de todos os membros
das várias organizações, é o poder político que deve
assumir a direção do processo de Integração. Esta
segunda corrente sublinha, quer a validade empírica da
concepção segundo a qual o poder político é o motor
dos processos de Integração, os quais sem a sua
intervenção ativa perdem força e fracassam, quer o
fato de que a maior receptividade do poder político ao
questionamento dos membros das várias organizações
torna o processo de Integração um instrumento, ao
mesmo tempo mais democrático e mais sensível.
Enquanto a primeira corrente parece cair, dadas certas
condições, numa espécie de inevitabilidade da
Integração, a segunda parece ser mais capaz de dar
conta das dificuldades e das inversões de tendências
registradas pelos numerosos processos de Integração
nacional e supranacional empreendidas em nosso
século.
Pelo exposto, parece claro que a Integração política
não é facilmente diferenciável dos processos de
unificação nacional e supranacional, mas o termo
Integração indica geralmente um processo mais amplo
e mais complexo do que a simples unificação. Um
Estado ou uma organização podem ser unitários e ter,
apesar disso, um baixo nível de Integração. O nível de
Integração pode ser mensurado, tendo como
referência três parâmetros: uma organização é tanto
mais integrada quanto mais consegue controlar os
instrumentos coercitivos e impor a observância das
normas e dos procedimentos dela emanados; é tanto
mais integrada quanto mais controla as decisões
relativas à distribuição dos recursos; e, por último, é
tanto mais integrada quanto mais constitui o centro de
referência e de identificação dominante para os
membros da própria organização. É também
importante o alcance da Integração, que depende,
antes de tudo, do número
INTEGRAÇÃO
de áreas em que os vários componentes da organização
interagem habitualmente e da intensidade das
interações.
Resta mencionar a avaliação das probabilidades de
sucesso de uma tentativa de Integração baseada na
natureza das unidades que a promovem. A
homogeneidade cultural dessas unidades parece ser
um elemento decisivo para que tenha início uma
tentativa de Integração, mas não é um elemento
suficiente para fazer progredir a Integração a níveis
mais elevados. Uma vez iniciado o processo, são a
quantidade e a qualidade dos benefícios atingíveis
pela organização que vão impulsionar os vários
membros a fundir suas energias para conseguir níveis
mais altos de Integração. E, ainda, nem os benefícios
econômicos ou simbólicos bastam para que uma
organização fique integrada em todas as suas áreas, de
maneira uniforme e a níveis elevados, se falta o
impulso de uma elite (é possível que duas ou três
elites potenciais atuem em centros propulsores, mas é
mais provável que estas entrem em competição,
bloqueando, por conseqüência, o processo), e se falta o
incentivo de objetivos dinâmicos (isto é, não
puramente defensivos ou negativos). Tendo em vista
estas observações e frisando que o processo de
Integração tem uma relevante dimensão histórica, é
possível esboçar uma tipologia da Integração:
Integração territorial, Integração nacional e Integração
social.
II. INTEGRAÇÃO "TERRITORIAL". — A Integração
"territorial" representa o processo pelo qual o controle
do poder de um grupo consegue se estender sobre a
totalidade de um território antes fracionado. Esse
território, a partir deste momento, é considerado como
dependente do domínio do poder unificador, com base
nas normas e costumes do direito internacional. Este
tipo de Integração, que implica a transferência da
obediência das autoridades regionais e grupais para a
autoridade central, é comumente definido pela ciência
política contemporânea com a expressão construção
do Estado e constitui, segundo muitos autores, o
primeiro passo no caminho para a modernização
política (v. MODERNIZAÇÃO). A Integração "territorial"
pode acontecer segundo modalidades diferentes, de
acordo com as relações centro-periferia, e o seu
objetivo não é somente a criação de uma forte
autoridade central, mas a constituição de um mercado
único, a instauração de um código jurídico uniforme,
de um sistema de transportes unificado e de um
sistema tributário extensivo a todos os grupos.
A primeira vista, podemos distinguir três modelos
diferentes de Integração "territorial": a conquista, a
fusão e irradiação. Os três modelos
633
implicam um conjunto de relações bem definidas entre
centro e periferia. Na conquista estamos diante de um
centro forte, que toma a iniciativa do processo de
Integração "territorial" das várias periferias,
geralmente pelo uso da força. Se o grupo, que
conquista o território e submete Os demais grupos, é
de língua e composição étnica diferente, o processo de
Integração "territorial" deixará conseqüências difíceis.
Vão-se verificar, de fato, desobediências e oposições
constantes contra as diretrizes do grupo no poder,
conflitos prolongados e tentativas de secessão. Isto
acontecerá especialmente quando o grupo no poder
tenta abolir a autonomia local através da supressão do
ensino da língua dos grupos periféricos (exemplos
típicos são as lutas da Catalunha e dos países bascos
contra Castela).
Na fusão temos um lento processo de aproximação
progressiva entre os vários grupos geograficamente
contíguos; esse processo é, normalmente, facilitado
pela unidade lingüística, mas pode ser também o
resultado da percepção de interesses comuns. O
primeiro caso é representado pela unificação italiana
que se efetuou, pelo menos até 1861, após uma
progressiva aproximação entre os vários Estados, mas
que culminou na conquista do reino das duas Sicílias
e de Roma. O segundo caso é representado pela
experiência
da
Confederação
Helvética,
especialmente após a guerra de 1847-1848 entre os
cantões protestantes e os cantões católicos.
A irradiação, o terceiro modelo de Integração
"territorial", exige, em primeiro lugar, a presença de
um símbolo central aceito por todos os grupos como
ponto de referência; em segundo lugar, uma alta
homogeneidade étnica; e, em terceiro lugar, a
necessidade de um longo período de tempo, de modo
que as capacidades do sistema se expandam seguindo o
mesmo ritmo do índice de mobilização e das
expectativas dos grupos. O sistema, dessa forma,
pode-se abrir a todos os grupos, assimilando-os com
iguais níveis de oportunidades e gratificações. Este
modelo caracterizou a Integração territorial da GrãBretanha e do Japão.
III. INTEGRAÇÃO "NACIONAL". — O segundo tipo de
Integração diz respeito ao processo de criação de uma
identidade comum a todos os grupos étnicos,
lingüísticos, religiosos e regionais, a fim de que se
sintam parte da mesma comunidade política. Este
processo é definido pela ciência política
contemporânea como construção da nação. Ele era já
bem conhecido no século XIX; de fato, neste sentido
é interpretada a famosa frase de Massimo D'Azeglio:
"Feita a Itália, precisa fazer os italianos". Enquanto o
processo de Integração "territorial" consiste
634
INTEGRAÇÃO
essencialmente na imposição de obediência, o processo
de Integração "nacional" consiste na aceitação, por
parte da população, das ordens provenientes das
autoridades centrais, por serem consideradas
legítimas.
O processo de Integração "nacional" é fortemente
influenciado pelo modo como se desenvolveu o
processo de Integração "territorial". Se, de fato, a
Integração "territorial" conduziu a uma posição de
superioridade um determinado grupo étnico ou social
e este continua mantendo todas as posições de poder, é
difícil que outros grupos aceitem suas ordens sem se
oporem. Além disso, a situação se complica
ulteriormente, por ser talvez necessário enfrentar um
grupo numericamente majoritário e no poder, ou um
grupo numericamente minoritário e no poder, ou mais
grupos numericamente iguais e unidos no poder, ou,
enfim, um completo fracionamento da sociedade. O
grupo numericamente dominante assume, cedo ou
tarde, o poder central e se encontra na encruzilhada
entre a opressão dos grupos minoritários, sua
assimilação ou aceitação da unidade na diversidade.
Esta última estratégia faliu recentemente na Nigéria
(entre Hausa-Fulani, Ibo e Yoruba) e na Malásia
(entre malásios, chineses e indianos). A opressão de
um grupo étnico numericamente dominante é aplicada
com sucesso pelos Uhutu sobre os Watussi na Rwanda.
A opressão de um grupo numericamente minoritário é
encontrada na África do Sul e na Rodésia do Sul, que
representam casos evidentes de não-Integração
"nacional". Somente a Índia, até agora, graças também
à secessão dos muçulmanos do Paquistão, conseguiu
manter a unidade política e a diversidade cultural.
Importância relevante para o processo de Integração
"nacional" assume a criação de um consenso mínimo
sobre alguns valores fundamentais e especialmente
sobre a aceitação de alguns procedimentos para a
solução dos conflitos. Sendo que a modernização
implica um processo de mobilização em larga escala,
do qual decorre uma demanda crescente de bens e
serviços — casas, escolas, hospitais — e de
oportunidades, dirigida pelos membros da comunidade
política às autoridades, é provável que aumentem os
conflitos entre os vários grupos da comunidade por
causa da repartição dos bens, serviços e
oportunidades e por causa da imposição dos vários
ônus necessários para o funcionamento do sistema.
É evidente que o processo de composição e solução
dos conflitos é notavelmente facilitado, no caso em
que a mobilização das massas é estritamente
controlada pela elite dos vários grupos. Mas isto, de
per si, não é suficiente; é preciso também que as elites
entrem em acordo sobre
alguns procedimentos para a solução dos conflitos.
Esse acordo reduz o tempo a ser dedicado à solução
de cada conflito e reforça a coesão entre as elites. A
presença de estruturas partidárias capazes de mediar
os conflitos e de unir os interesses, o recrutamento
dos funcionários públicos e dos magistrados
proporcional entre os vários grupos e uma economia
em expansão são elementos que permitem uma
solução positiva do processo de Integração
"nacional", no que concerne à difusão e à aceitação
dos valores comuns. Às vezes, porém, é precisamente
o excesso de representação de alguns grupos na
burocracia nacional, o excesso de poder de alguns
partidos políticos (ou a ação destes para o domínio de
alguns grupos) e a corrupção da magistratura que
constituem o obstáculo maior. Dissemos que quanto
mais se mobilizam e quanto menos se assimilam as
massas no processo político nacional, tanto mais
importante se tornará o papel das elites de cada grupo.
Estas podem agir como filtro para novas mobilizações
e crescentes demandas, mas freqüentemente é
justamente a composição entre elas pelo poder que as
impele a mobilizarem as massas como instrumento de
luta política. Táticas deste tipo dão origem a
fenômenos chamados de integração negativa (como
no caso da social-democracia da Alemanha
guilherminiana) ou de acentuação das fraturas sociais
(como no conflito entre Índia e Paquistão, no Ceilão e
em Chipre).
IV. INTEGRAÇÃO "SOCIAL". — O tipo de Integração
que definimos como "social" refere-se à superação da
distância entre elites e massas, entre governantes e
governados. Esta distância social não assume
importância política até que as massas aceitem como
justo o Governo das elites. Mas esta percepção tende a
mudar quando acontece a passagem de uma forma de
poder para outra e, tipicamente, quando se passa de
um poder tradicional, fundado numa obediência de
que não se conhece mais nem a origem, para novas
formas de poder, geralmente baseadas na legalidade e
na racionalidade, isto é, na conformidade das normas e
das ordens com procedimentos concordados e
consolidados. O problema, todavia, de tornar o país
legal cada vez mais representativo do país real não
acaba neste ponto. E já que a distância entre elites e
massas não depende somente de uma desigualdade de
acesso ao poder mas também na disparidade na
instrução e no nível de conhecimentos e da dificuldade
de comunicações, sua superação exigirá intervenções
complexas e múltiplas.
O problema da comunicação entre elites e massas,
como também a comunicação das
INTEGRALISMO
exigências das massas, é importante, mas mais
importante ainda é a atitude das elites em relação às
massas. Se as elites consideram as massas somente
como meio para aumentar o poder do Estado e como
matéria-prima a moldar, é provável que a distância se
agrave pela ação da modernização até que uma contraelite se coloque na liderança das massas. Se, pelo
contrário, as elites conseguem manter sempre um
justo equilíbrio entre a necessidade de dar uma
orientação à sociedade e a abertura aos anseios das
massas e aos líderes que as representam, a distância
tenderá a se reduzir.
A superação da diferença entre elites e massas é,
então, fortemente condicionada pela qualidade da
liderança, mas a disponibilidade de recursos
econômicos e simbólicos representa uma vantagem
não desprezível para a consecução da Integração
"social". Além disso, com o progredir da Integração,
aumenta a disponibilidade dos indivíduos a trabalhar
juntos pela consecução dos objetivos comuns. Esta
predisposição e capacidade de fazer funcionar
organizações
complexas
constituem
duas
características essenciais da modernidade. Note-se
que, em geral, a recusa da colaboração implica uma
tendência perigosa à desintegração das organizações.
Sobre este tipo de comportamento integrante influem,
quer as características culturais de uma população,
quer a capacidade das elites de liderar e de propor
objetivos dinâmicos às atividades da sociedade.
V. AUTONOMIA E INTEGRAÇÃO. — O processo de
Integração política das várias comunidades é, em
substância, um processo multidimensional, sujeito a
numerosas influências internas e externas. Estas
últimas, especialmente, foram muitas vezes
negligenciadas. Mas, assim como a Integração política
dos Estados europeus foi profundamente influenciada
pelas várias guerras que se sucederam no continente,
assim também a Integração política dos novos países,
marcada pela expansão colonial e suas conseqüências,
é hoje retardada pela atividade das grandes potências
neocoloniais e pelas companhias econômicas
internacionais e transnacionais. Estas últimas tendem,
de fato, a favorecer conscientemente uns grupos em
vez de outros e a manter no poder governantes
desacreditados, desde que apóiem a sua política
econômica. As companhias internacionais consideram
lucrativo financiar alguns grupos, setores e Estados,
criando aristocracias de trabalho e ilhas de
desenvolvimento e aumentando, portanto, as
desigualdades no interior de cada Estado, quer em
relação a várias classes operárias, quer em relação aos
grupos regionais e étnicos por elas favorecidos através
de seus
635
privilegiados investimentos. Os difíceis problemas
internos dos países do Terceiro Mundo se tornam
ainda mais complicados pelo complexo jogo
internacional do qual eles, com ou contra vontade, já
começaram a fazer parte.
Os problemas da Integração política se têm
demonstrado de difícil solução, não somente nos
países do Terceiro Mundo, mas também nos países
ocidentais, como provam os constantes conflitos
religiosos, culturais e étnicos dos anos 60, O justo
equilíbrio entre autonomia e Integração não foi ainda
atingido, excetuados alguns felizes e raros casos.
BIBLIOGRAFIA. — Between sovereignty and
integration, fasciculo especial de Government and
opposition", IX, inverno de 1974; K. W. DEUTSCH,
Nationalism and social communication, John Wiley
and Sons, New York 1953; A. ETZIONI, Unificazione
política (1965), Etas Libri, Milano 1969; R. O.
KEHOANE e J. S. NYE, International interdependence
and integration, in Handbook of political science. ao
cuidado de F. I. GREENSTEIN e N. W. POLSBY, Addison
Wesley, Reading Mass. 1975, vol. VIII; Transnational
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autores, Harvard University Press. Cambridge Mass.
1972; Regional integration theory and research. ao
cuidado de L. N. LINDBERG e S. A. SCHEINGOLD,
Harvard University Press. Cambridge Mass. 1971; M.
WEINER, Political integration and
political
development. in "The annals", 358, 1965; JR. C. E.
WELCH, Dream of unity: pan-africanism and political
unification in West África. Cornell University Press.
Ithaca 1966.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Integralismo.
Usado freqüentemente como sinônimo de
integrismo, o termo Integralismo possui, ao contrário,
uma conotação precisa a partir da segunda metade do
século XIX: designa uma concepção global e unitária
do cristianismo, não só quando quer reafirmar a sua
intangível integridade doutrinai, mas também e
sobretudo quando quer ser um sistema de vida e
pensamento aplicável a todas as necessidades da
sociedade moderna, no momento em que o
liberalismo e, posteriormente, o socialismo pensam
que a sociedade possui em si mesma os meios
necessários para resolver seus problemas e que a
religião deve ser uma questão privada, um simples
problema de consciência.
Torna-se, por isso, particularmente ambígua
qualquer identificação entre Integralismo e
integrismo. A confusão é ainda mais fácil naquelas
línguas em que estes termos são usados como
636
INTEGRALISMO
correspondentes entre si (integrismo em espanhol,
integralismus em alemão, integralism em inglês).
As premissas da concepção integral do catolicismo
se encontram no Syllabus de Pio IX (1864), onde se
recalca em termos explícitos a impossibilidade de a
Igreja se reconciliar com a sociedade moderna,
porquanto tal sociedade quer excluir a Igreja e a
religião da vida pública. À concepção laica e privada
da religião a Igreja opõe a sua concepção integral e
confessional.
A consumação da unidade da Itália e a perda dos
Estados pontifícios, incluída a cidade de Roma,
aceleraram o processo de rompimento, provocando a
radical rejeição do Estado italiano por parte da cúria
romana e uma conseqüente atitude de intransigência
por parte do mundo católico em relação ao novo
Estado unitário. Enquanto rejeita a nova ordem, a
Igreja vem a encontrar-se numa situação de confronto
em vários países: na França, a Comune assinala uma
reviravolta radical mesmo nas relações com a Igreja;
na Alemanha, bem depressa surgirá o Kulturkampf,
que oporá Bismarck à Igreja católica, politicamente
organizada em torno do partido do centro; nos países
tradicionalmente católicos (Espanha, Portugal,
América Latina), a Igreja entra em choque com
Governos liberais contrários ao clero. A única solução
possível parece ser o retorno a uma ordem social
cristã. Sobre isso, todos os Papas seguintes serão
concordes: Leão XIII receberá a herança de Pio IX e
indicará um caminho que será continuado por Pio X.
Pio IX mantivera-se na defensiva; Leão XIII
retoma a iniciativa. É assim que se explicam as suas
diversas intervenções, primeiro visando a restaurar
nas escolas católicas uma rígida disciplina de
pensamento com o retorno à tradição tomista, depois
assentando as bases para as novas relações entre a
Igreja e o Estado e, finalmente, dando sobretudo à
ordem social cristã um conteúdo consentâneo com os
dados concretos do tempo. Será precisamente este o
programa e o fim da encíclica mais notável deste
Papa, a Rerum Novarum (1891). Ela se tornou
também o texto básico do catolicismo integral, que se
revela, em conseqüência, intransigente, com
acentuados aspectos sociais. Contra a burguesia e a
sua revolução, que provocaram a desordem social, de
onde se originará necessariamente o movimento
socialista, a Igreja se apresenta como defensora do
povo cristão, das categorias mais pobres e
desafortunadas, esquecidas pela nova ordem burguesa.
Passando às realizações concretas, o catolicismo
integral descobre a miséria da vida operária e
campesina, e esta descoberta fará surgir aqueles
movimentos em que a juventude católica e o
clero hão de se dedicar à ação social e, a seguir, à
democracia cristã. Mas isso não significa que a Igreja
tenha abandonado a burguesia: ao contrário, tentará
repetidas vezes reconquistá-la, abrindo caminho à
futura aliança clérico-moderada.
A atitude intransigente da Igreja parece, pois,
conseqüência direta dessa concepção integral da vida
religiosa e da ordem social cristã. Em sentido lato,
esta atitude significa a rejeição dos valores liberais da
sociedade moderna; em sentido mais específico, a
intransigência será a característica fundamental do
movimento católico italiano, nascido e estruturado
tendo por base a não aceitação dos fatos consumados,
isto é, da tomada de Roma e do fim do poder
temporal. Esta atitude prevalecerá até finais do século
XIX, não obstante existir uma tendência transigente
ou conciliativa, a de uma pequena minoria duramente
combatida pelo movimento oficial.
Em fins do século passado e primeiros anos deste,
ao surgirem de modo cada vez mais claro, mesmo no
seio do mundo católico, os sintomas da crise de uma
concepção rigorosamente integralista da religião e,
conseqüentemente, da intransigência, nasceu o último
epígono
do
Integralismo,
o
integrismo.
Originariamente, este termo denominava um partido
político espanhol, dissidente do carlismo, fundado
com escasso êxito pelo ano de 1890, como aplicação
do Syllabus. Estendido à França alguns anos depois,
será usado para expressar posições opostas ao
progressismo em matéria de exegese bíblica e, depois,
para configurar as formas mais duras de oposição ao
modernismo, particularmente depois que este foi
condenado por Pio X, na encíclica Pascendi de 1907.
Acabará assim por assumir um caráter polêmico,
identificando-se com os católicos que se opõem por
todos os meios e sistemas a qualquer abertura ao que é
moderno.
Muito mais que o integrismo, o Integralismo
continua, pois, sendo uma concepção e uma atitude
aberta e discutida. Ele se apresenta de novo sempre
que se analisa o lugar da religião na sociedade e se
verifica que ela, de modo algum, tende a deixar-se
reduzir ao mero âmbito da consciência, da
interioridade e da privaticidade.
BIBLIOGRAFIA - Quanto a historiografia e história
das diversas atitudes do mundo católico, veja-se agora:
Dizionario storico del movimento cattalico in Italia
1860-1980. Marietti, Torino 1981, vol. I, ts. 1-2; G.
CANNIZZO, Alcuni recenti studi sull'integrismo. in
"Rivista di storia della chiesa in Italia", 1970, 2; E.
POULAT, Intégrisme et catholicisme intégral. Un réseau
secret international: la "Sapinière" (1909-1921).
Casterman, Paris 1969; Id .
INTELECTUAIS
Catholicisme, démocratie et socialisme, Casterman, Paris
1977; F. SlCCARDO, "Intégriste" e "Intégrisme". Stratigrafia di
due vocaboli francesi. il Melangolo, Genova 1979; G.
TASSANI. La cultura política della destra cattolica. Coines.
Roma 1976.
[EMILEPOULAT]
Intelectuais.
I. DUPLO SENTIDO E ORIGEM DO TERMO. —
Ao substantivo Intelectuais podem ser atribuídos dois
sentidos principais, aparentemente semelhantes mas
substancialmente diferentes. Em primeiro lugar, ele
designa uma categoria ou classe social particular, que
se distingue pela instrução e pela competência,
científica, técnica ou administrativa, superior à média,
e que compreende aqueles que exercem atividades ou
profissões especializadas. A este respeito, é típica a
definição de Intelectuais que é dada na União
Soviética, pela qual estes constituem uma camada
intermediária composta de "trabalhadores não
manuais", tais como os engenheiros, os médicos, os
advogados, etc, os quais, apesar de se distinguirem do
proletariado pelo conteúdo da atividade do trabalho,
não têm, todavia, uma posição independente no
sistema de produção. Não é, porém, muito diferente a
definição dada por muitos sociólogos americanos,
para os quais Intelectuais são os responsáveis pela
produção e aplicação dos conhecimentos e dos
valores. Neste sentido, a noção de Intelectuais se torna
sinônimo de técnicos, ou, à francesa, de cadres.
Ao lado desta primeira acepção do termo, encontrase muito freqüentemente, nos ensaios de caráter
sociológico e econômico, uma segunda acepção, mais
vulgar na publicidade de atualidade literária e política,
para a qual Intelectuais são os escritores "engajados".
Por extensão, o termo se aplica também a artistas,
estudiosos, cientistas e, em geral, a quem tenha
adquirido, com o exercício da cultura, uma autoridade e
uma influência nos debates públicos. Menos precisa do
que a primeira, esta última acepção é também a mais
interessante a ser aprofundada, porque com esta se
relaciona o discutido problema do comportamento
político dos Intelectuais e de sua atitude crítica e
problematizante, que os inclinaria para a oposição de
esquerda e, não raramente, também para o apoio
militante de movimentos revolucionários.
Esta duplicidade de significado é documentada
também pela história do termo. Afora alguns
precedentes incertos, o adjetivo latino teve sua
637
primeira forma de substantivação na metade do século
XIX, na língua russa, com o termo inteligencija,
criado pelo romancista P. D. Boborykin e quase
contemporaneamente retomado e difundido por I. S.
Turgeneev. Traduzido para as principais línguas
européias, este termo indicou, inicialmente, um grupo
social particular, típico da Rússia czarista e de alguns
países eslavos; mas logo se generalizou para designar
a classe culta, a categoria das pessoas que têm, em
todas as sociedades, uma instrução superior.
Cerca de quarenta anos depois desta primeira
forma de substantivação, apareceu uma segunda em
língua francesa, com o termo intellectuels.
Esta palavra provavelmente já estava em uso antes,
em alguns círculos literários e políticos, mas seu
registro de nascimento, isto é, sua oficialização,
remonta ao célebre Manifeste des intellectuels,
publicado no diário "Aurore" de 14 de janeiro de
1898. Este manifesto (o primeiro de uma longuíssima
série) está, exatamente, assinado por escritores, críticos
e estudiosos, tais como E. Zola, os dois Halévy, A.
France, L. Blum e M. Proust e outros, os quais
exigiam a revisão do processo Dreyfus. Parece que a
idéia do título foi do diretor do jornal, Clemenceau. O
uso público do termo provocou logo uma violenta
resposta na imprensa nacionalista por parte de M.
Barres; à polêmica contra os Intelectuais se uniram,
algum tempo depois, também os maiores expoentes do
sindicalismo revolucionário, como G. Sorel e E.
Berth. Recebido com desconfiança nos dicionários e
considerado freqüentemente como gíria ou expressão
depreciativa, o termo Intelectuais conserva ainda o
sentido político que recebeu, como se fosse um nome
de guerra, no conflito entre conservadores e
progressistas em torno do caso Dreyfus. Ainda hoje,
de fato, indicar uma pessoa como Intelectual não
designa somente uma condição social ou profissional,
mas subentende a opção polêmica de uma posição ou
alinhamento ideológico, a insatisfação por uma cultura
que não sabe se tornar política ou por uma política que
não quer entender as razões da cultura.
Partindo deste duplo sentido do termo, a história do
problema se configura como história da relação e da
oposição entre intellighenzia e Intelectuais, entre a
formação e composição das classes cultas e a eficácia
política da cultura.
II. OS INTELECTUAIS COMO ALA PROGRESSISTA DA
BURGUESIA REVOLUCIONARIA. — Alguns autores falam,
de modo genérico, dos Intelectuais, lato sensu, para
indicar as classes cultas, juntando instituições e figuras
sociais muito diferentes historicamente, tais como as
castas sacerdotais do
638
INTELECTUAIS
antigo Egito, os mandarins da China clássica, os
sofistas gregos, os clérigos vagantes da Idade Média,
os doutos humanistas e, em geral, os estudiosos e
artistas de qualquer época e país. Sem querer negar
algumas semelhanças e analogias, é claro que
podemos adequadamente falar de Intelectuais, em
sentido próprio, somente na época moderna, quando o
desenvolvimento das forças produtivas e a formação da
sociedade civil lançam as bases materiais para uma
profunda transformação das então chamadas artes
liberales, rompendo a organização corporativa. Além
disto, as reformas do aparelho administrativo e
burocrático estatal, a relativa liberalização do acesso
aos cargos públicos, até então privilégio da
aristocracia e do clero, e especialmente a instituição
das escolas públicas e a renovação das universidades
e academias tornam possível a existência de uma
verdadeira classe culta, que é um fenômeno social
bem diferente do das castas, seitas e corporações de
doutos e sábios das sociedades antigas e medievais.
Nas origens daquilo que B. Groethuysen chamou
"espírito burguês", no século XVIII a gente instruída
ou classe culta representa um componente importante
da burguesia; a própria burguesia se identifica com
essa classe culta e à sua hegemonia se submete. Os
philosophes iluministas constituem a parte mais
avançada e progressista dessa classe. Um dos
promotores da Enciclopédia, D'Alembert, escreveu um
Essai sur les gens de lettres (1753), que pode ser
considerado como o primeiro tratado, em sentido
moderno, sobre o problema dos Intelectuais. É
significativo que o tema desse ensaio seja a polêmica
contra o mecenatismo corruptor dos grandes e dos
nobres e a apresentação do philosophe como o novo
Diógenes. Nesta polêmica podemos descobrir, de um
lado, a recusa da condição de subalterno e cortesão,
que o homem de letras tem na sociedade aristocrática,
de outro lado, a proposta e a intuição de um papel
independente e "livre de ligames" dos escritores, que
a crescente autonomia econômica da burguesia, já
encaminhada para a revolução, torna possível,
proporcionando aos philosophes o apoio de uma
numerosa e influente opinião pública.
III. A SEPARAÇÃO ENTRE INTELECTUAIS E
BURGUESES NO PODER. — A hegemonia da classe
culta e o papel da vanguarda burguesa dos Intelectuais
são, porém, possíveis somente nas situações em que,
como na França revolucionária, o quadro das relações
jurídicas e políticas sufoca o desenvolvimento das
forças produtivas. A revolução ainda estava em seus
primórdios, quando
E. Burke (Reflexions on the revolution in France,
1790) alertou a burguesia no poder na Inglaterra sobre
os riscos que correm as nações, nas quais os homens
de letras se tornam "políticos" e conseguem formar
uma "cabala filosófica e literária" para deter o
monopólio da opinião pública. Uma vez chegada ao
poder, a burguesia se encontra na frente do problema
de moderar essa ala, que é a mais avançada e radical,
adaptando-a às condições de um desenvolvimento
gradual.
A acusação lançada contra os escritores de
corromperem, para fins de poder, as classes inferiores,
fingindo estar ao serviço delas, é uma característica do
contraste entre os Intelectuais e os demais
componentes da burguesia. A essa acusação respondia
o jovem Fichte, professor recente em Iena, com suas
célebres lições sobre a missão do sábio (Einige
Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten,
1794), nas quais a autonomia dos doutos e a livre
comunicação do saber são reivindicadas como sendo a
expressão fenomênica mais próxima do ideal kantiano
da autodeterminação como fim em si dos seres
racionais. Além disso, para Fichte, a autonomia do
douto não pode se realizar no isolamento: sua função é
conhecer as necessidades de seu tempo e os meios para
satisfazê-los, promovendo a mais ampla e orgânica
cooperação entre os homens, como forma de
socialização da liberdade. Nesta primeira redação da
obra, junto aos motivos iluministas, já se sentem
indícios novos, socialistas. Para responder às acusações
de falta de organização que lhe são lançadas, o douto é
obrigado a apelar para uma solidariedade que una à
burguesia outras classes ou camadas sociais. Este
fenômeno é mais evidente em H. de Saint-Simon.
Escritor fecundo e descontínuo, sempre à procura de
um princípio sobre o qual basear sua "fisiologia
social", em alguns de seus primeiros opúsculos,
escritos entre 1804 e 1814, ele sustenta que é preciso
procurar a causa principal das guerras e revoluções
que perturbavam a Europa naquela época no fato de
que as crenças, com base nas quais as massas regulam
seu comportamento, não têm nenhum fundamento
científico e foram destruídas pela obra crítica e
negativa dos escritores iluministas. Chegou a hora em
que a filosofia se torna um instrumento de
reorganização social; por isto, Saint-Simon lança um
apelo aos savants europeus para que voltem a fazer um
uso positivo de seu saber, promovendo uma religião
fundada na ciência que reeduque as massas e levando a
humanidade a passar de uma época crítica para uma
nova época orgânica.
Na realidade, com a Revolução Industrial e a
imposição das relações de mercado capitalistas,
INTELECTUAIS
a classe culta perdia sua importância determinante no
seio da burguesia, sendo reduzida a classe
intermediária, incapaz de sustentar a direção de um
movimento intelectual ou de Intelectuais. A pretensão
dos escritores e filósofos de envolverem a burguesia,
contra os próprios interesses há pouco afirmados, no
alargamento da sociabilidade e da cooperação, estava
destinada a aparecer cada vez mais como uma utopia
ou uma abstração, semelhantes às dos Intelectuais
franceses — os ideólogos — que Napoleão, na sua
época, chamou bruscamente à realidade do poder.
Retomando, após sessenta anos, a polêmica aberta por
Burke, A. de Tocqueville mostra como a separação
entre Intelectuais e burguesia no poder é já um fato
consumado. No L'Ancien Régime et la révolution,
1856, Tocqueville afirma que a politização dos
Intelectuais nasce da sua falta de experiência prática e
do seu amor pelas idéias gerais, que os leva a
extremismos simplistas e apriorísticos, inimigos
máximos de uma correta condução dos negócios
públicos e da liberdade política. O que está implícito
nesta argumentação é que os Intelectuais em política
têm somente um papel negativo, exaltando as massas
com suas simplificações e abrindo o caminho para o
despotismo. Voltem, então, às letras, deixando a
política a uma classe de Governo mais esperta e
capaz.
Quase contemporaneamente, Marx e Engels, que
também partiram da denúncia da ideologia e do
extremismo impotente e palavroso dos "autores
alemães", chegaram a resultados bem diferentes e em
certo sentido opostos. Seu itinerário juvenil, do
radicalismo ao socialismo, parece marcado por uma
descoberta econômica e filosófica: contrariamente ao
que tinham afirmado Fichte e Hegel, de acordo com
um ponto de vista iluminista, os Intelectuais não eram
absolutamente a classe portadora dos interesses mais
gerais da sociedade, antes enclausurados em si, não
eram nem uma classe nem um grupo social
fundamental. Sozinhos nunca teriam levado a termo
aquele projeto de libertação histórica que a esquerda
hegeliana tinha concebido. Era preciso, ao invés, dar
atenção àquela classe que não tinha mais nada a
perder senão as próprias cadeias e cuja emancipação
coincidiria com a da humanidade inteira. Só na aliança
com os explorados a filosofia conseguiria pôr fim à
própria miséria e à mistificação do real,
transformando-se numa força material e histórica
capaz de revolucionar as relações sociais e orientar o
desenvolvimento produtivo.
639
agora, nos termos alternativos fixados por
Tocqueville e Marx, entre a impossibilidade de repetir
a experiência iluminista de direção e vanguarda da
burguesia e a possibilidade de voltar a ter uma função
política na aliança com o proletariado. A este respeito,
porém, os escritores de inspiração radical têm insistido
na dificuldade de aceitar a alternativa e na
necessidade de procurar uma posição intermediária
não exclusivista. Se subjetivamente é muito difícil
para os Intelectuais, especialmente nos momentos de
radicalização, não serem envolvidos e não participarem
da luta política, de outro lado, a sua colocação social
intermediária impede a adesão total a uma das partes
em luta. Deste conflito, do qual o Intelectual é vítima,
M. Weber nos deixou uma imagem inquietante e
problematizante, quer nos escritos quer na sua
experiência vivida. Dividido entre a pura dedicação ao
objeto de suas indagações e a necessidade de se
posicionar e participar dos problemas de seu tempo, a
função do Intelectual é, para M. Weber, o contínuo
esforço crítico e a tensão entre compreensão e
autonomia de juízo, ética da responsabilidade da
intenção, termos que, apesar de inconciliáveis, é
preciso confrontar.
Diversamente de Weber, K. Mannheim tentou dar
uma resposta positiva ao dilema do Intelectual entre as
classes em luta, configurando-a como procura de uma
terceira alternativa. A posição intermediária do
Intelectual, que Weber interpretava como possibilidade
de crítica, para Mannheim se torna garantia
sociológica de imparcialidade e de capacidade de
esquivar-se do condicionamento histórico e existencial
do pensamento. De fato, os Intelectuais,
diferentemente das castas sacerdotais das sociedades
antigas, seriam um grupo freischwebend, livre de
compromissos (a expressão foi criada por Alfred
Weber, irmão do célebre Max), porque composto de
indivíduos provenientes de todas as classes sociais e,
portanto, capaz de elaborar internamente uma síntese
de valores que transcenda o ponto de vista unilateral
das ideologias e transforme a utopia num
empreendimento científico de que participem as
melhores energias de todos os grupos e classes sociais.
Mais do que Ideologie und utopie, 1929, os escritores
mannheimianos que se sucederam, especialmente os
que trataram da "planificação na liberdade", mostram
que, na realidade, a. autonomia dos Intelectuais como
terceira alternativa se resolve numa proposta de
direção social e política por parte dos mesmos
Intelectuais. Em outras palavras, a terceira alternativa
é a mesma que a burguesia poderia ter seguido se a
IV. DO PROBLEMA DA AUTONOMIA DOS experiência iluminista tivesse continuado. Com um
INTELECTUAIS À EXPERIÊNCIA DA FRENTE sentido mais penetrante, por essa mesma altura,
POPULAR. — O debate sobre os Intelectuais
prosseguiu até
640
INTELECTUAIS
o moralista francês J. Benda se dedicou a refletir sobre
as causas que impedem o retorno do iluminismo em
nossa época. Numa obra destinada a se tornar logo
famosa (La trahison des clercs, 1927), Benda
identificava o sentido de autonomia dos Intelectuais na
luta contra as paixões irracionais sempre presentes na
história humana, mas que, pela primeira vez,
encontravam entre seus defensores e difusores, os
"clérigos", ou homens de cultura. A função histórica
dos Intelectuais torna-se, assim, a luta contra o
fascismo. Mais que doutrinai, a importância da
posição de Benda era política; esta, de fato, aceitando
a herança transmitida pelos Intelectuais dreyfusards de
uma luta cultural e civil contra o nacionalismo, o antisemitismo e o militarismo, tornava possível o encontro
e o diálogo entre o ponto de vista liberal e o marxista.
Na mesma linha encontramos Lukács que analisa a
difusão das tendências irracionalistas na cultura
burguesa, descrevendo-a como história da "destruição
da razão". E A. Gramsci, antes da tomada do poder
pelo proletariado, teorizava a necessidade de um bloco
histórico de classes e de uma luta pela hegemonia que
indicasse aos mesmos Intelectuais burgueses um
caminho para o renascimento da cultura após o
fascismo, religando-se às suas raízes nacionais e
populares.
Nos anos da frente popular, na guerra da Espanha,
na resistência, a palavra Intelectuais adquiria, assim,
um significado unívoco; ao lado dos operários e
camponeses, os Intelectuais se tornam uma das
categorias constitutivas da frente unida antifascista,
representando a pequena burguesia revolucionária e
os elementos mais avançados que esta tem.
bém internacional reduziu as condições que tornavam
possível a aliança entre o proletariado e as partes mais
avançadas da classe média. A cultura crítica então
estaria se transformando de elemento progressista em
um privilégio e num instrumento de conservação de
relações sociais já superadas? Particularmente
interessante é, a este propósito, a análise da revolução
cultural chinesa. Esta mostra, de um lado, que o avanço,
em profundidade, do processo de socialização das
massas operárias e camponesas exige um
questionamento radical da relação entre divisão do
trabalho e cultura e, do outro lado, que o
desenvolvimento programado e estatal da economia,
enquanto faz desaparecer certas figuras capitalistas, tais
como os "proprietários" e os empresários, faz surgir ao
mesmo tempo uma nova classe dirigente, formada de
administradores, técnicos e políticos. Nesta área, o
Intelectual encontra uma alternativa de classe para a
aliança com o proletário. É significativo o fato de que
na China a polêmica esteja dirigida, não mais contra o
Intelectual tradicional, mas contra um novo tipo de
Intelectual que "estuda, para se tornar funcionário".
Também significativo é que a revolução cultural, se
bem que precedida de um conflito interno no partido,
tenha começado como movimento de massa, por
discussões filosóficas nas universidades e pela
representação de peças teatrais. O espírito igualitário da
revolução cultural, além do impulso das massas, teve
origem também no racionalismo dos Intelectuais, que
Tocqueville considerava abstrato. Portanto, embora com
o dirigismo o desenvolvimento das forças produtivas
tornou possível e atual, na China e alhures, a assunção
de uma função de poder por parte dos Intelectuais,
como expertos, nem por isso eles, como grupo social,
estão inevitavelmente destinados a ser já absorvidos
V. A CONTESTAÇÃO ESTUDANTIL E A pela nova "burguesia de Estado"; nem a cultura deixou
REVOLUÇÃO CULTURAL. — No fim dos anos 60, de ser a fonte de tendências e movimentos de
com a guerra do Vietnã e o movimento estudantil, o radicalização política.
problema parece que mudou radicalmente: à crítica
intelectual do poder sucede a contestação política da
cultura. A muitos essa "contestação" pareceu uma
tentativa extremista de rejeitar e encerrar o discurso
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., Storia d'Italia. Annali,
sobre os Intelectuais, tal como vinha sendo Intellettuali e potere, Einaudi, Torino 1981; A. ASOR
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perceber que a contestação, sob muitos aspectos, foi view. Free Press. New York-London 1965; The
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produtivas em escala não somente nacional mas tam[CARLO MARLETTI]
INTERCLASSISMO
Interclassismo.
Por Interclassismo se entende toda forma de ação,
organização, ideologia ou situação que envolve
pessoas e grupos que pertencem a classes sociais
diversas. O termo é mais freqüentemente usado em
sentido depreciativo por aqueles que afirmam que
todos os comportamentos significativos a nível
político, social e cultural se baseiam na classe. Neste
sentido, toda forma de Interclassismo comporta o agir
e o pensar contra os próprios interesses de classe por
parte daqueles que, na sociedade, estão sujeitos ao
poder de outra classe. O termo é, ao invés, usado em
sentido positivo por aqueles que negam que a vida
social e política há de assumir necessariamente a
forma de luta e de conflito de classe.
Nos sistemas políticos contemporâneos, é freqüente
a presença de partidos interclassistas. Estes podem ser
sob três pontos de vista: 1) seus membros são
recrutados de todas as classes ou, pelo menos, de mais
de uma; 2) a sua ideologia é interclassista no sentido
de uma concepção da sociedade na qual as classes não
se contrapõem, mas contribuem todas para o bem
coletivo; 3) os objetivos que perseguem não visam
beneficiar exclusivamente nenhuma classe social, mas
a sociedade no seu conjunto. Muito freqüentemente,
estes três elementos não estão presentes todos juntos.
Na maioria dos casos, os partidos interclassistas são
partidos cujos objetivos se identificam com a
manutenção da ordem, com a oposição às tendências
subersivas e revolucionárias e com a superação de
situações de crise. Trata-se, portanto, o mais das
vezes, de partidos que, de fato, perseguem interesses
de classe e, em particular, da classe dominante,
interesses que, no entanto, são mascarados e
apresentados como interesses coletivos.
Aspectos interclassistas estão presentes em todas as
ideologias que focalizam a comunidade territorial, seja
local ou nacional (v. NACIONALISMO). O Interclassismo
é favorecido pela ocorrência de determinadas situações
que estimulam a formação de solidariedades coletivas,
por exemplo, uma comunidade atingida por uma
catástrofe natural, uma sociedade em guerra, situações
em que a presença de uma ameaça externa exige a
mobilização de todas as energias disponíveis. Em
situações revolucionárias, enfim, é comum verificar-se
a coalização de todas as classes contra a classe
dominante, que é percebida como a classe dos
opressores. Neste caso, a frente revolucionária pode ser
composta de indivíduos e grupos muito heterogêneos
quanto à sua situação de classe, mas que se unem com
o objetivo de
641
derrubar o status quo. A mesma situação interclassista
se verifica também no caso da fundação de um novo
Estado ou da unificação de vários Estados soberanos.
Conquanto estes processos possam favorecer mais os
interesses de uma classe que de outras, de fato
envolvem, se bem que em medidas diferentes, os
interesses de todas as classes e da sociedade como um
todo.
[ALESSANDRO CAVALLI]
Interesse Nacional.
Para explicar o que é que se entende por Interesse
nacional, é preciso, antes de tudo, fazer uma distinção
entre o contexto das relações internacionais e o da
política interna.
No contexto das relações internacionais, onde a
expressão é usada com mais freqüência, o Interesse
nacional é geralmente entendido (à luz dos
ensinamentos da teoria da Razão de Estado, não raro
definida também como "teoria dos interesses dos
Estados") como uma necessidade de segurança que
cada Estado tem dentro das condições anárquicas das
relações internacionais, uma necessidade que faz com
que os conflitos entre os Estados sejam resolvidos, em
última instância, pelo uso das armas ou com a ameaça
da força. Para poder defender os próprios interesses,
econômicos ou de qualquer outra natureza, quando em
conflito com os de outros Estados, e também para, em
definitivo, poder decidir autonomamente as questões
internas, cada Estado deve prover, antes de tudo, à
própria segurança, munindo-se do conveniente poder
militar e desenvolvendo uma atividade diplomática,
que vise ao equilíbrio da força da potência ou grupo de
potências com as quais existem ou é previsível que
existam divergências e conflitos. Além desta tendência
geral, o Interesse nacional assim entendido pode
definir, por outro lado, comportamentos diversos,
segundo a situação histórica concreta, a força do
Estado em questão, sua estrutura econômica e seu
regime político. Ele pode levar a políticas expansivas
ou de contenção de outras potênicas para manter o
equilíbrio; pode levar à busca de espaços vitais para
garantir o acesso aos mercados e às matérias-primas de
importância estratégica, assim como a políticas
protecionistas que visem à obtenção de um suficiente
grau de auto-suficiência econômica; pode determinar a
adesão, numa posição subordinada, a blocos
hegemonicamente dominados por uma potência, que
restrinja mais ou menos fortemente a autonomia dos
satélites, mas lhes garanta a
642
INTERNACIONALISMO
segurança; pode, enfim, também por outras razões,
levar à mesma escolha da integração supranacional,
isto é, à abdicação progressiva da soberania nacional
absoluta a favor de instituições supranacionais,
mediante as quais um conjunto de povos, que
perderam a capacidade de uma real autonomia
internacional, tende a recuperá-la, não individual, mas
coletivamente (v. INTEGRAÇÃO EUROPÉIA).
Partindo desta última experiência, pode-se também
conjeturar que, num futuro não demasiado longínquo,
por via da difusão e do aperfeiçoamento das armas de
destruição total, que tendem a excluir a possibilidade
do uso das armas como instrumento de solução dos
conflitos entre Estados, e em virtude da
interdependência cada vez mais estreita e profunda,
tanto no plano econômico como no ecológico, entre
os países do mundo, o Interesse nacional poderá
induzir os Estados mundiais à progressiva criação de
instituições de integração supranacional a nível
mundial, entendidas como condição indispensável para
a sobrevivência de toda a humanidade e,
conseqüentemente, de cada um dos países. Neste caso,
porém, desapareceria automaticamente o Interesse
nacional, entendido como interesse pela segurança
num mundo anárquico.
Tudo isto torna claro como o conceito de Interesse
nacional, referido ao contexto das relações
internacionais, indica uma tendência assaz relevante,
mas de caráter geral — a busca prioritária da própria
segurança —, cujas manifestações concretas são
extremamente variáveis e exigem, para ser claramente
compreendidas, uma atenta consideração da situação
histórica concreta.
Se passarmos ao contexto da política interna, o
Interesse nacional será então entendido como o
interesse da generalidade dos habitantes de um país
(obviamente suscetível de diversas definições e
realizações, consoante as diferentes situações
históricas e as solicitações que emergem da sociedade
civil), interesse que se contrapõe aos interesses
particulares de cada um dos cidadãos e de cada um
dos grupos econômico-sociais (neste caso, tende-se a
usar mais freqüentemente a expressão "interesse
geral" ou "interesse público"), mas principalmente
aos interesses regionais de cunho particularista. Para
apresentar um exemplo, a política de ajuda às regiões
atrasadas de um país julga-se corresponder ao
interesse nacional desse país, além de corresponder ao
interesse legítimo de tais regiões, enquanto que a
resistência movida pelas regiões ricas contra essa
política se reduz a interesses regionais particularistas.
A este propósito se observa ainda que entre o
interesse regional bem entendido e o Interesse
nacional não existe contradição. E é de acentuar
que os desequilíbrios regionais, ao provocarem vastos
fenômenos migratórios, com todas as suas seqüelas,
tendências inflacionistas, etc, prejudicam também, no
final das contas, a generalidade das populações das
regiões mais ricas.
Problemática análoga se apresenta, conquanto
expressa em fórmulas verbais diferentes, na
Comunidade Européia, que é hoje o exemplo mais
notável e avançado de organização de integração
supranacional. Constata-se efetivamente neste caso
uma complexa dialética entre o interesse comum
europeu ou interesse comunitário (correspondente ao
Interesse nacional no quadro de um Estado) e os
diversos Interesses nacionais (correspondentes aos
interesses regionais no mesmo quadro), interesses que
podem ter um caráter essencialmente particularista e
estar em contradição com o interesse comunitário ou,
ao invés, tender à coincidência com tal interesse,
como parece ser o caso (pelas mesmas razões antes
indicadas) da exigência, manifestada pelos Estados
mais pobres, de uma maior solidariedade por parte
dos Estados mais ricos. A diferença entre a situação
da Comunidade e a de cada Estado consiste, sob este
aspecto, no fato de que, enquanto nos Estados os
órgãos institucionalmente incumbidos de fazer
prevalecer o interesse comum, ou seja, um Parlamento
diretamente eleito e um Governo com poderes
efetivos, se acham plenamente desenvolvidos, na
Comunidade Européia eles são por ora muito mais
débeis (existe a eleição européia, mas não existe
ainda um verdadeiro Governo europeu), possuindo
ainda, por isso, um peso excessivo os Interesses
nacionais de tipo particularista.
[SERGIO PISTONE]
Internacionais,
Internacionais.
Relações.
—
V.
Relações
Internacional, Organização — V. Organização
Internacional.
Internacionalismo.
O termo lnternacionalismo começou a fazer parte
do vocabulário político na segunda metade do século
XIX e foi inicialmente usado para designar
movimentos de idéias e fenômenos políticos assaz
diversos, mas todos eles caracterizados, de uma
maneira geral, pela preponderância
INTERNACIONALISMO
atribuída à comunidade de interesses das nações, à
solidariedade política e econômica de todos os povos e
ao seu desejo de cooperação mútua, sobre os
interesses e móbeis nacional-estaduais. Esta acepção
bastante ampla está vinculada à herança do
COSMOPOLITISMO (v.) iluminístico e compreende
tendências tão diversas como a genérica aspiração
humanitária a uma comunidade de idéias e de ideais
capaz de unir todos os povos numa só sociedade civil,
o esforço por fazer avançar a causa da paz por meio
de um sistema de instituições e normas
supranacionais, como a arbitragem obrigatória e as
cortes internacionais de justiça, ou a utopia da
completa liberalização das trocas comerciais, visando
a ajustar as relações mundiais a uma suposta harmonia
de interesses de todos os povos. Todas estas formas de
Internacionalismo, que acompanham a ascensão social
da burguesia e se inscrevem no universo ideal do
liberalismo, irmanam-se com a convicção, expressa
quando muito em projetos nebulosos e moralizantes,
de que é possível melhorar de forma pacífica e
gradual a ordem social existente com a superação dos
contrastes nacionais, mediante a criação de novas
instituições e a reforma das concepções políticas
predominantes. A elas se contrapõe de modo cada vez
mais claro o Internacionalismo proletário, que deriva
da solidariedade das classes trabalhadoras oprimidas
pela ordem social vigente e vê na eliminação da
sociedade dividida em classes, por meios
revolucionários, a base da superação dos antagonismos
nacionais.
A consciência da existência de uma solidariedade
internacional entre os trabalhadores dos diversos
países parece mais ou menos contemporânea ao
aparecimento dos primeiros movimentos operários
organizados, em torno de 1830. São diversos os
fatores que estimulam o seu crescimento: a emigração
maciça, a concorrência nos mercados mundiais, a
vontade dos trabalhadores de diversos países se
apoiarem reciprocamente nos respectivos conflitos
econômicos, a comunhão dos ideais democráticos, a
tendência à defesa da independência das pequenas
nacionalidades, a defesa da paz e a difusão do ideal
socialista da emancipação da classe operária.
No período que se seguiu até as revoluções de
1848, a idéia de uma organização internacional
converte-se em patrimônio comum de minorias
revolucionárias que pertencem ao ambiente dos
emigrados políticos na Grã-Bretanha, na Bélgica e na
Suíça. Nas vésperas da insurreição parisiense de
fevereiro de 1848, o Manifesto do partido comunista,
escrito por Marx e Engels, apresenta pela primeira vez
uma formulação completa do Internacionalismo
proletário,
643
baseando-o numa análise precisa das relações existentes
entre as classes na época das revoluções burguesas.
"As divisões e antagonismos nacionais dos povos —
afirma uma célebre página do Manifesto — vão
desaparecendo cada vez mais com o desenvolvimento
da burguesia, com a liberdade do comércio, com a
uniformidade da produção industrial e das
correspondentes condições de vida. O domínio do
proletariado as fará desaparecer ainda mais. Uma das
primeiras condições da sua emancipação é a ação
unida, pelo menos nos países civilizados". E, em
Ideologia alemã, Marx escrevia alguns anos antes:
"Enquanto a burguesia de cada nação conserva ainda
interesses nacionais particulares, a grande indústria
criou uma classe que tem o mesmo interesse em todas
as nações e para a qual a nacionalidade já não é nada,
uma classe que, na realidade, se libertou totalmente do
velho mundo e, ao mesmo tempo, lhe é adversa".
O desenvolvimento e êxito das revoluções
européias de 1848 confirmam esta análise: por um
lado, põem em evidência o caráter "internacional" da
luta entre o absolutismo e a democracia, por outro,
demonstram que a burguesia perdeu grande parte do
seu ímpeto revolucionário e, quando não se dispõe a
alcançar um equilíbrio de compromisso com as classes
aristocráticas feudais, se fecha dentro dos confins do
próprio Estado, defendendo os privilégios adquiridos e
substituindo o utópico programa de uma aliança
internacional dos povos contra os tiranos pela
prosaica realidade da luta sem quartel pela repartição
dos mercados. A bandeira da fraternidade
internacional pode ser recolhida; será aceita como
própria pelo proletariado que, elevando-se a "classe
nacional", eliminará "a exploração de uma nação por
outra nação".
Mas, antes que o Internacionalismo operário se
forme totalmente e se torne autoconsciente, passarão
alguns anos durante os quais seus programas e
métodos estarão estreitamente unidos aos do
Internacionalismo democrático. No período que vai da
publicação do Manifesto à fundação da Primeira
Internacional, a distinção entre as duas formas de
Internacionalismo é quase impossível: as associações
secretas de Mazzini, Buonarroti, Blanqui, os grupos
inspirados por Owen, a Associação Democrática de
Bruxelas, a associação dos prófugos franceses da ilha
de Jersey, etc, são todos eles, do ponto de vista
ideológico, amálgama de socialismo messiânico, de
Internacionalismo
liberal
e
de
radicalismo
revolucionário. Não possuem um específico caráter de
classe, nem dispõem de um claro programa político:
estão ainda impregnados dos ideais revolucionários,
generosos mas vagos, de 1848, expressos nas
644
INTERNACIONALISMO
palavras de ordem da "fraternidade dos povos",
"república universal", "solidariedade de todas as
nações oprimidas". Nesta fase, os mesmos Marx e
Engels indicam como tarefa fundamental das forças
revolucionárias na cena internacional a luta contra o
absolutismo e a reação e a conclusão do processo de
unificação das grandes nações "históricas", Alemanha
e Itália antes de quaisquer outras, entendendo esta luta
como uma forma determinada e historicamente
necessária da luta de classes em escala planetária.
Com a retomada das lutas operárias nos fins da
década de 50, surgem novos esforços tendentes a
estabelecer formas permanentes de união entre os
movimentos dos diversos países, o que leva à
fundação
da
Associação
Internacional
dos
Trabalhadores, mais tarde conhecida como Primeira
Internacional.
Nos temas centrais do Congresso de fundação
(Londres, setembro de 1864), estão significativamente
espelhados
os
componentes
ideais
do
Internacionalismo que predominavam naquela fase
histórica: solidariedade com as nações oprimidas em
luta pela independência (neste caso, a Polônia,
sublevada em 1863) e necessidade de enfrentar, com
uma ação coordenada, os reflexos da conjuntura
internacional nos níveis de emprego e salário da
classe operária (no caso específico, a grave situação
criada nas indústrias têxteis francesas e inglesas em
conseqüência da Guerra Civil americana, que
provocara a interrupção do fornecimento de algodão).
A Primeira Internacional teve seu máximo impulso
no biênio de 1868-1869. Mas o agravamento da
tensão internacional, que desemboca na guerra francoprussiana de 1870, reacende os sentimentos
nacionalistas e provoca o seu declínio. Em face do
conflito, o Internacionalismo operário revê suas
posições em relação ao problema da guerra: se antes,
opondo-se à tradição pacifista do cosmopolitismo
iluminístico, ele não rejeitava a guerra "em si", mas
via nela um meio útil para precipitar a crise do
aboslutismo (daí a insistência de Marx e Engels sobre o
significado progressivo de uma guerra contra a Rússia),
agora sua condenação da guerra como sanção da
"razão do mais forte" e "meio de submissão dos povos
às classes privilegiadas ou aos Governos que as
representam" se torna firmíssima, fazendo ressaltar a
nova vocação pacifista do movimento operário.
O declínio da Associação Internacional dos
Trabalhadores é, todavia, acelerado por outros fatores:
a experiência da Comuna de Paris aprofunda e
exaspera o conflito entre os vários elementos ideais e
políticos que haviam convivido em seu seio; por outro
lado, a grande depressão
econômica iniciada em 1873 refreia e debilita o
desenvolvimento das lutas operárias, levando-as a se
reprimirem defensivamente no âmbito estritamente
nacional. Daí a necessidade de organizar o
movimento no quadro nacional, para o apoiar em
bases mais sólidas. No momento em que, malgrado a
resistência dos mutualistas e anarquistas, vai
crescendo a convicção de que o movimento operário
deve entrar na luta política como protagonista e
constituir-se em partido político independente,
organizando-se no plano nacional e inserindo-se na
realidade dos diversos países, a Associação
Internacional dos Trabalhadores surge como um
instrumento superado e a prática do Internacionalismo
adquire formas novas.
A dissolução da Associação Internacional dos
Trabalhadores — decidida oficialmente em 1876, mas
já implícita de fato na determinação, tomada em 1872,
de transferir o conselho geral para Nova York — não
implica em si a desaparição das aspirações
internacionalistas, que sobrevivem nas repetidas
tentativas, tanto dos anarquistas como dos marxistas,
de fazer reviver a velha instituição. Os sensíveis
progressos registrados pelo socialismo nos fins da
década de 80 e o crescimento do movimento operário
na maior parte dos países europeus fazem maturar as
condições indispensáveis ao restabelecimento de uma
organização internacional capaz de coordenar a
atividade de cada um dos partidos operários nacionais.
Nasce assim em Paris, em 1889, a que depois será
conhecida como Segunda Internacional. Não obstante a
continuidade que tal denominação, usada já pelos
contemporâneos e depois universalmente aceita,
exprime em relação à Associação Internacional dos
Trabalhadores, o novo organismo é, na realidade, algo
profundamente diverso dessa organização. Como
observa F. Andreucci, "suas primeiras fases de
existência parecem, de fato, sancionar antes a
realidade da conquistada autonomia e independência
do movimento socialista de cada um dos países, do que
a vontade de definir uma linha política e uma
estratégia comum. . . Desenvolvimento desigual do
capitalismo, tempos diversos na formação da classe
operária, diferenças nacionais no campo das relações
entre o movimento socialista e as demais formações
políticas (democracia, anarquismo), formas diferentes
na estrutura institucional da democracia representativa,
diversa extensão das liberdades democráticas nos vários
países e, por conseguinte, diferenças na organização do
movimento operário, finalmente várias opções
ideológicas no âmbito das doutrinas socialistas, é isso
o que constitui a base sobre a qual o princípio da
autonomia se elevou a sustentáculo das relações
INTERNACIONALISMO
entre os partidos socialistas e caracterizou suas
ligações internacionais".
Desta maneira, por mais de dez anos, a Segunda
Internacional renunciou a apresentar-se como
organização permanente, mantendo-se privada de um
estatuto, de uma direção central e até mesmo de um
secretariado organizativo. Se a Associação
Internacional dos Trabalhadores apresentava um
caráter de verdadeiro e autêntico partido
internacional, a Segunda Internacional, embora
pretendesse aparecer como tal, não era, na realidade,
senão uma livre federação de grupos autônomos
nacionais, partidos ou sindicatos, exercendo um poder
vinculativo muito limitado sobre os seus membros.
Era como que uma tribuna onde eram periodicamente
discutidos os principais problemas do movimento
operário europeu e cujas decisões exerciam uma
influência considerável na definição do programa dos
vários partidos socialistas, embora apenas de ordem
moral. Até 1900, nada existe praticamente, fora os
congressos que se reúnem com uma periodicidade
irregular e evitam, de qualquer modo, intervir nas
questões internas das seções nacionais. A partir de
então, com a constituição de um ofício de secretaria
permanente com sede em Bruxelas — o Bureau
Socialiste International — e depois, sobretudo, que tal
função foi assumida pelo belga Camille Huysmans, em
1905, a Segunda Internacional terá uma organização
menos lábil. Mas isso não impediu que, durante todo o
período da sua existência, o desenvolvimento do
pensamento e da ação socialista tenha sido
determinado muito mais pelas experiências do
movimento operário internacional em cada um dos
países do que pela influência teórica e política
irradiada da central internacional.
É verdade que os problemas que o movimento
operário tem de enfrentar, apresentam, pelo menos no
âmbito europeu, uma notável semelhança. O período
que vai de 1873 a 1896 distingue-se, em toda a parte,
pela tendência à depressão econômica, que ameaça
repetidamente os salários e o emprego, e pelas
constantes experiências autoritárias das classes
dominantes (leis anti-socialistas na Alemanha,
aventura boulangista na França, reação crispina na
Itália, robustecimento das tendências imperialistas na
Inglaterra). Conseqüentemente, os diversos partidos
social-democráticos nacionais batem-se a fundo pela
defesa e melhoramento das condições de vida dos
trabalhadores, que haviam de ser conseguidos muitas
vezes por meio de uma política social e assistencial do
Estado, e pela democratização da vida política (plena
liberdade de associação, ampliação do direito de voto,
etc). Mas tal quadro, se permite reconhecer a
homogeneidade de objetivos que requer
645
o retomo organizado às relações inter-socialistas e a
abertura de um confronto sobre problemas de comum
interesse, também põe em relevo que o campo onde o
processo de formação e crescimento dos partidos
socialistas se desenvolve em toda a sua amplitude é o
das sociedades nacionais. Sobre este fundo, o
Internacionalismo, que caracteriza a época da
Segunda Internacional, surge assim como um
sentimento profundo, mas vago, baseado na
consciência genérica da participação num movimento
universal, que é expressão e intérprete das leis da
evolução histórica.
Quando, no início do século XX, chegou ao fim a
longa depressão econômica e o mundo capitalista
entrou num período de ímpeto e de nova prosperidade,
as esperanças de uma próxima e profunda
transformação da ordem constituída se esfumam cada
vez mais. O conceito do Internacionalismo proletário
reflete a desorientação e revisão de valores que
assaltam o campo socialista: se ele já perdera seu
caráter orginário de teoria e estratégia da revolução
européia, para se transformar em veículo de
circulação das experiências e de discussão da tática,
agora fazia ressaltar seu caráter defensivo,
expressando-se, em sua forma mais sentida,
principalmente como compromisso de luta comum
contra a ameaça da guerra.
Contudo, como observa ainda Andreucci, "os
problemas de uma verdadeira e autêntica 'política
externa da classe operária', estando ligados como
estavam a uma estratégia revolucionária mundial, não
podiam ser resolvidos só no plano da luta contra a
guerra. Era preciso enfrentar ainda as complexas
distinções referentes ao caráter das possíveis guerras
(de defesa, de agressão, coloniais, etc); estavam sem
solução os problemas das nacionalidades que
haveriam de ter depois um peso relevante na
deflagração da Primeira Guerra Mundial; finalmente,
havia contrastes de caráter diverso entre os Estados
que continuavam a complicar o incerto juízo dos
socialistas".
A falta de solução destes problemas foi fundamental
para o desmoronamento da Segunda Internacional
quando da explosão da guerra de 1914, com o
amoldar-se da grande maioria dos partidos socialistas
às opções das classes dominantes dos respectivos
países, em nome da "união sagrada" da nação para a
defesa da pátria e da "paz civil".
Mas o malogro da Segunda Internacional não
significa, nem sequer por um momento, o fracasso do
princípio do Internacionalismo: embora os partidos
socialistas dos países beligerantes se hajam declarado
a favor da guerra, havia dentro deles pequenos grupos
minoritários que não desistiram de denunciar o caráter
imperialista do conflito e de lutar pelo retorno a uma
ação
646
INTERNACIONALISMO
internacional comum do movimento operário; e os
partidos dos países que se mantiveram neutrais não
regatearam esforços para os apoiar. No seio desta
minoria internacionalista havia uma ala mais
intransigente,
representada
sobretudo
pelos
bolcheviques russos, que não se limitava a buscar com
todo o empenho o objetivo da paz imediata, "sem
anexacões nem indenizações", mas afirmava
claramente que não podia haver paz efetiva e
duradoura "a não ser quando o poder de decidir da
vida e da morte dos povos fosse arrancado ao capital",
e que era necessário transformar a guerra imperialista
em guerra civil revolucionária. Desde esse momento,
esta ala intransigente considerou a Segunda
Internacional condenada à morte em virtude do seu
malogro e começou a pensar numa nova
Internacional, capaz de encabeçar o processo
revolucionário que a guerra fará detonar em escala
mundial.
Com o triunfo da revolução de outubro, a convicção
de haver chegado uma nova fase histórica na evolução
das lutas do proletariado e de se tornar necessário
amoldar os seus intrumentos políticos aos objetivos do
poder imediato converte-se em legado de amplos setores
do movimento operário, unida à persuasão de que a
sobrevivência do próprio poder soviético na Rússia
depende da ampliação e consolidação do processo
revolucionário fora das suas fronteiras, antes de tudo
ao menos em alguns dos maiores países capitalistas da
Europa. A Terceira Internacional, ou Internacional
Comunista (Comintern), tem sua origem em 1919,
como expressão organizacional de um projeto
revolucionário julgado realizável em breve tempo e
visto como garantia das conquistas da primeira
revolução proletária já vitoriosa. Portanto, desde o
princípio, a expansão do processo revolucionário e a
defesa do seu primeiro bastião se acham
inseparavelmente unidas na estratégia do "partido
mundial da revolução"; abre-se o caminho a uma
possível divergência entre os interesses da revolução
na Europa e no mundo e os interesses estaduais da
revolução proletária no poder. O princípio da
solidariedade internacional da classe operária de todos
os países, que se baseia no pressuposto da comunidade
de ideais e objetivos dos trabalhadores de todas as
nacionalidades e reconhece, por conseguinte, a
primazia dos interesses gerais do movimento operário
internacional sobre os interesses particulares do
movimento operário de cada um dos países, tem de se
defrontar, pela primeira vez, com uma realidade nova
que há de deixar marcas profundas no
Internacionalismo dos anos vindouros: a condição de
desigualdade entre as classes trabalhadoras de uma
nação onde elas conquistaram — ou pelo menos assim
se presume
— o poder político e econômico, e as de outros
países, oprimidas pelo capitalismo e pelo
imperialismo.
A contradição virtual inerente a esta situação será
sempre resolvida pelo movimento comunista com a
afirmação da total coincidência entre os interesses da
União Soviética e os interesses da revolução mundial.
Com efeito, enquanto a Rússia era considerada um
país atrasado, que as circunstâncias guindaram
temporariamente a ocupar o papel de guia do
movimento revolucionário internacional e cuja
consolidação é impensável fora de um processo
revolucionário vitorioso em escala européia, a política
do Estado soviético tende, pelo menos em teoria, a
subordinar-se às exigências da causa do proletariado
internacional e a regular suas preferências baseada nas
necessidades e perspectivas da revolução mundial. À
medida, porém, que a vaga revolucionária do pósguerra se extingue sem que o proletariado conquiste o
poder em nenhum país fora a Rússia, o problema da
revolução mundial começa a aparecer sob uma nova
luz: a partir de 1921, com a constatação, por um lado,
dos êxitos surpreendentes do regime soviético e, por
outro, do perdurável atraso da revolução na Europa, a
Internacional Comunista considera sua tarefa essencial
a defesa e fortalecimento do primeiro Estado
proletário.
É este o quadro em que se delineia e se afirma com
força crescente, depois de 1924, a teoria elaborada por
Stalin e Bucharin da "construção do socialismo num
só país", teoria que, por um lado, exprime a confiança
da vitoriosa revolução russa em si mesma, deixando de
a tornar dependente da ajuda externa, e, por outro,
atribui ao movimento revolucionário dos outros países
um papel mais correspondente à sua força efetiva,
num momento em que a conquista do poder parece
relegada a um futuro longínquo e indeterminado: deixa
entender aos partidos comunistas que, embora não
consigam fazer ruir a velha ordem social em pouco
tempo, não faltarão contudo à sua missão histórica se
continuarem a apresentar-se como um baluarte contra
os desígnios imperialistas de restauração do
capitalismo na Rússia e a agir como sentinelas da
primeira experiência da construção do socialismo.
Em 1929, o horizonte internacional torna-se ainda
mais propício à consolidação desta visão
acentuadamente unilateral do processo revolucionário
e do Internacionalismo. Depois da explosão da crise
econômica mundial, a idéia da construção do
socialismo num só país se impõe cada vez mais como
teoria global da revolução mundial. O contraste
clamoroso entre os dois sistemas, o capitalismo em
ruína e o socialismo em construção, é considerado
como a mola profunda da
INTERNACIONALISMO
revolução internacional; existe a tendência cada vez
mais acentuada de atribuir à mera existência da URSS
o papel de catalisador e de detonador das contradições
do mundo capitalista e a função da radicalização
política das massas exploradas.
A nova orientação tomada pela política externa
soviética após a vitória de Hitler na Alemanha não só
permitiu ao movimento comunista identificar sem
equívocos o fascismo como o "inimigo principal", mas
também injetou novo rigor nas veias do
Internacionalismo, que então incorporou o
antifascismo ao seu conteúdo, acolhendo-o como um
dos seus valores fundamentais. Há com esta renovação
um certo retorno aos motivos do Internacionalismo
democrático das décadas de meados do século XIX: à
união de todas as forças do progresso contra a reação,
por um lado, e, por outro, à aceitabilidade ou mesmo
aprovação das guerras "justas", neste caso, das guerras
de defesa contra a agressão nazi-fascista. Mas, em
confronto com esse passado longínquo, existe agora
um fato novo e decisivo, o da proclamação de uma
total coincidência entre a política do movimento
operário internacional e a política externa da URSS.
Uma coincidência que é elemento de força, já que,
graças a ela, o movimento operário é chamado pela
primeira vez a agir como fator ativo nas relações
políticas internacionais, numa luta pela paz que não é
apenas uma generosa opção moral, mas se apóia num
bloco de Estados; uma coincidência, porém, que é
também um limite, porque vincula as escolhas dos
diversos segmentos do "partido mundial da
revolução" às bruscas mudanças da razão de Estado
da URSS.
O pacto germano-soviético de agosto de 1939 põe
efetivamente em relevo o absurdo político de uma tese
segundo a qual uma determinada situação
internacional há de provocar as mesmas reações em
partidos e movimentos de diversíssimas posições e
torna mais clara a necessidade de estabelecer uma
relação diferenciada, e não de mera e total
identificação, entre a política externa do Estado
soviético e a atitude da Internacional. Quando depois,
em conseqüência da agressão nazista contra a URSS e
do lançamento das palavras de ordem da luta contra o
fascismo e da defesa das liberdades democráticas, os
partidos comunistas assumem uma função de primeiro
plano nos movimentos de resistência e conseguem
atingir uma dimensão de massa antes geralmente
desconhecida, começa a esboçar-se uma nova dialética
que, impondo as suas leis objetivas à margem e acima
dos esquemas da unidade monolítica, brota do
desenvolvimento e avanço do próprio movimento.
Nesse sentido, a resolução que decreta a dissolução do
Comintern (15 de maio de 1943), ao afirmar que "a
forma de
647
organização e de união dos trabalhadores escolhida
pelo Primeiro Congresso da Internacional comunista
ia sendo progressivamente superada, à medida que o
movimento crescia e aumentava a complexidade dos
seus problemas, podendo chegar ao ponto de se
converter até num obstáculo ao fortalecimento ulterior
dos partidos operários nacionais", não representa
apenas um álibi para as opções da diplomacia soviética
— que pretende tranqüilizar os aliados com a renúncia
solene a exportar a revolução socialista para outros
países —, mas registra também uma situação real e
fixa as premissas de uma nova fase do
desenvolvimento da solidariedade revolucionária
internacional.
De resto, o conceito de Internacionalismo
encarnado pelo Comintern jamais alcançou o
monopólio absoluto dentro do movimento operário,
mesmo nos anos que intermedeiam entre as duas
guerras. A guerra e a Revolução Russa assinalam antes
uma mudança significativa na história desse
movimento, provocando uma cisão profunda e
permanente nas suas fileiras, cisão que se reflete
também na oposição entre organizações internacionais,
políticas e sindicais, divididas por acirrada polêmica.
A par da Internacional Comunista, continua a
existir uma Internacional operária socialista que, fruto
por sua vez de um processo de laboriosa reunificação
das diversas correntes da social-democracia, proclamase herdeira da Segunda Internacional, sendo dela,
porém, pouco mais que uma pálida imagem. Não
chega nunca a representar uma expressão coletiva e
organizada do movimento socialista internacional;
constitui uma federação, com vínculos internos ainda
mais lábeis que os que caracterizavam a sua
antecedente, abrangendo apenas partidos socialistas
da Europa ocidental, cuja confiança incondicional nos
métodos da democracia parlamentar reflete. Se a sua
influência se faz sentir ainda, de forma indireta, sobre
milhões de trabalhadores, sua vida orgânica limita-se à
de uma tribuna de livre discussão e de intercâmbio de
experiências entre os partidos filiados.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o
Internacionalismo operário já não dá mais lugar a
formas de organização permanentes, comparáveis, em
sua influência e em sua tendência à universalidade, às
formas do passado. Sobrevive a Quarta Internacional,
já fundada em 1938 por iniciativa dos grupos
trotskistas, que se basearam na presunção de que a
Terceira Internacional, então dominada pela
burocracia staliniana, estava definitivamente perdida
para uma autêntica ação revolucionária: mas acha-se
dilacerada por cisões internas e a sua influência real é
assaz limitada.
648
INTERNACIONALISMO
Reconstituiu-se em 1951 a Internacional socialista,
sob o signo de uma declarada preferência a favor do
"mundo livre" ocidental: mas seu papel não
ultrapassou nunca o de um organismo de consulta dos
maiores partidos social-democráticos da Europa,
sendo estranha aos seus fins. qualquer função de
coordenação sistemática da ação desses partidos.
No
movimento
comunista,
o
velho
Internacionalismo, caracterizado por uma adesão total
e sem críticas ao modelo soviético, conseguiu
sobreviver, por muito tempo, dentro das condições de
tensão criadas pela guerra fria, à dissolução formal do
Comintern. Em 1947, ele cristalizou até numa forma
particular de organização o Ofício de Informação
(Cominform), constituído pelos partidos comunistas
no poder nas democracias populares e pelos partidos
comunistas italiano e francês, cujos temas de
propaganda ideológica (divisão do mundo em dois
campos, luta pela paz) apresentam elementos que
prolongam o conceito de Internacionalismo que o
Comintern fez seu. Mas, ao abrir caminho a um
processo de diversificação dentro do movimento
comunista, a crise do stalinismo pôs imediatamente
termo a tal experiência. Por outro lado, o surgir de um
conflito cada vez mais grave entre a URSS e a China
— ambas sustentam suas razões em nome do conceito
"marxista-leninista" do Internacionalismo — infligiu
um golpe muito sério às esperanças de construir um
universo socialista, de onde desapareçam as discórdias
entre as nações. O Internacionalismo proletário
demonstra ainda, sem dúvida, uma grande vitalidade
como sentimento de solidariedade para com os povos
oprimidos, em luta pela sua libertação (o exemplo do
Vietnã e, antes dele, o da Argélia, com seu grande
peso na mobilização da opinião pública,
principalmente entre as massas juvenis, são a tal
respeito significativos). Como realidade orgânica
operante, capaz de exercer uma influência direta nas
relações políticas internacionais, ele parece hoje
fragmentado em numerosas correntes, por vezes
complementares mas muito mais amiúde contrapostas,
que tendem a definir seus objetivos e tarefas em
âmbito meramente regional (v. EUROCOMUNISMO).
À par do Internacionalismo proletário, tiveram
algum sucesso no decorrer deste século, com uma
força de expansão incomparavelmente menor e
estruturas orgânicas muito mais fracas, quando não
absolutamente inexistentes, outras formas de
Internacionalismo, que possuem fontes ideais diversas
das do marxismo e a este às vezes contrapostas.
Deixamos aqui de mencionar, até mesmo
sumariamente, as tentativas levadas a efeito mais de
uma vez, antes e depois da Segunda Guerra Mundial,
sob o impulso de diversos movimentos
fascistas nacionais, para a criação de internacionais
fascistas.
São menos conhecidas as vicissitudes da chamada
"Internacional branca", cuja Constituição foi
calorosamente recomendada, desde 1920, por Luigi
Sturzo como meio de coordenação dos vários partidos
de inspiração católica. Em 1925, por iniciativa do
partido democrático popular francês, foi criado um
secretariado permanente. Aderiram a esta organização
belgas, alemães, austríacos e os representantes do
partido popular italiano no exílio. Entre 1925 e 1933,
a "Internacional branca" teve diversos congressos,
mas, apesar das pressões dos delegados italianos,
esgotou seus trabalhos em petições de princípio (a
reforma do Estado e da família), sem tomar uma
posição clara acerca do fascismo, da unidade européia
e das questões políticas internacionais. A involução
autoritária na Alemanha e na Áustria e, mais tarde, a
guerra civil na Espanha provocaram cisões crescentes
entre os partidos de inspiração católica e privaram a
Internacional de qualquer influência. Após a Segunda
Guerra Mundial, organizou-se uma Internacional dos
partidos demo-cristãos, com adesões da Europa
ocidental e da América Latina; mas desenvolveu uma
atividade muito limitada e não influiu de fato na
orientação dos partidos membros.
Em 1947, criou-se também em Oxford uma
Internacional liberal, aderindo a ela os partidos
liberais de 19 países, em sua maioria europeus. Esta
Internacional aprovou uma nova declaração
programática em 1967, onde menciona entre suas
tarefas a de impedir a degeneração totalitária da
democracia de massa e a de se empenhar na formação
progressiva em todo o mundo "de sociedades livres,
compostas de cidadãos esclarecidos e responsáveis,
convenientemente protegidos, mediante o esforço
comum, contra o medo e a necessidade e contra a
opressão tanto interna como externa".
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der Kommunistischen Internationale. Dietz Verlag, Berlin
(Osten) 1974.
[ALDO AGOSTI]
Intransigentismo.
O Intransigentismo católico tem a sua concreta
realização e seu máximo desenvolvimento na Itália a
partir de meados do século XIX, em conseqüência do
processo de formação do Estado unitário a que se
opõe. Tanto é assim que, por longo tempo, nos
próprios estudos sobre o assunto, por "movimento
católico" se entendiam aqueles católicos que, fiéis às
diretrizes pontifícias, se organizaram em defesa da
Igreja contra o Estado liberal. De fato, o movimento
intransigente
649
reflete-se, no plano cultural, numa atitude de oposição
e negação em relação à sociedade moderna nascida da
Revolução Francesa: o Intransigentismo deseja
"combater tudo quanto foi pensado ou feito à margem
da Igreja", desconhece "o que de verdadeiro e bom, o
que de cristão, enfim, se acha também na civilização
moderna" (F. Fonzi) e vê no liberalismo a ideologia
que sintetiza todos os males do século, uma ideologia
contra a qual é mister travar uma luta decisiva.
A primeira manifestação política desta atitude foi a
proposta dirigida aos católicos pelo diretor de
Armonia, dom Giacomo Margotti, em janeiro de
1861, de não participarem nas eleições políticas (Nem
eleitos, nem eleitores). Esta proposta foi acolhida por
diversos ambientes católicos e contou com o favor do
próprio Pio IX, começando assim a ganhar corpo a
posição abstencionista, aspecto que, mais que
qualquer outro, caracterizará este movimento nas
décadas posteriores. A publicação do Syllabus (1864),
as decisões do Concilio Vaticano I e a ocupação de
Roma não fazem senão agravar a situação e tornar o
choque entre o catolicismo e o liberalismo, entre a
Igreja e o Estado cada dia mais duro. Esta oposição
tinha na Civiltà cattolica seu mais agudc instrumento
teórico e na numerosa imprensa católica local uma
caixa de ressonância sumamente eficaz.
Foi precisamente a partir da situação posterior a
1870 que os intransigentes conseguiram realizar o
projeto de uma organização nacional, o que nos anos
precedentes não fora possível concretizar. Não foi por
acaso que, no dia 12 de junho de 1874, na abertura do
congresso católico de Veneza, o barão siciliano Vito
D'ondes Reggio pronunciou a "Declaração de
intransigência" (repetida depois em todos os
congressos), que representa, sem dúvida, a linha
ideológica em que se baseia originalmente a Obra dos
congressos e dos comitês católicos na Itália,
constituída oficialmente no ano seguinte, por ocasião
do segundo congresso em Florença. Fortaleza de uma
organização católica estendida por todo o território, a
Sagrada Penitenciária determinou aos bispos italianos
que perguntavam se era permitido aos católicos
participarem das eleições: "Attentis omnibus
circunstantiis, non expedit". O abstencionismo
intrangigente tinha assim seu código oficial. Ao
mesmo tempo, a não participação no momento das
eleições (excetuavam-se as eleições administrativas
onde, principalmente a partir de 1880, a presença
católica seria cada vez mais forte) robustece ainda mais
a
posição
intransigente
que,
afastando-se
definitivamente das posições legitimistas, se ergue em
defesa do "país real", contraposto ao "país legal".
650
INTRANSIGENTISMO
Para além das motivações que fundamentam tal
posição e dos aspectos meramente religiosos,
estranhos a um estudo específico como este, é de
acentuar como a polêmica intransigente pôs
indubitavelmente a descoberto uma das limitações do
novo Estado unitário italiano, a de que o controle
político da nação inteira estava nas mãos de um
pequeno grupo. Este aspecto assentava no princípio
do individualismo liberal, substrato ideológico do
novo Estado, pelo qual não só não se haviam previsto
associações autônomas (por exemplo, religiosas) em.
relação à construção estatal, como também não' se
dera o conveniente espaço à presença de corpos
sociais que intermediassem entre o indivíduo e o
Estado. Este último aspecto será um dos pontos
centrais dos programas políticos dos católicos nas
décadas seguintes.
Porém, esta crítica do sistema individualista e
burguês "não parece ter atentado de modo algum para
os valores positivos de que a revolução liberal era
também portadora, ancorando, em vez disso, num
sonho absurdo de retorno ao passado, isto é, a um
ideal de relações entre a sociedade religiosa e a
sociedade civil que não ressalvava a necessária
distinção entre as duas esferas, nem estava mais em
consonância com a nova realidade histórica" (P.
Scoppola).
Após uma fase de incerteza ligada aos primeiros
anos do pontificado de Leão XIII, nos meados da
década de 80 se assiste de novo à retomada e
fortalecimento do movimento. Empenhados também
no campo econômico-social, os intransigentes procuram
dar ao movimento uma base de massa, tornando-se,
além do mais, um dos fundamentos da linha políticoreligiosa de Leão XIII relativa à inserção da Igreja na
sociedade civil. A ação social converter-se-á em breve
no aspecto coagulador de novas energias,
especialmente de jovens, principalmente depois da
publicação da encíclica Rerum novarum (15 de maio
de 1891), mas não conseguirá influir de modo algum
no plano político geral do Intransigentismo, entalado
ainda nas posições de defesa do poder temporal e da
mais estrita aplicação do abstencionismo eleitoral.
No ambiente de crise geral que invade o país na
última década do século XIX, vai-se tornando cada vez
mais clara a oposição existente dentro do movimento
entre o grupo que dirige a Obra dos Congressos e os
"jovens". A aceitação por parte destes dos princípios
fundamentais da doutrina social católica não significa,
no entanto, que eles não captassem algumas das
limitações da ação social proposta pela organização
intransigente e não atentassem da necessidade de
juntar ao discurso da "democracia social" o da
"democracia política". Em 1896, o grupo milanês que
se organizara em torno do Osservatore cattolico e do
seu
diretor, dom Davide Albertario (durante anos uma das
figuras
mais
representativas
da
polêmica
intransigente), lançou a palavra de ordem:
"preparação na abstenção", cuja intenção era a de
superar a atitude passiva que até então tinha
caracterizado os católicos.
Ainda em setembro de 1897, no décimo quinto
congresso realizado em Milão, o movimento católico
se apresenta sob uma aparência unitária e sumamente
"rica". Este congresso assinala, de fato, sob o aspecto
organizacional, o ponto de chegada do caminho
encetado há mais de vinte anos pela Obra dos
Congressos e representa uma verdadeira e autêntica
demonstração da força de que dispõe o movimento.
Do ponto de vista do conteúdo, o congresso de Milão
marca também "o apogeu do Intransigentismo" (G. De
Rosa). As diferenças entre os católicos surgirão de
repente após os acontecimentos da primavera de 1898
que, além de representarem o auge da crise política e
social do fim do século, constituem um divisor de
águas na história do movimento católico intransigente.
A maioria se identifica com as posições da direção,
todas elas tendentes a demonstrar a impossibilidade de
harmonizar o catolicismo com os "vermelhos
subversivos" e a tornar mais rápido o caminho de
aproximação do Estado liberal. Em vez disso, os
jovens democratas cristãos vão buscar à própria
repressão do Governo o estímulo e a força para insistir
numa ação "política" mais incisiva, baseada na
aspiração a uma reconquista da sociedade para a
Igreja pela ação social — característica do pontificado
de Leão XIII —, que não se deixe influenciar, porém,
pelo Intransigentismo de tipo temporalista.
A conseqüente saída ao ar livre dos democratas
cristãos (com a apresentação de uma linha alternativa
em relação às posições oficiais do catolicismo, uma
linha que, mediante um partido político, acossasse o
Estado liberal no campo democrático-constitucional e
fosse voz das massas populares, eliminando as atitudes
paternalistas) levou a nova cúpula eclesiástica, sob a
guia de Pio X desde agosto de 1903, a dissolver, em
julho de 1904, a Obra dos Congressos. Não é só o fim
do Intransigentismo no plano organizacional; ele
desaparece também sob o aspecto político-religioso
com a decisão, depois da primeira greve geral, de
fazer com que os católicos participem das eleições
políticas, apoiando algumas candidaturas liberais.
No momento em que os católicos entram, se bem
que parcialmente e em posição subalterna, na vida
político-eleitoral, encerra-se uma fase da história do
movimento católico, na medida em que, entre outras
coisas, com o início de uma
ISOLACIONISMO
política clérico-moderada, estabelece-se de novo a
conciliação entre o catolicismo transigente e o
intransigente.
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contemporaneo, ao cuidado de F. LEVI, U. LEVRA e N.
TRANFAGLIA, La Nuova Italia, Firenze 1978, vol. II.
[CAMILLOBREZZI]
Isolacionismo.
O Isolacionismo não é simplesmente uma linha de
política externa que visa evitar compromissos políticos
externos, nem é uma situação passiva de isolamento em
que um Estado venha a se encontrar em decorrência
de alianças a ele contrárias criadas por outros Estados.
O Isolacionismo não deve também ser confundido
com o neutralismo, que visa preservar a
independência e a integridade de uma nação
circundada por vizinhos mais potentes (por exemplo, a
Suíça), nem, até certo ponto, com uma política de
isolamento cultural, como a da China imperial. O
Isolacionismo tem aspectos teóricos que o tornam
quase uma ideologia. Consiste numa atitude política
que um Estado toma voluntariamente e que não
decorre de necessidades impostas por uma situação de
perigo. Baseia-se, na prática, numa situação de
isolamento geográfico, que, apesar de não ser a
matriz, é, porém, seu pré-requisito fundamental. O
isolamento geográfico, assegurando a integridade dos
confins naturais, consente considerar como menos
urgentes os compromissos no exterior e, assim, avaliar
as suas conseqüências. Os principais casos de
Isolacionismo da época
651
moderna são o do Japão, de 1636 a 1868, o dos
Estados Unidos da América e, com algumas reservas,
o da Grã-Bretanha, de 1822 até início do século XX. É
conveniente observar que, em todos estes casos, o
Isolacionismo diz respeito essencialmente à esfera
política. O próprio Japão, que representa o caso de
isolamento político e cultural mais rígido, mantém
relações comerciais com os holandeses. O "esplêndido
isolamento" inglês foi uma linha de ação calculada
tendente a manter a supremacia política britânica sobre
os Estados europeus, fundando-a, não nas constantes
pressões militares ou na intervenção direta em seus
negócios internos, mas na supremacia marítima e
comercial. Totalmente típicos, apesar de suas
diversidades, são os casos do Japão e dos Estados
Unidos; analisaremos este último porque é aquele que
teve maior influência na política européia do século
XX.
Uma análise do Isolacionismo norte-americano
permite distinguir muito bem a trama contraditória de
motivos políticos e econômicos que nele se
compendiam. Como prática política, sua origem há de
encontrar-se na neutralidade buscada, de modo
realista, por George Washington durante as guerras
européias provocadas pela Revolução Francesa, e
teorizada em sua mensagem de despedida (1796) com
base numa suposta estraneidade absoluta entre os
interesses estadunidenses e os interesses das potências
européias. O seu conteúdo teórico deriva, porém, acima
de tudo, da "idéia de missão", surgida no início do
século XIX, como uma verdadeira e autêntica
ideologia nacional, segundo a qual os Estados Unidos
estavam destinados por Deus a mostrar ao mundo que
um povo novo e incorrupto podia viver em liberdade e
justiça. Corolário desta idéia era que só se mantendo
imunes de todo o contato com os corruptos é que os
americanos poderiam continuar eles mesmos.
Semelhante ideologia contradizia, porém, os interesses
dos Estados Unidos, atentos à conquista e colonização
do continente norte-americano e dotados de uma
economia em rapidíssima evolução. O Isolacionismo
da "missão americana" deveu, por isso, ceder a uma
realidade expansionista, sem, no entanto, abandonar
seus traços teóricos originários e defendendo ao
máximo a prática política isolacionista, para não pôr
em perigo um dos fundamentos da identidade
nacional.
Esta contradição, fonte dos mais relevantes traços
de falsa consciência da política norte-americana, é de
notar nas interpretações sucessivamente dadas à
Doutrina Monroe (1823), um documento diplomático
fundamentalmente defensivo com que os Estados
Unidos se opunham a toda ingerência européia nos
assuntos das duas Américas. A interpretação
expansionista da "idéia de
652
ISOLACIONISMO
missão" — entendida como "destino claro" dos
americanos e, conseqüentemente, como direito
absoluto de ocupar a América do Norte —, aplicada à
Doutrina Monroe, levou a arrancar do México vastos
territórios (1846-1848). Depois de 1898, ano em que
os Estados Unidos derrotaram a Espanha e puseram
fim ao seu domínio colonial em Cuba e nas Filipinas,
a Doutrina Monroe serviu para reivindicar uma esfera
de influência exclusiva no Caribe e, portanto, o direito
de intervenção nos assuntos internos dos países
daquela área. As atualizadas teorias sobre a "missão
americana" como missão ativa de defesa do progresso
e da democracia, surgidas nos dois séculos, não
encobrem o fato de que o capitalismo americano,
depois de atingir um alto grau de maturidade interna,
começava a construir uma esfera de influência externa
e se servia, por um lado, da Doutrina Monroe como
de uma arma ofensiva no continente americano e, por
outro, do tradicional Isolacionismo como de uma
arma defensiva em relação às potências européias.
A contradição entre o Isolacionismo, como
ideologia nacional e fenômeno político, e o
expansionismo se manifestou definitivamente após a
Primeira Guerra Mundial, quando os americanos, que
haviam aceitado sua intervenção na guerra como
parte da "missão americana" de defesa dos povos
democráticos contra o ataque de nações reacionárias,
se recusaram a aderir à Sociedade das Nações e se
fecharam numa posição de estrito Isolacionismo
político, mantendo-se assim até a Segunda Guerra
Mundial. Com efeito, ao mesmo tempo, os Estados
Unidos levaram avante uma clara política de
expansão comercial e sobretudo financeira que, nos
anos 20, se traduziu, em virtude da enorme força do
capitalismo americano, no domínio econômico da
Europa, justificado pela tese de que a esfera
econômica é pacífica e civilizadora e, portanto, de
acordo com a "missão americana". O impulso do
imperialismo informal americano, que exerceu uma
influência pesadamente conservadora sobre as
vicissitudes políticas da Europa, e a contradição entre
este papel de domínio e a recusa em assumir uma
liderança política foram, segundo não poucos
historiadores,
causas importantes da desestabilização internacional
da década de 30.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o
Isolacionismo americano está claramente ultrapassado
como fenômeno político, mas a sua influência cultural
continua a sentir-se. O anticomunismo, que é a base
da justificação da liderança ocidental assumida nos
anos 40, inseriu-se de fato na "idéia de missão" como
objetivo primário da vocação liberalizadora e
libertadora dos Estados Unidos, que puderam ver
assim na sua ação no exterior não um envolvimento
no mundo dos interesses internacionais com fins de
uma peculiar política de potência, mas a defesa,
historicamente necessária, do único sistema político e
econômico de valor universal. Conquanto paradoxal,
se pode por isso falar de um neo-isolacionismo
americano depois da Segunda Guerra Mundial, que é
como que uma projeção em escala mundial do
Isolacionismo precedente — do que são um sintoma
os constantes apelos de uma parte da direita norteamericana a uma rígida política militar que permita a
salvaguarda do modelo americano sem cair nos
intrincados compromissos da política internacional.
Todavia, só se pode falar de neo-isolacionismo dentro
de uma análise do imperialismo norte-americano, de
que o neo-isolacionismo constitui a falsa consciência,
e dentro de uma análise das modificações políticas e
culturais internas dos Estados Unidos que nos últimos
vinte anos levaram a pôr de lado toda a "idéia de
missão".
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della dottrina di Monroe (1955), Il Mulino. Bologna
1960.
[TIZIANO BONAZZI]
Jacobinismo.
Embora um dicionário de língua francesa de largo
uso como o Robert lembre que o sinônimo moderno
do termo jacobino é o de "republicano ardente e
intransigente", não há dúvida de que, no vocabulário
político destes dois últimos séculos, a esfera semântica
de tal termo, embora não em contraste formal com a
definição do Robert, se ampliou notavelmente,
acumulando equivalências muitas vezes contraditórias
entre si, como resulta, entre outras, da definição
pejorativa em relação à do Robert, que apresenta o
Grand Larousse: "opinião democrática exaltada ou
sectária".
É conveniente distinguir, em primeiro lugar, entre o
significado restrito deste termo, que se encontra nos
historiadores, e seu significado amplo, habitual, no
vocabulário mais propriamente político, conquanto,
como é por demais óbvio, o processo de osmose entre
os dois significados tenha atingido um ponto tal que é
impossível isolar em sua pureza um do outro. O que o
termo ganhou em extensão não o perdeu, de fato, em
intensidade. Como quer que seja, para os
historiadores,
o
Jacobinismo
se
resume
essencialmente à década de 1789-1799. Os jacobinos
são os ardorosos representantes do terceiro Estado
que, relacionados com a Assembléia Nacional, se
reuniram primeiramente sob o nome de club breton e,
depois, de Societé des amis de la Constitution: a partir
de outubro-novembro de 1789, congregavam-se no
convento dos dominicanos (ou jacobins) da rue SaintHonoré, sendo apelidados pelos adversários de
"jacobinos". O Jacobinismo tem de comum com o
marxismo o fato curioso de haver recebido o seu nome
dos adversários.
Em 1791, deu-se uma importante cisão e os
moderados fundaram o clube dos "folhantes". Desde
então, o Jacobinismo tornou-se afoitamente
republicano, até se transformar no grupo político de
maior
intransigência
dentro
do
processo
revolucionário iniciado em 1789. Os jacobinos
"históricos" foram indiscutivelmente os protagonistas
da vida política francesa e até mesmo européia, nos
treze meses que vão de junho de 1793 a
julho de 1794, isto é, da destituição dos chefes
girondinos, imposta pelo comitê insurrecional, ao
golpe moderado de 9 do Termidor, que terminou com
a eliminação física de Robespierre e de Saint-Just.
É a partir deste período que a influência política e
ideológica dos jacobinos na Revolução Francesa
começa a transcender esse importante contexto
histórico, a assumir importância paradigmática e a
tornar-se o modelo de um possível comportamento
político, para além da simples instigação, embora
enorme, suscitada nos democratas e revolucionários
europeus contemporâneos, desejosos de "fazer como
na França" e de destruir, com todo o vigor possível, os
vínculos feudais. Antes de mais nada, o club, sob a
influência do modelo inglês, começa a apresentar-se
como formação partidária de segura eficiência, dotada
de hierarquias locais de base territorial (da região ao
bairro), criadas às vezes pela ação e propaganda de
um militante enviado do centro à periferia. Começa a
delinear-se, numa situação de radicalização do choque
revolucionário, o primeiro embrião do partido político
moderno (de quadros e de massas), cuja consolidação
ulterior será uma das causas determinantes do durável
sucesso do Jacobinismo.
O segundo aspecto da importância paradigmática do
Jacobinismo concerne à atenção dada pelo organismo
político à realidade física das classes sociais: paralela à
presença social dos sans-culottes, dá-se, com efeito, a
ascensão política dos jacobinos, que, graças também à
propaganda ativa contra os "monopolizadores" e
parasitas de toda a espécie, se configura igualmente
como momento hegemônico de todas as categorias
produtivas. Um fato importante: no momento em que a
política se profissionaliza por meio de uma rede de
militantes revolucionários economicamente não
produtivos, eis que surge a ambição, difundida graças
a uma ideologia puritana e austera (o Jacobinismo
apresenta-se como ditadura da virtude), de sanar os
intoleráveis dilaceramentos da sociedade, civil. Deste
duplo peso de tal paradigma nasce um outro que serve
também de rigoroso suporte
654
JACOBINISMO
ideológico: o de o Jacobinismo se apresentar como
poder revolucionário radical, capaz de se auto-investir
de uma missão palingenética, ao mesmo tempo
nacional-patriótica, ética e social.
Compreende-se, pois, por que é que o termo
Jacobinismo continuou a ser usado até muito depois
da década de 1789-1799 e a alimentar não só as
paixões políticas, mas também a reflexão teórica. Ele
envolve a estrutura da forma partidária, a relação
entre o partido e a nação e a relação entre o partido e
os segmentos vivos da sociedade, que depois se
chamarão comumente classes sociais. Envolve
também o ponto essencial da moderna categoria do
político, isto é, a relação entre o partido e o poder
estatal, entre as condições da organização, da
administração e do Governo: a tudo isso se juntam os
temas da democracia e da ditadura e a eterna questão
dos meios e dos fins, ou seja, das modalidades e
oportunidades do exercício do poder (v. TERROR).
político que foi o terror jacobino. O marxismo,
dispositivo teórico-prático mais tardio, reduzirá o
significado universal do Jacobinismo ao significado
mais restrito de revolução burguesa, de revolução
incompleta, a completar pelos métodos eficazes do
próprio Jacobinismo. Na França, marxismo e
Jacobinismo, sob as vestes do guesdismo e do
blanquismo, tenderão com freqüência a identificar-se.
O malogro da Comuna de Paris fará, por um lado, com
que se reavaliem as origens nacional-jacobinas do
movimento insurrecional e, por outro, com que se sinta
saudades de uma maior força centralizadora por parte
dos revolucionários. A própria Segunda Internacional,
organismo da social-democracia de todos os países,
será fundada em Paris, em 14 de julho de 1889, por
ocasião do centenário da grande revolução. O
movimento operário sofrerá cada vez mais o fascínio
da revolução inacabada e traída pela burguesia
conservadora, vindo o Jacobinismo a converter-se num
Isso sem considerar que o significativo episódio da modelo político-revolucionário capaz de se adaptar até
conjuração dos iguais de Babeuf, infeliz apêndice do às necessidades do proletariado. Lenin havia de definir
Jacobinismo e, ao mesmo tempo, primeiro núcleo de o revolucionário social-democrático como um perfeito
agitação comunista, introduz no debate político a jacobino. Trotski e Rosa de Luxemburg se oporiam,
questão da permanência da organização revolucionária nos primeiros anos deste século, ao bolchevismo
e das possibilidades de insurreição num período leninista, interpretando o Jacobinismo como uma
marcado por uma conjuntura desfavorável: daí o duplo estrutura política não alheia ao caráter burguês da
problema da conspiração e da clandestinidade, dois revolução de 1789.
O juízo político sobre o Jacobinismo condicionará
fatores que não poderão deixar de acentuar a
tendência da formação partidária a adotar uma depois as principais interpretações históricas da
da
Revolução
Francesa.
A
que
estrutura centralizada e coesa, além de cautelosa, com natureza
relação às infiltrações mesmo ideológicas. O problema convencionalmente podemos chamar liberal, vê no
Jacobinismo
um
deslizamento
do
processo
de
histórico do Jacobinismo insere-se também na análise
dos mecanismos da revolução. O Jacobinismo e o ano democratização, uma espécie de desvio autoritárioda sua hegemonia política, 1793, são, na realidade, plebeu dentro de uma dinâmica já iniciada no Ancien
sinônimos de uma espécie de salto de qualidade na Régime, uma dinâmica capaz de conduzir o mundo
dinâmica do processo revolucionário, de radicalização moderno ao Estado de direito e às instituições livres.
e extremização do choque. Da análise deste fenômeno A interpretação que chamaremos democrática vê no
saíram diversas categorias interpretativas, históricas e Jacobinismo um momento de ruptura, necessariamente
políticas, ao mesmo tempo, todas elas carregadas de violento, contra o mundo feudal da monarquia
"passionalidade" ideológica, tais como a revolução reacionária: nesta interpretação, os jacobinos tornam-se
permanente, a ditadura revolucionária, o terror do heróis trágicos, como certos heróis antigos, porquanto
Estado revolucionário, ou ainda a autonomização do encarnam as necessidades da história e as dores do
fator político em relação à sociedade civil, a origem da parto da nova civilização democrática. A interpretação
democracia totalitária e o desvio no sentido da marxista ortodoxa vê no Jacobinismo o momento mais
centralização ditatorial do processo de modernização avançado da revolução burguesa, um momento que se
enquadra nos limites sociais dessa revolução, mas que
política e de desenvolvimento liberal-democrático.
pode oferecer ao futuro proletariado o modelo político
Entre 1843-1844, Karl Marx verá no período
jacobino uma tentativa da vida política tendente a finalmente encontrado (partido, ditadura, revolução
permanente, estado revolucionário) da organização de
sufocar seu pressuposto, a sociedade civil. A
continuidade da revolução levará, porém, à restauração classe e da revolução socialista. A interpretação
libertária, enfim, vê no Jacobinismo uma classe
e a revolução permanente se transformará nas guerras
permanentes de Napoleão, culminância lógica daquela política peculiar que, em nome de ideais universais,
usurpa e
autonomia radical do
JURISDICIONALISMO
expropria
autoritariamente
um
movimento
revolucionário,
que
nascera
genuína
e
espontaneamente do povo.
BIBLIOGRAFIA. AUT. VÁR.. La pensée socialiste
devam la Révolution Française, Société des Études
Robespierristes. Paris 1966; Id., La Rivoluzione
Francese. ao cuidado de L. GUERCI, Zanichelli.
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mito della Rivoluzione Francese. ao cuidado de M.
TERNI, Il Saggiatore, Milano 1980; Actes du colloque
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Robespierristes, Paris 1980; A. VON BORCKE, Die
Ursprung des Bolschewismus. Die jakobinische
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KROPOTKIN, La grande Rivoluzione 1789-1793 (1909),
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democrazia totalitaria (1952), Il Mulino. Bologna
1967; A. DE TOCQUEVILLE, L'antico regime e la
rivoluzione (1856), Rizzoli. Milano 1981.
655
entre o pontífice e as autoridades eclesiásticas do
território estadual; 3.°) revisão da legitimidade das
sentenças da autoridade eclesiástica; 4.°) legislação
restritiva, ou até mesmo a abolição, das ordens
religiosas; 5.º) restrição à aquisição e uso da
propriedade eclesiástica (leis sobre a mão-morta); 6.°)
alto domínio sobre o patrimônio eclesiástico
(contribuições, administração da receita sede vacante
— o chamado ius regaliae —, confisco); 7.°)
ingerência na nomeação dos bispos e, em geral, na
concessão de ofícios e benefícios eclesiásticos, tanto
negativa (ius exclusivae) como positiva, mediante
proposta ou nomeação.
O sistema jurisdicionalista é um sistema
intermediário entre o da TEOCRACIA (v.), onde a Igreja
absorve o Estado, e o do CESAROPAPISMO (V.), onde é
o Estado que absorve a Igreja. Pressupõe a distinção e
correlação dos dois poderes, contrapondo-se por isso
também ao SEPARATISMO (V.). Por sua natureza
intermediária, é suscetível de inúmeras gradações.
Outro dos seus pressupostos, se não estritamente
jurídico pelo menos político-moral, é o de que o
Estado que pratica o Jurisdicionalismo há de professar
a mesma religião da Igreja sobre a qual exerce o seu
poder (Igreja de Estado) e proteger uma e outra. O
sistema
jurisdicionalista
pertence,
portanto,
essencialmente ao passado. Os dois séculos em que
mais floresceu foram o XVII e o XVIII; na segunda
metade do século XVIII, ele atingiu no império dos
Habsburgos, durante o reinado de José II, sua forma
extrema, o "josefismo". Hoje os resíduos do
Jurisdicionalismo sobrevivem principalmente sob a
forma de cláusulas nas concordatas estipuladas entre
os Estados e o papado.
BIBLIOGRAFIA. - P. GISMONDI, Il nuovo
giurisdizionalismo italiano. Milano 1946; A. C.
JEMOLO. Stato e Chiesa negli scrittori político del
Seicento e del Settecento. Torino 1914; Id-, Il
giansenismo in Italia prima della rivoluzione. Laterza.
Bari 1928.
[LUIGI SALVATORELLI]
[BRUNO BONGIOVANNI]
Jurisdicionalismo.
Jusnaturalismo.
Chama-se assim o sistema de política eclesiástica
em que o Estado exerce uma ingerência mais ou
menos ampla nos atos da autoridade eclesial e na vida
da Igreja, sempre que não se trate de matérias
propriamente dogmáticas. É o chamado Ius circa
sacra. As aplicações deste princípio são naturalmente
variadas. Como principais, podemos indicar; 1.°)
controle da publicação dos atos da autoridade
eclesiástica (decretos, pastorais, bulas pontifícias, etc.)
por meio de um visto chamado placet ou exequatur;
2°) controle das relações
I. VÁRIAS FORMAS DA DOUTRINA DO DIREITO
NATURAL . — O Jusnaturalismo é uma doutrina
segundo a qual existe e pode ser conhecido um
"direito natural" (ius naturale), ou seja, um sistema de
normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema
constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito
positivo). Este direito natural tem validade em si, é
anterior e superior ao direito positivo e, em caso de
conflito, é ele que deve
656
JUSNATURALISMO
prevalecer. O Jusnaturalismo é, por isso, uma doutrina
antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual
só há um direito, o estabelecido pelo Estado, cuja
validade independe de qualquer referência a valores
éticos. Às vezes o termo é reservado, por antonomásia,
a doutrinas que possuem algumas características
específicas comuns, de que se falará a seguir, e que
defenderam as mesmas teses nos séculos XVII e
XVIII: tanto que se gerou a opinião errônea de que a
doutrina do direito natural teve a sua origem apenas
nesse período.
Jusnaturalismo é uma expressão perigosamente
equívoca, porque o seu significado, tanto filosófico
como político, se revela assaz diverso consoante as
várias concepções do direito natural. Na história da
filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três
versões fundamentais, também com suas variantes: a
de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por
esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em
sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres
animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei
ditada pela razão, específica portanto do homem que a
encontra autonomamente dentro de si. São concepções
heterogêneas e, sob certos aspectos, contrastantes,
mesmo que às vezes coexistam em doutrinas
particulares, como as panteísticas, que identificam
divindade, natureza física e razão. Todas partilham,
porém, da idéia comum de um sistema de normas
logicamente anteriores e eticamente superiores às do
Estado, a cujo poder fixam um limite intransponível: as
normas jurídicas e a atividade política dos Estados, das
sociedades e dos indivíduos que se oponham ao direito
natural, qualquer que seja 0 modo como for
concebido, são consideradas pelas doutrinas
jusnaturalistas como ilegítimas, podendo ser
desobedecidas pelos cidadãos.
II.
O
JUSNATURALISMO
ANTIGO
E
MEDIEVAL. — As primeiras manifestações de
lusnaturalismo se dão na antiga Grécia. A figura de
Antígona, na tragédia homônima de Sófocles,
converte-se como que em símbolo disso: ela se recusa a
obedecer às ordens do rei, porque julga que, sendo
ordens da autoridade política, não podem sobrepor-se às
eternas, às dos deuses. A afirmação da existência de um
"justo por natureza" que se contrapõe ao "justo por lei"
é depois completada por vários sofistas, que já desde
então entendem o "justo por natureza" de diversas
maneiras, com conseqüências políticas diferentes. Suas
posições são, aliás, típicas e se repetirão muitas vezes
na história do pensamento jurídico-político: Calicles,
por exemplo, afirma que é justo por natureza quem é
mais difícil de vencer; Hípias, Antifonte
e Alcidamante, considerando, ao invés, como justo o
que é conforme à razão, proclamam a igualdade
natural de todos os homens.
O Jusnaturalismo, presente igualmente em Platão e,
se bem que incidentalmente, também em Aristóteles,
foi elaborado, na cultura grega, principalmente pelos
estóicos, para quem toda a natureza era governada por
uma lei universal racional e imanente; conhecemos a
sua doutrina sobre este ponto sobretudo pela
divulgação que Cícero dela fez em Roma, em páginas
que exerceram uma influência decisiva no pensamento
cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval
e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas modernas.
Numa célebre passagem do De republica, Cícero
defende a existência de uma lei "verdadeira",
conforme à razão, imutável e eterna, que não muda
com os países e com os tempos e que o homem não
pode violar sem renegar a própria natureza humana.
Reproduzido e aceito por um dos padres da Igreja,
Lactâncio, este excerto influenciou poderosamente o
pensamento cristão de cultura latina, que, tal como já
havia feito o de cultura grega no século III, acolheu a
idéia de um direito natural ditado pela razão. Isto,
porém, suscitou entre os padres da Igreja graves
problemas de ordem teológica, tanto pela dificuldade
de explicar a coexistência de uma lei natural com uma
lei revelada, quanto porque a aceitação da existência
de uma lei moral autônoma no homem punha em
causa a necessidade da graça. Estas dificuldades
afligiram sobretudo o pensamento de Santo Agostinho
que, em épocas diferentes, assumiu a tal respeito
atitudes muito diversas.
Também os juristas romanos tinham copiado do
estoicismo a idéia de um direito natural que, no
entanto, não aprofundaram. Um dos maiores, Ulpiano,
desfigurou-a até profundamente ao definir o direito
natural como "aquilo que a natureza ensinou a todos
os seres animados", incluindo explicitamente entre
estes também os irracionais. Isto reduzia o direito
natural, antes que a uma norma de conduta, a um
simples instinto, a uma necessidade de ordem física.
Esta definição é, de resto, extremamente importante,
pois foi adotada com freqüência pelos escritores
medievais Juntamente com a de Cícero, que lhe era,
não obstante, antitética.
Com efeito, é característica do pensamento
medieval
a
aceitação
indiscriminada
do
Jusnaturalismo em todas as suas versões, sem
consciência da recíproca incompatibilidade existente
entre elas. Ao lado da versão naturalista de Ulpiano e
da versão racionalista de Cícero (bem como da que se
devia a uma má interpretação de um tardio diálogo de
Platão, de uma justiça imanente a todo
JUSNATURALISMO
o universo como princípio da sua harmonia), a Idade
Média desenvolveu a doutrina de um direito natural
que se identificava com a lei revelada por Deus a
Moisés e com o Evangelho. Foi obra sobretudo de
Graciano (século XII) e dos seus comentaristas.
Quem pôs fim a esta confusão de idéias foi Santo
Tomás de Aquino (século XIII) que entendeu como
"lei natural" aquela fração da ordem imposta pela
mente de Deus, governador do universo, que se acha
presente na razão do homem: uma norma, portanto,
racional. O Jusnaturalismo de Santo Tomás é de
grande importância histórica, porque constitui,
conquanto nem sempre perfeita e univocamente
entendido, a base do Jusnaturalismo católico. Tornando
tradicional, ele foi e é ainda, embora não tenha sido
nunca declarado pela Igreja matéria de fé, o centro da
doutrina moral e jurídico-política católica. Contudo,
dentro da teologia da tardia Idade Média, ele foi
asperamente impugnado pelas correntes voluntaristas,
que tiveram seu maior expoente em Guilherme de
Occam (século XIV). Para estas correntes, o direito
natural é, sem dúvida, ditado pela razão, mas a razão
não é senão o meio que notifica ao homem a vontade
de Deus, que pode, por conseguinte, modificar o
direito natural a seu arbítrio. Uma tese que foi
reassumida e desenvolvida, no início, pela Reforma
Protestante.
Do Jusnaturalismo de Santo Tomás tem sido muitas
vezes invocado o princípio (que na realidade fora
enunciado por Santo Agostinho e que Santo Tomás
aceitou com fortes limitações e reservas) de que uma
lei positiva, diversa do direito natural e, por isso,
injusta, não é uma verdadeira lei e não obriga. Tal
princípio, muito além das intenções de Santo Tomás,
foi muitas vezes alegado para contestar a validade das
leis do Estado, quando este se opunha à Igreja; e há
juristas e políticos católicos que ainda hoje o invocam.
III. ORIGEM DO JUSNATURALISMO MODERNO. — Na
realidade, a doutrina tomística da lei natural não fazia
senão repetir, embora inserindo-a em moldes
teológicos, a doutrina estóico-ciceroniana da lei
"verdadeira" enquanto racional. E, mesmo que um
lugar-comum historiográfico demasiado difuso afirme
o contrário, vai prevalecendo hoje a opinião de que o
Jusnaturalismo moderno (que assumiu, principalmente
no século XVIII, características acentuadamente laicas
e, no campo político, liberais) procede, em grande
parte, da doutrina estóico-ciceroniana do direito
natural, propagada justamente graças à acolhida que
lhe dispensou o tomismo. Isso se deu sobretudo na
medida em que a corrente tomista se
657
opôs energicamente, a partir do século XIV, mas
principalmente no século XVI, no tempo da Reforma,
ao voluntarismo teológico inspirado nas teses de
Guilherme de Occam, que punha como fonte primeira
de toda norma de conduta e como fonte de
legitimidade da autoridade política a vontade divina e,
conseqüentemente, a Sagrada Escritura. Entre o
voluntarismo e o Jusnaturalismo de inspiração
tomística, os teólogos juristas espanhóis do século XVI
(entre eles, o maior de todos, Francisco Suárez), que
trataram amplamente do direito natural, tentaram, em
geral, uma mediação.
Foi justamente em polêmica com o voluntarismo
das alas extremas do calvinismo que nasceu a doutrina
usualmente
considerada
como
origem
do
Jusnaturalismo moderno, a doutrina do holandês Hugo
Grócio (Huig de Groot), enunciada no De iure belli ac
pacis de 1625. Nesta obra, ao pôr o direito natural
como fundamento de um direito que pudesse ser
reconhecido como válido por todos os povos (aquilo
que virá a ser o direito internacional), Grócio afirmou
que tal direito é ditado pela razão, sendo independente
não só da vontade de Deus como também da sua
própria
existência.
Esta
afirmação,
tornada
famosíssima, surgiu na época iluminista como
revolucionária e precursora da nova cultura laica e
antiteológica, a que o Jusnaturalismo de Grócio teria
aberto o caminho no campo da moral, do direito e da
política. Com efeito, a doutrina de Grócio atuou
historicamente em tal sentido, embora a tese da
independência da lei natural em relação a Deus
repetisse velhas fórmulas escolásticas ligadas à
polêmica entre o Jusnaturalismo racionalista e o
voluntarismo e remontasse nada menos que ao
imperador romano Marco Aurélio, seguidor da
filosofia estóica.
No século XVII, a obra de Grócio, graças também à
sua atualidade como tratado sistemático de direito
internacional e à fama que, como tal, obteve em toda a
Europa, difundiu com grande eficácia a idéia de um
direito "natural", ou seja, "não sobrenatural", um
direito que tinha a sua fonte exclusiva de validade na
sua conformidade com a razão humana. Este conceito
do direito natural influiu profundamente na difusão da
idéia da necessidade de lhe adequar o direito positivo
e a Constituição política dos Estados, bem como a da
legitimidade da desobediência e resistência às leis e
Constituições que não se lhe adaptassem. Aliás, esta
tendência se desenvolveu também à margem da
influência direta do Jusnaturalismo inspirado por
Grócio ou dele derivado e, tendo-se encontrado na
Inglaterra com a antiga tradição constitucionalista do
país (v. CONSTITUCIONALISMO), que já havia
estabelecido limitações ao poder
658
JUSNATURALISMO
real, achou uma forma precisa nos Dois tratados sobre
o Governo de Locke, escritos em torno de 1680 e
publicados em 1690. Além disso, o Jusnaturalismo do
século XVII, tanto quanto o fora para Grócio, foi
também de grande importância, como fundamento
teórico, para o direito internacional: quase todos os
tratados de direito internacional daquele tempo têm
por título: Do direito natural e das gentes.
IV.
CARACTERÍSTICAS
DO
JUSNATURALISMO
MODERNO. — Está muito estendida a opinião de que
entre o Jusnaturalismo antigo-medieval e o
Jusnaturalismo moderno existe uma profunda oposição:
o primeiro constituiria uma teoria do direito natural
como norma objetiva, enquanto que o segundo seria
exclusivamente uma teoria de direitos subjetivos, de
faculdades. Na realidade, entre o Jusnaturalismo
antigo, medieval e moderno não existe qualquer
fratura, existe antes uma substancial continuidade. É
certo, no entanto, que o Jusnaturalismo moderno
ressalta fortemente o aspecto subjetivo do direito
natural, ou seja, os direitos inatos, deixando
obumbrado seu correspondente aspecto objetivo, o da
norma, em que haviam geralmente insistido os
jusnaturalistas antigos e medievais e até o próprio
Grócio. É precisamente devido a esta sua característica
que o Jusnaturalismo moderno, isto é, o dos séculos
XVII e XVIII, molda profundamente as doutrinas
políticas de tendência individualista e liberal, expondo
com firmeza a necessidade do respeito por parte da
autoridade política daqueles que são declarados
direitos inatos do indivíduo.
O próprio Estado é considerado pelo Jusnaturalismo
moderno mais como obra voluntária dos indivíduos do
que como instituição necessária por natureza, que era o
que ensinava a maior parte das doutrinas clássicas e
medievais. Para os jusnaturalistas modernos, os
indivíduos abandonam o Estado de natureza
(diversamente entendido, mas sempre carente de
organização política) e fazem surgir o Estado
politicamente organizado e dotado de autoridade, a fim
de que sejam melhor tutelados e garantidos os seus
direitos naturais; o Estado é legítimo na medida em que
e enquanto cumpre esta função essencial, que lhe foi
delegada mediante pacto estipulado entre os cidadãos
e o soberano (contrato social). Em algumas doutrinas
jusnaturalísticas modernas, o individualismo é levado
até o ponto de se considerar a própria sociedade como
efeito de um contrato entre os indivíduos; o contrato
social se desdobraria assim em dois momentos, pacto
de união e pacto de sujeição. Mas isto é mais raro do
que comumente se crê, porque também entre os
jusnaturalistas modernos o Estado de natureza é
geralmente
representado como uma forma de sociedade; mas uma
sociedade tão precária e incerta que se torna
conveniente sair dessa situação para fazer surgir uma
instituição jurídico-política organizada.
Direitos inatos, estado de natureza e contrato
social, conquanto diversamente entendidos pelos
vários escritores, são os conceitos característicos do
Jusnaturalismo moderno; acham-se de tal modo
presentes em todas as doutrinas do direito natural dos
séculos XVII e XVIII que se pôde falar (na verdade,
impropriamente) de uma "escola do direito natural".
Isto fez com que muitos reservassem a expressão
Jusnaturalismo para as doutrinas deste período
histórico. E foi isto também que criou a opinião
errônea de que a idéia do direito natural nasceu e foi
cultivada apenas a partir
deste
período,
nomeadamente desde Grócio em diante.
Na realidade, as teorias dos diversos jusnaturalistas
dos séculos XVII e XVIII (entre os quais podemos
lembrar, além de Grócio e Locke, Milton, Pufendorf,
Cumberland, Tomás, Barbeyrac, Wolff, Burlamaqui,
Vattel, em posição particular Rousseau e Kant, e
ainda, na primeira fase do seu pensamento, Fichte)
apresentam diferenças por vezes até profundas; os
próprios conceitos de estado de natureza e de contrato
social encontram-se aí configurados de modos
diversos. Os primeiros desses escritores parecem referir
tais conceitos a fatos realmente acontecidos, enquanto
os mais tardios, particularmente Rousseau e Kant, os
apresentam como meras idéias, aptas para explicar
racionalmente a realidade histórico-política e para
estabelecer em relação a esta um termo de referência e
de avaliação: o Estado tem a sua justificação racional
(não histórica) no contrato que lhe é imanente e é
legítimo na medida em que se amolda aos termos
racionais do próprio contrato. Por outras palavras, o
Estado, para ser legítimo, devia mostrar-se como se em
cada momento da sua existência nascesse do contrato.
É certo que o Jusnaturalismo dos séculos XVII e
XVIII pecou gravemente por falta de sentido histórico:
não só ao expor como eventos realmente acontecidos
meras exigências da razão, mas também ao entender
assim o que, na realidade, eram aspirações políticas e
não raro econômicas da sociedade da época. Por outro
lado, foi justamente o havê-las entendido como
exigências racionais absolutas que deu a tais
aspirações a força necessária para que fossem
satisfeitas. O ideal jusnaturalístico do século XVIII
teve assim enormes resultados políticos: foi na
doutrina do direito natural que se inspirou —
conquanto confluíssem também outros elementos
históricos e doutrinais, oriundos sobretudo da tradição
constitucionalista inglesa — a Declaração da
Independência dos
JUSNATURALISMO
Estados Unidos da América (1776), onde se afirma
que todos os homens são possuidores de direitos
inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à
busca da felicidade; e é de caráter genuinamente
jusnaturalista a Declaração dos direitos do homem e
do cidadão (1789) que constituiu um dos primeiros
atos da Revolução Francesa e onde se proclamam
igualmente como "direitos naturais" a liberdade, a
igualdade, a propriedade, etc.
V. O JUSNATURALISMO NO SÉCULO XIX. —
O Jusnaturalismo do século XVIII teve também outros
efeitos concretos importantíssimos. O direito natural
era um modelo perfeito para as legislações positivas. E
isso parecia oferecer um meio de levar a cabo também
neste campo uma reforma que não respondesse só ao
espírito inovador da época, mas satisfizesse igualmente
as exigências práticas e técnicas. A idéia de um sistema
racional e universal de normas (que se harmonizava
com as tendências da cultura iluminista, tendente à
racionalização e à sistematização de todos os aspectos
da realidade e excludente das contribuições da tradição
e da história, bem como de tudo aquilo que não
parecesse ditado pela razão) se opunha de modo
gritante à realidade da vida jurídica daquele tempo.
Esta se caracterizava por um grave estado de
confusão e de incerteza, provocado pela crise do direito
então vigente, o direito chamado "comum", ou seja, o
direito romano justiniano, modificado e complicado
através dos séculos pelo concurso de outras
variadíssimas fontes de normas jurídicas, e agora
praticamente impossível de ser conhecido com
segurança. Sentia-se, por isso, uma forte necessidade de
reformas legislativas que dessem ao direito
principalmente certeza; o Jusnaturalismo, com a sua
teoria de um direito absoluta e universalmente válido,
porque ditado pela razão, era capaz de oferecer as bases
doutrinais para uma reforma racional da legislação.
Parecia que o problema da reforma consistia em
converter em normas positivas as normas do direito
natural, que se haviam de pôr em prática de uma vez
para sempre. Foi este o propósito das codificações que
tiveram lugar (destacamos a prussiana e a francesa pela
sua particular importância) entre o fim do século
XVIII e inícios do XIX, embora, na realidade, os
codificadores levassem em conta, além do direito
natural, o direito vigente, buscando dar a este uma
sistematização racional que o aproximasse do modelo
jusnaturalista.
Com a promulgação dos códigos, principalmente do
napoleônico, o Jusnaturalismo exauria a sua função no
momento mesmo em que celebrava o seu triunfo.
Transposto o direito racional para o
659
código, não se via nem admitia outro direito senão
este. O recurso a princípios ou normas extrínsecos ao
sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo.
Negou-se até, tirante o código austríaco de 1811, que
se pudesse recorrer ao direito natural em caso de
lacuna do ordenamento jurídico positivo: triunfou o
princípio, característico do positivismo jurídico (ou
seja, da posição oposta ao Jusnaturalismo), de que para
qualquer caso se pode encontrar solução dentro do
ordenamento jurídico do Estado.
Nessa mesma época, princípio do século XIX, o
Jusnaturalismo sofreu um poderoso ataque do
historicismo jurídico alemão ("escola histórica do
direito"). Manifestação do romantismo no campo do
direito, o historicismo jurídico alemão reagia assim
contra aquela que tinha sido a manifestação do
iluminismo nesse mesmo campo. Os juristas da escola
histórica acusaram o Jusnaturalismo de abstratismo
intelectualista ao pretender determinar normas e
valores imunes ao devir histórico, eternos e imutáveis.
E acertaram ao indicar como expressões de
abstratismo conceitos como o do estado de natureza,
do contrato social ou mesmo dos direitos inatos, se
entendidos como de fato os entenderam os
jusnaturalistas dos séculos XVII e XVII como
conaturais ao homem, independentemente da sua
situação histórica.
O Jusnaturalismo veio a cair assim, no decorrer do
século XIX, em total descrédito. Sobreviveu apenas
em sua forma católica, baseada na doutrina das leis de
Santo Tomás, mas só no âmbito clerical, com uma
finalidade conservadora e muitas vezes reacionária,
servindo sobretudo de instrumento de contestação da
legitimidade do Estado liberal e constitucional. O
adjetivo jusnaturalista é usado pelos juristas em sentido
depreciativo, para indicar conceitos ou argumentos
estranhos ao campo da juridicidade, não se
entendendo mais por jurídico senão o que concerne ao
direito positivo. De vez em quando se anunciava um
certo "ressurgir" do direito natural; mas eram vozes
isoladas que caíam totalmente no vácuo.
VI.O JUSNATURALISMO CONTEMPORÂNEO.
— O Jusnaturalismo despontou de novo depois da
Segunda Guerra Mundial, como reação ao estatismo dos
regimes totalitários. Em grande parte o fenônemo se
verificou ainda no âmbito da cultura católica; mas
também nos ambientes protestantes alemães e em
medida bastante notável no mundo laico, a idéia do
direito natural se apresentou de novo, sobretudo como
dique e limite ao poder do Estado. É típica a tal
respeito a posição tomada por um dos maiores juristas
alemães, Radbruch.
660
JUSTIÇA
Até mesmo pensadores provenientes do idealismo,
que, pelo seu historicismo básico, sempre se opusera
ao direito natural (Benedetto Croce foi um dos seus
mais duros críticos), se têm ido aproximando do
Jusnaturalismo. Contribuiu para isso o fato de que,
por sua vez, os jusnaturalistas indicaram abandonar a
tese da imutabilidade e eternidade do direito natural e
começaram a reconhecê-lo imanente à história, tal
como o vira, no século XVIII, G. B. Vico, ou então
em devir com ela, tal como o concebera, no século
XIX, Romagnosi. Contudo, este renascimento não é
sem contrastes: energicamente impugnado pelos
sequazes do positivismo jurídico, que vêem nele uma
transposição ilegítima do direito do plano da validade
formal para o do valor, ele é também criticado, sob o
aspecto ético, como doutrina objetivista e
universalista, incompatível com a concepção moderna
da moral. A polêmica a favor ou contra o
Jusnaturalismo se desenrola, porém, com freqüência
em planos diversos, ora no plano da ética, ora no da
política, ora no da ciência jurídica, e os argumentos
dos contendores, não sendo homogêneos, chocam
com o vazio; ou então é uma polêmica viciada, de
ambos os lados, por preconceitos clericais ou
anticlericais, devido à convicção errônea, ainda
alimentada por muitos, de que a idéia do direito
natural é própria da doutrina católica.
A forma em que hoje o Jusnaturalismo parece ainda
poder ter vitalidade é aquela em que ele se aproxima
das doutrinas sociológicas e "realísticas" do direito.
Estas doutrinas rejeitam o positivismo jurídico por
causa do seu formalismo, ou seja, pelo mesmo defeito
que o historicismo romântico e idealista imputava ao
Jusnaturalismo. As doutrinas jurídicas de inspiração
sociológica, que consideravam o direito não em sua
estrutura formal, mas, no seu conteúdo real, foram, já
em
seu
primeiro
esboço,
consideradas
"jusnaturalísticas" pelos seguidores do positivismo
jurídico; mas pensadores positivistas que partiam da
sociologia, como Spencer ou Ardigò, aceitaram
expressamente a idéia do direito natural, e juristas
sociólogos, como o americano R. Pound, têm falado
de "direito natural positivo"; do direito natural se
avizinhava, além disso, a idéia do direito dos que
defendiam, no início deste século, uma "pesquisa livre
do direito" (Ehrlich, Kantorowicz, Gény).
Certo apenas se desvinculado da idéia de um
direito natural metafísico, extra-histórico, eterno e
imutável, o Jusnaturalismo ainda pode ter um lugar na
cultura jurídico-política hodierna. E, na realidade, o
próprio Jusnaturalismo católico, que sempre rejeitou a
variabilidade histórica do direito natural (aliás não
excluída por S. Tomás, em
quem tal Jusnaturalismo se inspira), parece atualmente
inclinado a reconhecer-lhe uma dimensão histórica. Se
concebido historicisticamente, isto é, como expressão
dos ideais jurídicos e políticos sempre novos nascidos
da transformação da sociedade, e em contraste com o
direito positivo (nem sempre em condições de se
adaptar 8 tal transformação por causa da própria
estrutura dos órgãos legislativos), o Jusnaturalismo
tem hoje diante de si uma função, talvez arriscada,
mas que pode ser fecunda. O problema dos fins e dos
limites desta função abrange, todavia, o da relação
entre o juiz e a lei e, conseqüentemente, o das relações
entre o poder legislativo e o poder judiciário, na
medida em que admitir que o juiz possa invocar um
"direito natural", além de poder comprometer a
certeza do direito, atribui aos órgãos judiciários o
poder, em resumo, de criar o direito.
BIBLIOGRAFIA. — N. BOBBIO, Giusnaturalismo e
positivismo giuridico. Comunità, Milano 1965; G.
FASSÒ, La legge della ragione (1964), Il Mulino,
Bologna 1966; Id., Storia della filosofia del diritto
(1966-1970), Il Mulino, Bologna 1968-1972, 3 vols.;
Id., La scienza e la filosofia del diritto. in Storia delle
idee politiche, economiche e sociali. L. Firpo, VI,
UTET, Torino 1979; E. GALÁN Y GUTIERREZ, Jus
naturae (1954), 2 vols., Instituto Editorial Reus,
Madrid 1961; A. PASSERIN D'ENTRÈVES, La dottrina
del diritto naturale (1954), Comunità, Milano 1962; P.
PIOVANI, Giusnaturalismo ed etica moderna. Laterza.
Bari 1961; F. POLLOCK, The history of the law of
nature (1900), reed. in Jurisprudence and legal essays
Macmillan, London 1961; H. ROMMEN, L'eterno
ritorno del diritto naturale (19472), Studium. Roma
1965; J. SAUTER, Die philosophischen Grundlagen des
Naturrechts (1932), Sauer u. Auvermann, Frankfurt/M.
1966; H. WELZEL, Diritto naturale e giustizia
materiale (19622), Giuffrè, Milano 1965.
[GUIDO FASSÒ]
Justiça.
I. UM CONCEITO NORMATIVO. — A Justiça é um fim
social, da mesma forma que a igualdade ou a
liberdade ou a democracia ou o bem-estar. Mas há
uma diferença importante entre o conceito de Justiça e
os outros citados. Igualdade, liberdade, etc, são termos
descritivos. Embora abstratos e teóricos, podem ser
definidos de tal modo que as afirmações em que se
evidenciam são verificáveis, de um modo geral, pelo
simples confronto com a evidência empírica.
Exemplos: "essa lei fiscal é igualitária"; "a liberdade
de expressão é característica dominante nesta
sociedade" (v.
JUSTIÇA
IGUALDADE e LIBERDADE), É verdade que estas
expressões adquiriram, pelo menos nos dias de hoje,
conotações elogiativas e por esse motivo as
proposições
citadas tendem a denotar a
desiderabilidade do estado de coisas que descrevem.
Todavia, isto não é necessariamente verdadeiro. Não é
incoerente dizer que é desigual o pagamento de
salários mais elevados a pessoas especializadas, por
mais desejável que isso possa ser, ou que a liberdade
de expressão deveria ser limitada em benefício da
segurança nacional. A Justiça, de seu lado, é um
conceito normativo e expressões como estas: "esta
ação ou esta norma ou esta instituição é justa" ou "é
de justiça instituírem-se leis fiscais igualitárias"
representam juízos normativos e não afirmações
descritivas. Não deveríamos desviar-nos de uma
expressão platônica como "... estamos buscando a
Justiça, que é um bem muito mais precioso do que
muitas barras de ouro" (Platão, República, I, 336). A
Justiça não é uma coisa e muito menos uma coisa
visível, mesmo em sentido platônico. Deveríamos
evitar o substantivo e usar o adjetivo, para sermos mais
claros. "X é justo" é mais semelhante a "X tem razão"
do que a "X é igualitário". Um racista e seu rival não
podem chegar a um acordo sobre o fato de que a
discriminação racial é na verdade desigual; mas é
provável que se achem em desacordo sobre a
avaliação justa ou injusta desta prática e seu
desacordo se apóia numa atitude moral e não numa
prova empírica.
II. DEFINIÇÃO. — Se a Justiça é um conceito
normativo, surge agora o problema da possibilidade de
a definir em termos descritivos. A Justiça foi
equiparada à legalidade, à imparcialidade, ao
igualitarismo e à retribuição do indivíduo segundo seu
grau, sua habilidade ou sua necessidade, etc. Ora, se
estas definições fossem aceitáveis, poderíamos partir de
premissas baseadas em fatos para chegar a conclusões
normativas. Por exemplo, se "justo" tiver o mesmo
significado de "igual" e, portanto, se uma determinada
norma for igualitária, concluiremos logicamente que
ela também é justa. Logicamente seria por isso
incoerente para qualquer um considerar injustas tanto
as normas igualitárias como as normas não-igualitárias.
Evidentemente que estas definições não são aceitáveis.
Evidentemente que não podemos ir do "ser" para o
"dever ser" e dos fatos para os valores. Todas as
definições de Justiça aqui apresentadas não são, de
fato, definições e sim juízos normativos, sob a capa
verbal de definições, tendo como finalidade geral uma
eficácia retórica. Por esse motivo, afirmações como "a
Justiça significa igualitarismo" devem ser interpretadas,
não como uma definição do conceito de Justiça, mas
como
661
expressão do princípio normativo de que as normas
igualitárias de distribuição são justas e as nãoigualitárias injustas, de onde se concluiria que apenas
as normas do primeiro tipo deveriam ser aprovadas e
aplicadas. A melhor coisa é considerar a Justiça como
noção ética fundamental e não determinada.
III. JUSTIÇA, BEM, DIREITOS. — Existe diferença entre
dizer que uma ação é justa e dizer que uma ação é
moralmente boa? Platão tendia a considerar a Justiça e
a virtude como sinônimos e Aristóteles identificava a
Justiça, em seu sentido mais amplo, como "completa
virtude e como excelência no verdadeiro sentido da
palavra" (Ética, 1.130a). O mesmo Aristóteles,
entretanto, estava mais interessado em considerar o
tipo de Justiça "que é parte da virtude" (ibid.). Neste
sentido mais restrito e mais comum, falamos de justo e
de injusto "quando nos ocupamos não da conduta de
um determinado indivíduo mas do modo como tratamos
classes de indivíduos quando temos que distribuir entre
eles ônus ou benefícios... Justo e injusto são formas
mais específicas de crítica moral do que o são bom e
mau ou moralmente bom e moralmente mau" (Hart, p.
154). A legalização ou a condenação legal do aborto ou
do divórcio ou então o exercício de tais práticas podem
ser considerados moralmente errados, mas dificilmente
poderão ser considerados injustos. "Nem todas as
ações moralmente boas — como são, por exemplo, os
atos de benevolência, os atos de piedade, o pagar o mal
com o bem — podem ser apropriadamente descritas
como justas. Nem todas as ações moralmente más são
injustas. As considerações sobre a prática da Justiça
são apenas uma espécie das considerações sobre a
prática do bem" (Frankena in Brandt, pp. 4 e 5). O
conceito de Justiça está estreitamente ligado não
apenas ao conceito de bem mas ainda ao de direito, no
sentido de direito legal e moral. "As questões de
Justiça surgem quando são apresentadas reivindicações
contrastantes sobre o planejamento de uma atividade e
se admite previamente que cada um defenderá,
enquanto isso lhe for possível, o que ele considera ser
seu direito" (Rawls, p. 172). Desta forma, dizer que
uma dada ação, ou norma, ou política, ou atividade é
justa implica que determinadas pessoas têm direito a
determinados benefícios; e isto, por sua vez, significa
que os outros têm o dever de não interferir, em
primeiro lugar, com determinadas ações, como por
exemplo, acionar as próprias reivindicações.
Isto vem demonstrar, como Hume já observou, que
os problemas relativos à Justiça surgem nas
comunidades porque os homens estão
662
JUSTIÇA
essencialmente interessados em si mesmos e os bens
são essencialmente escassos. "É apenas no egoísmo e
na limitada generosidade dos homens — juntamente
com os escassos recursos que a natureza colocou à
disposição para suas necessidades — que a Justiça
tem suas origens. . . Aumentai a bondade dos homens
ou a abundância da natureza em grau suficiente e
tereis tornado inútil a Justiça, substituindo-a com
virtudes mais nobres e com bênçãos mais preciosas"
(A treatise of human nature, 1739, livro III, Il parte,
2.* seção).
IV. JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E JUSTIÇA REPARADORA. —
Um comportamento justo e injusto pode consistir na
promulgação de normas que estabelecem benefícios
(cargos, promessas, salários) ou ônus (taxas, multas) a
classes de indivíduos; pode consistir também na
aplicação de tais normas em casos particulares, assim
como na observância destas normas. Não apenas as
leis em sentido próprio mas também os costumes e os
princípios éticos podem ser considerados justos e
injustos. Em sentido análogo, podemos falar de pessoa
justa (aquela que tende a agir de uma forma justa), de
normas justas (cuja promulgação constitui uma ação
justa), de instituições ou sistemas sociais justos
(aqueles que se apóiam em normas justas).
De uma maneira geral, adotou-se a distinção
aristotélica entre Justiça distributiva e Justiça
reparadora. A primeira é "aquela que se exterioriza na
distribuição de honras, de bens materiais ou de
qualquer outra coisa divisível entre os que participam
do sistema político" (Ética, 1.930b), enquanto que a
segunda está mais especificamente ligada a situações
em que uma pessoa, ao receber uma ofensa de outra
pessoa, pede a conseqüente reparação. As normas da
Justiça reparadora são ainda subdivididas em normas
de Justiça compensativa e normas de Justiça corretiva.
As primeiras referem-se a negócios privados e
voluntários e têm como escopo reabilitar o equilíbrio
abalado mediante compensação para com a parte
ofendida; a segunda inflige uma punição ao culpado.
A Justiça reparadora pode ser considerada, assim, uma
subclassificação da Justiça distributiva; por ela os
benefícios e os encargos são representados por
recompensas ou punições. Nossa exposição se ocupa
principalmente da Justiça distributiva no sentido mais
restrito do termo. "O objetivo de uma teoria da Justiça
distributiva é fornecer o instrumental mediante o qual
possam ser avaliados os méritos e deméritos relativos
de uma distribuição, efetuando esta 'avaliação' de um
ponto de vista ético ou moral" (Rescher, p. 7).
Examinaremos por isso os vários princípios
morais alternativos
propostos.
de
Justiça
distributiva
já
V. NORMAS VAZIAS. — Os princípios de Justiça
expressos em termos normativos são vazios e
tautológicos. A nível do rigor lógico é impossível, por
exemplo, violar a norma invocada de que é justo dar a
cada um o que é seu. Os que condenam pessoas aos
campos de concentração podem afirmar que estão
dando a elas o que elas merecem, isto é, aquilo que
deveriam receber. Críticas do mesmo tipo podem ser
dirigidas a outras fórmulas como "uma justa
distribuição é aquela em que o valor relativo das
coisas dadas corresponde aos valores das pessoas que
recebem" (Aristóteles, Política, 1.280a). O valor
relativo das coisas pode ser medido muitas vezes em
termos monetários; mas não o valor relativo das
pessoas, que é um problema de avaliação normativa.
Não poderá haver um tratamento injusto se for justo
tratar as pessoas de forma diferente entre si, toda vez
que as diferenças corresponderem a relevantes e não a
arbitrárias distinções das características pessoais.
Alguns acham que as diferenças raciais são relevantes
para fins de direito de voto, o que equivaleria a dizer
que o sufrágio deveria basear-se na raça. Da mesma
forma, qualquer norma imaginável de distribuição
será justa se a Justiça impuser "o dever de fazer aquilo
que outros possam fundadamente pretender e de não
fazer aquilo que constituiria uma lesão para alguém"
(Del Vecchio, cap. V II I) . É precisamente pelo fato de
o conceito de Justiça ser normativo que os princípios
de Justiça devem ser expressos em termos descritivos.
VI. JUSTIÇA FORMAL. — "Uma vez que aquele que
viola a lei é, como vimos, injusto e aquele que respeita
a lei é justo, é evidente que todas as ações legítimas
são em certo sentido justas pois que 'legítimo' é o que
o poder legislativo definiu como tal e nós chamamos
'justo' a todo o procedimento legislativo particular"
(Aristóteles, Ética, 1.129b). As ações legítimas são
ações justas no sentido restrito de que elas se adequam
a um certo sistema preexistente de lei positiva. Dado
um determinado sistema deste tipo, uma ação é justa
quando é exigida ou permitida pelas normas, e injusta,
se proibida pelas mesmas. Este é o princípio da
legalidade ou da Justiça formal e abstrata (Perelman,
p. 26). Embora esteja expresso em termos descritivos,
tal princípio é quase tão vazio de significado quanto as
fórmulas citadas no § V. Dizemos "quase" porque
proíbe aos cidadãos desobedecerem às normas
substantivas em vigor no momento. Além disso exige
dos que aplicam as normas (juizes, por exemplo) que
JUSTIÇA
procedam de maneira imparcial. Assim, um juiz para
chegar a uma decisão formalmente justa deveria "tratar
os casos semelhantes de modo semelhante e os casos
diferentes de modo diferente", mas apenas no sentido
de que ele deveria ter em conta aquelas semelhanças e
aquelas diferenças dentre as características pessoais
que a própria lei indica especificamente como
relevantes. Se ele for influenciado por preferências
pessoais ou corrompido por presentes, seu veredito
será injusto. Se todos os cidadãos têm direito a voto,
seria injusto impedir um cidadão de cor de votar.
Dentro de um sistema que limita o direito de voto
apenas a cidadãos brancos, a mesma ação seria legal e
portanto formalmente justa e seria ilegal e injusto
permitir que um negro votasse. A Justiça formal
exclui a arbitrariedade e exige a previsão não apenas
nas decisões judiciárias mas também no exercício da
autoridade política: "Governo de leis e não de
homens". As próprias normas jurídicas podem ser
justas ou injustas em sentido formal. O único critério
capaz de as distinguir é o de determinar se elas foram
postas em vigor segundo normas de competência do
sistema jurídico em si, como é o caso, por exemplo,
quando se trata de normas constitucionais.
A Justiça formal aplica-se tanto às normas morais
como às jurídicas. Freqüentemente se diz que o
próprio conceito de moralidade implica a idéia de um
comportamento dirigido por normas e nele se origina
o dever moral de decidir qualquer eventualidade mais
na base de um princípio ético geral do que na base de
seu valor. A reciprocidade moral torna-se portanto um
caso particular de imparcialidade moral e as duas são
exemplos de Justiça formal.
Hobbes e outros filósofos usam o conceito de Justiça
exclusivamente em sentido formal, quando não em
sentido inteiramente jurídico. Em decorrência disso, no
estado de natureza sem leis "nada pode ser injusto. As
noções de moralmente bom e de moralmente mau, de
Justiça e injustiça não têm lugar nesse conceito.. .
Portanto, antes que os termos 'justo' e 'injusto'
encontrem nele um lugar, deve haver um certo poder
que obrigue os homens a obedecerem de maneira
uniforme a suas convenções pelo terror, alguma
punição de maior importância do que os benefícios
que poderiam esperar-se da ruptura de seu
compromisso" (Leviathan, caps. 13 e 14). Agir de
maneira justa é respeitar tudo o que as leis mandam,
desde que elas tenham sido promulgadas por um
soberano bastante forte capaz de fazê-las respeitar.
Marx e Engels usam também o conceito de Justiça
em sentido formal — embora não em sentido jurídico.
O fato de que a mais-valia criada pela mão-de-obra
redunde em benefício do
663
capitalista "é um elemento de particular interesse para
o comprador, mas com base nas leis que regulam a
troca das mercadorias isso não representa na verdade
uma injustiça em relação ao vendedor" (neste caso, o
prestador de serviços) (Engels, Anti-Dühring). Em
outras palavras, estas transações são formalmente justas
em termos de normas de distribuição capitalista. Esta é
precisamente a razão que nos leva a pensar que a
solução não está numa mais "justa" distribuição dos
salários mas na abolição de um sistema de produção
que é mais mau do que injusto.
VII. JUSTIÇA SUBSTANCIAL. — O princípio formal de
que casos semelhantes devem ser tratados de forma
semelhante e casos diferentes de forma diferente está
compreendido no próprio conceito de norma. Para se
chegar à enunciação de princípios substanciais da
Justiça, é necessário especificar quais as semelhanças e
quais as diferenças de características pessoais que
deveriam ser tomadas como base de um tratamento
semelhante ou diferenciado. Na verdade, o paradigma
de qualquer norma de distribuição é: um determinado
e especificado benefício (a imunidade, por exemplo)
ou ônus (uma taxa, por exemplo) deve ser dado ou
imposto a uma pessoa que, segundo os casos, possua
ou a quem faltem determinadas características
específicas (raça, cidadania, riqueza, habilidade).
"Com efeito, a investigação histórica da Justiça social
consistiu na ampla tentativa de eliminar determinadas
diferenças como base para uma diferença de
tratamento, e determinadas semelhanças como base
para uma identidade de tratamento" (Frankena in
Brandt, p. 10). Dados estes princípios substanciais,
determinadas ações não contempladas pela lei
positiva, ou porventura ilegais, podem tornar-se justas.
Da mesma maneira, decisões judiciais legais podem
ser tidas como injustas se analisadas de um ponto de
vista moral. Mas mais importante do que tudo é o caso
de normas jurídicas formalmente válidas poderem vir a
ser criticadas como essencialmente injustas.
Algumas filosofias da Justiça destacaram
características pessoais sobre as quais os indivíduos
não possuem nenhuma possibilidade de controle, tanto
no aspecto físico (sexo, idade, raça) como no aspecto
social (posição, religião, riqueza por herança). Segundo
este ponto de vista, é justo que aqueles que já se
encontram em vantagem (por exemplo, os livres, os
aristocratas e os ricos) recebam outros privilégios
(posições de nível mais elevado, maiores direitos
políticos, mais amplas oportunidades profissionais e
educacionais), enquanto que os que estão em
desvantagem (os escravos, os estrangeiros, os pobres,
os
664
JUSTIÇA
pertencentes a uma raça "inferior" ou a uma fé
"errada") deveriam suportar ônus ainda mais pesados
(prestar serviços mais onerosos e pagar impostos mais
elevados, por exemplo). Segundo o ponto de vista
oposto, seria justo atribuir uma compensação para as
desvantagens iniciais. Assim, o princípio "a cada um
segundo suas necessidades" exige que sejam
atribuídos maiores benefícios e encargos menores aos
necessitados (doentes, pobres e desocupados) ou, pelo
menos, que ninguém possa dispor de bens supérfluos
senão quando todos tiverem satisfeito suas
necessidades fundamentais. Desta maneira, os salários
mínimos, o seguro-desemprego, o salário-família, etc,
são considerados princípios fundamentais da Justiça
distributiva.
Os princípios de mérito estabelecem que tipos de
vantagens e quais as posições e os salários
proporcionais ao mérito ou ao valor, o que é calculado
segundo vários critérios: a aptidão inata, por exemplo
(outro fator sobre o qual não existe nenhum tipo de
controle), a aptidão adquirida ou comprovada ou
potencial (que depende parcialmente do esforço
pessoal), ou a quantidade ou a qualidade do trabalho
produzido. Entre outros inumeráveis princípios cito
apenas a afirmação de que um preço justo ou um
salário justo é aquele que se pode ter no mercado
aberto.
Tem-se tentado chegar a standards mais gerais de
Justiça substancial. Enquanto a Justiça formal é, ao
mesmo tempo, igualitária (igual tratamento para
aqueles que têm determinadas características
específicas) e não-igualitária (diversa distribuição para
aqueles que diferem quanto a características
específicas), tanto a igualdade quanto a desigualdade
têm sido invocadas como critérios de justiça
substancial em geral. Platão, por exemplo, defende que
as normas de distribuição, para serem justas, devem ser
desiguais, enquanto que Rousseau defendia os
princípios igualitários da Justiça. A dificuldade está
em que uma certa norma de distribuição pode ser
classificada de igualitária ou não-igualitária apenas em
relação a uma distribuição preexistente; a igualitária
reduz e a não-agualitária aumenta as diferenças entre
as propriedades daqueles a quem é aplicada (v.
IGUALDADE). Estender o voto a todos os proprietários,
por exemplo, foi, em outros tempos, uma
reivindicação igualitária contra os privilégios
hereditários da nobreza. Os títulos de propriedade para
os direitos de voto tornaram-se uma norma nãoigualitária quando a mesma foi invocada em defesa de
interesses adquiridos de propriedade contra os fautores
do sufrágio universal. Bem ao contrário do que parece,
um imposto progressivo sobre rendas é igualitário e um
imposto sobre bens adquiridos é não-igualitário
por atingir mais duramente os compradores mais
pobres.
Hoje, a maior parte das pessoas faria uso de
princípios diferentes de Justiça substancial em setores
diferentes: normas de voto essencialmente igualitárias
(sufrágio universal para todos os cidadãos de uma
certa idade, sem levar em consideração o "mérito"); o
princípio igualitário da igual satisfação de
determinadas necessidades mínimas (o que requer
maiores benefícios para os menos privilegiados); além
deste ponto, existe ainda o princípio essencialmente
não-igualitário dos salários diferenciados por
capacidades e por resultados; estas desigualdades, por
sua vez, seriam parcialmente diminuídas através de
impostos progressivos sobre renda.
VIII. METAÉTICA DA JUSTIÇA. — No caso de uma
discrepância entre Justiça formal e Justiça substancial,
surge a pergunta normativa sobre qual das duas deve
prevalecer. Um juiz é moralmente obrigado a aplicar
de forma justa leis injustas ou deve ser orientado por
princípios de "uma lei superior"? Os cidadãos devem
obedecer a todas as leis positivas ou têm, ao contrário,
o direito moral, ou talvez o dever, de seguir a
"verdadeira" Justiça? Mas quais são, dentre os vários e
contrastantes princípios referidos no § VII, os
verdadeiros? É possível demonstrar que qualquer um
deles e objetivamente válido? A esta pergunta
respondeu afirmativamente a escola cognitivista e
negativamente a escola não-cognitivista, continuando
sem trégua a disputa antiga entre estas duas escolas
metaéticas.
O cognitivismo pode ser por sua vez subdividido
em intuicionismo e naturalismo. Os intuicionistas
afirmam que pode ser demonstrada a verdade de
determinados princípios morais de uma maneira geral
e de Justiça substancial em especial com base na
intuição, quer moral (Platão), quer religiosa (Santo
Agostinho), quer ainda racional (Santo Tomás de
Aquino). A maior parte dos teóricos do direito natural
são intuicionistas do terceiro tipo. Neles encontramos
dois exemplos modernos de intuicionismo aplicado à
justiça. Del Vecchio afirma que "a idéia e o
sentimento" da Justiça (cap. VII) podem ser
"concluídos por dedução a partir de uma consideração
transcendental da própria natureza humana" (cap.
VIII), a qual, por sua vez, implica a "nossa fé na
existência de outras pessoas" (cap. VII) (uma fé que
"brota de uma íntima necessidade do espírito. . . e não
é tema ligado à representação empírica deste ou
daquele indivíduo" [ibid.]. Não foi todavia esclarecido
como é que a consciência de si e dos outros
compreende os princípios substanciais de Justiça como
o de
JUSTIÇA
que todos têm direitos naturais iguais a uma liberdade
igual (cap. XI). O ponto de vista de Rawls, atualmente
muito debatido, poderia ser considerado como um tipo
de intuicionismo de tendência racional, combinado
com um renascimento da teoria do contrato social. Ele
defende que as pessoas auto-interessadas e racionais,
que não têm nenhuma autoridade sobre as outras e a
quem "se pede empenho formal por antecipação, sem
se saber qual será sua condição particular" (p. 183),
estarão obviamente de acordo sobre certos princípios
de "Justiça como um conjunto de três idéias:
liberdade, igualdade e recompensa pelos serviços que
contribuem para o bem comum" (p, 166). Esta teoria
foi amplamente criticada.
Os naturalistas defendem que as normas de Justiça
substancial podem derivar de generalizações
empíricas ou teleológicas (Aristóteles) ou de
definições descritivas de termos éticos (Bentham).
Ora, de uma afirmação como "todos os homens são
iguais" (sob que aspecto?) não se conclui que as
normas igualitárias sejam justas. Por outro lado, se a
Justiça for equiparada por definição ao igualitarismo,
ou seja, se uma determinada norma for igualitária,
conclui-se daí que é justa. Já foi notado, entretanto, no
§ IV, que é errado definir um conceito normativo
como a Justiça mediante um conceito descritivo como o
igualitarismo, ou mediante qualquer outro processo
descritivo.
Alguns não-cognitivistas como Hobbes negam que
"justo" e "injusto" tenham qualquer significado, salvo
quando são usados como sinônimos de "legal" e de
"ilegal" (v. § VI). Todavia, a maior parte dos nãocognitivistas não considera sem significado falar de
leis justas e injustas, mas defende que tais termos de
valor não têm nenhum significado descritivo mas
apenas emotivo. Por conseqüência, a expressão de um
juízo intrínseco de valor como "o sufrágio universal é
justo" exprime o compromisso moral de quem o
declara, mas não faz afirmações de fato e não resulta
por isso numa afirmação nem verdadeira nem falsa.
Hume é o representante clássico deste ponto de vista
metaético e como exemplos modernos podem ser
citados Hans Kelsen e Alf Ross. A questão "se um
determinado direito é justo ou não e em que é que
consiste o elemento essencial da Justiça.., não se pode
responder cientificamente de nenhuma forma... A sua
decisão é um juízo de valor determinado por fatores
emotivos e é portanto de caráter subjetivo... " (H.
Kelsen, 1963). "Uma pessoa que defenda que
determinada norma ou um certo ordenamento — por
exemplo, um sistema de taxação — é injusto, não
oferece nenhuma razão para sua
665
atitude, mas dá-nos uma expressão emotiva a
propósito. A diz: 'Eu sou contrário a esta norma
porque ela é injusta'. O que ele deveria dizer era: 'Esta
norma é injusta porque eu me oponho a ela' " (A.
Ross, 1959, p. 274). Os não-cognitivistas não negam
que uma vez que nós tenhamos adotado um princípio
normativo, por exemplo, "o igualitarismo é justo", a
afirmação "o sufrágio universal é justo" seja
verdadeira, com base empírica no fato de que o
sufrágio universal é igualitário. Podemos na verdade
demonstrar que uma determinada ação ou norma é
justa ou injusta, mas somente em termos de um
determinado standard de Justiça. O não-cognitivismo
é, além disso, compatível com a aplicação de critérios
de racionalidade para a escolha de princípios de
Justiça. Por exemplo, pode-se demonstrar que o dever
de uma pessoa em relação ao igualitarismo como
standard geral de Justiça não é racional se ela já
adotou o princípio de uma escala salarial diferenciada
com base na capacidade. A controvérsia entre as duas
filosofias metaéticas diz respeito somente ao status
cognitivo de princípios intrínsecos de Justiça.
IX. JUSTIÇA E UTILIDADE. — Qualquer que seja a
posição metaética de cada um, deve ser feita uma
escolha entre princípios alternativos de Justiça
substancial. Estes podem ser contrastantes entre si, não
apenas entre eles e a Justiça formal, mas também
podem contrastar com outros fins sociais, como são a
benevolência e o bem-estar. Obrigar um indivíduo
pobre a pagar os prejuízos a um indivíduo rico pode ser
considerado justo, embora moralmente errado. E
contrariamente a John Stuart Mill, que defendia que a
Justiça está "implícita no próprio significado de
utilidade" (Utilitarianism, cap. V), estes dois pontos
de vista estão freqüentemente em contraste entre si e
devem ser avaliados um em relação ao outro. Assim,
enquanto "a idéia da Justiça fundamenta os direitos do
indivíduo, até do indivíduo culpável, contra as
exigências da utilidade.... as considerações de interesse
social geral, em circunstâncias excepcionais, podem
levar a autorizar a detenção de uma pessoa que não
violou nenhuma lei" ou a isolar pessoas atingidas por
doenças contagiosas ou a isentar do serviço militar
homens com capacidades importantes para fins de
guerra (Raphael, p. 168). Da mesma forma, a Justiça
pode exigir que sejam concedidos benefícios especiais
a membros da sociedade menos produtivos, como é o
caso dos velhos e dos inválidos, enquanto que
considerações de utilidade poderiam exigir que os
salários e outros benefícios sejam usados apenas como
incentivos para uma maior produtividade. Até a
própria
666
JUSTIÇA
escravidão, injusta segundo a maior parte dos cânones
da justiça, poderia ser defendida em bases militaristas,
se se pudesse demonstrar que as vantagens dos
patrões de escravos são superiores à infelicidade dos
escravos. Neste caso, todavia, a maior parte das
pessoas tenderia a avaliar a justiça mais do que a
utilidade. Mesmo assim, poucos ousariam chegar a
adotar a máxima geral: fiat justitia, pereat mundus.
BIBLIOGRAFIA, — B. BARRY. A liberal theory of
justice. Oxford University Press. Oxford 1973; Social
justice, ao cuidado de R. B. BRANDT, Prentice Hall,
Englewood Cliffs 1962; Reading rawls. ao cuidado de
N. DANIELS, Basic Books, New York 1975; G. DEL
VECCHIO, La gius-
tizia. Studium, Bologna 1924; Somos VI: Justice, ao
cuidado de C. J. FRIEDRICH e J. W. CHAPMAN,
Atherton, New York 1963; H. L. A. HART, Il concetto
di diritto (1961), Einaudi, Torino 1965; H. KELSEN,
General theory of law and justice, Harvard University
Press. Cambridge Mass. 1946; J. R. LUCAS, On justice,
Oxford University Press. Oxford 1980; F E.
OPPENHEIM, Ética e filosofia política (1968), Il Mulino,
Bologna 1971; C. PERELMAN. Justice et raison, Presses
Universitaires de Bruxelles 1963; D. D. RAPHAEL,
Problems of polítical philosophy, Macmillan, London
1970; J. RAWLS, A theory of justice, Harvard
University Press. Cambridge Mass. 1971; N. RESCHER.
Distributive justice, Bobbs Merrill, Indianopolis 1966;
A. Ross, On law and justice. University of California
Press. Berkeley 1959.
[FELIX E. OPPENHEIM]
Laborismo.
I. ACERCA DO TERMO. — Labourism (Laborismo)
origina-se obviamente de labour (trabalho). O sufixo
denota uma orientação política bem como uma
orientação ideológica. Considerando o segundo ponto
de vista, é significativo o fato de tal sufixo estar ligado
a um termo genérico, como labour, sublinhando com
certeza a natureza classista do movimento, deixando,
porém, o termo na indefinição ideológica. O socialismo
inglês permaneceu sempre numa posição minoritária,
sectária até, quer pelo sucesso alcançado pelas
associações sindicais, estimuladas sem dúvida
também pelos agitadores socialistas, quer pela
tradição do século XIX que postulava uma maneira
específica de selecionar os chefes — através de uma
pluralidade de instituições radicais e não-conformistas
—, enfatizando suas capacidades operativas e
organizacionais, quer pela forte tradição operária
gerada pela precoce unidade da classe e pela rígida
hierarquização da sociedade. Conseqüentemente, o
sufixo em apreço serve para definir com maior
coerência as instâncias políticas do mundo do trabalho.
O termo, como tal, aparece na segunda metade do
século XIX, conjugado com liberal, para designar a
orientação de alguns chefes sindicais que apoiavam
explicitamente o partido liberal (os lib-labs). De fato, o
termo se manifesta singularmente idôneo para
sublinhar a natureza específica de um movimento, que
conseguiu sua afirmação principalmente como
movimento sindical e cujas primeiras instâncias
políticas tiveram apenas a característica de um grupo
de pressão. O encontro entre o "trabalho" e a grande
tradição radical da "inteligência" inglesa foi ocasional,
esporádico e cheio de equívocos: veio a ser, mais
tarde, um encontro entre o trabalho e o mundo das
profissões, encontro que se configurará no século XX
como especialização sociológica, se confrontado com a
sociologia tradicional e intelectualizante, tipicamente
filha da tradição whig e liberal. O fato desta
"inteligência" ter
combatido e vencido algumas de suas mais
importantes batalhas em defesa dos direitos civis e da
reforma do Estado, antes do sucesso institucional do
movimento operário, revelou-se um resultado de
extrema
importância
na
consolidação
do
parlamentarismo inglês, isto é, de sua acomodação à
sociedade industrial.
O problema da formação de uma classe política
representativa do movimento operário há de ser
relacionado com este crescimento organizacional e
institucional do movimento sindical e, ao mesmo
tempo, com as diversas situações particulares de uma
política municipalista orientada, precocemente, para
soluções de cunho coletivista. Não é sem razão que a
mais original formulação do socialismo inglês tenha
sido a da Sociedade Fabiana, que defendia um
"socialismo gás e água", isto é, uma gestão coletivista
dos serviços locais, que não se identificou com
clareza, antes da guerra mundial, com o movimento
político do trabalho. Por outro lado, um outro grupo
socialista importante, defensor da representação
política independente do trabalho, isto é, o
Independem Labour Party (I.L.P.), foi um produto
típico do Norte industrializado e não conformista:
estava presente, aqui, uma forte tradição reavivadora,
que não oferecia, com certeza, as condições mais
idôneas para a definição de uma sólida plataforma
ideológica. O terceiro grupo socialista de relevo, a
Socialist Democratic Federation (S.D.F.), foi um
movimento londrino que se prendeu ao marxismo e,
logo, logo, separou-se do movimento político
principal, ou pelo menos destinado ao sucesso, para se
isolar numa posição tipicamente sectária.
II. NASCIMENTO DO PARTIDO E SUA EVOLUÇÃO. — O
partido laborista britânico nasceu formalmente como
"Comitê Representativo do Trabalho", após a decisão
tomada em 1899 pelo congresso dos sindicatos,
juntamente com as organizações acima citadas, de
criar um organismo eleitoral e parlamentar. O
nascimento do partido configura-se, pois, como um
típico caso de origem "externa" ao Parlamento e de
dependência rígida
668
LABORISMO
em relação aos sindicatos, dependência esta que nunca
iria desaparecer, O crescimento do partido, por sinal
muito difícil, deu-se numa dúplice direção: de um lado
em direção às Trade Unions, com o objetivo de afastálas progressivamente da tradicional lealdade ao
liberalismo, e, do outro lado, em direção ao mesmo
partido liberal, com a finalidade de conseguir para os
candidatos do trabalho, nos distritos eleitorais,
confrontações
diretas
com
os
candidatos
conservadores. Tais fatos, naturalmente, esvaziavam
duas das mais significativas instâncias do socialismo
político do continente: a coerência e a fidelidade
ideológicas e o espírito de não-comprometimento
oficial. Na realidade, antes da guerra mundial, o novo
partido não conseguiu mais que meio milhão de votos;
em 1922, porém, após a desastrada "eleição em cáqui"
de 1918, os votos alcançaram a casa dos 4 milhões e
meio e o labour party tornou-se a oposição de sua
majestade. Os filiados às unions, de menos de 1
milhão em 1886, foram além dos 2 milhões na
passagem do século e alcançaram os 4 milhões antes
de 1914; após a guerra, os filiados passaram os oito
milhões. Evidenciam-se, a esta altura, dois fatos: em
primeiro lugar, não houve crescimento paralelo entre
um e outro fenômeno; em segundo lugar, a guerra
atuou, com certeza, em ambos os casos como
elemento decisivo de transformação. De qualquer
forma, são os dados sobre os sindicatos que expressam
mais diretamente a dinâmica do movimento social. A
generalização do movimento sindical implicou a
existência de novas fórmulas organizacionais, diferentes
maneiras de atuação política, ascensão de novos chefes
operários: em suma, o aumento constante da
conflitualidade social. Do unionismo de profissão,
passava-se ao unionismo generalizado: não mais apenas
os artesãos, mas, também, os trabalhadores
semiqualificados e até os trabalhadores sem
qualificação estavam se tornando protagonistas do
movimento. Por último, as transformações industriais,
sobretudo na indústria mecânica, estimularam
sobremaneira a militância dos trabalhadores
qualificados, até então tidos como privilegiados.
Não provocou admiração, pois, o fato de, no
imediato após-guerra, se ter levantado contra um
partido político parlamentar, fraco e confuso, uma
linha de ação violenta por parte da indústria, ação que
fracassará de forma gritante na famosa "Sexta-Feira
Negra" de 1921 e, mais tarde, por ocasião da greve
geral de 1926. Configurava-se a clássica situação das
promessas feitas em tempo de guerra e, depois, não
cumpridas. Em seguida, a depressão acabou com as
esperanças dos operários e então o que apareceu foi,
principalmente,
o drama dos mineiros, um corpo organizado com mais
de 1 milhão de trabalhadores.
Mais tarde, a crise econômica aumentou os
sofrimentos dos trabalhadores com desemprego em
massa, testemunha das contradições do sistema
capitalista que iria transformar a consultação eleitoral
de 1945 num importante test da memória coletiva da
nação inglesa.
O partido laborista já tinha usufruído, por duas
vezes, do poder, mesmo numa posição minoritária: em
1924 e em 1929-1931, quando sofreu dramático
trauma pela "traição" de seus chefes, em modo
especial de Ramsay MacDonaId. que passou a chefiar
um Governo de coalizão nacional.
Partido constitucional, engajado, porém, a partir de
1918 numa tentativa de transformação socialista da
sociedade, o partido laborista se achava inteiramente
carente de uma filosofia política satisfatória, de uma
estratégia, de uma ideologia de Governo, e acabava
ficando totalmente impotente perante o desemprego
em massa. A lição foi assimilada na década seguinte
pelas primeiras experiências de planificação européia,
pelo New Deal de Roosevelt e pelos ensinamentos de
Hobson e Keynes. O partido, nascido como federação
de sindicatos e corpos políticos, caiu, na década em
apreço, nas mãos de poderosos chefes sindicais, como
Bevin e Citrine. Consumava-se, entretanto, a ruptura no
interior do I.L.P.. enquanto estava amadurecendo a
estruturação das circunstâncias políticas, no próprio
partido, que conseguiram alcançar representatividade
na Executiva, até então dominada pelos chefes de
sindicatos e pelos membros do Parlamento.
III. O SEGUNDO PÓS-GUERRA. — No trágico
ano de 1940, formou-se o Governo de coalizão
Churchill-Attlee. Em seguida, a vitória de 1945 deu
início ao período do qüinqüênio criativo: as
nacionalizações, o Serviço Médico Nacional, a
continuidade do sistema fiscal redistributivo imposto
no período da guerra, a lei de Seguro Nacional
baseada no famoso Relatório Beveridge. O partido que
iniciou sua gestão do poder em 1945 configurava-se,
na realidade, bem diferente do que tinha sido
anteriormente. A maioria parlamentar fora claríssima e
os eleitos pertenciam a grupos sociais bem diferentes:
a representação operária tinha deixado espaços e lugar
para a representação dos profissionais liberais —
advogados,
médicos,
professores,
jornalistas,
universitários — e o controle político voltara às mãos
do partido parlamentar, que conseguiu restabelecer sua
independência em relação ao poderoso Conselho Geral
das Trade Unions. Por um lado,
LABORISMO
portanto, o partido atuava como ponto de
convergência do movimento progressista, centro de
encontro das múltiplas correntes históricas do
pensamento social inglês, o que R. Titmus chamou a
Welfare Traditions; por outro lado, reafirmava um
princípio fundamental da tradição constitucional
inglesa, o da independência total do partido
parlamentar.
Embora o processo da evolução histórica possa dar
impressão de que nada aconteceu além de uma
simples substituição de protagonistas — do partido
liberal para o partido laborista —, a própria estrutura
do partido vitorioso indica claramente que o que
houve não foi uma simples troca de poder entre
agremiações.
No que diz respeito à organização do partido
laborista inglês, cumpre salientar que até o ano de
1927 os filiados aos sindicatos tornavam-se,
automaticamente, membros do partido, quando não se
manifestavam abertamente contrários a esta filiação
partidária (cláusula do contracting out), e parte de
suas contribuições sindicais era repassada para o
partido. A cláusula em questão foi suprimida até o ano
de 1946 e novamente incluída após esta data. A
conseqüência
foi
a
constatação
de
que
aproximadamente uma terça parte dos filiados aos
sindicatos não se sente profunda nem autenticamente
ligada ao partido, isto é, não manifesta uma adesão
voluntária. Nestes casos, fala-se em adesões coletivas
indiretas. O partido depende dos sindicatos para sua
sustentação financeira e para sua propaganda eleitoral,
que, em muitos casos, ao nível da circunscrição, é
desempenhada e realizada pelos comitês locais dos
sindicatos; além disso, o Trade Unions Congress,
mesmo não de forma monolítica, dá vida a uma
corrente de muita influência no seio do partido que se
liga à sua ala esquerda.
No que se refere à evolução da sociedade,
descobrimos em ato, na Grã-Bretanha, um processo
profundamente sedimentado de crescimento da
democracia, de evolução e crescimento da consciência
social e cívica. Assim aconteceu, ao mesmo tempo,
uma gradual transformação do tipo de formação
política do partido antagonista — o partido
conservador. Uma vez que a luta política é planejada
como se fosse uma competição para ver quem vai
controlar as circunscrições periféricas, de duvidosa
lealdade política, ou pelo controle de grupos sociais
que também oscilam entre uma e outra agremiação —
para isto é considerada relevante a "venda da imagem
pública do líder", e a escolha estratégica do momento
eleitoral favorável —, assim o antagonismo entre os
partidos assume cada vez mais aspectos rituais,
enquanto os conteúdos de sua
669
pregação política tendem a se diferenciar cada vez
menos.
"Paradoxalmente, os acontecimentos do começo dos
anos 80, conquanto ainda fluidos, parecem confirmar
esta tendência. O distanciamento político-ideológico
dos dois partidos, por iniciativa do monetarismo de
M. Thatcher no poder e de W. Benn na oposição,
parece abrir caminho a uma terceira força de centro
que anuncia o fim do bipartidarismo. Desta maneira,
os inovadores experimentam as primeiras derrotas
eleitorais, destinadas a se ampliar, a menos que se
torne dramática a situação internacional".
As novas tendências do radicalismo socialista no
seio do partido laborista (desarmamento unilateral,
abandono do MEC, protecionismo, etc.) não estão
casualmente ligadas a uma luta institucional em que o
propósito tendente a limitar a autonomia do grupo
parlamentar contrasta claramente com a tradição
política inglesa aceita até hoje sem discussão.
IV. UMA AVALIAÇÃO. — Sendo os conservadores ou
os laboristas os gestores do poder, nos últimos vinte
anos parece que apenas uma foi a questão dominante,
a balança de pagamentos. Podemos afirmar que a
experiência laborista inglesa se caracteriza por ter
conseguido moderação na luta política e superação,
talvez precária e não definitiva, do abismo aberto pela
Revolução Industrial, juntamente com a elaboração da
problemática acerca do Estado do bem-estar.
Limitando-nos unicamente a esta caracterização,
precisamos salientar, então, que a originalidade do
Laborismo há de ser procurada fundamentalmente, na
complexa
trama
histórica
aqui
recordada
sumariamente, que teve sua origem no confronto entre
uma grande força social, a classe operária inglesa, e
uma excepcional tradição política como é a do
parlamentarismo inglês. O movimento laborista tem
sido o instrumento desta conciliação fundamental; para
tanto, porém, fez-se necessário que outras tradições,
outras forças — intelectuais e morais — se juntassem
a ele. Vale a pena, contudo, relembrar a existência de
movimentos e partidos laboristas, em outros países de
língua inglesa, "exportados", de uma certa maneira, da
mãe-pátria para a Austrália e para a Nova Zelândia
principalmente (também para o Canadá) e que,
também, podem ser considerados parecidos com o
Laborismo os partidos socialistas escandinavos, todos
intimamente ligados aos sindicatos, com uma ideologia
essencialmente pragmática e agentes da representação e
da integração "positiva" da classe operária nos
respectivos Sistemas políticos.
670
LAICISMO
BIBLIOGRAFIA. - M. BEER. Storia del socialismo britannico
(1940). La Nuova Italia. Firenze 1964: R. MILIBAND. Il
laburismo. Storia di una politica (1963). Ed. Riuniti, Roma
19682; E. GRENDI. L'avvento del laburismo: il movimento operaio
inglese dal 1880 al 1920, Feltrinelli. Milano 1964.
[EDOARDOGRENDI]
Laicismo.
I. DEFINIÇÕES: CULTURA LEIGA E ESTADO LEIGO. — A
distinção entre Igreja docente e povo discente, isto é,
entre o clero e o laicado, exerceu influência constante
na cultura política e nas instituições públicas dos países
católicos; o termo Laicismo, resultado desta distinção,
é usado comumente nos países de língua latina,
enquanto não existe o equivalente na linguagem
política anglo-saxônica, onde a concepção moderna do
Laicismo pode ser definida, aproximadamente, com o
termo secularism.
As diferentes significações do Laicismo reúnem em
si a história das idéias e a história das instituições e
podem ser resumidas nas duas expressões clássicas:
"cultura leiga" e "Estado leigo".
Na primeira expressão, encontramos reunidas as
correntes de pensamento que defendem a emancipação
da filosofia e da moral da religião positiva. A cultura
da Renascença, dando novo valor às ciências naturais
e às atividades terrenas, em lugar de valorizar a
especulação teológica, provocou, a partir do século
XVII, uma gradual separação entre o pensamento
político e os problemas religiosos e favoreceu a
difusão de uma mentalidade leiga, que alcançou sua
plena afirmação no século XVIII, reivindicando a
primazia da razão sobre o mistério. O Laicismo
mergulha, pois, suas raízes no processo de
secularização cultural que cooperou para o
fortalecimento de teorias preexistentes acerca da
natureza secular do Governo.
A cultura leiga deve, em parte, sua origem às
filosofias racionalistas e imanentistas que rejeitam a
verdade revelada, absoluta e definitiva; e, ao contrário,
afirmam a livre busca de verdades relativas, mediante
o exame crítico e o debate. Culturalmente, pois, o
Laicismo mais que uma ideologia é um método; aliás,
pode se autodefinir como um método cujo objetivo é o
desmascaramento de todas as ideologias.
Mais intimamente ligada à linguagem política é a
segunda expressão. Estado leigo, que quer significar o
contrário de Estado confessional, isto é, daquele
Estado que assume, como sua, uma determinada
religião e privilegia seus fiéis em
relação aos crentes de outras religiões e aos não
crentes. É a esta noção de Estado leigo que fazem
referência as correntes políticas que defendem a
autonomia das instituições públicas e da sociedade
civil de toda diretriz emanada do magistério
eclesiástico e de toda interferência exercida por
organizações confessionais; o regime de separação
jurídica entre o Estado e a Igreja; a garantia da
liberdade dos cidadãos perante ambos os poderes.
A teoria do Estado leigo fundamenta-se numa
concepção secular e não sagrada do poder político,
encarado como atividade autônoma no que diz
respeito às confissões religiosas. Estas confissões,
todavia, colocadas no mesmo plano e com igual
liberdade, podem exercer influência política, na
proporção direta de seu peso social. O Estado leigo,
quando corretamente percebido, não professa, pois,
uma ideologia "laicista", se com isto entendemos uma
ideologia irreligiosa ou anti-religiosa.
Assim como, historicamente, o termo leigo tem a
significação de não-clérigo, Laicismo significa o
contrário de CLERICALISMO (V.) e, mais amplamente, de
CONFESSIONALISMO (V.). Uma vez, porém, que o
anticlericalismo não coincide necessariamente com a
irreligiosidade, assim, também, o termo leigo não é
sinônimo de incrédulo; da mesma forma, não podem
ser definidas, propriamente, como leigas as correntes de
radicalismo irreligioso que conduzem ao ateísmo de
Estado. A relação entre temporal e espiritual, entre
norma e fé, não é relação de contraposição, e sim de
autonomia recíproca entre dois momentos distintos do
pensamento e dá atividade humana. Igualmente, a
separação entre Estado e Igreja não implica,
necessariamente, um confronto entre os dois poderes.
Na medida em que garante, a todas as confissões,
liberdade de religião e de culto, sem implantar em
relação às mesmas nem estruturas de privilégios nem
estruturas de controle, o Estado leigo não apenas
salvaguarda a autonomia do poder civil de toda forma
de controle exercido pelo poder religioso, mas, ao
mesmo tempo, defende a autonomia das Igrejas em
suas relações com o poder temporal, que não tem o
direito de impor aos cidadãos profissão alguma de
ortodoxia confessional. A reivindicação da laicidade
do Estado não interessa, apenas, às correntes laicistas
mas, também, às confissões religiosas minoritárias que
encontram, no Estado leigo, as garantias para o
exercício da liberdade religiosa.
Da mesma maneira com que rejeita os regimes
teocráticos ou curiais, onde a Igreja subordina o Estado
a si própria, o Laicismo rejeita os sistemas onde o
Estado subjuga a Igreja ou a reduz a
LAICISMO
um ramo de sua própria estrutura administrativa.
Enfim, visto que não defende somente a separação
política e jurídica entre Estado e Igreja, mas também
os direitos individuais de liberdade em relação a
ambos, o Laicismo se revela incompatível com todo e
qualquer regime que pretenda impor aos cidadãos, não
apenas uma religião de Estado, mas também uma
irreligião de Estado.
II. ORIGENS DA DISTINÇÃO ENTRE OS PODERES NA
TEORIA DAS "DUAS ESPADAS". — Encontramos já no
cristianismo dos primeiros séculos a distinção entre
autoridade espiritual e poder tem poral, isto em
contraposição à unificação pagã das funções
sacerdotais na pessoa do magistrado civil. A
inviolabilidade recíproca das duas jurisdições,
decorrente de assertivas encontradas nos textos
sagrados, é reconhecida, como válida, na Patrística e
plasticamente manifestada, no findar do século V, pelo
pontífice Gelásio I, através da imagem das "duas
espadas" que uma só mão não pode empunhar.
Apresentada, nas suas origens, com a finalidade de
subtrair os eclesiásticos à jurisdição dos tribunais
civis, a teoria das "duas espadas" constituiu-se o ponto
de referência em todas as controvérsias medievais
entre o papado e o império (séculos XI e XII) e entre o
papado e o reino de França (final do século XIII e
início do século XIV). A distinção que se fazia entre
as duas autoridades era bem diferente da moderna
concepção de Igreja e Estado. O pensamento medieval
considerava ambas aspectos diversos de uma
sociedade cristã universal, súdita, ao mesmo tempo, de
duas autoridades que dependiam diretamente de Deus.
Todavia, nos debates contra os papistas, transparece
esporadicamente, mesmo neste período, juntamente
com a tese de que a soberania secular depende
diretamente de Deus, também a tese que iria se afirmar
na Idade Moderna. De acordo com esta segunda tese,
compete à sociedade secular cuidar de seu próprio
Governo sem interferências por parte do clero, ao
qual, na comunidade civil, cabem unicamente tarefas
de instrução e exortação.
III. ACEPÇÕES MODERNAS DA RECÍPROCA AUTONOMIA
ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA. — o conceito moderno de
Laicismo abrange em si não apenas a distinção entre
Estado e Igreja, mas também a concepção da Igreja
como sendo associação voluntária. Estes dois
elementos aparecem no pensamento dos puritanos
ingleses do século XVII, nos escritos de John Milton
sobre a liberdade religiosa e de John Locke sobre a
tolerância.
O princípio segundo o qual "o Estado nada pode
em matéria puramente espiritual, e a Igreja
671
nada pode em matéria temporal" é afirmado por Locke
na Epístola de tolerantia (1689): o poder político não
deve emitir juízos sobre religião, não tendo
competência para fornecer definições em matéria de
fé; do seu lado a Igreja deve manter a própria
autoridade no campo espiritual que lhe é próprio.
Como a finalidade da religião é levar o homem a
alcançar a vida eterna mediante o culto prestado a
Deus, as leis eclesiásticas não devem fazer referência
aos bens terrenos nem apelar para a força, que pertence
unicamente ao magistrado civil; a única força da qual
o poder eclesiástico é legitimamente depositário é a
força da persuasão, que tem por objetivo promover a
livre adesão da consciência individual, e a única
sanção para os que não concordarem é que,
colocando-se contra a Igreja, eles não mais a ela
pertencem.
O enfoque de recíproca autonomia que Locke dá à
relação entre religião e política encontra-se em
sucessivos escritores políticos, que buscaram a
conciliação entre liberalismo e doutrina cristã.
Alexis de Tocqueville, na Democracia na América
(1840), afirma que "as religiões devem saber delimitar
seu próprio campo de ação. Maomé, por exemplo, fez
descer do céu e colocar no Alcorão não apenas
doutrinas religiosas, mas também máximas políticas,
leis civis e penais e teorias científicas. O Evangelho,
ao contrário, fala unicamente das relações dos homens
com Deus e entre si. Somente esta, entre mil razões
mais, seria suficiente para mostrar como a primeira
destas duas religiões não terá condições de longo
domínio em épocas de civilização e de democracia"
(vol. II, parte I, cap. IV).
É importante lembrar que Locke tinha como ponto
de partida a assertiva de que "toda Igreja é ortodoxa
para si e errada ou herege para os outros", e com esta
intuição antecipara-se, em parte, ao moderno
racionalismo, que submete a controle permanente as
verdades definidas pela razão e exclui toda a verdade
absoluta e definitiva. O traço que coloca Laicismo e
liberalismo como tendo comuns alicerces racionalistas
é encontrado, por exemplo, na Storia del liberalismo
europeo de Guido De Ruggiero (1925): "Na ordem
política, tal fato significa que a racionalidade do
Estado liberal não consiste na extensão ilimitada de seu
domínio, e sim na capacidade de impor limites a si
mesmo e impedir que o domínio da pura razão se
transforme no oposto domínio do dogma, e que o
triunfo de uma verdade não feche o caminho ao difícil
e cansativo processo pelo qual a própria verdade é
alcançada".
É fácil compreender, pois, por que os que se
opõem ao Laicismo, rejeitando a teoria do
672
LAICISMO
juízo particular nas coisas da fé, que atribui ao foro
íntimo da consciência individual a solução do
relacionamento difícil entre realidade terrena e
perspectiva ultraterrena, consideram-no um resultado
do individualismo protestante e uma manifestação de
subjetivismo cético. Partindo desta posição, Giovanni
Gentile (Cenesi e struttura della società, 1946)
sustentava que "o espírito leigo é uma fábula"
produzida por um democratismo agnóstico, e que o
Estado, enquanto é "humanidade do homem", deve
conter em si a religião, preocupar-se com a fé do povo
e favorecer o culto religioso nacional.
Do lado oposto, a cultura leiga contemporânea
contrapõe aos dogmatismos a liberdade de religião e a
liberdade de crítica às religiões, visto que as heresias
de hoje podem se tornar as ortodoxias de amanhã.
Pressupõe-se, pois, que nenhuma certeza é indiscutível
e que as únicas certezas racionais são as que surgem
como produto da própria discussão. A definição
sintética desta acepção do Laicismo foi formulada por
Guido Calogero, para quem o Laicismo não é uma
particular filosofia ou ideologia política, mas método
de convivência de todas as filosofias e ideologias
possíveis. O princípio leigo consistiria, assim, nesta
regra básica: "não ter a pretensão de possuir a verdade
mais do que qualquer outro possa ter a pretensão de
possuí-la".
Ainda mais abrangente é a definição do Laicismo
formulada por Nicola Abbagnano, que interpreta o
Laicismo como sendo autonomia recíproca, não apenas
entre o pensamento político e o pensamento religioso,
mas entre todas as atividades humanas. As diferentes
atividades não devem ser subordinadas umas às outras
num relacionamento de dependência hierárquica, nem
podem ser submetidas a finalidades ou interesses que
não lhes são inerentes. As atividades humanas devem
se desenvolver de acordo com suas próprias
finalidades e regras internas. Na acepção de
Abbagnano, o Laicismo corresponde, nas relações
existentes entre as atividades humanas, à liberdade que
deve existir nas relações entre os indivíduos.
e iluministas num primeiro momento, para, em
seguida, tornarem-se idealistas e historicista. tanto é
assim que a Igreja romana acabou reunindo num único
conjunto protestantismo, maçonaria e liberalismo".
Se, com relação a algumas correntes protestantes,
podemos falar, de acordo com Max Weber e Ernst
Troeltsch, em religiões "leigas" ou secularizadas, nos
países católicos o Laicismo do século XIX assumiu
conotações anticlericais e até irreligiosas. A máxima
difusão do Laicismo radical a encontramos na França
(Émile Faguet, L'anticléricalisme, 1906). O
racionalismo cartesiano, o ceticismo de Bayle, o
iluminismo e o enciclopedismo tinham desenvolvido
na cultura francesa uma orientação geral de caráter
antimetafísico. O Laicismo do século XIX teve
influência em grupos culturais e políticos os mais
diversos, abrangendo desde os protestantes liberais até
os católicos galicanos; a polêmica anticonfessional foi
levada adiante principalmente, porém, pelos livres
pensadores ligados à maçonaria. A campagne laïque
chegou às manifestações mais agudas, lá pelo final do
século, com o caso Dreyfus. A literatura anticlerical
conseguiu, neste período, fácil popularidade pela ação,
entre outros, de Émile Zola e Anatole France.
Na Itália, o desenvolvimento do Laicismo político
no século XIX encontra-se intimamente ligado aos
acontecimentos do risorgimento, visto ser o fim do
Governo temporal do papado condição necessária para
a complementação da unificação nacional: o Laicismo
do risorgimento foi, pois, ao mesmo tempo, uma
questão de consciência e uma questão de Estado.
Contra a presença concomitante, na nação católica, de
duas autoridades com referência às quais os cidadãos
teriam que ser duplamente subditi legum e subditi
canonum, o Laicismo do risorgimento sustentou a
distinção entre os dois poderes (Cavour declarou no
Parlamento que estes poderes não poderiam reunir-se
debaixo de uma única autoridade sem gerar "o mais
nojento despotismo") e, mediante a fórmula "livre
Igreja em livre Estado", afirmou a liberdade da Igreja
no Estado e a liberdade do Estado da Igreja.
A direita histórica tinha para com o Estado quase
IV. O LAICISMO POLÍTICO NO SÉCULO XIX. uma fé leiga, chegando a considerá-lo como o
— O Laicismo político do século XIX tem seu antagonista moral da Igreja: o liberalismo deste
epicentro no conflito entre a Igreja católica e os período histórico, profundamente imbuído de valores
movimentos liberais. Na Storia d'Europa nel secolo éticos, era bem diferente do Laicismo, a tendência
XIX (1932), Benedetto Croce definia o contraste entre a radical das décadas seguintes, que Croce criticou como
Igreja de Roma e a "religião da liberdade" como o sendo resultado de tendências cientificistas e
choque entre "duas crenças religiosas opostas", positivistas.
ressaltando que o movimento liberal não encontrou
A definição, em termos jurídicos e judiciários, que
oposição, muito pelo contrário, encontrou apoio por o Estado quis dar ao relacionamento com a
parte das confissões protestantes, "que se haviam
tornado racionalistas
LAICISMO
Igreja, através das Guarentigie (1871), foi rejeitada
pela Igreja que, mesmo diminuindo com o passar do
tempo a polêmica contra o Estado nacional, apenas
em 1929 chegou, com a assinatura dos Pactos
Lateranenses, à conciliação ainda hoje em vigor,
fundamentada no regime de coordenação entre Estado
e Igreja mediante acordo concordatário.
V. DIFUSÃO DOS PRINCÍPIOS DE LAICIDADE. — Em
alguns documentos do Concilio Ecumênico Vaticano
II, principalmente na Constituição pastoral Gaudium
et spes sobre a Igreja no mundo de hoje, encontramos
a afirmação explícita da autonomia dos leigos nos
negócios seculares (Gaudium et spes, 43) e a
aceitação do princípio pelo qual "a comunidade
política e a Igreja são independentes e autônomas
cada uma no próprio campo" (ib., 76).
Em nome da missão religiosa que a ela compete, a
Igreja declara que não se considera presa "a nenhuma
forma particular de civilização humana bem como a
nenhum sistema político, econômico ou social" (ib.,
42).
Por outro lado, a maioria dos Estados reivindica
princípios de laicidade, principalmente no que diz
respeito à liberdade religiosa dos cidadãos: por
exemplo, a Declaração universal dos direitos
humanos, promulgada em 1948 pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, reconhece a cada indivíduo
o direito à liberdade de religião: "tal direito inclui a
liberdade para mudar de religião ou crença, bem
como a liberdade para manifestar, de forma particular
ou em comum, de forma pública ou em privado, sua
religião ou sua crença no ensino, nas práticas, no
culto e na observância dos ritos" (artigo 18).
A Constituição da República italiana (1948)
caracteriza, em seus princípios fundamentais, um
Estado leigo, na medida em que define como
irrelevantes, juridicamente, as convicções religiosas
dos indivíduos (artigo 3.°). define a independência e a
soberania do Estado e da Igreja católica, cada qual na
sua ordem (artigo 7.°) e reconhece a pluralidade das
confissões religiosas, todas com igual liberdade, o
que, todavia, não significa igualdade de todas as
confissões perante a lei (artigo 8,°). Ao mesmo tempo,
a Constituição estabeleceu, porém, que o
relacionamento entre Estado e Igreja continua a ser
regulamentado pelos Pactos Lateranenses, deixando,
com isto, em aberto e sem solução várias questões no
relacionamento entre os dois poderes, principalmente
no que se refere à estrutura da família e da escola que
representam, não apenas na Itália, os aspectos que
mais se evidenciam na proble-
673
mática do Laicismo em sua referência à atividade
política concreta.
VI. LAICISMO E SECULARIZAÇÃO, — A evolução
atual do pensamento leigo desligou-se quase
completamente da tradição anticlerical e, mais ainda,
das tendências irreligiosas que caracterizaram o
Laicismo do século XIX nos países latinos. Talvez
poderíamos afirmar, seguindo Hans Kelsen (I
fondamenti della democrazia, ed. it. 1955), que a
tendência para a tolerância própria do Laicismo se
afirma mais fortemente quando "a convicção religiosa
não é suficientemente forte para se sobrepor à
inclinação política": uma vez, porém, que a
comunidade política abrange também os crentes, o
Laicismo aceita a influência das igrejas na vida
pública, contanto que esta influência seja decorrente
de seu autônomo peso social e não de privilégios
concedidos pelo Estado.
Na sociedade de hoje, o sentido de Laicismo
aproxima-se, sob múltiplos aspectos, ao processo de
SECULARIZAÇÃO (V.), se tomarmos este termo não na
sua significação originária, específica do direito
canônico (onde o termo secularização difere do termo
laicização por significar a volta ao mundo secular,
sem uma renúncia total ao estado religioso), mas na
significação derivada que se espalhou pela Europa, ao
redor de 1880, e que já havia aparecido, algumas
décadas antes, nos escritos de Victor Cousin, em
expressões tais como "sécularisation de l'État" e
"enseignement séculier de la philosophie".
Na literatura sociológica, o termo "secularização" é
usado normalmente para caracterizar o processo de
transição das sociedades patriarcais, rurais e
"fechadas", para a sociedade industrializada, urbana e
profana, onde assistimos a uma redução constante do
peso social da religião organizada, que está perdendo,
cada vez mais, a função de controle social. O
progressiva "dessacralização" da sociedade moderna
descrita por Max Weber (Economia e Società, ed. it.,
1961) traz a solução automática a alguns aspectos
históricos do Laicismo; porém, ao mesmo tempo,
justamente nas sociedades mais secularizadas, como
se fosse para compensar os valores sociais perdidos,
surgem ideologias totalitárias que se caracterizam
como novos atentados à concepção propriamente
leiga da política e da cultura.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., La laicité, P. U. F.,
Paris 1960; G. CALOGERO. Filosofia del dialogo,
Edizioni di Comunità, Milano 1962; A. C. JEMOLO.
Chiesa e Stato in Italia dall'unificazione a Giovanni
XXIII, Einaudi, Torino 1965; H. LUBBE, La
secolarizzazione (1965).
674
LEGALIDADE
Il Mulino, Bologna 1970; L. SALVATORELLI, Chiesa e Stato
dalla rivoluzione francese ad oggi. La Nuova Italia, Firenze
1955; G. WEIL, Storia dell'idea laica in Francia nel sec.
XIX (1929), Laterza, Bari 1937.
[VALERIOZANONE]
Legalidade.
Na linguagem política, entende-se por Legalidade
um atributo e um requisito do poder, daí dizer-se que
um poder é legal ou age legalmente ou tem o timbre
da Legalidade quando é exercido no âmbito ou de
conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos
aceitas. Embora nem sempre se faça distinção, no uso
comum e muitas vezes até no uso técnico, entre
Legalidade e legitimidade, costuma-se falar em
Legalidade quando se trata do exercício do poder e em
legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o
poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra
alicerçada juridicamente; o poder legal é um poder
que está sendo exercido de conformidade com as leis.
O contrário de um poder legítimo é um poder de fato;
o contrário de um poder legal é um poder arbitrário.
Quem detém o poder não o detém nem o exerce
sempre de forma arbitrária, assim como nem sempre
quem exerce o poder arbitrariamente é detentor
unicamente de um poder de fato. Com base nesta
acepção do termo Legalidade, entende-se por
princípio de Legalidade aquele pelo qual todos os
organismos do Estado, isto é, todos os organismos que
exercem poder público, devem atuar no âmbito das
leis, a não ser em casos excepcionais expressamente
preestabelecidos, e pelo fato de já estarem
preestabelecidos, também perfeitamente legais. O
princípio de Legalidade tolera o exercício
discricionário do poder, mas exclui o exercício
arbitrário, entendendo-se por exercício arbitrário todo
ato emitido com base numa análise e num juízo
estritamente pessoal da situação.
Muito embora o princípio de Legalidade seja
considerado como um dos pilares do moderno Estado
constitucional, o chamado Estado de direito, trata-se
de algo antigo tanto quanto a especulação sobre os
princípios da política e sobre as diferentes formas de
Governo. Liga-se ao ideal grego da isonomia, isto é, da
igualdade de todos perante as leis, considerada como a
essência do bom Governo, cujo elogio é proclamado
por Eurípides nas Suplicantes: "Nada é mais inimigo
da cidade do que um tirano, quando, em lugar de
existirem leis gerais, um só homem tem o poder, sendo
ele mesmo e para si próprio o autor das
leis e não existindo, assim, nenhuma igualdade" (vv.
403-05). No De legibus Cícero escreve: "Vós, pois,
compreendeis que o papel do magistrado é governar e
prescrever o que é justo, útil e de conformidade com as
leis [coniuncta cum legibus}. Os magistrados estão
acima do povo da mesma forma que as leis estão acima
dos magistrados; podemos, com razão e propriedade,
afirmar pois que os magistrados são a lei falante e as
leis os magistrados mudos" (III, 1,2). Um dos princípios
fundamentais e constantes da doutrina medieval sobre
o Estado é o da superioridade da lei mesmo com
relação à vontade do príncipe. A mais célebre
formulação deste princípio foi feita por Bracton no De
legibus et consuetudinibus Angliae: "Rex non debet
esse sub homine, sed sub Deo et sub lege, quia lex
facit regem". Desde a antigüidade até nossos dias, um
dos temas que mais aparecem no pensamento político
é a contraposição entre Governo das leis e Governo
dos homens: contraposição acompanhada sempre por
um juízo de valor constante, que considera o primeiro
um Governo bom, o segundo um Governo mau. Onde
governam as leis, temos o reino da justiça; onde
governam os homens, existe o reino do arbítrio. Uma
das características com que mais constantemente é
estigmatizado o Governo tirânico é a de ser Governo
de um homem acima das leis, não das leis acima dos
homens. A "isonomia" dos gregos, a "supremacia da
lei" (rule of law) da tradição inglesa, o "Estado de
direito" (Rechtsstaat) da doutrina alemã do direito
público no século passado refletem, mesmo em
situações históricas muito diferentes, a permanência
do princípio da Legalidade como idéia que define o
bom Governo, mesmo se, de acordo com Max Weber,
somente no Estado moderno podemos encontrar a
concretização plena deste princípio. O Estado
moderno, de fato, está se organizando como uma
grande empresa, assumindo os meios de serviço que
nos Estados anteriores pertenciam, como propriedade
particular, aos que estavam investidos de funções
públicas. Temos aqui, pois, uma forma de poder que
M. Weber chama "legal e racional" e que,
contrariamente à forma do poder tradicional e do poder
carismático, tem sua própria legitimidade no fato de
ser definido por leis e exercido de conformidade com
as leis que a definem. Para caracterizar o poder legal,
também Max Weber recorre à contraposição entre
poder definido por leis e poder pessoal: enquanto na
situação de poder tradicional é a pessoa do senhor que
tem direito à obediência e na situação de poder
carismático a pessoa do chefe, em se tratando de poder
legal o cidadão deve obediência "ao ordenamento
impessoal definido legalmente e aos
LEGITIMIDADE
indivíduos que têm funções de chefia neste
ordenamento, em virtude da Legalidade formal das
prescrições e no âmbito das mesmas" (Economia e
società, trad. it. Milano 1961, I, p. 210).
Como todas as idéias fundamentais da teoria política,
também o princípio de Legalidade não é uma idéia
simples. Podemos distinguir, pelo menos, entre três
significações, de acordo com os diferentes níveis em
que é considerada a relação entre a lei, vista como
norma geral e abstrata, e o poder. O primeiro nível é
caracterizado pela relação entre a lei e a pessoa do
príncipe: neste nível, Governo da lei significa,
conforme a fórmula de Bracton acima citada, que o
príncipe não é mais legibus solutus, conseqüentemente
tem que governar não conforme seu próprio
beneplácito, mas de conformidade com leis a ele
superiores, mesmo não se tratando de leis positivas e
sim consideradas de origem divina ou natural, ou se
tratando das leis fundamentais do país, cuja validade
depende da tradição ou do pacto constitutivo do
Estado. O segundo nível é o da relação entre o
príncipe e seus súditos: neste nível, a idéia do Governo
das leis tem que ser interpretada no sentido de que os
governantes devem exercer o próprio poder
unicamente pela promulgação de leis, e só
excepcionalmente através de ordenações e decretos,
isto é, mediante normas que tenham validade para
todos, e não para grupos particulares ou, o que seria
ainda pior, para indivíduos; normas, enfim, que,
justamente pela sua abrangência geral, tenham como
objetivo o bem comum e não o interesse particular
desta ou daquela categoria de indivíduos. O terceiro
nível é o que diz respeito à aplicação das leis em casos
particulares: neste nível o princípio de Legalidade
consiste em exigir dos juizes que definam as
controvérsias, a eles submetidas para apreciação, não
com base em juízos casuísticos diferenciados, isto é,
conforme os casos específicos, mas com base em
prescrições definidas na forma de normas legislativas. A
expressão tradicional deste aspecto do princípio de
Legalidade é a máxima: "Nullum crimen, nulla poena,
sine lege". Por outro lado, tomando como ponto de
partida a distinção fundamental existente entre o
momento da produção e o momento da aplicação do
direito, podemos afirmar que em relação ao primeiro
momento o princípio de Legalidade exprime a idéia da
produção do direito através de leis, e que em relação ao
segundo momento exprime a idéia da aplicação de
acordo com leis. Quer consideremos os três níveis quer
consideremos os dois momentos, a importância do
princípio de Legalidade consiste em garantir os dois
valores fundamentais cuja concretização forma a
essência do papel do direito, o valor da
675
certeza e o valor da igualdade (formal). A produção
do direito através de leis, isto é, através de normas
gerais e abstratas, possibilita prever as conseqüências
das próprias ações, liberta, pois, da insegurança
proveniente de uma ordem arbitrária: a aplicação do
direito de acordo com leis é a garantia de um
tratamento igual para todos os que pertencem à
categoria definida na lei, liberta, pois. do perigo de
existir um tratamento preferencial ou prejudicial para
este ou aquele indivíduo, este ou aquele grupo, o que
aconteceria num julgamento casuístico.
[NORBERTO BOBBIO]
Legislativo, Processo. — V. Processo Legislativo.
Legitimidade.
I. DEFINIÇÃO GERAL. — Na linguagem comum, o
termo Legitimidade possui dois significados, um
genérico e um específico. No seu significado genérico,
Legitimidade tem, aproximadamente, o sentido de
justiça ou de racionalidade (fala-se na Legitimidade de
uma decisão, de uma atitude, etc). É na linguagem
política que aparece o significado específico. Neste
contexto, o Estado é o ente a que mais se refere o
conceito de Legitimidade. O que nos interessa, aqui, é
a preocupação com o significado específico.
Num primeiro enfoque aproximado, podemos
definir Legitimidade como sendo um atributo do
Estado, que consiste na presença, em uma parcela
significativa da população, de um grau de consenso
capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de
recorrer ao uso da força, a não ser em casos
esporádicos. É por esta razão que todo poder busca
alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido
como legítimo, transformando a obediência em adesão.
A crença na Legitimidade é, pois, o elemento
integrador na relação de poder que se verifica no
âmbito do Estado.
II. OS NÍVEIS DO PROCESSO DE
LEGITIMAÇÃO. — Encarando o Estado sob o
enfoque sociológico e não jurídico, constatamos que o
processo de legitimação não tem como ponto de
referência o Estado no seu conjunto, e sim nos seus
diversos aspectos: a comunidade política, o regime, o
Governo e, não sendo o Estado independente, o Estado
hegemônico a quem o mesmo se acha subordinado.
Conseqüentemente, a legitimação do Estado é o
resultado de um conjunto de variáveis
676
LEGITIMIDADE
que se situam em níveis crescentes, cada uma delas
cooperando, de maneira relativamente independente,
para sua determinação. É, pois, necessário examinar
separadamente as características destas variáveis que
constituem o ponto de referência da crença na
Legitimidade.
a) A comunidade política é o grupo social, com base
territorial, que congrega os indivíduos unidos pela
divisão do trabalho político. Este aspecto do Estado é
objeto da crença na Legitimidade, quando
encontramos na população sentimentos difusos de
identificação com a comunidade política. No Estado
nacional, a crença na Legitimidade é caracterizada,
com maior evidência, por atitudes de fidelidade à
comunidade política e de lealdade nacional.
b) O regime é o conjunto de instituições que
regulam a luta pelo poder e o exercício do poder e o
conjunto dos valores que animam a vida destas
instituições. Os princípios monárquico, democrático,
socialista, fascista, etc, caracterizam alguns tipos de
instituições, e dos valores correspondentes, que se
caracterizam como alicerces da Legitimidade do
regime. A característica fundamental da adesão a um
regime, principalmente quando tem seu fundamento
na crença da legalidade, está no fato de que os
governantes e sua política são aceitos, na medida em
que os aspectos fundamentais do regime são
legitimados, abstraindo das pessoas e das decisões
políticas específicas. A conseqüência é que quem
legitima o regime tem que aceitar também o Governo
que veio a se concretizar e que busca atuar de acordo
com as normas e os valores do regime, mesmo não o
aprovando ou até chegando a lhe fazer oposição bem
como à sua política. Isto depende do fato de que
existe um interesse concreto que une as forças que
aceitam o regime: a sustentação das instituições que
regulam a luta pelo poder. O fundamento desta
convergência de interesses está em que o regime é
assumido como plataforma comum de luta entre os
grupos políticos, visto estes o considerarem como
uma situação que apresenta condições favoráveis para
a manutenção de seu poder, para a conquista do
Governo e para a concretização parcial ou total de seus
objetivos políticos.
c) O Governo é o conjunto dos papéis em que se
concretiza o exercício do poder político. Vimos que
normalmente, isto é, quando a força do Governo
repousa na definição institucional do poder, para ele
ser qualificado como legítimo é suficiente que tenha
se estruturado de conformidade com as normas do
regime e que exerça o poder de acordo com os
mesmos, de tal forma que se achem respeitados
determinados valores
fundamentais da vida política. Todavia pode acontecer
que a pessoa que chefia o Governo seja ela mesma
objeto da crença na Legitimidade. No Estado moderno,
isto acontece quando as instituições políticas se
encontram em crise e os únicos fundamentos da
Legitimidade do poder são a superioridade, o prestígio
e as qualidades pessoais de quem se encontra no
vértice da hierarquia do Estado. Encontra-se, em todos
os regimes, embora em diferentes medidas, uma certa
dose de personalização do poder; como conseqüência
deste fato, os homens nunca permitem que o papel
desenvolvido pelos seus chefes os faça esquecer suas
qualidades pessoais. O que é essencial, porém, para
distinguir o poder legal e o tradicional do poder
pessoal ou carismático (esta célebre tripartição é de
Max Weber) é isto: a Legitimidade do primeiro tipo
de poder tem seu fundamento na crença de que são
legais as normas do regime, estabelecidas
propositalmente e de maneira racional, e que legal
também é o direito de comando dos que detêm o
poder com base nas mesmas normas; a Legitimidade do
segundo tipo assenta no respeito às instituições
consagradas pela tradição e à pessoa ou às pessoas
que detêm o poder, cujo direito de comando é
conferido pela tradição; a Legitimidade do terceiro
tipo tem seus alicerces substancialmente nas
qualidades pessoais do chefe e, somente de forma
secundária, nas instituições. Este tipo de
Legitimidade, pela sua ligação com a pessoa do chefe,
tem existência efêmera, por não resolver o problema
fundamental para a continuidade das instituições
políticas, isto é, o problema da transmissão do poder.
d) Só nos resta examinar o caso do Estado, que, por
não ser independente, não está em condição de
cumprir sua missão primordial de garantir a segurança
dos cidadãos (e até o próprio desenvolvimento
econômico). Não temos, neste caso, um Estado no
sentido pleno da palavra, e sim um país conquistado,
uma colônia, um protetorado ou um satélite de uma
potência imperial ou hegemônica. Uma comunidade
política que se acha nesta situação encontra grandes
dificuldades para despertar a lealdade dos cidadãos
por não ser um centro de decisões autônomas.
Conseqüentemente, sua Legitimidade encontrará suas
bases de apoio, inteira ou parcialmente, na
Legitimidade do sistema hegemônico ou imperial em
que se acha inserida. O ponto de referência da crença
na Legitimidade será, neste caso, inteira ou
parcialmente, a potência hegemônica ou imperial.
III. LEGITIMAÇÃO E CONTESTAÇÃO DA LEGITIMIDADE.
— Os diferentes níveis do processo de
LEGITIMIDADE
legitimação determinam os elementos que se
caracterizam como ponto de referência obrigatório
para a orientação de indivíduos e grupos, no contexto
político. Analisando, sob este enfoque, a ação de
grupos e indivíduos, podemos discriminar dois tipos
básicos de comportamento. Quando o fundamento e os
fins do poder são percebidos como compatíveis ou de
acordo com o próprio sistema de crenças e quando o
agir é orientado para a manutenção dos aspectos
básicos da vida política, o comportamento de
indivíduos e grupos pode ser definido como
legitimação. Quando, ao contrário, o Estado é
percebido, na sua estrutura e nos seus fins, como
estando em contradição com o próprio sistema de
crenças, e se este julgamento negativo se transformar
numa ação que busque modificar os aspectos básicos
da vida política, então este comportamento poderá ser
definido como contestação da Legitimidade.
O comportamento de legitimação não se aplica
somente às forças que sustentam o Governo, mas
também às que a ele se opõem, na medida em que não
têm como finalidade a mudança também do regime ou
comunidade política. A aceitação das "regras do
jogo", isto é, das normas que servem de sustentação
ao regime, implica não apenas, como já foi salientado,
a aceitação do Governo e de suas ordens, mas também
a legítima aspiração, para a oposição, de se
transformar em Governo.
A diferença entre oposição ao Governo e
contestação da Legitimidade corresponde, num certo
sentido, à existente entre política reformista e política
revolucionária. O primeiro tipo de luta busca alcançar
mudanças, mantendo de pé as estruturas políticas
existentes, combate o Governo, mas não combate as
estruturas que condicionam sua ação e, enfim, propõe
uma diferente maneira para a gestão do sistema
estabelecido. O segundo tipo de luta se dirige contra a
ordem constituída, tendo como objetivo a modificação
substancial de alguns aspectos fundamentais; não
combate apenas o Governo, mas também o sistema de
Governo, isto é, as estruturas que ele exprime.
A esta altura, estamos já examinando o
comportamento de contestação da Legitimidade.
Precisamos, neste campo, distinguir entre duas
atitudes: a de revolta e a revolucionária. A atitude de
revolta se limita à simples negação, à rejeição abstrata
da realidade social, sem determinar historicamente a
própria
negação
e
a
própria
rejeição.
Consequentemente, não consegue captar o movimento
histórico da sociedade, nem perceber objetivos
concretos de luta, e acaba aprisionando-se numa
realidade que não consegue alterar. A atitude
revolucionária produz, ao
677
contrário, uma negação, historicamente determinada,
da realidade social. Seu grande problema é sempre o
de encontrar formas concretas de luta, nascidas do
movimento histórico real, que possibilitem realizar as
transformações possíveis da sociedade. Isto significa
que a ação revolucionária não terá nunca o objetivo de
modificar radicalmente a sociedade, e sim buscará a
derrubada das instituições políticas que dificultam seu
desenvolvimento e a criação de novas instituições
capazes de libertar as tendências amadurecidas na
sociedade para formas mais elevadas de convivência.
No momento de escolher um método legal ou ilegal
para a realização dos objetivos revolucionários, este
problema é abordado como algo a ser resolvido nas
diferentes fases da luta, sempre em função da
utilidade e eficácia de cada ação para a consecução
dos objetivos. A estratégia escolhida precisa estar de
acordo com as circunstâncias históricas em que a luta
acontece, circunstâncias estas que não podem ser
objeto de escolha.
Observe-se, finalmente, que a contestação da
Legitimidade pode ter uma conotação tanto de
esquerda quanto de direita. São disso um exemplo as
oposições fascista e nazista aos regimes democráticos
na Itália e na França, e também a oposição
nacionalista contra o movimento de unificação
européia.
IV. ESTRUTURA POLÍTICA E SOCIAL, CRENÇA NA
LEGITIMIDADE E IDEOLOGIA. — A influência exercida
pelo consenso dos membros de uma comunidade
política na legitimação do Estado, seja ele qual for,
mesmo o mais democrático, não tem, de maneira
alguma, sempre o mesmo peso. O povo não é um
somatório abstrato de indivíduos, cada qual
participando diretamente com igual fatia de poder no
controle do Governo e no processo de elaboração das
decisões políticas, como aparenta a ficção jurídica da
ideologia democrática. As relações sociais não
subsistem entre indivíduos totalmente autônomos, mas
entre indivíduos inseridos num contexto, que
desempenham um papel definido pela divisão social
do trabalho. Ora, a divisão do trabalho e a luta social e
política dela decorrente fazem com que a sociedade
nunca seja pensada através de representações que
correspondem à realidade, mas através de uma imagem
deformada pelos interesses dos protagonistas desta
luta (a ideologia), cuja função é a de legitimar o poder
constituído. Não se trata de uma representação
totalmente ilusória da realidade nem de uma simples
mentira. Toda ideologia e todo princípio de
Legitimidade do poder, para se justificarem
eficazmente, precisam
678
LEGITIMIDADE
conter também elementos descritivos, que os tornem
dignos de confiança e, conseqüentemente, idôneos
para produzir o fenômeno do consenso. Por isso,
quando as crenças que sustentam o poder não
correspondem mais à realidade social, são deixadas de
lado e assistimos à mudança histórica das ideologias.
Quando o poder é firme e em condição de
desempenhar,
de
maneira
progressista
ou
conservadora, suas funções essenciais (defesa,
desenvolvimento econômico, etc), faz com que seja
aceita a justificação de seu existir, apelando para
determinadas exigências latentes nas massas, e com a
força de sua própria presença acaba se criando o
consenso necessário. Nos períodos de estabilidade
política e social, a influência, na formação da
consciência social, dos que a divisão do trabalho
colocou no vértice da sociedade é determinante, visto
estarem eles em condições de condicionar de maneira
relevante o comportamento dos que não
desempenham papéis privilegiados. Para esta última
categoria de pessoas, a realidade do Estado se
manifesta sobremaneira imponente, a experiência que
fazem do Estado os leva a encará-lo como algo
relacionado com as forças da própria natureza ou
como sendo condição necessária e imutável do viver
em comum. Por outro lado, para se adaptar à dura
realidade de sua condição social, a pessoa comum
sente-se impulsionada a idealizar sua passividade e
seus sacrifícios em nome de princípios absolutos
capazes de fornecer realidade ao desejo e verdade à
esperança.
Quando, ao contrário, o poder está em crise, por ter
sua estrutura entrado em contradição com a evolução
da sociedade, entra em crise também o princípio da
Legitimidade que o justifica. Isto ocorre porque, nas
fases revolucionárias, ou seja, quando a estrutura do
poder desmorona, caem também os véus ideológicos
que camuflavam ao povo a realidade do poder, e se
manifesta às claras sua inadequação para resolver os
problemas que amadurecem na sociedade. Neste
momento, a consciência das massas entra em
contradição com a estrutura política da sociedade;
todos se tornam politicamente ativos, por serem
simples as opções e por envolverem diretamente as
pessoas comuns; o poder de decisão se encontra, de
fato, nas mãos de todos. Naturalmente, fenômenos
desta ordem acontecem até a hora em que surge um
outro poder e, conseqüentemente, um outro princípio
de Legitimidade. A experiência histórica mostra que a
cada tipo de Estado corresponde um diferente tipo de
Legitimidade, isto é: a cada maneira de lutar pelo
poder corresponde uma diferente ideologia
dominante.
V. ASPECTO DE VALOR DA LEGITIMIDADE. — O
consenso em relação ao Estado nunca foi (nem é)
livre, ao contrário, sempre foi (e é), pelo menos em
parte, forçado e manipulado. Normalmente, a
legitimação se apresenta como uma necessidade, seja
qual for o tipo de Estado. Inúmeras pesquisas
sociológicas provaram, por exemplo, que o fenômeno
da manipulação do consenso existe também nos países
democráticos. Ora, uma vez que o poder é o
determinante, pelo menos parcial, do conteúdo do
consenso e que, conseqüentemente, podem existir nele
diferentes níveis de liberdade e de coação, não parece
justo caracterizar como legítimo, nem um Estado
democrático, nem um Estado tirânico, pelo simples
fato de que em ambos se manifesta a aceitação do
sistema.
Se nos limitarmos a definir legítimo um Estado
cujos valores e estruturas fundamentais são aceitos,
acabaremos por englobar nesta formulação também o
contrário do que normalmente se entende por
consenso: o consenso imposto e o caráter ideológico
de seu conteúdo. A definição geral proposta no início
acabou, pois, por se revelar insatisfatória, uma vez que
pode ser aplicada a qualquer conteúdo. Para superar
tal incongruência, que parece invalidar a própria
exatidão semântica da definição descritiva, faz-se
necessário evidenciar uma característica que o termo
Legitimidade tem em comum com muitos outros termos
da linguagem política (liberdade, democracia, justiça,
etc): o termo Legitimidade designa, ao mesmo tempo,
uma situação e um valor de convivência social. A
situação a que o termo se refere é a aceitação do
Estado por um segmento relevante da população; o
valor é o consenso livremente manifestado por uma
comunidade de homens autônomos e conscientes. O
sentido da palavra Legitimidade não é estático, e sim
dinâmico; é uma unidade aberta, cuja concretização é
considerada possível num futuro indefinido, e a
realidade concreta nada mais é do que um esboço
deste futuro. Em cada manifestação histórica da
Legitimidade vislumbra-se a promessa, até agora
sempre incompleta na sua manifestação, de uma
sociedade justa, onde o consenso, que dela é a
essência, possa se manifestar livremente sem a
interferência do poder ou da manipulação e sem
mistificações ideológicas. Antecipamos, assim, quais
as condições sociais que possibilitam a aproximação à
plena realização do valor inerente ao conceito de
Legitimidade: a tendência ao desaparecimento do
poder, quer das relações sociais, quer do elemento
psicológico a ele associado: a ideologia.
O critério que possibilita a discriminação dos
diferentes tipos de consenso parece, pois,
LENINISMO
consistir na variação dos graus de deformação
ideológica a que é sujeita a crença na Legitimidade e
no correspondente e diverso grau de manipulação a
que esta crença é submetida. Com base neste critério,
é possível provar que não são iguais todos os tipos de
consenso e que será mais legítimo o Estado onde o
consenso tem condições de ser manifestado mais
livremente, onde, cm suma. for bem menor a
interferência do poder e da manipulação e. portanto,
bem menor o grau de deformação ideológica da
realidade social na mente dos indivíduos. O consenso
será, pois, mais aparente, e conseqüentemente de
pouca consistência real, na medida em que for forçado
e tiver um caráter ideológico. Com este ponto de
partida podemos formular uma nova definição de
Legitimidade que nos permita superar as limitações e
incongruências da que foi proposta no início. Trata-se
fundamentalmente de integrar na definição o aspecto
de valor, elemento constitutivo do fenômeno.
Podemos, pois, afirmar que a Legitimidade do Estado
é uma situação nunca plenamente concretizada na
história, a não ser como aspiração, e que um Estado
será mais ou menos legítimo na medida em que torna
real o valor de um consenso livremente manifestado
por parte de uma comunidade de homens autônomos e
conscientes, isto é, na medida em que consegue se
aproximar à idéia-limite da eliminação do poder e da
ideologia nas relações sociais.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., L'idée de légitimité,
Presses Universitaires de France. Paris 1967; D.
EASTON. A Systems analysts of political life. Wiley.
New York 1965; G. FERRERO. Potere. Comunità. Milano
1947; C. SCHMITT, Legalität un Legitimität, Duncker
& Humbolt. Leipzig-Münchcn 1932; M WEBER.
Economia e società (1922), Comunità, Milano 1961.
[LUCIO LEVI]
Leninismo.
1. Do POPULISMO AO MARXISMO. — O Leninismo é
a interpretação teórico-prática do marxismo, em clave
revolucionária, elaborada por Lenin num e para um
país atrasado industrialmente, como a Rússia, onde os
camponeses representavam a enorme maioria da
população.
Baseada nesta realidade, havia surgido uma
ideologia específica, o populismo, de cuja influência
nem mesmo a ala da intelligentzia, que introduziu o
marxismo na Rússia, conseguiu jamais libertar-se de
todo. Tanto é assim que, como
679
escreveu há pouco um historiador comunista, até o
próprio Leninismo "se caracteriza pelo seu nexo de
continuidade orgânica e criativa com a experiência
intelectual, primeiro, e organizativa, depois, do
popularismo russo" (Strada).
Daí que, para entender o Leninismo, seja
necessário remontar às causas que, embora
favorecessem a penetração do marxismo na Rússia,
impediram, no entanto, que ele obtivesse uma vitória
definitiva sobre o populismo.
O populismo russo caracterizou-se por três
elementos; 1) uma devoção mística pelo povo do
campo; 2) a rejeição da industrialização por causa do
preço que, na forma privatístico-concorrencial do
modelo inglês, cobra das classes rurais, com a
conseqüente idéia de se chegar diretamente ao
socialismo partindo da estrutura comunitária
tradicional própria do campo, alicerçada na comuna
rural ou obstina, pulando a etapa do capitalismo; 3) e,
por último, um elemento messiânico-nacionalista, que
recebeu da direita eslavófila e a ela o assimila, através
do qual a percepção do enorme atraso do país, tão
dolorosamente sentida pelos intelectuais russos,
transforma-se num sentimento compensatório de
superioridade, totalmente irreal, mas nem por isso
menos poderoso e eficaz come estímulo para a ação.
Quando, após décadas de preparação teórica, no
começo dos anos 70 do século passado, o movimento
populista se tornou uma realidade no seu encontro
com o povo, de quem acabaria tomando o nome, de
imediato sobreveio a decepção e a crise. Os
camponeses, com efeito, receberam pessimamente os
idealistas entusiasmados que os procuravam, na
esperança de despertar e desenvolver neles a
maturidade civil e política, a fim de induzi-los a se
levantarem contra a autocracia. Nem por isso o
populismo abandonou sua fé nas potencialidades de
renovação do camponês russo; porém, tomou
consciência da importância das instituições liberais
para a realização de um contato fecundo entre
intelectuais e povo, que sem este contato acabaria
ficando subjugado pelo próprio atraso cultural e por
uma desconfiança instintiva com relação ao novo.
Nasceu assim a Narodnaja Volja, organização
terrorista que tinha como objetivo atemorizar a
autocracia através de atentados, a fim de levá-la a
conceder uma Constituição de tipo ocidental. Esta
organização secreta, que reunia sob uma disciplina
rígida uma elite de origem burguesa e até nobre, se
tornou o modelo do futuro partido leninista. Quando,
em 1887, fracassou o atentado contra Alexandre III,
após o sucesso ocorrido no atentado contra Alexandre
Il em 1881, que, todavia, não produziu os resultados
políticos esperados, entre os conjurados que
tombaram como vítimas da repressão estava
680
LENINISMO
Alexandre Uljanov. Vladimir Uljanov, mais tarde
chamado Lenin, então com dezessete anos, começou,
assim, seguindo as pegadas do irmão mais velho, sua
carreira revolucionária como populista, tanto que
nunca deixou de manifestar sua admiração pelo
instrumento organizacional criado pelo populismo,
embora a morte do irmão o tenha levado a questionar
a estratégia populista, fundamentada exclusivamente
em grupos sectários, bem como a prática dos
atentados.
Neste período, ainda antes do atentado contra
Alexandre II, um pequeno núcleo de populistas guiados
por Plechanov (1856-1918) tinha rejeitado, como
estéril, o caminho do terrorismo, transferindo suas
esperanças da classe camponesa, que havia se revelado
por assim dizer indigna destas esperanças, para a classe
operária, ainda nos primórdios na Rússia, cuja segura e
objetiva vocação revolucionária era garantida pelo
marxismo, importado do Ocidente.
II. O DILEMA DO MARXISMO RUSSO. — A tarefa
teórica do núcleo marxista foi, em primeiro lugar,
demonstrar que um futuro próximo de cunho
capitalista aguardava a Rússia, com a conseqüente
formação de uma numerosa e combativa classe
operária. Surgiu daí uma longa polêmica com os
populistas, que se arrastou por décadas. Os populistas
negavam a possibilidade de um desenvolvimento de
moldes capitalistas no próprio país, tendo em vista a
inexistência de um mercado interno por causa da
extrema pobreza dos camponeses, isto é, de 90% da
população, e a não-disponibilidade de mercados
externos, já totalmente ocupados pelas maiores
potências industriais.
Quando Lenin, levado pela necessidade de uma
certeza quase mística da inevitabilidade da revolução,
chegou ao marxismo, teve oportunidade de se
fortalecer na sua posição desfechando os últimos e
definitivos golpes nesta polêmica. Em seus escritos
juvenis, tendo como referencial teórico o segundo livro
do Capital, pouco conhecido, enquanto os populistas
se referiam mais ao primeiro, Lenin demonstrou, de
maneira inquestionável, o caráter econômico e não
geográfico do conceito de mercado, cuja amplitude
não pode ser medida em quilômetros quadrados nem,
em última análise, em milhões de habitantes, mas tem
que ser vista em função da divisão social do trabalho,
que, por sua vez, depende da evolução científica e
tecnológica.
Na hora, Lenin não percebeu que, desta forma, tinha
ido muito além do alvo, apresentando uma imagem da
dinâmica capitalista isenta de insuperáveis
contradições internas, capazes de provocar seu fatal
colapso. Homem de ação, levado conseqüentemente a
enfrentar as dificuldades só na
medida em que as mesmas iam se manifestando, é
fácil compreender que, diante do fator evidente da não
resposta da classe camponesa à missão revolucionária,
que os populistas a ela queriam atribuir, Lenin não
tivesse nenhuma dúvida teórica quanto à possibilidade
de a classe operária não se revelar, também, à altura
desta missão.
O transplante do marxismo para, a Rússia levantou
mais outra dificuldade, desta vez inerente ao conjunto
dos postulados fundamentais da doutrina e,
conseqüentemente,
inevitável.
Subordinando
rigorosamente o advento do socialismo ao pleno
desenvolvimento
da
fase
capitalista-burguesa,
principalmente após a polêmica que na Europa dos anos
70 o tinha colocado em contraposição ao voluntarismo
anarquista, o marxismo impunha aos socialistas russos
o ônus de se baterem por uma revolução apenas
burguesa, de abrirem caminho à plena evolução do
sistema capitalista que, por definição, um socialista
deveria combater sem trégua. A enorme disparidade
entre a parte atrasada e a parte mais moderna da
economia russa, além disso, afastava por algumas
gerações a próxima revolução, justamente a socialista.
O marxismo, assim, mesmo dando a impressão de
satisfazer a necessidade da certeza na revolução,
trazia em si o sacrifício de um componente tanto ou
mais indispensável na psicologia do autêntico
revolucionário: a impaciência, isto é, o desejo de viver
como protagonista o evento palingenético. Tal fato
explica por que, apesar de ter visto suas teorias
amplamente confirmadas pelo desenvolvimento
capitalista ocorrido na Rússia no período que vai entre
o fim e o começo dos séculos XIX e XX, o marxismo
não conseguiu derrotar completamente o populismo. A
impaciência mantinha nele uma parcela relevante das
forças revolucionárias, que convergiram mais tarde no
partido, que se chamou justamente socialistarevolucionário, destinado a desempenhar um papel
não secundário em 1917.
De qualquer forma, diante do dilema de, ou trair o
espírito científico do marxismo, inserindo nele a
antiga idéia populista do salto da fase capitalista, ou
aceitar o marxismo até as últimas conseqüências,
sacrificando a impaciência pela revolução socialista,
Lenin não teve dúvidas, e foi marxista ortodoxo. As
tarefas primordias e indiscutíveis do partido socialdemocrático
russo
eram,
para
Lenin,
o
desenvolvimento do capitalismo ao nível das estruturas
e o desenvolvimento da democracia parlamentar ao
nível das superestruturas. Talvez seja possível notar,
na obra conclusiva do primeiro período de sua
militância marxista. O desenvolvimento do
capitalismo na Rússia (1899), um certo esforço para
provar que o país
LENINISMO
já era mais capitalista, e portanto mais próximo ao
socialismo, do que era realmente.
III. O DEBATE ACERCA DO REVISIONISMO E O
NASCIMENTO DO LENINISMO. — Nos Últimos
anos do século espalhou-se na Rússia o conhecimento
do revisionismo bernsteiniano, logo assumido por
diversos intelectuais russos. Foi neste momento que
teve início em Lenin a crise que irá se concluir em
1902 com o Que fazer?, destinado a se tornar o texto
base de uma ideologia, justamente o Leninismo.
O REVISIONISMO (V.) questionava bem do interior do
próprio marxismo, pela ação de Bernstein, um dos
maiores colaboradores ainda vivos dos dois mestres, a
vocação
revolucionária
da
classe
operária,
fundamentando-se em, pelo menos, meio século de
experiência ocidental, assim como os marxistas russos,
nisto "revisionistas" do populismo, tinham
anteriormente negado a vocação revolucionária da
classe camponesa. A esta altura estava comprometida
também aquela certeza que o marxismo parecia ter
assegurado. O gradualismo, em cujo nome os
marxistas russos tinham subordinado a revolução
socialista à burguesa, entrava desse jeito em crise. O
advento da democracia política e o pleno
desenvolvimento do capitalismo não se apresentavam
mais como a garantia do inevitável acontecer da
revolução socialista. Ao contrário, permitindo à classe
operária usufruir das liberdades "burguesas" e alcançar
melhoramentos constantes no próprio estilo de vida,
eles teriam, assim como acontecera na Inglaterra,
enfraquecido sua vontade de luta, transformando sua
vocação revolucionária em práxis reformista. Como,
por outro lado, não era ainda viável vislumbrar outra
classe social à qual transferir novamente a missão
palingenética,
a
aceitação
da
prioridade
inquestionável da fase democrático-burguesa na
Rússia implicava, a esta altura, renunciar
definitivamente à revolução socialista. Que jazer,
então?
Se foi Lenin que se colocou com lucidez a
pergunta, tal ocorreu não apenas graças ao excepcional
instinto político deste homem, mas também devido à
sua peculiar formação marxista. Podemos afirmar,
sem dúvida, que as premissas teóricas dos corolários
operativos de Bernstein já haviam sido elaboradas por
Lenin, e até com maior rigor, durante a polêmica com
os populistas. Sua teoria do mercado equivalia à
negação da existência de obstáculos de ordem
econômica para o contínuo desenvolvimento do
capitalismo e, portanto, para a contínua melhoria da
condição operária dentro do sistema. "A história de
todos os países prova que a classe operária — escreve
Lenin no Que jazer? —, contando unicamente
681
com as suas forças, consegue chegar somente à
elaboração de uma consciência trade-unionista, isto é,
a consciência de que é necessário se unir em
sindicatos, de que deve ser levada adiante a luta contra
os patrões, de que é preciso exigir do Governo
algumas leis necessárias aos operários,. ..". Como
conseqüência, "a consciência política de classe pode
chegar ao operário somente de fora, isto é, de fora da
luta econômica". Tudo isto, em última análise,
significa que à luta de classe corresponde uma
consciência de classe que não é o socialismo: luta de
classe e socialismo, além de não coincidirem, são até
divergentes.
O revisionismo, para dizer a verdade, não tinha
chegado a tanto. Continuou pensando que, a partir do
somatório dos esforços e das lutas para elevar seu
nível social e cultural, iria amadurecer na classe
operária uma autoconsciência socialista, paralelamente
ao processo que, através de reformas arrancadas ou
impostas, provocaria a transformação da sociedade de
capitalista em socialista. Este tipo de socialismo não
negava radicalmente a sociedade democrático-liberal e
se apresentava, abandonada toda aspiração
palingenética, como uma forma mais perfeita desta
mesma sociedade. O marxismo chegava, assim, ele
também, ao REFORMISMO (V.).
Lenin chega a admitir a natureza reformista da
classe operária e a rejeitar implicitamente a teoria do
desmoronamento espontâneo do capitalismo, que era
onde os marxistas ortodoxos colocavam suas
esperanças revolucionárias, justamente porque
pretende salvar na prática, e não apenas na teoria, a
perspectiva
revolucionário-palingenética.
A
convergência objetiva entre Lenin e o revisionismo
não ultrapassa, porém, a fase da diagnose. No que se
refere à terapia, o Leninismo se caracteriza pelo
esforço de colocar em ação um conjunto de
instrumentos ideológico-organizacionais aptos para
inverter radicalmente o desenrolar natural dos
acontecimentos.
Visto que a evolução da classe operária, no regime
democrático parlamentar, a afasta do caminho do
socialismo, far-se-á necessário, antes de qualquer
coisa, um guia que mantenha as massas no justo
caminho. Eis, pois, encontrada a necessidade e a tarefa
de um partido integrado por revolucionários
profissionais de origem pequeno-burguesa, formado
fora da classe operária e não passível de controle nem
de influência por parte dela. Partido que será o
depositário da verdade, como intérprete da essência
mais real da classe operária, a encarnação atual do
socialismo, a única garantia de seu advento futuro.
Foi acerca do tipo de partido que deveria ser
edificado que aconteceu, em 1903, a divisão da socialdemocracia russa em bolcheviques e
682
LENINISMO
mencheviques. A questão, que aparentemente era de
ordem meramente organizacional, na realidade tinha
como causa fundamental os diferentes juízos que eram
feitos acerca das instituições democrático-liberais: os
mencheviques, que como Lenin não concordavam com
a tese dos revisionistas acerca da natureza reformista
da classe operária, continuavam a considerar as
instituições democráticas parlamentares como uma
etapa necessária e útil ao mesmo tempo; por isso,
postulavam a criação de um partido democrático das
massas que pudesse usufruir plenamente destas
mesmas instituições; os bolcheviques de Lenin, ao
contrário, mesmo não chegando a negar de vez a
necessidade de uma etapa democrático-burguesa,
temiam a capacidade de sedução deste tipo de
sociedade sobre a classe operária e tencionavam
oferecer-lhe, mediante o partido monolítico, o
antídoto necessário que a salvasse mesmo contra a
vontade.
Por isso, o que realmente esteve em jogo no
Congresso da cisão foi o destino da Rússia: se este
devia se concretizar na europeização do país, como
queriam os liberais e os mencheviques, ou na
assimilação da técnica ocidental, mantendo-se, porém,
o quadro das características originais da civilização
russa, segundo o espírito do populismo, "que se
revelou muito mais tenaz do que os primeiros socialdemocratas e os liberais tinham pensado",
conseguindo deixar suas profundas marcas no
Leninismo nascente, após ter sido dado por extinto
(Strada).
A teoria do partido, de claras raízes populistas, não
podia, contudo, ser suficiente por si mesma para dar
ao Leninismo a capacidade de fixar, dentro do rumo
desejado, o curso futuro da história russa. Qual a
eficácia que poderá ter na realidade o partido
monolítico, desde o momento em que a classe
operária, admitida a fruir das instituições liberais,
possa repelir sua função de guia ou menosprezá-la? A
urgência desta pergunta, nascida lógica e
implacavelmente da pretensão de conciliar a revolução
socialista com a desconfiança na vontade socialista da
classe operária, impelirá o Leninismo a transformar-se,
de partido monolítico, em Estado totalitário, que
parecia o único instrumento capaz de permitir que o
partido desempenhasse, cabalmente e a qualquer
custo, "mesmo contra a classe operária", a função de
guia para o socialismo. Só então, extinta com a classe
operária também a sua tendência ao trade-unionismo, se
extinguirão Estado e partido, dando lugar à liberdade
universal dentro de uma total igualdade. Acrescente-se
que, na Rússia, as instituições democráticoparlamentares eram ainda uma conquista a ser
realizada. Além disso, a fraqueza e a indecisão da
burguesia davam a
impressão de que o partido social-democrático teria
que assumir esta tarefa: enquanto os mencheviques
ansiavam por assumir este papel e levá-lo a bom
termo da melhor maneira possível, os bolcheviques,
partindo das premissas já analisadas, sentiam-se
tentados a instrumentalizar a batalha democrática para
derrubar a autocracia, ficando únicos donos da
situação, a fim de prevenir, mediante o esvaziamento
e, se necessário, até mediante a pura e simples
repressão das instituições liberais, o afastamento da
classe operária do caminho do socialismo.
Voltava desta forma, em Lenin, a velha idéia
populista do salto da fase burguesa, porém com um
enfoque totalmente novo, para oferecer uma resposta
a preocupações inteiramente diferentes. Para os
populistas, o móbil da ação era o sonho altruísta de
poder oferecer às massas o bem-estar, poupando-as dos
sofrimentos que seriam causados pelo processo de
industrialização; para Lenin, que nisto permaneceu
sempre (até em 1917) rigorosamente marxista, a. fase
da industrialização, e, conseqüentemente, do
capitalismo, era inevitável; sua preocupação era pular o
aspecto liberal-democrático da era burguesa, a fim de
impedir que a classe operária manifestasse sua
tendência para o emburguesamento. O programa
leninista se resumia, portanto, na conquista do poder a
fim de promover um rápido desenvolvimento da
industrialização, debaixo do controle de um Estado
onipotente, em condições de sufocar toda e qualquer
aspiração autônoma da sociedade civil, visando
objetivos diversos dos do socialismo. Para usar as
próprias palavras de Lenin: capitalismo de Estado
mais ditadura do proletariado.
Deste modo, Lenin se harmonizava com a teoria da
revolução permanente de Trotski, que inicialmente
estigmatizara de anárquica. Por meio da teoria da
revolução permanente, o marxismo revolucionário de
Lenin e de Trotski se ligava ao "conjunto de teorias
do desenvolvimento modernizador e acelerado que se
chama populismo" e que jamais deixou de influenciar
"toda a linha antimenchevique e antiliberal da socialdemocracia russa" (Strada).
No contexto internacional, um tal programa não
deixava de manter a Rússia numa posição de atraso
com relação aos países ocidentais que já estariam, de
acordo com a ortodoxia marxista que Lenin nunca
rejeitou explicitamente, amadurecidos para o
socialismo. Daí a tentação de atribuir à Rússia a
função demiúrgica de despertar para o socialismo as
massas proletárias dos países mais evoluídos,
inexplicavelmente adormecidas, sempre de acordo
com o dogma marxista. Volta aqui um outro elemento
do populismo: o nacionalismo messiânico.
LENINISMO
IV. A FUNÇÃO REVOLUCIONÁRIA DA
GUERRA E A TEORIA DO IMPERIALISMO. — Dois
tipos de críticas começaram a ser levantados, por parte
do movimento socialista internacional, contra esta
estratégia. Em primeiro lugar, questionava-se se
poderia ser chamado ainda de socialismo, isto é, de
autogoverno da classe operária, o que na realidade se
caracterizava como enquadramento da classe e de
todo o povo sob a ditadura inquestionável do
secretário do partido. Em segundo lugar, se seria
possível que um conjunto de arranjos organizacionais
conseguiria e, de fato, garantir a revolução, se
efetivamente viria a desaparacer a vontade
revolucionária na classe operária. Lenin mostrou-se
insensível ao primeiro tipo de críticas, na certeza de
encarnar, como todo o profeta, a verdadeira vontade
do povo eleito; quanto ao segundo tipo, ao contrário,
nunca deixou de ser um motivo de sofrido
questionamento, até e para além do dia da vitória de
outubro, definindo, desta maneira, as sucessivas
evoluções de seu pensamento.
Para um Lenin radicalmente realista, a estratégia do
Que fazer?, após uma consideração mais cuidadosa e
após a lição dos acontecimentos, só poderia se revelar
como algo fundamentado numa hipótese impregnada
de idealismo. Não era concebível, do ponto de vista do
realismo sociológico marxista, uma perspectiva
política em que uma inteira classe social atuasse de
acordo com uma consciência induzida exteriormente e
não conforme seus próprios reflexos naturais,
condicionados pelo meio social. Se não existem
motivos para acreditar que a classe operária se sinta
impulsionada a atacar o poder pela constante
deterioração de suas condições de vida; se é também
pouco provável que a classe desmorone pela própria
incapacidade de enfrentar as contradições internas do
sistema e o protesto operário delas decorrentes; então,
outras motivações e outras causas, tanto ou mais fortes
e realistas, se fazem necessárias, senão o partido,
mesmo na perfeição de sua organização e na pureza de
sua doutrina, correrá o risco de agir em vão.
Era justamente isto que estava ocorrendo na Rússia
nos anos que viram, após a revolução de 1905, o
czarismo firmar-se em estruturas levemente menos
autocráticas, enquanto a classe operária estava
recebendo pela primeira vez alguns benefícios em
conseqüência do desenvolvimento capitalista, que
tomava novo fôlego a ritmo acelerado. Em decorrência
disso estava se concretizando uma ruptura insanável
no seio da inteligência revolucionária. Porém os
acontecimentos de 1904-1905 apresentavam também
indicadores positivos que Lenin percebeu rapidamente:
a derrota da Rússia na guerra contra o Japão provocara
683
o ímpeto revolucionário das massas e a desorientação
da classe dirigente, esperados inutilmente durante
quase um século como frutos da dinâmica interna do
sistema. Só faltava aguardar, a esta altura dos
acontecimentos, uma guerra de dimensões ainda
maiores e uma derrota ainda mais desastrosa, para ter
fé na eclosão de uma revolução vitoriosa. Em janeiro
de 1913, Lenin escrevia a Gorki: "Uma guerra da
Áustria contra a Rússia seria de grande utilidade para
a revolução (em toda a Europa oriental); é todavia bem
pouco provável que Francisco José e Nicolauzinho nos
proporcionem tamanho prazer".
A teoria do imperialismo, elaborada em 1916, após
a eclosão da guerra, tem a tarefa de responsabilizar a
dinâmica
interna
do
sistema
capitalista,
reestabelecendo assim, de maneira sumamente
criadora, a nível teórico, a ortodoxia marxista, tão
duramente posta à prova pelos acontecimentos de
1870-1914.
Cientificamente, a teoria que encara a guerra para a
divisão dos mercados como o inevitável desfecho da
objetiva impossibilidade que o capitalismo tem para
elevar o nível de vida da massa operária, ampliando o
próprio mercado interno até torná-lo capaz de
absorver uma produção sempre crescente, não merece a
excessiva consideração de que tem sido objeto. Tratase, de fato, de uma repetição de temas populistas que
encontram sua melhor refutação justamente nos
escritos juvenis do próprio Lenin.
Difícil, todavia, é exagerar a importância que tem
na história da ideologia marxista. Vimos como o
marxismo se apresentou aos populistas, decepcionados
com a classe camponesa, como a promessa do advento
de uma outra classe "verdadeiramente revolucionária",
e como, chegando a duvidar também desta classe,
Lenin deslocou para o partido a tarefa de vanguarda
revolucionária. O fracasso do partido alemão,
considerado por Lenin como um modelo, perante a
guerra de 1914, obrigou-o a buscar garantias ainda
mais eficazes. O partido tinha fracassado no Ocidente
por ser corrupto; e era corrupto por ter-se identificado
com a aristocracia operária que, engordada pelas
migalhas do espólio colonial, tinha abdicado da sua
missão. A insurreição dos povos colonizados, tornada
inevitável pela crescente exploração levada a efeito
pelos países capitalistas na vã tentativa de afastar o
desmoronamento que ameaça suas estruturas
econômicas, terá a conseqüência de tornar novamente
explosivas as contradições do capitalismo, trazendo ao
proletariado ocidental, aliás ao seu partido, o apoio das
massas colonizadas e exploradas. Apesar das
inumeráveis e complexas incongruências internas, a
teoria consegue salvar o messianismo revolucionário,
684
LENINISMO
chegando a ampliar seu aspecto numa dimensão, pela
primeira vez, verdadeiramente universal. E é
justamente este fato que vale politicamente.
Dos camponeses para os camponeses, visto as
massas colonizadas do Terceiro Mundo serem
constituídas unicamente de camponeses: a teoria do
imperialismo é, portanto, a chave que abre ao
marxismo a porta da orientalização e que torna
possível o renascer, no seu seio, de antigos motivos
populistas. .Lenin, todavia, chegou apenas a enunciar
as premissas de toda esta evolução. Pessoalmente ele
permaneceu fiel ao núcleo do marxismo; foi, até o
fim, eurocêntrico, isto é, convicto da primazia dos
partidos
comunistas
sobre
os
países
já
industrializados, para os quais, através do
imperialismo, procurava mais um suporte do que um
substituto e também um estímulo para compensar suas
deficiências, sem explicação a nível da teoria, porém
realisticamente percebidas e sofridas por Lenin nos
seus últimos anos.
V. ESTADO E REVOLUÇÃO. — A iniciativa do partido
de elite e não a do proletariado; a queda das estruturas
sociais provocada pela derrota militar, e não pela
quebra da dinâmica capitalista; a teoria do
imperialismo, enfim, para justificar ideologicamente
tais substituições: faltava, porém, algo ainda para a
plenitude da teoria leninista. Toda revolução, do seu
início ao seu ápice, é uma explosão de anarquismo
que, enquanto joga fora as bases do antigo regime,
assiste à entrada de grandes massas no cenário
político. Aconteceu que, no longo período que
antecedeu a guerra, quando tinha sido possível
preservar a esperança da revolução unicamente através
dos métodos legalistas da SOCIAL-DEMOCRACIA (v.), a
ruptura ocorrida entre o marxismo e o anarquismo, pela
impaciência revolucionária que caracterizava este
último, tinha sido total, abrangendo todas as correntes
e as nuanças do socialismo marxista, sem excluir a
corrente bolchevique. Era preciso, pois, focalizar bem o
alvo. Além disso, na Rússia, após terem sido
introduzidos a democracia parlamentar e os sovietes
pela revolução de fevereiro de 1917, a tarefa do
partido bolchevique consistia em motivar a próxima
revolução, que nas suas intenções, ou, melhor, nas
intenções de Lenin e Trotski, deveria propiciar ao
partido o poder absoluto. Do ponto de vista da
doutrina marxista, porém, a tarefa do partido seria a de
levar a uma forma transitória de Estado, certamente
ditatorial como todo Estado, mas menos e não mais
ditatorial, mais e não menos democrático do que a
república parlamentar burguesa. E, do ponto de vista
da doutrina dos anarquistas, cujo entusiasmo
revolucionário era objeto de admiração, a revolução só
teria justificativa se conseguisse levar à
instauração imediata do autogoverno e à abolição
repentina do Estado. Acrescente-se que o capitalismo
se encontrava no começo de sua caminhada, e não na
fase de perfeita maturidade, de tal forma que entre as
tarefas dos vencedores estava presente também a da
industrialização, evidentemente não concretizável sem
uma forte dose de coação. Qual a resposta de Lenin
perante exigências tão contraditórias? Confirma o
acordo com os anarquistas, quanto à finalidade última:
a abolição do Estado. Insiste, porém, na necessidade
de se chegar imediatamente, mediante a derrubada do
Estado burguês, ao estabelecimento da ditadura do
proletariado. Não esconde que, dadas as particulares
condições de atraso da Rússia, a ditadura será bem
mais rígida do que o previsto nos cânones. Para salvar,
porém, a ortodoxia marxista e, ao mesmo tempo,
satisfazer e estimular as aspirações anarquistas das
massas, concede a instauração imediata da democracia
direta, ou autogoverno dos produtores. Lenin não
esclarece porém, pelo menos em Estado e revolução
(agosto-setembro, 1917), como serão regulamentadas
as relações entre estes dois poderes: a ditadura do
partido em nome do proletariado e o autogoverno dos
produtores mediante o sistema de sovietes ou conselhos
operários. É fácil perceber, e talvez seja justamente isto
que se quer seja percebido, que haverá neste contexto
uma razoável divisão de tarefas: a ditarura terá a
suprema direção da revolução, a democracia direta terá
a direção da produção e a administração do cotidiano
das comunidades locais, até a extinção da ditadura, ou
do Estado, chegado o momento da plenitude dos
tempos.
O espírito que permeia a obra e os antecedentes do
pensamento leninista não autorizam, porém, esta
interpretação, por sinal expressamente rejeitada pelo
próprio Lenin. Na hora em que um jornal menchevique
insinua que, tendo optado pelo voluntarismo anarquista,
os bolcheviques não conseguirão se manter no poder,
caso venham a conquistá-lo, Lenin responde: "Quando
os escritores da 'Novaia Gizn' afirmam que, colocada a
palavra de ordem do 'controle operário', caímos no
sindicalismo, sua afirmação não passa de uma
imitação tola, escolástica, do marxismo. O sindicalismo
ou rejeita a ditadura do proletariado ou a relega a
último plano, como o poder político em geral. Nós a
colocamos em primeiro lugar". E continua: "quando
afirmamos 'controle operário' entendemos apenas o
controle operário do Estado operário". Porém, como
confirmação de que nunca pretendeu abandonar a
teoria que atribui ao partido a tarefa de zelar pelos
autênticos interesses das massas em lugar das próprias
massas, que o autogoverno não passa para ele de uma
LENINISMO
mera palavra de ordem para efeitos de propaganda,
Lenin conclui: "Após a revolução de 1905, 130.000
proprietários nobres governaram a Rússia. E os
240.000 filiados ao partido bolchevique não estariam
em condições de governá-la no interesse dos pobres
contra os ricos?".
E controverso que a fórmula "todo o poder aos
sovietes", ou seja, organismos de representantes
eleitos, correspondesse deveras à abolição anárquica
do Estado. De qualquer modo, ela foi entendida pelo
autor de Estado e revolução, não em sentido
anárquico, mas em sentido jacobino-blanquista. Com
efeito, Lenin, como ressaltou o líder menchevique
Martov, dirigia paradoxalmente essa palavra de ordem
"contra os sovietes reais já existentes", os que "a
maioria do proletariado" havia escolhido depois da
revolução democrática de fevereiro. Sinal evidente,
segundo Martov, de que atrás da "ilusão anárquica de
destruir o Estado" se escondia, na realidade, "a
tendência a concentrar toda força coercitiva do Estado
nas mãos de uma minoria", com base na convicção de
que, se "o socialismo científico é a própria verdade",
o grupo que a possui "tem o dever de a impor à
massa".
Estado e revolução não indica, por isso, da parte de
Lenin, uma revisão ou leve modificação, mas o
aperfeiçoamento final do edifício totalitário de que ele
havia começado a lançar os fundamentos em 1902
com Que jazer?
VI. A ÚLTIMA REVISÃO. — O exercício do poder
impunha a Lenin ainda uma última revisão, a mais
significativa, do marxismo tradicional. Diante do
malogro desastroso do comunismo de guerra e não
havendo na doutrina qualquer indicação relativa à
estratégia econômica a adotar para o modernização
acelerada da Rússia, Lenin lançava em 1921 a Nova
Política Econômica (NEP), que implicava uma volta
dirigida ao capitalismo.
Ruía assim a idéia de que a construção do
socialismo e a destruição do capitalismo fossem as
duas faces de um mesmo e idêntico processo,
destinadas, por isso, a avançar pari passu. Agora se
admitia, ao contrário, que o avanço do socialismo no
mundo pudesse até ser acompanhado do deliberado
impulso a um certo desenvolvimento capitalista,
quando necessário ou simplesmente útil para reforçar
as posições já conquistadas. Bastava que o poder total
do partido sobre a sociedade civil, a que se permitia
assim ressurgir das próprias cinzas, não sofresse com
isso e que o grupo dirigente continuasse senhor para
determinar os limites e a duração da experiência.
O populismo visava a modernização acelerada da
Rússia, sem passar pelo capitalismo, mas não
685
tinha a mínima idéia de como isto seria concretamente
possível. O marxismo, ao invés, pretendia tornar
socialista uma Rússia já modernizada pelo capitalismo,
mas não sabia precisar qual podia ser neste processo a
função de um partido socialista revolucionário. Por
sua própria conta, cada uma das duas ideologias, pelo
menos na Rússia, tinha chegado a um ponto morto.
Fundindo-as, Lenin se propunha a reativá-las. Era
bastante lógico, pois, que o Leninismo chegasse a
identificar o socialismo com o processo de
modernização (populismo) e este com a imitação do
capitalismo (marxismo), contanto que isso fosse
conduzido por um partido antes tornado senhor
absoluto do poder mediante a revolução (populismo e
marxismo).
É esta a razão por que o êxito do Leninismo se
manteve circunscrito às áreas atrasadas do mundo,
onde nunca falta um anarcopopulismo indígena para
vitalizar, inserindo nele o marxismo.
VII. AS METAMORFOSES DO LENINISMO NO
OCIDENTE. — É diferente, ao contrário, a sorte do
Leninismo nos países avançados. Em alguns deles,
onde a SOCIAL-DEMOCRACIA (v.) havia efetivamente
conseguido manter acesa a esperança da revolução, o
Leninismo pôde até prosperar, mas jamais chegou a
conquistar o poder. O elemento populista que, nos
países de desenvolvimento lento, galvaniza o
marxismo, o torna pesado, por outro lado, nos países
industrialmente desenvolvidos, condenando-o a ficar
para trás.
A posição de imobilidade provocou um processo
de revisão no próprio seio do Leninismo, um processo
em dois tempos, o segundo dos quais está ainda em
curso.
A primeira fase se iniciou muito timidamente ainda
no tempo de Lenin, quando até o líder bolchevique
teve de reconhecer que a ocasião revolucionária na
Europa tinha passado. Na esperança de que voltasse,
foi permitido aos partidos leninistas atuarem dentro do
quadro da legalidade democrática. Quando depois se
fez sentir a ameaça do fascismo sobre a Rússia, esta
reviravolta tática foi levada aos extremos com a política
das Frentes Populares (1935-1939), que viu o
Leninismo alinhar-se em defesa do capitalismo
democrático, onde quer que ele ainda estivesse em pé
na Europa.
A fase posterior se iniciou no segundo pós-guerra,
com a aceitação da via pacífica e democrática para a
conquista do poder, em lugar da imitação, mesmo na
Europa, da via seguida pela Rússia. O modelo soviético
continuava, no entanto, ainda plenamente válido para a
sociedade que era mister construir uma vez
conquistado o poder.
686
LIBERALISMO
Foi só depois que o XX Congresso do P.C.U.S.
revelou, em 1956, os horrores a que levara, no tempo
de Stalin, o reviramento da democracia desejado por
Lenin, que esta segunda viragem do Leninismo no
Ocidente foi amadurecendo lentamente as suas
conseqüências. Houve assim um reconhecimento da
democracia como valor perene e a preocupação de
assumir um compromisso durável, se não com o
capitalismo, que será sempre uma realidade negativa
que é preciso "derrubar", "superar", "destruir"
(Berlinguer), ao menos com' a propriedade privada,
não apenas com a pequena, e com o mercado.
Desta maneira, no Ocidente, o Leninismo, mais que
voltar às posições da SOCIAL-DEMOCRACIA (v.)
clássica, em relação às quais, com a rejeição do
coletivismo integral, se coloca talvez mais à direita,
tende a aproximar-se das esquerdas socialdemocráticas. Um sinal desta convergência está na
comum reivindicação de uma "terceira via".
Distanciando-se da maioria, a esquerda socialdemocrática não encontra, com efeito, o socialismo de
terceira via no modelo realizado pelo próprio partido,
onde vê, quando muito, apenas uma variante
melhorativa do capitalismo; busca-o numa terceira via
entre o REFORMISMO (V.) burguês e o coletivismo
soviético, exatamente como fazem hoje também os
euroleninistas.
O que ainda falta para um perfeita identidade de
pontos de vista entre os social-democráticos de
esquerda e os euroleninistas é o reconhecimento, por
parte destes, de que o centralismo chamado
democrático é a negação da democracia de partido, tal
como o socialismo chamado real é a negação do
socialismo. Não se trata de questões abstratamente
ideológicas, mas está em jogo o ligame que os
euroleninistas ainda querem manter com a URSS. Se
esse obstáculo fosse superado, é claro que, então, a
parábola do Leninismo no Ocidente teria atingido o
fim.
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[DOMENICO SETTEMBRINI)
Liberalismo.
I. UMA DEFINIÇÃO DIFÍCIL. — A definição de
Liberalismo como fenômeno histórico oferece
dificuldades específicas, a menos que queiramos cair
numa história paralela dos diversos Liberalismos (G.
De Ruggiero, M. Cranston) ou descobrir um
Liberalismo "ecumênico" (T.P. Neill), que não têm
muito a ver com a história. A razão da inexistência de
consenso quanto a uma definição comum, quer entre
os historiadores quer entre os estudiosos de política, é
devida a uma tríplice ordem de motivos.
Em primeiro lugar, a história do Liberalismo achase intimamente ligada à história da democracia; é,
pois, difícil chegar a um consenso acerca do que
existe de liberal e do que existe de democrático nas
atuais democracias liberais: se fatualmente uma
distinção se torna difícil, visto a democracia ler
realizado uma transformação mais quantitativa do que
qualitativa do Estado
LIBERALISMO
liberal, do ponto de vista lógico essa distinção
permanece necessária, porque o Liberalismo é
justamente o critério que distingue a democracia liberal
das democracias não-liberais (plebiscitaria, populista,
totalitária). Em segundo lugar, o Liberalismo se
manifesta nos diferentes países em tempos históricos
bastante diversos, conforme seu grau de
desenvolvimento; daí ser difícil individuar, no plano
sincrônico, o momento liberal capaz de unificar
histórias diferentes. Com efeito, enquanto na Inglaterra
se manifesta abertamente com a Revolução Gloriosa
de 1688-1689, na maior parte dos países da Europa
continental é um fenômeno do século XIX, tanto que
podemos identificar a revolução russa de 1905 como a
última revolução liberal. Em terceiro lugar, nem é
possível falar numa "história-difusão" do Liberalismo,
embora o modelo da evolução política inglesa tenha
exercido uma influência determinante, superior à
exercida pelas Constituições francesas da época
revolucionária. Isto porque, conforme os diferentes
países, que tinham diversas tradições culturais e
diversas estruturas de poder, o Liberalismo defrontouse com problemas políticos específicos, cuja solução
determinou sua fisionomia e definiu seus conteúdos,
que muitas vezes são apenas uma variável secundária
com relação à essência do Liberalismo. Acrescente-se
uma certa indefinição quanto aos referenciais
históricos do termo Liberalismo: tal termo pode,
conforme o caso, indicar um partido ou um
movimento político, uma ideologia política ou uma
metapolítica (ou uma ética), uma estrutura institucional
específica ou a reflexão política por ela estimulada
para promover uma ordem política melhor, justamente
a ordem liberal.
Num primeiro momento, é possível oferecer
unicamente uma definição bastante genérica: o
Liberalismo é um fenômeno histórico que se
manifesta na Idade Moderna e que tem seu baricentro
na Europa (ou na área atlântica), embora tenha
exercido notável influência nos países que sentiram
mais fortemente esta hegemonia cultural (Austrália,
América Latina e, em parte, a Índia e o Japão). Com
efeito, na era da descolonização, o Liberalismo é a
menos exportada ou exportável entre as ideologias
nascidas na Europa, como a democracia, o
nacionalismo, o socialismo, o catolicismo social, que
tiveram um enorme sucesso nos países do Terceiro
Mundo. É a única, entre as várias ideologias européias,
que não consegue realizar seu potencial cosmopolita,
que é comum também à democracia e ao socialismo.
Nisto, talvez, seja possível encontrar, em sentido
negativo, um critério para dar uma definição do
Liberalismo.
687
Uma definição mais consistente do Liberalismo
precisa ter necessariamente como ponto de partida o
exame da melhor literatura existente, com o objetivo
de verificar a validade e os limites dos respectivos
enfoques. Somente após termos verificado a pouca
utilidade dos dois enfoques mais radicais, o do
historiador e o do filósofo, cujas definições abrangem
respectivamente pouco demais ou muito demais (§§
II, III), e após termos evidenciado alguns
"preconceitos" que encontramos em algumas
interpretações históricas de amplo alcance (§§ IV, V),
é que procuraremos oferecer uma definição do
Liberalismo (§ VI), para ver se o mesmo é uma teoria
crítico-empírica atual,
ou
se já pertence
definitivamente ao passado e não é nada mais do que
uma "experiência" definitivamente acabada (§ VII).
II. O ADJETIVO LIBERAL. — Para o historiador, é
óbvio e natural pensar que a única e possível definição
de Liberalismo é a definição histórica, visto estar ele
convicto de que a sua essência coincide com a sua
história: o Liberalismo é um fato histórico, isto é, um
conjunto de ações e de pensamentos, ocorridos num
determinado momento da história européia e
americana. Todavia é possível encontrar diversas
definições históricas. Tomemos como ponto de
partida o uso, ao nível historiográfico, do adjetivo
liberal; ele foi usado de uma forma meramente
receptiva, refletindo todos aqueles conteúdos que
carregam a marca de liberal, ou, de uma forma
explicativa, como um critério para entender um período
ou uma época histórica. Contemporaneamente tem sido
utilizado em níveis de indagação bastante diversos, que
se relacionam com diferentes disciplinas: para
descrever as orientações dos movimentos e dos
partidos políticos que se definem liberais, para
catalogar numa história do pensamento político as
idéias liberais, para caracterizar do ponto de vista
tipológico o Estado liberal entre as outras formas de
Estado, para perceber, a nível filosófico, o caráter
peculiar da civilização ocidental.
Entre as muitas definições históricas, que utilizam
o adjetivo liberal, existe em primeiro lugar a do
historiador puro, tendo como ponto de partida o uso
político do termo "liberal", que é do século XIX
(antes, na linguagem comum, o termo indicava uma
atitude aberta, tolerante e/ou generosa, ou as
profissões exercidas pelos homens livres). De fato, tal
termo aparece, primeiro, na proclamação de Napoleão
(18 Brumário), entrando, depois, definitivamente, na
linguagem política através das cortes de Cadiz, em
1812, para determinar o partido que defendia as
liberdades públicas contra o partido servil, e, na
688
LIBERALISMO
literatura, através de Chateaubriand, Madame de Staël
e Sismondi, para indicar uma nova orientação éticopolítica em fase de afirmação. O limite desta
definição está no fato de que o historiador, se não
possuir um critério logicamente definido acerca do
que é liberal, acabará por confundir o adjetivo com o
substantivo, os liberais com o Liberalismo, em suma,
incluirá — e atribuirá — ao Liberalismo um vasto
conjunto de atitudes políticas, enquanto o substantivo
define apenas algumas delas. A aceitação acrítica do
termo liberal pode, pois, conduzir a perigosas
conseqüências, quer focalizando mais grupos ou
partidos que se autodefinem liberais, quer focalizando
mais as idéias que se proclamam liberais. Neste nível
de ingenuidade, a história do Liberalismo europeu se
revela uma história extremamente confusa: temos
inúmeros liberais diferentes entre si, mas não o
Liberalismo.
Trata-se, também, de uma definição arriscada,
inclusive porque nem sempre grupos e partidos que se
inspiravam nas idéias liberais tomaram o nome de
liberais, e também nem sempre os partidos liberais
desenvolveram uma política coerente com os
princípios proclamados. O mapa dos agrupamentos de
movimentos ou de partidos liberais no século XIX e
no século XX apresenta inúmeros espaços vazios; o
que não significa que nestes países inexistiam idéias
liberais. Além disso, ontem como hoje, os diferentes
partidos com o nome e com as idéias liberais ocuparam
nos agrupamentos parlamentares posições bastante
diversificadas: conservadoras, centristas, moderadas,
progressistas.
Ainda hoje a palavra liberal assume diferentes
conotações conforme os diversos países: em alguns
países
(Inglaterra,
Alemanha),
indica
um
posicionamento de centro, capaz de mediar
conservadorismo e progressismo, em outros (Estados
Unidos), um radicalismo de esquerda defensor
agressivo de velhas e novas liberdades civis, em
outros, ainda (Itália), indica os que procuram manter a
livre iniciativa econômica e a propriedade particular.
Por isso, um destacado pensador liberal (F. A. Hayek)
propôs renunciar ao uso de uma palavra tão equívoca.
Apesar disso, os diferentes partidos liberais buscaram,
neste século, formas de integração, num primeiro
momento através de L'entente internationale des
partis radicaux et des partis democratiques similaires,
fundada em Genebra no ano de 1924, em seguida,
através da Internacional liberal, fundada em Oxford no
ano de 1947; hoje, no Parlamento europeu, acham-se
federados no grupo liberal e democrático.
Muitas vezes, porém, grupos e partidos não usam o
adjetivo liberal isoladamente; no século
XIX foram-lhe acrescentados outros termos políticos
que, às vezes, acabavam na negação ou na limitação de
seu próprio conteúdo. Temos assim os monárquicoliberais que, na firme defesa do ideal monarquista,
admitiam formas limitadas de representação política;
os liberal-nacionais que, por identificarem a causa
nacional com a liberal, perdiam freqüentemente o
significado liberal de uma organização federativa ou
subordinavam a liberdade à unidade nacional; os
católicos (ou os protestantes) liberais que, contra os
clericais antiliberais e os anticlericais (às vezes
liberais), defendiam a separação entre Igreja e Estado;
os liberal-democratas que, contra uma visão limitativa
do Liberalismo, encarado como mera garantia dos
direitos individuais, salientavam o momento da
participação democrática na direção política do país; e,
por último, os livre-cambistas liberais que,
contrariamente aos liberal-estatalistas, defendiam a
total não-intervenção do Governo no mercado interno
e em suas relações com o mercado internacional
(antiprotecionismo). Alguns destes conteúdos, como a
fé monárquica, o ideal nacional, o privilegiamento
exclusivo do laissez faire, laissez passer, não servem
mais para caracterizar o Liberalismo de hoje; outros,
ao contrário, tomaram maior consistência, como a
indissolúvel relação entre Liberalismo e democracia ou
a redescoberta da função da religião como antídoto
contra o materialismo da sociedade opulenta.
Como já dissemos, mesmo ao nível das idéias, o
termo liberal se revela ambíguo: muitas vezes isto se
deve ao fato de o termo ser usado em contextos
disciplinares bastante diversos entre si. Temos, assim,
um Liberalismo jurídico, que se preocupa
principalmente com uma determinada organização do
Estado capaz de garantir os direitos do indivíduo, um
Liberalismo muitas vezes propenso a transformar suas
próprias soluções particulares em fins absolutos (ver,
por exemplo, a luta dos liberais franceses na época da
Restauração, presos aos princípios das garantias
individuais, contra os democratas; ou a teoria alemã
do Rechtsstaat, ou a volta ao Estatuto pedida por
Sonnino em 1897). Temos, em seguida, um Liberalismo
político, onde se manifesta com mais força o sentido da
luta política parlamentar: resume-se no princípio do
"justo meio" como autêntica expressão de uma arte de
governar capaz de promover a inovação, nunca porém
a revolução. Apesar disso, na sua atuação concreta,
esta arte de governar oscilou constantemente entre o
simples comprometimento parlamentar, objetivando
manter inalterados os equilíbrios existentes, e a
capacidade de uma síntese criadora entre conservação
e inovação, capaz de libertar
LIBERALISMO
e mobilizar novas energias. Foi esta política que
causou a passagem da monarquia constitucional para
a parlamentar, embora o liberal não tenha sido por
princípio um republicano; ou o encontro entre
Liberalismo e democracia, embora as resistências
tenham sido notáveis, devido às lembranças da
experiência jacobina ou ao medo dos clericais e dos
socialistas. Temos, enfim, um Liberalismo econômico,
intimamente ligado à escola de Manchester: este
Liberalismo, muitas vezes, por acreditar que o
máximo de felicidade comum dependeria da livre
busca de cada indivíduo da própria felicidade, não
pesou suficientemente os custos que tal teoria
acarretava em termos de liberdades civis e esqueceu
que a felicidade tinha sido o objetivo, também, dos
Estados absolutistas.
Outro motivo que torna difícil o uso do termo
liberal no campo da história das idéias é a diversidade
das estruturas sócio-institucionais em que as mesmas
se manifestam. De acordo com a acepção do
iluminismo francês (assumida integralmente pelo
pensamento reacionário ou católico do início do
século XIX) e do militarismo inglês, Liberalismo
significa individualismo; por individualismo entendese, não apenas a defesa radical do indivíduo, único
real protagonista da vida ética e econômica contra o
Estado e a sociedade, mas também a aversão à
existência de toda e qualquer sociedade intermediária
entre o indivíduo e o Estado; em conseqüência, no
mercado político, bem como no mercado econômico,
o homem deve agir sozinho. Porém, em contextos
sócio-institucionais diferentes, o Liberalismo enfatizou
o caráter orgânico do Estado, último elemento sintético
de uma série de associações particulares e naturais,
fundamentadas no status; ou, em outras ocasiões,
reivindicou a necessidade de associações livres
(partidos, sindicatos, etc), quer para estimular a
participação política do cidadão, que o individualismo
(dos proprietários) pretendia reduzir à esfera da vida
particular, quer como proteção do indivíduo contra o
Estado burocrático.
Estes contextos sócio-institucionais correspondem a
diferentes formas de evolução política e de
modernização. Sinteticamente podemos esboçar três
diferentes posições, tendo como ponto de referência a
sociedade civil. Onde, como na Inglaterra, a sociedade
veio se libertando, desde o século XVII,
autonomamente, da estrutura corporativista, o
indivíduo se apresenta "naturalmente" inserido na
sociedade, e este espaço de liberdade individual é
sempre visto como contraposição ao Governo,
considerado um mal necessário. Onde, como na
França, a sociedade mantém sua estrutura
corporativista, a revolução, a fim
689
de libertar o indivíduo, apela para o Estado, portador
da soberania popular, de tal forma que é rejeitada toda
e qualquer mediação entre o indivíduo e o Estado.
Onde, como na Alemanha, uma sociedade estruturada
em classes demonstra ainda uma notável vitalidade, o
Liberalismo apresenta uma concepção orgânica do
Estado que mantém
— nem dividida, nem contraposta, e sim como seu
momento primeiro e necessário — a sociedade civil,
de quem se apresenta como verdade manifesta. Destas
três posições — associacionista, individualista e
orgânica —, após a Revolução Industrial prevaleceu
— conforme Tocqueville
— a primeira, embora o Liberalismo continue
mostrando duas faces e duas estratégias: uma, que
enfatiza a sociedade civil, como espaço natural do
livre desenvolvimento da individualidade, em
oposição ao Governo; outra, que vê no Estado, como
portador da vontade comum, a garantia política, em
última instância, da liberdade individual.
Outro contraste, que predominou principalmente
entre o fim do século XVIII e a primeira metade do
século XIX, discriminando o Liberalismo continental
do inglês, foi provocado pelos diferentes contextos
culturais em que atuam os liberais, isto é, pela
específica filosofia de ação que serve de suporte a seu
agir, de forma que temos um Liberalismo ético e um
Liberalismo utilitarístico. Ambas as concepções
rompem ou se encontram em ruptura potencial com a
formulação específica do individualismo, oferecida
pela filosofia do direito natural e do contrato; ambas
colocam a realização dos direitos do homem como fim
absoluto: diferem, porém, radicalmente, na medida
em que o Liberalismo ético tem sua origem — através
de Kant e Constant — em Rousseau, enquanto o
Liberalismo utilitarístico — através de J. Bentham e
James Mill — a tem em Hobbes. Para o Liberalismo
utilitarístico, o desejo da própria satisfação é o único
móvel do indivíduo: a fé na possibilidade de
harmonizar os interesses particulares egoístas ou de
fazer coincidir a utilidade particular com a pública foi
possível mediante a aplicação, por analogia, à política
dos conceitos formulados para a economia pelos
liberais Adam Smith e Ricardo, isto é, os de mercado
e de utilidade. Estruturas políticas que maximizassem
o mercado político, estendendo o cálculo utilitário ao
maior número possível de pessoas, e tornassem os
governantes dependentes das leis do mercado, através
de eleições freqüentes, iriam possibilitar a máxima
felicidade para o maior número de pessoas. O
Liberalismo utilitarístico, porém, foi supervalorizado
pelo inegável peso que teve no radicalismo inglês, no
movimento em favor das reformas jurídicas,
690
LIBERALISMO
econômicas e eleitorais das primeiras décadas do
século; tudo não passa, porém, de um parênteses,
visto que desde John Stuart Mill é enfatizado o
Liberalismo ético, que caracterizará todo o sucessivo
Liberalismo inglês.
Concluindo este esboço acerca dos grupos ou
partidos liberais, bem como acerca das idéias ou
filosofias liberais, é apenas possível afirmar que o
único denominador comum entre posições tão
diferentes consiste ha defesa do Estado liberal,
nascido antes de o termo liberal entrar no uso político:
um Estado tem a finalidade de garantir os direitos do
indivíduo contra o poder político e, para atingir esta
finalidade, exige formas, mais ou menos amplas, de
representação política.
No âmbito do enfoque histórico, o adjetivo liberal é
usado para oferecer uma definição mais globalizante,
explicativa e não descritiva: fala-se numa "era liberal",
que começa com a Restauração (1815) e termina, ou
com as revoluções democráticas de 1848, ou com a
modificação do clima ético-político após 1870,
quando começam a predominar a Realpolitik, o
nacionalismo e o imperialismo, na política; o
edonismo, o materialismo e a irracionalidade, na ética
(Croce); ou com a Primeira Guerra Mundial e a crise
do contexto liberal que a ela se seguiu (De Ruggiero,
Laski). Fala-se numa era liberal, não apenas porque
neste período toma-se consciência da liberdade como
valor supremo da vida individual e social, mas
também porque a liberdade é a categoria geradora que
explica todo um conjunto de comportamentos políticos
e sociais intimamente relacionados entre si. Mesmo
voltando aos grandes princípios da Revolução
Francesa, a atmosfera cultural acha-se modificada
radicalmente: ao iluminismo, com sua fé exclusiva na
razão contra a história, opõe-se o historicismo e sua
nova concepção de individualidade, considerada como
algo associai ou abstrato, mas como algo sempre
determinado historicamente. Justamente por causa de
seu sentido do concreto e do real, o historicismo
liberal, considerando ser possível fazer uma nova
história unicamente sem romper totalmente com o
passado, se coloca a favor das reformas e não da
revolução: mesmo chegando a aceitar esta última
numa situação de necessidade, o Liberalismo rejeita o
mito da revolução-libertação, próprio dos democratas
e dos socialistas.
A individualidade, quer do indivíduo particular
quer da nação, tem o direito à livre manifestação, com
vista a uma maior elevação moral dos homens e dos
povos. Uma liberdade encarada desta maneira
provoca, em todos os segmentos da sociedade,
conseqüências tais que são capazes de modificar
rapidamente a face da Europa: na vida econômica, a
ruptura dos laços
corporativos e dos privilégios feudais possibilita a
arrancada econômica, acompanhada por um fenômeno
novo, o associacionismo (quer para o progresso
econômico, quer para a ajuda mútua); no campo
político, forma-se uma opinião pública esclarecida que,
pela livre discussão, exerce controle sobre o Governo;
em todos os campos da vida social, política e cultural,
a luta se dá contra a opressão clerical pela abolição da
mão-morta e do foro eclesiástico e pela laicidade do
Estado e do ensino; e, enfim, luta-se contra as
monarquias absolutas, a fim de se conseguir
Constituições,
instituições
representativas,
responsabilidade de Governo, em outras palavras,
novas instituições que, muitas vezes, não passam de
um compromisso entre absolutismo e revolução,
monarquia e soberania popular. Este compromisso, sob
a pressão das forças democráticas, se revela
prejudicial à monarquia, mesmo se do antigo Estado
absolutista permanecem as grandes estruturas, como a
burocracia e o exército permanente. O mesmo vale a
respeito da nação: o princípio liberal de nacionalidade
postulava, ao mesmo tempo, a unidade da nação,
quando dividida em Estados diferentes, sua
independência, quando submetida à dominação de um
Estado estrangeiro, e sua liberdade, isto é, aquelas
estruturas institucionais que possibilitassem sua livre
expressão e o exercício, no contexto europeu, de sua
missão específica. O Estado nacional, apto para
proporcionar expressão política ao espírito da nação,
se configura como a característica sintética da era
liberal.
É difícil concordar plenamente com esta redução do
Liberalismo a ideologia básica da era liberal. Com
efeito, na Europa da Restauração, essa época não
surgiu por acaso: ela teve não apenas um prólogo, ao
nível das idéias (por exemplo: o indivíduo como fim),
no contexto cultural da Europa moderna, a partir do
humanismo, mas principalmente herdou o Estado
liberal, definido aos poucos pela tradição multissecular
da Inglaterra ou pela experiência revolucionária dos
Estados Unidos e da França. Terminada a era liberal,
após a extensão do sufrágio eleitoral e o conseqüente
nascimento dos partidos de massa — com ideologias
muitas vezes anti ou a-liberais —, mesmo assim o
Estado liberal (no que ele tem de específico) não
desapareceu, ao contrário, continua ainda na forma
liberal-democrática. Talvez por estes motivos, por estar
demasiadamente enraizado na "específica" história da
Europa, o Liberalismo se configura como um ideal e
uma estrutura política de difícil exportação.
É necessário, portanto, utilizar outra ótica, que
focalize não apenas os grupos ou as idéias ou
LIBERALISMO
691
desejos, e portanto para ser livre, o homem precisa
não encontrar obstáculos e, quando eventualmente os
encontrar, precisa possuir também a força (ou o
poder) para coagir e subordinar os outros homens.
Temos aqui uma liberdade que implica, pois, a
desigualdade. Se a liberdade coincide com o poder,
quem tem maior quantidade de poder será mais livre:
paradoxalmente, o homem verdadeiramente livre é o
déspota.
Este tipo de liberdade foi descrito por Hobbes,
quando definiu a condição do homem no estado
natural, ou por Freud, quando colocou no princípio do
prazer o instinto constitutivo da natureza humana.
Todavia, contratualistas e psicanalistas concordam em
evidenciar
a
desproporção
existente
entre
necessidades e instintos, por um lado, e os meios e
recursos para satisfazê-los, por outro, visto estes últimos
serem de fato escassos e limitados. Nasce, assim, a
política entendida como poder decisório quanto à
distribuição destes meios e destes recursos: o homem,
não tendo condições para tudo possuir, consegue pelo
III. O SUBSTANTIVO LIBERDADE. — Se a reconstrução menos algo, dobrando-se à autoridade ou ao princípio
do mapa dos diferentes partidos ou movimentos de realidade. Em outras palavras, em todos os grupos
liberais do século XIX não nos possibilita chegar a uma sociais que tenham um mínimo de organização, a
satisfatória definição de Liberalismo, talvez seja útil liberdade dos indivíduos, para fazerem o que mais lhes
tentar o caminho contrário, buscando identificar apetece, é mais ou menos limitada, conforme a opinião
aquele valor de que os liberais, pelo seu próprio nome, das classes dominantes acerca da nocividade social
se proclamam arautos, isto é, o de "liberdade". De desta ou daquela liberdade natural.
uma definição histórico-empírica passamos assim para
Precisamos, neste ponto, passar para outra definição
uma definição essencialmente teórica, do adjetivo para da liberdade, radicalmente contrária à que tem seu
o substantivo.
ponto de partida na liberdade natural e chega a
Neste campo, não interessa o antigo problema do identificar a liberdade com a força. Esta contrapõe a
livre-arbítrio; também desperta um interesse apenas verdadeira liberdade ao arbítrio do indivíduo, que não
marginal, devido a suas simplificações políticas, o é livre no imediatismo e espontaneidade de agir, mas
fato de o homem, pela sua própria natureza, estar pode tornar-se livre na medida em que busca adequarsujeito à lei de causalidade, e ser, conseqüentemente, se a uma ordem necessária e objetiva onde se encontra
objeto de estudo por parte da biologia, da antropologia a essência da verdadeira liberdade. Em lugar de
e da psicologia. Nada disso interessa, uma vez que, do "posso (ser livre), porque quero e porque tenho o poder
ponto de vista científico ou experimental, a liberdade para agir", afirma-se "posso, porque devo, e devo na
não pode ser demonstrada, assim como não pode ser medida em que, enquanto homem, participo de uma
demonstrado seu contrário. Ocupar-nos-emos, pois, ordem racional". O instrumento de liberdade é, pois, o
da liberdade unicamente em relação ao agir humano conhecimento, isto é, algo radicalmente contrário ao
(e portanto também à política) e não da liberdade instinto, assim como o homem no Estado natural é o
interior, com fundamento nas três principais definições oposto do homem racional que vive em sociedade. A
dadas pelo pensamento político-filosófico moderno verdadeira liberdade se manifesta, pois, como
acerca do agir livre: a liberdade natural, a racional e a consciência da necessidade racional.
libertadora.
É difícil sintetizar em que consiste esta ordem e,
Antes de tudo, é útil considerar a concepção portanto, esta liberdade, uma vez que as respostas
naturalística da liberdade: o homem é verdadeiramente variam conforme os diferentes pensadores.
livre quando pode fazer tudo aquilo que o satisfaz. Resumidamente, podemos indicar duas orientações
Trata-se de uma concepção naturalística, na medida bastante diferentes: uma que enfatiza o homem
em que o agir humano segue ou obedece aos próprios principalmente na sua dimensão antropológica, às
instintos ou apetites ocasionais; porém, para conseguir vezes até numa ordem cósmica global.
satisfazer os próprios
a era liberal, e sim o Estado liberal, passando das
partes para o todo. Se os liberais tiveram perto de si
reacionários e revolucionários, autoritários e
democratas, clericais e socialistas, o Estado liberal
demonstrou uma continuidade surpreendente e uma
capacidade de acomodação às situações históricas
novas e de sobrevivência diante do totalitarismo, que
parece acabar em definitivo com a experiência liberal
européia. Em outras palavras, não podemos olhar para
o Liberalismo como sendo uma simples ideologia
política de um partido, mas como uma idéia encarnada
em instituições políticas e em estruturas sociais.
Todas as grandes ideologias do século XIX — a
democrática, a nacionalista, a católica (nos seus
aspectos reacionário ou social), a socialista — na
medida em que se afastaram explicitamente do
Liberalismo, buscaram a edificação de uma outra
forma de Estado que, conforme a matriz ideológica,
poderia ser um Estado autoritário ou uma democracia
populista ou totalitária.
692
LIBERALISMO
e outra que o encara na sua dimensão social. A
primeira apresenta apenas um interesse marginal: é a
encontrada na filosofia helenística, em Spinoza e em
Freud; segundo esta orientação, o homem se torna
livre na medida em que identifica e domina suas
paixões e seus instintos. E possível abster-se daquilo
que o indivíduo não tem condições de dominar; é
necessário acomodar-se àquelas necessidades que
correspondem a uma ordem cósmica; é necessário
elevar ao nível da consciência a vida instintiva através
da auto-análise.
A segunda orientação, e que se propõe focalizar a
posição do homem na ordem social, define a
liberdade de maneira estática (nos séculos XVII e
XVIII) ou de maneira dinâmica (no século XIX): no
período que vai entre a primeira e a segunda
definição, encontramos a teoria do Estado e a filosofia
da história, de Hegel. Para os primeiros (Hobbes,
Spinoza, Rousseau), a verdadeira liberdade existe
unicamente no Estado (absoluto ou democrático) que,
ao mesmo tempo, concretiza a ordem e se faz portador
de um valor ético, uma vez que, no momento do
Estado, o egoísmo do indivíduo é abafado e superado
numa vontade mais elevada ou maior que abrange em
si também o alter ou o socius. Para os segundos (Marx
e Comte), a verdadeira liberdade consiste na
consciência dos caminhos da história e no agir
conseqüente para realização de sua finalidade
imanente, uma sociedade sem classes ou a ordem social
planificada pela ciência. Enquanto a liberdade natural
é sempre liberdade do Estado, esta, ao contrário, é
liberdade no Estado (ou na classe ou na ordem
descoberta pela ciência).
Temos, enfim, uma terceira definição de liberdade
que, de maneiras diferentes, participa da primeira e da
segunda. Com efeito, por um lado, enfatiza o fato de a
verdadeira liberdade não consistir na espontaneidade
natural, e sim na emancipação ética do homem;
todavia, por outro lado, afirma não existir um critério
objetivo e necessário para determinar o que vem a ser
o bem e o mal, nem tampouco, um poder (a Igreja, o
Estado, a classe, o partido, a ciência) que seja o
intérprete e o executor deste critério. Em outras
palavras, a verdadeira liberdade consiste na
possibilidade situacional que o homem tem para
escolher, manifestar e difundir seus valores, morais
ou políticos, a fim de realizar a si próprio.
Falou-se em possibilidade situacional porque, para
ser livre, duas condições precisas têm que ocorrer. Por
um lado, é preciso maximizar as possibilidades
objetivas de opção num sistema político e num
contexto social que assegurem um real pluralismo
para as vocações e as profissões: não é de fato livre
quem se acha forçado a
escolher entre aceitar ou rejeitar, entre a presença ou
o silêncio; além disso, uma sociedade é tanto mais
livre quanto menor é a distância entre as vocações e
as profissões. Por outro lado, é preciso, também,
minimizar os condicionamentos (internos e externos)
que podem atuar sobre os motivos e os móveis da
ação. Retomando alguns temas focalizados
superficialmente neste parágrafo, é preciso lembrar
que não apenas os processos normais de socialização
(a partir da educação até aos mass media), mas
também a psicologia e a biologia, utilizados
instrumentalmente pelo poder político, podem
condicionar as opções individuais. Além disso, os
indivíduos, mesmo sem estes condicionamentos, para
serem livres, precisam, mediante o conhecimento,
dominar os próprios instintos e as próprias paixões.
Nesta terceira definição passamos necessariamente
de uma "liberdade de auto-emancipação ou de
realização de si próprio" para uma "liberdade dos
condicionamentos externos e internos". A liberdade
de fazer supõe assim a liberdade de poder fazer:
sublinhamos a palavra poder justamente porque ela
permanece, de alguma maneira, relacionada com a
liberdade, visto que a liberdade de querer supõe, ao
nível da ação, algumas garantias, isto é, ausência de
impedimentos e condicionamentos externos e internos
e, portanto, uma possibilidade de poder. Em outras
palavras, exige a existência de um espaço público que
possibilite e garanta, ao mesmo tempo, a livre
manifestação das faculdades humanas bem como a
dos processos políticos e sociais. Esta passagem
necessária não implica, porém, que a liberdade venha
a ser um status política e socialmente garantido; ela
nada mais é do que uma condição ou um pré-requisito
para a possível manifestação da liberdade, para a
emancipação ou a realização do homem, sempre na
dependência de uma opção ou, melhor ainda, de uma
sua ação. Neste sentido, entende-se por ação livre
aquela que tem condições para chamar à existência o
que não existia, quebrando desta forma os processos
histórico-sociais que, pela repetição passiva das
finalidades da ação, correm o risco de se tornar
automáticos e cristalizados. Precisamos, ainda, definir
se o espaço onde esta liberdade se manifesta é um
espaço essencialmente particular, que possibilita ao
homem testemunhar seus valores morais, ou se é
espaço "político", para contribuir na definição de
opções visando qualidade de vida
Estas definições da palavra liberdade trazem pouca
ajuda para identificar o fenômeno histórico do
Liberalismo, visto serem por demais abrangentes.
Podemos, de fato. resumir nestas três definições toda a
história da moderna filosofia política; bem como
poderíamos resumir nelas todas
LIBERALISMO
aquelas formas de organização do poder que nada têm
de liberal, da absolutista para a democrática (pura) e à
socialista (soviética). A análise feita até este ponto,
pode, todavia, ter utilidade se nos perguntarmos qual é
a resposta dos pensadores, normalmente considerados
"liberais", ao problema destas três liberdades: a
liberdade natural, a liberdade na ordem racional, a
liberdade como auto-emancipação.
Nenhum pensador liberal se opõe a que o Estado
limite a liberdade natural ou o espaço de arbítrio de
cada indivíduo. Isto, porém, com duas condições bem
definidas: a primeira consiste na preocupação de
conciliar o máximo espaço de arbítrio individual (o
homem contra o Estado repressivo) com a
coexistência dos arbítrios alheios, com base num
princípio de igualdade jurídica; a segunda impõe que,
para limitar a liberdade natural, deve ser utilizado,
como instrumento, o direito — a norma jurídica geral
válida para todos —, um direito que seja expressão de
um querer comum (Kant). Em suma, a decisão acerca
da nocividade, ou não, desta ou daquela liberdade
natural, bem como o conseqüente controle social
levado a efeito pelo direito, deve ser uma resposta à
opinião pública e às formas institucionais, mediante as
quais a mesma se organiza.
Historicamente, os pensadores liberais defenderam,
contra o Estado, duas liberdades naturais. Na época
do capitalismo nascente, lutaram a favor da liberdade
econômica: o Estado não deveria se intrometer no
livre jogo do mercado que, sob determinados aspectos,
era visto como um Estado natural, ou melhor, como
uma sociedade civil, fundamentada em contratos entre
particulares. Aceitava-se o Estado somente na figura
de guardião, deixando total liberdade (laissez faire,
laissez passer) na composição dos conflitos entre
empregados e empregadores, ao poder contratual das
partes; nos conflitos entre as diferentes empresas (no
âmbito nacional assim como no supranacional), ao
poder de superação da concorrência que sempre
recompensa o melhor. No período pós-industrial e
tecnológico, foi reivindicada, pela esquerda, a
liberdade sexual bem como a do uso de drogas contra
as inibições de uma moral julgada, ao mesmo tempo,
cristã e burguesa, sacramentai e ligada ao sistema
produtivo, para alcançar a ressurreição terrena da
carne.
De forma diferente, ambas são liberdades naturais,
que privilegiam o mais poderosos quer no mercado
quer na busca do prazer; conseqüentemente, estas
liberdades acabam por gerar conflitos e violência bem
como uma diminuição de tutela jurídica, tarefa natural
em função da qual se formou o Estado moderno.
Muitos pensadores liberais, porém, sempre aceitaram
uma dose mais
693
ou menos elevada de conflitos e de violência no
âmbito do Estado, justamente a fim de ampliar o
espaço do arbítrio ou da liberdade natural do homem,
nunca, porém, renunciaram à intervenção, em última
instância, do Governo como poder de julgamento
entre as partes em luta (mediação nas questões
trabalhistas,
protecionismo,
leis
contra
os
monopólios), ou como órgão defensor das posições
mais fracas (salvaguarda dos direitos civis, reforma do
direito de família, dando particular atenção aos
menores e à situação da mulher, luta contra as drogas
pesadas).
Pelo contrário, os liberais foram abertamente
contra o princípio de liberdade no Estado, no caso
deste princípio não ser entendido unicamente como de
liberdade política, isto é, como participação na
definição das orientações políticas do Governo,
enquanto reivindicam plena liberdade social (de
palavra, de reunião, de associação, de imprensa, de
empresa) em relação ao Estado. Os liberais, com
exceção dos que se inspiraram na filosofia de
Rousseau ou de Hegel, nunca acreditaram que a
vontade geral, manifestada pelo Estado, fosse
qualitativamente diferente do somatório ou, melhor, da
agregação, fruto de compromissos, das vontades
particulares de indivíduos e de grupos. Além disso,
sempre combateram a afirmação de que o Estado,
como concreta universalidade, é o portador e o
concretizador do valor ético, a que deve se reduzir
substancialmente a vida do indivíduo, por ser o
Estado visto, por um lado, como Governo (isto é,
como uma parte em relação a um todo que é a
sociedade) e, por outro lado, como simples
organização política e jurídica da força, que, para o
liberal, precisa buscar no consenso a própria
legitimidade.
O pensador liberal, porém, embora seus ideais se
oponham a quem pensa existir uma ordem necessária e
objetiva da qual alguém seja o intérprete e o fiador,
sente-se forçado a aceitar a idéia de um bem absoluto,
que é justamente o Estado liberal. Continua sendo um
bem absoluto, embora retirado do campo da ética
(liberdade interior) e submetido ao campo do direito
(liberdade exterior), embora o Estado liberal tenha
que ser moralmente neutro e só possa permitir uma
organização da sociedade em que cada indivíduo e
cada grupo social tenha condições para perseguir
livremente seu próprio objetivo e escolher seu próprio
destino, ou sua própria maneira de ser no mundo, sem
que ninguém (nem homens, nem grupos) possa
impedi-los, enfim, mesmo em se tratando de um
Estado reduzido a um mero procedimento político e
jurídico. É um bem absoluto justamente porque
pressupõe, como valor, o indivíduo visto como fim e
não como meio, o princípio do diálogo, a
superioridade da persuasão sobre a
694
LIBERALISMO
imposição, o respeito pelos outros, e, através deste
valor, a significação positiva das diferenças e da
diversidade. Em síntese: o Liberalismo absolutiza um
método, não os fins.
O Estado liberal, como bem absoluto, não passa de
um ideal limite ou orientador da experiência política,
uma vez que conflitos ou tensões, próprios de uma
estrutura pluralista, nem sempre são resolvidos pelo
diálogo ou pela persuasão, ao contrário, muitas vezes a
força atua como fator decisivo; trata-se, porém, de uma
força que aceita uma regra jurídica; é melhor conferir
do que quebrar a cabeça. Apesar, porém, desta
tentativa para regulamentar o uso da força, é preciso
reconhecer que não foi eliminada a existência dos
poderosos e dos fracos no mercado político e social: a
tentativa de legitimação da força, transformando-a em
poder (legítimo), nunca a elimina por completo,
permanecendo de pé o Estado natural justamente nos
espaços não ocupados pela sociedade civil (por
exemplo, o mercado econômico assim como o
mercado político)
A terceira definição de liberdade (liberdade como
emancipação e auto-realização do homem) parece
captar a verdadeira liberdade liberal; precisamos,
porém, reconhecer que, nas teorizações efetuadas a
respeito desta definição, muitas vezes prevalece o
elemento ético (o de uma liberdade que poderia se
desenvolver unicamente na esfera particular) sobre o
elemento político da gestão do poder: dentro da visão
mais ampla possível, poderíamos entendê-la como
liberdade da política, na medida em que, para alguém
ser livre, basta que faça unicamente o que está em seu
poder. Vale lembrar que no Estado moderno existem
fortes tendências que levam a um máximo de nãopolitização e de neutralização do indivíduo no campo
de seu mundo particular e não político.
Este Liberalismo ético corre o perigo de se
apresentar como atitude aristocrática, reivindicada por
algumas elites, como política de intelectuais. A
ausência do momento especificamente político é
explicada, em parte, pelo fato de tais reivindicações
emergirem principalmente durante períodos em que as
estruturas autoritárias do Estado não permitem
atividades políticas, ou durante períodos em que a
mobilização totalitária dos indivíduos faz serem
políticas todas as manifestações da vida: basta lembrar
a reivindicação de liberdade religiosa no período do
absolutismo ou a "religião da liberdade" de Croce na
era dos totalitarismos. O pensamento político liberal
(com Locke, Montesquieu, Constant) sempre reafirmou
que a liberdade política, ou seja, a efetiva participação
dos cidadãos no poder legislativo, é, em última
análise, a única verdadeira garantia de todas as outras
autônomas liberdades,
enquanto Tocqueville achava que a verdadeira
instância ética liberal somente poderia se concretizar
na atividade política.
Mediante esta nova leitura, das três definições do
conceito de liberdade auxiliados pelos "clássicos" do
Liberalismo, não conseguimos ainda defini-lo. Os
resultados obtidos através da reconstrução "histórica"
do mapa dos movimentos e das idéias liberais, bem
como do exame "teórico" das diferentes definições de
liberdade, nos proporcionam todavia referenciais para
examinar — sempre de forma crítica — algumas
definições históricas, bem amplas, do Liberalismo. Os
referenciais são proporcionados justamente por estas
duas linhas convergentes que devem servir para
focalizar corretamente o Liberalismo: por um lado,
um dado "duro" ou "frio", o Estado liberal com seus
mecanismos jurídicos e políticos; por outro lado, um
dado "flexível" ou "quente", a real evolução cultural,
política e social que caracteriza a emancipação humana
de estruturas autoritárias e a ruptura dos automatismos
dos processos histórico-sociais, em outras palavras, os
diferentes momentos liberais.
IV. LIBERALISMO E CIVILIZAÇÃO MODERNA. — Vamos
examinar agora duas maneiras de interpretação do
Liberalismo e de ambos daremos a definição: a
primeira, "temporal", na medida em que se propõe a
interpretar o espírito de uma época; a segunda
"estrutural", na medida em que se propõe a interpretar
as estruturas, sejam elas institucionais (o Estado) ou
sociais (o mercado, a opinião pública). Uma vez que
avançamos tipologicamente, podemos afirmar que a
primeira dominou a cultura política no período entre
as duas guerras, enquanto a segunda veio se definindo
e caracterizando neste após-guerra. Ambas, todavia,
se situam no mesmo horizonte de discurso: o
Liberalismo é um fenômeno que caracteriza a Europa
na Idade Moderna. Esta afirmação é correta, quando o
uso do adjetivo "moderno" é apenas neutro e
descritivo (após o século XVI): muitas vezes, porém,
este uso é altamente valorativo (o bem após o mal),
visto que o "moderno" tem um "valor". Este enfoque é
bastante perigoso e acarreta graves riscos de não se
compreender bem o Liberalismo no plano histórico,
riscos que procuraremos mostrar falando em três
"preconceitos": o filosófico (§ IV), o jurídico e o
histórico (§ V).
Antes de tudo, precisamos observar que, se tudo
aquilo que acontece no "moderno" se acha
positivamente relacionado com o Liberalismo,
acabamos por transformar a proximidade de processos
históricos diferentes numa sua coincidência.
Chegamos, assim, muitas vezes a ter uma
LIBERALISMO
visão providencialista e triunfalista do Liberalismo,
visão que esquece a dureza de suas lutas, suas
freqüentes derrotas e a diversidade de suas estratégias,
conforme as diferentes circunstâncias históricas.
Enfim, perde-se de vista os momentos liberais
concretos para se ter um Liberalismo — pelo menos
até a segunda metade do século XIX — sempre no
ápice da história: o Liberalismo, na sua história mais
autêntica, não coincidiu sempre com o Governo, visto
ter-se encontrado muitas vezes em posições de
oposição radical, quando não até de heresia.
Além disso, esta interpretação unitária do
Liberalismo na Idade Moderna leva à descrição de seu
nascimento, de seu apogeu e de seu ocaso. Nas
interpretações temporais, mais otimistas, o Liberalismo
encontrará sua plena verdade e sua superação no
socialismo, este também filho da modernidade (De
Ruggiero e Laski). Nas interpretações estruturais, mais
pessimistas, o fim do Liberalismo será um fenômeno
de autodestruição e coincide com a "crise" da Europa
(Habermas, Koselleck); a verdadeira face do
Liberalismo será evidenciada pelo seu rápido modificarse em fascismo (Marcuse, Horkheimer), como
conseqüência da transformação do mercado: seriam,
em suma, duas formas de domínio "burguês" (Kühnl).
Com efeito, num primeiro momento, os capitalistas
individualmente operam no mercado, mediante a
posse efetiva das propriedades particulares, garantida
por um Estado neutro; em seguida, porém, mediante o
capitalismo monopolístico ou o capitalismo de Estado,
é eliminado todo e qualquer espaço de liberdade e se
envereda pelo caminho da sociedade global da pura
dominação, sociedade regida por uma razão que conta
unicamente a grandeza e as coisas, enquanto
marginaliza a liberdade e a fantasia dos homens.
As interpretações temporais do Liberalismo,
procurando definir seu espírito, buscam todas o
"prólogo no céu" das formas históricas do Liberalismo
(De Ruggiero, Laski). Este espírito consiste na nova
concepção do homem, que foi se afirmando na Europa
em ruptura com a Idade Média, e que teve, como suas
etapas essenciais, a Renascença, a Reforma e o
racionalismo (de Descartes ao iluminismo). A
Renascença, pela sua concepção antropocêntrica em
contraste com o dualismo medieval, pela sua
percepção orgulhosa e otimista de um mundo a ser
inteiramente conquistado, representa a primeira
ruptura radical com a Idade Média, onde não havia
espaço cultural para a consciência do valor universal e
criador da liberdade, oferecida unicamente sob a
forma de privilégios. Mais tarde, a Reforma
protestante — principalmente o calvinismo — traz a
doutrina do livre exame, derruba
695
o princípio da necessidade de uma hierarquia
eclesiástica como órgão de mediação entre o homem e
Deus, emancipando assim a consciência do indivíduo,
ministro do Deus verdadeiro, que pela ascese no
mundo (e não fora dele) pode disciplinar
racionalmente toda a própria vida. Por analogia, com
Descartes, há uma rejeição da tradição; a razão
encontra em si mesma seu ponto de partida,
eliminando pela dúvida metódica e pelo espírito crítico
todo dogma e toda crença, confiante apenas nos novos
métodos empírico-analíticos da ciência. Esta
revolução cultural encontrará sua plenitude política no
iluminismo, quando, em nome da razão, será
declarada guerra à tirania exercida sobre as
consciências pelo Estado, pela Igreja, pela escola, pelos
mitos e pelas tradições; quando, enfim, será dado o
ponto de partida para a aplicação do espírito científico
ao domínio da natureza e à reestruturação da
sociedade.
Tem sido este o longo processo histórico que levou
o indivíduo a se sentir livre, a ter plena consciência de
si e de seu valor e a querer instaurar plenamente o
regnum hominis sobre a terra. As origens do
Liberalismo coincidem, assim, com a própria formação
da "civilização moderna" (européia), que se constitui
na vitória do imanentismo sobre o transcendentalismo,
a liberdade sobre a revelação, da razão sobre a
autoridade, da ciência sobre o mito.
O limite desta reconstrução temporal do
Liberalismo está principalmente num preconceito
"filosófico", que leva a resultados não mais
defensáveis, ao nível da crítica histórica. Um fenômeno
estritamente político, como o Liberalismo, é
interpretado, de acordo com este enfoque, a partir da
tradicional divisão em períodos da história da filosofia
moderna, entendida como vitória do subjetivismo sobre
a transcendência, ou como redescoberta do absoluto
no próprio homem, de tal forma que o mesmo é
universalizado. Nesta reconstrução, é limitado o valor
atribuído aos clássicos do Liberalismo, todos ligados à
política, enquanto um valor excessivo é atribuído aos
clássicos da filosofia, de tal forma que se corre o risco
de transformar o Liberalismo na expressão política da
filosofia "moderna". Em outras palavras, corre-se o
risco de transformar o Liberalismo numa concepção do
mundo, numa ideologia sincretista, reelaborada a
posteriori, com base nos mais diversos materiais
filosóficos. Na realidade, revela-se bastante difícil,
para não dizer impossível, inserir os clássicos do
pensamento político liberal numa história da filosofia,
focalizada por períodos, tendo por base o critério de
"moderno" (iluminista e romântico).
696
LIBERALISMO
Esta reconstrução temporal precisa ser revista numa
dimensão política e não filosófica, que considere os
processos sociais bem mais amplos e complexos. Não
há dúvidas quanto à estrita ligação existente entre o
Liberalismo e a teoria do individualismo, própria da
cultura da Europa moderna; embora as motivações
culturais, da Renascença ao romantismo, tenham
mudado consideravelmente. De qualquer forma, o
Liberalismo é apenas uma das soluções políticas desta
teoria, a que se revelou historicamente vitoriosa
mediante as várias Declarações dos direitos do homem
e do cidadão, que consagram a liberdade — no plural
— de cada cidadão. O enfoque filosófico, ao contrário,
leva a ressaltar, numa visão progressista (iluminista)
ou providencial (romântica), as etapas necessárias e
inevitáveis mediante as quais o homem se emancipa
até alcançar a "universal" razão abstrata do
iluminismo ou a "universal" razão histórica da
filosofia romântica. Nestes momentos, conforme os
diferentes autores, teríamos a plena consciência da
idéia liberal. Este Liberalismo filosófico, de origem
francesa (Rousseau, Condorcet) ou alemã (Hegel), visa
unicamente a liberdade individual — e por isso
mesmo absoluta — que o indivíduo alcança na medida
em que consegue atingir o universal, a vontade geral
ou a vontade do Estado, as únicas que são expressão de
autêntica liberdade. Em síntese: o enfoque filosófico
reduz a liberdade individual à vontade geral ou ao
Estado, enquanto o enfoque político pretende garantir
as liberdades empíricas do indivíduo.
Uma segunda diferença entre o Liberalismo na sua
interpretação filosófica e o Liberalismo na sua
interpretação política consiste no seguinte: o primeiro
exalta a unidade da vontade política soberana, o
segundo defende as diferenças entre os diversos
grupos sociais. Encontramos na história da Europa
moderna uma série de fenômenos culturais e sociais,
que quebram a ordem que sustentava o mundo
medieval e desarticulam a sociedade. Temos a Reforma
Protestante e o surgimento de uma pluralidade de
Igrejas e temos, também, a afirmação de um mercado
aberto, onde novos grupos sociais começam a
emergir, a tomar consciência de si e a entrar em
confrontos. O nascimento do Liberalismo se dá,
justamente, no momento em que se percebe que esta
diversidade não é um mal, e sim um bem. Percebe-se,
ainda, a necessidade de encontrar soluções
institucionais, que possibilitem a esta sociedade
"diferente" sua expressão. As duas grandes etapas que
caracterizaram a maturação do Liberalismo são: o
debate acerca da liberdade religiosa, com a necessária
separação entre o político e o religioso (Milton,
Locke), e a defesa dos
partidos políticos como canais para a expressão dos
diferentes grupos sociais (Hume, Burke).
Enfim, a própria concepção imanentista precisa ser
invertida e percebida, não como uma evolução ideal
(ou filosófica) que possibilita ao pensamento alcançar
a plenitude da autoconsciência, e sim como um
simples fato ou como um processo histórico-social,
característico da moderna história da Europa, chamado
hoje de secularização ou de morte de Deus: é neste
contexto que precisamos focalizar a história do
Liberalismo. E necessário não esquecer o processo de
laicização da cultura política, cada vez mais forte após
o século XVI; processo tornado inevitável pela
crescente complexidade da gestão do Estado moderno,
que exige cada vez mais técnicas racionais, baseadas na
quantificação, bem como atitudes de racionalidade
para uniformizar os dados fornecidos pela tradição. É
também necessário não esquecer o crescente processo
de difusão da cultura, a partir da invenção da imprensa,
que multiplicou a força e a difusão das idéias, até a
revolução dos mass media, que colocou os indivíduos
na condição de se sentirem sujeitos livres e autônomos
para emitir seus próprios julgamentos.
O subjetivismo moderno, fazendo com que o
indivíduo submeta progressivamente ao controle da
razão todas as formas condicionantes de seu viver
(religião, ciência, política, economia, ética, estética) e
chegue a se expressar nas maneiras mais diversas, não
representa apenas um fenômeno de evolução
filosófica, e sim, de maneira mais acentuada, um
verdadeiro processo social na direção de uma
crescente igualdade de condições e de pensamentos, de
maneira que a frágil subjetividade empírica se
sobreponha à idéia do sujeito transcendental. Neste
novo contexto social, aquele absoluto, que a filosofia
identificou como imanente ao indivíduo, revelou-se —
totalmente ao contrário — como sendo apenas uma
atitude de conformismo própria da sociedade de
massa, onde todos se consideram livres e autônomos
em seus pensamentos, após a eliminação de toda
autoridade institucionalizada e de todo valor
transcendental. Na realidade, neste tipo de sociedade,
aumenta a pressão da opinião comum que, com a
mudança dos costumes, possibilita grande espaço para
a livre manifestação de uma subjetividade totalmente
isenta de qualquer direcionamento.
Este preconceito "filosófico", que vê na
Renascença, na Reforma e no racionalismo o prólogo
do Liberalismo, leva a três equívocos bastante graves
do ponto de vista histórico e que não podem, neste
momento, ser ignorados. Está totalmente ausente do
pensamento liberal, sempre
LIBERALISMO
atento à realidade, o ideal renascentista de Prometeu,
a orgulhosa certeza de que o homem, quebradas as
correntes, teria realizado na terra sua emancipação
total, juntamente com a da humanidade. O radical
pessimismo antropológico, pelo qual compete ao
liberal apenas um trabalho paciente de reconstrução
contra as ameaças, sempre novas e diferentes, à
liberdade, não lhe permite chegar a esta visão
perfeccionista. Sua confiança no indivíduo não é
ilimitada; ela assume tonalidades otimistas unicamente
na polêmica contra o paternalismo de tipo absolutista,
que tinha seu ponto de partida na mesma premissa
antropológica pessimista e chegava a concluir que os
homens são incapazes de se autogovernar e de optar
pela própria felicidade (Kant).
O pensamento liberal, porém, não partilha também
do racionalismo construtivista característico de uma
parte do iluminismo, ou seja, daquela total confiança
na razão, sustentada pela vontade da maioria, ou na
ciência, como tendo condições para construir a
verdadeira ordem política, planejando a vida social.
Em outras palavras, o Liberalismo não acredita na
sociedade como uma máquina que possa ser
artificialmente construída de acordo com um modelo
doutrinário; ao contrário, vê a sociedade como um
organismo que precisa crescer de acordo com as
tensões provocadas pelas forças que nele se
encontram, na liberdade dialética dos valores por ele
manifestados (J. S. Mill). O marxismo parece ser o
herdeiro mais lógico do racionalismo construtivista do
iluminismo. Justamente por este seu posicionamento, o
Liberalismo é levado a exigir limitações ao poder
governamental, desconfia de uma verdade objetiva e
absoluta, estimula uma mentalidade experimental e
pragmática, que submete constantemente os próprios
enunciados a verificações empíricas, porque somente
assim é possível um confronto ou um diálogo positivo
entre posições políticas diferentes. Em suma, os
liberais se identificam mais com um método do que
com uma doutrina.
Porém, o pior engano consiste em ver no Liberalismo
uma conseqüência da Reforma (ou do puritanismo):
trata-se de uma tese bastante difundida, quer entre os
católicos integralistas, quer entre os liberais leigos, que
ignora as motivações radicalmente religiosas e não
liberais que animaram luteranos, calvinistas e
puritanos, e esquece que a Reforma se constitui na
antítese e não na continuação da Renascença. Se
alguns referenciais de procedência cristã foram
assumidos pelo pensamento liberal, eles têm origem,
tanto na tradição da Reforma católica (o livre-arbítrio
de Erasmo) quanto na tradição da Reforma
Protestante (o pessimismo antropológico). Todavia
estes
697
referenciais são assumidos num contexto de síntese,
que é político, secular e não religioso, visto buscar,
não a salvação ultraterrena, e sim uma ordem política
terrena, fundamentada nas liberdades civis e no
controle do poder político, que desta forma perde toda
fundamentação sagrada. É inegável que na França,
durante as guerras de religião, e na Inglaterra, antes e
durante as guerras civis, encontramos no debate
político um emaranhado de relações entre
argumentações constitucionais, teorias políticas
democráticas e motivações religiosas; tudo isto,
porém, é fruto unicamente de circunstâncias históricas
específicas. A secularização da cultura política
superará com facilidade este emaranhado de relações.
É nestes debates políticos que começam a se
definir, nuclearmente, os princípios do Liberalismo.
Porém, a verdadeira e autônoma face do Liberalismo se
manifesta somente na resposta, por ele dada, ao
problema da ruptura da unidade religiosa, resposta
que, num primeiro momento, se chama tolerância e,
num segundo momento, liberdade religiosa: a
liberdade religiosa é o berço da liberdade moderna. A
conclusão desta longa e complexa história, que
conheceu as contribuições dos políticos defensores da
tolerância em nome da razão de Estado, dos católicos
formados na tradição erasmiana, que preferiam a
persuasão à perseguição, dos setores mais radicais da
Reforma perseguida em toda parte, dos deístas e dos
ateus mais tarde, não foi evidentemente o Estado
democrático leigo com sua religião civil, nem o
Estado ético, figuras de Estado que chegaram até nós
mediante a tradição do jacobinismo francês, a
primeira, e do idealismo alemão, a segunda,
justamente porque os adjetivos "leigo" e "ético"
exprimem a religião do "moderno". Temos a
verdadeira conclusão no princípio, claramente
enunciado por Tocqueville, de livres Igrejas em livre
Estado, onde as Igrejas não representam um refúgio
para o indivíduo na sua particular individualidade, e
sim uma verdadeira e autêntica instituição política,
garante, para toda a comunidade, da riqueza da vida
ética e religiosa, capaz de se contrapor aos impulsos
edonistas da sociedade do bem-estar, que representam
o perigo mais sutil para a liberdade numa sociedade
democrática de massa.
V. LIBERALISMO, IDADE BURGUESA. — A
interpretação estruturalista, tradicional junto aos
juristas, foi retomada recentemente por historiadores
de inspiração marxista ou weberiana: o Liberalismo
seria filho do Estado moderno ou, em sentido mais
amplo, seria conseqüência ou resposta à nova
estruturação organizacional do
698
LIBERALISMO
poder, instaurando-se na Europa a partir do século
XVI.
O Estado moderno é definido como tendo o
monopólio da força (ou do poder de decidir em última
instância), atuando em três níveis: jurídico, político e
sociológico. No nível jurídico, atua mediante a
afirmação do conceito da soberania, confiando ao
Estado o monopólio da produção das normas jurídicas,
de forma a não existir direito algum acima do Estado
que possa limitar sua vontade: o Estado adquire, pois,
O poder para determinar, mediante leis, o
comportamento dos súditos. Os próprios direitos
individuais se apresentam, muitas vezes, apenas como
benignas concessões ou como expressão de
autolimitação do poder por parte do Estado. Além
disso, a soberania é definida, em muitos casos, em
termos de poder e não de direito: é soberano quem
possui a força necessária para ser obedecido, e não
quem recebe este poder de uma lei superior. No nível
político, o Estado moderno representa a destruição do
pluralismo
orgânico
próprio
da
sociedade
corporativista:
pela
sua
atuação
constante,
desaparecem todos os centros de autoridade
reivindicadores de funções políticas autônomas, tais
como as cidades, os Estados, as corporações, de tal
forma que venha a desaparecer toda mediação
(política) entre o príncipe, portador de uma vontade
superior, e os indivíduos, reduzidos a uma vida
inteiramente particular e tornados todos iguais
enquanto súditos. No nível sociológico, o Estado
moderno se apresenta como Estado administrativo, na
medida em que existe, à disposição do príncipe, um
novo instrumento operacional, a moderna burocracia,
uma máquina que atua de maneira racional e eficiente
com vista a um determinado fim.
Desta forma, a história do Liberalismo passaria pela
história do Estado absolutista, uma vez que a
afirmação do momento da autoridade seria a premissa
necessária para uma liberdade autêntica, que não fosse
apenas um privilégio de determinada classe ou grupo.
O Liberalismo (e/ou a democracia) representaria,
desta forma, a reconquista pelas bases deste tipo de
Estado, que já alcançou sua plenitude: o Liberalismo
levaria à autolimitação do Estado para garantir os
direitos públicos e subjetivos dos cidadãos; ao mesmo
tempo, a democracia serviria para legitimar este Estado
mediante o sufrágio universal. Esta tese é a expressão
do preconceito "jurídico", que leva a não compreender
de forma correta a história do Liberalismo e a não
conhecer satisfatoriamente a contribuição oferecida
unicamente por ele, na elaboração de procedimentos
jurídicos e estruturas institucionais garantidas. Do
ponto de vista jurídico, o Liberalismo, por estar
intimamente ligado ao constitucionalismo, sempre se
manteve fiel ao princípio (medieval) da limitação do
poder político mediante o direito, de tal forma que
somente as leis são soberanas, justamente aquelas leis
limitadoras do poder do Governo. Do ponto de vista
político, o Liberalismo sempre se apresentou como
defensor das autonomias e das liberdades da
sociedade civil, ou seja, daquelas camadas
intermediárias, mediadoras entre as reais exigências
da sociedade e as instâncias mais especificamente
políticas: sempre colocou a variedade, a diversidade e
a pluralidade, do jeito que se encontram na sociedade
civil, em contraposição, como valor positivo, ao poder
central, que opera de maneira minuciosa, uniforme e
sistemática. Do ponto de vista sociológico, nunca foi
própria do Liberalismo a idéia do Estado
administrativo, que, com o objetivo da ordem ou do
bem-estar ou da justiça social, confina os indivíduos
na sua vida particular: enquanto o Estado burocrático
proporciona um máximo de despolitização da
sociedade e de neutralização dos conflitos, os
pensadores liberais afirmam que justamente a política
precisa ser revitalizada (mesmo nas mãos de
categorias ou classes mais ou menos limitadas),
aceitando o custo que tal fato acarreta em termos de
conflitos, visto serem eles, quando mantidos no
contexto constitucional, expressão de vitalidade e não
de desordem.
Em síntese, este preconceito "jurídico" não deixa
perceber que o Liberalismo, dando continuidade ao
pensamento medieval, se caracteriza justamente como
a luta contra a afirmação do Estado absoluto, com
posicionamentos aparentemente diferentes nos diversos
países, conforme a maior ou menor atuação a nível
institucional dos princípios do absolutismo. Este
preconceito pode provocar, teoricamente, inúmeros
mal-entendidos: Locke, por exemplo, pode ser visto
por muitos como a expressão da aliança entre a
aristocracia e a burguesia, enquanto Montesquieu pode
ser enquadrado no contexto da reação aristocrática,
embora, substancialmente, seu pensamento não seja
muito divergente. Mais: pode-se afirmar que o
Liberalismo no século XIX aceitou o Estado
burocrático (autoritário), enquanto é justamente o
pensamento liberal, de Tocqueville a Weber, que vê o
Estado administrativo como a maior ameaça à política
e conseqüentemente à liberdade. Em suma, há o perigo
de não se compreender a natureza (liberal e não
democrática) e as origens (medievais e não modernas)
de uma instituição base para os atuais sistemas
constitucional-pluralistas,
a
do
controle
de
constitucionalidade das leis, cujo objetivo é justamente
o de garantir os direitos dos cidadãos, "em particular"
contra a vontade da maioria, e cuja existência é
LIBERALISMO
indispensável para que toda Declaração dos direitos
do homem não se torne, apenas, expressão de um ato
de boa vontade.
Esta interpretação jurídica foi reformulada
recentemente pela historiografia alemã (Koselleck,
Habermas, Kühnl) e inglesa (Macpherson), podendo
se constituir numa reformulação mais hábil de uma
tese marxista tradicional: ser o Liberalismo a
ideologia política da burguesia na sua fase
ascendente, quando o mercado possibilita margens de
lucro, enquanto, na época dos monopólios e da
planificação econômica, a burguesia optou pelo
Estado autoritário, seja o fascista (Laski, Marcuse),
seja o de capitalismo de Estado (Horkheimer).
De acordo com esta interpretação, a própria lógica
do Estado absoluto cria as premissas para sua
destruição: tal Estado, na prática, instaura uma rígida
separação entre política (ou área pública) e moral
(área particular), eliminando a moral da realidade
política e confinando os indivíduos, tornados meros
súditos, na área particular. Porém, no interior de todo
Estado absoluto, cria-se um espaço particular interno,
que a burguesia, uma vez tomada consciência da
própria moralidade, ocupa progressivamente, até
torná-lo público, embora não político imediatamente:
as ações políticas começam a ser julgadas pelo
tribunal da moral. Este tribunal da sociedade (clubes,
salões, bolsa, cafés, academias, jornais) chama-se
"opinião pública" e age em nome da razão e da crítica.
Enquanto na Inglaterra se dá uma verdadeira
coordenação entre moral (opinião pública) e política
(Governo), na França, com o iluminismo, o contraste é
radicalizado, preparando desta forma a crise
revolucionária. A burguesia liberal iria se firmando,
pois, no século XVIII, mediante o monopólio do poder
moral e do poder econômico, em relação ao qual o
Estado absoluto, enquanto Estado exclusivamente
político, tinha ficado neutro. Sua transformação e sua
destruição tiveram origem na opinião pública e no
mercado.
Porém, com o estreitamento do espaço ocupado pelo
elemento crítico, que é a opinião pública e a liberdade
de mercado, com o desaparecimento destes espaços
autônomos da sociedade civil, desaparecem também
os pressupostos estruturais da ação liberal da
burguesia. Por outro lado, ficou claro que o
individualismo, seja na versão ética, seja na versão
utilitarista, fundamento do Liberalismo, é a expressão
da própria estrutura do mercado, onde o indivíduo,
como proprietário, encontra-se totalmente livre, a não
ser no que se refere às voluntárias obrigações
contratuais: a sociedade mercantil e as instituições
políticas liberais de origem contratualista encontramse
699
numa relação indissolúvel. Disto decorre a inevitável
crise atual do Liberalismo, uma vez que a teoria tem
se revelado inadequada para servir de fundamento a
uma estrutura jurídica que considere o emergir da
classe operária com sua própria estrutura política,
baseada na solidariedade, que não admite as leis
inevitáveis do mercado.
Encontramo-nos diante do terceiro preconceito, o
"histórico", que dos três é com certeza o mais
enraizado: o Liberalismo é a ideologia da burguesia.
Tal preconceito se deve a dois erros metodológicos:
antes de tudo, dizer que a burguesia é uma classe nos
leva a cair no vago e no equívoco, porque o termo
burguesia, referido a um período histórico tão amplo
que coincide com a formação da Europa moderna,
pode significar os habitantes das cidades, os que
desempenham determinadas funções, os proprietários,
as classes mercantis, os capitalistas, a classe média de
profissionais liberais, os engravatados, as classes
dominantes (ou classe política). A burguesia se torna,
pois, um fantasma de mil faces, à qual dificilmente
podemos atribuir uma clara e consciente estratégia
para seu próprio desenvolvimento, que seria
justamente o Liberalismo.
O segundo erro metodológico consiste em induzir, a
partir da proximidade cronológica de dois processos
históricos bastante diferenciados (a Revolução
Industrial e a afirmação, quer da burguesia capitalista
como classe social hegemônica, quer do Liberalismo
político), relações não apenas contingentes e
transitórias entre os mesmos, reduzindo o Liberalismo
a mero subproduto da burguesia, quando,
historicamente, a burguesia capitalista nem sempre foi
liberal e nem sempre os liberais foram defensores
desta burguesia. Trata-se de uma interpretação
mecanicista, que acaba perdendo de vista o próprio
protagonista, na medida em que não consegue
entendê-lo a partir dele mesmo; totalmente presa à
evolução da burguesia, acaba por concluir
necessariamente que o Liberalismo terá que acabar ou
que irá se transformar necessariamente em fascismo
(admitindo que o fascismo é apenas um fenômeno do
capitalismo, na hora em que este atinge seu momento
de crise, e não uma etapa da evolução política,
conseqüência
do
atraso
do
processo
de
industrialização do país).
Trata-se de um preconceito porque, empiricamente,
podemos com facilidade desmentir esta identificação.
Com efeito, em primeiro lugar não ressalta todas as
reivindicações de liberdade política provenientes da
aristocracia e que foram decisivas (na Inglaterra e na
França) para destruir o poder absoluto do príncipe,
que muitas vezes na Europa, no período do despotismo
iluminado, encontrou apoio justamente na burguesia
700
LIBERALISMO
pré-capitalista e resistência na nobreza de toga ou na
burguesia da administração. Esta origem aristocrática e
não burguesa do Liberalismo precisa ser evidenciada,
justamente para a compreensão de alguns aspectos
mais significativos do Liberalismo contemporâneo: este
confia totalmente, contra a democracia populista, na
dialética entre elites abertas e espontâneas e, contra a
democracia administrada, no momento de luta ou de
confrontação política. A posição de Tocqueville é
sintomática: um aristocrata, porém "um liberal de tipo
novo" — como ele mesmo se definiu —, que
procurou inculcar no povo as paixões aristocráticas
em prol da liberdade.
Além disso, se o Liberalismo político,
principalmente na Inglaterra, identificou-se com o
Liberalismo econômico, precisamos reconhecer
também que nem toda a burguesia européia foi livrecambista, uma vez que muitas vezes aproveitou-se das
vantagens oferecidas pelo protecionismo do Estado,
forçando freqüentemente os liberais livre-cambistas ou
os livre-cambistas não-liberais (às vezes socialistas) a
ficarem na oposição.
Enfim, trata-se de verificar se, com o ocaso da
sociedade burguesa e o advento da sociedade de
massa, onde ocorreu um processo de proletarização
dos antigos aliados da burguesia capitalista, ou com o
advento das sociedades socialistas, onde a burguesia
detentora dos meios de produção foi eliminada para
favorecer uma "nova classe" burocrática, os temas
tradicionais do Liberalismo, ou seja, a defesa dos
direitos civis contra o poder político e social, bem
como a luta para maximizar a participação política
neste poder, são ainda atuais ou não.
Este enfoque, que busca dissociar o Liberalismo da
burguesia, percebida marxisticamente como a classe
detentora dos meios de produção, implica
necessariamente uma nova valorização do momento
ético do Liberalismo: este se nos manifesta como uma
resposta a necessidades morais e espirituais, vistas
pelos homens, em determinada etapa de sua evolução
civil, como uma resposta tendencialmente válida para
todos os homens e, portanto, universal. Este enfoque
implica uma desvalorização das motivações
extrínsecas do Liberalismo, isto é, daquelas respostas
que liberais ou burgueses ou burgueses liberais deram
a problemas contingentes, avaliados numa perspectiva
meramente política de razão de Estado, de
utilitarismo, de interesses particulares de classe.
Torna-se, assim, compreensível a pergunta acerca
da atualidade do Liberalismo: o Estado
contemporâneo identificou, com efeito, como
capitalismo de Estado (gerenciado pela velha
burguesia ou pela nova classe das burocracias
socialistas) o progressivo desaparecimento, quer da
opinião pública racional e crítica pela manipulação
dos mass media, quer do mercado, entendido como
espaço autônomo onde pode se dar o confronto entre
as diversas estratégias e onde os consumidores podem
livremente manifestar seu voto. A pergunta é: este
Estado contemporâneo permite ainda uma possível
manifestação pública e não apenas privada das
necessidades morais e espirituais do homem, ou, ao
contrário, procura uma concentração crescente em si
próprio, não apenas de poder político (como o Estado
absoluto), e sim também de poder moral-intelectual
(mediante os mass media), bem como de poder
econômico (mediante a planificação), tornando-se
desta forma nada mais do que o aperfeiçoamento ou a
lógica conclusão do antigo absolutismo?
Unicamente após levar adiante uma tentativa de
reconstrução histórica do Liberalismo, como
fenômeno "ético-político", inserido na evolução das
instituições políticas representativas dos Estados
europeus, será possível caracterizar a função do
pensamento liberal na dúplice tendência do Estado
contemporâneo em direção a uma solução "social" ou
em direção a uma solução "assistencial", para
descobrir se esta função se limita à conservação ou
não passa de mera projeção utópica, sem nenhuma
expectativa de realização prática, de maneira que a fé
liberal se sinta forçada a fechar-se no espaço particular
da consciência moral.
VI. As ETAPAS DO ESTADO LIBERAL. — Estes quatro
diferentes enfoques (histórico, filosófico, temporal e
estrutural) possibilitaram uma melhor focalização de
muitos aspectos do Liberalismo, porém evidenciaram
também a impossibilidade se se oferecer uma
definição satisfatória do mesmo justamente por ser
impossível delinear uma história do Liberalismo euroamericano como se este fosse um fenômeno unitário e
homogêneo, que se origina na passagem do
constitucionalismo medieval para o moderno no
período das guerras de religião e do naturalismo
jurídico, atinge seu apogeu no período da revolução
democrática (1776-1848) e entra em crise com o
advento dos regimes totalitários ou dos Estados
assistenciais. Todos estes fatos não impedem a
existência de "épocas" liberais, onde é possível
identificar duas constantes, uma a nível institucional,
outra a nível dos conteúdos ético-políticos.
Contra todas as possíveis formas de Estado
absoluto, o Liberalismo, ao nível da organização
social e constitucional da convivência, sempre
estimulou, como instrumentos de inovação e
transformação social, as instituições representativas
LIBERALISMO
(isto é, a liberdade política, mediante a participação
indireta dos cidadãos na vida política e a
responsabilidade do Governo diante das assembléias
e/ou dos eleitores) e a autonomia da sociedade civil
como autogoverno local e associativo ou como espaço
econômico (mercado) e cultural (opinião pública) no
interior do Estado' não diretamente governado por ele.
Do ponto de vista institucional, o Liberalismo se
configura como a racionalização, na Inglaterra, do
constitucionalismo medieval e, na América, da
experiência colonial; ou. como a tentativa, na França,
de revitalizar antigas instituições, num primeiro
momento, e projetá-las de acordo com modelos
racionais, num segundo momento; ou, na Alemanha,
como tentativa de racionalização jurídica do Estado
absoluto (o Estado de direito, os direitos públicos
subjetivos); ou como a reinterpretação da antiga
estrutura social por categorias, no contexto de um
Estado orgânico. Embora na Europa o momento
racionalista prevaleça sobre o tradicionalista, o
modelo anglo-saxônico, nas duas formas de regime
parlamentarista e regime presidencialista, encontra-se
em toda organização constitucional. Historicamente,
estas instituições liberais apresentam uma continuidade
realmente extraordinária e, com exceção dos dois
impérios franceses, apresentam um único verdadeiro
momento de ruptura com o advento do totalitarismo.
A história do Liberalismo, porém, não coincide com a
história das instituições liberal-democráticas: é verdade
que elas apresentam considerável continuidade e
resistência a mudanças repentinas,
todavia
encontramos no interior destas estruturas forças
políticas e sociais que agem com base em programas e
ideologias não-liberais, quando não explicitamente
antiliberais.
Quanto aos conteúdos ético-políticos, estes foram
vivenciados pelo Liberalismo de maneiras diferentes,
de acordo com os diversos movimentos culturais que
a ele se relacionam cronologicamente (a Renascença, o
racionalismo, o utilitarismo, o historicismo). A defesa
do indivíduo contra o poder (quer do Estado, quer da
sociedade) foi, porém, sempre uma constante, a fim de
ressaltar o valor moral original e autônomo de que o
próprio indivíduo é portador. Esta defesa sempre se
evidencia como a primeira tarefa, mesmo nos
pensadores que rejeitam uma concepção radicalmente
individualista: Locke, através de sua redescoberta da
comunidade como sede do valor moral, ou
Tocqueville, através de sua defesa do associacionismo
como único instrumento que possibilita a afirmação
da liberdade política do indivíduo. Expressão jurídica
deste complexo processo histórico são as várias Cartas
e Declarações dos direitos do homem e do cidadão, de
701
sua liberdade política, bem como de seus direitos civis,
e as formas, mais ou menos eficazes, da sua tutela
jurídica.
As guerras de religião, possibilitando a afirmação
da liberdade religiosa, são o berço da liberdade
moderna; todos os clássicos do Liberalismo se
mantêm fiéis a esta reivindicação da liberdade ética
do homem. Locke, indo mais adiante, reivindica, no
campo político, a autonomia da lei moral ou
"filosófica" em relação à lei civil, ou seja, do poder
espiritual do juízo moral que é atribuição da opinião
pública. Somente na construção teórica do utilitarismo
inglês, criticado justamente por John Stuart Mill, não
encontramos este elemento ético.
Esta defesa da autonomia moral do indivíduo
provoca uma concepção de relativismo, que aceita o
pluralismo dos valores como algo positivo para toda a
sociedade, a importância da dissenção. do debate e da
crítica e não recua diante do conflito e da competição.
A única limitação, para o conflito e a competição, é a
necessidade de sua institucionalização, nos costumes
mediante a tolerância, na política mediante instituições
significativas, que garantam o debate (o
parliamentum), e mediante normas jurídicas gerais,
uma vez que somente no direito é possível encontrar
um critério de coexistência entre as liberdades e/ou as
arbitrariedades dos indivíduos. Um tal relativismo não
é expressão de ceticismo, e sim de antidogmatismo,
visto pressupor uma total confiança na capacidade
crítica do pensamento, presente na cultura iluminista,
bem como na cultura historicista, desembocadas
ambas — a partir de aspectos diversos e de diferentes
contextos — no Liberalismo, que nos é
contemporâneo. Por um lado, no campo da política
econômica e social, é sublinhado o fato de que a razão,
para ser crítica, precisa submeter seus projetos e suas
soluções a contínuas verificações experimentais, se
não quiser cair na ideologia; por outro lado, partindo
da consciência do ser histórico ou da historicidade das
idéias, confia-se na capacidade que o pensamento tem
de convencer criticamente sobre a adequação de
determinados valores aos tempos.
Com isto, pode-se afirmar que a concepção liberal é
essencialmente competitiva, visto estar orientada a
colocar os indivíduos na condição máxima de autorealização, de onde adviria um bem para toda a
sociedade. Acredita na competição e no conflito, visto
somente estes poderem selecionar aristocracias
naturais e espontâneas, elites abertas, capazes de
impedir a mediocridade do conformismo de massa,
administrado por uma rotina burocrática (Tocqueville,
J. S. Mill, Weber, Croce). Vale lembrar que, para o
pensamento
702
LIBERALISMO
liberal, a teoria das elites corresponde a um fato
(pode, portanto, ser empiricamente falsificável) e não
a uma ideologia, enquanto justamente os que a negam
podem cair em formas perigosas de mistificação
ideológica. Ressaltado o fato, o liberal se sente
empenhado, justamente, na maximização da
participação mediante estruturas que possibilitem a
movimentação e a competição de uma pluralidade de
elites.
Posto isto, faz-se necessário articular alguns
destaques do Liberalismo que, nos seus momentos mais
válidos, se constituiu sempre uma resposta original aos
desafios,
sempre
renovados,
potencialmente
absolutistas, lançados pela evolução política e pela
mudança social: resposta mediante a qual o
Liberalismo sempre se apresentou mais como força
dinâmica do que como força orientada para a
manutenção dos equilíbrios existentes. Força
dinâmica orientada para a valorização, em termos
positivos, de todas as diferenciações que foram
acontecendo na evolução cultural, política e social da
Europa, rejeitando, desta forma, todo ideal político de
uniformidade, próprio do absolutismo. No início, foi
proposto o ideal de liberdade religiosa, em seguida foi
descoberta a função parlamentar dos partidos (Hume,
Burke), como expressão de grandes ideais políticos,
enfim, foi detectada a função das associações como
mais uma maneira de articulação da sociedade civil
(Tocqueville).
O primeiro desafio é caracterizado pela
transformação da monarquia constitucional medieval
em monarquia absoluta e burocrática. A luta do
Liberalismo contra o absolutismo tem seu ponto de
partida na reivindicação dos direitos naturais do
indivíduo e na afirmação do princípio da separação
dos poderes. Este princípio visa assegurar a
independência do poder judiciário, mero aplicador do
direito (quer seja uma lei, quer seja um costume) e, ao
mesmo tempo, deixar com o monarca a titularidade do
poder executivo, enquanto os representantes do povo
recebem a tarefa de definir, mediante a lei, a vontade
comum da nação (Locke, Montesquieu, Kant,
Humboldt, Constant). Os ministros
seriam
"criminalmente" e não "politicamente" responsáveis
diante dos representantes da nação.
O segundo desafio atinge o Liberalismo no poder e
coincide com o advento da democracia. Respondeu-se
a este desafio, antes de tudo, com a ampliação dos que
tinham direitos eleitorais e com a marginalização da
Câmara hereditária (que mais tarde iria se tornar
também eletiva) e, posteriormente, com a proposta de
uma divisão do poder político, quer na dimensão
vertical (autonomias locais, federalismo), quer na
dimensão horizontal, de tal forma que a antítese
maioria-minoria acabou ocupando o lugar da antítese
rei-Parlamento (Federalist, Adams, Tocqueville, I. S.
Mill).
Estes acontecimentos coincidiram com uma mudança
de interesses por parte do pensamento político. A
atenção não é mais dirigida para o Estado e suas
estruturas, jurídicas e institucionais, e sim para a
sociedade e suas estruturas, uma vez que também
desta — ou principalmente desta — podem advir
perigos e ameaças à liberdade do indivíduo, na
atomização generalizada do corpo societário. Contra a
concepção de democracia, vista como concretização do
bem comum mediante a vontade geral, ou
fundamentada na exaltação da vontade da maioria,
contra estas concepções monistas, afirmou, mais uma
vez — a nível de sociedade —, a validade do princípio
pluralista. Este princípio se concretiza onde há real
concorrência entre diferentes grupos para a conquista
do poder no mercado eleitoral, onde é grande a
autonomia dos subsistemas (partidos, sindicatos,
associações, grupos de pressão) do sistema político,
onde a elevada participação política permite controlar
os vários líderes, onde o pluralismo admite diferentes
centros de poder (político, econômico e cultural) e
poderes intermediários, desempenhando uma função
de mediação política, com capacidade para assegurar
espaços de autonomia; sinteticamente, onde há um
regime poliárquico.
Na Idade Contemporânea, temos duas formas de
Liberalismo bastante diferenciadas entre si, a
ocidental e a oriental (ou dos países do Leste), que, de
maneira radicalmente diferente, estão unidas no
desafio ao socialismo.
O Liberalismo ocidental apresenta-se unicamente
como metapolítico e pré-partidário (B. Croce), uma
vez que se tornou patrimônio de outros movimentos
políticos e que ninguém mais coloca em discussão as
estruturas do Estado liberal-de-mocrático: não pode
deixar de apelar para o ideal do império da lei e da
anarquia dos espíritos (Einaudi). Todavia, viu-se na
necessidade de oferecer uma resposta à questão social,
isto é, ao desafio do socialismo, quando este o
acusava de ser defensor de liberdades meramente
"formais", enquanto a grande maioria da população
não usufruía de liberdades "substanciais", lógico
pressuposto ou condição essencial para as primeiras. O
Liberalismo lutara fundamentalmente pelas liberdades
de (isto é, de religião, de palavra, de imprensa, de
reunião, de associação, de participação no poder
político, de iniciativa econômica para o indivíduo), e
conseqüentemente reivindicara a não interferência por
parte do Estado e a garantia para estes direitos
individuais, civis e políticos. O enfoque atual é
orientado
LIBERALISMO
para as liberdades do ou da (isto é, da necessidade, do
medo, da ignorância), e para atingir estas finalidades
implícitas na lógica universalista do Liberalismo
renunciou-se ao dogma da não-intervenção do Estado
na vida econômica e social.
O problema da conciliação da liberdade econômica
com a justiça social (ou o socialismo) foi colocado, pelo
Liberalismo, não como um problema ético — onde
não há questionamento de valores —, e sim como um
problema prático de como os meios podem
corresponder aos fins; ele pode, de tal forma, oferecer
uma contribuição altamente significativa e realista
para o reformismo democrático.
Por estes motivos, a melhor percepção do
Liberalismo ocidental contemporâneo se dá nos
diversos pensadores ou nas diversas escolas
interessadas na política econômica e na política social:
L. Einaudi, W. Röpke, Beveridge, a escola keynesiana,
a escola de Friburgo (W. Eucken) e a escola de
Chicago (M. Friedman, F. H. Hayek). Embora todos
subordinem à liberdade a solução da questão social (a
justiça), estas escolas se diferenciam em maior ou
menor grau de medo de que o Estado assistencial leve
inevitavelmente ao fim do Liberalismo. A resposta do
Liberalismo ao desafio do socialismo é, sem dúvida, a
mais difícil, uma vez que a maneira concreta de
realização das liberdades do ou da pode chegar a
comprometer a essência do Liberalismo, ou seja as
liberdades de. Resposta difícil, também, .porque as
formas modernas de Estado totalitário (mesmo de
coloração política oposta: comunismo e nazismo)
desenvolveram uma radical planificação da economia.
Em outras palavras, a diferença entre o Liberalismo e
o socialismo não está na menor ou maior rapidez com
que se pretenda concretizar as reformas, está na
"qualidade" da intervenção estatal ou na estratégia
geral do desenvolvimento social, que pode levar ao
Estado assistencial ou ao Estado social.
Aspecto totalmente diferente é o apresentado pelo
Liberalismo oriental, embora este não tenha ainda
mostrado completamente sua fisionomia: o máximo
intérprete deste Liberalismo é Milovan Gilas e sua
mais profunda expressão política foi a "primavera" de
Praga e, mais tarde, o "outono" polonês. O Liberalismo
do Leste nasce como tentativa para superar a solução
totalitária que o socialismo teve nestes países, na
convicção de que o socialismo poderá ser concretizado
somente pelo reformismo liberal. Caminha seguindo
três diretrizes básicas: a reivindicação das liberdades
individuais e civis, bem como de uma igualdade
objetiva; a defesa do processo de diferenciação da
sociedade, a fim de que as classes, os agrupamentos
sociais e os grupos nacionais possam se
703
tornar autoconscientes; e, finalmente, a redescoberta
da função do mercado numa economia socialista, para
tornar sua gestão mais eficiente e menos dogmática,
após retirá-la da "nova classe" constituída por uma
burocracia parasitária.
VII. O ESTADO LIBERAL: HOJE: ENTRE NEOCORPORATIVISMO E MERCADO. — Para concluir acerca
da atualidade do Liberalismo, podemos tomar como
ponto de partida uma afirmação de Keynes. De acordo
com esta afirmação, os sistemas políticos
democrático-liberais demonstrariam fatualmente sua
superioridade assegurando, ao mesmo tempo, um
máximo de eficiência econômica, de justiça social e de
liberdade individual. Esta tese serve não apenas para
confirmar — ou não — a superioridade dos sistemas
democráticos sobre os socialistas, mas também para
evidenciar os elementos problemáticos característicos
da coexistência de valores bastante diferentes, se a
liberdade não for entendida como uma mera situação
garantida pela lei. Em outras palavras, trata-se de ver,
tendo presente as inquietações da mais recente
literatura liberal, se a resposta que foi dada ao
problema da eficiência econômica, com a aceitação da
lógica técnica, ou ao da justiça social, com o reforço do
Estado administrativo, é compatível com o exercício,
pelo indivíduo, de uma efetiva liberdade política e
social: em síntese, se o Welfare State é realmente um
Estado liberal.
A luta contra a pobreza, a fim de concretizar a
liberdade da necessidade, nem sempre teve como
resultado um crescimento na participação política: na
prática, o tempo livre (particular) dos cidadãos foi
favorecido bem mais que a vivência concreta de suas
liberdades políticas formais, o lazer prevaleceu sobre
o compromisso. Além disso, a sociedade do bem-estar
tem provocado uma certa forma de incerteza
espiritual; como conseqüência, os fins do
desenvolvimento econômico começaram a ser
questionados, na medida em que o bem-estar de
amplos setores da população coexistia com o
desperdício e bolsões de pobreza, com a devastação
ecológica, com o tédio espiritual e a apatia política.
A- luta contra a pobreza, conduzida através da
maximização da eficiência do sistema econômico,
levou ao desaparecimento tendencial do mercado,
como espaço aberto e livre, em nome de uma
economia administrada de maneira centralizada
mediante a planificação. Com efeito, a distinção entre
Estado (política) e sociedade civil (economia) foi
desaparecendo progressivamente, na medida em que o
primeiro intervém cada vez mais na segunda mediante
suas programações e a gestão direta de grandes
empresas (o Estado-capitalista ou
704
LIBERALISMO
industrial), enquanto na segunda foram se firmando
grandes concentrações monopólicas, que precisam do
apoio e da sustentação do Governo.
A luta contra a ignorância alcançou em alguns países
sucessos extraordinários, quer pela ampliação das
estruturas educacionais, quer pela vastíssima difusão
dos mass media. Porém, também esta luta não tornou
o homem substancialmente mais livre em suas relações
com a sociedade, em comparação com os tempos em
que sua cultura era fundamentalmente oral. Apenas
tem sido possível transformar as massas em objetos de
manipulação política, cultural e econômica,
manipulando a consciência dos indivíduos. Os mass
media bombardeiam diariamente a cabeça do
espectador, de tal forma que criam nele emoções
passageiras — embora fortes — e não um profundo
hábito de crítica. Além disso, quando ficam nas mãos
do Estado ou de grandes conglomerados econômicos,
possibilitam uma real manipulação, de cima, da
opinião pública, marginalizando os grupos
minoritários do dissenso (tem o mesmo poder sobre o
mercado, viciando, mediante a publicidade, as opções
do consumidor).
As exigências da sociedade tecnológica levaram,
também, à marginalização da Kultur e à difusão de
um saber tecnicamente valorizável: as instituições
educacionais, pouco se preocupando com a formação
de hábitos críticos, pelo amadurecimento de idéias à
altura dos tempos e úteis para viver criticamente o
presente, se envolvem mais na setorização
generalizada do saber, na formação do "especialista
bárbaro" (Ortega y Gasset), útil para tornar mais
eficiente o sistema econômico. Desta forma,
justamente com o mercado, enfraquece a opinião
pública, como sede do juízo moral: a tendência é, pois.
o desaparecimento dos dois pilares do Liberalismo
clássico. E não é só: no desaparecimento tendencial
destes dois espaços, o poder político, o econômico e o
moral-ideológico acabam se concentrando nas mãos
de uma bem reduzida elite de poder, que pode exercer,
com relação à liberdade dos governados, inúmeras
formas de condicionamento, que se concretizam numa
efetiva coação jurídica, ou na pressão psicológica, ou
na chantagem quanto ao emprego.
Enfim, a luta contra a insegurança, para concretizar
a liberdade do medo, isto é, para amparar os
indigentes e os desempregados, os doentes e os
anciãos, os marginalizados e os discriminados,
provocou a formação de um sem-número de entidades
e agências burocráticas, que administram os cidadãos,
preocupando-se com a sua segurança e desempenhando
desta forma um papel anteriormente atribuído à
sociedade civil, que tinha na família e nas associações
suas sedes mais
idôneas. O Estado, pois, acaba interferindo em
problemas bem diversos dos tradicionais da manutenção
do direito e da ordem, visto criar um conjunto de
serviços para atender a necessidades comuns e para um
conjunto de finalidades sociais, cuja tendência é
crescer cada vez mais. Tal fato acarreta, por um lado,
a limitação do campo de opção, pelo cidadão, em
questões importantes de sua vida (saúde, velhice) e,
por outro lado, a ação paternalista das máquinas
burocráticas, que julgam como melhor lhes parece as
necessidades do cidadão e o bem comum, e agem sem
controles políticos eficazes ou participação real na
gestão por parte dos beneficiários, que perdem até o
poder de escolha. A segurança social, tem, portanto,
seus custos: a segurança favorece a apatia política do
cidadão, mobilizando-o somente para pedir ao Estado
(paternalista) sempre algo mais, provocando desta
maneira formas de alienação, entre o cidadão e o
sistema político, superáveis unicamente, mediante
formas concretas de participação.
O pensamento político liberal, atualmente, tem
consciência de que, para responder ao desafio do
socialismo, tem que optar entre o Estado assistencial,
forma modificada do velho "Estado policial", que
atribui a tarefa de concretizar o bem-estar ou as
finalidades sociais a máquinas burocráticas,
assumindo, de tal forma, em relação aos cidadãos,
uma atitude paternalista, e o Estado reduzido, que
responsabiliza os indivíduos — singular e
coletivamente — mediante o livre mercado. O Estado
assistencial leva irremediavelmente a uma sociedade
inteiramente administrada, onde não haveria mais lugar
para o Liberalismo. Tal fato determinaria o fim do
Estado liberal e o começo do Estado autoritário. Em
outras palavras, a tendência do Liberalismo
contemporâneo é evidenciar a incapacidade dos
Estados burocráticos para resolver a questão social,
pelo fatal desvio das organizações das funções
prefixadas (formação de uma nova classe agindo em
função de seu próprio interesse) e por haver uma
contradição intrínseca entre a lógica das máquinas
burocráticas e a lógica da participação.
Ou, então, o Liberalismo, fiel à sua vocação
antiutilitarista, segundo a qual não se deve destruir o
espírito livre do homem para alimentar o corpo, fiel à
sua velha aversão aristocrática por tudo o que vem do
alto, pode optar pela sociedade civil, de modo que a
resposta aos problemas da justiça e da segurança social
seja dada ao nível da sociedade civil e não ao nível
institucional-estatal, mediante subsistemas autônomos
do sistema político, mediante iniciativas independentes
e convergentes, realizadas por forças sociais
espontâneas, e não mediante ações
LIBERAL-SOCIALISMO
burocrático-administrativas. Em outras palavras, o
problema histórico, que atualmente está agitando o
pensamento liberal — de direita e de esquerda —, é
uma nova descoberta e uma adaptação a novos
contextos da função anteriormente desenvolvida pelas
autonomias locais contra o Estado burocráticocentralizador; é a afirmação sempre renovada da
primazia da sociedade civil, buscando formas novas
para que esta primazia possa se exprimir, deixando
com o Estado apenas a tarefa de garantir para todos a
lei comum, bem como a função de órgão equilibrador
e incentivador de iniciativas autônomas da sociedade
civil. A única alternativa desta volta à sociedade civil
e ao mercado é o NEOCORPORATIVISMO (V.) OU Estado
de corporações, que se baseia nas organizações dos
grandes interesses privados e na sua colaboração, a
nível político, nas decisões estatais. Desse modo, tais
organizações se incorporam no Estado.
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[NICOLA MATTEUCCI]
Liberal-socialismo.
I. As PRIMEIRAS FORMULAÇÕES. — Historicamente,
vale a pena recordar que, desde a primeira metade do
século passado, se falou, na Europa, em Liberalsocialismo ou socialismo liberal ou liberalismo
socialista. Na Alemanha, enquanto Marx ditava o
Manifesto do partido comunista, já circulava no debate
político a expressão liberaler Sozialismus; ao mesmo
tempo, na França e na Inglaterra, apareciam expressões
análogas. A aspiração a uma síntese entre socialismo e
liberalismo, desde então, tinha seu ponto de partida
em liberais insatisfeitos, bem como em socialistas de
diferentes correntes: porém, por razões históricas
facilmente intuíveis, eram sobretudo os liberais que
submetiam sua doutrina a uma crítica violenta.
Provavelmente foi o filósofo inglês John Stuart Mill
(1806-1873) o primeiro entre os teóricos do liberalismo
a ressaltar, no contexto da concepção liberal do
Estado, algumas instâncias colocadas pelo socialismo
pré-marxista europeu; especificamente, a exigência de
uma repartição justa da produção entre todos os
membros da sociedade, a eliminação dos privilégios
de nascimento e a substituição gradual do egoísmo do
indivíduo que trabalha e acumula unicamente em
benefício próprio por um novo espírito comunitário.
Além disso, enfatizando com clareza a distinção entre
ciência e política econômica e aceitando intervenções
estatais na economia, Mill foi, sem dúvida, o precursor
da intuição fundamental da ideologia liberal-socialista.
706
LIBERAL-SOCIALISMO
Porém, é na segunda metade do século XIX, mais
corretamente entre o fim do século e a primeira
metade do século seguinte, que o Liberal-socialismo
melhor se define como ideologia e, ao mesmo tempo,
desperta interesse e consenso crescentes junto a
minorias intelectuais em toda a Europa. Houve a crise
do marxismo e o quente debate acerca do
revisionismo, provocado pelos escritos de Eduard
Bernstein (1850-1932), que levantaram para os
socialistas uma questão crucial: como conciliar
hipóteses e princípios da doutrina marxista ortodoxa
com a realidade da sociedade capitalista e a práxis do
movimento operário organizado. Tais acontecimentos
conduziram os teóricos e os líderes do partido a
aceitarem mais ou menos explicitamente, alguns
princípios básicos da concepção liberal, abrandando
seu classismo, bem como sua resistência ao método
parlamentar, fazendo com que, na luta para a criação
de estruturas coletivas, fosse aceita a permanência da
economia de mercado. No mesmo período, deu-se
também o desenvolvimento da indústria e o avanço do
movimento operário, que forçaram, nos diferentes
países, os teóricos do liberalismo, ou pelo menos os
menos tranqüilos e mais questionados dentre eles, a
descobrirem limitações na ideologia defendida, que
parecia incapaz de resistir eficazmente, quer à
inserção de princípios imperialistas no contexto liberal,
quer à mensagem marxista, empenhada em proclamar
com ardor a necessidade de justiça social para as
massas proletárias. Encontramos, pois, em um outro
lado, tentativas de síntese entre socialismo e
liberalismo, enfatizando ora um ora outro termo do
binômio.
A esta altura, porém, precisamos lembrar que idéias
e motivações liberal-socialistas se encontram,
também, em uma série de movimentos e correntes
diferentes entre si, que se caracterizam principalmente
por outras intuições. Não é, portanto, lícito fazer
referência a estes movimentos na hora em que se
pretende definir o núcleo da ideologia liberal-socialista.
Por estes motivos, será útil fazer referências precisas
aos teóricos que falaram do Liberal-socialismo ou
socialismo liberal de forma explícita, tornando-o o
centro de suas investigações, mais que aos fabianos ou
a Bernstein ou, em geral, a todo movimento
revisionista europeu do começo do século XX. Neste
sentido, o fio condutor parte do inglês L. T.
Hobhouse, passa pelo italiano Saverio Francesco
Merlino e chega, mais recentemente, a Cario Rosselli e
Guido Calogero, bem como a todos os outros teóricos
do movimento liberal-socialista dos anos 30 e 40. É
justamente a estas correntes — mesmo sem esquecer o
aparecimento de movimentos e idéias análogas em
vários países, principalmente no
período entre as duas guerras mundiais — que
devemos nos referir hoje para definir as características
essenciais dessa ideologia.
II. CRÍTICA DO MARXISMO E DO LIBERALISMO. — A
doutrina liberal-socialista é fruto de uma análise
fechada, embora à sua maneira distante e serena, da
crise em que se encontram o socialismo marxista e o
liberalismo livre-cambista. Os objetivos das duas
correntes são iguais — o progresso geral da sociedade
humana —, porém abordados a partir de enfoques
diferentes. A primeira enfatiza a solidariedade social,
a responsabilidade e os deveres que o forte tem em
relação ao fraco. Suas palavras de ordem são:
cooperação e organização. A segunda defende a idéia
de que o pleno exercício da liberdade individual levará
necessariamente ao crescimento de toda a sociedade. O
socialismo marxista, porém, prefere ignorar as
conquistas fundamentais da democracia liberal, a
começar por todos os direitos individuais de
liberdade, na falsa convicção de serem os mesmos
apenas uma herança do capitalismo liberal, em suma,
de uma civilização que precisa ser destruída; o
liberalismo livre-cambista, por outro lado, favorece a
permanência e o aumento de situações de privilégio e
de desigualdade, presentes na ordem capitalista.
O erro fundamental, sustentam os liberal-socialistas,
é crer que as duas correntes sejam contrárias e não
possam ser conciliáveis entre si, enquanto na
realidade sua integração é não apenas possível, mas
até desejável. A condição necessária para isto
acontecer é que ambas renunciem a alguns de seus
"dogmas" que não encontram mais respaldo na
realidade.
O "dogma" que precisa ser abandonado pelo
liberalismo é, de acordo com os liberal-socialistas, o
livre-cambismo. Conforme uma distinção fundamental
feita, como vimos, por Stuart Mill e mais tarde
aprofundada por Croce, considerar o livre-cambismo
como característica indeclinável da doutrina liberal
significa fazer dele, que é apenas um "legítimo
princípio econômico", uma "ilegítima teoria ética":
atribuir-se-ia a uma norma contingente, nascida num
determinado período histórico e profundamente
relacionada com uma concepção filosófica superada (o
utilitarismo ético de Bastiat), dignidade e valor de lei
social, válida em toda época e em toda circunstância.
Trata-se de um erro cujas conseqüências se manifestam
cada dia mais, na medida em que o desenvolvimento da
indústria e a formação de grandes massas proletárias
exigem uma intervenção maciça do Estado, quer na
estruturação de serviços essenciais para a comunidade,
quer na coordenação e disciplina das atividades
LIBERAL-SOCIALISMO
econômicas, para evitar excessos de especulação e o
predomínio de pequenos grupos particulares na vida
nacional.
O liberalismo em nada se opõe à intervenção estatal
na economia, quando se dá no respeito aos direitos
individuais e para salvaguardar os interesses
comunitários. O problema, no caso, seria como
conciliar uns e outros, salvando, na tradição livrecambista aquilo que não se choca com as novas
exigências do progresso social.
Com relação ao socialismo, os liberal-socialistas
afirmam ter chegado o tempo da superação da
concepção marxista do Estado e da sociedade humana.
Segundo eles, o debate revisionista demonstrou que o
núcleo determinista, economicista e fatalista do
marxismo não consegue se conciliar com a livre
manifestação da personalidade individual, ponto
central da concepção liberal, e leva as massas a
empenharem-se unicamente na transformação material
da sociedade (socialização dos meios de produção, etc),
sem se empenharem naquela "revolução das
consciências", que é o pressuposto da nova ordem
socialista. Colocar-se-ia, em suma, no mesmo plano, o
que não passa de um meio, mesmo importante, da
virada revolucionária, como é a socialização dos meios
de produção, e os fins da revolução, que são:
transformação das massas e construção de uma
sociedade capaz de abolir privilégios sociais e
econômicos e proporcionar a todos a liberdade da
necessidade bem como todas as outras liberdades
consagradas pela tradição liberal (os direitos políticos
da pessoa, a liberdade de palavra, de imprensa, de voto
e assim por diante).
III. AS INSTÂNCIAS FUNDAMENTAIS. — A partir
destas premissas é possível determinar a parte positiva
do Liberal-socialismo. "Liberalismo e socialismo,
vistos no que têm de melhor — esta é a definição que
podemos deduzir de um escrito de Guido Calogero —
não são ideais constrastantes nem conceitos totalmente
divergentes, mas especificações paralelas de um único
princípio ético, que é o cânon universal de toda
história e de toda civilização. Este é o princípio pelo
qual as outras pessoas são reconhecidas em sua
dignidade, diante da própria pessoa, e a cada uma
delas se atribui um direito igual ao próprio direito".
Decorre disto, no campo político, a necessidade de
que toda lei, toda norma de Governo, encontre seu
direito unicamente no consenso da maioria, assim
como o direito que indivíduos e grupos têm de lutar
livremente para a afirmação de suas idéias: não é,
pois, compatível com a concepção liberal-socialista
uma liberdade de imprensa prejudicada pelo domínio
econômico de
707
poucos grupos editoriais ou a existência de
movimentos políticos que não respeitem na sua
dinâmica as regras fundamentais da democracia.
No campo econômico-social, a instância
fundamental é "alcançar o máximo de equilíbrio entre
o trabalho realizado e o bem econômico disponível":
em suma, a cada um de acordo com seu trabalho. Tal
objetivo da ideologia liberal-socialista se concretiza
numa atitude anticapitalista, não absoluta e sim
relativa, visando impedir, sobretudo, situações de
parasitismo ou de privilégio (por isso, insiste-se muito
na necessidade da taxação progressiva), mas,
principalmente, no esboço de uma estrutura
econômica "mista" ou "de dois setores", onde possam
coexistir empresas privadas juntamente com
segmentos nacionalizados ou controlados pelo Estado,
de acordo com critérios distributivos de tipo empírico,
nascidos, conforme as circunstâncias, de exigências da
sociedade no seu conjunto.
Os elementos essenciais da ideologia se fazem
presentes também em relação aos problemas
internacionais: aplicação da exigência comunitária nas
relações entre os Estados, combate ao racismo, ao
imperialismo, ao nacionalismo, tendência à
cooperação e a um crescente desenvolvimento de
organismos internacionais representativos.
Particular atenção é dedicada pelo Liberalsocialismo à construção de um novo modelo de
Estado, às garantias judiciárias e à educação das
massas. Numa sociedade alicerçada em normas
eficazes, por serem expressão da maioria dos
cidadãos, se fazem necessários instrumentos idôneos
para combater e prevenir eventuais abusos legislativos
ou administrativos: torna-se portanto oportuno reforçar
a independência e a autonomia do corpo judiciário e
criar uma Corte suprema para defesa da lei
fundamental, ou seja, da Constituição. Com relação à
escola, afirma-se que somente uma organização que
proporcione a todos uma instrução completa e
generalizada possibilitará a consecução de dois
objetivos essenciais do Liberal-socialismo: a
revolução das consciências e a igualdade de
oportunidade para todos os cidadãos.
IV. O "TERCEIRO CAMINHO". — Desenvolvido num
período em que se defrontavam dois tipo; de
sociedade, a capitalista ocidental e a comunista
soviética, o Liberal-socialismo é marcado por esta
situação, não apenas na proposição de uma mediação,
quase uma síntese, entre os dois sistemas, mas até na
previsão de uma futura conciliação e fusão. Os liberalsocialistas não acreditam, como os marxistas ortodoxos,
que o socialismo, ou melhor, a nova sociedade
708
LIBERDADE
liberal-socialista, só possa se realizar mediante
convulsões revolucionárias: o socialismo, como
herdeiro do liberalismo, a ele sucederá gradualmente,
após ter assimilado suas instâncias vitais; o capitalismo
ocidental e o comunismo soviético assistirão a uma
gradual diminuição de seus contrastes e diferenças
recíprocas. O "Terceiro Caminho" vislumbrado por
Sombart está fadado à realização. "É possível pensar
— escreve Rosselli em Socialismo liberale — que a
passagem de uma para a outra sociedade aconteça
mediante um processo gradual e pacífico: mediante
uma passagem que, salvando as vantagens já
garantidas de uma, as reforce progressivamente
através das vantagens da outra".
BIBLIOGRAFIA. - G. CALOGERO, Difesa del Liberalsocialismo
(1945), Marzorati. Milano 1972; G. D. H. COLE, Storia del
pensiero socialista, vol. III: La seconda Internazionale, 18891914 (1956), parte I, Laterza, Bari 1968; A. GAROSCl, Vita
di Cario Rosselli (1946), Vallecchi, Firenze 1973; T. H. GREEN,
L'Obbligazione política (1882), Giannotta, Catania 1973; L. T.
HOBHOUSE. Liberalismo (1911), Sansoni, Firenze 1973; C.
ROSSELLI, Socialismo liberale (1930), in Opere scelt di C. Rosselli,
vol. I, Einaudi, Torino 1973; N. TRANFAGLIA, Carlo Rosselli
dall'interventismo a giustizia e libertà. Laterza, Bari 1968; L.
VALIAM, Il Libera/socialismo, in "Rivista storica italiana", n.°
I. 1969.
(NICOLA TRANFAGLIA]
Liberdade.
A palavra Liberdade tem uma notável conotação
laudatória. Por esta razão, tem sido usada para
acobertar qualquer tipo de ação, política ou instituição
considerada como portadora de algum valor, desde a
obediência ao direito natural ou positivo até a
prosperidade econômica. Os escritos políticos
raramente oferecem definições explícitas de Liberdade
em termos descritivos: todavia, em muitos casos, é
possível inferir definições descritivas do contexto. O
conceito de Liberdade se refere com maior freqüência à
Liberdade social. Esta conceituação precisa ser bem
discriminada com relação a outras significações da
palavra, quer em sentido descritivo, quer em sentido
valorativo. As definições descritivas de Liberdade
caracterizam situações identificáveis empiricamente e
podem
ser
aceitas
por
qualquer
pessoa,
independentemente dos pontos de vista normativos de
cada um no que diz respeito à Liberdade (§§ I-IV). A
Liberdade em sentido
valorativo (§§ V-VIII) é utilizada mais a nível de
exortação do que de descrição; conseqüentemente,
apresenta diferentes significações, conforme os
diferentes modelos éticos que inspiram os autores.
O conceito de Liberdade interpessoal ou social se
refere às relações de interação entre pessoas ou
grupos, ou seja, ao fato de que um ator deixa outro
ator livre para agir de determinada maneira. Este
conceito precisa ser definido fazendo-se referência a
outra relação de interação, a de não-Liberdade
interpessoal ou social.
I. NÃO-LIBERDADE SOCIAL. — Com relação ao ator
B, o ator A não é livre para realizar o ato x, se e
somente se B torna impossível para A lazer x, ou se
fazer x pode implicar sanções para A. "B torna
impossível para A fazer x" significa que B realiza
determinada ação y tal que, se A procurasse fazer x, sua
tentativa fracassaria. Negando o passaporte a um
cidadão, o Governo, na prática, o torna incapaz de
viajar para o estrangeiro, e portanto não-livre para
realizar tal ação. Com relação aos Estados Unidos, a
China comunista é não-livre para conquistar Formosa e
vice-versa, uma vez que, com muita probabilidade, as
forças americanas impediriam que uma ou outra
potência invadisse a adversária. Se a Ku Klux Klan
não permite, recorrendo ao uso da força, que os negros
entrem numa escola pública, estes se acham não-livres
para realizar tal ação com relação ao Governo. "B
aplicará sanções se A fizer x" significa que, se A fizer
x, B faria algo, y, que modificaria para pior a situação
de A. As sanções governamentais contra atos ilegais não
passam de um exemplo de punição entre os muitos tipos
de não-Liberdade social. Com relação a um sindicato, a
empresa é não-livre para recusar de terminadas
vantagens, se o primeiro resolver organizar piquetes
diante da segunda. Com relação aos vizinhos, cuja
tendência é marginalizar os não conformistas, os
moradores de determinado conjunto habitacional de
periferia são não-livres para se afastar de normas de
conduta não escritas.
II. LIBERDADE SOCIAL. — Liberdade social não é o
pólo oposto de não-Liberdade social. Oficialmente, eu
deixo de ser não-livre para pagar os impostos; apesar
disso, também não sou livre para pagá-los; na
realidade eu sou não-livre para me recusar a pagar.
Uma relação de Liberdade diz respeito a uma série de
no mínimo duas ações, ou a tipos de ações
alternativas. Eu sou não-livre para fazer algo; eu sou
livre para fazer isto ou aquilo. Um ator é livre para
agir da forma que mais lhe agrada, contanto que não
exista outro ator que o torne não-livre para levar a
bom termo
LIBERDADE
algumas destas ações. Assim, com relação a B, A é
livre para fazer x ou z na medida em que B não torne
impossível ou passível de pena para A fazer x ou z.
"Liberdade de voto" significa Liberdade para votar ou
para se abster; porém "liberdade de difusão da
verdade" significa não-Liberdade para a difusão de
opiniões "erradas". Além disso, eu posso ser livre para
agir desta ou daquela maneira com relação a
determinada pessoa ou grupo, enquanto outro ator
pode me tornar não-livre para me dedicar a esta ou
àquela atividade. Oficialmente, os americanos têm
Liberdade de escolher uma religião ou de não aderir a
nenhuma; porém, muitos americanos são não-livres no
seu agnosticismo com relação a determinados grupos
não oficiais que submetem os "ateus" a todo tipo de
sanção informal,
Pode ser determinado com bastante exatidão,
todavia unicamente ex post jacto, se um ator era nãolivre para fazer aquilo que na realidade acabou
fazendo. Se B frustrou A na sua tentativa de fazer x, ou
se A conseguiu fazer x, porém foi punido por B por têlo feito, a conclusão lógica é dizer que, com relação a
B, A foi não-livre para fazer x. O fato de A ser nãolivre para fazer x, ou o fato de A ter sido, ser ou vir a
ser livre para fazer x ou r são hipóteses empíricas,
aceitáveis unicamente na medida em que apresentam
algum grau de probabilidade, dependendo da resposta a
perguntas tais como: se A fizer x, B o submeterá a
sanções? Se, na França, sessenta por cento dos que
ultrapassam os limites de velocidade são declarados
culpados, podemos dizer que os motoristas franceses,
na mesma proporção, são não-livres para superar os
limites de velocidade, sem considerar os que
ultrapassam tais limites e são multados e os que
respeitam a lei. A Liberdade social de alguém não
depende de seu efetivo comportamento. Muitas vezes
fazemos algo que não seríamos livres para fazer (por
exemplo, ultrapassar os limites de velocidade) e
deixamos de fazer algo que seríamos livres para fazer
(por exemplo, dirigir a velocidades inferiores ao limite).
III. LIBERDADE SOCIAL E OUTRAS RELAÇÕES SOCIAIS. —
As relações de Liberdade e de não-Liberdade
interpessoal ou social podem subsistir entre duas
pessoas ou grupos quaisquer; por exemplo, membros de
uma família, compradores e vendedores, legislativo e
executivo, Papa e imperador, membros do Mercado
Comum. A Liberdade de um Governo pode ou não ser
limitada por outro Governo, por uma Igreja, por uma
organização internacional, pelos próprios cidadãos,
por grupos de interesse internos ou não à sua
jurisdição, etc. A Liberdade política é uma subcategoria
da Liberdade social e normalmente
709
se refere à liberdade dos cidadãos ou das associações
em relação ao Governo. O interesse pela Liberdade
política, em diferentes momentos históricos,
concentrou-se na Liberdade de religião, de palavra e
de imprensa, de associação (religiosa, política,
econômica) e de participação no processo político
(sufrágio). A idéia de Liberdade política foi ampliada
a fim de satisfazer aos anseios de Liberdade
econômica, de "Liberdade da necessidade", de
autodeterminação nacional, etc.
Não-Liberdade social e poder ou controle são
categorias que se sobrepõem. Impossibilitando A de
fazer x, B torna A não-livre para fazer algo e exerce
controle sobre seu comportamento. Se B aplica sanções
a A por ter feito x, A era, com relação a B, não-livre
para fazer x, porém B não exerceu controle sobre a
ação x de A, tanto que sua ameaça de castigo não foi
suficiente para amedrontar A na hora de fazer x. A
influência é uma terceira forma de poder; se B
consegue, por exemplo, convencer A a votar pelos
democratas, não está limitando a Liberdade que A tem
para votar nos republicanos (ou nos democratas). Neste
caso, as relações de poder e de Liberdade subsistem na
mesma dupla de atores. O mesmo se dá nas seguintes
situações; B exerce controle sobre A com relação a um
campo limitado de alternativas; A é livre no contexto
deste campo. Por exemplo, o Governo pode obrigar os
cidadãos a servirem nas forças armadas, porém pode
deixá-los livres para servirem obrigatoriamente ou
alistarem-se como voluntários. A pode ser, com
relação a B, livre para fazer x, porque B não tem poder
para limitar a liberdade de A, ou porque B permite que
A faça x. O Congresso dos Estados Unidos é livre para
legislar à vontade em relação ao presidente, na medida
em que este opte por não exercer seu direito de veto.
Afirmar que, em determinada sociedade, é respeitada a
Liberdade de expressão, significa fazer referência às
seguintes relações de Liberdade e não-Liberdade (e de
poder) entre dois de seus membros A e B: A deixa B e
B deixa A livre para dizer o que quiser; com relação a B,
A é não-livre para impedi-lo de manifestar suas opiniões,
e vice-versa; A e B são não-livres para fazê-lo, não
apenas em suas relações recíprocas, mas também com
relação ao Governo, protetor do direito de expressão
de todos.
Existem Liberdades sociais protegidas por direitos
legalmente definidos e pelos deveres correspondentes.
É preciso distinguir entre conceitos referentes ao
comportamento afetivo e ao direito. Todos os
motoristas têm o dever, imposto pela lei, de não
ultrapassar os limites de velocidade; eles são nãolivres para ultrapassar estes limites
710
LIBERDADE
somente na medida em que recebem multas. Desta
forma, o motorista A que ultrapassou os limites de
velocidade em determinada circunstância, sem ser
descoberto, foi, em sentido comportamental, livre
para fazê-lo naquela circunstância, embora não tivesse
nenhum direito legal para fazer o que fez. Uma vez
que quarenta por cento dos motoristas que na França
ultrapassam os limites de velocidade não são multados,
os motoristas franceses são socialmente, porém não
legalmente, livres para superar os limites de
velocidade naquela medida.
Muitos crêem ser a democracia "uma sociedade
livre". Todavia, as sociedades organizadas se
estruturam mediante uma complexa rede de relações
particulares de Liberdade e não-Liberdade (nada
existe parecido com a Liberdade em geral). Os
cidadãos de uma democracia podem ter a Liberdade
política de participar do processo político mediante
eleições "livres". Os eleitores, os partidos e os grupos
de pressão têm, portanto, o poder de limitar a
Liberdade dos candidatos que elegeram. A democracia
exige que as "Liberdades civis" sejam protegidas por
direitos legalmente definidos e por deveres a eles
correspondentes, que acabam implicando limitações da
Liberdade. Num tipo ideal de ditadura, quem governa
tem uma Liberdade sem limites em relação a seus
súditos, enquanto estes últimos são inteiramente nãolivres com relação ao primeiro. Numa democracia, as
Liberdades e as não-Liberdades são colocadas de
maneira mais igual, por exemplo, entre os vários
escalões do Governo, entre o Governo e os
governantes, entre a maioria e a minoria. Igual
Liberdade, não mais Liberdade, esta é a essência da
democracia.
IV. OUTROS SIGNIFICADOS DESCRITIVOS. — Enquanto
a Liberdade social se refere a dois atores e a suas
respectivas ações, a Liberdade de escolha caracteriza
uma relação entre um ator e uma série de ações
alternativas potenciais. "A tem liberdade de escolha
em relação a x ou a z" significa que A pode fazer x ou
z; que x ou z podem ser alcançados ou evitados por A;
que A realizará x, contanto que escolha fazer x. Ao
contrário, se para A é impossível ou necessário fazer x,
A não tem Liberdade de escolha com relação a x. A
definição de Liberdade como "o poder para agir ou
não agir, conforme a determinação da Liberdade",
dada por Hume, é característica desta situação. A
Liberdade de escolha não é condição necessária nem
suficiente da Liberdade social. Se A não pode fazer x,
ele é não-livre para fazê-lo unicamente se sua
incapacidade foi causada por outro agente B. Ao
contrário, A contínua livre para fazer x, mesmo não
tendo Liberdade de escolha
com relação a x. A maioria das pessoas é incapaz,
mesmo tendo Liberdade para tanto, de se tornar
milionária ou de ganhar o prêmio Nobel. O
desemprego em período de recessão é um exemplo de
ausência de Liberdade de escolha, não de ausência de
Liberdade social, a não ser que a recessão tenha uma
relação causai, por exemplo, com uma determinada
política governamental. O custo elevado do tempo de
uma transmissão de televisão toma este instrumento
inacessível à maioria; esta circunstância limita a
Liberdade de escolha, não a Liberdade de expressão.
Todos são socialmente "livres para dormir debaixo da
ponte" ou na própria casa, incluindo os que não têm
casa, que não têm Liberdade de escolha no assunto.
(Nestas circunstâncias todas, é bem provável que o
ator considere as possibilidades que lhe faltam e não a
Liberdade que tem.) Ao contrário, temos Liberdade de
escolha com relação à maioria das ações que podem
ser punidas; tornamo-nos não-livres para fazê-las
justamente por nos serem acessíveis.
Os não-deterministas sustentam que os seres
humanos são possuidores de livre-arbítrio na medida
em que têm Liberdade de escolha; isto quer dizer que
suas escolhas efetivas, bem como o comportamento
delas resultante não são determinados causalmente,
constituindo apenas eventos acidentais. Os
deterministas podem, com total coerência, negar a
doutrina do livre-arbítrio e afirmar, ao mesmo tempo,
que muitas vezes os homens têm Liberdade de escolha.
O argumento destes últimos se fundamenta no fato de
que a possibilidade de A fazer x ou z não elimina a
possibilidade de explicar e prever a escolha efetiva de
A mediante leis (por exemplo, psicológicas ou
sociológicas) causais.
Pode-se afirmar que uma ação foi livre ou não-livre,
por exemplo, quando afirmamos: "Este assassinato foi
uma ação livre"; "Ele pagou os impostos, porém não o
fez livremente". O comportamento involuntário é nãolivre, bem como não-livres são as ações não
deliberadas, como as que o agente foi condicionado a
cumprir. As ações voluntárias são livres, a não ser que
tenham o medo ou a sanção como motivação. Quando
A entrega seu dinheiro a B que aponta um fuzil contra
A, temos uma ação não-livre (todavia, trata-se de uma
ação voluntária, determinada em parte pela ameaça de
B e em parte pelo desejo de A de salvar sua vida).
Porém a recusa de A é uma ação livre. É possível
fazer livremente o que não somos livres para fazer.
Por outro lado, se B consegue convencer A a fazer x
sem ameaça de sanções, a ação x de A é livre. Às
vezes, porém, o termo "livre" é usado numa acepção
mais
LIBERDADE
ampla com relação a ações autônomas, isto é,
determinadas exclusivamente pelas decisões do ator e
não pela influência de outros. Por exemplo: "A única
Liberdade digna deste nome é a de perseguir o nosso
bem à nossa maneira" (J.S. Mill).
Muitas vezes o termo livre é referido a
características de pessoas e não de ações. Pode-se
afirmar que alguém é livre na medida em que se
dispõe a agir livremente, ou a agir autonomamente, ou
a desenvolver ao máximo suas capacidades. Por
exemplo, Marx profetizou uma sociedade "onde o
livre desenvolvimento de cada um é a condição para o
livre desenvolvimento de todos". Liberdade se torna,
assim, sinônimo de auto-realização.
Afirma-se, muitas vezes, que a Liberdade consiste
em alguém fazer o que desejar. Seria mais correto
afirmar que o agente se sente livre na medida em que
faz o que quiser. A Liberdade como estado mental
independe da Liberdade como estado de fato. Entre as
coisas que pretendo evitar existem algumas que eu
sou capaz e outras que eu sou não-livre para fazer. Há
quem encontre o sentido da Liberdade no fato de ser
livre quando "foge da Liberdade", para se submeter a
uma autoridade que o condicione a querer fazer aquilo
que precisa fazer. O grande Inquisitor de Dostoievski,
manipula habilmente estes dois significados da
palavra: "Hoje, mais do que nunca, as pessoas têm
certeza de possuir Liberdade absoluta; todavia, elas
trouxeram sua Liberdade até nós e a depositaram
humildemente a nossos pés".
Pela conotação laudatória da palavra Liberdade, os
autores, muitas vezes, se sentiram propensos a definila abrangendo unicamente aquelas relações de
Liberdade, ou de não-Liberdade, que mais são
valorizadas por eles e que mais são sugeridas aos
outros. Estas definições persuasivas de Liberdade são
úteis, não como instrumentos das ciências sociais
empíricas, e sim como expedientes retóricos;
proporcionam, ao autor, a possibilidade de exprimir de
maneira afirmativa seu ponto de vista normativo.
Afirmando que obedecer "às leis estabelecidas pela
sociedade é ser livre", Rousseau visava exortar os
cidadãos à obediência para com estas leis e não
explicar o significado da Liberdade. Estas definições
persuasivas de Liberdade, com o objetivo de
convencer e não de explicar, foram utilizadas para
propor todo tipo de ideologia política, como vamos
ver nos seguintes exemplos.
V. LIBERDADE COMO PROTEÇÃO DOS DIREITOS
— O liberalismo clássico, de Locke a
Spencer, bem como seus seguidores,
FUNDAMENTAIS.
711
sustentava que o Estado tem o direito de limitar a
Liberdade de alguém unicamente quando for
necessário proteger os direitos fundamentais de outro
(muitas vezes considerados como sendo os próprios
direitos naturais). Conseqüentemente, "nenhuma
sociedade onde estas Liberdades não são, no seu
conjunto, respeitadas pode ser considerada livre" (J.S.
Mill). Ao contrário, uma sociedade pode ser
considerada livre somente na medida em que se
fundamenta nos princípios do laissez faire. Uma
pessoa, pois, que possua estes direitos legalmente
determinados e esteja sujeita aos deveres a eles
correspondentes é livre, embora possa ser não-livre sob
outros aspectos e em relação a agentes que não sejam
do Governo, por exemplo, por causa da exploração
econômica ou da pressão social. Por este motivo a
Corte Suprema dos Estados Unidos achou certas leis,
que fixaram mínimos salariais e máximos de horas de
trabalho, como violadoras do princípio constitucional
da Liberdade, visto tais regras não serem necessárias
para a proteção dos direitos fundamentais, e sim
constituírem limitações "arbitrárias" da "Liberdade
contratual" entre empresários e assalariados.
VI. LIBERDADE COMO SATISFAÇÃO DAS
NECESSIDADES FUNDAMENTAIS. — Os
neoliberais observam que o direito de adquirir as coisas
indispensáveis para viver pouco valor tem para os que
não possuem a possibilidade de adquiri-las; que o
Estado deveria tornar estas coisas acessíveis a todos;
que esta necessidade implicaria por parte do Estado
uma atuação limitadora da Liberdade individual,
mediante a definição de normas relativas à saúde
pública, à instrução e ao bem-estar. O objetivo último
é o bem-estar social, não a Liberdade individual; os
neoliberais usam a palavra Liberdade para definir este
objetivo. "Liberdade pessoal significa, pois, o poder
que o indivíduo tem para assegurar para si
alimentação, moradia e vestuário suficientes" (S. e B.
Webb). Ao contrário, os que não têm capacidade para
obter aquilo que a sociedade deveria torná-los capazes
de alcançar, porém são livres para fazê-lo com relação
ao Governo, carecem de "verdadeira Liberdade". "A
Liberdade da necessidade", ao contrário da Liberdade
de expressão, não se refere diretamente à Liberdade
social, e sim à ausência de necessidade e à presença de
um nível de vida satisfatório para todos. Somente em
sentido indireto, "os homens necessitados não são
homens livres" (F.D. Roosevelt). Eles têm pouca
Liberdade de escolha e são socialmente não-livres com
relação aos poderosos, do ponto de vista econômico.
Liberdade está relacionada não apenas com
712
LIBERDADE
o objetivo do bem-estar, mas também com qualquer
limitação da Liberdade social que seja considerada
necessária para alcançá-lo. Atualmente a Corte
Suprema interpreta a Liberdade incluindo no seu
conceito as leis sobre mínimos salariais e outras
"regras e proibições razoáveis impostas no interesse
da comunidade". Liberdade inclui a não-Liberdade
social desejável e exclui a Liberdade social não
desejável.
VII. LIBERDADE COMO GOVERNO FUNDAMENTADO
NO CONSENSO. — A definição de Liberdade como
Governo fundamentado no consenso é utilizada para
expressar a norma pela qual o Governo deveria
fundamentar-se no consenso dos governados;
normalmente, isto quer dizer Governo representativo
e regra da maioria. Por exemplo, "a Liberdade do
homem na sociedade é a de estar sujeito unicamente
ao poder legislativo definido pelo Estado por
consenso comum" (Locke). Neste sistema, os homens
são livres porque sua Liberdade é limitada unicamente
por normas em cuja elaboração puderam livremente
participar. É só mudar um pouco o acento e Liberdade
não significa mais que o Estado precisa ser sensível à
vontade dos cidadãos, e sim significa que os cidadãos
têm a obrigação de obedecer às normas
governamentais, que refletem a vontade da maioria ou
a "vontade geral"-. De acordo com Rousseau, os
homens são livres na medida em que, livremente,
cumprem esta sua obrigação, ou na medida em que
foram "forçados a ser livres". Desta forma, Liberdade
diz respeito não mais à possibilidade de agir desta ou
daquela maneira, e sim à obrigação de agir da maneira
ordenada pela autoridade.
VIII. LIBERDADE COMO CONSTRUÇÃO MORAL. —
As definições de Liberdade até aqui analisadas,
inclusive as que têm por objetivo convencer os outros,
são inteiramente formadas por termos descritivos.
Todavia, muitas vezes, as definições de Liberdade
incluem termos éticos, quais sejam "justo", "deveria",
ou "virtude". Nestes casos, não apenas o termo a ser
definido (Liberdade), mas também a expressão que o
define têm um significado valorativo. "A Liberdade
pode consistir somente em poder fazer aquilo que
devemos querer" (Montesquieu). Por analogia, muitas
vezes, afirma-se que uma pessoa é livre, não quando
age livremente ou desenvolve suas capacidades, e sim
quando realiza "o melhor" ou "o essencial" de si
mesma. "A Liberdade pode ser definida como a
afirmação por um indivíduo ou por um grupo de sua
própria natureza" (Laski). Uns chegaram a sustentar
ser sumamente provável que
alguém realize a própria natureza se for deixado livre
para escolher por si mesmo. De acordo com outra
tradição, que desde Platão passando pelos estóicos e
pelo pensamento cristão chega até o neohegelianismo, o homem alcança a forma mais alta de
auto-realização submetendo-se a alguma norma moral
imposta externamente por alguma autoridade religiosa
ou política, ou internamente pelo próprio "eu
superior", normalmente identificado com a fé, a razão
ou a consciência moral. "Chamo livre quem se deixa
guiar unicamente pela razão" (Spinoza). "Obedecer a
uma lei por nós mesmos imposta é Liberdade"
(Rousseau). Liberdade não significa mais ausência de
limitações desagradáveis, e sim presença de
limitações agradáveis. "Não adquirimos Liberdade
satisfazendo o que desejamos, e sim eliminando o
nosso desejo" (Epicteto). Em suma, Liberdade é a
não-Liberdade para fazer o mal, enquanto a Liberdade
de se afastar do caminho certo é licenciosidade. "Se
uma licenciosidade desenfreada de palavra e de escrita
fosse concedida a todos, nada permaneceria sagrado e
inviolado.. . Desta forma, a licenciosidade ganharia o
que a Liberdade acabaria perdendo" (Encíclica
Libertas).
Utilizando o termo Liberdade como marca
registrada das preferências morais ou políticas de
todos, o empenho de todos em buscar a Liberdade
será vão. Todos irão concordar que a Liberdade é o
bem supremo, porém sua concordância não passará
disso. Uma não concordância significativa acerca do
valor da Liberdade supõe uma concordância acerca do
significado de Liberdade em termos não valorativos.
O conceito de Liberdade social proporciona bases
satisfatórias para uma discussão fecunda acerca dos
aspectos normativos, bem como dos aspectos
empíricos, da Liberdade. Com relação aos segmentos
a ser atingidos ou não pela Liberdade social, haverá
sempre opiniões divergentes, de acordo com o valor
atribuído a outras finalidades sociais, quais sejam a
igualdade, a justiça ou o bem-estar, que podem
competir com a finalidade da Liberdade.
BIBLIOGRAFIA. -. A. ARON, Essai sur les libertes.
Calman-Lévy, Paris 1965; C. BAY, The structure of
freedom. Stanford University Press. Stanford 1958; I.
BERLIN, Four essays on liberty, Oxford University
Press. New York 1969; J. P. DAY, Threats, offers. law.
opinion and liberty. in "American philosophical
quarterly", XIV, 1977; Liberty, ao cuidado de C.
FRIEDRICH, Atherton, New York 1962; F. OPPENHEIM,
Dimensioni della libertà (1962), Feltrinelli. Milano
1964; Id., Political concepts: A reconstruction.
University of Chicago Press. Chicago 1981; W.
PARENT. Some recent work on the concept of liberty, in
"American
LIDERANÇA
philosophical quarterly", XI, 1974; La libertà política. ao
cuidado de A. PASSERIN D'ENTREVES, Comunità, Milano 1974;
H. STEINER, Individual liberty, in "Proceedings of lhe
aristotelian society", LXXV, 1975; F. A. VON HAYEK, La
società libera (1960), Vallecchi, Firenze 1969.
[FELIX E. OPPENHEIM]
Liderança.
I. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE LIDERANÇA. — O
conceito de Liderança, normalmente, tem, hoje, uma
acepção
bastante
diferente
da
que
teve
tradicionalmente na história do pensamento, desde
Platão.
Como exemplo de uma moderna formulação do
conceito tradicional, podemos citar a definição de
Liderança dada por R.M. Mac Iver e C.H. Page (1937),
que a consideram "a capacidade de persuadir ou dirigir
os homens, resultado de qualidades pessoais,
independentemente da função exercida". Nesta
definição, a Liderança é identificada e reduzida à
esfera de poder resultante das atitudes do líder, como
tal. O conceito de Liderança permanece, assim,
totalmente preso à idéia de uma biologia específica do
líder: encontramos, aqui, o último resíduo de uma
concepção de líder visto como "herói" carismático,
concepção esta que já entrou em crise — do ponto de
vista da práxis política —, após as revoluções
democráticas dos séculos XIX e XX, e — do ponto de
vista da elaboração teórica — após o desenvolvimento
das ciências sociais que ocorreu nas últimas décadas.
Mais realista — e mais fecundo cientificamente — é
considerar a Liderança como um papel que: a)
desenvolve-se num contexto específico de interações e
reflete em si mesmo (e na sua "tarefa") a "situação"
desse contexto; b) manifesta determinadas motivações
do líder e exige atributos peculiares de personalidade e
habilidade, além de recursos específicos, tudo isso
(motivações, atributos e recursos) variáveis do papel,
relacionadas com o contexto; c) relaciona-se com as
expectativas dos liderados, seus recursos, suas
aspirações e suas atitudes.
II. PAPEL, FUNÇÃO E CONTEXTO. — Entender
Liderança neste sentido não significa —
evidentemente — eliminar a possibilidade de o líder
vir a elaborar, ele mesmo, seu papel, de forma mais
ou menos decisiva, e até promover a formação do
contexto onde ele se situa como detentor de
Liderança. O que se pretende é esclarecer a
713
distinção entre uma Liderança definida pelo papel e
um líder que determina o papel.
Tendo esta distinção como ponto de partida, B. de
Jouvenel (1958) estabelece uma diferença de
posicionamento e de mentalidade entre o rentier
politique e o entrepreneur politique (distinção que —
no pensamento do autor — relaciona-se com a
distinção existente entre autorité subsistante ou
preexistente, e autorité emergente). Sempre com o
mesmo ponto de partida, C. Wright Mills e H. Gerth
(1953) discriminam três figuras de líder: o de rotina,
o inovador, o precursor. Mediante esta última figura,
encarando o precursor como um líder que cria seu
papel, embora sem alguma chance de desempenhá-lo
(por exemplo, Rousseau como ideólogo), Wright Mills
e Gerth atribuem à sua tipologia a mesma excessiva
amplitude que — como veremos mais adiante —
atribuem também ao seu conceito de Liderança. É
bem verdade, porém, que, considerando o perfil de
líder aqui salientado, podemos efetiva e utilmente
distinguir pelo menos três tipos de Liderança:
a) O líder de rotina, que não cria (e não reelabora),
nem seu papel, nem o contexto em que é chamado a
desempenhá-lo, mas desempenha apenas, dentro de
limites na sua maioria já preestabelecidos, um papelguia de uma instituição já existente, um papel ao qual
pode dar, quando muito, o marco de seu estilo
individual (por exemplo, na Itália um presidente da
república que atue como atuaram De Nicola e, pelo
menos até 1954, Einaudi).
b) O líder inovador, que reelabora, até radicalmente,
o papel-guia de uma instituição já existente, e pode
chegar à reelaboração do próprio papel da instituição
(por exemplo, na Itália, um presidente da república
que conseguisse garantir para si poderes efetivos de
orientação política, ou — para propor um outro
exemplo tirado do atual contexto italiano — uma
Liderança sindical que chegasse a assumir, como suas,
as funções específicas dos partidos políticos).
c) O líder promotor — uma figura parecida, embora
não idêntica, à do organization builder, tal, como é
caracterizada por F.H. Harbison e CA. Myres (1959),
isto é, um líder que sabe criar tanto seu papel como o
contexto onde vai desempenhá-lo (por exemplo,
alguém que se torne fundador de um grupo, de um
sindicato, partido político, ou até mesmo de um
Estado: contanto que — evidentemente — consiga
proporcionar um mínimo de consistência à sua
iniciativa e manter a posição de líder na instituição por
ele promovida).
714
LIDERANÇA
A personalidade do líder, em suma, é apenas um
dos fatores que interferem na determinação destas
diferentes formas de Liderança. Nos casos de papéis já
determinados, estes podem se achar definidos de forma
mais ou menos rígida — quer como sistemáticas de
recrutamento quer como regras de conduta — e
corresponder a exigências mais ou menos flexíveis:
podem, assim, tornar-se papéis sujeitos a uma nova
elaboração, embora em níveis bem variados, por parte
da Liderança. Em todo caso, o que importa é que a
Liderança está sempre em relação direta com a situação
do contexto onde é exercida, mesmo se uma tal relação
não resulta tão automática que possamos afirmar tout
court que "os líderes são sempre, secreta ou
abertamente, selecionados com antecedência pelos
seus liderados, de conformidade com as necessidades
do grupo" (L. G. Seligmann, 1968). Hegel, por
exemplo, já observava que os "grandes líderes"
emergem com maior facilidade das sociedades em fase
de rápida transformação estrutural.
Por analogia, as funções (e os objetivos) da
Liderança não podem ser vistas como refletindo
unicamente as motivações (e os interesses) do líder.
Ao contrário, estas funções (e objetivos) precisam ser,
cada vez mais, relacionadas à "tarefa" que o contexto
atribui à Liderança que dele é a expressão. Por isso,
embora seja inegável que o líder, como tal, procura
sempre a manutenção de estruturas e valores que
exerçam um papel de integração no que diz respeito à
sua própria Liderança, não se pode esquecer que a
ênfase excessiva atribuída a este aspecto — como bem
ressaltou A. S. Tannenbaum (1968) na maior parte dos
estudos sobre o assunto — implicaria uma teorização
da Liderança numa dimensão conservadora, que
resulta, pelo menos, unilateral.
III. LIDERANÇA E PERSONALIDADE. — Após o que
dissemos no § I, basta alertar que não faria sentido
insistir em tentativas para levar a bom termo a
compilação de uma lista com os atributos de
personalidade e habilidade intrínsecos à figura do
líder.
Estas tentativas foram muitas e às vezes até de
fontes revestidas de autoridade. Platão, já citado, que
— na República — configura um modelo de líder
preparado pelo seu papel de "guardião do Estado",
além de sê-lo também por "alguma disposição natural"
e, principalmente, pela educação. Aristóteles, que — na
Política — desvia o enfoque principalmente para as
qualidades naturais ("desde o nascimento, uns são
fadados a obedecer, outros a mandar"), E Michels,
que — na Sociologia del partito político (1911) —
elabora uma grande lista de "qualidades pessoais pelas
quais
uns conseguem frear as massas, qualidades que
devem ser consideradas como atributos específicos
dos líderes" (capacidade oratória — considerada como
o "fundamento da Liderança" no período inicial do
movimento operário — força de vontade,
superioridade no saber, profundidade nas convicções,
segurança ideológica, autoconfiança, capacidade de
concentração, "em casos específicos" também bondade
de alma e desinteresse, "na medida em que estas
qualidades lembrem às massas a figura de Jesus Cristo
e despertem nelas sentimentos religiosos que não
estavam apagados mas apenas abafados").
Diferentemente do que fazem outros autores, não
incluiria nesta relação, que, em última análise, tem
unicamente o valor de exemplificação, o nome de
Maquiavel. No Príncipe, Maquiavel propõe um
conceito de "virtude" política tão flexível que pode ser
lido, na linguagem da ciência moderna, como apenas
uma variável do contexto em que se realize o papel de
líder.
É justamente este o enfoque que mais se adapta à
análise da personalidade de quem exerce Liderança.
Pesquisas desenvolvidas neste assunto garantem a
validade do enfoque. As pesquisas, quando não se
limitam a fornecer resultados excessivamente
genéricos, evidenciam tantos conjuntos de atributos
pessoais da Liderança quantos são os tipos dos grupos
objeto de estudo (bem como suas diferentes
situações). Na sua simplicidade, vale o ensinamento
que, ainda em 1948, R. M. Stogdill tirava de uma
resenha de estudos acerca dos fatores pessoais de
Liderança: uma vez que Liderança é "uma relação
existente entre pessoas inseridas em determinadas
situações sociais (...), as pessoas que são líderes numa
situação podem não o ser, necessariamente, em
situações diferentes".
Com efeito, os atributos de personalidade e
habilidade do líder — bem como suas motivações —
se encaixam no contexto de recursos que, numa situação
específica, entram em jogo para a conquista e a
manutenção da Liderança: estes recursos podem ser
muito diferentes, tanto quanto diferentes podem ser as
causas que levam ao estabelecimento de uma relação
de influência.
Não se quer negar — evidentemente — que a
personalidade do líder seja um fator de importância
relevante; tampouco pode ser ignorado que a figura
do líder tenha suas conotações específicas em relação
à figura de seus liderados. Queremos dizer que os
aspectos pessoais da Liderança não podem ser objeto de
generalizações, sem ultrapassar o limite da banalidade,
a não ser no quadro de uma tipologia bem precisa
(que, até agora, não está à nossa disposição). No
máximo podemos
LIDERANÇA
concordar com H. D. Lasswell e A. Kaplan (1950),
quando escrevem que o "traço característico do tipo
político de personalidade comum a todos os líderes é a
procura extremada de valores de deferência,
principalmente do poder e do respeito, e, em medida
bem menor, da retidão e da afeição". Sem dúvida, "o
líder, como tipo de personalidade, é eminentemente
um político: sua conduta é determinada por
considerações relacionadas com a aquisição e a
fruição de valores de deferência". Por outro lado, a
personalidade do líder não pode ser confundida com
sua imagem: quer no sentido de "auto-imagem" —
aquela que o líder tem de si próprio, ou que pelo
menos acredita ter — quer no sentido da imagem que
os liderados constróem para si com relação a seu
líder. Por exemplo, a "grandeza" acaba se revelando
muito mais como um atributo da imagem do que da
pessoa a que se atribui (esta é uma observação de W.
Lange — no seu estudo sobre "problema do gênio" —
retomada em seguida por Wright Mills e Gerth). De
qualquer forma, é sempre necessário distinguir entre a
imagem do papel e a imagem de seu titular.
IV. LÍDER E LIDERADOS. — Com relação aos
liderados, provavelmente — como observa C. A. Gibb
(1968) — "o que de mais importante se tem a dizer
acerca do conceito de liderados é que eles também
desempenham papéis ativos". Nas análises tradicionais,
a Liderança sempre foi considerada como uma relação
unilinear: "alguém, ou guia, ou é guiado". Porém,
ainda no começo do século — como lembra
Taunenbaum —, G. Simmel, embora aceitasse uma
concepção
de
Liderança
fundamentalmente
tradicionalista, alertava para o fato de que "todos os
que guiam, são também guiados", e até que "na grande
maioria dos casos, o chefe é escravo de seus escravos".
Atualmente, principalmente após os trabalhos de C. J.
Friedrich sobre "regras das reações previstas", é ponto
pacífico que líder e liderados se encontram numa
relação de influência recíproca. O que temos aqui são
duas realidades complementares: a tal ponto que os
liderados podem ser definidos — como sugere S. Verba
(1961) — "colaboradores" de quem exerce a
Liderança.
A tipologia proposta por M. Conway (1915)
fundamenta-se na relação entre líder e liderados —
mais exatamente no papel que o líder assume com
relação a seus liderados — e apresenta três diferentes
tipos de Liderança:
a) Os líderes que arrastam multidões, "capazes de
conceber uma grande idéia, de juntar uma multidão
suficientemente grande para
715
concretizá-la e de pressionar a multidão para que, de
fato, a concretize".
b) Os líderes que interpretam as multidões, hábeis
principalmente "em tornar claros e explícitos os
sentimentos e os pensamentos que se encontram na
multidão de forma obscura e confusa".
c) Os líderes que representam as multidões limitamse a "exprimir apenas a opinião da multidão, já
conhecida e definida".
Por sua vez, porém partindo de outro ponto de vista
que se relaciona com os motivos que os fazem aderir a
determinado líder, os liderados podem ser divididos
em dois tipos: os fiéis, que se envolvem por razões de
caráter "moral", e os mercenários, que atuam por
motivos de interesse. Esta distinção é desenvolvida
por F. G. Bailey (1969): porém, o mesmo faz questão
de ressaltar que a relação entre líder e liderados
permanece da mesma natureza em ambos os casos. Um
líder "pode influenciar ou dirigir as ações de seus
liderados unicamente na medida em que distribui
vantagens": e é bom notar que as relações "morais" se
configuram como vantagens tanto quanto outros tipos
de relações. De fato, se os "mercenários" exigem um
"pagamento" direto, também os "fiéis" impõem
obrigações a seu líder, pelo menos a obrigação de
"servir a causa" e de agir conforme "o modelo de seus
ideais". Em um e outro caso, o que se concretiza é uma
relação de "transação".
Em última análise, no tema das relações entre líder
e liderados, o problema fundamental é o de saber "por
que quem é guiado segue quem o guia": porém, na
sua colocação mais abrangente, este é o próprio
problema do poder (v. PODER) e de sua legitimação.
V. DEFINIÇÃO DE LIDERANÇA. — As dúvidas e as
controvérsias existentes a respeito têm peso relevante
nas definições dadas ao conceito de Liderança. Ainda
hoje, estas definições se revelam bastante vagas e
imprecisas, embora com certeza C. I. Barnard não
pudesse repetir hoje — após as modernas análises
psicológicas, sociológicas e da ciência política — o
julgamento radical que emitiu em 1940, quando
afirmava que "a Liderança tem sido objeto de uma
enorme quantidade de idiotices (nonsense) enunciadas
dogmaticamente".
De acordo com Wright Mills e Gerth, pode ser
definida como relação de Liderança toda relação "entre
alguém que guia e alguém que está sendo guiado", isto
é, toda situação onde, "por causa de quem está
guiando, os que estão sendo guiados agem e sentem de
forma diferente do modo como
716
LIVRE-CAMBISMO
agiriam e sentiriam se não estivessem sendo guiados".
Acontece que, desta forma, o conceito de Liderança
assume uma amplitude excessiva que acaba se
confundindo com o conceito de influência, sem
manifestar nenhum traço específico. Os mesmos
Wright Mills e Gerth alertam que "talvez" fosse mais
correto "delimitar a Liderança a determinadas formas
de autoridade", encarada como um poder exercido
consciente e intencionalmente de um lado e aceito e
reconhecido espontaneamente do outro.
Como característica específica da figura do líder
em relação à do "chefe", alguns autores — por
exemplo S. Verba (1961) e M. Sherif (1962) —
salientam justamente o aspecto da "espontaneidade"
dos liderados, vistos na sua qualidade de liderados.
Na formulação destes autores, o conceito de
espontaneidade implica, porém, também o de grupo:
"o status de líder — afirma Sherif — encontra-se no
interior de um grupo e não fora dele". O conceito de
grupo, por sua vez, acha-se ligado à idéia de um
acordo entre líder e liderados acerca dos objetivos a
serem alcançados: é esta uma constante que
encontramos em quase todas as modernas definições
de Liderança.
Os autores que tratam do caráter "efetivo" do poder
do líder evidenciam uma outra característica de sua
figura. De acordo com K. Lang (1964) "a Liderança é
sempre ação efetiva, não mero prestígio". Quando
acontece "um fraco exercício de poder efetivo —
ressaltam Lasswell e Kaplan —, temos uma
autoridade formal, não uma Liderança" (porém são
boss e não líderes os que exercem um poder efetivo
"sem que o mesmo se formalize na perspectiva de
autoridade").
A posição do líder, porém, não é uma posição
qualquer de poder, ela é uma posição "central": quer
no sentido ressaltado por Lang, quando afirma que o
líder "é o ponto central para toda atividade do seu
grupo" (e W. F. Whyte [1943] demonstra que esta
"centralidade" é que discrimina as iniciativas do líder
das iniciativas de um liderado), quer no sentido
ressaltado por A. S. MacFarland (1969), quando
observa que "a idéia de liderança conjuga entre si
dois conceitos importantes: o de poder e o de decisões
cruciais" (issue salience).
Concluindo — sem a pretensão, todavia, de
fornecer uma definição plenamente satisfatória —
podemos afirmar que são líderes os que: a) no interior
de um grupo b) ocupam uma posição de poder que
tem condições de influenciar, de forma determinante,
todas as decisões de caráter estratégico, c) o poder
que é exercido ativamente, d) e que encontra
legitimação na sua correspondência às expectativas
do grupo.
BIBLIOGRAFIA. - S. VERBA, Small groups and political
behavior: a study of leadership. Princeton University
Press. Princeton 1961; L. G. SELIGMAN, I.: Political
aspects, in International encyclopedia of the social
sciences, Free Press. New York 1968; A. S. MAC
FARLAND, Power and leadership in pluralist systems
Stanford University Press Stanford 1969.
[ORAZIO M. PETRACCA]
Livre-cambismo.
I. DEFINIÇÃO. — Em sua acepção mais simples e
limitada, o Livre-cambismo é uma doutrina favorável
à liberdade econômica, por razões filosóficas que
Adam Smith, em polêmica contra o mercantilismo, foi
dos primeiros a expor de modo sistemático. A difusão
do Livre-cambismo, jamais sem contrastes, foi
conseqüência de uma visão da economia diversa da
tradicional, que, por milênios, se havia mantido mais
ou menos como uma visão de conflito entre os
homens. Era um velho axioma que "o lucro de uma
pessoa era prejuízo para outra". "A partir de
Aristóteles, os filósofos foram-no enriquecendo de
pormenores, definindo mais exatamente qual o lucro
condenável, ou seja, o excesso acima do justo preço"
(J. Schumpeter). Com o Livre-cambismo, pelo
contrário, rejeitou-se a idéia da economia como "jogo
de soma zero" e se preferiu considerá-la como
possível fonte de um maior bem-estar para todos; nela,
a liberdade não degenera necessariamente em abuso,
mas abre espaços à colaboração contratual.
Não há dúvida de que a transição da velha à nova
doutrina foi favorecida pelo declínio da agricultura,
que perdeu a superioridade produtiva, e pelo
desenvolvimento da indústria, que lhe conquistou a
primazia. Na agricultura, a riqueza principal é a terra,
ou seja, um bem natural escasso e não reproduzível:
findas as terras virgens ou de ninguém disponíveis,
quem quiser mais terrenos tem de os subtrair aos
outros. Na indústria, pelo contrário, a riqueza
dominante é o capital, um bem artificial que se pode
produzir à vontade e se pode acumular, mesmo sem o
tirar aos possuidores antecedentes. Mas, mesmo antes
da Revolução Industrial, na época da revolução
mercantil dos séculos XVI e XVII, se não era a terra,
eram o ouro e a prata que demonstravam existir no
mundo uma quantidade finita de riqueza natural: uma
fatia maior para um impunha uma fatia menor para
qualquer outro.
A terra não gerava outra terra, nem o ouro ou a
prata geravam mais ouro ou mais prata
LIVRE-CAMBISMO
Um grão de trigo gerava outros grãos e, por isso, até
os fisiocratas, eles incluídos, até fins do século XVIII,
continuou-se a pensar que só a produção agrária
fornece excedentes, mas excedentes tão exíguos que
impedem a melhoria geral e durável das condições de
vida. Até depois de Smith, os economistas clássicos,
embora admitissem que os excedentes se podiam
formar também fora da agricultura, teimaram em
preocupar-se principalmente com os antagonismos
relativos à sua distribuição. A ampliação global dos
excedentes continuava sendo, num certo sentido, uma
obra vã, já que se temia que aumentasse pari passu a
população (os homens aumentavam "como ratos num
celeiro"), mantendo-se o salário ao nível mínimo de
subsistência: assim tinha acontecido durante milênios
e assim continuaria.
Embora hostil ao pessimismo demográfico dos
malthusianos, K. Marx chegava por outras vias mais
modernas às suas mesmas conclusões. Mais: teorizando
sobre a "luta de classes" entre proletários e
capitalistas, acentuava como ninguém o conceito
conflitante da economia, dando-lhe novas bases. O
socialismo se apresentava de repente como um
adversário formidável da incipiente doutrina livrecambista, que se pode dizer só recebeu idéias fortes
para se defender, e atacar, dos economistas
neoclássicos da segunda metade do século XIX. Entre
essas idéias, sobressaía a da produtividade marginal
de cada um dos fatores: trabalho, capital, terra.
Nenhum destes fatores individuais tirava nada aos
outros, porque o que recebia nos mercados de
concorrência era a sua contribuição para a produção:
se recebia mais, era devido à sua maior produtividade
e não por tirar parte da contribuição dos outros. O
raciocínio neoclássico ou marginalista era criticável,
mas espelhava a evidência dos salários reais que, pela
primeira vez na história, iam crescendo continuamente
sem prejudicar os lucros.
Desde então, o Livre-cambismo, como doutrina
econômica, isto é, em sua acepção mais simples e
limitada, seguiu a sorte das teorias neoclássicas ou
marginalistas, que lhe serviam de suporte: teve sucesso
até a Primeira Guerra Mundial, depois ressentiu-se das
críticas de J. M. Keynes em 1936 e de P. Sraffa em
1960 (para só citar dois nomes e duas datas);
recuperou-se ultimamente com as teorias dos
economistas chamados às vezes neo-neoclássicos. A
polêmica pró ou contra o Livre-cambismo se
transformou cada vez mais em polêmica pela
economia de mercado ou pela economia planificada.
Foi um debate que, se com um ouvido atendia às
vozes dos economistas teóricos, escutava com o outro
717
as vozes dos fatos históricos de todo o gênero, que,
com o passar do tempo, faziam parte da experiência
adquirida. Além do Livre-cambismo como doutrina
econômica, houve também um Livre-cambismo como
política econômica ou como política tout court, com
sua evolução própria. E justamente a esta evolução da
prática livre-cambista que convém dedicar a próxima
seção.
II. EVOLUÇÃO DA PRÁTICA LIVRE-CAMBISTA. —
Começamos por afirmar, como é óbvio, que, se
possuímos exemplos de Livre-cambismo em estado
puro, não os temos de Livre-cambismo político isento
de compromissos e de parcialidade. A par disso,
nenhuma política planificadora foi jamais integral e o
próprio mercantilismo, como política, em toda a parte
foi abundantemente atenuado. Quando Smith atacava
o mercantilismo britânico, admitia, não obstante, que
os Atos de Navegação (leis tipicamente mercantilistas)
haviam sido "talvez a mais sábia de todas as
regulamentações comerciais da Inglaterra", se
avaliadas não só no plano da economia, como também
no da potência nacional. Com efeito, aquele
mercantilismo foi uma arma de guerra da GrãBretanha contra a Holanda, que então estava na
vanguarda do desenvolvimento econômico: uma arma
semelhante aos canhões, também usados para resolver
a questão. De resto, qualquer livre-cambista sabe que o
monopólio prejudica quem lhe está sujeito e todo
inglês se sentia feliz de poder prejudicar os inimigos
da Inglaterra.
É regra no comércio internacional que o Livrecambismo seja mais do agrado dos países mais
desenvolvidos e menos dos outros, que tentam
diminuir ou anular a sua inferioridade com medidas
protecionistas. A medida que a inferioridade britânica
se atenuava, para se transformar, enfim, em
superioridade com a Revolução Industrial, o Livrecambismo foi-se tornando, depois de Manica, mais
certo e seguro, deixando que os países atrasados
decidissem, como reagir. Mas até os livre-cambistas
admitiam que as novas indústrias "nascentes"
precisavam de uma certa proteção temporária até ficar
adultas. Haviam desaparecido muitas das condições
objetivas e muitas das crenças do mercantilismo e não
se pensava mais que o lucro de um redundasse
inevitavelmente em prejuízo de outro; no entanto, os
políticos acabavam por agir, na prática, mais ou
menos como há um ou dois séculos atrás.
Em contraste, se considerarmos, em vez da
economia internacional, a economia interna de cada
uma das nações, constataremos um quadro diverso.
Em pleno século XVII, ainda em condições de
relativo subdesenvolvimento econômico, a GrãBretanha não hesitava em reconhecer
718
LIVRE-CAMBISMO
aos seus cidadãos (não aos cidadãos estrangeiros)
amplas liberdades econômicas, nisso se distinguindo
claramente da França absolutista: "Entre o
mercantilismo inglês e o colbertismo e derivados,
havia a mesma diferença que existe entre um terno
costurado pelo alfaiate e um já confeccionado" (C.
Wilson). Os próprios privilégios monopólicos das
companhias mercantis foram sempre olhados com
suspeita pela opinião pública inglesa e até mesmo por
alguns setores do Parlamento, tanto mais que entraram
logo em conflito com os interesses dos industriais.
Quando a Grã-Bretanha se obstinou na indústria e no
carvão, apressou-se em desmantelar as companhias
mercantis, bem como as antigas corporações de artes
e ofícios, as aduanas internas, etc, enquanto favorecia
as inovações técnicas e a livre iniciativa empresarial.
Os interesses agrários, também encabeçados pela
poderosa nobreza, foram muitas vezes igualmente
sacrificados aos interesses industriais "burgueses",
quando excessivamente contrastantes. Mas a abolição
das leis protecionistas relativas ao trigo, já avançado o
século XIX, não constituiu uma viragem na política
econômica britânica: foi um prosseguimento no rumo
iniciado muito tempo antes, já no século XVII. Mas tal
orientação não respondia só a motivos econômicos.
Muitos, na Grã-Bretanha, concebiam a liberdade
econômica como parte integrante da mais ampla
liberdade humana, como um direito natural que duas
revoluções políticas, no século XVII, a puritana e a
"gloriosa", haviam admirado e, por fim, acolhido
numa monarquia constitucional única na Europa.
Locke interpretava o sentir comum dos britânicos ao
pôr teoricamente o fundamento da sociedade civil na
defesa da propriedade privada, fruto da laboriosidade
individual; e não é por acaso que um livre-cambista
de hoje, como R. Nozick, parte de Locke para chegar
à igualdade entre o Governo justo e o Governo
mínimo.
Sem este prestígio, que o liga aos grandes ideais
extra-econômicos do homem, não se explicaria o êxito
do Livre-cambismo mesmo fora da Grã-Bretanha, na
América, na Europa continental, na Itália, na época do
iluminismo e depois, em tempos e lugares diferentes,
em condições econômicas diversas. Na Itália, foram
livre-cambistas Romagnosi, Cavour, Francesco
Ferrara e vários protagonistas do Ressurgimento,
pelas mesmas razões que levaram a esse
acontecimento. O maior economista italiano, V. Pareto,
foi livre-cambista; também o foi Luigi Einaudi que,
entre as duas guerras mundiais, num período de
graves crises econômicas, entrou em polêmica com
Keynes, acusando-o de ofender, não tanto
o Livre-cambismo, quanto os valores morais, bem
mais preciosos, que ele envolve.
Atualmente, a sobrevivência do Livre-cambismo
(como, aliás, a do antitético socialismo "obrigatório")
não depende quase mais do que ele possa dizer de
específico sobre o comércio internacional, sobre a
eficiência econômica ou sobre qualquer outra questão
restrita à mera economia. B. Croce, discutindo com
Einaudi, interpretava o Livre-cambismo como algo
pertencente àquilo que é útil, não ao que é justo,
relegando-o, por isso, para uma esfera subordinada à
esfera moral e maiormente nobre do liberalismo. Mas
quase nenhum dos livre-cambistas hodiernos se poria
ao lado de Croce contra Einaudi; pelo contrário, quase
iodos se inclinariam a crer que o Livre-cambismo é a
versão mais pura e integral do liberalismo, como
veremos a seguir.
III. RENASCIMENTO DO LIVRE-CAMBISMO POLÍTICO. —
O atual credo livre-cambista, em sentido amplo,
começa realmente como começa o livro de Nozick,
Anarquia, Estado e utopia: "Os indivíduos possuem
direitos; há coisas que nenhuma pessoa ou grupo de
pessoas lhes pode fazer (sem lesar os seus direitos)". O
coletivo, para os livre-cambistas, é sempre tão-só um
conjunto de indivíduos, jamais os transcende. Os
deveres levados em conta são de indivíduos para com
outros indivíduos, o "reverso da medalha" dos direitos
individuais. Isto está vinculado à idéia liberalista de
que todo indivíduo é diferente dos outros, único e
irrepetível: nada o pode substituir, o que confirma o
alto valor, se não o caráter sacro, da vida humana. O
indivíduo tem o direito de viver a sua vida, que não é
de nenhum outro, nem como nenhuma outra; tem o
direito, e talvez também o dever, de fazer dela a
manifestação das suas exclusivas potencialidades
criativas, de fazer dela a sua própria obra-prima,
seguindo "o grande desejo da excelência". Precisa,
portanto, de liberdade de escolha e de experimentação,
para pôr em ato a sua originalidade, condição
necessária para ser o que os outros não são nem
podem ser.
O Livre-cambismo é, pois, assim entendido, uma
forma do individualismo, que não se há de confundir,
porém, com o anarquismo individualista. Ao realizar
suas experiências, o livre-cambista tem diante de si
dois vínculos ou limites: o respeito pelos direitos e
liberdades dos outros, é claro, e depois também a
escassez dos recursos materiais disponíveis (conquanto
continuamente aumentados). A política e a economia,
como ciências, são, pois, chamadas a colaborar; o
primado da economia entre os instrumentos livrecambistas tem sua raiz no pensamento de
LIVRE-CAMBISMO
que a escassez de recursos está entre as causas
principais das dificuldades políticas, e não vice-versa.
O anarquismo parece atribuir pouco peso à escassez,
como se a provida natureza bastasse para satisfazer o
homem, mal se removessem os danos artificiosos do
Governo e do direito. Não é assim o livre-cambista,
que julga ser impossível suprimir a penúria com
relação aos nossos desejos ilimitados e considera a
natureza como algo que há de ser conquistado
prometeicamente.
Ora, a lição de Smith foi que a divisão do trabalho
ajuda o homem a libertar-se, salvo exceções, das
piores dificuldades econômicas, que, de outro modo, o
penalizariam também e principalmente nas atividades
de fins não econômicos. Mas a divisão do trabalho
multiplica enormemente os laços sociais, estendendoos, para além da família, dos amigos, dos vizinhos, da
tribo e da nação, a pessoas distantes e desconhecidas.
Torna-se necessária uma organização complexa que
atenda às necessidades diversas e constantemente
mutáveis de milhões e milhões de indivíduos
desconhecidos; mas o livre-cambista duvida que um
planificador central possa jamais, mesmo que queira,
dispor de todas as informações necessárias a esse fim
e acredita, pelo contrário, que o mercado de
concorrência cumpra melhor tal finalidade, por se
avizinhar mais do ideal da "soberania dos
consumidores".
A fórmula do comunismo, "a cada um segundo as
suas necessidades", se enquadraria perfeitamente bem
ao livre-cambista, se não fosse a escassez e se os bens
disponíveis bastassem para satisfazer todas as
necessidades de todo o mundo. Mas, não bastando, os
bens escassos são destinados, levando-se em conta as
prioridades que, ou são estabelecidas por uma
autoridade política, ou expressas pelos próprios
indivíduos, dispostos a gastar mais por certos bens e
menos por outros. O livre-cambista é, obviamente, por
este último método, mesmo conhecendo-lhe os
defeitos: quem não tem meio de comprar, está sem
condições de manifestar qualquer procura de comida
no mercado, por muita fome que tenha. O mercado
não se funda no egoísmo, mas na equivalência entre o
que se dá e o que se recebe em troca, estabelecida
mediante a concorrência e o contrato. Quem não tem
nada para dar aos outros nada recebe, a não ser que a
troca ceda lugar à dádiva. O livre-cambista é favorável
à generosidade privada voluntária, mas desconfia da
generosidade pública forçada, porque teme os abusos,
que vão do furto legal ao protecionismo indevido.
Assim também não concorda que se considere justa,
eqüitativa, qualquer redistribuição de renda e de
riqueza de sentido igualitário. Para ele.
719
a renda e a riqueza se julgam, não pelo modo como
são, desiguais ou iguais, mas pelo modo como se
formaram historicamente: a sua distribuição será justa,
mesmo que desigual, se foi justa na origem e foram
justas suas sucessivas variações, ou se qualquer
injustiça foi entretanto sanada (princípio de Nozick).
No mercado de concorrência, o sucesso e a riqueza
são conferidos pela gente a quem mais a satisfaz; não
importa se se premia o mérito ou a sorte; ao livrecambista, o que importa é que premiem o arrojo de
quem consegue satisfazer a gente. A livre-concorrência
é necessária, porque não se sabe de antemão quem é o
melhor em satisfazer: só a experiência o pode
determinar. Contrariamente ao que se lê em muitos
textos de economia, o empresário, tal como o entendem
os livre-cambistas, não calcula o máximo lucro
partindo de um conjunto de dados, mas modifica os
dados que encontra e faz o que os outros não
imaginam que se possa fazer ou crêem errado.
O livre-cambista está, em todo caso, pronto a
sacrificar a eficiência à liberdade, havendo oposição
entre ambas, ou, melhor, avalia a eficiência só em
função da satisfação da livre escolha do consumo, do
trabalho, etc: não lhe interessa a eficiência de uma
economia "racionalizada", com planos, monopólios,
produções em série, como a proposta por tecnocratas
do gênero de W. Rathenau. A eficiência obtida a preço
de uniformidade, a eficiência que comprime as opções
individuais é desprezada pelo livre-cambista; é por
razões análogas que ele não aceita sequer a feição
democrática de qualquer decisão votada por maioria.
Ao mesmo tempo, ele não vê por que votar por
maioria, impondo à minoria uma uniformidade que ela
aborrece, quando o voto diz respeito ao que, por sua
natureza, conta com escolha diversa por parte dos
indivíduos. Além disso, onde a uniformidade for
inevitável em razão do objeto, o livre-cambista
recomenda que seja moderada, isto é, que não lese
nunca direitos individuais mais elevados.
O livre-cambista não se opõe ao socialismo e ao
comunismo, está até disposto a favorecer sua
experimentação, desde que as experiências sejam
voluntárias, como acontece, por exemplo, no kibutz
israelense. É o socialismo e o comunismo forçoso,
obrigatório, que ele repudia: para o livre-cambista, a
superioridade do capitalismo está em que este aceita
os atos comunistas quando entre adultos do mesmo
sentir, ao passo que o comunismo não parece querer a
reciprocidade. O melhor Governo não é aquele que
nos dá a sua utopia, mas o que mantém um espaço de
liberdade onde todos podem buscar pacificamente as
suas diversas utopias. É neste sentido que Nozick
720
LOCK-OUT
pede um Governo "mínimo". Os governantes são
homens como todos os demais, com os mesmos vícios
e fraquezas dos outros; não temos qualquer garantia
de que as suas utopias sejam melhores que as outras.
Não temos sequer a certeza de que entre os
governantes não se insinuem os malvados e os
incompetentes, apesar de todas as cautelas para os
evitar. Por isso, a pergunta mais importante para o
livre-cambista não é quem é que deve governar, mas
como deve governar, para não causar demasiado dano
numa possível eventualidade. É também por esta via,
a de K. Popper, que se chega igualmente ao Governo
"mínimo".
O livre-cambista não confia nos grandes projetos;
prefere avançar por pequenas etapas experimentais,
com o método do trial and error. A iniciativa
individual, conquanto limitada a pequenos horizontes
e aparentemente sem coordenação, tem levado por
vezes, no correr dos séculos, a construções coletivas
amplamente sistemáticas, que ninguém projetou e que
todos gozam: o mercado, a língua, o direito nos países
do common law, os costumes sociais. F. Hayek insiste
em afirmar, como livre-cambista, que jamais a ordem
social é alcançada apenas com a perfeita compreensão
lógica do nexo causai entre os meios disponíveis e os
fins almejados, mas também com normas empíricas
de comportamento que foram transmitidas de geração
em geração, progressiva e gradualmente adaptadas, e
que suavizam a nossa inevitável cegueira em face do
futuro. O livre-cambista concede grande espaço ao
acaso, à sorte: aceita as suas recompensas, mas
também as casuais "injustiças" e danos. Em
economia, uma conjuntura desfavorável conta
certamente com remédios no livre-cambismo; mas
sabe-se que errar é humano e que a perfeita
estabilidade é irrealizável no mundo dos vivos.
Negando o super-homem, o Livre-cambismo crê,
no entanto, no homem adulto, responsável,
independente, moderado, que talvez também nem
sequer exista ou existe quiçá em poucos exemplares,
insuficientes para caracterizar uma sociedade. O
Livre-cambismo é pela liberdade de consumo, mas
sabe que o consumo de homens grosseiros será
também um consumo grosseiro: e sente desgosto por
isso. A liberdade é como um espaço vazio que deve
ser repleto de coisas belas, não de coisas disformes.
Sob este aspecto, o Livre-cambismo aceita e examina
tudo o que outra filosofia lhe possa oferecer para uma
vida melhor, de qualquer modo promissora. Em
conclusão, o Livre-cambismo é uma filosofia aberta e
o seu conteúdo é indescritível a partir de um certo
ponto.
BIBLIOGRAFIA. - L. EINAUDI, La fine del laissezfaire?, in "Riforma sociale", novembro-dezembro
1926; M. FRIEDMAN. Capitalism and freedom.
University of Chicago Press. Chicago 1962; F. A.
HAYEK, La società libera (1960), Vallecchi, Firenze
1969; J. M. KEYNES, La fine . del lasciar fare (1926),
junto com Teoria generale dell'occupazione,
dell'interesse e della moneta, UTET, Torino 1971; R.
NOZICK, Anarchia. stato e utopia (1974), Le Monnier.
Firenze 1981; K. R. POPPER, La società aperta e i suoi
nemici (1966), Armando, Roma 1973; A. SMITH. La
ricchezza delle nazioni (1776), UTET, Torino 1975, C
WILSON, Il cammino verso 1'industrializzazione (1965),
Il Mulino, Bologna 1979.
[SERGIO RICOSSA]
Lock-out.
I.
O "LOCK-OUT" NO ÂMBITO DO
CONFLITO INDUSTRIAL. — Em comparação com
outros comportamentos conflituosos entre empresários,
o Lock-out tem recebido menor atenção nos estudos de
relações industriais do que a greve e as formas de luta
operária (v. GREVE). Não se conhecem dele nem sequer
as principais dimensões quantitativas, uma vez que as
estatísticas oficiais, à exceção da Alemanha, da Áustria
e do Japão, o destacam conjuntamente com a greve.
Não obstante a falta de dados precisos, pode-se
dizer que, na maior parte dos países industriais
avançados, o recurso ao Lock-out é normalmente
reprimido e usado, na maior parte das vezes, como
reação por parte dos empresários contra indicativos de
greve, especialmente contra formas anômalas de greve,
que atingem gravemente a organização empresarial
(Lock-out defensiva). Nos últimos anos, a freqüência
de tal reação e de tais greves parece estar crescendo em
diversos países, a começar pela Itália e pela França.
Um uso do Lock-out — até em sua forma ofensiva ou
de solidariedade — relativamente difundido acima da
média foi registrado na Suécia e na Alemanha. Esta
tendência em utilizar de forma relativamente crescente
o Lock-out em vários países pode significar a tentativa
de resistência dos empresários a pressões conflituosas
que, nos últimos anos da década de 70, ameaçaram
alterar bem drasticamente o equilíbrio das relações
industriais.
II. OS LIMITES DO USO DO "LOCK-OUT". —
A tipologia usual do Lock-out, a começar pela distinção
apenas esboçada entre defensivo e ofensivo, tem valor
unicamente aproximativo. O caráter tanto defensivo
quanto ofensivo do com-
LOCK-OUT
portamento empresarial está habitualmente presente,
mas os modos e os tempos da relação (sempre presente)
com a greve podem variar. No Lock-out de
solidariedade, por exemplo, torna-se particularmente
evidente o objetivo dos empresários em ampliar a
frente do conflito. O objetivo comum de todas as
formas de Lock-out é comumente o de pôr o
empresário numa posição mais vantajosa em relação
aos trabalhadores envolvidos na disputa. Da mesma
forma, pode ser difícil distinguir entre Lock-out
defensivo e fechamento da empresa pelas dificuldades
técnico-organizacionais em continuar a produção por
causa da greve.
A ambigüidade na configuração de fato do Lockout se reflete nas incertezas e nas divergências de
avaliação jurídico-política nos vários países. Um dos
poucos pontos definidos nos ordenamentos capitalistas
democráticos é que o Lock-out, tal como a greve, não
é per se ilícito sob o ponto de vista penal. Ele é
considerado como expressão da liberdade sindical dos
dadores de trabalho. Por outro lado, nem sob este
ponto de vista a equiparação com a greve é completa.
Com efeito, em diversos ordenamentos, o Lock-out
provocado para pôr em cheque, sem motivos
legalmente justificáveis, a ação sindical é visto como
atividade anti-sindical. Em tais casos, a ordem do juiz
destinada a fazê-lo cessar é na maior parte das vezes
sancionada penalmente. À parte os aspectos
penalísticos, o Lock-out é considerado juridicamente
da mesma maneira que a greve nos ordenamentos de
alguns países, como é o caso da Suécia e da República
Federal Alemã. A principal conseqüência disso é que
o Lock-out é lícito, em linha de princípio, entre as
partes, salvo limitações particulares resultantes de
acordos coletivos (obrigações de trégua, pré-aviso,
recurso a procedimentos conciliadores antes de se
recorrer à luta). De forma paralela, o dador de
trabalho não é obrigado a pagar os salários aos
trabalhadores atingidos, podendo até, em casos de
especial gravidade, resolver a respeito deles.
Bem ao contrário, a maior parte dos países, entre
os quais a Itália, embora partindo de posições
tradicionais semelhantes às anteriores, eliminaram-nas
desde o momento em que a greve foi apoiada como
direito. Tal apoio vale apenas para a greve e o Lockout ficou como ilícito entre as partes, em linha de
princípio. Esta diferença de tratamento foi
normalmente justificada pela posição diferente das
partes em termos de conteúdo. A posição de
supremacia econômica do empresário e a sua
possibilidade de usar outras formas econômicas de
pressão contra os
721
trabalhadores, ao mesmo tempo que requerem um
reconhecimento jurídico em favor da autotutela destes,
excluem-no, em princípio, através do Lock-out. A
iliceidade do Lock-out implica que o empresário é
obrigado a pagar aos trabalhadores envolvidos os
salários respectivos durante o período de fechamento
da empresa.
Para além desta contraposição, porém, na maior
parte dos países existem e vão prevalecendo soluções
intermediárias. Nos países que não aceitam o
paralelismo entre greve e Lock-out, como na Itália,
nem sempre este é considerado ilegítimo. Quando as
modalidades da greve tornam tecnicamente impossível
ou menos proveitosa e utilizável a prestação de
trabalho dos grevistas além do período da greve
(greves intermitentes) ou dos não-grevistas (por
exemplo, os que adotam a operação-tartaruga), o dador
de trabalho tem justificativa para não pagar o salário
durante este período e a esses indivíduos,
precisamente em virtude da impossibilidade (não
culpável) da prestação de trabalho. Se na verdade se
trata de impossibilidade, realmente não se pode falar
de Lock-out, mas de "fechamento técnico" da
empresa.
Nos Estados Unidos prevalecem também situações
intermediárias.
A
propensão
originária
da
jurisprudência em proibir o Lock-out como prática
anti-sindical foi substituída por uma forma menos
clara que dele exclui a ilegitimidade em si, fazendo
depender sua qualificação de uma análise — nem
sempre fácil e clara — das circunstâncias de sua
utilização, dos objetivos do empresário e dos
interesses em jogo. Por outra parte, as primeiras
posições de indiferenciada legitimação do Lock-out na
Alemanha Federal foram submetidas a críticas pela
própria jurisprudência, especialmente por ocasião do
recurso maciço de 1979 a este instrumento de luta, o
que atingiu duramente a capacidade de resistência dos
sindicatos. Especificamente sofreram acusação o
Lock-out ofensivo e de solidariedade, a possibilidade
de que o Lock-out interrompa a relação de trabalho,
eliminando o controle das demissões e, mais em geral,
de que estenda o conflito além do âmbito da própria
greve.
III. CAUSAS DO USO DIVERSIFICADO DO "LOCK-OUT" EM
VÁRIOS PAÍSES. — Esta maneira diversificada de avaliar
o Lock-out e seu variado uso prático em muitos
ordenamentos não são fáceis de explicar. E isso não é
apenas devido à falta de dados precisos. Não parecem
decisivos os indicadores estruturais comumente usados
para explicar a caracterização do conflito operário.
Também parece que não influíram no caso as
722
LUDISMO
variações radicais das estruturas contratuais e da
organização
sindical
(a
centralizaçãodescentralização, por exemplo). Também não existe
relação entre níveis e qualidade da conflitualidade
operária e tendências voltadas para o uso do Lock-out,
até porque este é apenas um instrumento de conflito
usado pelo empresário, o qual pode usar, em
contrapartida, os poderes normais de exercício da
empresa para pressionar os operários.
Bem ao contrário, a prática do Lock-out é bastante
influenciada pela intervenção do poder público e
especialmente pelos dispositivos legais existentes em
diversos países. Na maior parte dos países, os limites
jurídicos para sua legitimidade são tão apertados que
reduzem sua conveniência prática ao mínimo. A
capacidade de dissuasão do Lock-out é, ao contrário,
bem mais relevante nos países onde esse instrumento
é legitimado como um equivalente legal da greve. A
avaliação de tais ordenamentos corresponde à idéia de
que a posição das partes coletivas no conflito é
substancialmente equilibrada, sem necessidade de
intervenções públicas específicas, além das que
geralmente já limitam os poderes do empresário na
condução da empresa. Este comportamento, que é a
mais pura expressão do pluralismo, é apoiado numa
tradição de auto-governo das partes sociais e de
reduzida intervenção legislativa no conflito coletivo, e
ainda numa experiência contratual positiva entre
partes fortes que se respeitam reciprocamente e que
por isso mesmo se mostram inclinados a não abusar
das formas de endurecimento no conflito. Também é
verdade que a neutralidade do Estado em tal matéria
coexiste com a tendência a uma crescente intervenção
pública centralizada na política contratual e a um
progressivo acordo das partes nas instituições. O
recurso ao Lock-out ou à sua ameaça em tal contexto
é facilitado nos países onde as associações
empresariais são fortes e centralizadas e se dispõem a
formar uma frente comum contra os sindicatos
também centralizados (caso da Suécia e da República
Federal Alemã); mas é mais improvável onde há falta
de estruturas empresariais centralizadas e onde a
contratação é bastante descentralizada, como na GrãBretanha e nos Estados Unidos.
Em contraste, a maior parte dos ordenamentos
hostis ao Lock-out experimentaram uma longa
tradição de intervenções estatais nas relações
industriais tendentes a estabelecer o equilíbrio de
poder entre as partes coletivas a favor da considerada
mais fraca. Os limites para o Lock-out são, neste
sentido, um dos instrumentos de disciplina pública
das relações sindicais. O exame
comparado confirma em cada caso que a analogia
entre greve e Lock-out não é inteiramente aceita e que
o controle pública sobre o segunde é mais rígido do
que sobre a primeira, mesmo nos países onde
prevalecem as soluções intermediárias acima
referidas.
BIBLIOGRAFIA. —Industrial Conflict. A Comparativa
legal analysis. ao cuidado de B. AARON e K. W.
WEDDERBURN, Longman. London 1972; DAUBLER.
Legalität
und Legitimität
der
Aussperrung.
Schriftenreihe der Juristischen Studiengeseltschaft,
Hannover, 2 Heft, Gieseking Verlag. Bielefeld 1979;
RAMIN, Le lock-out et le chómage technique. Pichon et
Durand-Auzias, Paris 1977; T. RAMM. Il conflitto
collettivo nella repubblica federale tedesca, ISEDI.
Milano 1978; T. Treu, La disciplina e la prevenzione del
conflito colletivo nei paesi della CEE (a ser publicado
proximamente pela CEE) Id.. Gli strumenti di lotta
sindacale degli imprenditori: in particolare la serrata,
in "Rivista giuridica del lavoro 1980", I, pp. 215 ss.
[TIZIANO TREU]
Ludismo.
Movimento operário inglês de protesto, que se
desenvolveu no início do século XIX mediante a
destruição de alguns tipos de máquinas industriais,
buscava alcançar melhorias salariais e frear a
completa mecanização do ciclo de produção têxtil. O
nome tem origem no lendário líder do movimento
"Nedd Ludd" (conforme a tradição, teria sido ele o
primeiro operário têxtil a quebrar o tear do patrão,
devido a um conflito com o mesmo, em
Loughborough, Leicestershire, lá pelo fim do século
XVIII); por isso, seus sequazes se chamaram ludders
ou luddites (luditas). O verdadeiro Ludismo eclodiu
nos condados ingleses do Nottingham, Lancaster e
York, entre 1811 e 1817, tendo ocorrido, no inverno
de 1811-1812 e 1816-1817, os dois movimentos mais
fortes,
com
características
locais
bastante
diversificadas (no Nottinghamshire apresentou-se
mais acentuado o movimento da reivindicação
salarial, no Yorkshire apresentou-se fortemente
politizado numa perspectiva antilondrina e antigovernativa, apresentando-se no Lancashire mais
organizado e militarizado). O momento culminante da
luta se deu com o assalto noturno à fábrica de William
Cartwright em Rawfolds, York, em abril de 1812. No
ano seguinte, em
LUDISMO
York, deu-se o maior processo contra os ludistas: dos
sessenta e quatro réus, 13 foram condenados à morte,
2 à deportação para as colônias por terem atentado
contra a fábrica de Cartwright. Apesar da enorme
utilização de tropas no processo de repressão, o
movimento continuou evoluindo, principalmente por
causa das péssimas condições de vida das classes
trabalhadoras inglesas, dos efeitos mais imediatos da
Revolução Industrial e do bloqueio continental
napoleônico, que fechara os mercados externos.
Movimentos provocados pelo aumento do preço do pão
aconteceram um pouco por toda parte e o estado de
agitação adquiriu características endêmicas entre a
população de mais baixa renda, com nuanças que iam
desde a conjuração jacobina até a revolta ludista.
É claro que, embora os acontecimentos aqui
sumariamente descritos tenham sido expressamente
designados pelo termo Ludismo, formas violentas de
protesto já haviam surgido em 1718, 1724, 1738,
1757, 1766 e 1795, com a alagação de minas, queima
das colheitas e destruição de máquinas. Após a crise
dos anos 1811-18.12 e 1816-1817, explodem ainda
violentos movimentos em 1826 contra os teares a
vapor. Pouco depois, em 1830-1831, foi a vez dos
assalariados do campo que destruíram as
debulhadoras. Pesquisas mais recentes evidenciaram a
complexidade do movimento, pondo em relevo seu
aspecto político, sua ligação com os clubs da esquerda
e sua relação com a agitação a favor da reforma parla-
723
mentar. A generalização do sistema de produção
industrial e do poder da burguesia que trazia consigo
um maior controle da classe operária, e depois, a
formação das primeiras trade unions (legalizadas em
1824), reduziram a importância e a possibilidade das
revoltas ludistas. A destruição do mercado interno
baseado nas manufaturas por parte do sistema de
fabricação apresentava a relação entre o operário e as
máquinas em termos novos e fazia com que
desaparecesse o contraste direto entre o trabalho
humano e o trabalho mecânico que constituía a base
dessa forma de protesto. A palavra Ludismo acabou
por tornar-se emotivamente negativa, tanto para as
classes dominantes, diretamente ligadas à propriedade
privada e ao capital industrial, quanto para as
organizações operárias diversamente influenciadas pelo
marxismo, então expressão de um mundo
profundamente industrializado. A palavra sabotagem
serve melhor para qualificar os atos de violência
operária, mesmo coletivos, que, de qualquer modo, não
visam à modificação radical do sistema de produção
industrial mas atentam apenas contra a propriedade e
o capital.
BIBLIOGRAFIA. - E. J. HOBSBAWM, Studi di storia del movimento
operaio (1964). Einaudi, Torino 1972; Lionel Mumby: The
luddites and other essays, ao cuidado de E. J. HOSBAWM.
London 1971.
[MAURO AMBROSOLI]
Macarthismo.
Macarthismo é um termo de uso político norteamericano. Indica a atitude de um anticomunismo
absoluto, concretizada numa visão política maniquéia
e numa verdadeira e autêntica perseguição aos homens
e instituições declarados antiamericanos, porque
"comunistas". Historicamente, o Macarthismo
representa o auge da Guerra Fria na política interna
dos Estados Unidos, coincidindo com os anos 19501954, em que finda a trajetória do senador republicano
do Wisconsin, Joseph McCarthy (1907-1957).
A história do Macarthismo vem a identificar-se com
o período imediatamente posterior à vitória da
Revolução Chinesa e à explosão da primeira bomba
atômica soviética (1949), o período da guerra da
Coréia. É o momento de mais acirrado anticomunismo
do segundo pós-guerra. Ele dá lugar a uma série de
"expurgos" políticos a todos os níveis e em todos os
campos, sobretudo no campo intelectual, dentro de
um clima de caça às bruxas bem mais intenso do que a
luta interna, mesmo duríssima, que em outros
períodos se travou contra o comunismo.
O líder político e moral deste movimento foi o
senador McCarthy, que lhe deu uma plataforma teórica
e formulou a tese de que os insucessos americanos em
política externa só se podiam explicar pela infiltração,
no aparelho estatal, de espiões e agitadores comunistas
ou de seus simpatizantes, que lhe solapavam
sistematicamente a ação, a fim de permitir a vitória da
União Soviética. Uma dura cruzada contra a
conspiração interna era, por conseqüência, o prérequisito de toda iniciativa de política externa. A
vitória republicana nas eleições presidenciais e
congressionais de 1952 levou McCarthy à presidência
do poderoso Senate Committee on Government
Operations, bem como do Permanent Subcommittee
on Investigations, o que lhe permitiu realizar, durante
todo o ano de 1953, uma série de inquéritos
sensacionais sobre o comportamento de diversos
funcionários de órgãos públicos.
Os violentos ataques e a tentativa de submeter a
inquérito o ex-presidente Truman e altos oficiais do
exército, bem como o clima de suspeita, desconfiança e
desorganização criado na administração pública,
obrigaram o presidente Eisenhower, também atacado, e
o Senado a agirem contra McCarthy. Uma moção de
censura votada contra ele pelo Senado, em dezembro
de 1954, fez declinar rapidamente a sua estrela
política, dando início à decadência de todo o
movimento.
O Macarthismo é um fenômeno estreitamente
ligado às peculiaridades históricas dos Estados
Unidos. Sob o ponto de vista teórico, ele se baseia numa
hipótese conspiratória que encontra paralelo em
movimentos políticos antimaçônicos e anticatólicos do
século XIX, preocupados em salvaguardar a identidade
americana. Este "estilo político", que R. Hofstadter
definiu como "paranóide", pela mania persecutória
que ostenta e que acaba, enfim, por fazer cair em cima
dos adversários, parece ligado à dificuldade histórica
de oferecer adequados sistemas de identificação a uma
nação que se formou com a constante sobreposição de
grupos imigrados, diferentes entre si. Isto, aliado ao
intenso clima de competição social existente entre os
grupos étnicos, parece ter levado à profunda
insegurança de que a política "paranóide" é um
sintoma. Não é sem razão que a popularidade de
McCarthy foi aparentemente mais viva entre os
grupos mais recentemente imigrados ou que estavam
consolidando a sua posição social.
É, porém, evidente que esta hipótese não basta por
si só para explicar o fenômeno concreto. Lembremos
que McCarthy não encabeçou nenhum movimento
popular espontâneo e antiinstitucional. Os mass media
puseram-no sem dúvida em contato com amplos
estratos assaz receptivos da opinião pública; mas ele
agiu sempre dentro das estruturas políticas existentes,
precisamente com o apoio da direita conservadora do
partido republicano. Foi a vitória republicana de 1952
que lhe deu uma posição de poder no Congresso e
foram alguns poderosos senadores republicanos que
lhe facilitaram por todos os meios os
726
MÁFIA
inquéritos no âmbito de um mais amplo desígnio
político conservador. Não foi sem motivo que o alvo
dos seus ataques foram sobretudo membros ou
simpatizantes do partido democrático. Sua própria
queda se deu dentro e através dos instrumentos da
vida política oficial, tendo sido devida ao
"radicalismo de direita" de que se manteve prisioneiro
e que o impediu de moderar a sua posição, quando o
partido republicano, fortalecido no poder, tornou mais
flexível a sua Linha política, tanto interna como
internacional.
BIBLIOGRAFIA. - R. GRIFFITH, The politics of fear:
J. McCarthy and the Senate, Kentucky U. P.,
Lexington 1970; R. HOFSTADTER, The paranoid style
in american politics, Knopf, New York 1965; M. P.
ROGIN, The intelectuais and McCarthy: the radical
specter. MIT Press. Cambridge, Mass. 1967; R. H.
ROVERE, Senator Joe McCarthy. Harper-Row, New
York 1959.
[TIZIANO BONAZZI]
Máfía.
Fenômeno criminoso típico da Sicília ocidental,
cujas origens devem ser relacionadas com as formas de
exploração do latifúndio, que constitui a estrutura
básica da economia nesta parte da ilha. A exploração
do latifúndio consiste numa complexa e urdida
especulação, organizada de maneira rigidamente
piramidal. O vértice é representado pelo proprietário,
que habitualmente vive de renda na cidade e prefere
passar a gestão do feudo a um grande arrendatário, o
gabellotto, que concentra em suas mãos as
responsabilidades maiores: subdivide a terra em lotes
menores que depois subarrenda, controla a quantidade
e a qualidade das colheitas, se interessa pela cobrança
das prestações anuais e dos impostos (gabella). Ao
redor dele, a nível executivo, gira toda uma corte de
superintendentes, olheiros e arrendatários menores,
enquanto os únicos a trabalhar a terra com as próprias
mãos, garantindo assim o proveito de todos, são os
camponeses e os trabalhadores braçais, que
representam a base da pirâmide.
Um código de leis não escritas regula as relações
que vão do proprietário aos arrendatários e
camponeses. Para que estas normas fossem respeitadas,
antes da década de 60, os barões costumavam
assalariar verdadeiras milícias privadas, formadas até
de delinqüentes comuns. Depois da unificação da
Itália, que de certo modo marca um limite ao
superpoder da classe agrária, se
formam, em troca, pequenos grupos, chamados
cosche, de que fazem parte poucos indivíduos, que se
encarregam de garantir, quase secretamente, a
estabilidade das relações econômicas e sociais numa
determinada região. Este é o registro de nascimento
da Máfia; forma de monopólio da violência que
substitui os poderes do Estado e se encarrega de
manter a "ordem" além da lei. Normalmente a Máfia
intervém através de "acordos entre amigos" ou, nos
casos mais difíceis, pelo uso da força, assegurando,
dessa forma, a sobrevivência de um sistema agrário
feudal no interior de um Estado que se proclama
liberal.
Como estrutura de poder de fato, a Máfia se apóia
na ruptura fundamental que a sociedade civil
apresenta nestas regiões mais atrasadas da Sicília, e
que ocorre entre o proprietário de enormes extensões
de terra e o camponês que a trabalha, assumindo a
tarefa de mediadora. Então a Máfia acaba se tornando
a organização de todo aquele complexo universo que
existe entre o patrão e o trabalhador, tirando lucro da
terra sem ter sobre ela nenhum título particular.
Exerce, dessa forma, sua pressão em duas direções:
sobre o proprietário no intuito de conseguir
arrendamentos mais baixos e sobre os camponeses a
fim de que lhe entreguem toda a colheita. Aos poucos
ela assume o controle de toda a economia de uma
região, especialmente da água e do comércio. Através
dos mercados penetra, em seguida, nas cidades, onde
tenta apoderar-se das empreitadas de obras públicas e
inicia sua escalada para á administração pública e a
política.
Esta é a fase decisiva da consolidação da Máfia:
primeiro as administrações locais, em seguida o
parlamento nacional, a magistratura, a burocracia, os
órgãos de segurança pública; mais ou menos, toda a
classe política liberal ostenta ligações com a Máfia. Já
nos encontramos diante de uma organização de
enormes dimensões, que influencia decisivamente
todas as relações da vida política, econômica e social,
que administra a sua justiça, distribui prêmios e
castigos. Toda a tentativa de erradicá-la com medidas
policiais contra os seus chefes conhecidos se revela
forçosamente inútil. O fascismo conseguiu limitar-lhe
as demonstrações de força, mas após a Segunda Guerra
Mundial ela reaparece com toda sua potência. Até os
anos 50 a Máfia realizou um papel essencialmente
conservador: se opôs à ocupação das terras por parte
dos camponeses e ao desmembramento dos. feudos
pela reforma agrária; às vezes é independentista,
monárquica, por fim, democrata-cristã. Por último,
porém, reconhece serem inúteis seus esforços para
defender suas posições na economia agrária e se volta
para áreas mais rendosas. A Máfia de hoje se apresenta
MANIPULAÇÃO
em formas mais clamorosas e violentas; tem as
dimensões empresariais do gangsterismo americano e
suas esferas de ação são os mercados atacadistas, a
indústria imobiliária, o contrabando, o tráfico de
drogas. Entre a velha e a nova Máfia permanece, talvez,
somente um ligame de mentalidade: a especulação e
exploração parasitária como único meio para
enriquecer, e a violência contra os mais fracos como
forma para se impor na vida.
[ALFIO MASTROPAOLO]
Manipulação.
I. O QUE É A MANIPULAÇÃO. — O uso da palavra
Manipulação para indicar determinadas relações
sociais ou políticas que intermedeiam entre indivíduos
ou grupos não é um uso primitivo mas derivado.
Originariamente o termo foi empregado para designar
certas intervenções do homem na natureza, em que se
manuseiam ou tratam fisicamente determinadas
substâncias naturais com o objetivo de lhes alterar a
forma. Falava-se e fala-se de Manipulação, por
exemplo, cm referência ao processo artificial de
separação dos metais nobres ou ao tratamento das
substâncias nos experimentos químicos. Por analogia
com este significado original, ao ser transposto para a
esfera social e política, tal termo indica uma série de
relações que se distinguem por uma acentuada
diferença entre o caráter ativo e intencional da ação do
manipulador, que visa transformar o comportamento
do manipulado, e o caráter passivo e inconsciente do
comportamento deste. O manipulador trata o
manipulado como se fosse uma coisa: maneja, dirige,
molda as suas crenças e/ou os seus comportamentos,
sem contar com o seu consentimento ou sua vontade
consciente. O manipulado, por sua vez, ignora ser
objeto de Manipulação: acredita que adota o
comportamento que ele mesmo escolheu, quando, na
realidade, a sua escolha é guiada, de modo oculto,
pelo manipulador.
Na esfera social e política, a Manipulação pode ser
definida, em geral, salvo uma exceção a que me
referirei mais adiante, como uma das espécies do
PODER (V.), definido, por sua vez, como determinação
intencional ou interessada do comportamento alheio. A
Manipulação é uma relação em que A determina um
certo comportamento de B, sem que, ao mesmo tempo,
A solicite abertamente esse comportamento a B, mas
antes the esconda sua intenção de obtê-lo (ou então a
natureza da sua ação para o conseguir), e sem que.
727
por outro lado, B note que o seu comportamento é
querido por A (ou então que é provocado pela
intervenção de A), mas antes acredite que é ele que o
escolhe livremente (ou mediante uma decisão
consciente)'. São dois os requisitos essenciais da
Manipulação social. Antes de tudo, seu caráter oculto
ou invisível. O sujeito manipulado não sabe que o é e
crê tomar a sua decisão de modo livre, enquanto que o
seu comportamento é, na realidade, manobrado pelo
manipulador como o são os movimentos de um títere
nas mãos do operador. A natureza oculta da
Manipulação pode referir-se à própria existência da
ação do manipulador, como acontece no caso agora
descrito; ou então, como foi dito na definição geral
acima apresentada e como ilustrarei em breve, pode
dizer respeito ao caráter da intervenção do
manipulador. O segundo requisito reside no caráter
intencional do exercício da Manipulação. O
manipulador
não
procura
só
provocar
intencionadamente o comportamento que deseja do
manipulado; procura também, de modo igualmente
intencional, esconder a existência e natureza da ação
que provoca o comportamento do manipulado.
Se se atende ao caráter oculto da Manipulação no
que tange à existência da intervenção manipulatória, a
relação de Manipulação pode ser contraposta à de
persuasão. Quando um sujeito tenta persuadir outro a
abraçar uma certa crença ou a adotar um determinado
comportamento, ele indica-lhos explícita e
abertamente, formulando de modo igualmente
explícito e aberto as razões que favorecem essa
crença ou esse comportamento. Dessa maneira, a
persuasão, ao contrário do que ocorre com a
Manipulação, visa à obtenção do consentimento
voluntário e consciente daquele a quem se dirige. Mas
é claro que nem todas as mensagens persuasivas se
ajustam àquele que poderíamos chamar modelo ideal
da persuasão racional, cujo fim é basear em
argumentos a verdade, a racionalidade e a
conveniência de uma asserção, de uma opinião ou de
uma decisão como tal. É freqüente, especialmente em
política mas não apenas nela, as mensagens
persuasivas dos homens recorrerem, para captar a
desejada adesão dos destinatários, a meios que são
inadmissíveis dentro do modelo da persuasão racional
e que se destinam a enganá-los, a moldar suas
escolhas sem que eles o saibam: a distorsão da
informação, por exemplo, a verdadeira e autêntica
mentira e o recurso a mecanismos psicológicos
inconscientes. Nestes casos, a mensagem continua
sendo, aparentemente, uma mensagem persuasiva.
Trata-se, no entanto, de uma persuasão ilusória ou,
como já foi dito, de uma persuasão oculta, portanto,
de uma forma de Manipulação.
728
MANIPULAÇÃO
O caráter ignorado desta relação não se refere à
existência da intervenção, que, em geral, é claramente
percebida pelo destinatário, mas antes à sua natureza.
O que parece persuasão racional e explícita é, ao
invés, uma moldagem das crenças e dos
comportamentos do destinatário da mensagem, por
meio de instrumentos que lhe são desconhecidos.
Se se atende ao caráter intencional da ação
manipulatória, poder-se-á distinguir claramente o
conceito de Manipulação do de ideologia, entendido
este em seu significado mais "forte", ou seja, como
falsa consciência de uma situação de poder (v.
IDEOLOGIA). Em seu sentido mais pleno, uma situação
"ideológica" supõe que a justificação ideológica do
poder seja aceita tanto pelos dominados quanto pelos
dominadores. Por conseguinte, tal justificação do poder
é falsa consciência, não porque certos atores sociais
enganem intencionadamente outros, mas porque ela
constitui uma falsa motivação dos comportamentos de
mando e de obediência, pela qual dominador e
dominados se auto-enganam através de processos
inconscientes. Trata-se exatamente de uma "falsa
consciência" e não de uma "falsidade consciente". Pelo
contrário, a falsidade, que pode caracterizar certos
tipos de Manipulação, é um verdadeiro e autêntico
engano consciente, um instrumento que o
manipulador utiliza de forma deliberada em relação
ao manipulado. Esta distinção conceptual entre
ideologia e Manipulação não impede, contudo, que, de
fato, em situações sociais concretas, possam ocorrer e
ocorram
muitas
vezes
casos
intermédios,
caracterizados por uma combinação dos dois
fenômenos. Nesses casos, à existência mais ou menos
difusa de uma falsa consciência da situação de poder,
ajuntam os dominadores, ou uma de suas frações,
práticas deliberadas de Manipulação para inculcar a
doutrina ideológica.
Do ponto de vista avaliativo, a Manipulação é um
fenômeno unívoca e insofismavelmente negativo. Entre
todas as formas de poder, é ela que acarreta mais
grave condenação moral. Tem-se afirmado, por
exemplo, que ela constitui "a face mais ignóbil do
poder" e "a forma mais inumana da violência", ou que
quem dela é vítima "é espoliado da alma". Esta
acentuadíssima conotação de valor pode reduzir-se a
três afirmações fundamentais: a Manipulação é
sempre um mal; nega radicalmente o valor do
homem; é irresistível. 1) Outros termos depreciativos,
de uso comum com relação ao poder, como "opressão"
ou "exploração", referem-se aos seus efeitos. O poder
é, nesse caso, algo de valor neutro que se torna um
mal ou um bem segundo os efeitos que produz. Na
Manipulação, pelo
contrário, o juízo de valor diz respeito ao poder em si,
isto é, ao modo como ele é exercido. A forma de
poder que chamamos Manipulação é sempre e
necessariamente um mal. 2) Desde o mesmo ponto de
vista citado, a Manipulação é semelhante à "coação",
que também indica um modo de exercício do poder
que é univocamente mau. Mas a coação, conquanto
oprima a liberdade de quem lhe está sujeito, não está
privada de uma franqueza peculiar, embora brutal: é
aberta e explícita, visando obter por meio de ameaças
o que, não obstante, é sempre um comportamento
voluntário e consciente. A Manipulação, ao invés, é
falsa e oculta e trata o homem como uma coisa: moldalhe o comportamento sem contar com a sua vontade
consciente. Nega não só a liberdade, como também a
própria capacidade de escolha do homem, ou seja, o
atributo que o torna sujeito moral. 3) Resulta daí que
é possível resistir à coação, embora pagando um
preço mais ou menos alto, enquanto que nenhuma
resistência se pode opor à manipulação. O mártir e o
conspirador, que preferem a morte a renegar a própria
fé ou a trair os companheiros de luta, pagam com o
preço da vida, mas, ao mesmo tempo, resistem ao
poder e o mantêm em xeque. O aluno que o professor
instrui tirando partido da sua vulnerabiliadde não pode
resistir, pois não é posto diante de uma escolha, e
ignora que é objeto de Manipulação.
Há duas formas genéricas de exercer a
Manipulação social. Pode-se agir, em primeiro lugar,
sobre as bases das crenças e ações dos homens. Toda
a opinião, todo o comportamento humano, que não
seja puramente instintivo, são guiados e/ou
justificados pelos conhecimentos e juízos de valor do
sujeito acerca do ambiente percebido como relevante
para a opinião ou para a ação. É possível, por isso,
guiar ocultamente as crenças e as ações de um
indivíduo ou de um grupo, controlando e moldando as
comunicações que ele recebe a respeito de tal
ambiente. Esta forma de Manipulação se poderá
chamar distorsão ou supressão da informação,
entendendo-se aqui a "informação" num sentido
genérico, que inclui tanto as mensagens de conteúdo
descritivo como as de conteúdo avaliativo. B abraça
uma crença ou se empenha numa ação que ele mesmo
escolhe; mas a escolha de B, sem que ele o saiba, é
determinada por A, mediante o controle e distorsão
que este exerce sobre as informações que aquele
recebe e que o orientam para essa tal crença ou essa
tal ação.
Em segundo lugar, pode-se agir sobre a estrutura
das motivações que impelem os homens para
determinadas crenças ou para determinadas ações.
Como veremos mais adiante, a estrutura das
MANIPULAÇÃO
motivações pode ser entendida em sentido lato, isto é,
como uma estrutura que compreende também os
condicionamentos sociais e as próprias estratégias e
táticas adotadas pelo sujeito. Contudo, as relações de
Manipulação mais notáveis e importantes, que operam
sobre a estrutura das motivações, terminam nos
impulsos e dinamismos psicológicos, de caráter
repetitivo e automático ou quase automático, que
podem constituir a base principal das crenças e
comportamentos humanos. As preferências do
homem, tanto em termos de crenças como de
comportamentos, não são só o fruto de deliberações
racionais e conscientes; são também, em maior ou
menor grau, o resultado de dinamismos psicológicos
encastoados na estrutura da personalidade, de que o
sujeito nem é consciente nem se pode libertar.
Conseqüentemente, é possível guiar ocultamente as
crenças e ações dos homens por meio do controle
(ativação
ou
desativação)
dos
dinamismos
psicológicos inconscientes. B abraça uma crença ou
se empenha numa ação que ele mesmo escolhe; mas a
sua escolha, sem que ele o saiba, é determinada por A,
por meio do controle que este exerce sobre os
dinamismos psicológicos inconscientes de B,
orientando-o para essa crença ou para essa ação.
Em geral, a ativação manipulatória dos dinamismos
psicológicos inconscientes opera mediante a emissão
de mensagens que prendem a atenção do sujeito
passivo e são organizadas previamente para invadir as
dimensões inconscientes da sua personalidade. As
práticas manipulatórias mais características deste
gênero pertencem ao campo da publicidade comercial
e da propaganda política. Chamarei a esta espécie de
Manipulação Manipulação psicológica. Mas não se há
de esquecer que a ativação (ou desativação dos
impulsos e, em geral, dos estados emotivos, e até dos
estados de atenção e inteligência, pode ser também
efetuada por meio da alteração física do corpo de um
indivíduo. Pensemos nas descobertas da moderna
neurofarmacologia (os chamados psicofármacos), bem
como nas possibilidades que foram abertas pela
combinação das técnicas dos microaparelhos
eletrônicos e da cirurgia cerebral. Mediante a
inoculação de soros, a ministração de pílulas ou a
instalação de microaparelhos eletrônicos no encéfalo, é
possível controlar, não só temporária como também
duravelmente, os impulsos de um homem, seus estados
emotivos, seus estados de atenção e de inteligência. Se
o sujeito passivo não sabe que está sendo submetido a
uma dessas intervenções, ou não lhe conhece a
natureza e os efeitos, é objeto de Manipulação.
Chamarei a esta espécie de Manipulação Manipulação
física. Note-se que ela não se
729
diferencia da espécie precedente pelo alvo ou fim, que
continuam sendo psicológicos, pois dizem respeito aos
impulsos e aos estados da mente. Diferencia-se da
"Manipulação psicológica" pelo meio que usa: a
modificação física do corpo do sujeito passivo mais
do que a emissão de uma mensagem simbólica a ele
dirigida.
Pondo termo a este ponto, lembro que se podem
distinguir duas formas gerais de Manipulação, uma
que atua sobre as bases cognitivas e avaliativas da
escolha, outra, sobre a estrutura das motivações.
Podendo a segunda destas formas ser decomposta, por
sua vez, em dois subtipos principais, são três as
espécies de Manipulação que devemos levar em conta;
a Manipulação da informação, ou seja, a distorsão ou
supressão da informação; a Manipulação psicológica,
ou ativação de dinamismos psicológicos inconscientes
mediante instrumentos simbólicos; e a Manipulação
física, isto é, a ativação de impulsos e estados da
mente mediante instrumentos físicos. Nas páginas que
seguem, ocupar-me-ei distintamente de cada uma
destas três espécies de Manipulação.
II. MANIPULAÇÃO DA INFORMAÇÃO. — o exemplo
mais simples de Manipulação da informação é a
mentira. Fornecendo a B falsas informações sobre
acontecimentos relevantes para a sua escolha, A pode
levar ocultamente B a um certo comportamento,
enquanto este toma as informações por verdadeiras e
julga escolher livremente. A importância da mentira
em política, assim como a sua eficácia quando
orientada a fins manipulatórios, ou seja, para obter o
consenso do público ou de outros atores políticos,
foram postas em relevo e discutidas por muitos
pensadores políticos clássicos, como Platão e
Maquiavel. No nosso tempo é bem conhecida a
falsidade usada sem escrúpulo na propaganda de
alguns Governos totalitários. Mas a mentira política
não-é propriedade exclusiva dos regimes iliberais.
Entre os casos notáveis verificados mais recentemente
nos países liberal-democráticos, o que teve
conseqüências de maior alcance foi provavelmente o
da chamada Resolução do Golfo de Tonquim, com
que o Congresso dos Estados Unidos, baseado em
falsas notícias de um ataque contra navios de guerra
americanos, concedeu ao presidente Johnson poderes
muito amplos com relação à guerra do Vietnã.
A supressão da informação é outra técnica genérica
de Manipulação informativa. De per si, a supressão da
informação não envolve a mentira: simplesmente não
se publicam determinadas notícias, interpretações ou
apreciações. Neste caso, a Manipulação restringe a
base dos conhecimentos, das interpretações e das
avaliações de
730
MANIPULAÇÃO
que os destinatários da informação poderiam dispor,
e, conseqüentemente, limita as alternativas de escolha
que se lhes oferecem, tanto em termos de crenças
como de comportamentos. Com efeito, as formas mais
comuns de supressão política da informação — como
as práticas de Governo secreto e a censura política
dos meios de comunicação de massa e, por vezes
também, de comunicação privada — têm como um dos
objetivos essenciais o de inibir as oposições
potenciais.
A Manipulação pode atuar não só limitando a
informação, mas também fornecendo-a em excesso. A
emissão incessante de grande número de informações
e de interpretações diversas, total ou parcialmente
contraditórias, pode saturar a capacidade de recepção
e de avaliação do destinatário das mensagens e levá-lo
a uma atitude defensiva de indiferença e de refúgio
numa esfera de interesses mais em confronto. Este
efeito foi posto em evidência especialmente nas
pesquisas sobre os meios de comunicação de massa.
Mas uma técnica nada diferente é usada com
freqüência nas assembléias e comitês políticos, quando
um líder deixa primeiro que os seus sequazes se
sintam desorientados com o excesso de documentos
ou de informações, que não conseguem resolver apesar
do empenho e ardor da discussão, para depois
apresentar uma interpretação simples dos fatos e uma
proposta de ação também simples, aceitas com
prontidão e alívio.
Outros tipos mais particulares de distorsão da
informação podem encontrar-se no uso que se faz dos
símbolos, tanto no discurso persuasivo dirigido a um
auditório restrito, como no que se dirige a vastos
auditórios através de meios de comunicação de massa
e que pode revestir a forma, clara ou oculta, da
PROPAGANDA (v.). Quanto aos artifícios retóricos,
característicos dos discursos do primeiro tipo,
lembrarei apenas que, em geral, eles podem ser
usados para fazer com que o auditório aceite
afirmações que a figura retórica não menciona
diretamente, mas pressupõe ou implica de maneira
tácita. Pensemos em certos usos do eufemismo
("países em vias de desenvolvimento" em vez de
"países subdesenvolvidos"), da comunhão (o "nós",
que abrange orador e auditório), das qualificações
("Ministério da Defesa" em vez de "Ministério da
Guerra"), da metáfora, da interrogação retórica, etc.
Entre os artifícios propagandísticos, utilizados com
intuitos manipulatórios, mencionarei, além da seleção
orientada das mensagens a transmitir, que é uma
forma de supressão da informação, as técnicas
análogas que permitem acentuar e realçar para o
auditório umas informações mais que outras
(evidenciação no espaço, repetição no tempo, etc), a
mistura de notícias e interpretações,
de fatos e avaliações, que permite fazer aparecer como
fundada nos fatos a conclusão normativa desejada ("os
fatos falam"), e a aparente derivação da conclusão
desejada das idéias e dos princípios morais do
auditório.
Uma forma de Manipulação da informação
particularmente insidiosa é a que pode ocorrer na
escola, quando o ensino se converte em doutrinamento.
Trata-se de uma forma muito insidiosa pelas
condições de todo especiais que a favorecem. De um
lado, a escola acompanha a vida dos jovens por longo
número de anos e por muitas horas ao dia; de outro,
os. jovens entram nela e nela permanecem durante um
período em que são ainda amplamente maleáveis e, por
isso, profundamente vulneráveis. Segundo alguns, a
escola, sendo o âmbito privilegiado da reprodução dos
valores e das tendências sociais, é por isso mesmo um
"aparelho ao serviço da ideologia dominante" que
envolve necessariamente o doutrinamento e a
Manipulação. Mas esta tese parece demasiado
exagerada e unilateral; apresenta, além disso, o grave
defeito de eliminar qualquer diferença sob um rótulo
pobre de conteúdo explicativo. Na realidade, uma vez
reconhecidos todos os tipos possíveis de
condicionamento que influem na instituição escolar, é
sempre importante e discriminadora a distinção entre
um ensino orientado a fazer compreender, a
desenvolver o pensamento e a capacidade de um juízo
autônomo no aluno, um ensino, portanto, ao serviço
da verdade e da liberdade, e um ensino tendente a
fazer acreditar, a fazer do aluno um instrumento dócil
da sociedade, da nação ou da revolução, ao serviço,
por conseguinte, de uma entidade política coletiva e do
seu poder. É neste segundo caso, no caso da
doutrinação, seja ela de tipo conformista (que age
sobre os preconceitos já existentes na sociedade para
os reforçar), ou de tipo sectário (que ataca os
preconceitos já enraizados só para os substituir por
outros), que observamos um uso acentuado das
técnicas de opressão e de distorsão da informação,
típicas da manipulação informativa.
A condição que influi de maneira mais decisiva no
grau e eficácia da Manipulação da informação é o
regime em que opera o emitente: é diferente se existe
monopólio da informação ou pluralismo competitivo
entre vários centros. No regime pluralista, a
competição entre os diversos emitentes provoca uma
multiplicidade de descrições, de interpretações e
apreciações, que faz com que seja possível identificar
e corrigir as distorsões e a supressão unilateral da
informação, limitando, por conseguinte, de forma
significativa, a possibilidade de cada emitente exercer
uma manipulação eficiente. O monopólio, ao invés,
MANIPULAÇÃO
aumenta era excesso a vulnerabilidade dos
destinatários das mensagens e, correlativamente, a
possibilidade de o único emitente da informação
recorrer à Manipulação e de o fazer com plena
eficácia. Na falta de acesso a fontes alternativas de
informação, deixará de existir a possibilidade
estruturada da crítica e da contestação pública. Quanto
mais absoluto for o monopólio, tanto mais a supressão
da informação acerca de um fato se tornará, por assim
dizê-lo, supressão do próprio fato; as distorsões e
avaliações unilaterais convertem-se em fatos e valores
indiscutíveis; e a própria mentira, repetida
constantemente e não contestada, se converte em
verdade. Acrescente-se que o monopólio informativo
diminui também gravemente as possibilidades de
resistência à Manipulação tanto psicológica como
física, já que só a liberdade de investigação e de
informação torna possível identificar e denunciar
publicamente essas formas de Manipulação. O regime
dos meios de informação é, de fato, politicamente tão
decisivo que surge como elemento constitutivo dos
diversos tipos de sistemas políticos: o pluralismo das
fontes de informação e a possibilidade efetiva da
contestação pública são um requisito fundamental dos
sistemas liberal-democráticos ou poliárquicos; e o
monopólio dos meios de comunicação é um requisito
necessário dos sistemas totalitários.
III. MANIPULAÇÃO PSICOLÓGICA. — Já disse antes
que a Manipulação psicológica e a Manipulação física
não esgotam toda a categoria das intervenções
manipulatórias que agem sobre a estrutura das
motivações. Esta forma geral de Manipulação torna-se
possível, sempre que um ator conhece os
determinismos, não só psíquicos e físicos, mas
também sociais, que regem, em maior ou menor grau,
o comportamento de um outro ator. Na medida em
que tais determinismos regem efetivamente o
comportamento de B, este tende a reagir de modo
previsível a certos estímulos ambientais, sendo, por
isso, vulnerável ao poder, particularmente ao poder
manipulatório de outros atores. Por outro lado, se A
conhece os determinismos que regem, em certa
medida, o comportamento de B, será capaz de exercer
poder, em especial poder manipulatório, sobre ele. O
que acabo de dizer sobre os determinismos sociais é
extensível também às estratégias e táticas de ação em
que se empenha um ator de modo secreto ou reservado.
Se A conhece a estratégia da ação em que B está
comprometido e que ele crê secreta, A está em
condições de manobrar eficazmente exercendo poder,
particularmente poder manipulatório, sobre ele. É esta
possibilidade de utilizar em função do poder e da
731
Manipulação as notícias reservadas que concernem
aos atores sociais que torna potencialmente perigoso o
controle centralizado das informações pessoais
mediante os cérebros eletrônicos, e particularmente
insidiosos os microaparelhos de espionagem
eletrônica, que permitem registrar ou escutar à
distância as conversas reservadas. Estes instrumentos
não são de per si prática de Manipulação; são
instrumentos que aumentam a vulnerabilidade dos
atores visados e podem, por isso, constituir a base do
uso da Manipulação contra eles.
Passemos agora à Manipulação psicológica. Como
espécie de Manipulação que opera sobre a estrutura
das motivações, esta se baseia numa vulnerabilidade
peculiar do sujeito passivo, definível exatamente como
psicológica. Dá-se tal Manipulação, quando A explora
os determinismos psíquicos inconscientes de B para
dirigir ocultamente o seu comportamento. A enorme
eficácia social e política da Manipulação psicológica
depende essencialmente de dois fatores. O primeiro é
que os impulsos emotivos inconscientes motivam
muitas das escolhas e das ações dos homens. O
segundo é que há símbolos e imagens que possuem
um forte poder de estímulo sobre esses impulsos. A
tarefa do manipulador é, por isso, a de associar o
conveniente símbolo-chave e/ou a imagem-chave ao
objeto social para que se quer canalizar o impulso
emotivo (um produto a adquirir, um chefe político a
estimar e obedecer, uma nação estrangeira a odiar e a
combater) e a de repetir de forma incisiva e continuada
essa associação, até que a ligação entre o objeto social
e a emoção se torne automático nos indivíduos
manipulados como um reflexo condicionado. Estas
técnicas têm sido aplicadas de modo refinado pela
publicidade comercial, baseada no estudo das
motivações: para vender os produtos mais diversos
têm sido mobilizadas emoções profundas como a
angústia, a agressividade, a sexualidade, o medo do
isolamento e da singularidade, e outras muitas. Mas
destas mesmas técnicas se serviram sempre, embora de
modo intuitivo, os propagandistas políticos e
religiosos. O apego e amor à divindade, à tribo, à
pátria, ao partido, bem como o medo e ódio às nações,
às religiões, às raças e às diversas classes propagaramse, pelo menos em parte, dessa mesma maneira:
associando certos símbolos com outros símbolos e, em
definitivo, com determinados impulsos inconscientes
dos homens.
O apelo direto aos impulsos emotivos inconscientes
torna-se particularmente eficaz quando dirigido a uma
multidão. Na multidão, o auto-domínio racional e o
sentido da responsabilidade pessoal dos indivíduos se
debilitam; adquirem
732
MANIPULAÇÃO
um relevo indubitavelmente mais acentuado e aberto
os componentes irracionais e incônscios da
personalidade; tende a verificar-se uma espécie de
contágio emotivo entre os membros de uma multidão.
Tudo isso faz os indivíduos especialmente vulneráveis
à sugestão emotiva. Uma situação bem conhecida dos
agitadores e demagogos políticos, que utilizam também
muitas vezes catalisadores especiais para aumentar o
controle emotivo da multidão. Pensemos no uso ritual
de palavras em forma de slogan ou juramento, às vezes
acompanhados de música (hinos nacionais ou
patrióticos, marchas populares, etc.) e da coreografia
visual de bandeiras, emblemas e gestos estilizados.
Estas técnicas foram elevadas a um alto grau de
eficácia nos Estados totalitários, especialmente na
Alemanha nazista. Às vezes a tensão emotiva criada
pelo uso de tais catalisadores era tão intensa que,
quando Hitler começava por fim a falar, o conteúdo
do discurso já não tinha quase importância alguma
para a multidão histérica e cheia de adoração. Em
certos casos, pode agir. como catalisador do controle
emotivo de um grupo o uso de atos ou palavras que
não têm qualquer relação com a situação, mas que, por
suas características intrínsecas, aumentam o impacto
da mensagem. Este mecanismo psicológico estava
presente, por exemplo, no juramento dos Mau-Mau,
cujo ritual, obscenamente terrífico e gratuitamente
estranho, reforçava o poder irracional da cerimônia e o
controle emotivo dos indivíduos. Uma forma
particularmente intensa e prolongada de Manipulação
psicológica, combinada com ações coativas igualmente
intensas e prolongadas, é a que apresentam os casos
de total desintegração do sistema de valores e de
idéias adquiridas de um indivíduo, bem como certos
casos extremos de doutrinação, conhecidos sob o
nome de lavagem de cérebro. Os exemplos mais
notórios pertencem ao nosso século: desde as técnicas
usadas para obter a "confissão" das vítimas dos
processos stalinistas ou a "conversão" dos prisioneiros
americanos na Coréia, à parte destrutiva dos processos
mais drásticos de doutrinamento empregados na China
e chamados de "reeducação". Mas não faltam
precedentes na história do passado: basta pensar, para
apresentar apenas um exemplo, nas técnicas com que
os tribunais da Inquisição arrancavam as "confissões"
das "bruxas". Em todos estes casos podem se
encontrar traços comuns. Antes de tudo, é maciça a
intervenção física: isolamento social, impedimento do
sono, forte redução da comida e, às vezes, tortura. É
freqüente também acrescentarem-se técnicas de
Manipulação física, como administração de drogas e
de psicofármacos. Mas o núcleo do processo é
refinadamente psicológico,
consistindo na inibição a todo o transe dos reflexos
adquiridos, ou seja, das idéias, dos princípios morais e
até da identidade do sujeito passivo. A referência a
fatos e valores da vítima, a sua profissão, a sua
religião, e às vezes o seu próprio nome são negados e
substituídos por outros. Este esvaziamento do
significado das palavras carregadas da experiência do
passado, reforçado por interrogatórios intermináveis, a
intervalos irregulares, sempre sobre os mesmos
assuntos, tendentes a fazer surgir contínuas
contradições, e acompanhado de um crescente
esgotamento físico, provocado pela falta de sono e
pela desnutrição, leva o sujeito a um estado de
desintegração da personalidade, de medo e de
angústia, tão intolerável, que se ativa nele um último
mecanismo psíquico de autodefesa: o emborco da sua
carga emotiva num modelo oposto àquele que guiava
o seu comportamento habitual no passado. Chega
assim o momento da plena confissão de atos jamais
cometidos e da rejeição total das idéias e dos
princípios morais que antes haviam sido seus, na
experiência de vida anterior.
IV. MANIPULAÇÃO FÍSICA. — A Manipulação da
informação e a Manipulação psicológica, que ilustrei até
aqui, são formas de poder social. Com efeito, em
ambos os casos, há um ator (indivíduo ou grupo) que
modifica o comportamento voluntário de outro ator
(indivíduo ou grupo). É verdade que o sujeito
manipulado ignora sofrer a ação da vontade do
manipulador ou das propriedades da sua intervenção;
mas isto não elimina a condição da existência de uma
relação de poder, isto é, que o objeto da intervenção
seja constituído por um comportamento voluntário.
Por outras palavras, tanto na Manipulação da
informação como na psicológica o sujeito ativo da
relação opera por meio de mensagens que captam a
atenção (consciente ou não) do sujeito passivo, até
atingir e modificar eficazmente a sua vontade.
Tudo muda, quando da Manipulação da informação
e da Manipulação psicológica passamos à Manipulação
física. Neste caso, o objeto da intervenção
manipulatória não é a vontade, mas o corpo do sujeito
passivo. Na Manipulação física, o manipulador opera
por meio de instrumentos químicos ou elétricos, que
alteram os mecanismos físicos que regulam os sentidos
e os estados do organismo de tal sujeito, a fim de que a
sua receptibilidade e reatividade se adaptem
eficazmente às mensagens e estímulos ambientais. É
verdade que a Manipulação física serve para
influenciar o comportamento do sujeito passivo,
sendo, portanto, um instrumento de exercício do
poder. Mas, considerada em si mesma, não é
MANIPULAÇÃO
poder, porque não age sobre a vontade, mas sobre o
estado físico do indivíduo. É antes uma forma de
violência, se com este conceito designarmos a ação
intencional de um ator sobre o estado físico de outro,
contra a vontade expressa ou presumível deste (v.
VIOLÊNCIA).
Nas suas manifestações tradicionais, a violência é a
ação física que visa ferir, matar, destruir, ou então
imobilizar, prender num espaço fechado. Esta
violência, a violência "tradicional", a violência das
armas e das forças armadas, dos cárceres e dos
campos de concentração, possui limites claros em sua
eficácia. Se considerarmos os efeitos diretos da
intervenção física como tal, a violência tradicional
serve para impedir que o. sujeito passivo faça alguma
coisa: mata-o ou aprisiona-o, impossibilitando-o de ter
um comportamento socialmente relevante. Mas não
serve para lhe fazer nada: com a mera pressão física e
contra a vontade de quem a suporta, se poderá mover
ou trasladar seu corpo, mas jamais provocar qualquer
comportamento socialmente interessante. Ora, é
justamente sob este aspecto que a "nova violência",
ou seja, a Manipulação física, assume uma
importância de todo particular. Ela parece ultrapassar
os limites da eficácia da violência tradicional, já que,
com a inoculação de um soro, a administração de uma
pílula, ou a transmissão de um impulso elétrico ao
cérebro, se pode, ao menos como hipótese, produzir
ou facilitar diretamente um comportamento positivo:
o fazer, e não apenas o não-fazer. Vejamos, portanto,
em que grau é que isso acontece nos casos de
Manipulação física e até que ponto é que este modo
de operar da "nova violência" poderá ser utilizado no
domínio político.
São dois os tipos principais de Manipulação física:
a administração de psicofármacos e a estimulação
elétrica do cérebro. Em um e outro caso, trata-se de
técnicas originadas e desenvolvidas no âmbito da
prática médica, no tratamento e cura das doenças
mentais. Convertem-se numa forma de Manipulação,
quando o sujeito passivo não sabe que lhe são
aplicadas ou não conhece sua natureza e efeitos. O
que distingue empiricamente estas formas de
Manipulação e lhes dá um caráter eticamente
perturbador é que, uma vez realizada a intervenção, o
sujeito passivo já não pode reagir de modo algum.
Dito por outras palavras, o caráter irresistível da
Manipulação atinge aqui seu grau mais intenso. Na
Manipulação da informação e na Manipulação
psicológica, sempre pode acontecer, como hipótese,
que o sujeito passivo se aperceba depois do fato e/ou
da natureza da Manipulação e procure, em
conseqüência, reagir e fugir-lhe. A Manipulação
física, ao invés, invade de forma tão eficaz a
733
subjetividade do manipulado que este, enquanto durar
o efeito da ação, não poderá deixar de ser, por assim
dizer, um aliado do manipulador. A administração de
psicofármacos e à estimulação elétrica do cérebro é às
vezes comparado o controle (parcial ou total) dos
nascimentos com vistas à seleção genética dos
nascituros. Mas tal tipo de intervenção não é uma
forma de Manipulação do comportamento no sentido
aqui definido e ilustrado. Não serve para modificar as
crenças ou os comportamentos de determinados
indivíduos ou grupos; serve para programar o número
de indivíduos que deverão ou não vir a fazer parte da
sociedade. Nesse sentido, conforme a óptica adotada, o
controle seletivo dos nascimentos poderá ser
entendido como algo mais ou então como algo menos
que a Manipulação física do comportamento, mas será,
de qualquer modo, uma coisa diversa.
Os psicofármacos são compostos químicos que atuam
sobre o sistema nervoso central e influem
habitualmente em "humores" de caráter geral. Os
tranqüilizantes acalmam as pessoas; os estimulantes as
excitam, deixando-as num estado de euforia; os
alucinógenos alteram-lhes a percepção e a consciência.
Recentemente, a estes tipos gerais de medicamentos se
veio juntar uma autêntica série de compostos
particulares, com os quais se procura, com maior ou
menor sucesso, atuar sobre determinados componentes
psicológicos, como a agressividade ou a memória. A
importância dos efeitos de todos estes compostos
químicos é sem dúvida notável. Contudo, para efeitos
de um controle do homem que o leve a crenças e
comportamentos específicos, eles se revelam menos
eficazes do que muitas vezes se crê ou teme. O
chamado "soro da verdade" (o pentotal), por exemplo,
de que alguma vez se fabulou como de uma arma
irresistível, é um composto anestésico de efeitos
hipnóticos e relaxantes, que pode ajudar uma pessoa
inibida, e com desejo de falar, a trazer à lembrança
recordações reprimidas e a referi-las; mas em nenhum
caso é capaz de coagir uma pessoa a revelar fatos que
ela quer manter ocultos. Em geral, as limitações do
controle
químico
do
comportamento
são
fundamentalmente duas. Em primeiro lugar, os
psicofármacos são parcamente seletivos, no sentido de
que só debilmente conseguem agir sobre atividades
psíquicas específicas, mantendo sob controle as
demais atividades. Daí, em segundo lugar, que eles
ajam mais eficazmente em inibir um tipo geral de
comportamento, por exemplo, a agressividade, do que
em orientá-lo para objetivos particulares. Tudo isto
torna bastante improvável o uso político de massa
destes meios químicos. É possível imaginar que a
agressividade de uma
734
MAOÍSMO
população politicamente reprimida possa ser inibida
de forma duradoura pela mistura de uma certa
quantidade de compostos químicos tranqüilizantes na
água potável distribuída. Mas, para obter tal efeito, a
substância química teria de ser tão poderosa que
inibisse não só o espírito de revolta, como também
qualquer forma de participação ativa e organizada na
vida social; por isso, este tipo de intervenção só
poderia ser útil no caso, hoje pouco provável mas não
descurável, em que uma elite dominante pudesse
contentar-se com a obediência desarticulada e com a
atividade manual e tosca de um rebanho de homens.
Não só provável, mas, na realidade, muitas vezes
verificado, tem sido, em vez disso, o uso dos meios
químicos, usualmente combinados com outras formas
de ação, para controlar indivíduos socialmente
extraviados ou ativistas políticos da oposição. O
emprego, por exemplo, de compostos químicos para
alterar os estados mentais do manipulado acompanha
muitas vezes os complexos processos de "lavagem do
cérebro", que já recordei sob a epígrafe da
Manipulação psicológica.
Outras intervenções físicas mais seletivas e
eficazes que as mencionadas até aqui tornaram-se
possíveis mediante a combinação das técnicas da
miniaturização dos aparelhos eletrônicos com os da
cirurgia cerebral. Com o uso de tais técnicas, se pôde
penetrar no cérebro e implantar nos tecidos cerebrais,
em pontos estratégicos, micro-aparelhos estimulantes,
de tipo elétrico ou químico, que permitem controlar
desde fora os mecanismos centrais do controle
cerebral. Acionando os impulsos elétricos, que
operam diretamente ou por meio de reações químicas,
é possível estimular ou aumentar, suprimir ou
diminuir funções do corpo, emoções e estados da
mente ligados a determinadas áreas e processos
cerebrais, como, por exemplo, as ações de comer,
beber ou dormir, o terror e o amor, a docilidade e a
agressividade, a memória, a atenção, a curiosidade, a
inteligência. Os progressos alcançados neste campo,
tanto na pesquisa experimental em animais, como na
prática clínica sobre um número cada vez maior de
homens angustiados por diversos males, fazem pensar
que a tecnologia da estimulação elétrica do cérebro
poderá um dia avizinhar-se das hipóteses do controle
absoluto do comportamento. E as perspectivas de uso
político de tais técnicas são bastante inquietantes, se
bem que sumamente improváveis a nível de massa. A
este respeito, pode-se repetir, embora por razões
diferentes, o que já se disse a propósito do uso
político dos psico-fármacos. A complexidade das
operações de instalação cerebral, que envolvem uma
exploração
requintada de cada indivíduo, e seus elevados custos
tornam assaz difícil sua aplicação em massa. Mas isso
não exclui a possibilidade do uso da estimulação
elétrica do cérebro para o controle de cada um dos
membros de uma oposição política e, mais ainda, para
o controle dos indivíduos socialmente desviados.
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[MARIO STOPPINO]
Maoísmo.
I. DEFINIÇÃO. — O termo Maoísmo jamais foi
usado na China e os comunistas chineses sempre se
opuseram ao seu uso mesmo por parte de forças
estrangeiras que imitavam as suas posições políticas.
A origem de tal atitude tem de ser buscada em
variadíssimas circunstâncias, uma das quais poderá
ser a desconfiança generalizada entre os chineses,
desde a década de 1920, com respeito aos "ismos",
isto é, com respeito a posições ideológicas e teóricas,
com demasiada freqüência importadas de países
estrangeiros e aceitas por chineses só em termos
intelectualistas. Outro dos motivos pode estar na
recusa do próprio Mao em acentuar o aspecto teórico,
propensamente abstrato, da sua obra, que ele queria
sempre ligada à prática e desejava fosse considerada
como fonte de ação ulterior e não de elaboração
teórica. Isto não tem nada a ver com uma possível
atitude de "modéstia" por parte de Mao, porque ele foi
um voluntário e consciente suscitador do culto do seu
pensamento e da sua função
MAOÍSMO
com fins políticos. Com efeito, o Maoísmo, mais que
uma formulação ideológica própria, foi uma linha
estratégica que, em certo momento, basicamente nos
anos 60, foi entendida e de alguma maneira elaborada
como uma concepção alternativa da totalidade do
movimento operário ocidental e da do movimento
comunista internacional ligado ao partido comunista
soviético.
A esta linha global, muitos dos que a tomaram como
própria, lhe acrescentaram depois elementos derivados
de complexos processos, até mesmo existenciais,
perfeitamente alheios não só às formulações
ideológicas, mas também às experiências históricas
concretas e às exigências políticas contingentes de Mao
e dos comunistas chineses. Em certa medida, este
processo de transformação do Maoísmo num conjunto
de fenômenos, em geral fundamentalmente
impugnatórios da ordem social e cultural existente,
ocorreu também na China, atuando em sentido oposto
às necessidades de onde Mao partia.
Pondo de lado as mitificações e as transposições
ilícitas para fora do seu contexto, convém, pois,
acompanhar a experiência histórica da revolução
chinesa e examinar o posto que nela ocupou Mao,
para se comprovar se o conceito de Maoísmo é ou
não admissível.
II. POTENCIAL
REVOLUCIONÁRIO DOS CAMPONESES E
— O elemento de que partiu a
experiência histórica de Mao Tsé-Tung em 1927 foi a
constatação-convicção do potencial eversivo que
constituíam os camponeses pobres num país como a
China e da sua capacidade de desempenho de tarefas
revolucionárias modernas, desde que seu ímpeto de
transformação fosse orientado para objetivos atuais e
enquadrado numa visão que levasse em conta os
processos sociais de longa duração e de importância
mundial, por uma força política capaz de superar as
limitações históricas, tanto da sociedade chinesa
tradicional, quanto das condições de subordinação
típicas do mundo colonizado. Para Mao, esta força era
o partido comunista chinês, formado a partir de 1919
por uma opção cultural de numerosos intelectuais pelo
marxismo de interpretação leninista e consolidado
depois, entre 1921 e 1927, numa série de lutas
operárias e nacionais. Tal posição exigia do partido
revolucionário uma função "didática" permanente e
sutil que ultrapassava a tese leninista do partido como
vanguarda da classe operária e estava em certa medida
ligada ao conceito propriamente chinês dos intelectuais
como mestres-dirigentes-organizadores das massas
campesinas, embora os intelectuais comunistas jovens
rejeitassem e
SUAS LIMITAÇÕES.
735
contestassem o direito a privilégios e o
conservantismo mesquinho da classe dirigente chinesa
tradicional.
"Sob a guia do partido" — numa relação dialética
em que os intelectuais transmitiam aos camponeses um
conceito moderno da revolução e os camponeses pobres
induziam os intelectuais a agir pela libertação dos
oprimidos — as massas rurais podiam cumprir uma
função histórica do tipo da desempenhada pelo
proletariado na sociedade burguesa descrita por Marx,
mesmo que Mao não tenha identificado nunca os
camponeses pobres com o proletariado, nem a
revolução pela sua emancipação da exploração dos
notáveis e dos proprietários de terras ou a revolução
pela libertação da China do domínio estrangeiro com
a revolução evocada por Marx para a derrubada da
burguesia e criação de uma sociedade socialista. Em
Marx, Mao foi buscar o conceito de classes como
partes componentes antagônicas da sociedade e a
Lenin, além da denúncia do imperialismo como
sistema mundial vinculado à sociedade capitalista, a
visão do partido como organização de vanguarda
indispensável à direção da luta revolucionária.
Contudo, a sua análise das classes da sociedade
chinesa, por motivos ligados à estrutura social de um
país subdesenvolvido, foi muito mais articulada e
flexível que a elaborada por Marx. Mas a discussão
sobre a função histórica do partido foi limitada em
Mao até às vésperas da revolução cultural. Ele
aceitava substancialmente o princípio de Marx, para
quem só o proletariado industrial poderia realizar a
emancipação de todos os oprimidos, por suas
características
modernas
e
sua
capacidade
organizativa, mas transferia para o partido esta função
histórica do proletariado. Foi esta uma das mais graves
limitações do Maoísmo.
Nestas condições, o problema central da elaboração
política era o da transmissão e formulação da
ideologia, que constituía justamente o elemento
"moderno" de rompimento com o mundo estático
tradicional dos camponeses e dos intelectuaisadministradores. Para Mao Tsé-Tung e para os outros
comunistas chineses empenhados na luta ativa era claro
que o marxismo de interpretação leninista tinha sido
acolhido na China por empréstimo do exterior, por
empréstimo do movimento operário dos países
desenvolvidos. A repetição banal ou mesmo a simples
aplicação dos princípios e das práticas do marxismo
não poderiam ter dado lugar a uma experiência vital
na China senão através de um processo original de
repensamento, de uma nova fundamentação teórica.
Isto era muito difícil de realizar para qualquer partido
comunista na década de 30,
736
MAOÍSMO
devido às pressões exercidas pela Internacional
Comunista — e, através dela, pelo partido comunista
da URSS — para a "bolchevização" dos demais
partidos comunistas, o que os tornaria afins ao modelo
concebido por Lenin e depois, principalmente, por
Stalin. Daí a necessidade que Mao teve de combater
por longo tempo o "culto do livro", o dogmatismo e as
influências estrangeiras, ou seja, a tendência de
transferir para a China as fórmulas ideológicas e
políticas elaboradas pela URSS, particularmente as
respeitantes às estruturas do partido. Esta luta pela
autonomia ideológica dos comunistas chineses foi um
dos aspectos fundamentais da obra de Mao. Teve as
suas etapas fundamentais na elaboração da estratégia
de guerrilha em torno de 1930-1935, na organização
da resistência nacional ao Japão de 1937 a 1945, e,
depois, nas opções para a construção da sociedade
socialista após 1949.
III. LUTA DE CLASSE RURAL ARMADA,
BASES VERMELHAS, RESISTÊNCIA DE LONGA
DURAÇÃO. — Segundo Mao, a transformação da
sociedade rural chinesa não podia dar-se mediante um
desenvolvimento pacífico, uma vez que a repressão
sutil exercida sobre os camponeses pobres pelos
proprietários de terras por meio das milícias patronais
e de outras organizações de tipo mafioso, e o controle
mantido pelos notáveis e por interesses de clientela
sobre os órgãos do poder local excluíam qualquer
perspectiva de desenvolvimento democrático ou
alternativa de gestão, tanto a nível de aldeia, quanto a
nível de província e de Estado, devido às recíprocas
garantias e conivência existentes entre o complexo de
interesses dos notáveis-terra-tenentes e a pirâmide do
poder provincial e central. A luta de classe na China
só podia, portanto, ser uma luta de classe armada,
como, aliás, sempre acontecera durante as tradicionais
revoltas campesinas. Sob este mesmo ponto de vista, o
partido comunista podia e tinha a obrigação de agir
com os camponeses mediante uma nova ligação, a do
"exército vermelho", garantia constante e capilar, com
sua atividade de guerrilha móvel, da transformação
social em curso de efetivação nas aldeias. Partido e
"exército vermelho", estreitamente ligados se não
coincidentes, eram a vanguarda indispensável à
constituição das "bases vermelhas", fragmentos de
uma sociedade nova insertos no contexto do velho
regime, destinados a se ampliar gradualmente à
medida que progredia a obra educativa do partido, por
um lado, e, por outro, a conscientização dos
camponeses, a sua capacidade de se organizarem e
governarem, e a transformação das relações sociais.
Isso implicava um
desenvolvimento gradual, uma "luta de longa duração"
que fazia entrar em jogo complexos elementos sociais,
políticos e econômicos, mas também humanos e
psicológicos, indispensáveis à revolução num país
atrasado. Esta luta penetrante, apoiada na
transformação das atitudes humanas, era também a
base da luta pela emancipação nacional da dominação
imperialista, que Mao considerou sempre intimamente
ligada aos interesses da rede de poder dos notáveisproprietários locais, fundamento da inserção da
influência econômica, política e militar estrangeira na
China. Este fenômeno de colaboração tornou-se
particularmente evidente quando da invasão japonesa,
desde 1937, quando os japoneses, ao buscarem na
China reabastecimento de alimentos, matérias-primas e
mão-de-obra, eram um peso para a sobrevivência dos
camponeses, encontrando entre os proprietários de
terras cumplicidade direta de todo o gênero. Foi
precisamente nos anos de resistência ao Japão que,
operando com o apoio da sociedade rural, os
comunistas conseguiram estabelecer, através de uma
densa e vasta rede de guerrilhas, uma sociedade
alternativa em milhares de aldeias da China do Norte.
Seria fácil destruir qualquer regime que houvesse
procurado restaurar a antiga ordem, como de fato foi
demonstrado durante a guerra civil entre os
comunistas e o Kuominttang, no período de 1946 a
1949.
IV. O SOCIALISMO COMO VIA DE SOBREVIVÊNCIA.
— Depois da tomada do poder em 1949 e de uma
reforma agrária radical que tomou as terras aos
proprietários que não as cultivavam e as distribuiu aos
camponeses pobres, Mao, presidente do partido e,
durante dez anos, presidente do novo Estado, tratou de
elaborar uma estratégia de desenvolvimento que
permitisse consolidar a vitória sobre a dominação
estrangeira e sobre os notáveis-proprietários com a
erradicação substancial da miséria, sobretudo rural.
Ele esteve sempre convencido de que a
industrialização, predominantemente de iniciativa
estatal e com capital público, era o caminho
indispensável para aumentar a quantidade de bens de
produção e de renda disponível para o povo chinês.
Jamais pensou, contudo, que a industrialização, como
tal, pudesse resolver os problemas dos camponeses,
devido a carência de capital a investir, se não fosse
possível multiplicar a produção, a produtividade e,
conseqüentemente, a renda dos camponeses, de modo
que se garantissem à indústria, ao mesmo tempo,
matérias-primas, capitais e mercados de absorção. Mao
acreditava que este aumento de renda dos camponeses
podia ser obtido com a potenciação, mas sobretudo
com a
MAOÍSMO
racionalização do investimento em trabalho dos
próprios camponeses e com a organização da sua
atividade. Mas esta organização racional só se
poderia realizar mediante estruturas socialistas que
oferecessem aos camponeses a perspectiva de uma
melhoria das condições materiais como retribuição
pelo aumento do trabalho e pela elevação da
produção e dessem a tal melhoria um caráter coletivo.
Baseado nisso, Mao promoveu entre 1955 e 1956 a
coletivização da agricultura e, a seguir, em 1958, a
reestruturação das instituições políticas e produtivas
do campo nas "comunas do povo". Esta necessidade
de transformação social contínua criava uma série de
cisões na sociedade entre a cidade e o campo,
principalmente entre os camponeses e a classe
dirigente (administradores, intelectuais, e mesmo
quadros do partido), provocando numerosas tensões
sociais e fortes pressões igualitárias. É nesse mesmo
sentido que, sobretudo a partir de 1960, Mao se
preocupava em impedir o nascimento e reprodução na
sociedade de categorias e classes privilegiadas ou
parasitárias que consumissem todos os excedentes,
impedindo a acumulação do capital necessário para
vencer o atraso. Para o temor de uma restauração do
privilégio de uns poucos contribuía também a visão
dialética — flexível, articulada e não predeterminada
— típica de Mao: em resumo, ele negava que a
marcha para o socialismo fosse avanço regular,
natural e irreversível, admitindo como provável, se
não como certo, o processo de involução social, logo
que a transformação revolucionária deixasse de
receber o impulso da luta de classe. Estas
preocupações tornaram-se claras na revolução
cultural, ocorrida na China a partir de 1966 e baseada
não só nos princípios ideológicos formulados por
Mao, como também nas contradições complexas e
imprevisíveis que se achavam implícitas na sociedade
chinesa.
V. CONTRADIÇÕES, LIMITES E CONTRIBUIÇÃO VITAL
DO MAOÍSMO. — A revolução cultural foi o fenômeno
histórico que deu maior notoriedade ao Maoísmo ou,
melhor, ao "pensamento de Mao", como formulação
orgânica de uma estratégia revolucionária válida não
apenas para a China e como atitude dialética capaz de
enriquecer o marxismo. Ela e seus ulteriores
desdobramentos puseram, contudo, em evidência
também seus limites e contradições, por exemplo: o
apelo a uma mobilização permanente das massas com
base em palavras de ordem revolucionárias e a
decisão política de manter as mesmas massas sob
rigoroso controle; a denúncia sistemática do privilégio
737
social e, de outro lado, o monopólio do poder e do
privilégio reservado a algumas pessoas sem controle,
bem como o próprio culto de Mao; a formulação de
uma ideologia dialética complexa e rica e, por outra
parte, a redução do "pensamento de Mao" a fórmulas
banais privadas de verdade histórica e social; difusão
de ideais democráticos, sobretudo na educação, e
prática de uma ditadura que não tinha qualquer
relação com o proletariado como classe social
concreta. A necessidade imposta ao movimento
operário ocidental de proceder a uma crítica do
marxismo soviético e a urgência, ao mesmo tempo,
de uma alternativa para a falaz "sociedade do bemestar" baseada na exploração do Terceiro Mundo
fizeram com que se encarasse o Maoísmo como
solução válida para problemas que Mao jamais
enfrentara e não podiam ser resolvidos por uma
ideologia que, embora fundada numa aceitação
genérica do marxismo, havia nascido num país tão
diverso daquele onde tiveram origem a sociedade
burguesa, a democracia, o movimento operário e as
sociedades capitalistas atuais. É por isso que a
popularidade do Maoísmo diminuiu dramaticamente,
tanto na China como no Ocidente, com os insucessos
da revolução cultural e depois com a morte de Mao.
Não obstante tudo isto, não obstante seus limites e
contradições, o Maoísmo, por sua força de
mobilização social, por seu apaixonado componente
educativo e moral e por sua valorização de um ideal
humano, que pode ter sido utópico mas foi certamente
igualitário, deixou marcas indeléveis entre aqueles
que, numa certa fase da sua vida, se sentiram por ele
influenciados ou de algum modo o aceitaram como
valor de referência. E isto vale, de forma complexa
mas incontestável, tanto para a China como para o
Ocidente.
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[ENRICA COLLOTTI PISCHEL]
738
MAQUIAVELISMO
Maquiavelismo.
É uma expressão usada especialmente na linguagem
ordinária para indicar um modo de agir, na vida
política ou em qualquer outro setor da vida social,
falso e sem escrúpulos, implicando o uso da fraude e
do engano mais que da violência. "Maquiavélico" é
considerado, em particular, aquele que quer se mostrar
como um homem que inspira sua conduta ou
determinados atos por princípios morais e altruísticos,
quando, na realidade, persegue fins egoísticos. Esta
expressão constitui, portanto, na linguagem ordinária,
uma prova da reação que a doutrina de Maquiavel
suscitou e continua suscitando na consciência
popular, e da tendência que considera essa doutrina
como imoral.
Esta expressão, além disso, pode ser usada também
em sentido técnico, para indicar a doutrina de
Maquiavel ou, mais genericamente, a tradição de
pensamento baseada no conceito de RAZÃO DE
ESTADO (V.).
[SÉRGIO PISTONE]
Marxismo.
I. MARX E O PROBLEMA DO ESTADO. — Entende-se
por Marxismo o conjunto das idéias, dos conceitos, das
teses, das teorias, das propostas de metodologia
científica e de estratégia política e, em geral, a
concepção do mundo, da vida social e política,
consideradas como um corpo homogêneo de
proposições até constituir uma verdadeira e autêntica
"doutrina", que se podem deduzir das obras de Karl
Marx e de Friedrich Engels. A tendência, muitas
vezes manifestada, de distinguir o pensamento de
Marx do de Engels surge dentro do próprio Marxismo,
ou seja, ela própria se constitui numa forma de
Marxismo. Identificam-se diversas formas de
Marxismo, quer com base nas diferentes interpretações
do pensamento dos dois fundadores quer com base
nos juízos de valor com que se pretende distinguir o
Marxismo que se aceita do Marxismo que se rejeita:
por exemplo, o Marxismo da Segunda e da Terceira
Internacional, o Marxismo revisionista e ortodoxo,
vulgar, duro, dogmático, etc. Nesta seção nos
limitaremos a expor as linhas da teoria marxista do
Estado e, em geral, da política, notando que ter-se-ão
em vista principalmente as obras de Marx e, só
subsidiariamente, as de Engels, que geralmente,
representando as teses de Marx em polêmica contra os
detratores e
os deturpadores, acaba às vezes por torná-las mais
rígidas.
Como é sabido, Marx não escreveu nenhuma obra
de teoria do Estado em sentido estrito, embora sua
primeira obra de pulso, que ficou aliás incompleta e
inédita por quase um século (escrita em 1843, foi
publicada pela primeira vez em 1927) fosse um
comentário e uma crítica, parágrafo por parágrafo, de
uma boa parte da seção sobre o Estado da Filosofia do
direito de Hegel (obra já conhecida sob o título de
Crítica da filosofia do direito público de Hegel); e
não obstante, na obra que imediatamente se lhe seguiu
— tal como a primeira incompleta e inédita,
conhecida sob o título de Manuscritos econômicofilosóficos de 1844 — ter preanunciado nas primeiras
linhas do Prefácio que apresentaria "uma após outra,
em ensaios diferentes e independentes, a crítica do
direito, da moral, da política". Muitos anos mais tarde,
no Prefácio a Para a crítica da economia política
(1859), contando a história de sua formação, relatou
como passara dos primeiros estudos jurídicos e
filosóficos para os estudos de economia política e
como, através destas pesquisas, chegara à conclusão
de que "tanto as relações jurídicas quanto as formas do
Estado não podem ser compreendidas nem por si
mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito
humano, mas antes têm suas raízes nas relações
materiais da existência". Para reconstruir o
pensamento de Marx sobre o Estado é preciso,
portanto, recorrer àquelas idéias esparsas que se
encontram nas obras econômicas, históricas e políticas:
de fato, embora, após a obra juvenil de crítica à
filosofia do direito de Hegel, não exista nenhuma obra
de Marx que trate especificamente do problema do
Estado, igualmente não existe obra sua de onde não
seja possível extrair, sobre este problema, trechos
relevantes e iluminativos. É óbvio que, por causa dessa
fragmentaridade e devido ao fato de que estes
fragmentos estão disseminados ao longo de um período
de mais de trinta anos e de que as teses que estes
apresentam
concisamente
são
expostas
freqüentemente de forma ocasional e polêmica, toda
reconstrução rigorosa da teoria marxiana do Estado
corre o risco de ser deformante ou, pelo menos,
unilateral. É preferível, porém, assumir este risco,
aceitando uma ambigüidade insuperável ou relevando a
presença de duas ou mais teorias paralelas.
Partindo da crítica à filosofia do direito e do Estado
de Hegel, que o leva a uma mudança radical das
relações tradicionais entre sociedade (natural e civil) e
Estado, Marx propõe uma teoria do Estado
estritamente ligada à teoria geral da sociedade e da
história, que ele deduz do estudo
MARXISMO
da economia política. Esta teoria geral lhe permite dar
uma interpretação e fazer uma crítica do Estado
burguês do seu tempo nas diversas formas em que se
apresenta e dar também uma interpretação e formular
algumas propostas relativas ao Estado que se deverá
seguir ao Estado burguês: permite-lhe, enfim, deduzir
o fim ou a extinção do Estado. Segue-se daí que para
uma exposição tanto quanto possível sistemática das
linhas gerais da teoria marxista do Estado parece
oportuno focalizar os cinco pontos seguintes: 1.º crítica
das teorias anteriores, de modo particular da teoria
hegeliana (§ 2); 2.º teoria geral do Estado (§ 3); 3.°
teoria do Estado burguês em particular (§ 4); 4.°
teoria do Estado de transição (§ 5); 5.º teoria da
extinção do Estado (§ 6).
II. CRÍTICA DA FILOSOFIA POLÍTICA HEGELIANA. — Na
filosofia do direito de Hegel chegara a cumprimento e
à exasperação aquela tendência típica do pensamento
político que acompanha o surgimento e a formação do
Estado moderno, de Hobbes em diante, proclamando o
Estado ou como a forma racional da existência social
do homem, garante da ordem e da paz social que é o
único interesse que todos os indivíduos viventes em
sociedade têm em comum (Hobbes); ou como árbitro
imparcial acima das partes, que impede a degeneração
da sociedade natural, dirigida pelas leis da natureza e
da razão, num Estado de conflitos permanentes e
insolúveis (Locke); ou como expressão da vontade
geral através da qual cada um, renunciando à
liberdade natural em favor de todas as outras, adquire
a liberdade civil ou moral e se torna mais livre do que
antes (Rousseau); ou como meio através do qual é
possível realizar empiricamente o princípio jurídico
ideal da coexistência das liberdades externas, pelo que
sair do Estado natural para entrar no Estado social não
é tanto efeito de um cálculo utilitário quanto de uma
obrigação moral por parte dos indivíduos (Kant).
Iniciando a seção da Filosofia do direito sobre o
Estado, Hegel tinha dito que "o Estado, enquanto é a
realidade da vontade substancial (...) é o racional em si
e de per si", deduzindo-se daí que o "dever supremo"
de cada indivíduo era o de "ser parte essencial do
Estado" (§ 258).
A crítica que Marx, sob a influência de Feuerbach,
levanta contra Hegel na obra juvenil, anteriormente
citada, Crítica da filosofia do direito público de Hegel
(que contém um comentário aos §§261-313 sobre
Lineamentos da filosofia do direito), tem, na verdade,
mais valor filosófico e. metodológico que político, no
sentido de que o que interessa principalmente a Marx
neste escrito é a crítica do método especulativo de
Hegel,
739
isto é, do método segundo o qual o que deveria ser o
predicado, a idéia abstrata, se torna o sujeito e o que
deveria ser o sujeito, o ser concreto, se torna o
predicado, como aparece mais claramente no exemplo
seguinte do que em qualquer outra explicação. Hegel,
partindo da idéia abstrata de soberania, em vez da
figura histórica do monarca constitucional, formula a
proposição especulativa "a soberania do Estado é o
monarca", ao passo que, partindo da observação da
realidade, o filósofo não-especulativo tem que dizer
que "o monarca (isto é, aquele tal personagem
histórico com aqueles determinados atributos) tem o
poder soberano"; nas duas proposições, como se vê,
sujeito e predicado estão invertidos. Em um capítulo
sobre A sagrada família (1845), que é o melhor
comentário a esta crítica, intitulado O mistério da
construção especulativa, Marx, após ter ilustrado com
outro exemplo o mesmo tipo de inversão (para o
filósofo não especulativo a pêra é uma fruta, enquanto
que para o filósofo especulativo o termo "fruta" está
colocado no lugar de "pêra"), explica que esta
operação pela qual se concebe a substância como
sujeito (enquanto deveria ser predicado) e o fenômeno
como predicado (enquanto deveria ser sujeito)" forma
o caráter essencial do método hegeliano" (A sagrada
família, p. 66).
É claro que, uma vez aplicada a crítica do método
especulativo à filosofia política de Hegel, Marx deduz
daí a rejeição não somente do método hegeliano mas
também dos resultados que Hegel julgava poder obter
por este método em relação aos problemas do Estado.
O que Marx critica e refuta é a mesma estruturação do
sistema da filosofia do direito hegeliano, baseado na
prioridade do Estado sobre a família e sobre a
sociedade civil (isto é, sobre as esferas que
historicamente precedem o Estado), prioridade que
Hegel afirma sem observar e respeitar a realidade
histórica de seu tempo nem estudar como efetivamente
se foi formando o Estado moderno, mas deduzindo-a
da idéia abstrata de Estado como totalidade superior e
anterior às suas partes. Enquanto na realidade família e
sociedade civil são os pressupostos do Estado, "na
especulação sucede o contrário", isto é, "os sujeitos
reais, a sociedade civil, a família [...], se tornam
momentos objetivos da idéia, irreais, alegóricos", ou,
por outras palavras, enquanto estas são "os agentes"
(isto é, um sujeito histórico real, na filosofia
especulativa são "postas em ato" pela idéia real e
"devem sua existência a um espírito diferente delas",
pelo que "a condição se torna o condicionado, o
determinador o determinado, o produtor, o produto de
seu produto" (Obras filosóficas juvenis, pp. 18-9).
Desde as primeiras proposições do comentário.
740
MARXISMO
Marx chama a este processo "misticismo lógico". Não
é o caso de nos delongarmos sobre as críticas
particulares que Marx faz à esta ou àquela tese
política de Hegel; basta mencionar que as críticas
mais importantes são as que dizem respeito à
concepção do Estado como organismo, à exaltação da
monarquia constitucional, à interpretação da
burocracia como classe universal e à teoria da
representação por classes, contraposta ao sistema
representativo nascido da Revolução Francesa.
Importa destacar particularmente que a rejeição do
método especulativo de Hegel leva Marx a inverter as
relações entre sociedade civil e Estado (considerando
este último conseqüência do método especulativo), a
firmar a sua atenção bem mais sobre a sociedade civil
que sobre o Estado e, portanto, a divisar a solução do
problema político não na subordinação da sociedade
civil ao Estado mas, pelo contrário, na absorção do
Estado por parte da sociedade civil, na qual consiste a
"verdadeira" democracia, na qual, segundo os
franceses, "o Estado político desaparece" (Ibid., p. 42)
e cujo instituto fundamental, o sufrágio universal,
tende a eliminar a diferença entre Estado político e
sociedade civil, pondo "no Estado político abstrato a
constância da dissolução deste, como também da
dissolução da sociedade civil" (Ibid., p. 135)
III. O ESTADO COMO SUPERESTRUTURA. — A
inversão das relações entre sociedade civil e Estado,
realizada por Marx a respeito da filosofia política de
Hegel, representa uma verdadeira ruptura com toda a
tradição da filosofia política moderna. Enquanto esta
tende a ver na sociedade pré-estatal (quer seja esta o
estado de natureza de Hobbes, ou a sociedade natural
de Locke, ou o estado primitivo de natureza de
Rousseau do Contrato social, ou o estado das relações
de direito privado-natural de Kant, ou a família e a
sociedade civil do próprio Hegel) uma subestrutura,
real mas efêmera, destinada a ser absorvida na
estrutura do Estado onde somente o homem pode
conduzir uma vida racional e, portanto, destinada a
desaparecer total ou parcialmente uma vez constituído
o Estado, Marx, ao invés, considera o Estado —
entendido como o conjunto das instituições políticas
onde se concentra a máxima força imponível e
disponível numa determinada sociedade — pura e
simplesmente como uma superestrutura em relação à
sociedade pré-estatal, que é o lugar onde se formam e
se desenvolvem as relações materiais de existência, e,
sendo superestrutura, é destinado, por sua vez, a
desaparecer na futura sociedade sem classes. Enquanto
a filosofia da história dos escritores anteriores a Hegel
(e especialmente no próprio
Hegel) caminha para um aperfeiçoamento cada vez
maior do Estado, a filosofia da história de Marx
caminha, ao invés, para a extinção do Estado. O que
para os escritores precedentes, é a sociedade préestatal, ou seja, o reino da força irregular e ilegítima
— seja este o bellum omnium contra omnes de
Hobbes, ou o estado de guerra ou de anarquia que,
segundo Locke, uma vez iniciado não pode ser
abolido senão através de um salto para a sociedade
civil e política, ou a société civile de Rousseau, onde
vigora o pretenso direito do mais forte, direito que na
realidade não é direito, mas mera coação, ou o estado
de natureza de Kant, como estado "sem nenhuma
garantia jurídica" e, portanto, provisório — é para
Marx, ao contrário, o Estado, que, como reino da
força ou, conforme a conhecida definição que ele dá
em O capital, como "violência concentrada e
organizada da sociedade" (vol. I, p. 814), é, não a
abolição nem a superação, mas o prolongamento do
Estado de natureza como Estado histórico (ou préhistórico), não tanto imaginário ou fictício mas real da
humanidade.
Já Marx, nos Manuscritos econômico-filosójicos de
1844, expressa este conceito fundamental, segundo o
qual o Estado não é o momento subor-dinante mas o
momento subordinado do sistema social considerado
em seu conjunto, afirmando que "a religião, a família,
o Estado, o direito, a moral, a ciência, a arte, etc. são
apenas modos particulares da produção e caem sob sua
lei universal" (p. 112). Numa forma ainda mais clara e
extensa assim escreve na grande obra imediatamente
posterior, A ideologia alemã (1845-1846): "A vida
material dos indivíduos, que não dependem em
absoluto de sua pura 'vontade', o seu modo de
produção e a forma de relações, que se condicionam
reciprocamente, são a base real do Estado em todos os
estádios nos quais ainda é necessária a divisão do
trabalho, totalmente independente da vontade dos
indivíduos. Estas relações reais não são absolutamente
criadas pelo poder do Estado; são, antes, essas
relações o poder que cria o Estado" (p. 324).
Diferentemente da anterior que ficou inédita, na obra
do mesmo período, A sagrada família, publicada em
1845, a inversão da idéia tradicional, personificada
neste contexto por Bruno Bauer, segundo o qual "o ser
universal do Estado deve manter unidos cada um dos
átomos egoístas", não poderia ser expressada com
maior clareza: "Somente a superstição política
imagina ainda hoje que a vida civil precise de ser
mantida unida pelo Estado, enquanto, pelo contrário, é
o Estado que na realidade é mantido unido pela vida
civil" (p. 131). Em assunto de relações entre estrutura
e superestrutura, é celebérrimo o texto do
MARXISMO
Prefácio a Para a crítica de economia política: "O
conjunto destas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, isto é, a base real
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem formas determinadas de
consciência social. O modo de produção da vida
material condiciona, em geral, o processo social,
político e espiritual da vida" (p. 11).
Contra a "superstição política", ou seja contra a
supervalorização do Estado, o ataque de Marx é
constante, apesar de alguns intérpretes recentes
discordarem. Esta rejeição da superstição política o
leva a dizer num escrito juvenil, A questão hebraica
(1843), que a Revolução Francesa não foi uma
revolução completa, porque foi somente uma
revolução política, e que a emancipação política não é
ainda a emancipação humana. E, num escrito da
maturidade, ataca Mazzini dizendo que este nunca
entendeu nada porque "para este o Estado, que cria na
sua imaginação, é tudo, enquanto que a sociedade,
que existe na realidade, não é nada" (o que é um outro
modo de dizer que uma revolução apenas política não
é uma verdadeira revolução).
IV. O ESTADO BURGUÊS COMO DOMÍNIO DE
CLASSE. — O condicionamento da superestrutura
política por parte da estrutura econômica, isto é, a
dependência do Estado da sociedade civil, se
manifesta nisto: que a sociedade civil é o lugar onde
se formam as classes sociais e se revelam seus
antagonismos, e o Estado é o aparelho ou conjunto de
aparelhos dos quais o determinante é o aparelho
repressivo (o uso da força monopolizada), cuja função
principal é, pelo menos em geral e feitas algumas
exceções, de impedir que o antagonismo degenere em
luta perpétua (o que seria uma volta pura e simples ao
estado de natureza), não tanto mediando os interesses
das classes opostas mas reforçando e contribuindo para
manter o domínio da classe dominante sobre a classe
dominada. No Manifesto do partido comunista, o
"poder político" é definido com uma fórmula que já se
tornou clássica: "o poder organizado de uma classe
para oprimir uma outra". Marx não desconheceu as
formas de poder político eixstentes em outros tipos de
sociedade diferentes da sociedade burguesa, mas
concentrou sua atenção e a grande maioria de suas
reflexões sobre o Estado burguês. Quando ele fala do
Estado como "domínio" ou "despotismo" de classe,
ou como "ditadura" de uma classe sobre a outra, o
objeto histórico é quase sempre o Estado burguês.
Desde um de seus primeiros artigos, comentando os
Debates sobre a lei contra os furtos de lenha '1842).
notara que o interesse do
741
proprietário de florestas era "o princípio determinante
de toda a sociedade", tendo como conseqüência que:
"Todos os órgãos do Estado se tornam ouvidos, olhos,
braços, pernas com que o interesse do proprietário
escuta, observa, avalia, provê, pega, anda". Portanto,
contra as interpretações deformantes e — a meu ver —
banalizantes que insistem mais sobre a independência
do que sobre a dependência do Estado da sociedade,
com uma frase que merece ser sublinhada, concluíra:
"Esta lógica, que transforma o dependente do
proprietário florestal numa autoridade estatal,
transforma a autoridade estatal num dependente do
proprietário" (Escritos políticos juvenis, p. 203).
Especialmente em relação ao Estado burguês, isto é,
àquela fase de desenvolvimento da sociedade civil em
que as categorias se transformaram em classes e a
propriedade, sendo privada, se emancipou totalmente
do Estado, Marx afirma, em A ideologia alemã, que o
Estado "nada mais é do que a forma de organização
que os burgueses se dão por necessidade, tanto interna
como externamente, a fim de garantir reciprocamente
sua propriedade e seus interesses". Após ter precisado
mais uma vez que "a independência do Estado hoje
não se encontra mais que naqueles países onde as
categorias ainda não se transformaram em classes", e,
portanto, na Alemanha mas não nos Estados Unidos,
formula a sua tese nos seguintes termos, gerais e
inequívocos: "O Estado é a forma em que os
indivíduos de uma classe dominante fazer prevalecer
seus interesses comuns e em que se resume toda a
sociedade civil de uma época" (-4 ideologia alemã, p.
40). O fato de que em certos períodos de crise, em que
o conflito de classe se torna mais agudo, a classe
dominante fazem prevalecer seus interesses próprio
poder político direto, que ela exerce através do
Parlamento (que nada mais é do que um "comitê de
negócios" da burguesia), a um personagem que surge
acima das partes, como aconteceu na França após o
golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 que deu o
poder supremo a Luís Napoleão, não significa
absolutamente que o Estado mude sua natureza: o que
acontece neste caso (trata-se do "bonapartisrno" que
Engels, considerando-o uma categoria histórica,
estenderá ao regime instaurado por Bismarck na
Alemanha) (Correspondência Marx-Engels, IV, p. 406)
é pura e simplesmente a passagem das prerrogativas
soberanas, no interior do mesmo Estado burguês, do
poder legislativo para o poder executivo, representado
por aquele que dirige a administração pública; trata-se,
em outros termos, da passagem dessas prerrogativas do
Parlamento para a burocracia que, aliás, preexiste ao
Parlamento, já que ela se formou durante a monarquia
absoluta
742
MARXISMO
e constitui um "terrível corpo parasitário que envolve,
como um invólucro, o corpo da sociedade francesa
obstruindo todos os seus poros" (O 18 de brumário, in
K. Marx e F. Engels, Obras, p. 575). Esta substituição
de um poder por outro pode dar a impressão de que o
Estado tenha-se tornado independente da sociedade
civil: mas também esta forma extraordinária de
"despotismo individual" não pode se sustentar, se não
se apoiar numa determinada classe social, que, no
caso específico de Luís Napoleão, foi, segundo Marx, a
classe dos pequenos proprietários camponeses;
fundamentalmente a função do poder político, esteja
este nas mãos de uma assembléia como o Parlamento
ou nas mãos de um homem como o ditador, não
muda: Bonaparte sente, observa Marx, que "a sua
missão consiste em garantir a ordem burguesa" (Ibid.,
p. 584), mesmo se depois, envolvido nas contradições
de seu papel de mediador acima das partes e
impossibilitado de exercê-lo com sucesso, devido às
contradições objetivas da sociedade de classes, não
consegue o intento (ou pelo menos Marx julga que, ao
invés de trazer a ordem prometida, o suposto salvador
acabe por deixar o país no caos de uma nova
anarquia). Na realidade, se a burguesia renuncia ao
próprio poder direto, isto é, ao regime parlamentar
para se entregar ao ditador, isto acontece porque ela
julga (embora erroneamente, porque baseando-se num
cálculo que não dará certo) que num momento difícil
o ditador assegura o seu domínio sobre a sociedade
civil, que esse domínio vale mais do que o
Parlamento, ou, como diz Marx, a burguesia
"reconhece que, para manter intato o seu poder social,
precisa quebrar o seu poder político", ou em termos
mais vulgares, "que para salvar a própria bolsa ela tem
que perder a própria coroa" (Ibid., p. 530).
V. O ESTADO DE TRANSIÇÃO. — Marx confirma com
precisão a dependência, muitas vezes afirmada, do
Estado da sociedade civil e do poder político da classe
dominante, quando põe o problema da passagem do
Estado, em que a classe dominante é a burguesia, para
o Estado, em que a classe dominante é o proletariado.
Sobre este problema ele será induzido a refletir
especialmente por causa do episódio da Comuna de
Paris (março-maio 1871). Numa carta a Ludwig
Kugelmann, de 12 de abril de 1871, referindo-se
exatamente ao último capítulo do escrito sobre o
golpe de Estado na França (O 18 de brumário de Luís
Bonaparte), em que tinha afirmado que "todas as
revoluções políticas só serviram para aperfeiçoar esta
máquina (isto é, a máquina do Estado) ao invés de
quebrá-la" (Ibid., p. 576), reafirma, após
já vinte anos, que "a próxima tentativa de Revolução
Francesa não vai consistir em transferir de uma mão
para outra a máquina militar e burocrática, como
aconteceu até agora, mas em quebrá-la e tal é a
condição preliminar de qualquer revolução popular no
continente" {Cartas a Kugelmann, p. 139). Ele frisa,
portanto, que o objetivo visado pelos insurrectos
parisienses é exatamente este: eles não tendem a
apoderar-se do aparelho do Estado burguês, mas
tentam "quebrá-lo". Nas considerações sobre a
Comuna, Marx volta freqüentemente a este conceito:
ora diz que a unidade da nação tinha que se tornar
uma realidade "através da destruição daquele poder
estatal que pretendia ser a encarnação desta unidade
independente e, até, superior à própria nação,
enquanto era apenas uma excrescência parasitária";
ora fala da Comuna como de uma nova forma de
Estado que "quebra" o moderno poder estatal e que
substitui o velho governo centralizado pelo
"autogoverno dos produtores" (A guerra civil na
França, in K. Marx e F. Engels, Obras, pp. 911-12).
Parece, pois, que para Marx a dependência do poder
estatal do poder de classe é tão estrita que a passagem
da ditadura da burguesia para a ditadura do
proletariado não pode acontecer simplesmente através
da conquista do poder estatal, isto é, daquele aparelho
de que a burguesia se serviu para exercer seu
domínio, mas exige a destruição das instituições e sua
substituição
por
instituições
completamente
diferentes. Se o Estado fosse somente um aparelho
neutral acima dos partidos, a conquista deste aparelho
ou a mera penetração nele seriam de per si suficientes
para modificar a situação existente. O Estado é uma
máquina, mas ninguém pode manobrá-la a seu gosto:
cada classe dominante tem que construir a máquina
estatal de acordo com as suas exigências. Sobre as
características do novo Estado Marx dá algumas
indicações resultantes da experiência da Comuna
(indicações que inspiraram Lenin no ensaio Estado e
revolução e nos escritos e discursos dos primeiros
meses de revolução): supressão do exército permanente
e da polícia assalariada, substituindo-os pelo povo
armado; funcionários eletivos ou postos sob o controle
popular e, portanto, responsáveis e revogáveis; juizes
eletivos e revogáveis; sobretudo sufrágio universal
para a eleição dos delegados com mandato imperativo
e, portanto, revogáveis; abolição da tão exaltada quão
fictícia separação dos poderes ("A Comuna devia ser
não um organismo parlamentar, mas de trabalho
executivo e legislativo ao mesmo tempo"); e, enfim,
tão ampla descentralização que permita reduzir a
poucas e essenciais as funções do Governo central
("As
MARXISMO
poucas mas essenciais funções que ficassem ainda com
o Governo central [... ] seriam executadas por
funcionários comunais e, portanto, profundamente
responsáveis" (Ibid., pp. 908-09). Marx chamou a esta
nova forma de Estado "Governo da classe operária"
(Ibid., p. 912), enquanto Engels, na introdução a uma
reimpressão dos escritos marxistas sobre a guerra civil
na França, chamou-a, com força e com intenção
provocante, de "ditadura do proletariado": "O filisteu
social-democrático recentemente se sentiu mais uma
vez tomado por um salutar pavor ao ouvir a expressão:
ditadura do proletariado. Pois então, senhores, querem
saber como é esta ditadura? Olhem para a Comuna de
Paris. Esta foi a ditadura do proletariado" (Ibid., p.
1163). Desde o Manifesto Marx e Engels tinham
afirmado muito claramente que, sendo sempre o poder
político o poder de uma classe, organizado para
oprimir uma outra, o proletariado não teria conseguido
exercer seu domínio se não tornando-se por sua vez
uma classe dominante. Parece que Marx falou pela
primeira vez de "ditadura do proletariado" em sentido
próprio (e não em sentido polêmico como fala nas
Lutas de classes na França de 1848 a 1850 (Ibid., p.
463), numa conhecida carta a Joseph Weydemeyer de
5 de março de 1852, onde declara não ter sido ele o
primeiro a ter demonstrado a existência das classes e
reconhece para si o único mérito de ter demonstrado:
"1.° que a existência das classes está somente ligada a
determinadas fases da evolução histórica da produção;
2.° que a luta de classes conduz necessariamente à
ditadura do proletariado; 3.° que esta ditadura
constitui somente a passagem para a supressão de
todas as classes e para uma sociedade sem classes". A
expressão é consagrada na Crítica ao programa de
Gotha (1875): "Entre a sociedade capitalista e a
sociedade comunista existe o período de
transformação revolucionária de uma na outra. A este
corresponde também um período político de transição,
cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura
revolucionária do proletariado" (Ibid., p. 970).
VI. A EXTINÇÃO DO ESTADO. — Como aparece na
carta a Weydemeyer, o tema da ditadura do
proletariado está intimamente ligado ao da extinção
do Estado. Todos os Estados que existiram foram
sempre ditaduras de uma classe. A esta regra não faz
exceção o Estado em que o proletariado se torna
classe dominante; mas, diferentemente das ditaduras
das outras classes, que foram sempre ditaduras de uma
minoria de opressores sobre uma maioria de
oprimidos, a ditadura do proletariado, sendo ditadura
de uma enorme maioria de oprimidos sobre uma
minoria de
743
opressores destinada a desaparecer, é ainda uma
forma de Estado, mas tal que, tendo como objetivo a
eliminação do antagonismo das classes, tende à
gradual extinção daquele instrumento de domínio de
classe que é o próprio Estado. O primeiro indício do
desaparecimento do Estado se encontra na última
página da Miséria da filosofia: "A classe operária
substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a antiga
sociedade civil por uma associação que excluirá as
classes e seu antagonismo e não existirá mais poder
político propriamente dito" (p. 140). O Manifesto
inclui o tema do desaparecimento do Estado no
próprio programa: "Se o proletariado, na luta contra a
burquesia, se constitui necessariamente em classe, e,
por intermédio da revolução se transforma a si mesmo
em classe dominante destruindo violentamente, como
tal, as antigas relações de produção, ele elimina
também, junto com estas relações de produção, as
condições de existência do antagonismo de classe, das
classes em geral e, portanto, também do seu mesmo
domínio de classe" (in K, Marx e F. Engels, Obras,
pp. 314-15), A análise, que Marx faz em A guerra
civil na França, da nova forma de Governo da
Comuna mostra que a novidade em relação às demais
formas de domínio anteriores consiste exatamente no
fato de que ela contém em germe as condições para o
gradual desaparecimento do Estado como mero
instrumento de repressão: a Comuna foi "uma forma
política fundamentalmente aberta, enquanto todas as
formas precedentes de Governo tinham sido
unilateralmente repressivas" (Ibid., pp. 911-12). O
Estado em que a classe dominante é o proletariado
não é, então, um Estado como os demais, porque está
destinado a ser o último Estado: é um Estado de
"transição" para a sociedade sem Estado. É um Estado
diferente de todos os demais, porque não se limita a
apoderar-se do Estado existente, mas cria um novo
Estado, tão novo que põe as condições para o fim de
todos os Estados. O Estado de transição, enfim, se
caracteriza por dois elementos diferentes que não
podem ser confundidos: ele, apesar de destruir o
Estado burguês anterior, não destrói o Estado como
tal; todavia, construindo um Estado novo, já lança as
bases da sociedade sem Estado.
Estas duas características servem para distinguir a
teoria de Marx, de um lado, da teoria socialdemocrática, e, do outro, da anárquica. A primeira
sustenta que a função do movimento operário é a de
conquistar o Estado burguês internamente, não de
"quebrá-lo"; e a segunda sustenta que é possível
destruir o Estado como tal sem passar pelo Estado de
transição. Contra a teoria social-democrática, Marx
afirma, ao invés,
744
MAXIMALISMO
que o Estado burguês não pode ser conquistado, mas
tem que ser destruído; contra a teoria anárquica,
afirma que o que deve ser destruído não é o Estado
tout curt, mas exatamente o Estado burguês, porque o
Estado como tal, uma vez destruído o Estado burguês,
está destinado à extinção. Separando os dois
momentos, que estão dialeticamente unidos, da
supressão e da superação, pode-se afirmar que a
supressão do Estado burguês não é a supressão do
Estado, mas é a condição para a sua superação. E é
por isso que o Estado burguês tem que ser,
primeiramente, suprimido, diversamente do que
sustentam os social-democratas, para, em seguida,
diversamente do que sustentam os anarquistas, poder
ser superado.
BIBLIOGRAFIA. - A menos que outra coisa seja dita em
contrário, as citações dos textos de Marx e de Engels são
feitas com base no volume antológico: K. MARX e F.
ENGELS, Le opere. Editori Riuniti, Roma 1966. Para as
demais: K. MARX, Scritti politici giovanili. Einaudi, Torino
1950; Manoscritti economico-filosofici del 1844, Einaudi,
Torino 1968; L'ideologia tedesca, Editori Riuniti, Roma 1958;
La sacra famiglia, Editori Riuniti, Roma 1954; Per la critica
dell'economia política, Editori Riuniti, Roma 1957; Il capitale.
Editori Riuniti, Roma 1967; Carteggio Marx-Engels, Editori
Riuniti, Roma 1951; S. AVINERI, Il pensiero político e sociale
de Marx (1868), Il Mulino, Bologna 1972; L. GRUPPI,
Socialismo e democrazia. La teoria marxista dello Stato,
Edizioni del Calendário del Popolo, Milano 1969; M. A.
LOSANO, La teoria di Marx ed Engels sul diritto e sullo Stato,
CLUT, Torino 1969; D. LOSURDO, Stato e ideologia nel giovane
Marx. in "Studi Urbinati", n.°s1-2, XLIV, 1970; R. Miliband,
Marx e lo Stato, in "Critica marxista", IV, 1966; N.
POULANTZAS, Potere político e classi sociali (1968), Editori
Riuniti, Roma 1970.
[NORBERTO BOBBIO]
Maximalismo.
É um termo que ocorre na história do socialismo para
designar programas e rumos políticos orientados à
completa realização dos ideais socialistas. Começou-se
a falar de Maximalismo e minimalismo nos fins do
século passado, nos debates levantados no seio da
social-democracia alemã.
Graças à revogação da legislação anti-socialista, o
partido social-democrático alemão pôde, em 1891,
reunir-se novamente em Erfurt, sede do congresso
conhecido sobretudo pelo programa de partido que,
composto por Kautsky depois de
críticas e sugestões de Engels, constituiu uma espécie
de modelo para toda a ala marxista da socialdemocracia internacional, pelo menos até 1914. Não
explodira ainda o conflito entre Kautsky e Bernstein e
o programa pôde fazer com que coexistissem bastante
facilmente os dois extremos do dilema socialista (as
assim chamadas duas almas) que se separarão depois
do debate acerca do revisionismo. As bases teóricas de
Erfurt prevêem como programa máximo (daí o termo
Maximalismo) um objetivo final, a propriedade social
dos meios de produção e de permuta, mas leva
também em conta a necessidade de lutar pela
realização de um programa mínimo, essencialmente
político-administrativo e legislativo, encarnado, em
primeiro lugar, no sufrágio universal masculino e
feminino, no voto secreto, no sistema proporcional, no
costume da legislação direta (referendum), na
descentralização administrativa e em formas de
autogoverno regional e provincial. O programa
mínimo prevê, além disso, uma articulada legislação
social de proteção ao trabalho, a jornada de trabalho de
oito horas, a supressão do trabalho das crianças, a
criação de órgãos de inspeção capazes de fiscalizar as
condições higiênico-sanitárias do trabalho, e a
participação dos trabalhadores na administração da
empresa. O programa máximo era o fim da ação
socialista (em Erfurt, evitou-se cuidadosamente falar
da necessidade ou não da violência revolucionária
para o alcançar) e as reformas eram o conteúdo
concreto da luta operária socialista e, ao mesmo tempo,
as etapas intermediárias para atingir esse fim. Era
inevitável que a coexistência dos dois programas se
revelasse, com o andar do tempo, nada pacífica. O
centro ortodoxo kautskiano conseguiu, com a sua
autoridade, impor a co-presença dos dois planos nos
anos sucessivos, mas bem pronto Bernstein e a
tendência revisionista haviam de sustentar que o fim
nada significava e que o movimento era tudo, pondo
maior ênfase na realização prática e concreta do
programa mínimo e das reformas a ele vinculadas. A
esquerda revolucionária insistia sobretudo na
importância de não se perder nunca de vista os fins
últimos: esta corrente cobrou alento com o
desmoronamento da Segunda Internacional e com a
guerra mundial. Tanto é assim que, em 1918, Rosa
Luxemburg, retomando a linguagem das velhas
polêmicas, sustentou que o socialismo era o mínimo
que se devia realizar.
Também na Itália a discussão declinou bem
depressa para esse terreno e já no Congresso de Parma
(1895) o P.S.I. decidiu confiar a um órgão executivo
central a incumbência de elaborar os projetos dos
programas mínimos, de natureza essencialmente
política e administrativa. Arturo
MERCANTILISMO
Labriola elaborou um esquema calcado no de Erfurt,
mas foi criticado. A questão, presente em todos os
congressos socialistas, foi amplamente abordada no
congresso de Roma, em 1900, onde se acentuou que o
programa mínimo estava para o programa máximo
como os meios estão para o fim e que era nisso que se
distinguia de todos os programas meramente
reformistas e de toda a forma, cristã ou burguesa, de
filantropismo social. Foram estas as bases sobre as
quais, durante anos, se travaram longas polêmicas
dentro do P.S.I. (avivadas pela atitude giolittiana de
atenção à estratégia social-reformista), que dividiram
o partido em diversas correntes: os reformistas e os
revolucionários, os centristas unitários ("intermédios" e
"medianos"), os intransigentes, os sindicalistas
revolucionários. O problema central do debate
político foi sempre o do valor que havia de ser
atribuído às lutas operárias intermediárias (o tradeunionismo) e às reformas políticas democráticas: os
gradualistas concentravam-se em torno do programa
mínimo para fazer das reformas possíveis o fator
determinante imediato e concreto da ação socialista
(com as conseqüentes alianças e "blocos" formados
com os grupos democráticos e republicanos), enquanto
os intransigentes (os futuros "maximalistas") tendiam a
subestimar tal fator e a considerá-lo não como uma
conquista em si, mas como um trampolim para a
completa realização revolucionária do programa
máximo. A divisão dos sindicalistas revolucionários em
1907 e o chamado longo ministério de Giolitti
favoreceram momentaneamente os reformistas, mas
logo Mussolini tomaria o comando do partido,
conseguindo, em 1912, que fossem expulsos Bononi,
Bissolati e Cabrini (minimalistas declarados e
explícitos), por ocasião da guerra da Líbia. Os
acontecimentos se sucedem depois com grande
rapidez: arrebenta a guerra, Mussolini é expulso e a
corrente favorável à imediata realização do programa
máximo (fortalecida pelo desmoronamento nacionalchauvinista da social-democracia internacional) tornase amplamente majoritária. A revolução russa e o
conhecimento ainda imperfeito dos programas do
bolchevismo internacionalista e revolucionário
fortalecem esta corrente, que começará a chamar-se
abertamente maximalista no Congresso de Bolonha, em
1919.
Desde esse momento, começa a ganhar projeção na
Itália uma projeção, em grande parte negativa, o termo
"maximalismo". Tanto a direita gradualista do partido
socialita (Turati, Treves, Modigliani) como a esquerda
comunista (a facção comunista abstencionista de
Bordiga e o grupo turinense da nova ordem de Tasca e
Gramsci) difundiram a imagem, não totalmente
745
injustificada, mas certamente exagerada, de um
pântano centrista ilógico e apaixonado pela "frase
escarlate". Em Livorno, em 1921, houve uma cisão no
P.S.I. que arrancou do velho tronco a esquerda
comunista e filobolchevique, que aderiu à nova
Internacional. Em 1922, os reformistas ("unitários") se
separaram dos maximalistas, que ficaram sós,
incapazes de assumir uma posição clara, na época
dramática da chegada do fascismo ao poder, pelo
socialismo ou pelo comunismo. No estrangeiro, a área
político-ideológica correspondente ao Maximalismo
depressa se desagregou, enquanto o comunismo e a
social-democracia se inseriam em campos ideológicos
e em blocos internacionais claramente distintos. O
termo continuou a ter um certo sucesso na Itália, onde
o P.S.I. manteve, após a guerra, um pacto de união
com o P.C.I., tornando-se, ao mesmo tempo, mais
efervescente que os comunistas no campo das
reivindicações político-sociais e subalterno no
respeitante à política staliniana. Voltou-se a falar de
"Maximalismo" em 1964, por ocasião da formação do
P.S.I.U.P., uma iniciativa dos socialistas hostis à
coalisão de centro-esquerda.
Hoje o termo parace ter perdido as primitivas
raízes históricas, tornando-se simples sinônimo de
intransigência ideológica e de aspereza na luta política
de esquerda. Fica-lhe, porém, a conotação negativa, a
da denúncia de ações políticas sem resultado concreto,
puramente demonstrativas.
[BRUNO BONGIOVANNI]
Mercantilismo.
I. DEFINIÇÃO. — A uma linha de pensamento e de
ação que se revela durante dois séculos pelo menos
(séculos XVI e XVII), unindo política e economia na
teoria e na prática, não se pode pedir unidade e plena
coerência em seu desenvolvimento; nem a quem tente
acompanhar a sua evolução, se pode pedir uma visão
tão abrangente que não se torne em fragmentária, ou,
ao invés, uma visão sintética que não peque por
generalidade ou por estreiteza de perspectivas. Daí a
insatisfação que nos deixam, não só as definições,
como as próprias reconstruções históricas. O perigo
está, de um lado, em cair numa vã tautologia ("o
mercantilismo compreende as políticas econômicas
dos séculos XVI e XVII"), do outro, em usar de
distinções
talvez
válidas
territorial
ou
cronologicamente, mas arbitrárias e insatisfatórias,
quando se trata de sujeitar os resultados a uma
avaliação global. Entre "o Mercantilismo foi tudo" e "o
Mercantilismo não
746
MERCANTILISMO
existiu", o exame de algumas das características
comuns às teorias de política econômica dos séculos
XVI e XVII pode dar algum fruto, pelo menos dentro
das finalidades didáticas de uma obra de ajuda à
linguagem política corrente, que peca de muitas outras
ambigüidades e simplificações. Mas a contribuição
mais útil para a compreensão do Mercantilismo pode
estar no conhecimento dos homens cuja obra foi
depois reconduzida à unidade do período histórico. O
Mercantilismo, diversamente do que aconteceu com a
FISIOCRACIA (v.), não nasceu como escola. É antes o
resultado do confronto polêmico de outras escolas
(precisamente a fisiocrática) e de outros economistas
(a começar por Adam Smith, a quem se deve a
primeira tentativa de reconstrução histórica em The
wealth of nations, 1776, 1. IV, c. 8).
II. OBJETIVOS. — A compreensão do Mercantilismo,
mais que com uma definição, pode ser facilitada com a
determinação dos objetivos comuns ao pensamento e à
ação dos mercantilistas, objetivos, em geral,
sumamente genéricos, tanto no século XVI como no
XVII, tanto na Itália como na Alemanha, França,
Espanha e Inglaterra, ultrapassando as barreiras
políticas, culturais e religiosas.
O objetivo mais geral nos propósitos e mais
generalizado quanto à difusão geográfica está na
superação de um dos pressupostos de Maquiavel não
só não é necessário para a prosperidade do Estado que
ele seja rico e os súditos, ao contrário, pobres, como é
justamente a riqueza dos súditos que faz rico e
poderoso o Estado. Eis, pois, reunidas duas exigências
que se apresentam poderosas no alvorecer da época
moderna, numa tentativa de síntese que um dia se
revelará aberrante: a imposição, ao mesmo tempo, do
absolutismo estatal e da empresa privada. Duas
instâncias cuja conflituosidade vinha sendo atenuada
por uma série de circunstâncias históricas decisivas,
entre elas, antes que qualquer outra, a necessidade de
competir militar e economicamente com as demais
potências. A primeira exigência pressupunha um
Estado autoritário, a segunda uma estrutura comercial
tanto mais ousada quanto melhor protegida. Uma e
outra estreitamente interdependentes. Poder do Estado
para defender o comércio com as armas e com as
barreiras alfandegárias; comerciantes enriquecidos
com a exportação de produtos acabados, que contribui
para a acumulação de metais preciosos importados e
mantém, dentro do território nacional, a produção de
alimentos.
O internacionalismo, que tinha permeado a
filosofia e a prática política da época medieval, cede
o lugar à vontade de potência e, entre os
instrumentos da nova visão do Estado nacional, surge
sempre com maior relevo a política econômica. O
comerciante será tão escutado como o general e está a
surgir uma nova figura de conselheiro político: o
economista. Afirma-se explicitamente o princípio
utilitarista, já quase sem disfarces: é o surgir, ideal e
material, do espírito burguês e capitalista.
Um
aprofundamento
dos
objetivos
do
Mercantilismo nos levaria a um entrelaçamento da
teoria e da prática, a partir do qual se poderia
reconstruir uma espécie de paralelismo do pensamento
econômico e da história econômica ao longo de dois
séculos pelo menos. Uma reconstrução cuja dificuldade
se revela na simples enumeração dos pontos de
referência que se hão de ter sempre presentes para não
perder o rumo, como adverte Aldo De Maddalena
(1980), no dédalo dos escritos mercantilistas:
formação e consolidação do Estado unitário nacional;
fim das aspirações a um poder supranacional;
sobrevivência de ideais e instituições de natureza
particularista; quebra do monolitismo religioso e
eclesiástico; vitória total do capitalismo comercial;
descobertas geográficas e abertura de novos mercados
de monopólio e absorção; desvio das correntes de
tráfico internacional; consolidação de políticas e
estruturas monopólicas e imperialistas; introdução de
grande quantidade de moeda circulante metálica e
modificação dos sistemas monetários; agressividade
dos Estados nacionais; aumento incessante das
despesas públicas; tendência à planificação no campo
econômico (pense-se no colbertismo na França).
III. MERCANTILISTAS. — Na Itália, na Alemanha,
na França, na Espanha, na Inglaterra, onde quer que
fosse, nas estantes da biblioteca econômica dos
séculos XVI e XVII, o primeiro objetivo, o objetivo
manifesto, era o da defesa do Estado. Os que escrevem
sobre assuntos de economia parecem unir-se ao coro
dos fautores do absolutismo político. Mas não é assim.
Se se observar melhor, o Estado já não é fim, mas um
meio: o valor supremo é a riqueza, a prosperidade. E
estas estarão cada vez menos ligadas a uma entidade
abstrata e cada vez mais aliadas a uma classe: no caso
historicamente delimitado, à classe dos comerciantes.
Uma escolha mais de acordo com as exigências da
linguagem política contemporânea poderia aconselhar
a exemplificação da difusão das teorias mercantilistas
por meio de autores representativos das diversas
realidades nacionais, só dentro dos aspectos políticosociais.
John Hales (?-1571), um dos primeiros
mercantilistas ingleses, é aqui citado, em vez de
William
MERITOCRACIA
Petty, Thomas Mun e Josiah Child, pela clareza com
que afirma a índole econômica, mais que política e
religiosa, do ligame que une os homens, fazendo
ressaltar uma solidariedade de interesses econômicos
que está além da relação soberano-comerciante: "todo o
comerciante — escreve — é membro da república
(common weal) e toda a profissão lucrativa para um
pode sê-lo para quem a queira exercer de igual modo;
o que dá ganho a um o dará a quem lhe é vizinho e, por
conseguinte, a todos" (A Discourse of the common weal
of this realm of England, publicado em 1581, mas
escrito em torno de 1549 e amplamente difuso em
manuscrito).
Antoine de Montchretien (1576-1621), o primeiro
que escreveu um Traité d'économie politique (1615),
evidencia, com singular clareza e simplicidade, a nova
moral burguesa e capitalista, quando escreve, por
exemplo, que "a felicidade dos homens consiste
principalmente na riqueza, e a riqueza no trabalho".
Antonio Serra (1550/1560 — 1620/1625) é, no
entender de Schumpeter (v. BIBLIOGRAFIA), O luminoso
precursor das modernas análises da relação entre
estruturas econômicas e balança comercial, ao superar
as teorias monetaristas reinantes (os fenômenos
monetários são vistos, no fundo, antes como
conseqüências que como causas; possuem um valor
sintomático mais do que uma importância própria).
Na órbita do Mercantilismo giram, enfim, dois
autores cujo nome está ligado a "leis" econômicas
ainda hoje muito citadas: Thomas Gresham (a moeda
ruim expulsa a moeda boa) e Gregory King (o preço
global da colheita de cereais num país da Europa
diminui quando a quantidade de cereais colhidos
aumenta).
BIBLIOGRAFIA. - P. W. BUCK, The politics of mercantiiism.
New York 1942; A. DE MADDALENA, Il mercantilismo. in Storia
delle idee politiche, economiche e sociali. ao cuidado de L.
FIRPO. vol. IV, UTET, Torino 1980. pp. 637-704; P. DEYON, Il
mercantilismo (1969). Milano 1971; E. F. HEKSCHER. Il
mecantilismo (1931). UTET. Torino 1936; J. W. HORROCKS. A
Short history of mercantilism. New York 1942; J. A.
SCHUMPETER. Storia dell'analisi economica (1954). Einaudi.
Torino 1959.
[ALDOMAFFEY]
Meritocracia.
I. DEFINIÇÕES. — Em geral, por Meritocracia se
entende o poder da inteligência que, nas
747
sociedades industriais, estaria substituindo o poder
baseado no nascimento ou na riqueza, em virtude da
função exercida pela escola. De acordo com esta
definição, os méritos dos indivíduos, decorrentes
principalmente das aptidões intelectivas que são
confirmadas no sistema escolar mediante diplomas e
títulos, viriam a constituir a base indispensável,
conquanto nem sempre suficiente, do poder das novas
classes dirigentes, obrigando também os tradicionais
grupos dominantes a amoldarem-se. Postula-se, dessa
forma, o progressivo desaparecimento do princípio da
ascription (pelo qual as posições sociais são atribuídas
por privilégio de nascimento) e a substituição deste
pelo princípio do achievement (pelo qual as posições
sociais são, ao invés, adquiridas graças à capacidade
individual): a Meritocracia se apresenta precisamente
como uma sociedade onde vigora plenamente o
segundo princípio. Além disso, a Meritocracia se ajusta
ao ideal de igualdade de possibilidades, que já
constava no art. 6° da Declaração dos direitos do
homem e do cidadão, de 1789, pelo qual os cidadãos
"...podem ser igualmente admitidos a todas as
dignidades, postos e empregos públicos, segundo sua
capacidade e sem outra distinção que a de suas
virtudes e inteligência". Este princípio, incontestável
no plano formal, é, na realidade social, de difícil
aplicação, tanto que a igualdade de oportunidades é
para alguns sociólogos (Bourdieu e Passeron) uma
mera ideologia, apta a justificar a permanência das
desigualdades, tornando-as aceitáveis a todos. De fato,
de acordo com estes autores, o sistema educacional,
ao qual cabe sancionar as aptidões de cada um,
funcionaria, na realidade, como mecanismo de
reprodução da estratificação existente por causa dos
inevitáveis fatores sociais que condicionam o êxito
escolar. Por outras palavras, a seleção escolar
meritocrática seria impossível de ser realizada e a
função do sistema de ensino seria exatamente a de
fazer com que pareçam naturais as diferenças de
capacidade, quando, na realidade, essas diferenças
decorrem da diferenciação social preexistente.
II. O ADVENTO DA MERITOCRACIA. — Michael
Young, com um recente ensaio, que propõe, em forma
satírica, a utopia sociológica do advento de uma
Meritocracia, contribuiu notavelmente para que
entrasse em uso esse termo. Nesta obra é descrita a
Inglaterra do ano 2033, como uma sociedade
perfeitamente orientada para a maximização da
eficiência produtiva, mediante o completo emprego
dos recursos intelectuais da população, oportunamente
valorizados pela escola. Young imagina que a
aceitação do princípio do mérito, generalizando-se,
leve à constituição de
748
MILITARISMO
uma classe dirigente de homens perfeitamente
selecionados, que, após numerosos e aprimorados
testes de inteligência, puderam ter acesso aos mais
altos graus da instrução, assumindo em seguida todos
os cargos de direção. Com base em critérios
científicos, os inteligentes são separados dos outros,
tornando realidade duas classes claramente distintas,
se bem que de tipo novo e com mobilidade
genealógica completa. A classe superior, com
quociente intelectual elevado, tem direito a uma boa
instrução e a notáveis privilégios econômicos e
sociais; a classe inferior, ao invés, recebe uma
instrução elementar que, devido à extensão da
automação, não lhe permitirá sequer o trabalho
operário, mas somente o trabalho doméstico nas
residências dos superdotados. O problema da
igualdade e da instrução é apresentado de forma
humorística: o erro consistiria exatamente em se ter
considerado
fundamental
a
igualdade
das
possibilidades, que no mundo atual, dominado pelos
valores da eficiência produtiva da indústria, leva
inevitavelmente a uma desigualdade cada vez maior.
No livro se critica a insignificância da escala de
valores da Meritocracia, almejando uma sociedade
sem classes, isto é, uma sociedade que "... terá em si
uma pluralidade de valores, segundo os quais se
comportará. De fato se nós avaliássemos as pessoas
não somente pela sua inteligência e cultura, pela sua
ocupação e seu poder, mas também pela sua bondade
e coragem, pela sua imaginação e sensibilidade, pelo
seu amor e generosidade, as classes não poderiam
mais existir" (Young, p. 174).
O ideal de igualdade continua válido e é obtido
através de uma instrução capaz de dar a todos uma
boa formação de base, transferindo para bem mais
adiante toda diferenciação funcional dos estudos. A
atitude meritocrática, ao invés, representa o contrário
de igualdade e de democracia, mesmo que, à primeira
vista, isto não apareça claramente, porque uma
seleção baseada na avaliação científica da inteligência
e dos esforços de cada um pode parecer justa; o
resultado, porém, será somente uma massa passiva
cada vez mais desligada da elite intelectual.
III. AVALIAÇÕES CRÍTICAS DA MERITOCRACIA. —
Em contraste com avaliações críticas como a de
Young encontram-se juízos positivos como o de
Parsons,
que,
recentemente,
referindo-se
explicitamente à Meritocracia, debateu o valor da
atual "revolução no campo da instrução", que
constituiria como que uma síntese das revoluções
precedentes: a industrial e a democrática. De fato,
igualdade de oportunidades e igualdade política dos
cidadãos — ideológica a primeira e utópica a segunda
— encontrariam, através da mediação
do sistema educacional, uma maior possibilidade de
realização; todavia as desigualdades permaneceriam,
embora menos arbitrárias.
As posições favoráveis à Meritocracia estão ligadas
a um igualitarismo formal que advoga o
reconhecimento dos méritos de cada um, enquanto
muitas das posições contrárias se baseiam num
igualitarismo nivelador que pretende negar as
diferenças entre os indivíduos. É diferente, ainda, a
posição sobre o problema que se pode deduzir da
análise marxista. Marx, de fato, na Crítica ao
programa de Gotha, afirma a necessidade, para a
sociedade comunista do futuro, de considerar as
diferenças individuais não pela óptica do
reconhecimento diferencial dos méritos, mas pela da
atribuição "a cada um segundo suas necessidades".
São aceitas, portanto, as diferenças naturais, mas se
rejeita a sanção social delas: trata-se de reconhecê-las
para impedir que "desiguais aptidões individuais e,
portanto, capacidades de rendimento" se transformem
em privilégios. A respeito da Meritocracia, o
problema é colocado numa alternativa radical,
contrapondo dois tipos claramente antitéticos, de
reconhecimento social, o dos méritos e o das
necessidades.
BIBLIOGRAFIA. - T. PARSONS, Sistemi di società. II:
Le società modern (1971), Il Mulino, Bologna 1973;
D. RIESMAN. Annotazioni sulla meritocrazia, in Toward
the year 2000: work in progress. sob a direção de D.
BELL, (1967), Bompiani, Milano 1969; M. YOUNG,
L'avvento della meritocrazia. 1870-2033 (1958),
Comunità, Milano 1962.
[LORENZO FISCHER]
Militarismo.
I. ORIGEM DO CONCEITO E DO FENÔMENO. — O
Militarismo constitui um vasto conjunto de hábitos,
interesses, ações e pensamentos associados com o uso
das armas e com a guerra mas que transcende os
objetivos puramente militares. O Militarismo é tal que
pode, até, chegar a dificultar e impedir a consecução
dos próprios objetivos militares. Ele visa objetivos
ilimitados; objetiva penetrar em toda a sociedade,
impregnar a indústria e a arte, conferir às forças
armadas superioridade sobre o Governo; rejeita a
forma científica e racional de efetuar a tomada de
decisões e ostenta atitudes de casta, de culto, de
autoridade e de fé. Se a maneira militar de agir
consiste na concentração de homens e de recursos a
fim de conseguir objetivos específicos com o
MILITARISMO
mínimo gasto de tempo, e de energias, de sangue e
dinheiro e mediante a aplicação de técnicas mais
racionais, então o Militarismo é uma degeneração do
modo militar de agir (Vagts, 1937, 11). A expressão
Militarismo foi usada bem tarde, em relação ao
aparecimento das primeiras formas do fenômeno. O
termo aparece pela primeira vez na França durante o
Segundo Império na boca dos republicanos e dos
socialistas, para denunciar o regime de Napoleão III.
O termo se difundiu rapidamente na Inglaterra e na
Alemanha, para indicar a predominância dos militares
sobre os civis, a crescente penetração dos interesses
de caráter militar no tecido social e sua ampla
aceitação, o emprego de recursos obtidos com o
sacrifício da população e com prejuízo da cultura e do
bem-estar e o desperdício das energias da nação nas
forças armadas. Militarismo veio, por último, a
significar concretamente o controle dos militares sobre
os civis e a sistemática vitória das instâncias dos
primeiros sobre os segundos. O contrário de
Militaristo é, então, poder dos civis e não PACIFISMO
(v.). O contrário de pacifismo, amor da paz, é, de
fato, belicosidade, amor à guerra.
Se Militarismo é controle exercido pelos militares
sobre os civis, ele nasce em época muito anterior ao
século XIX; de fato se apresenta pela primeira vez no
período do tardio Império Romano, quando quer as
guarnições sediadas nos confins do Império para
defendê-lo contra os bárbaros, quer os pretorianos
residentes dentro da cidade de Roma constituíam o
instrumento indispensável para a conquista, a
manutenção e o exercício do poder imperial. Este
fenômeno, denominado pretorianismo, constitui um
exemplo esclarecedor do Militarismo ante litteram. O
pretorianismo, porém, era uma espécie de Militarismo
intermitente que, não tendo bases estruturais
necessárias para plasmar a sociedade, acabava por ser
somente um substitutivo
de procedimentos
constitucionais para a transferência do poder. Pode-se,
portanto, afirmar com segurança que o perigo do
Militarismo se apresenta com a formação dos
exércitos permanentes e com o recrutamento em
massa. É por isso que na Roma republicana o
fenômeno não se apresentara, porque o comando dos
exércitos era confiado a magistraturas extraordinárias
submetidas ao controle do Senado, a civis desejosos de
voltar ao seu trabalho habitual (Cincinato é o exemplo
mais claro desta tradição); o fenômeno se representa
somente quando surge nas sociedades ocidentais a
necessidade de recorrer a especialistas da violência e
da guerra.
749
para as guerras seguia-se, uma vez concluída a
expedição, a dissolução dos exércitos e a volta dos
soldados a suas casas e ao seu trabalho: neste período
não existiam exércitos permanentes, mas "guerreiros"
permanentes — os fidalgos feudais. O primeiro núcleo
do que teria sido um exército permanente se formou na
França, exatamente em seguida (é paradoxal!) à
necessidade de dissolver o exército que tinha
participado da Guerra dos Cem Anos. A fim de se
defender de todos os que não tinham já outra
profissão a não ser a das armas e, se possível, eliminálos, Carlos VII decidiu tomar para seu serviço, em
caráter permanente, um manipulo de guerreiros. A
revogação desta ordem por obra do filho, Luís XI,
suscitou as críticas de Maquiavel que, todavia, parece
ter confundido armas mercenárias com o sistema dos
chefes de armas. Acrescente-se a isto que Maquiavel
não compreendeu plenamente a importância de um
exército de profissionais das armas, dependentes do
monarca na criação do Estado nacional e, no que diz
respeito ao caso de Florença, não foi além da intuição
estratégica de uma milícia de cidadãos-soldados.
Outra fase importante é o processo iniciado pelo
monarca prussiano após a paz de Westfália (1648),
processo durante o qual ele se serviu de formação de
um exército estável bem consistente como arma para
fundar a unidade do Estado contra os privilégios das
classes. Estamos ainda longe da criação de um corpo
de oficiais profissionais, mas, sem dúvida, o exército
estável constituiu um primeiro passo em direção a uma
sempre crescente exigência de treinamento também
dos oficiais; e não somente de treinamento, mas
também de modalidades e tipos de recrutamento. Dessa
forma, a verdadeira data do início da
"profissionalização" dos militares deve ser considerado
o dia 6 de agosto de 1808, quando o rei da Prússia
com um decreto ad hoc abriu as altas patentes do
exército a todos os que possuíssem os níveis exigidos
de conhecimentos profissionais, de instrução e de
coragem. Este decreto, que constituía a resposta
prussiana às desastrosas derrotas de Iena e Auerstadt
pela ação do exército napoleônico, foi seguido pela
fundação da primeira escola militar de especialização
— a Kriegsakademie — que levaria, enfim, à desforra
contra os franceses na guerra de 1870. Com o decreto
de 1808 o rei de Prússia não somente pôs fim ao
recrutamento adscritício pelo qual somente os nobres
podiam ocupar o cargo de oficial, recrutamento que
constituíra, exatamente desde os tempos de Carlos VII
e de Jacques Coeur, a regra nas sociedades ocidentais
(com a única exceção da Inglaterra), mas também deu
O Militarismo não tinha direito de cidadania no início
período feudal quando às levées en masse
750
MILITARISMO
ao processo que faria da Prússia o Estado-guia da
unificação alemã e o quartel da Europa.
O processo pelo qual os nobres tinham até então
ocupado todas as posições de comando nos exércitos
dos vários Estados europeus — prescindindo de suas
capacidades profissionais — havia sido iniciado
naturalmente no momento em que se exigiu dos
combatentes que eles mesmos se abastecessem às suas
custas do equipamento necessário para as campanhas
militares, e prosseguira com a racionalização no sentido
de que os postos de comando durante a guerra deviam
pertencer aos que em tempo de paz ocupavam
posições de proeminência, tendo sido reforçado
quando a burguesia nascente preferira dedicar-se ao
comércio e às atividades industriais delegando a
improdutiva profissão das armas aos nobres. Mas
enquanto a Inglaterra se vacinara contra o Militarismo
pela experiência da ditadura de Cromwell e pelo fato
de que os burgueses conseguiram muito cedo exercer
seu controle sobre as despesas do rei, bloqueando
dessa forma orçamentos de verbas para fins militares,
na França e na Alemanha a burguesia se" revelou
mais fraca e o rei e sua burocracia nobiliária
conseguiram manter o controle da área militar e de suas
dotações financeiras. Assim os nobres e os aristocratas
conseguiram conservar por muito tempo sua
supremacia no grau de oficiais, supremacia quebrada
na Prússia — só em princípio, não de fato — pelo
decreto acima mencionado e na França só
temporariamente pelas armas revolucionárias, porque
a restauração, a monarquia burguesa e o Segundo
Império nunca se libertaram totalmente do
recrutamento privilegiado entre as fileiras dos oficiais
de nobres profissionalmente não qualificados, com
todas as disfunções que daí decorrem para o comando
da guerra.
Por muito tempo, de fato, os nobres europeus, que
tinham perdido sua função em decorrência da
desintegração do sistema feudal, se salvaram da
falência pelos cargos que conseguiram ocupar nos
vários exércitos, obtendo uma espécie de sinecura. A
ameaça contra este privilégio veio não somente dos
exércitos revolucionários franceses, mas também do
exemplo estadunidense que era um país sem exército
permanente, guiado por oficiais recrutados entre
cidadãos comuns e com um comandante supremo que
afirmava a superioridade de sua função civil quando
terminou a guerra de libertação vitoriosa. O sistema do
exército permanente, confiado a nobres sem formação
específica e somente com o título de seu brasão e
abalado pelas duas revoluções, é definitivamente
atingido
e
derrotado
pela
fundação
da
Kriegsakademie prussiana. Mas este momento, que
marca o início da profissionalização dos oficiais,
marca
também o fim da subordinação dos militares aos
governantes civis enquanto membros da mesma classe
que têm os mesmos interesses e objetivos. O
complexo problema das relações entre civis e militares
começa por esta transformação.
II.
DIFERENCIAÇÃO
ESTRUTURAL
PROFISSIONALIZAÇÃO DOS MILITARES. — O
E
que se
entende exatamente por profissionalização? A
profissionalização é aquele processo pelo qual um
grupo de indivíduos adquire um conjunto de
habilidades e conhecimentos técnicos e se organiza
em uma instituição com normas e regimentos próprios
que o separam dos outros grupos e das outras
instituições presentes na sociedade. A instituição
militar, como qualquer outra organização profissional,
pode regulamentar o acesso dos indivíduos ao seu
grêmio quer recrutando somente os que possuem
determinadas
habilidades
e
conhecimentos
explicitamente estabelecidos quer socializando os
indivíduos recrutados com as normas, os regulamentos
e, até, os costumes vigentes dentro da instituição. O
processo de profissionalização dos militares faz, então,
parte do mais amplo processo de diferenciação
estrutural que as sociedades — ocidentais ou não —
atravessaram e ainda experimentam no decorrer da
modernização social, econômica e política.
Podem ser identificados três níveis de diferenciação.
Em primeiro lugar, ao nível das relações entre
sociedade e forças armadas, estas podem constituir
parte integrante da sociedade, refletindo e
incorporando os valores dominantes desta, e
desempenhando funções não puramente militares, ou
podem ser marcadamente diferenciadas e desempenhar
unicamente funções militares subordinadas ao poder
político na aceitação dos valores dominantes da
sociedade. No segundo nível se situam as relações
entre a liderança das forças armadas, isto é, o corpo
dos oficiais, e as várias elites sociais, econômicas e
políticas. Entre estes grupos pode haver ou uma
compenetração tal que a elite militar faz também parte
da elite econômica e/ou tem as mesmas origens sociais
e os mesmos modelos de comportamento, ou uma
divisão clara, de modo que a elite militar segue
modelos de comportamento social e profissional
diferentes e incompatíveis com os de outras posições
da elite. O terceiro nível é o das relações entre os
chefes das forças armadas e os líderes políticos mais
importantes. Também neste nível pode acontecer ou o
caso em que os papéis de comando político e militar
sejam ocupados pelos mesmos indivíduos, verificandose neste caso uma clara mistura, ou o caso em que os
líderes políticos e chefes militares sejam recrutados de
forma
MILITARISMO
diferente e com base em qualificações diversas e
sigam cada um seu cursus honorum.
É claro que estas distinções não podem ser vistas de
forma estática, mas podem mudar e, de regra, mudam
no tempo dando origem a modelos diversos de relações
entre militares e civis. A tese mais forte sustenta que
estas relações são marcadas por uma predominância
dos civis, representantes da sociedade como um todo,
perante ela responsáveis e revogáveis, quando a
modernização das estruturas políticas — de modo
particular a racionalização e a legitimação da
autoridade — tenha precedido a criação de um
exército moderno e eficiente de profissionais. Estas
relações tendem a registrar uma prevalência, com
modalidades e sob formas diferentes, dos militares
sobre os civis, quando o exército representa a
estrutura mais moderna de um país em que as outras
estruturas estejam atravessando fases de profundas
transformações e as estruturas políticas em particular
estejam procurando novas formas de legitimidade.
III.
RELAÇÕES
CIVIS-MILITARES
E
ESTADOGUARNIÇÃO. — As relações entre militares e
civis devem ser examinadas também à luz das
mudanças tecnológicas e do sistema internacional que
se verificaram a partir do fim da Segunda Guerra
Mundial até hoje e que levaram, segundo alguns
autores, à instauração de uma tecno-estrutura militar ou
de um complexo militar-industrial e, que segundo
outros autores, poderão desembocar no chamado
Estadoguarnição. Quanto à primeira hipótese, releva-se
como o atual sistema internacional torna impossível o
emprego das armas atualmente à disposição dos
militares, sob pena do holocausto da própria
humanidade. E a função do militar como. especialista
da violência que é posta em crise, e não a sua
utilização em algumas guerras locais nas quais, aliás, a
frustração pelo veto imposto pelos civis ao emprego
das armas atômicas resolutivas cria enorme
insatisfação entre os chefes das forças armadas.
Apesar disso, o militar não abandona completamente
o seu papel de perito e continua pedindo mais
dinheiro, mais armas e mais homens a fim de
desempenhar sua função protetora para com o Estado.
Para obter os meios necessários ao bom
funcionamento de sua instituição, os militares têm que
desempenhar três funções, grosso modo, políticas: a
função de representação dos interesses da instituição
militar à qual está, pela constituição, confiada a
proteção e a defesa do território nacional e de seus
cidadãos; a função de conselho aos detentores do
poder político e, enfim, a função de execução das
opções políticas elaboradas pelos civis também com
base nos conselhos
751
fornecidos pelos peritos militares. Os militares
procuram, todavia, evitar o controle dos civis
levantando ao redor de suas atividades e de suas
exigências dois tipos de barreiras: a barreira do topsecret ou segredo de Estado e a barreira da
competência. Estas duas barreiras permitem também
aos militares procurar diretamente, na corrida
armamentista, as indústrias bélicas e criar com estas
indústrias um conjunto de ligames de interesses
recíprocos tais que deram motivo para se falar
exatamente de um complexo militar-industrial.
O Militarismo apresenta realmente sua verdadeira
face moderna quando os militares são obrigados pela
sua ambição de armas novas e cada vez mais
aperfeiçoadas (em cuja orgulhosa demanda sublimam
parte das energias não gastas em batalhas) a efetuar
pressões de natureza extra-constitucional sobre os
civis. Estas pressões consistem habitualmente — em
ordem crescente de importância — em ameaças de
demissões, de publicidade de dissenso, de abertas
manifestações de desprezo, de desobediência de
execução das ordens, da retirada do apoio ao governo
e da intervenção armada direta. Estas ameaças podem
ter como objetivo tanto o Governo quanto alguns
grupos políticos bem concretos. Todas as vezes que
estas ameaças têm sucesso podemos falar de
intervenção dos militares em política, intervenção que
pode ir do simples veto a atividades governamentais ou
a partes relevantes desta, à inclusão de pessoal militar
no Governo até a gestão direta do poder.
A tese do Estadoguarnição, elaborada por Harold
Lasserwell durante a Segunda Guerra Mundial e por
ele reexaminada depois de vinte anos, se relaciona
com este último ponto e sustenta, em resumo, que o
amontoado de crises de segurança nos países
industrializados obrigará seus líderes a mobilizar a
sociedade com preparativos cada vez mais amplos e
capilares para a guerra e levará inevitavelmente a uma
organização sócio-política que terá como resultado o
predomínio de uma coligação de líderes civis e
militares.
IV. INTERVENÇÃO DOS MILITARES NA POLÍTICA —
Apesar de o conceito e o fenômeno do Militarismo
terem nascido na Europa ocidental, o Militarismo,
entendido como intervenção direta dos militares em
política, nas democracias constitucionais (como
também nos regimes comunistas) não se firmou se
não ocasionalmente: podem ser citados os casos da
Alemanha guilherminiana e hitleriana e, de certo
modo, da França de 1871 a 1900 aproximadamente (de
Boulanger ao caso Dreyfus). O fenômeno do
Militarismo aparece, ao invés, em formas muito
agudas, nos países em
752
MILITARISMO
vias de desenvolvimento, especialmente na África e,
por um longo período de sua história que ainda
continua, na América Latina. Defrontam-se duas teses
que visam explicar o fenômeno do Militarismo quer
nos regimes ocidentais quer nos países do Terceiro
Mundo.
Huntington sustenta, antes de tudo, que as
verdadeiras causas da intervenção dos militares na
política não devem ser procuradas principalmente
dentro da organização militar mas só podem ser
compreendidas se se estudam as relações entre
organizações militares e organizações civis. Os
estímulos à intervenção dos militares ou a exigência
para uma liderança de tipo militar podem verificar-se
em três ocasiões: primeiro, quando a sociedade
atravessa um período de caos e de anarquia a tal ponto
de se julgar que somente as forças armadas teriam
condições de bloquear o processo de decadência e de
desintegração social restabelecendo a ordem e a
disciplina. Segundo, quando existem dois grupos em
competição e o exército é chamado ou para a defesa da
ordem vigente pelo grupo no poder ou para promover
os interesses do grupo excluído. Se bem que os chefes
militares tenham medo de provocar divisões no seio
das forças armadas optando por um grupo em vez de
outro, é raro que eles não tomem uma posição mesmo
que não seja possível, prever a priori de qual grupo eles
se
farão
paladinos.
Esta
opção
depende
freqüentemente da origem étnica, da proveniência
geográfica e da classe a que pertencem os oficiais
como também de suas atitudes para com a autoridade
política, das tradições da nação e das forças armadas e
das suas experiências anteriores. Terceiro, quando
existem mais grupos em competição não somente pelo
controle do poder central mas também em torno de
temas de fundamental importância até para os militares
como a corrupção, a ordem social, a constituição e a
política externa, as forças armadas podem intervir,
raramente de forma autônoma, mas freqüentemente
interpeladas por uma das facções civis.
A estrutura do sistema social, seu grau de
diferenciação estrutural e o nível de profissionalização
das forças armadas constituem, segundo Huntington,
elementos importantes e freqüentemente decisivos
para dissuadir os militares da intervenção na esfera
política de maneira aberta. Huntington focaliza
essencialmente a profissionalização relevando como
um corpo oficial formado de "profissionais" está cioso
de suas prerrogativas, cônscio de sua incompetência na
área política e plenamente disposto a aceitar sua função
de executor das decisões governamentais. E já que a
profissionalização é função de diferenciação, quanto
menor é esta, tanto mais provável é a mistura
entre funções políticas e funções militares è tanto
menor é a justificativa para a obediência dos militares
às autoridades políticas..
A tese de Finer se fundamenta, ao invés, sobre o
conceito de cultura política, entendida no sentido
específico de apego às normas e aos procedimentos do
sistema político e às suas instituições consideradas
dignas de obediência. O nível de cultura política varia
naturalmente de acordo com o ambiente dos grupos
organizados que professam esse apego. Nos sistemas
com cultura política "madura", isto é, naqueles em que
os numerosos grupos organizados manifestam seu
apoio às instituições civis, os militares procuram
exercer sua influência somente nas formas
estabelecidas pela constituição e não excedem a
normal atividade de pressão. Nos sistemas com
cultura política "desenvolvida", isto é, naqueles em que
a legitimidade dos procedimentos para a transferência
do poder ainda não está bem consolidada, as forças
armadas intervêm na esfera política de maneira
limitada e esporádica e os limites à intervenção são
estabelecidos pelas forças sociais organizadas. Nos
sistemas políticos com cultura política "imatura", isto
é, onde os grupos organizados são pequenos e fracos,
ou com cultura política "mínima", isto é, onde o
Governo pode ignorar para todos os efeitos a opinião
pública, a intervenção dos militares é relativamente
mais fácil, mais direta, mais freqüente e mais
duradora.
Segundo Finer, é errado pensar que é a
profissionalização que estimula os militares a
fecharem-se nos quartéis. São outros os fatores que
devem ser considerados, entre os quais, em primeiro
lugar, o grau de aceitação social das normas
constitucionais e do princípio da supremacia do
Governo civil. Os militares, além disso, podem ser
impedidos de intervir pelo medo de que a capacidade
de suas tropas não seja adequada e de que possam
acontecer cisões no seio das forças armadas e pela
preocupação de pôr em perigo o próprio futuro de sua
instituição caso a intervenção venha a fracassar. A
própria profissionalização pode levar os militares a
intervir na vida política, em primeiro lugar porque eles
se consideram servidores do Estado e da Nação mais
do que de um Governo particular; em segundo lugar
porque eles podem chegar a identificar os valores de
sua instituição e de sua força com os fins de proteção e
da segurança da sociedade, enfim porque têm medo de
que mudanças na ordem constituída podem prejudicálos — perda do prestígio social, dos financiamentos —
mas ao mesmo tempo recusara ser usados como
defensores de uma ordem constituída particular.
As teses de Finer e de Huntington só aparentemente
são antagônicas: profissionalização e
MILITARISMO
cultura política servem para pôr em relevo alguns
componentes da adesão dos militares àquelas normas,
da tradição liberal-democrática, de um lado, e do
pensamento marxista, do outro, que subordinam os
militares aos civis. Vale a pena notar, mesmo com
risco de simplificar demais que esta adesão e a relativa
obediência podem ser obtidas somente quando o
Governo é considerado legítimo: são as bases da
legitimidade do Governo, a sua fonte e o seu âmbito,
como também as modalidades das mudanças através
dos tempos que permitem explicar e prever a
intervenção dos militares na política, ficando porém
assente que esta intervenção é, geralmente,
inconcebível sem um violento conflito de interesses
entre os representantes civis dos grupos organizados.
A intervenção dos militares na política é, antes de
tudo, sintoma e efeito da decadência da sociedade
civil e da classe política e, em seguida, causa de uma
ulterior desintegração.
V. REGIMES MILITARES. — Até há coisa de vinte
anos, a intervenção dos militares na política era de
caráter essencialmente cirúrgico. Eles se limitavam a
amputar da esfera política alguns dos seus
participantes, líderes, grupos e partidos malquistos, e a
entregar o poder, após um breve interlúdio militar, a
civis de confiança. Era uma decisão que dependia
sobretudo de duas considerações. Em primeiro lugar,
os militares não acreditavam possuir a competência
necessária para governar por si sós e, em segundo
lugar, tinham consciência de que sua intervenção só
podia ser de algum modo legitimada se fosse claro
que o poder seria rapidamente devolvido aos civis.
Isso significa que os militares contavam com uma
certa legitimação para intervir, mas com nenhuma para
governar propriamente.
A situação mudou, particularmente na América
Latina, e as conseqüências se revelaram
imediatamente. O processo de profissionalização não
só aumentou os conhecimentos dos militares na sua
área específica, como também diversificou as suas
aptidões. A criação de escolas de alta especialização
para os oficiais do Estado-maior formou, nos anos 50,
em alguns países, mormente no Brasil e no Peru, mas
também na Argentina e no Chile, um sólido grupo de
oficiais com uma preparação política, econômica e
sociológica e, em sentido mais amplo, técnica, que não
tinha nada a invejar à preparação alcançada pelos civis
nos centros universitários. A comum experiência da
aprendizagem criou, além disso, em muitos oficiais um
forte sentimento de solidariedade.
Deixando de existir os dois maiores obstáculos ao
exercício direto do poder de Governo, isto é, adquirida
a consciência e segurança da própria
753
capacidade e aptidão e obtida a legitimidade de
amplos setores da classe média, disposta a delegar nos
militares "tecnocratas" a honra e o ônus do Governo, a
intervenção dos militares na política, nas décadas de
60 e 70, máxime na América Latina, perdeu seu
caráter temporâneo e contraditório entre facções
contrapostas. O novo pretorianismo — foi assim que
foi definido — levou à intervenção institucional, ou
seja, das forças armadas como um todo (embora não
faltassem manifestações minoritárias de discrepância)
e à criação de Governos militares, que logo
procuraram transformar-se em regimes. Os casos de
maior sucesso se registram no Brasil (desde 1964) e no
Peru (desde 1968). Não tiveram tanto êxito, sob o
ponto de vista da direção política e da transformação
sócio-econômica, os casos da Argentina (1966-1973 e,
depois, desde 1976), do Uruguai e do Chile (ambos
desde 1973). No entanto, o poder manteve-se nas
mãos dos militares. Não só isso; introduziram-se
reformas e mudanças amiúde irreversíveis.
Conquanto muitas vezes fortemente criticados, os
regimes militares têm tido também os seus apologetas.
Diz-se que eles garantem a estabilidade política, bem
aceita depois das fortes tensões e dos choques que
caracterizaram os regimes civis anteriores. Afirma-se
que geraram o desenvolvimento econômico, reduzindo
com freqüência as altas de inflação endêmica; que se
lançaram a transformações profundas na esfera da
propriedade agrária (como é verdade, aliás, apenas no
caso peruano); que tornaram mais fácil a integração
social. Embora seja um assunto ainda em discussão,
parece, pelos dados de que dispomos (NORDLINGER),
que os êxitos dos regimes militares têm sido bastante
limitados. Seria errado generalizar, baseando-nos só
no caso brasileiro, que tem gozado de estabilidade
política, mas a preço de um elevado grau de repressão,
e de uma inflação contida, só até tempos recentes, à
custa dos salários agrícolas e industriais. Seria de igual
modo errôneo e disparatado avaliar o sucesso dos
peruanos no âmbito da mobilização de uma sociedade
heterogênea, sem levar em conta a involução, talvez
inevitável, que se verificou a partir de meados da
década de 70.
Prescindindo dos outros casos em que os regimes
militares, embora longe de estarem privados do apoio
de amplos setores da classe média e do favor
interessado de grupos multinacionais, fizeram elevado
uso da repressão, continuam principalmente em aberto
os problemas de uma gestão política do Governo que
permita a substituição e favoreça sucessões ordenadas
e a abertura aos interesses de grupos mais vastos. Em
vez disso, a experiência de quase todos os casos de
regimes
754
MITO POLÍTICO
militares (podemos acrescentar aos já citados os do
Gana e da Nigéria) demonstra que eles abafam os
conflitos sem os resolverem, transmitindo-os,
exacerbados, como herança aos civis ou a novos
Governos militares. Estão, por isso, constantemente
sujeitos à instabilidade política que tinham tentado
debelar.
VI. PERSPECTIVAS DE PESQUISA. — A julgar pelas
tentativas de alguns dos regimes militares mais
institucionalizados, o problema que se lhes apresenta
é um problema duplo: democratização da estrutura
política e inserção dos civis. São passos difíceis que
vão sendo dados com lentidão e não sem
contradições. Não é claro se a democratização será
possível sem rupturas e choques com as alas
extremistas das organizações militares. E este é um
dos temas de pesquisa de maior magnitude.
Tampouco é claro se a evolução poderá ocorrer no
sentido de um regime militar-civil, onde compita aos
militares o poder último. Continuando indefinida e
sem solução a amplitude da participação política que
deve ser garantida aos civis, o estádio pretoriano de
muitos sistemas políticos da América Latina e do
Terceiro Mundo há de considerar-se ainda em pleno
desenvolvimento.
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[GIANFRANCO PASQUINO]
Minoria. — V. Decisões Coletivas, Teoria das.
Mito Político.
I. O MITO POLÍTICO ENTRE RACIONALISMO E
IRRACIONALISMO SUA ORIGEM E EVOLUÇÃO
COMO CONCEITO TEÓRICO. — O Mito político
surgiu como conceito no início do século XX; mas
não se fixou numa doutrina largamente aceita.
Existem, pelo contrário, fortes tendências a considerálo um fenômeno anormal e a excluí-lo da lista dos
instrumentos de análise política. Hoje, porém, pode-se
afirmar que o debate sobre o assunto se baseia em
pressupostos errôneos e historicamente superados.
Convém, então, falar de Mito político como de uma
questão intelectual e prática que o pensamento
político não conseguiu determinar e identificar, quer
pela dificuldade de definir suas relações com a
mitologia, quer pela dificuldade de o distinguir do
conceito de "ideologia", quer, enfim, por haver estado
no centro de toda a polêmica entre racionalismo e
irracionalismo.
A sorte da expressão Mito político e sua principal
teorização estão ligadas a Jean Sorel (1847-1922),
que em Réflexions sur la violence (1905-1907) define
a "greve geral proletária" — máximo instrumento de
luta da classe operária — como um mito, ou seja,
como "uma organização
MITO POLÍTICO
de imagens capazes de evocar instintivamente todos os
sentimentos
que
correspondem às diversas
manifestações da guerra iniciada pelo socialismo
contra a sociedade moderna". O Mito político,
portanto, não é para ele um ato do intelecto, analítico
e abstrato, mas um ato da vontade, baseado na
aprendizagem intuitiva — imediata, global e não
analítica — de uma verdade ligada "às mais fortes
tendências de um povo, de um partido, de uma classe"
e, por isso, particularmente apto a sustentar a ação
política de massa. A clara matriz bergsoniana e a
volta, embora remota, à teoria dos mitos de G. B. Vico
mostram como Sorel procura fornecer ao proletariado
um tipo de conhecimento político, intuitivamente
verdadeiro, que lhe explicite, de forma direta,
consciência de classe — a autoconsciência — sem ter
que passar pelo filtro de formas intelectualizadas,
sempre manipuladoras e manipuladas. O ataque de
Sorel é contra a sociedade capitalista, que provoca um
conhecimento distorcido segundo os interesses de
quem detém o poder; mas, entre os detentores do
poder, ele inclui não somente os burgueses mas
também os líderes dos partidos e sindicatos
socialistas, que se deixaram envolver junto com
aqueles na luta pela partilha do poder e que, portanto,
fizeram de tudo para evitar a revolução. O Mito
político da greve geral, evitando toda a forma de ação
e de pensamento organizada de cima, destina-se a
restituir ao proletariado sua autonomia.
Nas formas de um revisionismo marxista muito
pessoal, se revela aqui o sentido de crise e de
desconfiança de muitos intelectuais e políticos
europeus, que viam na sociedade urbanizada e
industrial do fim do século uma realidade em
precipitada e, talvez, incontrolável "decadência". É
dentro deste tema, ligado ao retrocesso do modelo
clássico da sociedade burguesa em face das
transformações que deram origem à sociedade de
massa, que se insere a dialética de onde brota a
problemática do Mito político. As transformações
sociais do período, que pareciam indicar, contra as
expectativas do individualismo progressista de meados
do século, uma involução política e moral
proporcional ao desenvolvimento científico e
econômico, provocaram uma crise no pensamento
democrático-liberal, quer em seu aspecto positivista
quer em sua confiança de poder generalizar para todos
os indivíduos o racionalismo utilitarista em que se
fundava. Esta crise, teórica e prática ao mesmo tempo,
leva, de um lado, à procura de formas de um
conhecimento alternativo em relação ao conhecimento
das ciências físicas e naturais — é o caso do
intuicionismo bergsoniano — e, do outro lado, a uma
atenção crescente pela psicologia social e pelos
755
comportamentos de massa, que põem em evidência os
seus componentes irracionais, ou seja, não são
redutíveis a uma exata determinação causai e
utilitária. O Mito político soreliano, embora nasça
deste contexto, não pretende, porém, representar um
cedimento a tendências irracionais ou espiritualistas,
mas restaurar, através de instrumentos novos e
subtraídos à lógica alienante das instituições
capitalistas, o valor social da ciência e da técnica. A
sua novidade teórica Sorel põe, portanto, limites
bastante claros; mas a oposição ao racionalismo
utilitarista tinha implicações tão explosivas que
suplantava qualquer tentativa de recuperação ou
mediação.
Do ponto de vista intelectual, a reação ao
individualismo e ao racionalismo liberais clássicos
provocou uma fecunda reflexão no campo das ciências
humanas, permitindo superar o mecanicismo
utilitarista e modificar o próprio conceito de
cientificidade pela compreensão do pensamento
simbólico e do agir não lógico e coletivo. Do ponto de
vista político, ao invés, tal reação foi assumida pelos
movimentos
da
direita
européia,
que,
consubstanciando os termos racionalismo e
irracionalismo, reconheciam na idéia de "razão" o
germe de toda a revolução, especialmente da
Revolução Francesa, e, conseqüentemente, o germe
da "decadência" moral e política. A volta a um tipo de
conhecimento extra-racional e intuitivo e a valores
cuja verdade tinha que ser "sentida" e "vivida" e não
demonstrada, serviu-lhes, em resposta à evolução
social acima mencionada, para fundamentar a verdade
epistemológica e psicológica de teorias autoritárias e
nacionalistas normalmente baseadas em hipóteses
organicistas. E nessas teorias que se encontra o Mito
político, quer elas evoquem explicitamente o mito ou
um conhecimento mítico, que sirva também de base e
guia para o comportamento político, quer não o
façam, porque a proposta de uma teoria política
fundada em verdades intuitivas, ou manifestações de
verdades ontológicas simbolicamente expressas, evoca,
embora invertendo os termos, a teoria soreliana. Esta
última, portanto, não é um fenômeno isolado, fruto da
reflexão de um só autor, mas indica uma problemática
fundamental para a política e para o pensamento
político do século XX.
O primeiro exemplo típico de apropriação de temas
"místicos" e "irracionalistas" por parte da direita no
período indicado se encontra no pensamento de
Maurice Barres (1862-1923). Partindo de um
individualismo niilista nutrido na leitura de
Baudelaire, ele chegou ao mais completo
tradicionalismo, baseado no culto da pátria e dos
mortos, do sangue dos mortos que continua correndo
nas veias dos vivos, da cultura, dos
756
MITO POLÍTICO
costumes e das instituições que eles transmitem: uma
herança biológica e intelectual, a única que dá
dimensão, equilíbrio e sentido à vida. O déraciné,
aquele que se subtraiu ou foi subtraído à tradição, se
torna para ele o símbolo do homem sem forma e sem
esperança, infeliz e portador de desordem como
qualquer ser livre não ligado a nenhuma forma de
continuidade com o passado. Barrès não teoriza o
Mito político; mas, ao seu "culto dos mortos e da
pátria", pode ser aplicada a definição soreliana; do
mesmo modo, o seu déraciné corresponde
estruturalmente ao homem alienado de Sorel. Isso
mostra como este último soube captar o surgimento de
uma nova instância teórica vital para o período
histórico em discussão.
A idéia soreliana não teve, de imediato, um
desenvolvimento científico fecundo, porque a
oposição racionalismo-irracionalismo de onde nascia,
em si mesma pouco consistente mas historicamente
densa, ocupou todo o horizonte intelectual e se tornou
o lugar privilegiado da luta e do pensamento políticos.
De um lado, como já dissemos, a direita se
assenhoreou do Mito político, enquanto o
irracionalismo, elevado a credo semi-religioso, vinha
ao encontro dos temores e das reações provocadas
pelas transformações do fim do século nas camadas
sociais mais expostas e um trauma cultural; do outro
lado, ele foi esvaziado de sentido pelos autores e
políticos
conservadores
e
moderados
que,
salvaguardado um universo teórico necessariamente
racional, avaliaram os "desvios irracionais" do agir
prático que lhe eram contrários. É o caso, por
exemplo, de Vilfredo Pareto (1848-1923) para o qual
o Mito político soreliano mostra como os fins
racionais e concretos são normalmente perseguidos
com maior eficácia usando de argumentos fantásticos e
emotivos: tais fins são determinantes para analisar e
avaliar a ação. Estamos aqui em face de um
reducionismo que, se capaz de ser demonstrado como
verdadeiro em cada caso concreto, está ainda ligado ao
universo liberal utilitarista e é inerme e incapaz de
compreender um pensamento e uma prática políticas
fundadas em valores simbólicos e numa relação
intuitiva com eles.
Malvisto pelos moderados, como se fosse um
símbolo da fraqueza humana, e rejeitado pelas
esquerdas, que o consideram uma teoria quimérica e
sutilmente reacionária, dele separando o sindicalismo
anárquico de matriz soreliana, o Mito político do
século XX, como categoria de pensamento e
instrumento de ação, continua ligado especialmente
aos movimentos políticos de direita e a teorias
autoritárias e irracionalistas de grupos e partidos
fascistas e pré-fascistas.
Somente a Action Française, entre estes últimos, e o
seu fundador e líder Charles Maurras (1868-1952),
constituem uma exceção, embora formal, por
tentarem dar vida ao mito tradicionalista da "Deusa
França", baseados no racionalismo clássico e num
utilitarismo quase positivista.
O caso mais macroscópico da teorização do Mito
político no século XX se encontra no nazismo. Alfred
Rosenberg (1893-1946), o teórico oficial da Alemanha
hitleriana, assume, desde o título de sua obra principal,
Der Mythus des 20. Jahrunderts (1930), o termo
"mito" como base explicativa e mola da história,
afirmando logo em seguida que "o mito do século XX
é o mito do sangue que, sob o signo da suástica,
desencadeia a revolução mundial da raça". Esta
proposição impregna uma filosofia racista da história
que encontra em R. Wagner, H.S. Chamberlin e P. de
Lagarde seus inspiradores imediatos. Ela se baseia na
contraposição, de origem romântica, entre Kultur e
civilisation, a primeira produto da união íntima de um
povo e das forças naturais do universo, união que
permite a expressão genuína do Volksgeist, a segunda,
ao invés, produto de um árido racionalismo
mecanicista e individualista que provoca somente
egoísmo e decadência. O Mito político racista é,
portanto, coletivo e extra-racional; além disso, é
profundamente anti-historicista e antievolucionista,
porque o "espírito" de um povo é sempre o mesmo
desde a eternidade, não sujeito a qualquer influxo do
ambiente e intransmissível a outros povos. Porém,
exatamente por causa disto, o mito racista se declara
genuinamente revolucionário — não no sentido
progressista e decadente — enquanto anuncia que a
raça eleita, a ariana, a única pura por natureza e capaz
de produzir Kultur, após um período em que as raças
inferiores tiveram a possibilidade de se desenvolver
provocando a decadência de toda a civilização humana,
retomará o comando da história.
II. O MITO POLÍTICO NO SEGUNDO PÓSGUERRA. — O uso nazista do Mito político provocou
uma dura reação contra esse mito como tal, bem como
contra a "cultura romântica", irracionalista e
misticizante, que seria a sua base. Um dos principais
intérpretes dessa reação foi Ernest Cassirer (18741945) que, no seu último livro escrito durante a
Segunda Guerra Mundial, The myth of the State
(1945), realizou uma das mais completas análises deste
tema. Cassirer não é preconcebidamente contrário ao
mito, ao qual, aliás, dá amplo espaço como forma
genuína do conhecimento na sua teoria das formas
simbólicas. A esta apreciação acrescenta, no entanto,
uma teoria da evolução histórica da humanidade
segundo
MITO POLÍTICO
a qual toda mitologia é prejudicial para a idade
contemporânea. Para ele o mito é a forma típica do
conhecer primitivo; expressa simbolicamente as suas
emoções, ligadas ao "profundo desejo do indivíduo de
libertar-se das cadeias da própria individualidade. . .
de perder a própria identidade"; mas a história mostra,
no seu dever ser, uma tendência para a
individualização psicológica, moral e política do
homem, que torna o mito obsoleto. Esta tendência,
que representaria o triunfo da cultura sobre a
natureza, culmina, segundo Cassirer, no imperativo
ético kantiano e num novo modo de conhecer,
analítico e científico. O mito, portanto, seria genuíno e
profundamente humano, mas não utilizável, na nossa
época histórica. Querer fazê-lo reviver, como tentaram
os românticos e pós-românticos na Alemanha, foi um
erro trágico que, fortalecendo o sentimento de
subordinação a entidades coletivas — raça. Estado —
andou necessariamente unido a todas as tentativas
autoritárias de tirar ao indivíduo sua responsabilidade
moral no campo político e acabou por desembocar na
aberração nazista.
A refutação de Cassirer, duramente provado na sua
fé ética kantiana pelo nazismo e pelo irracionalismo, se
acrescenta a não menos severa condenação marxista.
Gyorgy Lukács (1885-1972), em A destruição da
razão (1953), embora não tratasse diretamente do
Mito político, traça a história de como a filosofia
alemã pôde descer do nível de Hegel e Marx ao de
Rosenberg, considerando o irracionalismo uma
W'eltanschauung, que reflete a irracionalidade da
situação social alemã na sua evolução para o
imperialismo, sem ter passado oportunamente por uma
fase burguesa. Além da exposição histórica, Lukács
pretende
demonstrar
como
uma
ideologia
irracionalista e mitológica é sempre expressão de uma
colocação política irracional, isto é, anti-histórica, por
parte de quem a formula ou a abraça. Por isso, afirma
ele, o irracionalismo moderno atua contra o
materialismo e o método dialético, expressões
filosóficas da evolução racional de qualquer situação de
desenvolvimento. As teorias que definimos como Mito
político recaem necessariamente na definição de
irracionalismo de Lukács, tanto pelo seu conteúdo
filosófico como político. Podemos, portanto, concluir
que para ele o Mito político é sempre expressão de
uma "falsa consciência", mostra o aspecto negativo da
história, isto é, o seu componente dialético negativo,
devendo ser estudado somente neste sentido.
Esta dupla e convergente condenação parecia
destinada a pôr fim a toda a discussão e a repor o
pensamento político nos trilhos de uma
757
dialética interposta entre duas formas de racionalismo,
o liberal e o marxista. Trata-se de uma proposição
reforçada pela ciência política, cujos principais
expoentes procederam, no pós-guerra, a um
esvaziamento completo do Mito político como
instrumento de análise. Isto se efetuou não tanto
condenando sua irracionalidade, considerada como
simples dado e não como valor, quanto reduzindo-o
aos seus efeitos sobre o sistema político, efeitos
quantificáveis e redutíveis a esquemas interpretativos
formalizados. Assim, por exemplo, C. J. Friedrich e Z.
L. Brzezinski (Totalitarian dictatorship and autocracy,
1961) o definiram como uma narração de eventos
passados que dá a estes um significado especial para o
presente e serve para fortalecer a autoridade de quem
detém o poder. Afora a sua natureza restritiva que não
permite considerar os mitos revolucionários, essa
definição focaliza a atitude "prática", reflexo da de um
Vilfredo Pareto, mas filtrada através do engenheirismo
social estadunidense, com que muitos politólogos
acharam poder fazer do Mito político não um conceito
eversor com conotações negativas, mas um fenômeno
racionalizável e controlável.
Por este caminho se tem movimentado também a
sociologia política, interessada em identificar as
conseqüências do Mito político, visto como fenômeno
coletivo e não como teoria, sobre as mudanças sociais
e as modalidades com que elas se apresentam. Mais
facilmente que a ciência política, pôde a sociologia
nutrir um fraco interesse pelo Mito político como
conceito e dedicar-se ao seu estudo como fenômeno: a
ela se deve em boa parte que, no pós-guerra, se tenha
podido continuar a falar de Mito político, sem rígidos
preconceitos éticos e políticos. Isto abriu um amplo
campo à pesquisa, na medida em que foi possível
identificar sociologicamente a presença do Mito
político em todas aquelas situações, especialmente de
rápidas mudanças e crises, em que grupos sociais ou
partidos sintetizam as exigências políticas de seus
membros sob forma de teorias estruturadas em torno
de símbolos e fatos simbólicos ou tentam expressar e
explicar com as mesmas formulações teóricas as
expectativas políticas fundamentais e não organizadas
de uma classe, povo ou nação. A história e a política
contemporânea fornecem numerosos exemplos a
respeito. São típicos os mitos políticos de libertação
nacional que se podem encontrar nos países do
Terceiro Mundo, em que os temas religiosos —
importantes especialmente nas nações islâmicas — se
conjugam com elementos carismáticos, vagas teorias
socialistas, visões de redenção cultural — pense-se na
negritude —, hipóteses eficientistas e tecnocráticas.
758
MITO POLÍTICO
criando conjuntos intelectualmente híbridos, mas
fortemente capazes de motivar, mesmo por longo
tempo, lutas políticas de massa.
Isto serviu para provar a presença do Mito político
até mesmo fora da influência do romantismo e do
decadentismo europeus e para demonstrar que ele não
está ligado somente à oposição racionalismoirracionalismo e à situação histórica que a provocou.
Os estudos históricos contribuíram, por sua vez, para
constatar a amplitude do fenômeno. Mito político por
excelência é, por exemplo, no mundo clássico, o da
"fundação de Roma", analisado, entre outros, por Karl
Galinski (Aeneas, Sicily and Rome, 1969), em torno
do qual se construiu a identidade do povo romano e
que, em suas numerosas reelaborações — inclusão ou
exclusão do mito, grego ou etrusco, de Enéias e sua
relação com o latino de Rômulo e Remo —, serviu
para dar sentido às lutas externas e internas até se
tornar, com Virgílio, núcleo da ideologia imperial.
Após a queda de Roma o mito de sua potência política,
considerada como expressão de uma ordem metafísica,
foi assumido por outros povos e se reencontra no
Sacro Império Romano Germânico, no mito de
Bizâncio "Segunda Roma" e no mito, com
características escatológicas, do Império Russo, em
que Moscou surge como "Terceira Roma". Na Europa
cristã pré-moderna não foram raros os mitos políticoreligiosos radicais, capazes de inspirar a ação das
massas populares, relacionados especialmente com
expectativas e profecias escatológicas milenaristas:
lembrem-se os escritos de Joaquim de Fiore e os
movimentos heréticos da Idade Média (Norman Cohn,
The Pursuit of the Millennium, 1970), ou as seitas,
especialmente anabatistas, da época da Reforma e
Tomás Müntzer. E o elenco poderia continuar, fazendo
referência tanto a mitos políticos de fundo religioso
como leigo, tais como o do "jugo normando", em que
os juristas puritanos ingleses basearam sua luta contra
a "tirania" dos Stuart no século XVII (Christopher
Hill, Puritanism and revolution, 1968), ou o mito da
fundação estadunidense dos "pais peregrinos" e dos
"pais fundadores".
As
pesquisas
sociológicas
e
históricas
reapresentaram, portanto, o Mito político como
realidade a ser analisada e não apenas exorcizada.
Contemporaneamente também a ciência política se
tornou mais atenta aos problemas da linguagem
simbólica e da simbolização, abrindo caminhos a uma
nova reflexão sobre toda a matéria. Dessa forma, se
foi enucleando uma série de problemas, entre os quais
o principal é o da relação entre Mito político e
mitologia geral e entre Mito político, ideologia e
utopia.
Os estudos do pós-guerra, de fato, insistindo
especialmente sobre a "politicidade" do Mito político
e suas conseqüências, isto é, a distribuição do poder,
reduziram sua aplicabilidade somente às sociedades
clássicas e modernas, em que a política é componente
ativo e conscientemente vivido pela sociedade. Isto não
pôde, todavia, fazer esquecer as suas características
míticas, ou seja, que o Mito político provoca uma série
de reações coletivas automáticas e inconscientes,
"irracionais", e que apresenta traços de conteúdo e
estrutura arcaizantes, verdadeiros arquétipos míticos.
Por outro lado, suas manifestações no seio de
sociedades políticas, cada vez mais diferenciadas e
abertas, onde o poder perde seu caráter sagrado para
se tornar expressão imediata de equilíbrios sócioeconômicos e onde, portanto, a luta pelo poder
comporta a manipulação direta e contínua dos vários
componentes da opinião pública, tornou necessário
fixar as relações do Mito político com a utopia e,
especialmente, com a ideologia.
Desta necessidade se tornou intérprete George
Gurvitch (1894-1974). Ele trata da evolução do
conhecimento mítico desde as sociedades primitivas,
pouco diferenciadas, até às modernas, muito
diferenciadas. Nas primeiras, é um conhecimento de
tipo existencial, baseado na participação do grupo na
vida e na ordem do cosmos. A passagem para
sociedades hierárquicas e, em seguida, classistas, mais
prometéicas do que tradicionais em sua estrutura e
finalidades,
provoca,
segundo
Gurvitch,
a
transformação do mito em Weltanschauung e,
sucessivamente, em ideologia. As mitologias
comunitárias se desintegram e seus resíduos entram a
fazer parte, como Mitos políticos e sociais, da
consciência dos vários grupos em luta entre si pelo
poder: uma consciência que reflete, porém, o homem
desintegrado pós-comunitário, secunda sua expectativa
como membro de um grupo e não da comunidade total,
e pode, portanto, transformar-se em falsa consciência,
em ideologia, numa forma de falso conhecimento
ligado a interesses particulares. É nesta situação de
conflito entre mitologias e ideologias diferentes que
surgem as utopias, "um sincretismo entre mito e
história". A utopia, afirma Gurvitch, transcende a
história para julgá-la em nome de arquétipos míticos;
mas fá-lo construindo modelos racionais de
comportamento. Ela é, portanto, uma experimentação
mental, que se baseia nas contribuições míticas, não
uma abstração sem sentido oposta ao mito, como
sustenta Sorel. Pode-se concluir que, em Gurvitch, a
evolução das formas sociais é acompanhada pela
evolução das formas de conhecimento, mas que a
relação entre elas não é rígida nem ligada a uma
escala de valores
MITO POLÍTICO
como em Cassirer. A situação mítica perde a sua
função global na Idade Moderna e, enquanto ligada a
situações sociais específicas, pode ser manipulada; mas
continua como expressão existencial, quer na forma
de genuíno mito político e social, quer transformandose na linguagem racional da utopia.
III. PARA UMA RECUPERAÇÃO DO MITO
POLÍTICO COMO INSTRUMENTO DE ANÁLISE
POLÍTICA: MITO E MITO POLÍTICO. — O
excursus histórico até aqui realizado, embora
incompleto, põe em claro que, se o conceito teórico
de Mito político está historicamente ligado à crise do
racionalismo liberal do século XIX e à discussão entre
racionalismo e irracionalismo, não depende disso,
assim como o fenômeno do Mito político não está
ligado a uma fase da curva de desenvolvimento da
sociedade burguesa. A ligação entre Mito político e
crise do racionalismo é, porém, importante e
significativa, porque prova que o racionalismo, como
sistema global de pensamento e ação, é incapaz de
dar conta da política e mostra os riscos políticos a que
está sujeita uma sociedade baseada numa
autocompreensão racionalista.
A retomada do Mito político por parte das ciências
sociais no segundo pós-guerra não conseguiu remediar
este problema, porque ocorreu ainda num clima de
racionalismo, que não era mais ético e utilitarista, mas
sistemático, através do funcionalismo e do
estruturalismo. Assim se perpetuou até hoje o
reducionismo anteriormente mencionado, e, na
tentativa de identificar a fenomenologia concreta do
Mito político e suas conseqüências no corpo social, se
deixou de lado a possibilidade de estudá-lo como
instrumento heurístico. Hoje que a sociologia e a
psicologia social demonstraram a relevância dos
aspectos simbólicos na criação e na compreensão da
realidade social, que os estudos religiosos e a
antropologia fizeram do mito um tema central no
estudo da "cultura", e que a psicologia do profundo
superou a dicotomia racionalismo-irracionalismo, é
talvez possível repropor o Mito político como
conceito analítico no estudo da política. Isto se pode
fazer, considerando, de um lado, o caráter "político" do
Mito político dentro de uma história das formas e das
transformações da função da consciência mítica,
conforme faz Gurvitch, e baseando-se, do outro, numa
recuperação da identidade entre mito e Mito político, à
luz dos estudos contemporâneos sobre a mitologia.
Na vida política a atividade racional, dirigida para
objetivos concretos, e a atividade simbólica se
sobrepõem continuamente (Murray Edelman, The
symbolic use of polities, 1964), de tal modo
759
que todo ato político é examinado tanto a nível das
conseqüências sobre a dinâmica do poder, como a
nível do significado que ele assume como instrumento
de condensação de esperanças, temores e, em geral,
emoções reprimidas e inconscientes. O Mito político se
situa no âmago desta presença do simbólico em
política, constituindo a sua parte mais organizada, a
que mais incide na dinâmica e nas transformações do
poder. Daí a necessidade e a intimidade de sua ligação
com o mito, que, como vimos em Cassirer e Gurvitch,
representa a forma de mais intensa expressão
simbólica, quer a nível de conhecimento quer a nível
de organização social. De fato, é através da esfera
simbólica que elementos míticos confluem para a
política, fixando-se em pontos e momentos
específicos. A continuidade entre Mito político e mito
é, antes de tudo, formalmente, relevável, enquanto
que o Mito político, como o mito, consiste em
narrações estruturadas simbolicamente e, portanto,
segundo o sentido antes definido, ligadas, não em
forma analítica mas emotiva, a determinadas situações
reais e destinadas a instituir formas privilegiadas de
ação, cuja "verdade" a própria narração mítica
fundamenta. Ela se pode basear, além disso, na
presença no Mito político de verdadeiras fábulas
reduzíveis a arquétipos míticos, como a idade de ouro,
a reconquista do Éden, as fundações realizadas pelos
heróis civilizadores, o livro sagrado, a transformação
ou a mudança dos papéis, etc. Existe, enfim, uma
freqüente relação entre ações políticas e traços rituais,
pelos quais o Mito político se torna de história em
"presença" e "força"; pense-se nas reuniões de massa
e nas relações com o chefe, nas assembléias de massa
e na conquista de uma consciência de classe
revolucionária, no voto e na atualização da
democracia, no juramento e na fidelidade a uma nação
ou a uma causa, etc.
Contrariamente ao que sustenta Cassirer, o Mito
político e os relativos elementos míticos existem de
pleno direito na época moderna, porque conhecimento
mítico e racional coexistem na estrutura psicológica do
homem, mesmo que historicamente uma ou outra
possam alargar ou restringir seu raio de ação. É
verdade, porém, que as modificações históricas são
levadas em consideração, como fez Gurvitch, e que os
modos de ser e as funções do Mito político não são os
mesmos do mito das sociedades primitivas. A
importância da qualificação de "político" na expressão
Mito político não pode ser esquecida. Esta expressão
não indica apenas que o Mito político é, na época
moderna, instrumento de alocação de poder, porque
também os mitos primitivos, regulando a organização
social, regulam
760
MITO POLÍTICO
o poder. Trata-se antes de distinguir entre sociedades
em que o poder está em relação de completa
interdependência com as outras funções e instituições
sociais — relações matrimoniais e familiares, crenças e
ritos religiosos, relações econômicas, técnicas, etc. —
e sociedades em que o poder é pelo menos
parcialmente independente e gerenciável como tal.
Neste segundo caso, cuja origem histórica se faz
normalmente remontar às civilizações clássicas
européias, o poder é uma variante flexível numa
estrutura social cada vez mais aberta, podendo ser
usado para modificá-la total ou parcialmente, ou para
mudar num breve período as pessoas dentro das
funções sem seguir normas tradicionais. A este tipo de
poder, "político", se liga o Mito político, baseando-lhe
os conteúdos e finalidades num relacionamento ainda
não esclarecido mas contínuo e íntimo à análise e à
ação racionalmente orientada para fins concretos; além
disso, ele sustenta o poder político criando ao seu
redor o consenso necessário. Reconhecida a
continuidade entre Mito político e mito, para analisar
como o primeiro se comporta numa situação "política",
é necessário investigar as características do segundo.
Qualidade fundamental do mito é a de ser um
fenômeno de limite e de passagem (Victor W. Turner,
Hyth and symbol, in International encyclopedia of the
social sciences). Os mitos mostram como uma
situação se transformou numa outra: a perda da
imortalidade por parte dos homens, a diferenciação
dos sexos a partir de um ser andrógino original, a
criação do mundo e a invenção de uma determinada
técnica por parte dos deuses ou heróis civilizadores,
etc. Quando o mito, em momentos predeterminados, é
ritualmente atualizado, os participantes são levados,
em conseqüência, a um estado liminar, que é um
estado além do tempo — o tempo originário —, em
que tudo é possível, porque se trata de uma situação
de pura potência. Durante o rito eles se encontram num
limbo em que as estruturas culturais se anulam ou se
simplificam grandemente. Orgias, canibalismo,
matança de animais totêmicos, troca de funções entre
os sexos, igualdade são as suas características, porque
os participantes se encontram num momento criativo e
de reestruturação, não num momento de caos ou
destruição. A narração do mito neste período ritual é
instrução, gnose e verdadeira e autêntica criação, que
leva ao reaparecimento e à aceitação das estruturas
sociais ou dos papéis sociais mudados ou purificados.
O mito é, portanto, uma experiência de crise, que
destrói as estruturas existentes e leva a um estado de
absoluta liberdade, que é, ao mesmo tempo, o estado
original, de onde tudo teve origem, e um estado de
morte,
fundamento de uma volta à vida. A dramaticidade do
mito e a excepcionalidade das situações que ele faz
viver, implicam que ele seja realizado ou proclamado
em momentos especiais também de crise, ligados a
momentos centrais do ciclo vital — puberdade, morte
— ou natural — semeadura, colheita — ou a
catástrofes tais como secas, inundações, invasões.
Além dessa liminaridade, o mito é caracterizado
pela ambigüidade. Ambigüidade de linguagem, cheia
de transposições simbólicas, condensações, incertezas e
obscuridades;
ambigüidades
na
narração,
contraditória, lógica e materialmente impossível;
ambigüidade de situações morais, tanto quanto à
cultura que lhe deu origem como quanto a proibições
e imperativos transculturais. A ambigüidade é, sem
dúvida, própria também da esfera simbólica; não se
pode dizer, porém, que o mito é ambíguo porque é
simbólico, mas que, ao contrário, se serve da
linguagem simbólica —" tão intensa quanto aberta —
porque é fundamentalmente ambíguo. É possível
compreender isto, desde que se identificou o mito na
relação entre ambigüidade e liminaridade, que é o que
se há de colocar em posição privilegiada.
A liminaridade do mito nasce do fato de que ele,
sendo fenômeno que intervém e age em momentos de
crise, dirigindo-a e solucionando-a a partir de um
questionamento global dos institutos culturais, é o
vestíbulo da formação da consciência social e da
criação das estruturas do agir e do pensar. O mito,
portanto, estabelece e delimita um conjunto de
possibilidades — o campo do possível — que é um
dos sentidos da liminaridade; ao mesmo tempo, porém,
demonstra-se ambíguo em seu conteúdo, porque a
ordem que cria ou reconstrói está sempre aberta à
possibilidade de desordem, tanto que exige periódicas
prestações rituais para se manter. Na fixação dos seus
limites, o mito, como mostra a psicologia do profundo
freudiana, não é livre nem está ligado a um cálculo
prático mas é determinado pelo jogo impulsivo do
inconsciente. Sua natureza é, portanto, mais uma vez
liminar — o lugar além do qual não se consegue ver
mais — e ambígua, enquanto a "censura" realiza ali as
suas intervenções destinadas a mascarar a descarga
dos impulsos que os momentos de crise, atenuando as
estruturas existentes, provocam, e a evitar
conseqüências desintegradoras. Liminaridade e
ambigüidade apontam, portanto, o mito como o lugar
e a narração mítica como o produto da interação entre
situações concretas de crise individual e social e
processos psíquicos. As primeiras desencadeiam
conflitos
inconscientes,
são
vivenciadas
e
interpretadas a nível psíquico segundo a dinâmica do
inconsciente sendo reapresentadas à
MITO POLÍTICO
consciência sob forma de narração mítica: prova do
conflito e de seu mascaramento na solução sempre
precária que se lhe dá.
O mito, portanto, pelos seus conteúdos, não pode
ser definido positiva mas só negativamente, se o
delimitarmos do mundo externo através da análise da
narração e das situações que lhe deram origem. E um
vazio inatingível pela consciência; a própria estrutura
da consciência é daí que nasce; podemos identificar o
mecanismo donde ela nasce, não a sua natureza. A
ambigüidade de narração mítica, ligada à repressão
dos impulsos, revela esta situação, que a linguagem
simbólica, dinâmica e aberta, expressa. O mito,
portanto, não é representação de momentos
irracionais ou primitivos do homem, mas
conseqüência de seu modo peculiar de ser e de
enfrentar os problemas cada vez novos que nascem de
seus impulsos constitucionais e das relações entre
estes e o meio-ambiente. Por isto o mito é
inextinguível; a desintegração das sociedades
tradicionais, se bem que tenha trazido consigo a
destruição da mitologia como organização cultural
global, não destruiu os mitos; modificou apenas suas
funções e formas.
IV. UMA RECUPERAÇÃO DO MITO POLÍTICO
COMO INSTRUMENTO DE ANÁLISE POLÍTICA:
MITO POLÍTICO E POLÍTICA. — Os mitos clássicos
e primitivos visavam especialmente manter a validade
das respostas tipificadas e tradicionais às crises
individuais e sociais, que eram assim, por sua vez,
tipificadas e privadas, em grande parte, de sua carga
destrutiva. O processo que levou as culturas clássicas
e modernas a tornar mais flexíveis as finalidades e as
relações entre as várias instituições sociais fez com que
tais culturas se tornassem mais sujeitas a crises
inesperadas
em
todos
os
níveis
e,
contemporaneamente, que elas mesmas se tornassem
promotoras de crises e de transformações estruturais.
Nesta nova situação o mito, em suas várias
manifestações de que o Mito político é apenas uma,
elabora as respostas inconscientes, não mais de toda a
comunidade, mas de segmentos dela, a uma dinâmica
cultural cada vez maior.
O surgimento do Mito político depende do
aparecimento da política como função central da
sociedade e instrumento de mudança social e da
conseqüente formação ao redor dela de fortes
impulsos emotivos. As narrações míticas, produto de
conflitos inconscientes ligados a situações de crise
social — no duplo sentido de mudança
potencialmente favorável ou desfavorável ao grupo
agente — assumem, dessa forma, caráter político, isto
é, evoluem num contexto e usam uma linguagem
política, objetivando a ação
761
política. Sua natureza, porém, é ainda psicológica,
sendo o conteúdo político a via culturalmente aberta
para extravasar o conflito, tal como a religião o era
nas sociedades tradicionais: demonstram-no o
conhecido retomo ao Mito político de arquétipos
míticos e a elaboração, em novos contextos, de
materiais antiqüíssimos, que sempre serviram para a
expressão dos processos inconscientes.
Isto abre o capítulo, ainda por escrever, das relações
e interação entre Mito político e política, sobre os quais
se tentará dar alguma indicação como prova. As
culturas modernas se fundamentam na tentativa que o
pensamento e a ação racionais fazem para estruturar a
sociedade de acordo com as próprias finalidades,
servindo-se de vários instrumentos de que a política é
um dos principais. O surgimento contemporâneo, na
Grécia clássica, da reflexão filosófica e da política é, a
este respeito, extremamente significativo. A ruptura
entre o consciente e o inconsciente, buscada com o
objetivo de uma vida individual e social que se supõe
possa tornar-se integralmente presente a si mesma,
mostra, porém, a própria limitação na permanência do
mito e na sua metamorfose em novas formas entre as
quais a do Mito político, A existência deste último
mostra como o pensamento lógico, na sua expressão
política, volta automaticamente às suas matrizes
inconscientes, com a criação de um produto que
reconstitui uma ponte entre o consciente e o
inconsciente. Isto é, porém, causa de um contínuo e
potencial conflito. Ao Mito político, de fato, não é
permitido, como era permitido ao mito das sociedades
tradicionais, ser matriz de institucionalização, porque
essa função compete ao pensamento e à ação racionais,
especialmente no que diz respeito às estruturas do
poder. Nas culturas modernas assistimos, portanto, a
nível de modelos, a uma contraposição entre política,
que pretende ser dirigida pelo princípio da realidade e
à qual são reservadas as tarefas da elaboração
institucional, e o Mito político, dirigido pelo princípio
do prazer ao qual tais tarefas são subtraídas.
Este conflito, intrínseco ao modelo das culturas
modernas, é aprofundado pela dinâmica cultural. A
política, no seu impulso racionalizador, esquecendo
suas matrizes inconscientes, acaba se tornando
freqüentemente elemento perturbador das estruturas
psíquicas prevalecentes, desencadeando, dessa forma,
conflitos diante dos quais está totalmente desarmada.
Não é, porém, somente o contraste entre processos
conscientes e inconscientes que provoca conflitos, mas
também a continuidade existente entre uns e outros. A
reflexão e a ação política nascem, em muitas
ocasiões, de
762
MOBILIDADE SOCIAL
mitos políticos, dos quais, inadvertidamente, são a
racionalização; coisa em si não negativa, enquanto o
Mito político refletir adequadamente a situação
concreta e depender de processos inconscientes não
neuróticos, mas muito graves, no caso contrário,
especialmente quando a adequação da política ao
princípio da realidade se torna só aparente. Dirigido
pelo princípio do prazer e, portanto, orientado para a
satisfação completa da própria carga de libido ou para
a defesa neurótica dos conflitos não solucionados dos
quais nasce, o Mito político pode impelir o grupo para
posições destrutivas ou autodestrutivas e permitir que
outros grupos, capazes de identificar e explorar os
seus mecanismos psicológicos, o transformem em
instrumento próprio.
A relação entre política e Mito político resulta,
portanto, mesmo à luz de uma análise muito
superficial, extremamente viscosa, mas sumamente
pregne de conseqüências. Com base no que foi dito e
a modo de hipótese, podemos defini-la a três níveis.
No modelo geral das culturas modernas, em que
política e Mito político se contrapõem, como foi
mencionado, tanto que se torna problemático qualquer
equilíbrio. Na realidade psíquica, em que ambos —
diretamente um e indiretamente a outra — nascem de
processos inconscientes e, em conseqüência, trocam
de papel, se interpenetram, se mostram um o
prosseguimento do outro numa série complicadíssima
de disfarces sob o signo da ambigüidade. Na realidade
histórica, em que a crescente flexibilidade e
complexibilidade da dinâmica social os impedem de
ter um significado unívoco: a política como o Mito
político, cada vez mais incapazes de assumir
conotações globais, válidas para toda a sociedade,
embora ambos aspirem a isso.
A política atua sobre o social em relação com o
Mito político, não menos essencial pelo fato de a
política o querer negar ou tornar seu apêndice
instrumental. A continuidade e a natureza dessa
relação torna, em conseqüência, necessário assumir o
Mito político como conceito analítico independente, e
isto não sob o signo de um reducionismo psicológico,
porque no nosso mesmo viver está implícita, como
"ponto de vista", a imprescindibilidade da reflexão
racional consciente e da política, mas para obviar ao
reducionismo racionalista — verdadeira diminutio
para o homem —, que repudiou qualquer contato com
os produtos simbólicos e fantásticos, tachados de
"irracionais". O Mito político tem, portanto, valor
heurístico, restituindo o pensamento político a si
mesmo, fazendo-lhe compreender não a inutilidade de
seus esforços, mas a impossibilidade de desempenhar
sua função, se se isola numa esfera de autonomia
inexistente. A conquista do
princípio da realidade por parte da política depende,
de fato, antes de tudo, de que ela se reconheça
histórica e estruturalmente parte da dialética
consciente-inconsciente, a nível de institucionalização
das relações de poder. Nesta base, o Mito político,
definido como produto do "revelar-se — anuviar-se"
de conflitos inconscientes dos grupos sociais, sob o
impacto de momentos da crise, tem um valor analítico
duradouro, já que permite chegar ao imaginário de
tais grupos e mostrar como se vivem as situações de
crise, que expectativas ou temores criam, que tipos de
relação e de predisposição provocam para o agir
político.
No que se refere à inserção do Mito político a par
da reflexão e da ação, como componente fundamental
do conceito de "política", o aspecto que suscita as
maiores perplexidades é o de tornar necessária uma
lógica do ambíguo e do contraditório oposta à lógica
cientificamente dominante. Trata-se, porém, de uma
conseqüência da qual é impossível escapar e de cuja
aceitação depende a possibilidade de aprofundar o
estudo do Mito político como fenômeno constitutivo e
não anormal da realidade social.
BIBLIOGRAFIA. - R. BARTHES, Miti d'oggi (1957),
Lerici, Milano 1962; "Cahiers Internationaux de
Sociologie",
julho-dezembro
1962,
número
inteiramente dedicado ao Mito político; E. CASSIRER, Il
mito dello Stato (1945). Longanesi. Milano 1950; N.
COHN, I fanatici dell'Apocalisse (1970), Comunità,
Milano 1976; M. DOUGLAS, Saturai symbols. Penguin.
Harmondsworth 1970; M. EDELMAN. The symbolic use
of politics. Illinois U. P., Urbana 1967; C. J. FRIEDRICH
e Z. L BRZEZINSKI, Totalitarian dictatorship and
autocracy, Praeger, New York 1965; K. GALINSKI,
Aeneas, Sicily and Rome, Princeton U. P., Princeton
1969; M. GAROA PELAYO, Miti e simboli politici
(1964), Borla, Torino 1970; M. GODELIER, Rapporti di
produzione, miti, società (1975), Feltrinelli, Milano
1976; CH. HILL, Puritanism and revolution. SeckerWarburg. London 1968; G. SOREL, Considerazioni sulla
violenza (1905-1907), Laterza, Bari 1970; H. TUDOR,
Political myth. Pall Mall, London 1972.
[TIZIANO BONAZZl]
Mobilidade Social.
I. DEFINIÇÃO DO CONCEITO. — Por Mobilidade se
entende a mudança de indivíduos ou grupos de uma
posição social para outra. Pode haver vários tipos de
Mobilidade, segundo os diversos atributos do espaço
social que é possível adotar para definir as posições
sociais e o tipo de movimento
MOBILIDADE SOCIAL
que se dá entre elas. Distingue-se, antes de tudo, a
mobilidade horizontal e a mobilidade vertical. Por
mobilidade horizontal se entende o deslocamento ou
passagem de uma posição social para outra, entre as
quais não é possível estabelecer diferença de níveis.
Pertencem a este tipo, por exemplo, muitas das formas
de mobilidade territorial, conquanto muitas vezes a
mudança de residência possa envolver também um
deslocamento na direção vertical. Quando um
indivíduo muda de confissão religiosa, se inscreve
num partido político diferente daquele a que pertencia
antes, se divorcia para fundar um novo núcleo
familiar, ou troca o posto de trabalho mantendo a
mesma qualificação profissional, encontramo-nos
diante de outros tantos casos de mobilidade horizontal.
A mobilidade vertical indica, ao invés, um
deslocamento entre posições sociais diversas, avaliáveis
em termos de superioridade ou inferioridade. Falar-seá então de mobilidade vertical ascendente ou
descendente, conforme a direção da mudança.
Conforme os atributos que se levam em consideração
ao definir as várias camadas sociais, poderemos ter
uma mobilidade econômica, política ou profissional;
quando as diversas camadas se compõem em função da
combinação destes atributos é que falamos de
Mobilidade social propriamente dita. É importante
salientar que o conceito de mobilidade se refere apenas
a mudanças relativas; quando a remuneração de um
indivíduo sobe por efeito de um geral aumento de
preços que atinge todas as posições, não se poderá
falar de mobilidade.
Quando se considera a mobilidade vertical, é
importante notar se quem muda são indivíduos ou
grupos. Um camponês que emigra para a cidade e é
contratado como operário numa fábrica é um exemplo
de mobilidade individual; uma categoria de
funcionários estatais que obtém o tratamento jurídico e
econômico e a consideração social de uma categoria
até então tida como mais elevada, nos oferece, pelo
contrário, um exemplo de mobilidade de grupo.
II. Os CANAIS DA MOBILIDADE. — A forma de
mobilidade mais freqüentemente estudada é a da
mobilidade profissional. Isto não depende apenas da
maior facilidade de encontrar dados sobre o assunto e
do fato de haverem sido elaborados processos
metodológicos sofisticados para este tipo de estudos,
mas também de que a condição profissional constitui o
melhor indicador em si da posição social de um
indivíduo. Também aqui se distinguem duas formas,
de acordo com o método de estudo empregado. Se se
confronta a profissão de um indivíduo em duas
diferentes
763
fases do seu ciclo de existência, no início da sua
atividade profissional e no momento da aposentadoria,
por exemplo, ter-se-á um caso de mobilidade
intrageracional. Se, em vez disso, se confronta a
profissão de um indivíduo com a profissão do pai na
mesma fase do ciclo de vida, ter-se-á um caso de
mobilidade intergeracional. No primeiro caso poderse-á também falar de carreira, sobretudo se as
mudanças ocorrem dentro da mesma organização e se
nesta estão fixados as etapas e mecanismos para a
passagem de uma posição hierárquica a outra, como
em geral acontece nas organizações complexas, sejam
elas empresas privadas ou burocracias públicas.
Geralmente, porém, quando se diz que numa
sociedade a mobilidade é maior que em outra, nos
referimos à mobilidade intergeracional, ou seja, ao
fato de que nela há um menor número de pessoas que
exercem a mesma profissão ou ofício que o pai. As
condições para a verificação de um elevado índice de
mobilidade dão-se nas sociedades atingidas por um
processo de mudança social, as mais das vezes
resultante da industrialização. As correntes mais
notáveis de mobilização intergeracional são, com
efeito, devidas às transformações que, na curva de
uma geração, ocorrem na estrutura das ocupações. As
transformações que levam ao crescimento da indústria
e do setor terciário e mudam a face do campo
alimentam as correntes migratórias entre o campo e a
cidade, que, por sua vez, provocam o aumento da
mobilidade, isto é, a criação de novas ocupações
urbanas, a formação de novos postos de trabalho e, ao
revés, a diminuição das antigas ocupações, quando
não seu desaparecimento. Se do cálculo da
mobilidade se subtrai o efeito das transformações na
estrutura ocupacional, o resultado obtido constituirá o
índice puro da mobilidade. É claro que, se se elimina o
efeito das transformações que mudam a composição
quantitativa das várias camadas sociais, a uma corrente
de mobilidade ascendente tem de corresponder uma
corrente análoga de mobilidade descendente. Esta
situação se verifica numa sociedade estática. Porém,
nas sociedades modernas, a mobilidade ascendente
supera, em geral, de modo notável, a mobilidade
descendente, devido exatamente ao aumento
quantitativo das posições no vértice e na faixa
intermediária da escala social.
Conhecer o índice de mobilidade, tanto global como
puro, pode ser de utilidade nas análises comparativas,
quando, por exemplo, confrontamos sociedades de
diferente grau de desenvolvimento econômico.
Quando, contudo, se quer conhecer os mecanismos e
canais que sustentam estas correntes de mobilidade, é
necessário levar
764
MOBILIDADE SOCIAL
a análise a um nível mais profundo. O primeiro método
consiste no estudo da origem social dos indivíduos que
compõem um determinado grupo profissional e,
particularmente, os grupos de elite, por exemplo,
médicos, advogados, notários, juizes, deputados
parlamentares, bispos, membros do conselho de
administração de grandes sociedades acionárias e
assim por diante. Poder-se-á então observar que até nas
sociedades mais móveis existem grupos que são
preferentemente recrutados das próprias fileiras; tratase, em geral, de grupos onde a hereditariedade
profissional anda vinculada à transmissão de um
patrimônio, de um estudo profissional, ou então onde
se consolidou a tradição de que os filhos seguissem a
mesma carreira do pai. Podem então comparar-se
entre si os vários grupos profissionais e classificá-los
consoante as maiores ou menores possibilidades que
oferecem ao acesso de indivíduos que, por nascimento,
provêm de grupos diferentes, particularmente de
camadas sociais inferiores. Existem grupos, por
exemplo, o clero, que, por definição, excluem a
transmissão hereditária e que, por conseguinte, têm
constituído historicamente importantes canais de
mobilidade. Uma das conseqüências sociais mais
importantes do celibato dos padres católicos tem sido
a de deixar aberto o acesso às hierarquias superiores a
indivíduos provenientes das camadas sociais mais
humildes. Em certos países, especialmente nos países
subdesenvolvidos do Terceiro Mundo, é análogo o
papel desempenhado pelos militares. Em outros países,
pelo contrário, o uso das armas está rigorosamente
reservado aos pertencentes a uma restrita casta
militar. Com a transformação da estrutura da
propriedade, provocada pelo advento das grandes
sociedades por ações, os mais altos níveis da
hierarquia empresarial se tornaram também acessíveis
a indivíduos que não são proprietários. O
fortalecimento dos partidos operários tem permitido
muitas vezes o exercício de funções de poder a
indivíduos oriundos das classes mais baixas. Existem,
além disso, certos grupos profissionais — é típico o
dos professores do ensino primário — que constituem
freqüentemente um degrau de passagem numa escala
de mobilidade que abrange a curva de várias
gerações. Os professores primários são, com
freqüência, filhos de membros da classe operária, de
camponeses ou de empregados, enquanto que os seus
filhos podem amiúde chegar às profissões de grau
superior. Isto se deve ao fato de que, em geral, os
professores atribuem particular importância à
instrução e, por isso, fazem tudo para que os filhos
possam estudar. Nas sociedades modernas, a instrução
representa, na realidade, um dos canais mais
importantes de mobilidade. Em igualdade
de outras condições, prefere-se confiar cargos de
responsabilidade e prestígio a indivíduos que dispõem
de um título de estudos superiores.
A instrução, no entanto, só funciona como canal de
mobilidade ascendente quando o acesso aos vários
níveis escolares é de algum modo limitado e seletivo,
baseado em algum critério. Numa sociedade que
garantisse a todos os cidadãos a obtenção dos níveis
máximos de escolaridade, sem se modificar ao
mesmo tempo a estrutura das ocupações, a instrução
não serviria mais de canal de mobilidade. O aumento
da escolaridade está, com efeito, ligado, nas
sociedades avançadas, à depreciação do valor social
dos títulos de estudo e, portanto, à diminuição da
importância da escola como canal de mobilidade.
III. CONSEQÜÊNCIAS DA MOBILIDADE SOBRE O
COMPORTAMENTO. — Os estudos realizados em vários
países levaram à conclusão de que a experiência da
mobilidade traz importantes conseqüências para o
comportamento dos indivíduos envolvidos, embora
estas conseqüências variem de país para país. Nos
Estados Unidos, por exemplo, se evidenciou que as
pessoas que passaram da classe operária para a classe
média são politicamente mais conservadoras que as
que pertenciam à classe média desde a nascença. Isto
se explica pelo fato de que aqueles que passam a fazer
parte de um grupo tendem a interpretar os seus valores
e modos de comportamento de forma mais rigorosa
que os que já lhe pertenciam. Nos países europeus,
pelo contrário, parece operar um mecanismo diverso:
os indivíduos móveis, especialmente quando de
origem operária, tendem a levar consigo, pelo menos
em parte, os valores e atitudes da classe de onde
provêm. Mas parece um fato comum em todos os
países que os indivíduos e grupos que sofreram um
declínio na sua posição social tendam, em geral, com
maior probabilidade, para posições e ideologias
extremistas muito freqüentemente de direita. Uma das
interpretações sociológicas mais difundidas do
fascismo mostra, por exemplo, como a base social dos
movimentos eversivos de direita tende, o mais das
vezes, a ser recrutada dos grupos sociais em declínio,
pertencentes à classe média, e, particularmente, dos
pequenos empresários, artesãos e agricultores
independentes que vêem ameaçada a sua posição com
o aumento da importância política da classe operária e
do grande capital.
A experiência da mobilidade traz também
importantes conseqüências para a personalidade dos
indivíduos envolvidos. É fácil que as pessoas móveis e
suas famílias experimentem situações de acentuado
isolamento social. Estarão propensas a descurar as
relações sociais, tanto de natureza
MOBILIZAÇÃO
familiar como de natureza amigável, do ambiente de
origem e encontrarão dificuldade em estabelecer
novas relações com pessoas e famílias do estrato de
que passaram a fazer parte. Isto se refletirá
necessariamente num grande isolamento da família
nuclear, que terá de suportar o custo psicológico de
tal isolamento. Isto explica por que, nestes casos, a
instituição familiar fica mais exposta à desintegração;
na realidade, quanto mais os indivíduos dependerem
emotivamente da família como fonte de gratificação
nas relações interpessoais, tanto mais esta estará
exposta a tensões que lhe ameaçam a integridade. O
mesmo se diga quanto à maior incidência de doenças
mentais, particularmente de neuroses, entre os
indivíduos móveis do que entre os que não fizeram tal
experiência. A mobilidade exige, de fato, dos
indivíduos uma alta capacidade de adaptação a
situações ainda não suficientemente estruturadas,
tanto do ponto de vista cognitivo como emotivo, e isto,
com o tempo, se torna para muitos excessivamente
desgastante. O indivíduo móvel se vê assaltado por
duas necessidades com freqüência dificilmente
conciliáveis entre si: a necessidade de ser esquecido
pelo grupo de proveniência e a necessidade de ser
aceito pelo grupo de destino, isto principalmente se
entre ambos os grupos existe uma diferença social e
cultural notável. O fato de que a estrutura da
personalidade, qualquer que ela seja, apresente sempre
um certo grau de rigidez é talvez um dos fatores que
contribuem em toda a sociedade para manter baixo o
índice de mobilidade.
BIBLIOGRAFIA. - R. BENDIX E. S. M. LIPSET, La mobilità sociale
nella società industriale (1959), Etas Kompass. Milano 1973; V.
CAPECCHI, La misura della mobilità sociale. in AUT. VÁR.,
Questioni di Sociologia. La Scuola, Brescia 1966. vol. II; R.
GIROD, Disuguaglianza-disuguaglianze. Un'analisi della
mobilità sociale (1977), Il Mulino. Bologna 1979; J.
LOPREATO, La mobilità sociale in Italia, in "Rassegna Italiana
di Sociologia'", XV, 1974, n.º 4; M. PACI, Mobilità sociale e
partecipazione política, in "Quaderni di Sociologia". XV. 1966
n.º 3-4; P. SOROKIN. La mobilità sociale (1927), Edizioni di
Comunità. Milano 1965.
[ALESSANDRO CAVALLI]
Mobilização.
Este termo foi usado pela primeira vez na linguagem
militar e indica o processo pelo qual toda a população
de um Estado se prepara para
765
enfrentar uma guerra. Neste caso se fala de
Mobilização geral, total ou de massa. A proclamação
do estado de Mobilização é normalmente usada como
meio de pressão sobre países adversários a fim de
ostentar uma clara vontade de intervir com a força
para solucionar controvérsias pendentes. Mobilização
política, em oposição a participação política, indica o
processo de ativação das massas por parte dos
governantes, ou dos inscritos por parte dos chefes de
uma organização política; isto é, indica uma atividade
de incitamento à ação imposta do alto, em oposição às
atividades espontâneas provenientes da base e que
caracterizam a participação genuína (v. PARTICIPAÇÃO
POLÍTICA). Neste sentido, as organizações políticas
podem mobilizar seus inscritos a fim de aumentar sua
força de pressão sobre o Governo e sobre as outras
organizações, assim como os Estados se servem da
Mobilização geral como instrumento de pressão nas
relações internacionais.
Recentemente o termo Mobilização foi empregado
para descrever um fenômeno social de grandes
conseqüências. Mobilização social significa então um
processo complexo que implica a passagem de um
tipo de comportamento para outro. Este processo é
mais bem conceituado, se concebido em três estádios:
ruptura dos velhos modelos de comportamento,
isolamento e disponibilidade, indução de novos padrões
de comportamento e sua aceitação e interiorização.
Caso faltem na sociedade organizações e formas
processuais capazes de atender às instâncias e
exigências dos grupos mobilizados, verificam-se
períodos mais ou menos prolongados de
comportamento apático e anônimo que pode, enfim,
levar à alienação (v. ALIENAÇÃO).
A Mobilização social envolve um conjunto de
processos nos vários setores do sistema social. Na
esfera social propriamente dita ela significa
Mobilidade social e urbanização; na esfera econômica
significa ampliação da economia de mercado e
industrialização; na esfera cultural significa instrução
universal e sujeição aos meios de comunicação de
massa; na esfera religiosa significa abandono da
superstição e secularização; na esfera política, enfim,
significa sufrágio universal, fim das discriminações
políticas e aumento da participação.
Na sua formulação mais acreditada a Mobilização
social não é um processo unilinear, irreversível ou
sempre positivo. Os esforços da industrialização
podem fracassar; às primeiras tentativas de
participação política pode se seguir a apatia; a
ativação dos grupos lingüísticos, religiosos, étnicos e
culturais pode provocar conflitos e dilacerações no
tecido social. A mudança do
766
MODERNISMO
âmbito de referência e identificação dos indivíduos do
seu grupo primário para o Estado-nação pode se
realizar de uma forma imperfeita e pode dar origem a
tendências centrífugas e a tentativas de secessão.
Todos estes processos e, em particular, os que
implicam tentativas de restrição da participação das
classes inferiores, são definidos como desmobilização.
Apesar da realidade destes perigos, a direção geral do
processo de mobilização social é ascendente, os
indicadores dos vários aspectos são correlatos e, em
certa medida, se reforçam reciprocamente. O ponto
crucial do processo consiste no surgimento de novas
instâncias políticas para satisfazer as exigências
produzidas pela mobilização social, que põem
duramente à prova a capacidade do sistema político.
Novos e mais altos níveis de mobilização social podem
ser atingidos só se o sistema político tiver a
capacidade de satisfazer as exigências que ela cria de
vez em quando.
[GIANFRANCO PASQUINO]
Modernismo.
Este neologismo surge aqui e ali por meados do
século XIX, para indicar muito vagamente uma
corrente de estilos e conteúdos poéticos novos. No
alvorecer do presente século, na Itália, ele passa, por
analogia, do campo literário para o religioso. É usado
inicialmente com ironia pelos católicos tradicionalistas,
em luta polêmica contra os simpatizantes e promotores
do movimento cultural inovador que assentava
principalmente no evolucionismo em todos os setores e
provocou o interesse crítico de todas as igrejas
históricas, a começar pela cristã e particularmente pela
católica. Com este significado reformista-religioso, o
termo entrou no léxico usual europeu para aí ficar
definitivamente. Por isso, quem hoje diz Modernismo
reevoca um movimento, de idéias substancialmente
crítico-religiosas, muito complexo e variado em suas
múltiplas expressões, que, no início do século XX, na
área ocidental, tentou arrancar a formulação da fé
revelada de um quadro metafísico absolutizante, para
inseri-la no processo real da história e da cultura, em
constante mudança. O Modernismo representou, em
termos mais simples, um esforço por harmonizar a fé
com o progresso científico, esforço que se apresentaria
de novo na transição de uma época a outra.
Foi assim que seus propulsores julgaram interpretar
(naquele dado período, que corresponde
também, entre outras coisas, ao surgimento das
vanguardas artísticas e de novas descobertas
científicas) as exigências da consciência religiosa
moderna, perante as enormes mudanças políticas,
antropológicas e sociológicas que ocorreram sob o
impulso das grandes transformações estruturais e
técnicas operadas na Europa. Neles agia, no âmbito de
uma crise de valores que se mantinham ligados a uma
economia agropastoril e de subsistência em declínio,
uma ânsia fundamentalmente apologética do
cristianismo, tendente a sintonizar as expressões
teológicas e histórico-críticas da Igreja oficial com "o
espírito do tempo", ou seja, com as instâncias e
resultados do progresso científico e filosófico, em toda
a parte ligado com os novos modos de produção
industrial.
Seus escritos, pelo menos na maior parte dos casos,
não punham em discussão o núcleo germinal do
cristianismo, mas o revestimento ideológico e as
inevitáveis excrescências que os numerosos séculos
não lhe puderam poupar. Na prática, depois, a ação
seletiva dos detritos da substância não conseguia
muitas vezes, por variados motivos, atingir seu intento
sem dificuldade e sem dor, o que provocou não
poucas crises pessoais.
A autoridade eclesiástica romana, partindo de
premissas bem diferentes, ligadas a uma concepção
fixista e dogmatizante, não tardou em opor-se com
extraordinária dureza ao movimento, mal este surgiu,
reconhecendo nele "a síntese de todas as heresias".
Pio X, em agosto de 1907, com a encíclica Pascendi
dominici gregis, que tentava fazer do modernismo uma
síntese unitária, mas um tanto deformada na opinião
não só dos interessados, condenou toda a manifestação
modernista. Seguia-se-lhe uma série de sanções e de
disposições disciplinares contra os inovadores,
verdadeiros ou supostos, abrindo entre as cúrias
diocesanas uma espécie de disputa nada nobre na
chamada caça às bruxas, uma disputa que havia de
durar praticamente até ao pontificado de Bento XV.
Histórica e corretamente falando, o movimento
modernista não pode ser reduzido a um bloco
doutrinai compacto e homogêneo, apresentando-se
antes como um estado de espírito marcado por
aspirações comuns, mas de valências diversas, não só
nos diferentes contextos ambientais e sociais, como
também no âmbito da mesma confissão religiosa e até
da mesma região. Assim, com a abordagem das
sínteses gerais, nos Estados Unidos da América
(Hecker, Gibbons, Ireland, Keane, O'Connel,
Spalding, Perié), este movimento se colore de
pragmatismo naturalista por um cristianismo de
concorrência; na Alemanha (Harnack, Schell, Kraus,
Ehrhard, Sickenberger, Muth,
MODERNISMO
Engert, Rudolphi), de crítica histórica e bíblica em
sentido liberal; na França (Loisy, Houtin, Auguste
Sabatier, Laberthonnière, Duchesne, Le Roy,
Bergson), de voluntarismo filosófico e psicológicoreligioso; na Inglaterra (Newman, Tyrrell, Petre, Von
Hügel, Lilley, Bishop, Collins, Hummersley), de
antiintelectualismo imanentista; na Itália (Buonaiuti,
Minocchi, Murri, Fogazzaro, Graf, Fracassini,
Genocchi, Gambaro, Semeria, Vannutelli), de forte
ânsia pastoral-apologética, não isenta muitas vezes de
apelos evangélicos.
Analogicamente, não convencem de todo as
categorias escolásticas, introduzidas pela encíclica
papal e depois assumidas por certa ensaística, que
atribuem distinções específicas aos vários setores
visados pela crítica (modernismo bíblico, filosófico,
político, social, literário, etc).
A distinção mais lógica, que se funda em algumas
constantes e abrange as múltiplas expressões do
modernismo nos diversos campos, é, antes de tudo, a
distinção entre modernismo moderado e modernismo
radical. O primeiro compreende a corrente reformista
que salva a transcendência conforme a formulação do
magistério eclesiástico, restringindo-se a um trabalho
de correção e atualização técnico-científica para o
"rejuvenescimento" formal do patrimônio doutrinai da
Igreja institucional; o segundo, pelo contrário,
desenvolve em profundidade as premissas éticoculturais do sentimento religioso, prescindindo das
categorias transcendentalistas e reveladas, para uma
mediação antropológica não dualista que se resolva na
experiência subjetiva e no sentimento de fé.
Daí, sempre no plano da interpretação, deriva ainda
outra distinção entre o movimento modernista em
geral
e
o
liberal-catolicismo,
demasiado
freqüentemente confundidos, por causa de uma certa
identidade verbal nas denúncias (clericalismo, poder
temporal) e de certa convergência nos juízos acerca da
política eclesiástica (Estado-Igreja, autonomia da
ciência). Mas, por trás destas ambíguas e ligeiras
consonâncias, existe, bem considerados todos os
aspectos, uma fundamental discordância. Ambos os
movimentos partem, com efeito, de uma concepção
eclesiológica diametralmente oposta, para não
falarmos de outras coisas. O liberal-catolicismo, que
tem preocupações predominantemente políticas,
concebe a Igreja como uma sociedade completa e
juridicamente perfeita, em contraste com o
modernismo que, ao invés, tendo preocupações pré ou
metapolíticas, a considera uma realidade espiritual,
progressivamente realizada no tempo. O primeiro
entende a questão crítico-exegética como uma
atualização técnica da "ortodoxia" tradicional,
enquanto o segundo
767
faz dela a base de uma nova fundamentação da fé, não
necessariamente coincidente com as formulações da
teologia oficial. Em resumo, se os liberal-católicos se
revelam mais preocupados pelas relações entre
liberdade e autoridade, bem como pela salvaguarda
objetiva do fato cristão, por outro lado, não percebem
ou até rejeitam toda problemática que atente contra o
patrimônio doutrinai da Igreja institucional,
mostrando assim uma clara falta de ajustamento entre
o tipo de reformismo auspiciado e a análise histórica
de onde o fazem nascer. Quando muito, poder-se-ia
afirmar que o liberal-catolicismo possui um sentir que
o avizinha um pouco do Modernismo moderado, mas
não certamente do Modernismo radical, o verdadeiro
Modernismo. O exemplo mais palpável o oferece o
bispo Bonomelli.
Em geral, a historiografia italiana, tanto a de
inspiração católica como a de inspiração laica, se bem
que por razões diferentes, não tem mostrado, até há
bem pouco, muito interesse pela controvérsia
modernista e por tudo aquilo que lhe é subjacente:
uma, por repugnância em indagar sobre uma fase sem
dúvida repressiva por parte da autoridade eclesiástica,
outra, por um preconceito idealista. Ambas, porém,
tudo ponderado, tendem a considerar o movimento
como um fato intrínseco à instituição eclesiástica,
sem qualquer relação dialética com as transformações
da sociedade civil, isto é, como um fato que extrapola
os contextos reais e políticos. O único que, em tempos
nada suspeitos,* conseguiu ver nele um certo ligame
foi Gramscí, que não deixou de assinalar na crise
modernista uma série de conexões interagentes entre a
sociedade civil e a sociedade religiosa.
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768
MODERNIZAÇÃO
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catholic modernists. University Press. Cambridge
1970.
controlar sua evolução, dirigindo-a para os fins
desejados.
II. MODERNIZAÇÃO POLÍTICA. — Toda a definição
de Modernização política há de ser tal que permita
[LORENZO BEDESCHI] captar o processo no seu desenvolvimento dinâmico,
sem assumir como modelo formas políticas existentes;
deve também permitir enuclear as características de
modernidade, tanto as relativas aos cidadãos como as
Modernização.
relativas ao sistema político, e evitar a confusão entre
modernidade e democraticidade. A definição até hoje
I. DEFINIÇÃO. — Entende-se por Modernização mais satisfatória e que mais atende a estes requisitos
aquele conjunto de mudanças operadas nas esferas acentua três características principais: a igualdade, a
política, econômica e social que têm caracterizado os capacidade e a diferenciação.
dois últimos séculos. Praticamente, a data do início do
Existe, portanto, Modernização política quanto à
processo de Modernização poderia ser colocada na população de uma comunidade política em seu
Revolução Francesa de 1789 e na quase conjunto, quando se verifica a transição de uma
contemporânea Revolução Industrial inglesa que condição generalizada de súditos para um número
provocaram uma série de mudanças de grande crescente de cidadãos unidos entre si por vínculos de
alcance, nomeadamente na esfera política e econômica, colaboração, passagem que é acompanhada pela
mudanças que estão intimamente inter-relacionadas. expansão do direito de voto e da participação política,
Naturalmente, o fermento dessas duas grandes por uma maior sensibilidade e adesão aos princípios
transformações há de ser buscado nas condições e nos de igualdade, e por uma mais ampla aceitação do valor
processos que vinham se desenvolvendo havia das leis erga omnes. Existe Modernização política
algumas décadas e que culminaram nas duas quanto ao desempenho do Governo e do sistema na
revoluções. Estes processos de transformações sua globalidade, quando se verifica um aumento da
profundas e freqüentemente rápidas tiveram capacidade das autoridades em dirigir os negócios
repercussões imediatas no sistema internacional e públicos, em controlar as tensões sociais e em
foram exportadas pelos europeus para toda a parte, enfrentar as exigências dos membros do sistema.
mesmo que só vingassem lenta e parcialmente. É essa Quanto à organização da esfera política há
a razão por que o processo global foi designado com Modernização, quando se verifica uma maior
o nome de europeização, ocidentalização ou, enfim, diferenciação estrutural, uma maior especificidade
com o termo mais abrangente e menos etnocêntrico de funcional e uma maior integração de todas as
Modernização.
instituições e organizações que fazem parte da esfera
Além disso, com o passar do tempo, se tomou política (Pye e Verba, 1965, 13). Esta definição que
consciência de que a Modernização não é apenas o examina a Modernização política a três níveis — a
processo de difusão de instituições, valores e técnicas nível da população, à nível do sistema político e a nível
européias, mas é um processo aberto e contínuo de dos subsistemas, particularmente do subsistema
interação entre as várias instituições, culturas e governamental — é bastante eficaz, porque não exige
técnicas. Este processo envolve todas as esferas do somente um crescimento indefinido e inevitável no
sistema social de forma freqüentemente conjunta, se âmbito das três dimensões, mas permite detectar
desenvolve segundo modelos alternativos que analiticamente incrementos numa dimensão e declínio
apresentam características semelhantes e peculiares, noutras, além da incompatibilidade entre tipos
modelos que permitem, porém, identificar, no diferentes de incrementos simultâneos. Trata-se, enfim,
transcorrer da história, sistemas políticos, econômicos de uma definição estimuladora, porque aberta, não
e sociais mais ou menos modernos do que outros, com unilinear, multidimensional.
base em categorias comparadas. O aspecto mais
interessante do processo de Modernização se relaciona
III. ESTÁDIOS E CRISES DA MODERNIZAÇÃO. — No
exatamente com o surgimento de formas políticas, estudo da Modernização recorreu-se a uma
econômicas e sociais distintas e diferenciadas. O conceituação de uso bastante comum e consolidado
estudo da Modernização pretende fornecer uma nas ciências sociais, recentemente reapresentada com
resposta aos questionamentos relacionados com os vigor em economia, que interpreta a evolução
fatores que dão origem à extraordinária variedade de histórica segundo uma seqüência, mais ou menos
formas políticas, sociais e econômicas e elaborar rígida, de estádios. Após uma cuidadosa
instrumentos que permitam influir no desenrolar do
processo de Modernização e
MODERNIZAÇÃO
análise da história dos sistemas políticos ocidentais,
alguns autores identificaram certos desafios
fundamentais ou crises sistêmicas que, embora de
modalidades e cursos diversos, todos os sistemas
tinham aparentemente que enfrentar. Estas crises,
sobre cujo número e sobre cujo melhor
desenvolvimento não existe ainda um acordo completo,
podem ser definidas e classificadas, segundo a
tendência mais comum entre os autores como: crises
de penetração, crises de integração, crises de
identidade, crises de legitimidade, crises de
participação e crises de distribuição. As crises de
penetração e de integração se referem ao processo pelo
qual surge um Estado mais ou menos centralizador. Este
Estado procura expandir e reforçar a sua autoridade,
penetrando nos vários setores da sociedade, exigindo e
conseguindo para com o poder central a obediência
anteriormente devida aos centros do poder local. As
crises de penetração e de integração são dois desafios
que poderíamos considerar de caráter estrutural, para
os quais as respostas das autoridades centrais tendem a
ser essencialmente estruturais. As autoridades centrais
procurarão constituir uma burocracia estatal; recrutar
um exército de provada lealdade e, especialmente, um
corpo de polícia; unificar mercados e moedas e
construir infra-estruturas viárias que facilitem as
comunicações entre o centro e as periferias. As crises
de identidade e de legitimidade se referem ao processo
pelo qual os cidadãos chegam a obedecer às leis
emanadas do Estado, a aceitá-las como justas e
obrigatórias e a sentir-se parte da comunidade política.
Estas duas crises dizem respeito, portanto, de um lado,
e numa dimensão vertical, às relações dos cidadãos
com as autoridades e, do outro lado, e numa dimensão
horizontal, às relações entre os vários grupos sociais,
econômicos, religiosos, étnicos e regionais. Foi através
da solução destas duas crises que se chegou
normalmente à formação do Estado-Nação. As crises
de identidade e de legitimidade são desafios de caráter
essencialmente cultural, para os quais as respostas das
autoridades funcionalmente positivas tendem a ser de
caráter cultural. A solução das crises de identidade
será favorecida por uma política que vise à proteção
dos direitos das minorias, pela igualdade no
tratamento dos vários grupos (especialmente no que
diz respeito ao recrutamento político) e por uma
contínua produção de símbolos de caráter nacional. A
solução da crise de legitimidade comportará a criação
de mecanismos e dispositivos constitucionais
adequados à representação dos vários grupos, mas
concernentes sobretudo à consecução de um acordo
fundamental sobre a natureza do Governo legítimo e
sobre suas responsabilidades e
769
atribuições na superação das rupturas entre o centro e
a periferia, entre Estado e Igreja, entre cidade e
campo, entre indústria e agricultura. Mas, acima
desses mecanismos, muitos autores frisam que aquilo
que mais conta nesta fase é o estilo e o ethos do
Governo.
A crise de participação se verifica quando se
amplia o âmbito dos indivíduos ou dos grupos que
intentam participar das opções políticas. As exigências
de participação acontecem normalmente junto com
importantes mudanças nos setores econômico e social,
que geram novas necessidades. As respostas das
autoridades a estas exigências podem consistir na
concessão do direito de voto, de reunião, de
associação, de liberdade de imprensa, na abolição do
voto público e na instauração do princípio "um
homem-um voto", na extensão do sufrágio a toda a
comunidade, com exclusões baseadas somente no
requisito da idade, e, enfim, na legitimação completa
da oposição, incluindo até o seu acesso ao Governo.
No processo de solução da crise de participação
aparecem as primeiras organizações políticas
permanentes como os partidos políticos e, em seguida,
os grupos de interesse. A crise de distribuição, enfim,
diz respeito às modalidades de uso dos poderes
governamentais para efetuar transferência de riqueza
entre os cidadãos e para distribuir bens, serviços,
valores e oportunidades. As soluções possíveis desta
crise são todas as intervenções que visam tornar
operante e efetivo o princípio da igualdade de
oportunidades, e, portanto, de modo especial, a
instituição de um sistema escolar universal e gratuito,
a criação de um sistema assistencial de saúde e
aposentadoria generalizado, a instauração de um
sistema de tributação progressiva e qualquer outra
medida de eqüidistribuição da renda nacional.
Estas crises representam os desafios; foi
respondendo a eles que os sistemas políticos ocidentais
se modernizaram; as respostas aqui delineadas
constituem apenas algumas das respostas possíveis.
De fato, de um lado, não se pode esquecer que as
respostas a cada uma das crises são condicionadas pela
ordem anterior do sistema, sendo a base de ulteriores
condicionamentos para as respostas às crises
vindouras. De outro lado, a capacidade inovadora do
homo politicus é grande e, portanto, não se podem
excluir a priori respostas originais por parte dos
sistemas que ainda não resolveram suas crises, nem
inovações surpreendentes nas respostas aos desafios,
certamente exigidas numa época que terá de enfrentar
os problemas da possibilidade do suicídio atômico
coletivo, da corrida à conquista dos espaços, da
superpopulação e do empobrecimento do Terceiro
Mundo.
770
MODERNIZAÇÃO
De modo particular, quatro fatores influenciam e
têm historicamente influenciado o curso da
Modernização política. Em primeiro lugar, o tipo de
estruturas e de cultura política tradicionais; em
segundo lugar, o momento histórico em que teve
início o processo de Modernização; em terceiro lugar,
as características da liderança modernizadora; enfim, a
seqüência em que se apresentaram as várias crises.
Ainda não é possível apresentar generalizações
empíricas solidamente documentadas acerca dos tipos
de estruturas e de cultura política tradicionais que
teriam melhores condições de assimilar e gerar
mudanças políticas. Em geral, o que mais se acentua
são as características da legitimidade, da autonomia e
da eficiência das instituições políticas, e a
flexibilidade e capacidade imitativa da cultura
tradicional.
A Modernização política é um processo que
implica a transferência do poder de uns grupos para
outros e o uso do poder na introdução de inovações
nos diversos setores da sociedade. Alguns autores têm
frisado que existe uma certa tensão entre duas
exigências opostas mas também necessárias da
Modernização política. Essa tensão se verifica entre a
centralização do poder nas autoridades centrais e a
difusão das inovações na sociedade. Temos assim, de
um lado, sistemas políticos com uma forte autoridade
central, capazes de impor as mudanças necessárias,
conquanto também de as obstaculizar e de a elas se
opor tenazmente, mas que não são aptos a encorajar a
criação de inovações entre os membros do sistema; de
outro, sistemas políticos descentralizados, com
autoridades menos fortes, onde a capacidade,
inovadora pode prosperar, mas onde a aceitação e
difusão das inovações pelos vários setores da
sociedade é difícil, desigual e lenta.
O período em que a Modernização política
começou é de relativa importância, especialmente
porque deu grande vantagem aos seus iniciadores,
permitindo-lhes definir e resolver os primeiros
problemas, freqüentemente de crucial interesse, com o
mínimo de pressões externas e em conformidade com
as suas tradições, sem necessidade de obedecer à
imposição forçada de modelos elaborados e
experimentados alhures e sem a ânsia da concorrência.
O período do início da Modernização política foi de
notável importância não só para a estrutura da
sociedade tradicional, como também para as diversas
classes sociais e para a escolha de diversos tipos de
organização política estadual. Eis o que se tem
observado; nos países que, como a Inglaterra, França
e Estados Unidos, se modernizaram prematuramente,
de qualquer modo por meados do século XIX, e em
que o processo de transferência do poder político dos
proprietários fundiários para os empresários
industriais se deu sem abalos, se optou pelo caminho
da democracia burguesa; países, como a Alemanha, o
Japão e a Itália, em que a Modernização começou no
fim do século XIX sob pressões externas e foi levada
adiante por uma difícil aliança entre elites agrícolas,
burocráticas e industriais, com a exclusão das massas
da participação política, enveredaram pelas vias do
fascismo; países, enfim, como a União Soviética e a
China, em que a Modernização teve início somente no
século XX e precisou da mobilização das massas
camponesas contra os proprietários fundiários e as
classes parasitárias urbanas, abrínram o caminho das
revoluções comunistas (Moore, 1969).
Este assunto leva inevitavelmente ao estudo das
características das lideranças modernizadoras,
características que constituem uma variável importante
na explicação do processo de formação de certos tipos
de Governo, não de todos. Tipicamente, nos primeiros
países a se modernizarem e, em geral, na Europa
ocidental, o papel de guia foi desempenhado, embora
de modos diferentes em cada país, pela burguesia, isto
é, por uma nascente classe comercial e empresarial,
em luta, de um lado, contra a aristocracia latifundiária
e, de outro, contra os camponeses e o primeiro
proletariado urbano e industrial. Os intelectuais, como
tais, não tiveram um lugar privilegiado neste processo,
cujo impulso vinha do setor industrial. Boa parte do
processo de Modernização política da Europa
ocidental poderia até ser vista pela lente conceptual da
luta da burguesia contra outros grupos sociais com o
fim de obter o predomínio econômico e o controle dos
meios do poder político. Não é, portanto, exagerado
afirmar que houve uma fase deste processo em que o
Estado constituía apenas o comitê executivo dos
interesses da burguesia.
É neste período e em decorrência da luta
desencadeada pela burguesia que se verificam ou se
agravam algumas rupturas no seio do sistema social.
Uma tese influente e amplamente documentada faz
remontar às discordâncias entre grupos sociais
organizados a existência de quatro fissuras, ressaltando
a incidência destas na institucionalização das
estruturas políticas, no seu funcionamento, na
expressão do conflito e na expressão do dissenso.
Duas destas fissuras são conseqüência direta da
revolução nacional e dizem respeito aos conflitos e às
relações entre a cultura e as exigências do "centro" e
entre a cultura e as reações de "periferia" — seja qual
for o sentido em que se defina "periferia", tendo por
base tanto as características étnicas, econômicas,
religiosas e lingüísticas como geográficas — e ao
conflito entre as tendências centralizadoras do
MODERNIZAÇÃO
Estado e a tentativa de preservação dos privilégios
corporativistas por parte da Igreja. As outras duas são
produto da Revolução Industrial e se referem ao
conflito entre os interesses dos grandes proprietários
fundiários e os interesses dos empresários, e ao
conflito entre os proprietários e fornecedores de
trabalho, de um lado, e os assalariados e oferecedores
de mão-de-obra, do outro. O modo como estes
conflitos são mediados e solucionados ou as fraturas
sociais são recompostas, o modo como os conflitos se
acumulam e sobrepõem ou as fraturas se agravam, se
transformam em sistemas partidários que diferem
substancialmente quer quanto ao papel desempenhado
pela maioria, quer quanto à atividade e à legitimação
da oposição.
Ainda através da lente conceptual da história da
burguesia, a Modernização de tipo fascista pode ser
vista como o tipo de Modernização que se verifica
nos países onde a classe burguesa não dispõe de força
suficiente para derrotar as elites agrárias tradicionais e
tem de aliar-se a elas, aos burocratas e aos militares,
para fazer prevalecer os próprios interesses. O
elemento marcante deste tipo de Modernização é que
ou se realiza do alto por obra de indivíduos unidos
por um forte senso de sua missão e imbuídos por
sentimentos de autoritarismo e de desprezo das massas,
ou acaba por provocar um longo período de estagnação
política, porque o conflito entre elites agrárias e elites
industriais se resolve num compromisso prejudicial à
população, usada como massa de manobra por ambos
os grupos, mas substancialmente excluída da
participação dos benefícios, embora mínimos,
produzidos por este fraco ritmo de mobilização de
recursos do país. Neste sistema, ou os intelectuais se
conformam em desempenhar a tarefa de legitimar
ideologicamente o regime, ou são simplesmente
marginalizados. Com o sucesso das revoluções
comunistas do século XX — a russa realizada
predominantemente por uma união de intelectuais e
operários da indústria, e a chinesa por intelectuais e
camponeses — os intelectuais conquistam um papel
dominante no processo de Modernização de seus
países, embora com êxitos e fracassos, por entre
humilhações e perseguições periódicas.
Hoje o debate sobre a classe ou o grupo que deve
desempenhar as funções de lideranças nos países do
Terceiro Mundo se concentra na possibilidade ou não
de que ocorra o advento de uma classe média com
forte espírito empresarial e impregnada de
nacionalismo e populismo, que proceda, de um lado, à
emancipação do país da dependência do capitalismo
internacional e, do outro, saiba apelar para as massas
operárias e camponesas, prometendo-lhes e realizando
um
771
melhoramento substancial em suas condições de vida.
Esta tese, vigorosamente contestada por muitos no
plano da cultura da nova classe média e com base
numa análise estrutural da sociedade em que ela atua,
é contrabalançada pela tese que considera as
revoluções camponesas, levadas a efeito mediante
uma longa guerrilha, onde se temperam as energias e
se formam os quadros dirigentes, a única via ainda
aberta para a Modernização política econômica e
social dos países do Terceiro Mundo. Além disso, pelo
menos a julgar pela recente experiência da revolução
cubana, parece que os intelectuais estão também
destinados a assumir funções diretivas nas auspiciadas
revoluções camponesas do fim do século XX.
Uma das vantagens dos primeiros países a se
modernizarem foi a oportunidade que se lhes oferecia
de poderem, em certo sentido, adiar as diversas crises
e, especialmente, enfrentá-las numa seqüência não
destrutiva. Convém frisar, a este respeito, a
importância da emigração como válvula de segurança
de alguns regimes, particularmente da Inglaterra, nos
séculos XVIII e XIX; com a emigração, não somente
se eliminava um certo surplus da população, mas se
afastavam os dissidentes políticos, tornando mais
homogênea a comunidade política e desativando
alguns conflitos sócio-políticos de grande vulto. Hoje,
ao invés, a emigração atua numa direção bem
diferente e, sobretudo devido ao desnível de renda e
de oportunidades, se resolve numa drenagem dos
recursos intelectuais dos países do Terceiro Mundo
para os países ocidentais. O chamado braindrain não
só enriquece os países já mais avançados no setor da
pesquisa científica, criando um novo círculo vicioso
ao tornar ainda mais aliciantes as comunidades
científicas dos países "maduros", essencialmente os
Estados Unidos, mas empobrece, além disso, os países
que mais precisariam de técnicos e de pesquisadores
qualificados. Às vezes, porém, a fuga das camadas de
técnicos e profissionais pode ser influenciada pelas
próprias opções políticas dos líderes dos países do
Terceiro Mundo, mas o aliciamento destes
profissionais é, sem dúvida, uma forma sutil de
manifestação do imperialismo. A conseqüência política
relevante desta drenagem das energias intelectuais é
que aos países do Terceiro Mundo vem a faltar aquela
camada de indivíduos que, historicamente, têm sido os
mais interessados na instauração de formas de
organização política e econômica comumente
definidas como modernas.
No que diz respeito mais especificamente às crises,
o problema central está na sua acumulação, nos modos
como se apresentam, são enfrentadas e solucionadas.
Sobretudo a acumulação das crises
772
MODERNIZAÇÃO
de identidade, legitimidade, participação e
distribuição, cria situações muito complicadas. Se, de
fato, a ampliação da participação política, entendida
essencialmente como sufrágio universal, é exigida e
concedida em sistemas políticos em que ainda não foi
definido quem faz parte da comunidade política e
quem está excluído, nem quais são os procedimentos
aceitos para a solução das crises, as conseqüências
prováveis são, de um lado, tendências separatistas dos
grupos que se consideram prejudicados, de outro,
mudanças contínuas e bruscas nos dispositivos
constitucionais. Se, depois, a crise de distribuição se
apresenta antes que se tenha verificado um
desenvolvimento econômico bastante consistente, o
atendimento prematuro às exigências de distribuição
provocará graves desequilíbrios na formação dos
investimentos e, conseqüentemente, nas sucessivas
possibilidades
de
produzir
desenvolvimento
econômico e de distribuir os resultados. Entre as
limitadas generalizações de uma certa validade, a que
sustenta a necessidade de que a compressão dos
consumos e um alto índice de investimentos sejam
mantidos até se atingir o desenvolvimento
autopropulsivo, e que, em conseqüência, subordina a
solução da crise de distribuição à arrancada industrial,
parece uma das mais fundadas. No que respeita, pelo
contrário, à participação política, considerando que a
Modernização é um processo de constante adaptação e
de contínuas inovações, não é absolutamente ousado
prever o aparecimento de novas formas de
participação, especialmente em setores limitados e em
matérias específicas pertinentes à distribuição do
poder, ao seu exercício e ao seu controle.
A Modernização política não acontece e nem pode.
acontecer in vacuo, isto é, sem entrar em contato com
a Modernização dos outros setores e, em particular,
com a Modernização econômica e social. Este aspecto
do problema foi claramente percebido por quase todos
os estudiosos, entre os quais, porém, surgiram
tendências diferentes a respeito do papel específico da
esfera política no processo global de Modernização.
Existem a este propósito três posições. Há aqueles que
defendem a autonomia da esfera política das esferas
econômicas e social e que, portanto, analisam as
mudanças no interior da esfera política, procurando
descobrir os seus efeitos na Modernização sócioeconômica e os seus reflexos na estrutura e na cultura
política das mudanças nas esferas econômica e social.
Esta abordagem parece particularmente frutuosa,
embora sua aplicação exija notáveis esforços
analíticos para enuclear tão claramente quanto
possível as variáveis em exame e não tenha sido
muito usada até agora. Existem, em seguida, os que
sustentam a dependência da
esfera política das esferas econômica e social. É a
clássica posição marxista, adaptada e reformulada em
formas variadas, que considera as mudanças na
superestrutura política como determinadas ou
condicionadas pelas mudanças nas relações sociais de
produção.
Paradoxalmente,
verifica-se
uma
convergência da tese marxista, na sua forma mais
extrema, com a posição fortemente conservadora e de
defesa do status quo daqueles que ressaltam as "leis
da economia" como algo que não pode nem deve ser
contaminado por intervenções de natureza política.
Esta é também a perspectiva de muitos estudiosos
comportamentistas (v. COMPORTAMENTISMO) que
examinam as instituições políticas através de lentes
conceptuais provindas da economia, da psicologia e da
sociologia. Útil em si, a abordagem neomarxista leva,
porém, a acentuar e a privilegiar só um aspecto da
mutável realidade dos países em via de Modernização
e, na prática, dificilmente consegue dar conta das
mudanças que acontecem em países tais como a
China, onde é teorizada "a primazia da política". A
terceira posição constitui a negação da perspectiva
marxista e afirma, exatamente, o predomínio da esfera
política sobre as outras esferas. Curiosamente, os
antecedentes históricos e lógicos desta corrente de
pensamento se encontram em alguns elementos da
teoria leninista da conquista e do exercício do poder
num país atrasado, segundo os quais para a
Modernização da Rússia e a instauração do socialismo
seriam suficientes "o poder dos sovietes mais a
eletrificação", e na constante acentuação do poder
político como meio de criação de novas relações
sociais que constitui uma linha relevante do
pensamento de Mao Tsé-Tung. A posição aqui
assumida é que se deve partir para uma abordagem
mais fecunda e, em conclusão, mais compreensiva, da
autonomia da esfera política, e que é necessário
analisar a Modernização de um sistema globalmente
através das interações da esfera política com as
esferas econômica e social.
IV. MODERNIZAÇÃO ECONÔMICA. — Define-se como
Modernização econômica o processo pelo qual a
organização da esfera econômica de um determinado
sistema se torna mais racional e mais eficiente. A
racionalidade é medida com base na correspondência
dos meios usados em relação aos fins que se
pretendem atingir. A eficiência é medida com base em
três índices: o produto nacional bruto, a renda per
capita e o índice de crescimento de produção per
capita. Enquanto os primeiros dois índices retratam a
situação de uma economia num determinado tempo e,
portanto, são estáticos, o terceiro índice
MODERNIZAÇÃO
filma a situação e permite colher o próprio processo
de desenvolvimento e do crescimento da economia,
comparar várias economias e prever suas
possibilidades de desenvolvimento sucessivo. Para
obter a qualificação de moderna, uma economia tem
que passar por várias fases. Embora a teoria dos
estádios do desenvolvimento econômico (Rostow,
1962) tenha sido freqüentemente e sob diversas formas
justamente criticada, ela fornece uma fácil e
estimulante síntese do processo de Modernização
econômica. Segundo Rostow este processo se
desenvolve a partir da sociedade tradicional com a
economia de subsistência, através da criação dos
requisitos para a arrancada, dos quais o mais
importante é a acumulação primitiva; a arrancada
representa uma verdadeira viragem, um salto
qualitativo centrado na industrialização implantada.
Segue-se depois a passagem à maturidade, que é o
estádio em que se consolidam as mudanças estruturais
decorrentes da industrialização e se prove à eliminação
dos desequilíbrios setoriais. Vem, enfim, a idade do
consumo de massa em que o setor econômico, antes
orientado somente para a expansão do setor produtivo,
especialmente dos bens instrumentais, é ajustado à
produção crescente de bens de consumo. Apesar de os
estádios acusarem modalidades e tempos diferentes
(seguindo, por exemplo, a lei do desenvolvimento
combinado formulada por Trotski, que sustenta para
os países subdesenvolvidos a necessidade e a
possibilidade de superar alguns estádios, como, por
exemplo, o estádio capitalista, graças ao
aproveitamento dos conhecimentos já adquiridos em
outros países), sobretudo no que se refere à adoção e à
aplicação das inovações tecnológicas, a idéia central de
que é preciso passar necessariamente de um estádio de
forte compressão de consumos, de notáveis poupanças
e de grandes investimentos, para uma fase de
desenvolvimento econômico autopropulsivo e de
expansão de consumos, não parece ser posta em
dúvida.
A Modernização econômica, pois, conduz à
sociedade altamente industrializada, mas o processo
que ela implica e as mudanças que instiga, são muito
mais vastas do que as provocadas pela
industrialização. O tema, porém, que interessa de
modo especial os estudiosos da Modernização, se
refere ao tipo de estruturas políticas que facilita este
processo, às contribuições que estas estruturas podem
trazer para a sua evolução rápida e equilibrada, e aos
reflexos que a Modernização econômica tem na esfera
política. Historicamente se verificaram três fases. A
primeira caracterizada pelo laissez faire e por uma
série de ajustamentos quase totalmente indepen-
773
dentes da intervenção do Estado na esfera econômica,
e compendiada na experiência inglesa. Esta primeira
fase caracteriza-se, além disso, pela ausência de
organizações formais de operários. Com modalidades
ligeiramente diferentes, que dependem da grande
disponibilidade de terras e da imigração maciça — de
grande importância para o mercado de trabalho e para
as lutas operárias — se desenvolve a experiência
estadunidense. Uma corrente revisionista de
historiadores da economia pôs em relevo que,
especialmente no setor do crédito bancário e dos
investimentos, o Governo estadunidense desempenhou
um papel bem mais importante do que o imaginado
pela ideologia americana predominante, individualista
e liberalista. Numa segunda fase, a Modernização
econômica é favorecida e, freqüentemente, estimulada
por intervenções conscientes do Estado, como na
Alemanha de Bismarck e no Japão de Meiji. A
potência econômica é considerada como um dos
meios, o mais importante, do exercício da atividade
política, tanto que se assiste a uma substancial
subordinação da esfera econômica à esfera política,
enquanto, nos casos inglês e estadunidense, se havia
desenvolvido, entre poder político e poder econômico,
uma longa série de interações de êxito variável,
embora freqüentemente favorável aos interesses
econômicos. Na terceira fase, representada não
somente pelos regimes comunistas revolucionários,
como a União Soviética e a China, mas também pela
maior parte dos países em via de desenvolvimento,
inclusive a Índia, o próprio poder político se torna
empresário, quer por causa da fraqueza, corrupção ou
inexistência de uma classe empresarial nacional, quer
devido aos fins que ele se propõe, não somente de um
rápido ritmo de desenvolvimento, mas também de um
desenvolvimento programado segundo diretrizes de
tipo socialista, em sentido lato. O Estado empresário,
tanto na sua fase mais branda do fim do século XIX,
como na sua fase mais forte nos países modernizantes
do século XX, tende a controlar com dureza as
organizações
dos
trabalhadores,
negando-lhes
autonomia e possibilidades de negociação e
participação no processo decisório, acabando, assim,
por impregnar de autoritarismo o funcionamento da
máquina estatal.
Nos Estados ex-coloniais, a dialética entre as
exigências da Modernização econômica — com a
conseqüente compressão mais ou menos prolongada
dos consumos à custa, principalmente, da classe
operária e dos camponeses — e as exigências de
participação política e de distribuição de bens e
serviços, se apresenta numa forma aguda e até agora
não encontrou uma solução
774
MODERNIZAÇÃO
adequada. Em geral, pois, o problema central da
Modernização econômica se refere, para o politólogo,
à contribuição que o poder político pode oferecer para
uma melhor organização da esfera econômica,
especialmente em cada um dos estádios do
desenvolvimento, e à capacidade que as estruturas
políticas têm de abrandar, mediar, ou resolver os
contrastes entre as classes sociais, produzidos pela
própria Modernização econômica (Holt e Turner,
1966).
V. MODERNIZAÇÃO SOCIAL. — A par das
transformações que se originam na esfera econômica,
influenciadas por elas e a elas ligadas, ocorrem
também profundas transformações na esfera social. A
Modernização econômica que visa a uma melhor
organização das capacidades e das potencialidades
produtivas de uma sociedade envolve, antes de tudo,
um êxodo mais ou menos maciço de mão-de-obra
excedente dos campos, mão-de-obra expulsa em parte
pela mecanização do setor agrícola, em parte atraída
pelas nascentes industriais urbanas. Criam-se, assim,
enormes conglomerados urbanos. A necessidade de
saber manejar máquinas complexas e de prover a
administração de grandes empresas torna necessário o
aumento da alfabetização para que se torne possível
uma mais rápida, mais segura e mais ampla aquisição
dos conhecimentos indispensáveis. Acrescente-se que
a alfabetização adquire também um significado
político próprio. "A exigência de uma instrução
elementar é comum a todas as posições políticas: é
apoiada pelos conservadores, que temem a
indisciplina inata do povo, indisciplina que é preciso
conter com a instrução sobre os fundamentos
religiosos, inculcando, dessa forma, a fidelidade ao rei
e à pátria; os liberais sustentam que o Estado nacional
exige cidadãos educados pelos órgãos do Estado; os
populistas afirmam que as massas populares que
contribuem para a criação da riqueza do país deveriam
participar das vantagens da civilização" (Bendix,
1969, 114).
O processo de alfabetização é acompanhado e
favorecido pelo desenvolvimento dos meios de
comunicação de massa, só que relativamente mais
tardio nos países da Europa ocidental, pois que os
primeiros exemplos de imprensa "popular" remontam,
na Inglaterra, aos começos do século XIX. Em
seguida, o uso dos meios de comunicação de massa
constituiu uma resposta, por um lado, aos esforços dos
governantes em comunicar as decisões políticas aos
governados da maneira mais rápida e compreensível, e
em conseguir captar os desiderata dos governados
através da imprensa da oposição ou não; por
outro lado, ele foi ocasionado pela alfabetização
generalizada e por um relativo aumento do tempo
livre. As exigências funcionais da sociedade,
especialmente no que diz respeito ao trabalho nas
fábricas e a uma melhor utilização dos recursos
humanos e materiais, facilitam paulatinamente os
deslocamentos não só entre o campo e a cidade, mas
também entre os diversos setores de atividades,
estimulando
consideravelmente
a
mobilidade
geográfica. Um dos efeitos mais importantes desse
aumento de mobilidade geográfica e das exigências
do trabalhe nas fábricas está na ruptura dos esquemas
tradicionais de estratificação e na revelação, embora
com limitações por vezes impressionantes, de um
notável grau de mobilidade social que parece ser já
característica comum das sociedades industriais
avançadas. No que concerne à estratificação, a
Modernização sócio-econômica exige e provoca a
passagem de uma estratificação rígida, baseada em
vínculos de casta, para modelos de estratificação
alicerçados inicialmente em ligames muito estreitos e
firmes, tais como os das classes de tipo marxista,
depois para modelos de estratificação nos quais os
ligames entre as classes se tornam flexíveis e variados
e, enfim, para uma estratificação que produz o
agrupamento dos indivíduos segundo as funções que
eles desempenham na sociedade. Este último modelo
de estratificação, que assenta nas qualidades pessoais
e na contribuição efetiva para o funcionamento da
sociedade e que tem como legitimação uma ideologia
da adequação dos meios aos fins, definida
freqüentemente como ideologia da ciência, seria tão
rígido quanto o da estratificação baseada nas castas,
mas poderia ser mitigado, com a aplicação do
princípio da igualdade de oportunidades da forma
mais compreensível, não só incluindo todos os
membros da sociedade, mas também concedendo uma
vantagem inicial aos mais desfavorecidos.
As transformações ocorridas nos modelos de
estratificação têm, naturalmente, uma alta incidência
nas transformações que ocorrem nos vários tipos de
representação política (Apter, 1968). Dessa forma,
enquanto nos sistemas com estratificação de casta a
representação política é muito limitada e reflete
somente os interesses dos grupos restritos que giram
ao redor dos governantes, à medida que se vai
processando a erosão dos ligames rígidos das castas e
das classes de tipo marxista, se chega a uma variada
representação, baseada inicialmente no predomínio
dos interesses econômicos, em seguida no princípio
"um homem — um voto", depois, na era atual, numa
mistura da representação popular
MODERNIZAÇÃO
com a representação funcional, fundada na primazia
em certos setores, dos expertos da área (caso típico: os
comitês para o planejamento econômico).
VI. VALORES E VARIÁVEIS ESTRUTURAIS. — Nenhuma
reflexão sobre a Modernização pode fugir de uma
análise dos valores, das tendências, das atitudes e das
motivações de cada indivíduo e dos grupos que podem
influir positiva ou negativamente na aceitação e na
produção de novas formas de agir social. O ponto de
partida obrigatório para tal reflexão é constituído pela
análise que Weber fez da relação entre ética
protestante e espírito do capitalismo, interpretada não
como uma relação de causa e efeito, mas como
identificação da correlação e do condicionamento de
certos valores — o ascetismo individual, a procura do
absoluto na atividade mundana, a ética do trabalho —
no surgimento de um novo sistema social. De acordo
com o espírito weberiano, a análise pode ser estendida
à individualização das capacidades inovadoras e
transformadoras que possuem algumas religiões e os
sistemas culturais tradicionais. Do estudo weberiano da
constelação de valores próprios do protestantismo précapitalista (e que outros encontraram, por exemplo, no
xintoísmo japonês) se passou, em seguida, à procura
de um único valor como mola de Modernização
sócio-econômico e política. As explicações
monofatoriais da Modernização, que tiveram maior
ressonância recentemente, puseram em relevo a
procura do sucesso, o achievement need (McClelland,
1961) e a empatia (Lerner, 1958), isto é, a capacidade
psíquica de identificar-se com uma outra pessoa, de
conseguir projetar-se nos papéis desempenhados por
outros indivíduos. Afirma-se que a empatia é o
pressuposto de mobilidade, porque somente quem
consegue imaginar o próprio comportamento em
papéis, circunstâncias e localidades diversas dos
habituais se empenhará em atingir a posição
imaginada, fazendo progredir com seus esforços a
própria sociedade. Da descoberta da existência de
valores correlatos à Modernização ou em relação de
causa e efeito com ela, se passou ao estudo dos modos
como esses valores são criados, transmitidos e
modificados e, portanto, a uma investigação cada vez
mais complexa e sofisticada dos processos de
socialização primária que não excluem a priori o peso
das estruturas políticas e sociais.
A maior parte dos estudos dedicados aos fenômenos
de transição de sociedades tradicionais para
sociedades modernas se serviu largamente da
conhecida e difundida formulação de uma
775
teoria da ação social efetuada por Talcott Parsons na
esteira da análise weberiana. A teoria parsoniana se
apóia em cinco pares de variáveis estruturais
apresentadas de forma dicotômica: adscriçãorealização, particularismo-universalisrao, difusãoespecificidade,
afetividade-neutralidade
afetiva,
tendência para o eu-orientação para a coletividade: as
primeiras indicam as características do comportamento
nas sociedades tradicionais e as segundas, as
características do comportamento nas sociedades
modernas. Nas sociedades tradicionais, em particular,
o status repousa em considerações adscritivas e
hereditárias, nas sociedades modernas assenta em
considerações de mérito; nas primeiras avalia-se pelo
que a pessoa é, nas segundas pelo que a pessoa faz;
nas primeiras, o sistema das relações de papel é
funcionalmente difuso no sentido de que todos os
aspectos do comportamento podem ser considerados
relevantes para qualquer relação; nas segundas, estas
relações são funcionalmente específicas, isto é,
limitadas às considerações essenciais para manter a
eficiência do sistema. A base normativa das relações
sociais pode prever a consideração do objeto social
sob um ponto de vista particular, nas primeiras, e com
base em critérios gerais ou universais nas segundas. O
sujeito age com base em considerações de afetividade,
quando procura a satisfação imediata das próprias
necessidades individuais; de neutralidade afetiva,
quando exerce um autocontrole em vista de
considerações de longo alcance. O sujeito pode
perseguir exclusivamente o próprio interesse ou visar
interesses do grupo a que pertence.
Estas variáveis estruturais dicotômicas foram objeto
de várias críticas. De fato elas não devem ser
consideradas como dicotomias mas como pólos de um
continuum. É indispensável, além disso, acentuar o
fato de que nenhuma sociedade é completamente
moderna nem completamente tradicional e de que em
todas as sociedades se encontram indivíduos que agem
segundo considerações de tipo moderno e outros que
agem segundo considerações de tipo tradicional; além
disso, o mesmo indivíduo, em suas múltiplas relações
sociais, pode comportar-se, de cada vez, baseando-se
em considerações de tipo diferente. Tudo o que foi dito
para a cultura política pode, portanto, ser estendido à
análise da ação social: "todos os sistemas políticos são,
do ponto de vista da cultura política, sistemas 'mistos'.
Não existem culturas e estruturas 'totalmente
modernas' no sentido da racionalidade, nem
'totalmente primitivas' no sentido da tradicional idade.
Elas diferem, quer pelo relativo predomínio de uma
sobre
776
MONARQUIA
a outra, quer pelo tipo de mistura dos dois
componentes" (Almond e Coleman, 1960, 11).
VII. CONCLUSÃO. — Concluindo, a Modernização
é um fenômeno complexo, de amplo fôlego e
multidimensional, que acontece em períodos de
tempo diferentes e em todos os setores do sistema
social. Portanto, para que a sua compreensão seja
completa e exata, exige-se uma atenção constante às
interações entre os vários setores e o uso de métodos
múltiplos e abordagens interdisciplinares. Os dois
temas que emergem no estudo da Modernização são:
de um lado, a tentativa do homem em controlar a
natureza e sujeitá-la às suas necessidades, do outro, o
esforço perene de ampliar o âmbito das opções sociais
e políticas para o maior número de pessoas. A
Modernização é a história destas tentativas e destes
esforços.
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[GIANFRANCO PASQUINO]
Monarquia.
I. INDICAÇÕES DE ESTRUTURAÇÃO GERAL. —
Entende-se comumente por Monarquia aquele sistema
de dirigir a res pubblica que se centraliza
estavelmente numa só pessoa investida de poderes
especialíssimos, exatamente monárquicos, que a
colocam claramente acima de todo o conjunto dos
governados. Obviamente, não é suficiente o Governo
monocrático para se ter Monarquia, nem a posse da
totalidade dos poderes do Estado: de fato, pode haver
Governo monopessoal não monárquico (o chefe de
um Estado republicano de regime "presidencial") e
regime monárquico desprovido da efetividade dos
poderes de Governo (a Monarquia "constitucional").
Por Monarquia, portanto, se entende — na
complexa formação histórica deste instituto — um
regime substancial mas não exclusivamente
monopessoal, baseado no consenso, geralmente
fundado em bases hereditárias e dotado daquelas
atribuições que a tradição define com o termo de
soberania. Um conjunto de características de origem
histórica e tradicional modela a Monarquia nos
diversos tempos e nas diversas experiências locais e
territoriais: há, porém, uma linha de tendência comum
a todos os fenômenos de Monarquia no tempo: a
tendência a um progressivo crescimento e
centralização do poder nas mãos do monarca.
A simplicidade e a efetiva eficácia histórica do
instituto explicam o seu extraordinário sucesso no
tempo, tanto que as experiências estatais européias
que se conhecem, todas, tiveram praticamente como
matriz e fundamento a Monarquia: de fato, onde o
Governo se identificou com uma Monarquia nacional,
realizou uma obra substancialmente definitiva até
hoje.
A definição das características essenciais da
Monarquia não é, portanto, única; para se ter um
regime monárquico é necessário a existência de uma
pessoa estável no vértice da organização estatal com
as
características
de
perpetuidade
e
de
irrevocabilidade: o monarca é tal desde o momento de
sua elevação ao trono até sua morte, exceto o caso de
voluntária abdicação. Para expulsá-lo do poder é
preciso uma verdadeira revolução.
MONARQUIA
Embora existam muitíssimos exemplos históricos
neste sentido, sob o aspecto conceituai não é
admissível uma redução não voluntária do poder de
soberano, poder que é teoricamente uniforme e igual
desde o primeiro até o último dia do reinado. Na
tradição mais prevalecente e amadurecida da
monarquia européia (e também não européia) o rei é
investido de seu poder, originariamente, por direito do
nascimento; a elevação ao trono se verifica por
sucessão e, portanto, decorre de um atributo
estritamente pessoal do sujeito ou, por alargamento
do círculo, de sua família.
O rei é aquele que é gerado por um outro rei ou
designado por linha colateral da família que detém o
poder monárquico. É exatamente na fase
delicadíssima e crítica da sucessão ao trono que se
descobre o caráter substancialmente familiar da
detenção do direito de reinar. O acesso à Monarquia
por sucessão é a forma mais recente do instituto; na
idade romano-barbárica e feudal era sistemático
recorrer ao método da eleição; eleição, todavia, que
tendia a concentrar-se normalmente sobre membros
de uma ou de poucas famílias. A irresistível tendência
da Monarquia a se identificar com um determinado
núcleo familiar aparece, então, operante desde os
primeiros tempos da Idade Média.
Isto porque a Monarquia, diferentemente da tirania
— que é também regime unipessoal, definitivo e
centralizado numa só pessoa, o dominus, a totalidade
dos poderes —, se baseia normalmente no consenso:
um consenso que tende naturalmente a consolidar-se
nos filhos e nos descendentes, em geral, do soberano
que bem mereceu de seu povo um consenso que
freqüentemente se expressa em termos fideísticos e
sentimentais: consenso que, sendo a fonte dos
sucessos da Monarquia, tem sido também, — é
importante lembrá-lo — a base do processo formativo
e unificador do Estado.
O soberano, de linhagem hereditária, seguido ou
até amado pelo povo (potencialmente por todo o povo
e até pela grande maioria de pessoas desprovidas de
poder político mas não de genéricos poderes de
consenso), se encontrou, com o decorrer dos séculos,
cada vez mais investido daquela soma de poderes que
ainda hoje não sabemos definir se não com o termo de
"soberania"; quer por causa da teoria do direito
divino, quer pelas conseqüências da redescoberta das
teorias majestáticas romanistas a partir do século XII,
os poderes da Monarquia foram cada vez melhor
definidos, especialmente no sentido de que foram
cada vez mais largamente ampliados, até que o rex
não coincidiu com o imperator (de onde a fórmula:
Rex [Franciae] est imperator in regno suo),
tornando-se, no fim,
777
o único depositário daquela suprema maiestas de que,
a partir do século XIX em diante, se tornará titular o
Estado contemporâneo.
Os poderes majestáticos foram e são poderes de
supremacia, de dignidade e de Governo: dessa forma
o rei vivia numa esfera de altíssima dignidade e de
direitos
estritamente
pessoais,
governando
pessoalmente ou através de delegados toda a res
publica, com um poder apenas limitado pela lei
divina e natural e pelos antigos costumes e direitos do
reino que, muitas vezes, tinha jurado respeitar no
momento de sua assunção ao trono (parlamentos,
direitos nobiliários, autonomias locais, direitos da
Igreja, etc). A partir da baixa Idade Média feudal e
embora com os limites referidos, o monarca deixou
de ser, de algum modo, um representante e um
delegado do seu povo: teoricamente, sendo o poder de
origem divina, ele estava colocado numa esfera
superior. É claro que não era (ou não era mais) órgão
do Estado, se de Estado pode-se falar em
determinados períodos, quando ele mesmo pretendeu,
como aconteceu com Luís XIV, ser pura e
simplesmente todo o Estado.
II. A MONARQUIA GERMÂNICA E FEUDAL,
EXPRESSÃO DE UMA SOCIEDADE GENTILÍCIA
E SUCESSIVAMENTE OLIGÁRQUICA. — Sob o
aspecto histórico a identificação das características
fundamentais da Monarquia parece-nos que pode ser
feita distinguindo três períodos: o da Monarquia
germânica e feudal, o da Monarquia absoluta e o da
Monarquia constitucional. No primeiro período
genético — deixando aqui de parte, por razões
metodológicas, as complexas experiências da idade
antiga — a Monarquia aparece em lenta evolução na
instável constituição do ordenamento germânico que
se seguiu à invasão, organizado inicialmente em bases
populares e em seguida, em bases feudais.
A Monarquia era, na sua origem, um instituto
militar: o rei não era senão o chefe militar de seu
povo; depois, com a fixação e a territorialização dos
visigodos, francos e longobardos, etc, se tornou
paulatinamente chefe político. Mais lentamente
procederam pelo mesmo caminho os poderes
monárquicos, que se constituíram nas terras
originariamente não romanas, à imitação do
monarcado ocidental e bizantino (países eslavos). A
soma dos poderes do rei tornou-se bastante reduzida,
limitada pela assembléia dos homens livres, e
restringida, em seguida, à assembléia dos grandes; a
relação dialética rei-parlamento ficou sempre
ineliminável na Monarquia germânica e constituiu o
seu limite mais evidente.
778
MONARQUIA
Isto derivou de um fato muito simples: de que nos
reinos romano-germânicos, após os séculos V-VI, o
poder efetivo estava nas mãos de diversos grupos
gentilícios (Sippe, gentes, etc.) essencialmente
suspeitos e hostis um contra o outro e dispostos a
aceitar apenas um brando e genérico exercício do
poder monárquico sobre eles (poder que, por ser
expressão necessária decorrente do interior de um dos
grupos tribais, aparecia exatamente como poder de
uma gens sobre as demais). Acrescente-se a estes dados
políticos concretos a estranheza substancial do
instituto monárquico em relação à originária
constituição popular germânica e o fortíssimo senso
de autonomia do homem germânico que tinha a
experiência secular de vida nômade ou seminômade.
Embora isto explique o modo como algumas
altíssimas personalidades (Clodovéu, Teodorico,
Alboino, Autari, etc.) puderam fundar a Monarquia
no Ocidente (como instrumento essencial do domínio
e do controle do pequeno grupo germânico sobre a
massa dos vencidos românicos), esta ficou
substancialmente um instituto frágil e precário: assim
como ficaram quase todos os Estados romanogermânicos. Essa situação de precariedade do poder
estatal
e
monárquico
não
se
modificou
substancialmente, apesar de um grande acontecimento
que, aliás, foi decisivo para toda a evolução futura e
para a ampliação da concepção e da praxe monárquica
no Ocidente, acontecimento que é o encontro da
experiência germânica com a concepção imperial
romana consagrado pela coroação de Carlos Magno.
Coroação imperial na verdade — não monárquica
— e elevação a um poder mais alto, estável e direto
do que o dos reis foi o caminho para uma nova
concepção do poder soberano, que, nascida no plano
do Império, devia mais tarde trazer todos os seus
frutos imitativos no plano do reino. Antes de tudo, o
poder foi dado a Carlos pelo próprio Deus e não pelo
povo, através do Pontífice romano. E, acima de tudo,
se tratava de um poder incomparavelmente mais amplo
do que a antiga soberania germânica, um poder de
ligar e desligar, elevar e rebaixar, um poder de tipo
substancialmente sacerdotal e carismático: o homem
elevado a esse poder não somente era colocado acima
do povo de uma forma estável e definitiva, mas
também nele via-se reconhecido um direito autônomo
e estritamente pessoal ao Governo.
Todavia foi exatamente a partir de Carlos Magno
que, apesar do encontro entre concepções majestáticas
e monarcada germânica, o poder monárquico no
Ocidente entrou num novo, delicadíssimo e difícil
período. As intuições políticas que a coroação de São
Pedro no Vaticano havia
suscitado germinariam muito lentamente nos séculos
seguintes. De resto, teoria política nenhuma pôde
mudar de per si os termos concretos da realidade: de
tal forma que mesmo depois de Carlos Magno — com
exceção do período irrepetível do seu reinado — a
Monarquia no Ocidente continuou a viver com
dificuldade como tinha vivido até ali.
De fato, o próprio esquema majestático de Carlos
Magno, favorecendo a difusão do poder universal do
rei franco, induziu-o a procurar uma base de consenso
para o seu Governo, consenso que não consistisse
unicamente num vínculo de fidelidade através dos
costumeiros ligames tribais e nacionais: isto,
obviamente, porque, de um lado, as gentes, ou as
tribos como centros de poder eram já instrumentos em
via de dissolução (devido à progressiva fusão com os
grupos românicos dominados) e, do outro lado,
porque o ligame nacional não servia mais para um
soberano que dominava uma série de nationes
diversas e hostis entre si. Foi, assim, necessário
recorrer, como instrumento de Governo, ao nexo
feudal (v. FEUDALISMO), recurso que consagrava o
novo fundamento real do poder numa sociedade
agrária desagregada, isto é, o controle e, em seguida, a
posse da terra.
A Monarquia feudal assumiu assim, além dos
aspectos formais absolutistas que encontramos em
todos os grandes soberanos — quer como imperadores
quer como reis — desde Otão I até Frederico II, o
caráter de uma primazia teórica desprovida de real
poder, fora das regiões de imediato e direto controle.
Assumiu,
assim,
um
simples
caráter
de
representatividade genérica num sistema que era, de
fato, uma oligarquia de poderosos dinastas fundiários:
o rei como chefe da nobreza, também ele nobre e
portanto não diferente da classe que lhe garantia a
eleição e o poder. Esta é uma característica que
substancialmente, apesar de todo o esforço contrário,
acompanharia
a
Monarquia
até
o
seu
desaparecimento.
III. A EMERGÊNCIA DO INSTITUTO COMO
RÍGIDA ESTRUTURA DE PODER NO CONFLITO
ENTRE GRUPOS SOCIAIS. A MONARQUIA
"ABSOLUTA". — Os verdadeiros poderes da
Monarquia começaram a emergir, em sua base
teórica, primeiro, da soberania carolíngia e, depois, da
redescoberta da doutrina romanista, quando os dados
da realidade social e econômica quebraram a dura e
imutável estrutura oligárquica do mundo europeuocidental dos séculos IX-XI.
A formação de novas classes burguesas, de uma série
de centros de poder urbanos e locais que se foram
paulatinamente opondo ao controle dos
MONARQUIA
grandes senhores feudais, gerou uma articulação
complexa do tecido social e uma desagregação
substancial da não mais homogênea estrutura feudal:
no choque, nas regiões onde a sociedade não se
fracionou em estruturas centrípetas de poderes locais
autônomos ou semi-autônomos (como na Itália, cf.
COMUNA), a Monarquia pôde substancialmente se
colocar como instrumento de mediação e de equilíbrio,
reforçando progressivamente seus poderes em prejuízo
das outras realidades políticas.
Para que isto acontecesse, era preciso, portanto,
que nenhum desses dois componentes fundamentais
absorvesse ou debelasse o outro, isto é, que burguesia
nas cidades e feudalismo nos campos e nos centros
menores estivessem de certo modo obrigados a
estabelecer entre eles relações de aliança e
convivência.
Costuma-se dizer, a este respeito, que o papel da
Monarquia nesse conflito fosse o de apoiar a burguesia
contra a grande e sufocante feudalidade; mas
raciocinando dessa maneira não se observa que, de um
lado, a Monarquia, de origem feudal por estrutura e
mentalidade de seus chefes não teria tido condições de
viver numa realidade dominada pela burguesia
mercantilista urbana (como haveriam de demonstrar a
experiência italiana da baixa Idade Média e os
acontecimentos históricos de épocas mais próximas de
nós) e, de outro lado, a Monarquia precisava
necessariamente de conservar o nexo feudal como
instrumento indispensável para a manutenção de um
controle territorial geral. Parece-nos, portanto, que, na
realidade, a Monarquia precisava apoiar a feudalidade
tanto quanto fosse bastante para conter a pressão
burguesa,
procurando,
porém,
paulatinamente
substituir-se ao feudatário na gestão direta dos
públicos poderes nas províncias.
Nos lugares onde a Monarquia foi bem sucedida
nesta obra de parcial apoio ao sistema feudal, ela
assegurou o seu futuro; mas nos lugares, como a
Itália, onde não conseguiu impedir que a cidade se
impusesse sobre o campo ou, como a Alemanha, onde
— por um fenômeno exatamente antitético e por uma
evidente cortrapressão da situação italiana — não
soube evitar o indiscutível primado do mundo feudal
sobre o urbano, ela foi condenada à derrota: esta a
obrigou a desaparecer, de fato, da Itália comunal
centro-setentrional (referimo-nos a qualquer tipo de
Monarquia, inclusive a eclesiástica) ou a manter-se nos
antiquados esquemas da velha monarcada feudal do
mundo alemão.
Nos lugares em que como a França, a Inglaterra e
Castela a tentativa de fundar uma Monarquia de tipo
novo, central e eficaz teve sucesso, apareceram
primeiro os efeitos progressivamente
779
centralizadores da experiência monárquica, com uma
eficácia tal que estas formas de constituição estatal
serviram de modelo, também exterior, para todo o
renovado mundo político europeu após o século XVI
e o definitivo advento em toda a Europa de elementos
estruturais que permitiram em quase todos os países o
relançamento da experiência da Monarquia ocidental.
Tudo isto abriu o caminho à Monarquia que mais
tarde foi definida polemicamente como Monarquia
absoluta: na realidade ela nunca foi absoluta, com
exceção, talvez, de alguns breves períodos antes da
Revolução Francesa. Isto porque a Monarquia
conservou até o fim as características e os elementos
que tinham consagrado seu sucesso: isto é, o poder
monárquico, em sua evolução paulatina e progressiva
conservou seus termos de origem que são os da
mediação entre as forças políticas em conflito.
Essa mediação assegurava um papel primário à
nobreza de origem feudal, destinando a ela, como real
e principal apoio do poder (uma vez dominadas, após
os séculos XV e XVI, as ressurgentes veleidades
autonomistas), os principais postos de comando no
Estado monárquico, como tácita compensação das
posições de poder que a nobreza perdeu nas províncias,
onde cada vez mais aumentava a autoridade do rei. A
criação de uma consciência e de uma lealdade dinástica
e, portanto, estatal nestas classes superiores
representou uma autêntica obra-prima, base de força e
de prestígio da Monarquia: esta plasmava, dessa forma,
uma consciência unitária e ligava aos seus interesses
estatais e dinásticos todos os grupos dirigentes como
uma precisa e definitiva ideologia de poder.
Ao mesmo tempo, porém, a Monarquia, perante
estes privilegiados, se erguia como protetora e tutora
do clero e das classes urbanas, às quais, embora não
reservasse o Governo do Estado, garantia, porém, o
controle da vida urbana e comercial e assegurava aos
grupos do poder da burguesia uma real eficácia e um
real peso na vida pública. Todas as classes, pois, que
eram estranhas a este delicado equilíbrio, estavam
estritamente submetidas aos grupos privilegiados, fora
e debaixo do Estado, acionando uma certa propaganda
estatal e religiosa para garantir o consenso dessas
classes e evitando qualquer prejuízo ou lesão para os
interesses dominantes.
Neste quadro o papel do rei foi progressivamente
dilatando-se com o desenvolvimento do "Estadomáquina" na Idade Moderna: o exército, a burocracia e
a finança se tornaram as colunas do poder da
Monarquia para controlar e vincular ao rígido sistema
centralizado, que se vinha criando, todos os demais
poderes do Estado. No mesmo
780
MONARQUIA
interesse do equilíbrio constitucional alcançado, o
trono se tornou, em quase todos os lugares,
hereditário: o rei acentuou suas características de
investidura divina e de superioridade e até de
estranheza, perante todos os grupos sociais.
Sendo árbitra, a Monarquia era superior a todos,
circundada, também exteriormente, dos sinais do
poder e da majestade: nesta superioridade os grandes
componentes do Estado (nobreza, burguesia, clero)
encontraram a garantia formal e substancial da
imparcialidade da Monarquia e, portanto, a garantia
do respeito de suas posições, embora seguindo o
esquema de valores e de precedências já consagrado e
cristalizado pela tradição. Enfim, na ordem, nobreza,
clero e burguesia se sentiram garantidos pelo sistema
de pirâmide dirigido pela Monarquia. Por fim, a
prevalência decisiva e a declarada ambição
hegemônica de uma classe sobre a outra destruíram
este sistema penosamente elaborado durante séculos e
abateram, por último, também a Monarquia que não
conseguia mais se assegurar se não conservando — e
enquanto fosse possível conservar — a ordem social e
política originária da baixa Idade Média.
IV.
CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DA
MONARQUIA NA IDADE DO PREDOMÍNIO DA
BURGUESIA E PROGRESSIVA DECADÊNCIA
DO PRINCÍPIO MONÁRQUICO. — O surgimento,
através de uma série complexa de acontecimentos, da
Monarquia constitucional, inicialmente na Inglaterra,
em seguida na França e depois um pouco por todos os
países, no século XIX representou um compromisso
com que, na dissolução da velha ordem social
hierárquica e na prevalência da ideologia da burguesia
vitoriosa, se salvou quanto ficava do antigo significado
de estabilidade do regime monárquico, inserindo-o
num sistema em que os instrumentos do poder tinham
já passado por diversas mãos.
A constitucionalização da Monarquia foi tanto mais
radical e rápida quanto mais forte era a classe
burguesa dominante e quanto mais decididamente esta
tinha influído, através do processo revolucionário
econômico e político, na estratificada estrutura social
preexistente. Isto explica, em geral, a sorte do regime
da Monarquia constitucional e as tentativas de volta
ao passado que este tipo de regime conseguiu ainda
efetuar.
No sistema constitucional do século XIX a
Monarquia ficava vinculada a um pacto preciso de
garantias jurídicas na gestão do poder: garantias que,
embora concedidas formalmente através de uma carta
graciosamente concedida pelo monarca, nem por isso
se tornavam inteiramente contratuais e bilaterais.
Através do pacto constitucional a Monarquia cessava
de ser uma
instituição acima do Estado e se tornava um órgão do
Estado: o Estado, de fato, transmitia à Monarquia
todas as suas prerrogativas, inclusive as da suprema
potestas que, como dissemos, de então em diante,
foram consideradas como pertencentes à instituição
estatal.
O rei se tornou um simples representante da
unidade e da personalidade do Estado, com funções
que se foram paulatinamente reduzindo ao se passar
do sistema constitucional-puro para o sistema
constitucional-parlamentar. Nesta nova ordenação,
como é sabido, as funções de chefe do executivo e de
órgão legislativo que ainda pertenciam à Monarquia
foram, de fato, absorvidas in toto pela Câmara eletiva,
processando-se rapidamente um esvaziamento das
prerrogativas que a Monarquia tinha reservado para si,
em favor do chamado Governo parlamentar. Em
suma, tomava-se essencial para a gestão do poder o
consenso do Parlamento, mais do que o do soberano,
para quem ficava substancialmente e só uma função
certificatória e ratificadora das decisões tomadas em
sede parlamentar e partidária.
Resulta bem claro como, neste sistema, podia tornarse muito fácil, então, a passagem para uma forma
institucional republicana, isto é, para uma forma de
regimento que previsse a eleição direta ou indireta do
mesmo chefe do Estado por um determinado número
de anos: e isto pela própria lógica do poder, logo que
o Parlamento reparasse que, devido às condições
históricas já mudadas, poderia deixar de limitar seu
papel à seleção do chefe do Governo, estendendo-o,
de verdade, à eleição do chefe do Estado.
De fato, a progressiva parlamentarização da vida
pública e o declínio da economia fundiária vinham
progressivamente reduzindo o papel e a efetiva
importância da Monarquia a quem ficava, como
último instrumento, o consenso popular, um consenso,
porém, já esvaziado dos meios para mantê-lo e ampliálo. Enfim, a Monarquia constitucional estava já nas
mãos das Câmaras eletivas; não faz espanto, portanto,
que a progressiva entrada no Parlamento de forças
estranhas à velha tradição monárquica e contrárias à
mesma alta burguesia, que também tinha estipulado o
pacto constitucional com a Monarquia, tornasse, cada
vez mais, malvista a conservação dos regimes
institucionais dinásticos.
Onde, porém, a Monarquia soube fazer uso correto
e prudente das prerrogativas formais com que ficou,
conseguiu durar e manter-se também em regimes
parlamentares: mas sempre como simples órgão do
Estado,
continuamente,
embora
tacitamente,
confirmado pelo consenso popular. Apenas ele lhe
garante ainda manifestações residuais.
MOVIMENTO OPERÁRIO
BIBLIOGRAFIA. - G. ATUTI, La formazione dello
Stato moderno in Italia. Giappichelli, Torino 1969; E.
CROSA. La monarchia nel diritto pubblico italiano.
Bocca, Torino 1922; H. FICHTENAU, L'impero
carolingio (1949), Laterza. Bari 1958; A. MORONGIU.
Storia del diritto pubblico. Principi e sistemi di
governo in Italia della metà dell'XI ala metà del XIX
secolo, Cisalpino, Milano-Varese 1956; H. MITTEIS,
Le strutture giuridiche politiche dell'età feudale
(1933), Morcelliana, Brescia 1962.
[PAOLO COLLIVA]
Movimento Operário.
I. DEFINIÇÃO. — Por Movimento operário se
entende o conjunto dos fatos políticos e
organizacionais relacionados com a vida política,
ideológica e social da classe operária ou, mais em
geral, do mundo do trabalho. Tem como primeira
condição a subsistência de um proletariado industrial,
isto é, de um conjunto de homens que baseiam sua
existência econômica no trabalho assalariado, estando
privados da posse dos meios de produção, em oposição
aos quais se encontram os detentores desses meios,
isto é, o capital.
A concepção do Movimento operário, tal como se
foi desenvolvendo, no curso de quase dois séculos,
nos países economicamente avançados de todo o
mundo, se foi paulatinamente identificando com os
conceitos de proletariado e de classe operária e hoje o
Movimento operário pode ser definido como a
expressão de todo o proletariado (de um determinado
país, de uma região, etc), numa certa época ou como a
expressão atuante e combativa, isto é, como o
momento dinâmico da classe operária (também, de um
certo país, de uma região, etc). Isto significa que no
Movimento operário tomam consistência e se exaltam
as instâncias de combatividade e todas as organizações,
instituições e opções de ação que o proletariado adotou
na sua evolução histórica e que ainda adota, não de
forma esquemática nem dogmática, mas procurando
sempre adequar aos tempos e lugares as múltiplas
manifestações organizativas elaboradas, preocupandose com a atualização constante da problemática ideal,
querendo analisar de modo sempre novo e original a
sociedade, dentro da qual se encontra a atuar, e
partindo sempre, em suas avaliações, de dois
princípios: a) da opressão e do abuso exercidos pelo
capital, isto é, pelos proprietários que dão trabalho,
em relação ao trabalho assalariado, isto é, aos
operários que trabalham, e b) da conseqüente divisão
em "classes" da sociedade industrial moderna. Destes
dois pressupostos nasce a "necessidade" da luta de
classe, de que se tornaram
781
intérpretes e fautores (de forma diferenciada e mais
ou menos atenuada) todas as organizações que direta
ou indiretamente se ligam ao Movimento operário:
partidos, sindicatos, cooperativas, associações de
massa, que se propõem como finalidade ou a
contestação ou a reforma ou, pelo menos, a
substancial transformação da sociedade presente, ou
de uma parte dela, e da sua substituição por uma nova
sociedade socialista, a ser realizada imediata ou
mediatamente ou, enfim, a longo prazo.
II. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE
MOVIMENTO OPERÁRIO. — O Movimento
operário como tal inicia a sua existência social com a
época industrial: não é possível falar de Movimento
operário na era pré-industrial; quando muito, nos
podemos referir a "movimentos" que tiveram como
participantes operários: movimentos camponeses,
movimentos de artesãos, etc. De fato, o Movimento
operário moderno tem como contexto de ação a
sociedade industrial, na qual opera e domina a
burguesia capitalista: a sua evolução começa quando o
operário individual, típico das economias ainda não
industrializadas e que se expressava especialmente nas
imagens do mestre e do jovem aprendiz, começa a
tomar consciência de si e, contemporaneamente, o seu
trabalho não é mais usado isoladamente,
independentemente do trabalho análogo e estritamente
ligado de outros indivíduos, mas se insere num
processo que encontra sua principal expressão na
fábrica industrial capitalista. A esta evolução
substancial, efeito e causa da Revolução Industrial, se
vincula o fato político da emancipação burguesa,
consumada mediante a Revolução Francesa, que,
portanto, pode ser considerada o verdadeiro ponto de
partida de um movimento que é qualificado de
"operário".
Nos decênios seguintes, e cada vez com maior força
à medida que nos vamos aproximando de meados do
século XX, o Movimento operário foi recebendo
integralmente as propostas de emancipação política
apresentadas pela burguesia, o Terceiro Estado, desde
1789-1794, mas transferiu-as para a estrutura social,
rejeitando-lhes o absolutismo teórico mas não a
possível limitação no plano prático, e estendendo-as,
em contrapartida, a todos os setores da' vida social, e
mesmo a qualquer sociedade e a qualquer coletividade
atuante no presente, sem distinções de censo, de poder
econômico, ou de raça (esta é a exemplificação
convincente proposta por Wolfgang Abendroth).
Pelos motivos acima expostos se pode falar de
movimento, de corrente política, que foi e é expressão
de uma particular condição
782
MOVIMENTO OPERÁRIO
econômico-social, com necessidades autônomas
próprias, com exigências de poder ou simplesmente
com posições defensivas independentes quanto à
gestão existente do poder: um movimento que, desde
os seus primórdios, apresentou soluções alternativas
próprias à sociedade capitalista, fundada na posse
"privada" dos meios de produção, e que, como tal,
elaborou doutrinas de diversos tipos, reformistas ou
revolucionárias, mas sempre ligadas a concepções
socialistas, coletivistas ou comunitárias, isto é,
negadoras de uma gestão meramente privada da
economia.
Enquanto na Revolução Francesa o Movimento
operário era ainda fragmentário e não tinha estrutura
nem fins orgânicos, nos primeiros decênios do século
XIX ele se definiu e estabeleceu objetivos mais
precisos na Inglaterra e nos Estados Unidos da
América, onde começou a se afirmar no campo
sindical e no campo teórico, rejeitando a economia
"clássica" e capitalista. Nos anos seguintes à
revolução de julho (1830), desenvolveu-se e
amadureceu politicamente o Movimento operário
francês, que desenvolveu a sua luta, quer no plano
revolucionário da contestação geral do sistema, quer
no plano da luta sindical, quer no da elaboração
teórica de uma nova perspectiva comunista —
comunitária, negadora do presente burguês e
capitalista. Na Alemanha, enfim, também nos anos
seguintes a 1830, se acentuaram as instâncias de
classe, sintetizadas em propostas organizativas que não
eram somente sindicais mas que começavam a ser
políticas, isto é, "partidárias". Todo este movimento
de gestação se concluiu em 1848, com a criação do
Movimento operário da época contemporânea, através
do processo delineado por Marx e Engels no
Manifesto comunista (1848), cujos termos resultam
ainda hoje válidos, pelo menos sob o aspecto
metodológico, se relacionados com os nossos dias.
Com o desenvolvimento da indústria capitalista,
dizem Marx e Engels, o proletariado não cresce,
somente numericamente: o fato de se agruparem em
grandes massas e de enfrentarem de forma
necessariamente comunitária problemas análogos, faz
crescer, de um lado, a sua conciência e, do outro, os
conflitos ofensivos e defensivos. Daí o surgir da
conciência de classe através das lutas, onde o que
conta não são tanto os efeitos, muitas vezes efêmeros,
mas especialmente a organização que se gera: "O
verdadeiro resultado das lutas não é o sucesso
imediato, mas a união cada vez mais extensa dos
operários"; disto se conclui que toda a "luta de classe é
luta política". Além disso, o Movimento operário não
age mais egoisticamente, como acontecera no passado
com todas as classes que tinham assumido o domínio
político da sociedade: ele junta em si as exigências de
toda a coletividade humana do presente e do' futuro e
nele se identificam todos os que pertencem atualmente
a outras classes, destinadas a desaparecer como tais e a
ser absorvidas pelo proletariado, quando este se ti ve r
tornado classe dominante. A este propósito, o
Manifesto proclama que o Movimento proletário é o
"movimento independente" da grande maioria no
interesse da grande maioria", isto é, que "o
proletariado, que é a camada mais baixa da sociedade
atual, não pode sublevar-se nem elevar-se, sem que
toda a superestrutura das camadas que constituem a
sociedade oficial seja destruída".
III. O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SUA
ESTRUTURA HISTÓRICA. — Nos anos de 1848-49,
o Movimento operário (pelo menos o europeu que
estava na vanguarda no plano da ação) se manifesta
como componente primário da evolução histórica e se
afirma ideológica e politicamente, provando haver
adquirido já então consciência de classe, propondo e
pondo em prática a própria organização como partido
político (portanto, como todo o conjunto de órgãos
colaterais) e iniciando um processo cuja primeira fase
poderá considerar-se concluída com o fim da Primeira
Internacional (1872-1876); no decurso deste processo o
Movimento operário se apresenta já em seus contornos
atuais, que precisarão somente ser atualizados com a
evolução das relações sociais e com o próprio
desenvolvimento científico e tecnológico, mantendose, contudo, íntegros em seu núcleo fundamental,
classista de um lado e ambivalentemente reformistarevolucionário do outro.
É especialmente, por inspiração de Marx e de Engels
que a alemã e internacionalista Liga dos Comunistas,
nos seus Estatutos de 1847, fixa os conceitos básicos
sobre os quais se fundam ainda hoje os partidos e os
movimentos relacionados com o proletariado
revolucionário e com o Movimento operário,
prefigurando dessa forma, pelo menos em linha de
princípio, o partido político da classe operária na sua
estrutura atual. Diz assim o art. l.° dos Estatutos: "A
finalidade da Liga é a destruição da burguesia, o
domínio do proletariado, a abolição da velha
sociedade burguesa baseada no antagonismo entre as
classes e a fundação de uma nova sociedade sem
classes e sem propriedade privada". Ali a luta de classe
é extensiva a toda a sociedade, é própria do movimento
operário na sua oposição alternativa ao sistema, e é
condição quer para a sobrevivência do próprio
movimento como força política, quer para o seu
próprio progresso social. Essas teses encontram uma
confirmação em todo o internacionalismo operário, tal
como ele se manifesta nos anos da Primeira
Internacional (1864-1872), que
MOVIMENTO OPERÁRIO
representa exatamente a tentativa de desenvolver, um
plano supranacional, a luta revolucionária pela
conquista do poder político, embora respeitando as
peculiaridades e as características originais locais de
cada movimento, expressas nos partidos políticos
nacionais e nos sindicatos (e nas demais organizações
de massa, entre as quais as cooperativas, sempre,
porém, unidas aos partidos). As teses de Marx e
Engels, que o Movimento operário internacional
assumiu, são as teses notórias de que a emancipação
da classe operária "deve ser obra da própria classe
operária" e de que a luta conduzida pelo Movimento
operário não é luta "para privilégios de classe e
monopólios", mas "para estabelecer igualdade de
direitos e de deveres e para abolir qualquer domínio
de classe" num plano internacional; a luta deve ser
sobretudo social, porque "o social" engloba em si
qualquer outra manifestação, mais precisamente, "a
emancipação econômica da classe operária é o grande
objetivo a que deve estar subordinado, como meio,
qualquer movimento político" (vejam-se os estatutos
gerais da Internacional nas versões de 1864 e de
1871).
Dentro dessas fórmulas teóricas e organizacionais
se foi constituindo o Movimento operário como força
classista independente de influxos externos (embora
com não poucas exceções) em quase todos os países
economicamente desenvolvidos e em alguns países
atrasados ou pelo menos subdesenvolvidos. A
confirmação prática da necessidade orgânica do
Movimento operário se encontra, desde 1871, na
Comune de Paris, que — embora fora de qualquer
esquema preconstituído e de qualquer ideologização
abstrata — representa a primeira forma efetiva de
gestão de um poder proletário por parte do Movimento
operário em cada um dos seus componentes, e que
demonstra, segundo a análise de Marx em Guerra
civil na França (1871), que, nos lugares onde "a luta
de classe toma uma certa consistência", o Movimento
operário pode atingir o seu objetivo imediato que é o
de "debelar o despotismo do capital sobre o trabalho",
na busca do grande objetivo de construir uma
sociedade de tipo novo, de "democracia proletária"
(substancial, isto é, anti-burocrática e antimilitarista),
através do instrumento da ditadura do proletariado,
que conduzirá à sociedade sem classes, onde as classes
já dominantes e opressoras serão, por sua vez,
"oprimidas" e eliminadas como classes: isto é, levará
ao socialismo.
Embora apoiando-se nas colocações marxistas, na
experiência da Comuna e nas primeiras tentativas
válidas de organização do Movimento operário, a
Segunda Internacional, fundada em 1889 e agrupando
os numerosos partidos socialistas
783
nacionais que se tinham constituído ou que iriam
sendo criados nos anos seguintes, não atende ao seu
objetivo de assegurar ao Movimento operário um
plano de desenvolvimento progressivo para o
socialismo, contrapondo uma frente supranacional
compacta contra a potência econômica do capitalismo.
Embora as finalidades políticas fracassem perante a
explosão da guerra de 1914 (tanto R. Luxemburg
como Lenin já tinham demonstrado o fracasso da
Internacional nos anos anteriores à guerra), se pode
afirmar que o Movimento operário, pelo seu
"desenvolvimento em amplitude", pela extensão de
sua força organizativa e pela sua profunda penetração
como componente indestrutível das relações
econômico-sociais e do debate político da Idade
Contemporânea, tirou da nova experiência histórica a
maior vantagem possível e, mesmo nas sucessivas
cisões e divisões, demonstrou, em geral, sua vitalidade,
apesar das diversas opções realizadas: de uma parte,
as opções decididamente revisionistas mais do que
reformistas das social-democracias européias, não
mais alternativas em relação aos sistemas burguêscapitalistas, mas neles politicamente integradas, e, de
outra parte, as opções revolucionárias ou
propensamente reformistas — de acordo com os
lugares e os tempos e muito diferenciadas entre si —
do Comunismo de inspiração bolchevista, aceitas
desde o fim de 1919 até 1943 nas fileiras da Terceira
Internacional.
O Movimento operário, contudo, não mudou sua
estrutura classista e, apesar dos muitos momentos de
integração temporária ou de desistência da luta, quer
quando se encontrou em situações dominantes e
emergentes, quer quando manteve as posições
tradicionais de oposição, continuou a desenvolver, de
formas diferentes e embora com erros, fraquezas e até
culpas, a sua polêmica de ruptura contra o
capitalismo. Foi especialmente mérito de Lenin ter
continuado a elaboração doutrinária iniciada por Marx
e Engels, no que se refere particularmente aos meios
de ação e às táticas do Movimento operário.
IV. O MOVIMENTO OPERÁRIO NO SÉCULO
XX. — O Movimento operário no século XX, tanto
antes como depois da revolução de outubro, apresenta
sempre duas inspirações que repercutem na sua ação
organizativa e na sua ação política: de um lado, a
inspiração reformista, que acentua o momento
organizativo com vistas a uma pura e simples política
de reformas, e, do outro, a inspiração revolucionária,
também inteiramente apoiada no fato organizativo,
mas com uma perspectiva política de raio mais amplo.
São estas, de fato, as duas expressões de maior relevo
do Movimento operário contemporâneo, às quais, a
partir
784
MOVIMENTO OPERÁRIO
de Lenin, fazem referência todas os que foram
dirigentes do mesmo movimento, e especialmente os
grupos e partidos que se inspiram no socialismo. O
Movimento operário, de fato, se identifica
politicamente com os partidos socialistas (ou, depois,
comunistas), embora não se assemelhe totalmente a
eles, por apresentar em certas situações tanto
características especificamente nacionais, como
manifestações operário-corporativistas (é o que
acontece no caso mais relevante do trabalhismo inglês
ou em outros de menor importância de "partidos
operários" fechados em si mesmos). As formas de
organização mudam evidentemente com o tempo,
embora os módulos básicos sejam sempre os da Liga
dos Comunistas de 1848: trata-se de organizações que
tendem a pôr em claro a independência do movimento
de qualquer outro grupo, ou momento, ou partido
atuante na cena político-social de cada país. Dessa
forma, no Movimento operário (seguindo os princípios
lançados por Lenin em O que fazer? de 1902 e depois
reafirmados e atualizados numa série de outros
escritos até Extremismo, doença infantil do
comunismo, de 1920) privilegia-se a organização
partidária, guiada por "revolucionários de profissão",
que se coloca na vanguarda da classe, embora sendo a
ela
profundamente
conatural:
o
simples
reinvindicacionismo, as coalizões, as manifestações
espontâneas encontram um primeiro enquadramento
na organização sindical, mas esta está limitada, quer
na ação pelo interesse imediato dos objetivos, quer
nas suas próprias enunciações teóricas, enquanto
engloba em si, não as perspectivas unitárias de classe,
mas mais genericamente as do setor. O partido, ao
invés, rejeitando qualquer espontaneísmo abstrato,
mas aceitando a espontaneidade das massas, constitui
a organização revolucionária do Movimento operário
para a consecução do fim da construção socialista, e é
a sua "vanguarda" embora nunca ficando separado
dele, a menos que fracasse totalmente em sua ação.
Após Lenin, de fato, o partido e o Movimento operário
se apresentaram como coincidentes: as divisões que
historicamente aconteceram salvaguardaram sempre
essa coincidência e tanto os partidos socialdemocráticos, quanto os partidos socialistas
revolucionários e comunistas tiveram sempre a
presunção de expressar globalmente todo o
Movimento operário de um determinado país. As
divisões — que se deram quer no plano da tática quer
no dos objetivos — salvaram o princípio da unidade
do Movimento operário e tiveram como objeto de
discussão e diferenciação os meios de intervenção a
serem adotados em relação à sociedade capitalista (luta
dentro dela ou conflito desde fora), ou a própria ação
social da classe
operaria, manifesta através dos meios mais diversos,
desde a greve até o boicote e à luta sindical
generalizada, ou os fins da transformação gradual ou
violenta da própria sociedade.
Mesmo quando, como aconteceu em tempos
recentes na social-democracia alemã com o congresso
de Bad Godesberg (1959), se procurou separar o
partido do Movimento operário, tendo em vista uma
integração da classe operária na sociedade massificada
das classes médias, se quis sobretudo interpretar
teoricamente certas avaliações sociológicas típicas de
momentos bem definidos, válidas circunstancialmente,
mas desmentidas pela ação política e pela prática
sindical dominantes.
Em conclusão, pode-se, portanto, recalcar a
eficácia da análise de Marx e Engels: é que, como
demonstrou ainda recentemente Abendroth, os
operários da época contemporânea se reconhecem
como "classe social dependente dos proprietários dos
meios de produção". E, nos países de capitalismo
amadurecido, 80% da população ativa é formada por
trabalhadores dependentes.
Movimento operário, partidos socialistas de classe
e organizações de massa constituem, pois, um todo
unitário, não estático no tempo, mas atuante de
modos diferentes nas diversas situações históricas,
que tem de ser por isso interpretado dinamicamente,
fora de qualquer esquema rígido, mas também sem
esquecer a essência classista do Movimento operário,
modelada pela sua própria existência dentro da
sociedade burguês-capitalista (hoje tardo-capitalista),
em cujo surgimento baseia a sua principal razão de
ser.
V. O MOVIMENTO OPERÁRIO E A SOCIEDADE
ATUAL. — Definir o que é o Movimento operário
atual significa analisar sociologicamente a condição
operária,
deduzindo daí seus padrões de
comportamento, sempre, porém, no quadro da
aquisição de uma consciência de classe. Com isso não
se quer afirmar que, se os problemas sociais com que
se enfrenta hoje o Movimento operário, após a
revolução tecnológica e a automatização, são diferentes
em relação aos de há cento e cinqüenta anos, se as
atitudes, objetivas e subjetivas, das classes burguesas e
do mundo empresarial mudaram, se, enfim, se
modificaram as condições de vida e o próprio modo de
exploração da classe operária, não diminuíram nem a
exploração nem a opressão capitalistas, nem mudaram
os objetivos de poder alternativamente propostos pelo
mundo operário em relação à gestão neocapitalista da
sociedade. Desta forma, o Movimento operário atual,
nos países onde reflete predominantemente o
proletariado industrial de fábrica, ele, mais do que no
passado, desempenha a sua
MOVIMENTO OPERÁRIO
função de vanguarda e tração, partindo, em sua
reivindicação do poder, das exigências salariais,
assistenciais e normativas mais imediatas e próximas,
mesmo através das lutas setorizadas e surgidas
espontaneamente da base, mas generalizando a seguir
essas lutas, passando do plano egoístico e corporativo
ao da totalidade, ou seja, contrapondo-se
politicamente ao sistema atual com propostas
destrutivas, no que se refere às formas deste sistema, e
substitutivas, quanto ao que está intimamente ligado à
sua substância estrutural. Nos países avançados, o
Movimento operário se serve, com absoluta
"maturidade", das táticas de luta, utilizando os
instrumentos tradicionais, o partido e o sindicato de
classe, mas fazendo deles um uso que superou a cisão
entre reformas e revolução (ou entre reformismo e
revolucionarismo) e procurando realizar ou fazer com
que se realizem as reformas, mediante o uso correto
das instituições existentes; rejeita, contudo, a
aceitação teórica de um abstrato reformismo.
Em contraposição, devido às conquistas econômicosociais cada vez maiores e mais decisivas que levaram
as contradições do neocapitalismo a níveis cada vez
mais altos, o movimento operário hodierno tem
acentuado os seus objetivos de revolução total da
sociedade e de oposição ao poder, de gestão da
sociedade desde a base. A classe operária dos países
desenvolvidos não só não se integrou nesta ação, coisa
que deveria acontecer tanto segundo a teorização da
sociologia política e industrial do neocapitalismo
como segundo as interpretações intelectualistas do
irracionalismo ultra-revolucionário de esquerda, mas
se robusteceu sob o ponto de vista orgânico e
combativo. Mostrou-se vã e puramente abstrata a
contraposição entre um Movimento operário
totalmente "institucionalizado" e atuante dentro do
pequeno espaço permitido pelo Estado e pelo grande
capital, e a ação operária espontânea, de maior relevo,
por exprimir as reais aspirações revolucionárias da
nossa época: com efeito,, é fácil observar que os dois
modos de ação indicados não são senão componentes
diversos de um único movimento e que privilegiar um
em prejuízo do outro ou negar este significa
desvirtuar-lhe toda a ação.
A classe operária, com suas vanguardas, partido
(ou partidos) e sindicato, evolve na sociedade tardocapitalista, para o Movimento operário, não apenas
quando dirige a sua luta contra os detentores dos
meios de produção e suas expressões políticas, mas
também quando combate conceptual e organicamente
todos os grupos e núcleos que, desviados do contexto
da classe e operando em planos abstratos, se
autoproclamam avançada extremista, mas que têm por
único objetivo destruir-lhe as manifestações
organizativas e
785
impedir-lhe tanto os intentos reformistas quanto a
ação revolucionária.
Após tal constatação, é também oportuno salientar
que historicamente, nos anos mais recentes e nos
países de mais elevado desenvolvimento industrial, os
métodos de organização do Movimento operário ou
seguiram com freqüência caminhos diversos dos
traçados pela "tradição" classista, ou deram
indiscutivelmente lugar a fenômenos de aparente
degeneração corporativa, entre os quais se podem
contar tanto algumas manifestações de tradeunionismo enclausurado em si mesmo, quanto
variadas expressões sindicalistas ou partidárias
particulares, tais como o peronismo.
Não obstante, o método e os esquemas de origem
marxista ainda hoje servem para definir o status social
do Movimento operário. Mas nem sempre são capazes
de lhe delinear as atitudes políticas, quer se refiram às
massas, quer aos indivíduos. Intervém então outros
instrumentos culturais ou cognitivos que deveriam
permitir uma abordagem mais precisa da situação do
Movimento operário na época contemporânea e
mostrar, de modo peremptório, as condições de vida do
trabalhador e das classes dos trabalhadores
dependentes. Esses instrumentos são-nos oferecidos
pelas ciências sociais: com eles se estudam e
observam os comportamentos dos trabalhadores dos
países industrialmente mais avançados (por exemplo,
Estados Unidos da América, Suécia, Alemanha
ocidental, etc). O resultado da pesquisa é que, mesmo
abandonando o mais das vezes qualquer perspectiva
revolucionária e toda a independência no plano
político, o Movimento operário e os trabalhadores
dependentes mantêm uma autonomia psico-intelectual
e uma série de comportamentos semelhantes ou
paralelos que fazem com que se conserve também
uma independência e uma unidade de necessidades
internas e externas e de regras individuais e coletivas
que coincidem, afinal, com a visão tradicional e
marxista da "classe". Esta se expressa na teorização da
luta de classes, que é ainda hoje conatural ao mundo
hodierno, se bem que tenha de adaptar-se às mudanças
estruturais que vão constantemente ocorrendo.
Testemunhamos assim a recuperação integral, entre os
temas do Movimento operário, de objetivos a realizar
não já em tempos indeterminados, mas dentro de
prazos preciosos, como: a autogestão e o "autogoverno
dos produtores", a co-gestão, uma nova forma de
associonismo cooperativo, a democracia direta na
fábrica (democracia industrial), etc. Todos estes
projetos e propostas se hão de inserir em contextos
nacionais e sociais diversos, e têm recebido e
continuam recebendo soluções várias. Mas ajudam
sempre a
786
MOVIMENTO POLÍTICO
comprovar a validade da ação autônoma do
Movimento operário e demonstram, em suma, a
continuidade da sua essência classista e globalmente
alternativa, embora com todas as suas contradições
internas, tanto em relação às sociedades burguêscapitalistas como às burocrático-coletivistas.
É precisamente no mundo de hoje que se obtém a
confirmação da análise marxista, historicamente
relacionada com o ano de 1848 e com a Comuna de
1871, para a qual o Movimento operário se afirma, em
sua perspectiva revolucionária e em suas propostas
socialistas: a) quando do mundo desenvolvido, onde
podem surgir confluências socialistas, passa ao
mundo atrasado, onde os problemas da sobrevivência
são decisivos; b) quando repele toda a hipótese de
impaciência revolucionária que negue o presente, sem
querer partir diretamente dele para a construção do
futuro; c) quando atua imediatamente no plano das
reformas para alcançar e efetuar, revolucionariamente,
dentro de um breve ou longo prazo, conforme as
condições político-sociais e econômicas, a
transformação integral da sociedade.
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[GIAN MARIO BRAVO]
Movimento Político.
Uma correta definição de Movimento político tem
de levar em conta ambos os elementos da expressão.
"Movimento" se distingue especificamente de partido
e indica a não institucionalização de uma idéia, um
grupo, uma atividade. "Político" se refere aos
objetivos do movimento, à sua atuação na área das
decisões coletivas, ao seu empenho em questionar os
detentores do poder de Governo e em influir nos
processos decisórios. Pelo que respeita aos aspectos
da não-institucionalização e dos objetivos, tem-se
falado, no curso da história, de movimento liberal e de
movimento socialista, para indicar não apenas as
correntes de pensamento, mas também as
organizações relacionadas com as idéias liberais e
socialistas; de movimento católico no mesmo sentido,
em referência às diversas organizações católicas
presentes nos vários setores da vida social e política;
de movimento operário em relação aos vários grupos
e organizações (incluídos os partidos e sindicatos) que
pretendem fazer-se portadores dos interesses da classe
operária em sentido lato.
Mais recentemente, tem havido organizações
atuantes na cena política que adotaram a denominação
de movimento para se distinguirem especificamente
dos partidos. O Movimento Social italiano, por
exemplo, o Movimento Republicano Popular na
França do segundo pós-guerra, o movimento gaullista
em suas várias encarnações, e o movimento peronista,
todos eles se propõem criticar as organizações
partidárias e pôr em relevo sua inserção apenas
parcial na vida política institucionalizada. A
expressão "movimento" é usada, de modo particular,
para tornar patente, ao mesmo tempo, a necessidade
de ligames profundos com os grupos sociais e o
enraizamento neles, bem como um certo
distanciamento das práticas políticas dos partidos.
Contudo, as reivindicações, as exigências, as
instâncias e a própria representação dos interesses dos
grupos de referência por parte dos mais diversos
movimentos se dão no âmbito político e, mais
especificamente, dentro da esfera da atividade
partidária.
Sob o ponto de vista da estrutura e das atividades,
os Movimentos políticos não diferem muito dos
MOVIMENTOS SOCIAIS (v.), mesmo que, em
MOVIMENTOS SOCIAIS
geral, a sua estrutura tenda a ser menos fluida e
evanescente e as suas atividades, por definição, mais
centradas na esfera política e orientadas a levar mais
em consideração as relações políticas de força. Os
Movimentos políticos enfrentam o problema da
formação de identidades coletivas, ainda que amiúde
exista uma ideologia de fundo (liberal, socialista,
católica) que simplifica essa tarefa. Com o decorrer
do tempo, vêem-se diante do problema da manutenção
e renovação dessas identidades coletivas: experiência
comum não só às três grandes correntes de
pensamento e às respectivas organizações acima
mencionadas, mas também, por exemplo, ao
movimento operário em face das grandes
transformações sócio-econômicas que envolveram a
classe operária nos países industrializados.
Finalmente, os movimentos políticos, conquanto
pretendam apresentar-se como o intermediário mais
eficaz entre os setores da sociedade civil e o sistema
político de organizações estruturadas, tais como os
partidos e sindicatos, sofrem as conseqüências da
tensão irresoluta entre o conceito que eles têm de si
mesmos e as pressões da vida política que impõem uma
estruturação, a criação de hierarquias e a aceitação das
regras de jogo.
De modo similar ao dos movimentos coletivos, os
Movimentos políticos exprimem, com a sua formação
e consolidação, as tensões e contradições presentes na
vida política. E, tal como acontece com os movimentos
coletivos, seu sucesso na introdução de transformações
e mudanças na política organizada depende da sua
capacidade de manter o exato equilíbrio entre a
presença nos setores sociais de que são expressão, a
representação dos seus interesses e a carga que é
transfundida na esfera política, sem se tornarem
prisioneiros das normas dessa mesma esfera. A
multiplicidade dos movimentos políticos é testemunho,
ao mesmo tempo, da vivacidade e vitalidade de um
sistema político, da existência de contradições e da
busca de soluções. Os Movimentos políticos
constituem, em resumo, a linfa que transforma os
sistemas políticos contemporâneos.
787
debatido e controverso, a análise dos comportamentos
coletivos e dos Movimentos sociais ocupa um lugar
central na teoria e na reflexão sociológica, quer dos
contemporâneos, quer dos clássicos. Contudo, e talvez
por isso, não foi elaborada até hoje uma teoria
totalmente abrangente e inteiramente satisfatória da
problemática em exame.
Esquematizando, podemos distinguir a existência de
duas correntes na reflexão dos clássicos. De um lado
estão os que, como Le Bon, Tarde e Ortega y Gasset,
se preocupam com a irrupção das massas na cena
política e vêem nos comportamentos coletivos da
multidão uma manifestação de irracionalidade, um
rompimento perigoso da ordem existente; antecipam
assim os teóricos da sociedade de massa. De outro
lado estão os que, como Marx, Durkheim e Weber, se
bem que com alcance e implicações diversos, vêem
nos movimentos coletivos um modo peculiar de ação
social, variavelmente inserida ou capaz de se inserir
na estrutura global da sua reflexão, quer eles denotem
transição para formas de solidariedade mais
complexas, a transição do tradicionalismo para o tipo
legal-burocrático, quer o início da explosão
revolucionária.
Em todos estes autores, bem como naqueles que lhes
haviam de seguir, existem alguns elementos comuns
na análise dos comportamentos coletivos e dos
Movimentos sociais: o acento sobre a existência de
tensões na sociedade, a identificação de uma mudança,
a comprovação da passagem de um estádio de
integração a outro através de transformações de algum
modo induzidas pelos comportamentos coletivos. Mas
é diversa a importância por eles atribuída aos
componentes psicológicos em relação aos sociológicos,
aos aspectos microssociais em relação aos
macrossociais, e, enfim, ao papel dos agentes em
relação à dinâmica do sistema.
Havendo de proceder a uma definição que não
comprometa a análise nem esqueça as diferenças entre
as
várias
interpretações,
dir-se-á
que
os
comportamentos coletivos e os movimentos sociais
constituem tentativas, fundadas num conjunto de
valores comuns, destinadas a definir as formas de ação
[GIANFRANCO PASQUINO] social e a influir nos seus resultados. Comportamentos
coletivos e Movimentos sociais se distinguem pelo
Movimentos Católicos. — V. Partidos Católicos e grau e pelo tipo de mudança que pretendem provocar
no sistema, e pelos valores e nível de integração que
Democrático -Cristãos Europeus.
lhes são intrínsecos.
Para proceder a uma especificação, será útil
retomar a distinção feita por Alberoni entre fenômenos
Movimentos Sociais.
coletivos de agregado e fenômenos coletivos de grupo.
Nos fenômenos coletivos de agregado, dá-se um
I. COMPORTAMENTOS COLETIVOS E MOVIMENTOS
comportamento similar num grande número de
SOCIAIS. — Tema fascinante tanto como
indivíduos, sem que se formem
788
MOVIMENTOS SOCIAIS
novas identidades. Uma vez desaparecido o elemento,
a tensão, a disfunção que deu lugar a tais
comportamentos coletivos, bem pouco terá mudado
em quem neles participou. E o caso do pânico, da
multidão, da moda, do boom. Nos fenômenos
coletivos de grupo, pelo contrário, os comportamentos
semelhantes dão origem ao surgimento de novas
coletividades, caracterizadas pela consciência de um
destino comum e pela persuasão de uma comum
esperança. Como afirma Alberoni, esta distinção se
baseia tanto em elementos derivados da experiência
subjetiva (participação ou não), como no resultado
objetivo do movimento (formação ou não de novas
entidades sociais). A partir desta distinção, nos
limitaremos e restringiremos a análise aos
Movimentos sociais, deixando de lado todas aquelas
formas de comportamentos coletivos que representam
fenômenos de agregado.
Há um último ponto aparentemente importante:
sublinhar que, embora a exposição tenha
particularmente em vista os Movimentos sociais
como fenômeno coletivo de grupo, será bom recordar
que a análise dos Movimentos sociais há de levar
também em consideração as características, as
exigências e os valores de cada um dos agentes. Esta
análise se situa na interseção entre o comportamento
do agente e a dinâmica do sistema, correndo todos os
riscos dessa colocação. No passado, o risco mais
grave e muitas vezes deletério foi o de um certo
reducionismo psicológico. Em tempos mais recentes,
surgiu o perigo da submersão do agente individual
dentro do movimento e da conseqüente falta de uma
análise dos participantes, das suas motivações, dos
seus recursos e das suas incumbências.
II. INTERPRETAÇÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS. — Já
dissemos que os contemporâneos estão geralmente
conscientes de que a análise dos Movimentos sociais
deve situar-se dentro de uma teoria ou, em todo o
caso, dentro de um quadro de referência da ação
social. No âmbito do esquema estrutural-funcionalista
de Talcott Parsons, um seu autorizado discípulo, Neil
Smelser, formulou uma interpretação global dos
Movimentos sociais que constitui, com suas luzes e
sombras, um ponto essencial de partida.
Fundamentalmente, a posição de Smelser pode ser
assim sintetizada: "os episódios de comportamento
coletivo constituem amiúde um primeiro estádio de
mudança social, manifestam-se quando se apresentam
condições de tensão, mas antes que os meios sociais
tenham sido mobilizados para um ataque específico e
quiçá eficaz às causas dessa tensão. Esta é uma das
razões para definir o comportamento coletivo como
não
institucionalizado; isto se verifica quando a ação social
estruturada está sob tensão e quando os meios
institucionalizados para o domínio da tensão são
inadequados. . . . O controle social bloqueia as
tentativas precipitadas dos episódios coletivos em
busca de resultados rápidos; além disso, se o controle
social é efetivo, canaliza as energias dos fins coletivos
para tipos mais modestos de comportamento" (1968,
167).
A teoria de Smelser funda-se na identificação de
quatro componentes básicos da ação social: "1) as
metas gerais, ou valores, que fornecem a mais ampla
guia ao comportamento social orientado a um fim; 2)
as regras que regem a consecução de tais propósitos,
regras que se hão de basear em normas; 3) a
mobilização da energia individual para atingir os fins
estabelecidos dentro da estrutura normativa; ... 4) as
facilitações que o agente aproveita como meios; estas
compreendem o conhecimento do ambiente, a
possibilidade de predizer as conseqüências da ação,
assim como a habilidade e os meios" (1968, 96-7).
A dinâmica social é o resultado do encontro dos
quatro componentes básicos, tomados conjunta ou
individualmente, com os fatores determinantes de
maior importância do comportamento coletivo. Tais
fatores são: a propensão estrutural, ou seja, a
predisposição de um sistema social a ser permeado
por comportamentos coletivos; a tensão estrutural,
isto é, o fenômeno específico que se gera no âmbito
das condições de propensão; o surgimento e difusão de
uma crença generalizada; a existência de fatores de
precipitação; a mobilização dos participantes na ação;
a intervenção do controle social. Baseado nas diversas
combinações possíveis, o abalizado funcionalista
norte-americano propõe uma explicação de todos os
fenômenos de comportamento coletivo.
Conquanto substancialmente única em seu gênero, a
teoria de Smelser tem sido objeto de numerosas
críticas. Muitas destas críticas se dirigem, não contra
a teoria específica, mas contra os fundamentos da
análise
estrutural-funcional
que
anulariam
inevitavelmente os próprios resultados da sua
aplicação ao campo dos comportamentos coletivos.
São três mais particularmente os elementos que
constituiriam, segundo alguns críticos (por exemplo,
Alberoni, autor da introdução à tradução italiana), os
pontos fracos da teoria de Smelser. Antes de tudo, há
nela uma excessiva acentuação do papel e peso das
crenças na formação dos comportamentos coletivos.
Isso prejudica a relevância que merecem as condições
histórico-estruturais e sua especificidade. Em segundo
lugar, a teoria de Smelser parece
MOVIMENTOS SOCIAIS
penetrada de uma faixa de irracionalismo, atribuída
aos comportamentos coletivos com a mudança que
seria produzida por uma fonte externa à coletividade
(como diz Alberoni, isto "é algo objetivo que acontece
e a que cada um reage"). Finalmente, é o próprio
pressuposto do estrutural-funcionalismo que é
contestado. Enquanto Smelser vê nos fenômenos
coletivos a mostra de uma disfunção social que tem de
ser de algum modo reabsorvida para que o sistema
continue a subsistir, seus críticos parecem ver nisso,
não só o indício de conflitos inevitáveis, mas
sobretudo um grato fator de mudança.
Conquanto não isenta de carências, a teoria de
Smelser continua sendo um dos esforços mais
ambiciosos e mais estimulantes de compreensão dos
comportamentos coletivos. Algumas das críticas acima
referidas podem ser compartilhadas. Parece menos
aceitável a posição de quem rejeita toda a teoria só
porque, na tentativa de elaborar um quadro global,
parte da perspectiva do sistema social e do seu
funcionamento mediante adaptações sucessivas,
provocadas pelo surgir de crenças generalizadas que se
encarnam em comportamentos coletivos.
A alternativa teórica mais importante se fez
aguardar mais de dez anos. Insere-se num esquema de
interpretação global da sociedade que intenta uma
fecunda combinação de condições estruturais com
mecanismos de funcionamento e reprodução do
próprio sistema social. É dentro desta perspectiva que
o sociólogo francês Alain Touraine afirma que "os
movimentos sociais pertencem aos processos pelos
quais uma sociedade cria a sua organização a partir do
seu sistema de ação histórica, através dos conflitos de
classe e dos acordos políticos" (1975, 397).
Os fundamentos da teoria de Touraine são
constituídos pelos três princípios da identidade, da
oposição e da totalidade. Pelo princípio de identidade,
o agente dá uma definição de si mesmo, caracteriza-se
em confronto com outros agentes em meio de um
conflito que os contrapõe no campo da ação social. "O
conflito faz surgir o adversário, forma a consciência
dos agentes que se defrontam" (415): este é o
princípio de oposição. Finalmente, "o princípio de
totalidade não é senão o sistema de ação histórica por
cujo domínio lutam os adversários, entrincheirados na
dupla dialética das classes" (416): quanto mais
importantes forem os Movimentos sociais, tanto maior
força terá o princípio de totalidade.
Dentro da sua teoria estrutural da ação social,
Touraine parece inverter a explicação apresentada por
Smelser da gênese dos comportamentos coletivos.
Enquanto para o autor norte-americano a fonte da
mudança reside numa disfunção que
789
muitas vezes parece de origem extrínseca ao sistema
social, para o sociólogo francês é mister "reconhecer
que um movimento social não è a expressão de uma
contradição; ele faz explodir um conflito. É uma
conduta coletiva orientada não para os valores da
organização social ou para a participação num sistema
de decisões, mas para o objeto dos conflitos de classe
que é o sistema de ação histórica" (1975, 418).
Enfim, em parte na esteira de Smelser, em parte em
contraste com ele, Touraine mostra que o caminho da
construção de uma tipologia dos movimentos passa
pela consideração de quatro variáveis, chamadas de
"tratamento" Elas dizem mais precisamente respeito: à
relação mais ou menos forte de uma sociedade à sua
historicidade ou ao seu dinamismo; à natureza do
adversário de classe; à aptidão do sistema político
para institucionalizar os conflitos sociais e os
problemas de organização; ao grau de integração da
organização social (475-76).
A análise estrutural de Touraine, complexa e muitas
vezes de difícil compreensão, de quando em quando
incompleta e um pouco genérica, fixa-se mais na
dinâmica das estruturas que no papel das crenças e na
importância dos valores, acabando, não raro, por
descuidar excessivamente esses componentes da ação
social. Se Smelser se havia inclinado em demasia a
favor de crenças e valores, Touraine reequilibra
desmedidamente a sua análise dos Movimentos sociais,
apontando apenas para as estruturas. Em segundo
lugar, se Smelser tinha procurado ser globalmente
abrangente, tentando, por isso, oferecer um quadro
teórico capaz de explicar todos os fenômenos de
comportamento coletivo pela tendência à revolução
(mas, na verdade, de revolução, ou seja, de um
"movimento baseado em valores", se fala pouco),
Touraine cai no inconveniente oposto. O sociólogo
francês se desinteressa pelos comportamentos coletivos
e se ocupa quase exclusivamente dos Movimentos
sociais, mais particularmente dos movimentos sociais
capazes de influir profundamente na estruturação de
um sistema social. Com tal procedimento, porém,
parece indicar que um sistema social só muda
mediante conflitos de grande relevo e não igualmente
mediante adaptações de breve duração, marginais,
incompletas, de pequena importância, mas que deixam
marcas.
De resto, embora carecendo de um ulterior
aprimoramento e de um mais forte apoio empírico, a
teoria dos Movimentos sociais de Touraine se
apresenta como uma válida alternativa da teoria de
Smelser, mesmo no plano da reflexão ideológica. Com
efeito, enquanto Smelser vê nos comportamentos
coletivos elementos de
790
MOVIMENTOS SOCIAIS
impaciência e de irracionalismo, Touraine anuncia
que "o projeto de um Movimento social não se define
pelo horizonte para onde avança, mas pela sua
capacidade de repelir toda a ordem social e de ser o
instrumento das dialéticas da ação histórica" (494).
A análise de Alberoni, produto de uma longa fase
de maturação passada, na reflexão sobre o vedetismo,
o consumismo, o folclore e a propaganda, se situa
num plano ligeiramente diferente do de Smelser e de
Touraine. Também ele pretende elaborar uma teoria
abrangente dos movimentos coletivos, baseada na sua
útil e já mencionada distinção entre fenômenos
coletivos de agregado e fenômenos coletivos de
grupo. Mas a sua atenção acaba por ser atraída por
uma problemática de grande importância, situada na
interseção da psicologia do empenho do agente
individual com a sociologia da mudança dos sistemas
sociais. O objeto específico da reflexão de Alberoni é
o estado nascente.
"... o estado nascente é um estado de transição do
social em que se cria uma solidariedade alternativa e
uma exploração das fronteiras do possível, dado um
tal tipo de sistema social, com o fim de maximizar o
que é realizável dessa solidariedade nesse momento
histórico" (1977, 44). Partindo de Max Weber e
fazendo reviver, de forma inovadora, muitas das suas
temáticas, Alberoni se interessou pelo estudo do
problema da ruptura de velhas solidariedades e das
modalidades de criação de outras novas, da
consolidação de estados fluidos, da transição de
movimento à instituição, da institucionalização dos
movimentos e da rotinização do carisma (segundo a
famosa expressão weberiana). A análise de Alberoni
possui, pois, um ponto de convergência bem preciso,
que é a óptica pela qual o sociólogo vê a problemática
dos comportamentos e dos movimentos coletivos.
O estudo do Estado nascente passa, mais
especificamente, por quatro fases, reciprocamente
relacionadas: "as pré-condições estruturais (o
quando), os sujeitos, ou seja, quem, que parte do
sistema social é envolvida, a experiência fundamental
(o como) e a dinâmica psicológica (o porquê)" (1977,
44). No curso da análise e em suas numerosas e
brilhantes aplicações a fenômenos concretos (1976),
Alberoni dará, aliás, maior espaço aos fenômenos de
"efervescência coletiva", como os define Durkheim,
mais, portanto, ao Estado nascente propriamente dito
que às pré-condições estruturais, maior importância
às mutações sócio-psicológicas dos agentes que às
suas conseqüências para o sistema social.
Definido um movimento coletivo como "o processo
histórico que se inicia com o Estado
nascente e termina com a reconstituição do momento
cotidiano institucional" (1977, 303), a análise se dirige
a todos aqueles fatores que levam à manifestação do
Estado nascente. A fase de institucionalização dos
movimentos e, conseqüentemente, a avaliação do seu
impacto sobre o sistema social (elementos que
contaram com um espaço nas teorias de Smelser e de
Touraine) ficam relativamente esquecidas na teoria de
Alberoni. A interessante e virtualmente fecunda
observação de que "a diferença fundamental relativa à
entrada no Estado nascente e à institucionalização está
em que, enquanto esta consiste na passagem de uma
situação diferenciada a uma situação uniforme, na
saída temos a passagem de uma situação uniforme a
uma diferenciada" (1977, 183), não está
convenientemente elaborada.
A conseqüência mais importante referente à
proposta teórica de Alberoni e à sua adequação é que
a interpretação dos movimentos coletivos que daí
emerge é feita à luz do Estado nascente e nele fica
essencialmente prisioneira. O Estado nascente é a fase
positiva que brilha com luz clara, que exprime as
potencialidades de transformação e de realização. A
cotidianidade e a institucionalização, ao contrário,
constituem uma espécie de traição, uma prisão que
comprime energias; estas, no entanto, conseguem com
freqüência soltar-se e pôr em andamento os
necessários processos de mudança.
A análise estrutural dos movimentos fica com isso
um pouco prejudicada; algumas das críticas feitas por
Alberoni ao caráter genérico de Smelser parecem
voltar-se contra ele. Causou particularmente notável
perplexidade a sua definição (e conseqüente
assimilação teórica) do enamoramento como de um
"movimento coletivo a dois", com base na sua
natureza de Estado nascente. Contudo, o que parece
uma aporia é a conseqüência direta de uma teoria
centrada na problemática da ruptura-criação-ruptura
de velhas e novas solidariedades com forte
componente psicológico. Deste modo, em resumo,
enquanto se mantém ao nível da análise explicativa do
Estado nascente e dos elementos que nele confluem, a
teoria de Alberoni é inovadora e elucidativa. Se
excessivamente alargada, perde especificidade e vê
reduzido o seu poder explicativo, particularmente no
que respeita a uma análise precisa dos movimentos
coletivos.
III. AGENTES, TIPOS DE MOVIMENTOS E MUDANÇA
— De um modo ou de outro, qualquer das
teorias apresentadas fornece elementos úteis para a
identificação dos agentes, para a classificação dos
movimentos e para a
SOCIAL.
MOVIMENTOS SOCIAIS
avaliação da mudança social. Elas sintetizam em
parte os resultados de numerosas pesquisas empíricas
e em parte sugerem novas perspectivas de
investigação.
Quanto aos agentes, a questão mais interessante da
pesquisa está em identificar quem se mobiliza em
primeiro lugar, que agentes (indivíduos ou grupos)
podem exercer e assumiram historicamente a função
de liderança, e, finalmente, quais os recursos de que
dispõem. Durante algum tempo, a tese predominante
viu nos agentes marginais, nos alienados do sistema, e
nos excluídos de participar, os potenciais inovadores,
os mais inclinados a fazer explodir o conflito e a
desencadear o processo de criação de um movimento.
Mas uma série de pesquisas mais recentes
(particularmente Wilson, 1973, e Melucci, 1976)
evidenciaram, pelo contrário, que os agentes que
iniciam o Movimento social não são os
marginalizados. Quando muito, estes poderão
constituir, em determinadas circunstâncias e dentro de
certas condições, uma base importante para a
expansão e consolidação do movimento. Mas a
liderança é constituída por indivíduos não periféricos,
mas centrais.
Como observou, de forma convincente, Melucci
(1977, 109), "os primeiros a se rebelar não são os
grupos mais oprimidos e desagregados, mas os que
experimentam uma contradição intolerável entre a
identidade coletiva existente e as novas relações
sociais impostas pela mudança. Estes podem
mobilizar-se mais facilmente, porque: 1) já contam
com uma experiência de participação, isto é,
conhecem os procedimentos e métodos de luta; 2)
possuem já lideres próprios e um mínimo de recursos
de organização que provêm dos vínculos comunitários
ou associativos preexistentes; 3) podem utilizar redes
de comunicação já existentes para fazer circular novas
mensagens e novas palavras de ordem; 4) podem
descobrir facilmente interesses comuns". Entre os
exemplos concretos, escolhidos expressamente de
contextos e movimentos tão distantes quão diversos
entre si, bastará mencionar o papel dos pastores
protestantes de cor da Southern Christian Leadership
Conference (entre eles, obviamente, Martin Luther
King) no estímulo à mobilização pelos direitos civis e,
de outro lado, a mobilização dos operários
qualificados que serviram de base ao ciclo de lutas que
tiveram lugar na Itália, entre 1968 e 1972.
Existe, como é natural, uma relação entre os
agentes da mobilização e os tipos de movimentos daí
resultantes. Seguindo basilarmente as indicações de
Touraine, Melucci propôs uma distinção entre
movimentos reivindicativos, movimentos políticos e
movimentos de classe, baseada nos
791
objetivos perseguidos. No primeiro caso, trata-te de
impor mudanças nas normas, nas funções e nos
processos de destinação dos recursos. No segundo, se
pretende influir nas modalidades de acesso aos canais
de participação política e de mudança das relações de
força. No terceiro, o que se visa é subverter a ordem
social e transformar o modo de produção e as relações
de classe. A passagem de um tipo a outro depende de
numerosos fatores, dentre os quais não é de somenos
importância o tipo de resposta que o Estado agente
pode dar, bem como da capacidade dos movimentos
em aumentar seus seguidores e em incrementar suas
exigências.
Amplia-se assim o campo da análise dos tipos de
mudança que os Movimentos sociais introduzem ou
introduziram nos sistemas de onde emergiram e, por
isso, também da análise global dos sistemas sociais.
Centrada muitas vezes na problemática da
institucionalização (para a qual o namoro preludia o
matrimônio, a religião se traduz na formação de uma
Igreja, os movimentos convergem para partidos ou
para associações estruturadas), a análise das mudanças
provocadas pelos movimentos demonstrou-se até hoje
inadequada. Recentemente, Alberoni atribuiu grande
importância à fase de desemboque para a identificação
de um movimento, afirmando que "o estudo do
desemboque é importante, porquanto, na análise
histórica, o resultado final constitui amiúde o ponto de
partida para a interpretação dos movimentos e dos
seus propósitos" (1977, 313).
Em geral, porém, a observação e pesquisa dos
movimentos coletivos têm estado voltadas para a fase
do Estado nascente e para a das reivindicações. A fase
da institucionalização tem, pelo contrário, merecido
menor atenção, sendo muitas vezes criticada por
atraiçoar as origens e extinguir o impulso inovador.
Com efeito, os estudiosos dos movimentos têm
freqüentemente oscilado entre o pólo de uma adesão
apaixonada aos movimentos, como esperança de
regeneração total e de completa transformação dos
sistemas sociais para além da política, e o pólo de
uma rejeição das formas de participação extrainstitucionais, não canalizadas nos moldes
tradicionais do funcionamento dos sistemas sociais.
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York 1973.
primitivo isolamento cada uma das sociedades em que
o mundo está dividido e tornando o mundo cada vez
mais estreitamente interdependente em suas partes.
Formou-se desta maneira um sistema econômico,
social e político de dimensões mundiais (mercado
mundial e sistema mundial dos Estados), de cuja
evolução depende o destino de todos os homens e de
todos os povos. Um crescente número de problemas
de grande relevância para o futuro do gênero humano
adquiriu, na verdade, dimensões mundiais. De uma
parte, a descoberta da energia nuclear que acena para a
promessa de uma abundante fonte de energia a baixo
custo, torna possível, ao mesmo tempo, a destruição
física da humanidade. Por conseqüência, a superação
da guerra como instrumento destinado a resolver os
conflitos internacionais tornou-se agora indispensável
para a garantia da sobrevivência da humanidade.
Por outra parte, à explosão demográfica criada pela
divulgação dos conhecimentos que permitiram a
redução da taxa de mortalidade em todo o mundo não
correspondeu um volume de produção julgado
suficiente para satisfazer às necessidades elementares
das populações dos países em vias de
desenvolvimento. Finalmente, a Revolução Industrial,
[GIANFRANCO PASQUINO]
que provocou um enormíssimo desenvolvimento das
condições de vida da massa popular veio
comprometer o equilíbrio do ambiente urbano e
natural, deteriorando a qualidade de vida pelo
Mundialismo.
congestionamento e poluição das regiões mais
O Mundialismo é o movimento que tem como industrializadas e pela decadência econômica das
objetivo a construção da unidade política mundial. regiões mais atrasadas. Este desequilíbrio patente no
Nele confluem aspirações cosmopolitas e pacifistas, seio dos Estados envolvidos no processo de
qualificadas pela indicação dos instrumentos industrialização tem dimensões mundiais e se
institucionais necessários para garantir suas manifesta de uma forma mais grave na divisão entre
países industrializados e Terceiro Mundo.
realizações.
Estes exemplos mostram que o progresso técnico
Ele afirma o princípio da unidade (pluralista) do
despertou forças cegas que escapam ao controle
gênero humano acima das divisões nacionais e a
político e ameaçam destruir as condições que
necessidade de um seu ordenamento pacífico capaz de
asseguraram o desenvolvimento da civilização.
garantir a unidade do planeta e, ao mesmo tempo, a
Perante estes problemas surge a exigência de
autonomia de todos os Estados.
desvincular a determinação do desenvolvimento
O Movimento mundialista se desenvolveu econômico e social do mundo das forças do mercado
especialmente durante e após a Segunda Guerra e das relações de força entre os Estados, submetendoMundial, baseado no horror que suscitou a crueldade e a a um Governo e a um plano mundial.
a devastação da guerra. Sob o aspecto históricoNo âmbito do Mundialismo podemos distinguir
social, o Mundialismo é o reflexo do processo de
ampliação das dimensões das relações de produção e de duas correntes; a confederalista e a federalista. A
primeira se limita a apoiar a ONU. A segunda,
troca que, em perspectiva histórica, tende a criar a
base material da unificação política do gênero identificando os limites dos atuais instrumentos de
organização internacional, permite identificar os
humano, prefigurada mas não realizada no plano
motivos do fracasso da ONU em garantir a paz.
institucional pela ONU.
Não se trata, de fato, de uma organização
Com efeito, o desenvolvimento da Revolução
Industrial e mais recentemente da revolução científica internacional dotada de um poder próprio acima
determinou a ampliação das relações de produção e
de troca além das fronteiras dos Estados, fazendo sair
progressivamente de seu
MUNDIALISMO
dos Estados, mas de uma soma de Estados, cada um
dos quais conserva sua plena e ilimitada soberania.
O federalismo mundial indica um Governo federal
mundial capaz de transformar as atuais relações de
força entre os Estados em relações jurídicas, que são a
única garantia de uma ordem pacífica e legal para o
mundo. Ele não é senão uma corrente do
FEDERALISMO (V.) e se distingue do federalismo
europeu, africano, latino-americano e outros, porque
considera possível lutar
793
pela federação mundial sem que seja necessário passar
pela etapa intermediária das federações regionais. Na
base da divergência entre as duas correntes está a
discrepância sobre a relevância ou não das profundas
divisões e disparidades de regime político e de
desenvolvimento econômico entre as sociedades e os
Estados do planeta com o fim de viabilizar desde
agora o processo de unificação da política mundial.
[LUCIO LEVI]
Nação.
I. O NASCIMENTO DO TERMO NAÇÃO. — O termo
Nação, utilizado para designar os mesmos contextos
significativos a que hoje se aplica, isto é, aplicado à
França, à Alemanha, à Itália, etc, faz seu aparecimento
no discurso político — na Europa — durante a
Revolução Francesa, embora seu uso estivesse,
naquele período, bem distante da univocidade; na
literatura, o termo aparece com o romantismo alemão,
especialmente nas obras de Herder e Fichte, onde,
todavia, é usado unicamente na sua acepção
lingüístico-cultural. Para encontrarmos uma teorização
consciente da Nação como fundamento natural do
poder político, isto é, da fusão necessária entre Nação
e Estado, precisamos chegar até meados do século
XIX, já nas obras de Giuseppe Mazzini.
Foi assim que o termo Nação deixou de ser um
termo vago, que podia ser atribuído à simples idéia de
grupo, ou à idéia de toda e qualquer forma de
comunidade política. Precisamos lembrar a este
respeito que, assim como os africanos utilizam hoje o
termo Nação com referência à própria África, ou aos
Estados (isto é, às delimitações de grupos humanos
definidas pelas potências colonialistas), ou às tribos,
assim também os europeus, antes da Revolução
Francesa, utilizavam o termo Nação para indicar toda
a Europa, ou Estados como a França e a Espanha, ou
os Estados regionais, ou as simples cidades-Estado.
Ainda em Gioberti, por exemplo, encontramos a
expressão "Nação européia". Formas análogas de uso
encontramos hoje no contexto árabe (nação árabe,
egípcia, argelina, etc), assim como é possível
encontrá-las no contexto da "Nação eslava",
compreendendo em si outras Nações menores.
Precisamos também lembrar, no que diz respeito à
situação hodierna, que, onde não aconteceram
manifestações típicas da idéia de Nação, isto é, no
contexto anglo-saxônico, o termo Nação visa significar
mais a idéia genérica de comunidade política do que a
específica de um tipo bem definido de comunidade
política (v. por exemplo, a expressão americana the
nation and the states,
onde Nação tem o significado de uma comunidade
política, de certa forma, pluriestatal).
II. HISTÓRIA POSTERIOR DO TERMO. — A história do
termo tem sido um grande paradoxo. A referência à
Nação foi, no decorrer da Revolução Francesa e, mais
tarde, desde meados do século XIX até nossos dias, um
dos fatores mais importantes no condicionamento do
comportamento humano na história política e social.
Em nome da Nação se fizeram guerras, revoluções,
modificou-se o mapa político do mundo. Na Idade
Média uma pessoa, como bem ressalta Boyd C.
Shafer, deveria se sentir antes de tudo um cristão,
depois um borgonhês e, somente em terceiro lugar,
um francês (sendo que o sentir-se francês tinha, então,
um significado inteiramente diferente do atual). Na
história recente do continente europeu, após a
emergência do fenômeno nacional, foi invertida a
ordem das lealdades, assim o sentimento de pertença à
própria Nação adquiriu uma posição de total
preponderância sobre qualquer outro sentimento de
pertença territorial, religiosa ou ideológica. Assim, por
um lado, as lealdades e as identificações regionais e
locais foram praticamente eliminadas em função da
superior referência à Nação e, por outro lado, as
mesmas filiações ideológicas ou religiosas, que se
apresentam como universais pela sua própria essência,
foram, na prática, subordinadas à filiação nacional e,
conseqüentemente, perderam sua própria natureza
mais profunda. É prova disso, desde o início do século
XIX até os nossos dias, a história dos movimentos
liberal, democrático e socialista, cujo ápice foi a
falência do internacionalismo socialista, quando
eclodiu a Primeira Guerra Mundial, e da própria
religião católica, cujos sacerdotes abençoam os
exércitos nacionais, isto é, os instrumentos da
violência nas relações internacionais, traindo assim,
em nome da Nação, a vocação ecumênica da Igreja.
Não obstante isso tudo, o conteúdo semântico do
termo, apesar de sua imensa força emocional,
permanece ainda entre os mais confusos e incertos do
dicionário político. Foi justamente sua ambigüidade,
com a conseqüente impossibilidade
796
NAÇÃO
de uma aplicação unívoca no discurso político para
identificar na realidade os limites dos diferentes
grupos nacionais, uma das principais causas do papel
altamente negativo que a idéia de Nação tem
desenvolvido — nas relações internacionais — na
história moderna.
a França ou a Itália, não é algo original nem
espontâneo, e sim, pelo menos em parte, um fato
político, fruto da imposição a todos os membros de
um Estado, pelo poder político, de uma língua falada
apenas numa porção deste Estado, com a conseqüente
decadência dos dialetos e das línguas originais, às
vezes até línguas com grandes tradições literárias,
III. CONCEITOS CORRENTES ACERCA DA NAÇÃO. — como por exemplo o provençal; e, finalmente, que os
Normalmente a Nação é concebida como um grupo de costumes — a maneira de viver — de regiões próximas,
pessoas unidas por laços naturais e portanto eternos embora pertencentes a Nações diferentes que limitam
— ou pelo menos existentes ab immemorabili — e entre si, são, geralmente, bem mais parecidos do que
que, por causa destes laços, se torna a base necessária os costumes de regiões geograficamente situadas nas
para a organização do poder sob a forma do Estado extremidades opostas da mesma Nação; e assim por
nacional. As dificuldades se apresentam quando se diante.
busca definir a natureza destes laços, ou, pelo menos,
Além disso, a ênfase dada à língua e aos costumes
identificar critérios que permitam delimitar as coloca em crise, em lugar de esclarecer, a idéia
diversas
individualidades
nacionais, vigente de Nação. É inegável que o fato de falar a
independentemente da natureza dos laços que as mesma língua ou ter os mesmos costumes se
determinam.
constituem em laços profundos, identificadores de
Em primeiro lugar, a idéia de "laços naturais" grupos com fisionomia própria. Uma língua comum é
sugere, de imediato, a idéia de raça: com efeito, a o veículo de uma cultura comum e, portanto, acaba
identificação entre Nação e raça tem sido comum até criando laços importantes entre os que a falam, laços
à época do nazismo e permanece ainda hoje, embora que se inserem como elementos constitutivos da
na maioria dos casos de maneira implícita, o que é própria personalidade. A partilha em comum do
comprovado pelo testemunho das definições que os ambiente físico onde vive um grupo de pessoas, por
dicionários oferecem deste termo. Ora, não é preciso sua vez, liga suas experiências cotidianas, cria
demorar muito para demonstrar que o termo "raça" lembranças comuns, torna parecida sua maneira de
não possibilita a identificação de grupos que possuem viver e, portanto, se torna um elemento constitutivo de
limites definidos e que, de qualquer forma, as sua personalidade. É, porém, verdade também que os
classificações "raciais" tentadas pelos antropólogos — grupos identificados desta forma, e que podem receber
mediante critérios que variam para cada pesquisador o nome de "nacionalidades espontâneas" (M.
ou estudioso — de maneira alguma coincidem com as Albertini), não coincidem com as Nações como elas
são comumente percebidas e não precisam de poder
Nações modernas.
Uma segunda maneira de conceber a Nação nos é político para se manterem. E por esta razão que a estes
dada pela confusa representação de uma "pessoa grupos pode ser atribuído o caráter da espontaneidade,
coletiva", de um "organismo" vivendo vida própria, injustamente atribuído às Nações como elas são
diferente da vida dos indivíduos que o compõem. A normalmente percebidas.
Uma última concepção, que remonta a Ernest
amplitude destas "pessoas coletivas" coincidiria com a
de grupos que teriam em comum determinadas Renan, identifica a Nação — para além da existência
características, tais como a língua, os costumes, a de quaisquer laços objetivos — com a "vontade de
religião, o território, etc. . . É evidente que também viver juntos", o "plebiscito de todos os dias". Na
esta segunda forma de representação não chega a ser realidade esta tentativa de definição, em lugar de
nem o início de uma explicação. Com efeito, por um resolver o problema, foge dele porque o que definiria
lado, o conceito de "pessoa coletiva", de "organismo Nação neste caso, distinguindo-a de todos os outros
vivo", etc, não possui significação alguma na medida grupos baseados na adesão voluntária, seria a maneira
em que tenha a pretensão de caracterizar algo não de viver juntos. E é justamente este o problema que a
explicável mediante comportamentos individuais, definição de Renan deixa sem solução.
constatáveis empiricamente. E, por outro lado, os
IV. A NAÇÃO COMO IDEOLOGIA. — Um enfoque
critérios utilizados para delimitar a amplitude destes
"organismos" normalmente não identificam grupos que empírico para se chegar a uma definição positiva de
Nação
consiste, de acordo com M. Albertini, em
coincidem com as atuais Nações. Basta lembrar que
muitas Nações são plurilingües e que muitas línguas descobrir como a presença da entidade Nação se
são faladas em várias Nações, que, além disso, o evidencia no comportamento
monolingüismo de determinadas Nações, como
NAÇÃO
observável dos indivíduos, isto é, na identificação de
um "comportamento nacional". Esta indagação permite
estabelecer, em primeiro lugar, que o comportamento
nacional é um comportamento de fidelidade com
relação às entidades "França", "Alemanha", "Itália",
etc, sem maiores definições. Em segundo lugar, e é
aqui que se encontra sua especificidade, este
comportamento de fidelidade não se manifesta apenas
como fidelidade política ao Estado, mas implica a
presença de outros valores, cuja motivação autônoma,
considerada em si mesma, não é nem de ordem
política nem de ordem estadual, e que poderia ser
suficiente para identificar grupos de amplitude
diferente da amplitude nacional.
O sentimento italiano é, pois, ao mesmo tempo, o
sentimento de pertencer ao Estado italiano e a uma
entidade pensada como sendo uma realidade social
orgânica, na qual a caracterização "italiano" prevalece
sobre a caracterização "burguês", "proletário", etc...
Esta caracterização, inegavelmente, deforma o quadro
natural de referência de inúmeros comportamentos
cognitivos e valorativos, introduzindo a representação
falsa, por exemplo, de uma hipotética paisagem
italiana, em que desaparece o fato concreto da
paisagem lígure, padana, etc, ou de uma hipotética
realidade estética e cultural italiana, na qual é
reduzido ao quadro de referência italiano o fato
universal das expressões toscana, vêneta, etc, da
cultura européia; e assim por diante.
Trata-se, pois, de uma entidade ilusória, à qual não
corresponde
grupo
algum,
concretamente
identificável, que possa servir como natural quadro de
referência para comportamentos que normalmente
estão relacionados com "França", "Alemanha",
"Itália", etc...
Procurar nos indivíduos, mediante referenciais
subjetivos, o que vem a ser sentimento nacional, leva
a esta entidade ilusória. Utilizando referenciais
objetivos encontra-se um Estado, que todavia não é
pensado assim como é, mas como sendo justamente
esta entidade ilusória.
Tal fato permite afirmar que a Nação não passa de
uma entidade ideológica, isto é, do reflexo na mente
dos indivíduos de uma situação de poder.
O fato de a Nação ser uma ideologia é suficiente
para eliminar a idéia de que, antes do surgimento de
comportamentos nacionais conscientes a partir da
Revolução Francesa, existissem, assim como se quer
provar mediante a historiografia nacional, Nações
inconscientes. Isto não significa que não seja possível
nem legítimo identificar, na história, tendências que
levaram ao nascimento das modernas Nações. Seria,
porém, profundamente falho confundir o processo,
que
797
gerou as modernas Nações, com seu resultado. Enfim
é evidente que, por faltar qualquer elemento concreto
que individualize as nações, inexistem critérios, na
ausência de um sentimento consciente de fidelidade,
que permitam confirmar a existência de uma
hipotética Nação em potencial.
V. A NAÇÃO COMO IDEOLOGIA DE
DETERMINADO TIPO DE ESTADO. — A análise
até aqui efetuada já contém em si a caracterização do
tipo de situação de poder de que a idéia de Nação é um
reflexo. Desta situação decorre que a Nação é a
ideologia de um determinado tipo de Estado, visto ser
justamente o Estado a entidade a que se dirige
concretamente o sentimento de fidelidade que a idéia
de Nação suscita e mantém. Esta conclusão provisória
leva em consideração o conteúdo representativo do
termo. A função da idéia de Nação, como vimos, é a
de criar e manter um comportamento de fidelidade
dos cidadãos em relação ao Estado. A idéia de laços
naturais profundos, elemento integrante do núcleo
semântico fundamental do termo, desempenha esta
finalidade, inserindo-se na esfera mais íntima da
personalidade dos indivíduos, unidos justamente por
estes laços, a ponto de justificar a elaboração de um
ritual e de uma simbologia pseudo-religiosos.
Historicamente este sentimento foi criado pela
extensão forçada a todos os cidadãos do Estado de
alguns conteúdos típicos da nacionalidade espontânea
(por exemplo, a língua) ou, no caso de se revelar
inviável esta extensão, pela imposição da falsa idéia de
que alguns conteúdos típicos da nacionalidade
espontânea eram comuns a todos os cidadãos (por
exemplo, os costumes). Este processo se concretizou,
nos Estados que o levaram até às últimas
conseqüências, mediante a imposição a todos os
cidadãos
dos
conteúdos
característicos
da
nacionalidade espontânea predominante e mediante a
supressão das nacionalidades espontâneas menores (a
este respeito é paradigmático o caso da França).
O caráter ideológico da Nação explica também as
mudanças de enfoques — nas diferentes situações
histórico-políticas — com que são abordados seus
diversos e contraditórios conteúdos representativos.
Por ser a ideologia de um Estado, precisará adaptar-se
no seu conteúdo às diferentes exigências da razão de
Estado. Por isto, quando a Alsácia era objeto de
disputa entre a França e a Alemanha, a Nação era,
para os franceses, o grupo dos que "querem viver
juntos", enquanto era definida, pelos alemães, com
base na comunhão de língua e de costumes; assim,
antes da Primeira Guerra Mundial, Trento e Trieste
eram italianas porque seus habitantes
798
NAÇÃO
a não ser numa medida parcial e imperfeita — ao
abafamento das autênticas nacionalidades espontâneas,
substituindo-as pela idéia fictícia de Nação.
Esta diferença entre a experiência da Grã-Bretanha e
a continental é explicável pela diferente evolução do
VI. A NAÇÃO COMO IDEOLOGIA DO Estado nas duas áreas. Enquanto a situação geográfica
ESTADO BUROCRÁTICO CENTRALIZADO. — insular — facilmente defensável, portanto, unicamente
Conforme a tese até aqui debatida, a Nação é, pois, a com a armada naval — da Grã-Bretanha permitiu que
ideologia de um tipo de Estado.
esta conservasse, no decorrer dos tempos, uma
Resta ver que tipo de Estado é este. A este respeito estrutura estatal flexível e descentralizada, os Estados
surge como óbvia uma primeira consideração, por do continente europeu, expostos constantemente ao
sinal confirmada pela história do aparecimento do perigo de invasões por parte de seus vizinhos e,
termo, na sua acepção atual: o comportamento conseqüentemente, envolvidos numa permanente
nacional, assim como tem sido caracterizado até aqui, situação de guerra aberta ou latente, viram-se forçados,
não seria imaginável antes da Revolução Industrial ter para enfrentar com eficácia esta situação, a centralizar
criado contextos de interdependência no agir humano ao máximo o poder mediante a instituição do serviço
— mesmo limitados, num primeiro momento, militar obrigatório, da escola de Estado, da
unicamente à classe burguesa — que correspondem centralização administrativa, etc... Encontraram-se,
em extensão aos modernos Estados nacionais. Por isto, pois, na situação de ter que exigir de seus cidadãos um
na Idade Média, teria sido impossível qualquer grau de fidelidade ao poder sem precedentes, pelo
referência, no agir humano, às entidades "França", menos desde os tempos da cidade-Estado grega, que
"Alemanha", "Itália", etc, referência esta a nível de chegava a exigir de seus cidadãos até o sacrifício da
fato social e não apenas no contexto de esporádicas própria vida. Por outro lado, como conseqüência
lógica, precisaram de dispor de instrumentos aptos para
referências literárias.
A evolução do sistema de produção, provocada pela incutir artificialmente no íntimo dos próprios cidadãos
Revolução Industrial, criou mercados de dimensões estes sentimentos de fidelidade. A idéia de Nação,
"nacionais", ampliou conseqüentemente os horizontes mediante a representação de um obscuro e profundo
da vida cotidiana de camadas cada vez mais amplas da laço de sangue que orienta na mesma direção e
população e ligou ao Estado um conjunto de mediante o ritual pseudo-religioso que acompanha esta
comportamentos
econômicos,
políticos, representação, foi e permanece o instrumento mais
administrativos, jurídicos que, na fase anterior, eram indicado para criar e manter esta lealdade
potencialmente total.
totalmente independentes.
É assim que se pode chegar à definição de Nação
Concretizavam-se, assim, algumas das condições
necessárias para o nascimento da ideologia nacional. dada por Albertini: A Nação seria a ideologia do
Porém, não se tratava, ainda, de condições suficientes. Estado burocrático centralizado.
A ideologia nacional pressupõe, com efeito, a ligação
ao Estado não apenas dos comportamentos, meramente
VII. A SUPERAÇÃO DAS NAÇÕES. — Se a Nação nada
exteriores, que acabamos de listar, mas também dos mais é do que a ideologia do Estado burocrático
que constituem o sentimento íntimo da personalidade e centralizado, a superação desta forma de organização
da afinidade básica do grupo, ligação esta que não do poder político implica a desmistificação da idéia de
pode ser provocada unicamente pela evolução do Nação. Existem fundamentos concretos para esta
sistema de produção. É característico, por exemplo, o desmistificação. É um dado de fato que a atual
fato de que na Grã-Bretanha, contrariamente ao que evolução do sistema de produção na parte
aconteceu no continente europeu, o processo de industrializada do mundo, após ter levado à dimensão
ampliação do âmbito de interdependência nas relações "nacional" o âmbito de interdependência das relações
humanas, provocado pela Revolução Industrial, ligou pessoais, está atualmente ampliando este âmbito,
ao Estado o primeiro tipo de comportamento e não o tendencialmente, para além das dimensões dos atuais
segundo, tanto que os cidadãos britânicos, mesmo se Estados nacionais e aponta, com uma evidência cada
considerando cidadãos de um único Estado e presos a vez mais direta, para a necessidade de se organizar o
um dever comum de lealdade para com a Coroa, não poder político em níveis continentais e conforme
sentem como sua "pátria" a Grã-Bretanha, e sim a modelos federativos.
Inglaterra, a Escócia ou o País de Gales. Isto significa
que na Grã-Bretanha o desenvolvimento da Revolução
Industrial não levou —
eram de língua italiana, enquanto a partir do término
da Primeira Guerra Mundial, o Tirol do Sul é italiano
porque se acha situado dentro dos "limites naturais" da
Itália.
NACIONALISMO
799
legitimidade para a formação de um Estado
independente no sentido moderno; ao mesmo tempo,
afirma que um mundo onde haja ordem e paz poderá
ter, como fundamento, unicamente uma organização
internacional formada por nações soberanas.
Porém, juntamente com esta significação, outra
existe, mais restrita, que evidencia uma radicalização
das idéias de unidade e independência da nação e é
aplicada a um movimento político, o movimento
nacionalista, que se julga o único e fiel intérprete do
princípio nacional e o defensor exclusivo dos
interesses nacionais.
Começamos a considerar a significação mais
ampla. A exposição trará luzes para que se perceba a
ligação existente entre esta significação e a outra mais
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19752, II; P. J. PROUDHON, France et Rhin. Librairie Estado popular, afirma-se, em outras palavras, o
Internationale, Paris 1867; E. RENAN, Qu'est-ce qu'une Estado cujo fundamento é a soberania popular. O
nation? in Discours et conférences, Calmann-Lévy, movimento nacional luta para que se reconheça o
Paris 18872; B. C. SHAFER, Nationalism: Myth and direito que cada povo tem de se tornar o dono de seu
reality. V. GOLLANCZ, London 1955.
próprio destino. Desta maneira, ele persegue dois
objetivos, um interno e outro internacional. No plano
[FRANCESCO ROSSOLILLO] interno, luta para proporcionar aos povos a
consciência de sua unidade mediante a atribuição a
todos os indivíduos dos mesmos direitos
democráticos; desta forma os indivíduos adquirem
Nacionalismo.
competência para participar na definição da política do
I. DEFINIÇÃO. — Em seu sentido mais abrangente o Estado. No plano internacional, o princípio da
termo Nacionalismo designa a ideologia nacional, a autodeterminação dos povos possibilita a realização da
ideologia de determinado grupo político, o Estado independência nacional e o estabelecimento de uma
nacional (v. NAÇÃO), que se sobrepõe às ideologias dos política exterior do Estado fundamentada na vontade
partidos, absorvendo-as em perspectiva. O Estado popular, sem interferências de outros Estados.
O princípio democrático e o princípio nacional, de
nacional geral o Nacionalismo, na medida em que suas
estruturas de poder, burocráticas e centralizadoras, fato, foram se afirmando contemporaneamente, na
possibilitam a evolução do projeto político que visa a Europa, durante a Revolução Francesa. É necessário,
fusão de Estado e nação, isto é a unificação, em seu porém, distinguir claramente os respectivos objetivos.
território, de língua, cultura e tradições. Desde a Enquanto o valor perseguido pelo princípio
Revolução Francesa e principalmente no nosso século, democrático é o da igualdade política, o objetivo do
antes na Europa, em seguida no resto do mundo, a princípio nacional é colocar o Estado nas mãos do
ideologia nacional experimentou tão ampla difusão, povo.
que chegou a se considerar como a única a poder
fornecer critérios de
É, portanto, previsível que a história dos Estados
nacionais esteja chegando ao fim e que esteja para
começar uma nova fase em que o mundo se
organizará em grandes espaços políticos federativos.
Porém se o federalismo significa o fim das Nações no
sentido até aqui definido, significa também o
renascimento, ou o revigoramento, das nacionalidades
espontâneas que o Estado nacional abafa ou reduz a
meros instrumentos ideológicos a serviço do poder
político, e, conseqüentemente, a volta àqueles
autênticos sentimentos gregários dos quais a ideologia
nacional se fez única detentora e que foram por ela
transformados em valores dependentes.
800
NACIONALISMO
Foi Rousseau o teorizador do princípio da soberania
popular. De acordo com este princípio a idéia de que o
Estado se constitui num domínio pessoal do príncipe é
substituída pela idéia de que o Estado pertence ao
povo, definido como um conjunto de cidadãos e não
de súditos. Desta forma queria ele contestar a
identificação do Estado com as pessoas do rei e da
aristocracia. A soberania popular se tornou, em
seguida, o princípio inspirador da Revolução Francesa.
A este respeito temos a seguinte afirmação de
Robespierre: "Nos Estados aristocráticos a palavra
pátria tem sentido unicamente para as famílias
aristocráticas, isto é, para os que se apoderaram da
soberania. Somente na democracia o Estado é
realmente a pátria de todos os indivíduos que o
compõem e pode contar com um número de defensores,
preocupados pela sua causa, tão grande quanto o
número de seus cidadãos". Foi assim que a nação foi
se tornando a fórmula política em que a burguesia,
num primeiro momento, as classes médias, a seguir, e
o povo todo, mais tarde, identificaram a afirmação de
seus direitos e o progresso das condições materiais
contra os privilégios e a dominação arbitrária dos
monarcas, da aristocracia e do clero.
A afirmação do princípio nacional representa, pois,
uma etapa fundamental na história da formação do
Estado moderno; isto é, na elaboração daquela forma
de organização política que coloca a racionalidade
burocrática e o controle democrático do poder político
no lugar de comportamentos de submissão pessoal,
característicos do período feudal. É até possível
sustentar que a afirmação do princípio nacional, na
medida em que era o elemento constituinte da
fórmula que possibilitava alcançar, mesmo
parcialmente, o objetivo da soberania popular,
coincidia, na Europa do século XIX, com a linha
mestra da evolução do progresso histórico. Esta
mesma avaliação tem que ser aplicada aos países em
desenvolvimento, que, após a Segunda Guerra
Mundial, se libertaram do domínio das potências
coloniais.
III. A IDEOLOGIA NACIONAL. — O que foi
dito não quer significar, todavia, que o Nacionalismo
tenha sido o produto espontâneo do processo histórico
ocorrido na Europa no século XIX. Trata-se de uma
ideologia unificadora, elaborada intencionalmente
para garantir a coesão do povo no Estado.
A fraternité é o grande ideal coletivo da Revolução
Francesa. É nela que se fundamenta a idéia de nação,
reflexo ideológico de se pertencer a um Estado em
que a classe dirigente quer impor a todos os cidadãos
a unidade de língua, de cultura e de tradições e, por
esta razão, busca
transferir ao nível do Estado aqueles sentimentos de
adesão que os homens sempre tiveram com relação à
sua comunidade natural (para uma crítica dos critérios
mais comuns utilizados para definir a individualidade
nacional v. NAÇÃO).
Por exemplo, o Estado, para desempenhar
eficazmente sua ação em todo o território, precisa de
uma língua única que possibilite uma ligação direta e
permanente entre os indivíduos, cujas relações
econômicas e sociais adquiriram dimensões nacionais,
e o Governo central. Por isso o Estado impõe a
unidade de língua. Este objetivo, porém, nunca é
alcançado na sua totalidade. Apesar do esforço de
nacionalização das minorias lingüísticas levado
adiante pelos Governos nacionais, nunca se realiza a
unidade de língua. Isto significa que, no sentido
estrito do termo, como bem frisou Mário Albertini, a
nação não existe. Porém a maioria dos homens
acredita na sua existência. Na realidade a finalidade
última da operação política resultante na fusão de
Estado e nação é justamente a de desenvolver o
sentimento nacional, de cultivar a idéia segundo a
qual todos os habitantes de um Estado pertencem à
mesma nação e que a divisão política entre as nações
ê algo justo, natural e até sagrado.
A este respeito Popper em Conjeturas e refutações
escreveu: "O absurdo total do princípio da
autodeterminação nacional se torna evidente para
quem se empenhe, mesmo por um instante só, a
criticá-lo. A esse princípio corresponde a exigência de
que todo Estado seja um Estado nacional, seja
delimitado por fronteiras naturais, e coincida isto tudo
com a ocupação natural de determinado grupo étnico,
a nação. Desta maneira caberia ao grupo étnico, à
nação, definir e proteger as fronteiras naturais do
Estado. Ora, Estados nacionais assim não existem".
Justamente por estas suas características, a idéia de
nação possibilitou a justificação de qualquer fronteira
e o questionamento de todas elas.
Apesar destas limitações, porém, a idéia de nação é
a imagem mítica que possibilita aos indivíduos a
representação da idéia de que o Estado pertence ao
povo.
Isto porque a democracia não passa de uma
ideologia que, na sua concretização plena, apresenta
um tipo de sociedade que se sustenta sem coerção, ou
pelo menos um tipo de sociedade que se fundamente
na autocoação de todos em relação a todos. Uma vez
entrado em crise o princípio de legitimidade dinástica, a
ideologia democrática demonstrou-se insuficiente, por
si só, para garantir a unidade do Estado contra os
efeitos desagregadores do antagonismo existente entre
as classes e da luta de poder entre os Estados. A idéia
de nação desempenhou, pois, a função
NACIONALISMO
de instrumento de integração dos cidadãos no Estado
democrático.
IV.
O
ASPECTO
ESTRUTURAL
DO
NACIONALISMO. — Passemos a examinar, agora, as
características estruturais da nação. O princípio
nacional altera profundamente o conteúdo político do
Estado soberano. A eleição representa o procedimento
que possibilita ao povo escolher sua classe dirigente e
a orientação política do Governo. Na sua forma típica,
tal como foi se estruturando no século passado na
França, e, posteriormente, no restante do continente
europeu, o Estado nacional tem uma estrutura
centralizada. A democracia encontra sua plena
manifestação unicamente a nível nacional, sem ter as
bases do auto-governo local. Tanto é que, mesmo
quando eletivos, os centros de poder locais
encontram-se subordinados ao Governo central. A
instituição da figura do prefeito é a garantia de que a
administração do território, estará sujeita ao controle
direto do Governo central.
O modelo jacobino da república una e indivisível
tem como seu alicerce dois elementos: o cidadão e a
nação. Este modelo não reconhece como válida
nenhuma outra realidade jurídica e política
intermediária. Na Declaração dos direitos do homem e
do cidadão lemos: "O princípio de toda a soberania
reside essencialmente na nação; nenhum corpo,
nenhum indivíduo pode exercer qualquer autoridade a
não ser a que dela diretamente promana".
De fato o centralismo democrático foi o
instrumento mediante o qual os jacobinos esperavam
alcançar a libertação do indivíduo das velhas
instituições políticas e econômicas locais, onde
estavam aninhados os privilégios das velhas classes
dominantes. Cumpre observar, porém, que as
autonomias provinciais, na França antes de 1789, não
correspondiam unicamente aos privilégios dos
notáveis locais, defensores ardorosos de suas
prerrogativas, e sim também a interesses parasitários
de trabalhadores, membros das corporações, que
constituíam uma sobrevivência do sistema feudal. Não
há dúvida que, com relação a este sistema, o
centralismo democrático representa um progresso e,
ao mesmo tempo, a premissa para o restabelecimento,
em termos democráticos, das autonomias regionais e
locais.
O Estado absoluto tinha realizado, há muito tempo,
e em grande parte, o trabalho de centralização do
poder e de esvaziamento da comunidade. O Estado
nacional completa a tarefa, derrubando todas as
barreiras que fragmentavam a atividade econômica e
política, e eliminando as velhas lealdades feudais, que
dificultavam a realização da unidade nacional.
801
Ao mesmo tempo, fez-se necessária uma política
de centralização burocrático-militar até por razões de
ordem internacional, isto é para fazer frente, de
maneira eficaz, a agressões potenciais, praticadas pelos
Estados limítrofes, na atmosfera tradicionalmente
carregada de tensões do continente europeu.
Conseqüentemente, no continente se fazia necessária
uma total integração dos cidadãos no Estado, tanto
mais profunda quanto mais centralizado estava o
poder, de forma a submeter ao controle direto do
Governo central a maioria dos recursos materiais e
ideais do país. Para concretizar este objetivo, o Estado
nacional utilizou instituições apropriadas: além da
tutela exercida pelo prefeito sobre os centros de poder
locais, a que já nos referimos, e do sistema
administrativo uniforme em todo o território do
Estado, ressaltamos a escola de Estado, como
instrumento de formação nacionalista dos jovens, e o
serviço militar obrigatório, que, envolvendo a
população no sistema defensivo-militar do Estado,
visa eliminar a distinção entre soldados e civis,
transformar os cidadãos em fiéis servidores do Estado
e submeter o poder civil ao militar.
Todas estas instituições se configuram em
instrumentos que possibilitam alcançar uma rápida
mobilização em caso de guerra e uma repressão eficaz
dos movimentos de oposição, que, fracionado a
sociedade, enfraquecem sua capacidade defensiva.
Estas instituições são ignoradas, ou pelo menos nunca
chegaram a se estruturar profundamente, nos Estados
de tipo insular, como a Grã-Bretanha, que, não tendo
fronteiras territoriais em comum com outros Estados,
no período de sistema europeu, sentiam de forma
bastante menor do que os Estados continentais as
exigências
de
segurança.
Estes
Estados
desenvolveram estruturas políticas descentralizadas,
deixando, conseqüentemente, maior espaço aos
fatores que incentivam o livre desenvolvimento da
sociedade.
V. O FUNDAMENTO HISTÓRICO-SOCIAL DO
NACIONALISMO. — Falta ainda examinar o
fundamento histórico-social do Nacionalismo. As
transformações históricas sobre as quais se
fundamenta a formação do Estado nacional e da
ideologia nacional podem ser compreendidas
unicamente no contexto da grande mudança ocorrida
na evolução dos mecanismos de produção,
determinada pela Revolução Industrial. Esta mudança
determina a extensão das relações de produção e de
troca, bem como de todos os outros aspectos da vida
social direta ou indiretamente ligados a estas relações,
até a formação de um mercado e de uma sociedade de
dimensões nacionais. Em outras palavras, a
Revolução Industrial quebra
802
NACIONALISMO
as pequenas unidades produtivas agrícolo-artesanais e
as limitadas comunidades quase naturais e
tradicionais, que representavam os horizontes de vida
da grandíssima maioria da população, e amplia
enormemente o contexto econômico-social a que o
indivíduo pertence. Conseqüentemente, ligou-se ao
Estado um número crescente de comportamentos, uma
vez que os indivíduos passaram a exigir a intervenção
deste a fim de garantir a evolução ordenada das
relações sociais no âmbito nacional. É evidente que o
ponto de chegada destes processos históricos é a
entrada ativa dos povos no cenário político e a
abertura de um novo endereço político, que iria, a
longo prazo, entregar as grandes massas populares à
direção do Estado.
VI. INDEPENDÊNCIA NACIONAL E IGUALDADE ENTRE
AS NAÇÕES. — Há, na ideologia nacional, um
princípio que tem se revelado totalmente sem
fundamento: o de que a independência das nações
coincide com sua igualdade. Esta afirmação ignora
que a concretização do princípio de autodeterminação
num mundo onde o exercício da soberania nacional
não conhece limites, devido à ausência de uma
legislação que se situe acima dos Estados, implica o
uso da força, ou pelo menos a ameaça de a ele se
recorrer, como meio para resolver os conflitos entre
os Estados. Os Estados vivem, pois, numa situação de
guerra, pelo menos potencialmente, e a defesa da
independência nacional exige o uso da força.
Quem decide qual será a política exterior dos
Governos é a razão de Estado, isto é, o cálculo das
relações de força existentes entre os Estados. Ademais,
a independência reflete e não corrige a desigualdade
entre as nações. O grau de independência de cada
Estado é definido pelas relações de força que se
verificam no sistema político internacional, A
distribuição desigual do poder político, no mundo,
define uma determinada hierarquia entre os Estados,
criando relações hegemônicas e imperialistas
exercidas pelos Estados mais fortes sobre os mais
fracos.
Ora, a igualdade é um valor que somente a lei pode
garantir. De fato, unicamente a lei pode assegurar uma
forma de coexistência em que todos os homens
possam ser livres e iguais. Da mesma maneira, o
Estado federativo (v. FEDERALISMO) dispõe de
instrumentos políticos e jurídicos para solucionar
conflitos internacionais e assegurar uma coexistência
positiva entre os Estados, um sistema onde cada
Governo é, ao mesmo tempo, independente e
coordenado com os outros. A independência dos
Estados é garantida pelos tribunais, que, mediante o
juízo de constitucionalidade ou não das leis, garantem
a
primazia da constituição sobre todos os outros
poderes e, portanto, o predomínio do direito sobre a
força.
VII. NAÇÃO E NACIONALISMO. — Existe, pois, uma
contradição insuperável entre a fidelidade à nação,
isto é, à ideologia que justifica a divisão do gênero
humano de acordo com o princípio de que em cada
grupo nacional podem ser identificadas características
essenciais que o distinguem do resto da humanidade, e
os valores universais da religião cristã e das ideologias
liberal, democrática, socialista e comunista. O
fundamento da religião cristã consiste na afirmação da
fraternidade entre todos os homens. Por outro lado, os
grandes movimentos revolucionários, que no século
passado propuseram novos modelos de convivência
política cuja base está nos princípios da liberdade, da
democracia, da nação, do socialismo, do comunismo,
caracterizaram-se desde suas origens por uma relevante
componente internacionalista. Seria contraditório com
relação aos valores universais, que servem de
fundamento a estes modelos, pensá-los como se fossem
algo de limitado às fronteiras nacionais. Sua
concretização no plano nacional foi vista, sempre,
como apenas uma etapa de sua concretização no plano
europeu e mundial. É oportuno, além disso, lembrar
que, para os fundadores do movimento nacional,
nação e humanidade nunca foram termos
contraditórios, e sim complementares. Para Mazzini,
por exemplo, a organização da Europa e do mundo em
Estados nacionais deveria se tornar o instrumento que
realizaria a solidariedade entre os homens e a
fraternidade entre os povos.
A
realidade
que
foi
se
evidenciando
progressivamente, na medida em que o princípio
nacional foi se afirmando, após a Revolução Francesa,
no resto da Europa, mostrou que os Estados nacionais,
assim como as monarquias, não conseguiam encontrar
uma harmonia espontânea. Por detrás da "nação
soberana" continuava a atuar a razão de Estado, com
suas velhas exigências de segurança e de poder. A
história tem evidenciado, cada vez mais, que a
organização da Europa em Estados nacionais não se
compatibiliza com a solidariedade internacional entre
os povos. Esta contradição, que começou a se
manifestar ainda no período da Revolução Francesa
quando foi tomada a decisão de recorrer à guerra para
"exportar" a liberdade, nunca mais desaparecerá da
história européia, uma vez que as relações
internacionais, apesar da transformação do Estado
absoluto em democrático e nacional, mantiveram sua
característica tendencialmente violenta. O fato é que
os direitos do
NACIONALISMO
homem e do cidadão, afirmados no plano nacional,
são negados no plano internacional.
Para denunciar o caráter de intolerância presente na
idéia de nação na prática da política jacobina, o abade
Barruel em um escrito de 1798 (Mémoires pour servir
à l'histoire du jacobinisme) utiliza a palavra
Nacionalismo. É a primeira vez que o uso deste termo
é registrado. "O Nacionalismo", escreve o abade
Barruel, "ocupou o lugar do amor geral... Foi, assim,
permitido desprezar os estrangeiros, enganá-los e
ofendê-los. Esta virtude foi chamada patriotismo".
É totalmente privada de fundamento a distinção
que se faz entre sentimento nacional, entendido como
dedicação extremada à própria pátria, coexistindo
com o amor dos outros homens para com sua própria
nação, e que não está em oposição à fraternidade e à
solidariedade universais, e Nacionalismo, entendido,
sob um aspecto, como egoísmo nacional e, sob outro
aspecto, como ódio para com as outras nações e como
agressividade e espírito bélico em relação às mesmas.
É conhecido sobremaneira que a qualificação de
"Nacionalismo sadio" é, geralmente, reservado para a
própria nação, enquanto a de "Nacionalismo
pernicioso" é utilizada com referência às outras
nações.
O fato é que, uma vez que se constituiu em Estado,
uma nação precisa se armar para sobreviver num
mundo de Estados armados e acaba entrando, assim,
num relacionamento de força com as outras nações.
Sua política, conseqüentemente, precisará obedecer à
RAZÃO DE ESTADO (v.), que decide quais os
instrumentos necessários para garantir a segurança
nacional com base na avaliação das relações de poder
internacionais. Em suma, aceita a segurança como
sendo o objetivo supremo de todo Estado (à qual se
faz necessário subordinar toda e qualquer outra
finalidade), pode-se afirmar que a decisão concreta de
apelar ou não para o uso da força é algo que, em
última análise, transcende a vontade dos Governos,
visto depender do conjunto de relações de poder entre
os Estados no contexto do sistema político
internacional.
O Nacionalismo não representa, pois, a degeneração
do princípio nacional, e sim sua conseqüência
necessária.
VIII. ASPECTOS
NACIONALISMO. —
DA
EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
DO
Definidos os aspectos típicos do
Nacionalismo, resta considerar as principais etapas de
sua evolução. Em sua primeira fase de
desenvolvimento, iniciada, como já vimos, com a
Revolução Francesa, o movimento nacional deixou
campo ainda à manifestação de comportamentos
internacionalistas, enraizados na religião
803
cristã e nas ideologias liberais, democráticas e
socialistas, bem como a formas de ligação ainda fortes
para com comunidades territoriais menores do que a
nação.
Foram fundamentalmente duas as contingências
históricas que possibilitaram aos indivíduos residentes
nos Estados nacionais a manutenção de laços para
com coletividades maiores e menores do que a nação.
No plano internacional, o equilíbrio entre as
potências, fiador da estabilidade política na Europa,
possibilitava a contenção da violência do choque entre
os Estados, enquanto freava, ao mesmo tempo, a
caminhada rumo à centralização e ao Nacionalismo.
Por outro lado, no interior dos Estados, devido ao
desenvolvimento ainda limitado da Revolução
Industrial, o movimento operário não se tinha ainda
integrado na vida do Estado nacional. Inexistiam,
portanto, as condições para a plena realização da
unidade nacional.
A unificação nacional da Alemanha marca o início
de uma nova fase histórica durante a qual o princípio
nacional atinge sua plena afirmação, no interior dos
Estados nacionais, tendendo a se generalizar em todo
o
continente
europeu,
tornando
frágeis
conseqüentemente os impérios multinacionais, tais
como o austro-húngaro, o russo e o otomano.
Tomemos em exame, em primeiro lugar, as
repercussões que a unificação alemã teve no equilíbrio
europeu. Após afirmar-se rapidamente como a mais
forte potência do continente, a Alemanha entrou em
luta com a Grã-Bretanha, contra o predomínio
comercial e naval por ela exercido nos mares,
perturbando assim o equilíbrio europeu. Para
combater a hegemonia britânica nos mares, criou uma
forte marinha de guerra e, para desenvolver seu
próprio sistema industrial, apelou para o
protecionismo. A partir daí, o protecionismo e o
Nacionalismo econômico atingiram outros países
europeus, esfacelando aos poucos a unidade do
mercado mundial, cuja garantia, até então, tinha sido a
hegemonia britânica nos mares, justamente na hora
em que os grandes espaços abertos se tornavam
indispensáveis para expandir as forças produtivas. Por
outro lado, o imperialismo foi o caminho que os
Estados nacionais precisaram trilhar a fim de
acompanhar as tendências das forças produtivas, que
exigiam grandes espaços políticos e econômicos para
atingir seu desenvolvimento. Num primeiro momento,
o objeto da luta entre as potências européias é
representado pela repartição das colônias, mais tarde,
o choque se dá no velho continente assumindo o
aspecto de uma nova luta para alcançar uma posição
de hegemonia na Europa, tendo como protagonista a
Alemanha, e
804
NACIONALISMO
que chega a seu ponto final com a Primeira Guerra
Mundial.
Em segundo lugar, é preciso lembrar que o
desenvolvimento da Revolução Industrial, cujo
resultado tinha sido possibilitar a participação ativa
das massas na vida política e a integração nacional da
classe operária, permitiu que os Governos nacionais
entrassem na vida comum de todos, de tal forma que
não havia como ficar independente do Estado no
desenvolvimento das principais atividades sociais.
Também o futuro das classes mais baixas, na medida
em que viam reconhecidos seus direitos, estava ligado
indissoluvelmente ao destino do Estado nacional.
Em suma, a tendência do Estado nacional para a
centralização do poder, para a exigência de uma
lealdade exclusiva por parte dos cidadãos em prejuízo
de lealdades para com as coletividades menores ou
maiores do que a nação e para o incentivo ao ódio e à
hostilidade para com as outras nações, foi favorecida
pelas tensões internacionais e pela participação ativa
das massas na vida política. Forçados a se adaptar às
condições de luta política determinadas pelo Estado
nacional, os liberais, os democratas e os socialistas
foram perdendo, aos poucos, sua inicial inspiração
internacionalista para se sujeitarem às exigências da
defesa da nação e se viram forçados a pactuar com a
violência, o autoritarismo e as desigualdades políticas
e sociais, alimentadas pelas necessidades internas e
internacionais de sobrevivência do Estado nacional.
Todavia a adequação de sua praxe política ao
princípio nacional, que os levava, caso fosse
necessário, a sacrificar a este princípio os valores
universais do indivíduo, da humanidade ou da classe,
não foi acompanhada por nenhum tipo de revisão
teórica. Tal fato tornou sua conduta contraditória com
seus princípios.
Esta incerteza na definição de seus objetivos os
colocou em condições de inferioridade com relação às
correntes políticas nacionalistas, que interpretavam
bem melhor as necessidades militaristas e autoritárias
do Estado nacional numa época de imperialismo e
protecionismo. Na prática, os movimentos nacionais
tinham a pretensão de ser os únicos intérpretes
autênticos do princípio nacional. Espalhados pela
Europa continental, no final do século passado, e
estritamente relacionados à crise do sistema europeu
dos Estados, estes movimentos têm em comum uma
idéia base: a subordinação de todo valor político ao
nacional.
A dissociação dos conceitos de nação e de
humanidade, negada pelos fundadores do movimento
nacional, porém latente desde as origens do
movimento durante a Revolução Francesa, se
configura numa idéia que é capaz de subverter
em profundidade todo o patrimônio cultural e moral
da história da Europa. A cultura representou sempre
um elemento unitário na vida européia, tendo como
fundamento a concepção pela qual, para usar uma
expressão de Goethe, "além das nações existe a
humanidade". A política com suas divisões, nunca tão
profundas como na época do Nacionalismo, colocou
constantemente em perigo esta unidade, porém nunca
conseguiu destruí-la. O Nacionalismo, como teoria da
divisão "natural" do gênero humano, colocou-se
conscientemente em contraste com os valores
universais da religião cristã e das ideologias liberal,
democrática e socialista. Assim ele acabou rompendo
com suas origens democráticas e populares e, de
ideologia revolucionária que foi, transformou-se em
ideologia reacionária, assumindo cada vez mais
conotações militaristas e agressivas em política
externa, e antiparlamentaristas e antidemocráticas em
política interna. Em toda parte o movimento
nacionalista, quer o francês de Charles Maurras (a
Action française), quer o alemão (a Liga pangermânica,
fundada por Alfred Hugenberg), quer o italiano (a
Associação nacionalista italiana, dirigida por Enrico
Corradini), caracterizou-se como oposição de direita
aos Governos democráticos, acusados de incapacidade
para garantir a segurança, a dignidade e o poderio
nacional num mundo de Estados hostis e agressivos
bem como para proporcionar garantias de unidade
nacional, necessária esta para se fazer frente às
pressões externas, neutralizando os conflitos sociais e
a dialética democrática. Por um lado, a luta de classe e
a competição democrática entre os partidos políticos
precisam ser substituídas pela solidariedade nacional,
elemento catalisador da "natural" desigualdade entre
os homens. De fato, toda divisão política ou social, no
seio da nação, servira apenas para enfraquecer suas
capacidades ofensivas e defensivas. Por outro lado, o
desenvolvimento do poderio econômico e militar do
Estado é condição indispensável para sua afirmação na
luta com os outros Estados, sendo a guerra a prova
que possibilita o prevalecer das nações mais fortes e
de maior vitalidade.
Analisando os movimentos nacionalistas, tomamos
em exame o Nacionalismo na sua significação mais
restrita. De acordo com o que foi dito até aqui, esses
movimentos constituem um aspecto de um fenômeno
mais amplo, justamente o Nacionalismo, a expressão
de apenas uma etapa de sua evolução histórica, em
cujo decurso se afirmam as tendências imperialistas e
autoritárias do Estado nacional, prelúdio estas do
nazi-fascismo.
Existe uma relação muito estreita entre o programa
político do movimento nacionalista e o do
NACIONALISMO
fascismo e do nazismo. O Nacionalismo é um
componente essencial das ideologias fascista e nazista.
Porém, o movimento nacionalista nunca chegou a ser,
diferentemente do fascista e do nazista, um movimento
de massa. O nazifascismo, como manifestação da fase
máxima de degenerescência do Estado nacional, foi
uma tentativa para ir contra a linha evolutiva da
história, foi a expressão da vontade de sobrevivência
do Estado nacional numa conjuntura histórico-social
nova, que favorecia a ascensão, na condução da
política mundial, das potências de dimensões
continentais (Estados Unidos, União Soviética e em
perspectiva, China). O nazifascismo levou até às
últimas conseqüências a lógica totalitária da
mobilização de todos os recursos materiais e ideais da
sociedade em função de uma política de potência; do
abafamento de toda a forma de conflito ou de
pluralismo político social, enfraquecedor das
capacidades defensivas do Estado; enfim, da
dominação sobre todas as forças produtivas dentro
dos limites do Estado, buscando expandir a produção,
favorecendo concentrações produtivas, ampliando o
controle do Estado sobre o desenvolvimento
econômico mediante instrumentos de planejamento e
dobrando, mediante a organização corporativista da
economia, a luta de classes à disciplina garantida
verticalmente pelo Estado.
No plano econômico-social, o nazifascismo
representou a resposta autárquica e corporativa à
recessão econômica e à radicalização da luta de classes,
conseqüências dos limitados espaços econômicos
nacionais, que freavam o desenvolvimento das forças
produtivas. No plano político, representou a resposta
imperialista diante de um equilíbrio europeu que não
podia mais ser sustentado e de um papel hegemônico
da Europa, no contexto mundial, já em plena
decadência, bem como a resposta totalitária de uma
sociedade que não mais conseguia conciliar os
objetivos de segurança e de desenvolvimento
econômico com a manutenção das instituições
democráticas.
Na medida em que a Alemanha, para sobreviver, se
viu forçada a buscar seu próprio "espaço vital" no
território dos Estados limítrofes e a se transformar
num império europeu, evidenciou a decadência
histórica do Estado nacional. De fato, a aspiração
hegemônica da Alemanha nada mais foi, como
corretamente percebeu Luigi Einaudi, senão uma
manifestação da necessidade de unidade da Europa.
No caso de se ter concretizado o plano alemão, a
própria Alemanha teria negado sua característica de
Estado nacional e destruído o sistema europeu dos
Estados. Por outro lado, a sobrevivência da Alemanha
implicava a destruição do sistema
805
democrático. Desta forma, ia sendo rompido o
elemento de ligação entre o princípio nacional e o
princípio democrático, que tinha tido sua afirmação
inicial na Revolução Francesa para dilatar-se
posteriormente pelos outros Estados europeus,
A Segunda Guerra Mundial marca o nascimento,
sobre as ruínas do velho sistema europeu, do sistema
mundial dos Estados, fundamentado no predomínio
dos Estados Unidos e da União Soviética. Os Estados
nacionais europeus perderam sua independência,
transformaram-se em satélites das duas superpotências
e se mostraram, já sem possibilidade de contradição,
incapazes de garantir, dentro de seus estreitos limites,
o desenvolvimento econômico e a segurança de seus
cidadãos. Seu destino é sobreviver apenas como
elementos anacrônicos em um mundo que está
evoluindo para formas de organização política de
dimensões continentais e de tipo multinacional. A
crise histórica do Estado nacional se constitui na base
da unificação européia, o que significa uma radical
modificação das tendências políticas fundamentais
que caracterizaram a história do sistema europeu de
Estados. Tal crise fez surgir, no lugar do tradicional
antagonismo entre os Estados, formas cada vez mais
estreitas de cooperação política e econômica e, ao
mesmo tempo, abriu caminho, pela primeira vez na
história, à possibilidade de que seja superada a
imagem de nações historicamente consolidadas. Nesta
nova situação histórica, onde a segurança não é mais
causa de luta entre os Estados e onde estes se vêem
forçados a colaborar entre si para garantir sua
sobrevivência, se dá o ocaso do Nacionalismo e a
alvorada de uma nova época histórica, a que Proudhon
no século passado chamara de "era das federações".
Enquanto na Europa o processo de unificação marca
o ocaso do Nacionalismo, as lutas de libertação
nacional no Terceiro Mundo são a manifestação de
uma nova fase da evolução do Nacionalismo. A
mesma exigência histórica, que, durante o século XIX
e no início do século XX, impôs na Europa a formação
de nações independentes, coloca no âmago da
discussão o processo de desenvolvimento do Estado
nacional no Terceiro Mundo. A afirmação do
princípio nacional representa uma etapa necessária da
história: possibilita a libertação dos povos, coloca os
Estados em suas mãos e os torna protagonistas da
política internacional. Todavia, este princípio não
possibilita a eliminação do autoritarismo das
estruturas internas dos Estados nem a supressão do
uso da violência na política internacional.
Conseqüentemente, a afirmação da democracia no
interior dos Estados deve preceder a afirmação da
democracia internacional. A soberania popular e o
método democrático possibilitam a
806
NACIONAL-SOCIALISMO
eliminação da violência nas relações sociais e o
federalismo permite a eliminação da violência nas
relações internacionais, a estruturação democrática
das relações exteriores entre os Estados, a unificação
dos povos e sua coexistência pacífica em condições
de igualdade.
As lutas de libertação nacional levaram à
eliminação dos impérios coloniais das potências
européias e à formação de Estados independentes no
Terceiro Mundo; a conseqüência tem sido sua
inserção no contexto da política mundial com
capacidade autônoma de iniciativa (muito embora,
exceção feita da China, não tenham levado à
eliminação da dependência política e da exploração
econômica com relação às superpotências e ao mundo
industrializado) e a afirmação da necessidade de
desenvolver uma moderna sociedade industrial
(embora a distância entre países industrializados e
países subdesenvolvidos tenha diminuído unicamente
com relação aos países possuidores de recursos
econômicos e de dimensões políticas suficientes para
garantir sua independência, enquanto tem aumentado
com relação ao chamado Quarto Mundo, isto é aos
países não produtores de matérias-primas).
Embora o aspecto que mais impressiona, no que
diz respeito à situação do Terceiro Mundo, consista na
difusão do Nacionalismo, é preciso salientar que os
movimentos de libertação nacional têm consciência
de que o Estado nacional não se constitui mais em
suporte suficiente para garantir, no mundo
contemporâneo, desenvolvimento econômico e
independência política. É oportuno lembrar, a este
respeito, que os mesmos protagonistas dos
movimentos de libertação nacional, de Bolívar a
Nkrumah, foram também defensores da organização
federativa, respectivamente, das nações latinoamericanas e africanas. A tendência a que se
estruturem uniões regionais de Estados atinge
dimensões mundiais, encontrando seus fundamentos
na internacionalização do processo produtivo e na
formação do sistema mundial dos Estados. Isto
acontece não apenas na Europa ocidental, mediante a
criação das comunidades européias, e, na Europa
oriental, mediante a formação do COMECON, e
assim também na América Latina, na África e no
mundo árabe. É sinal de que, também no Terceiro
Mundo, onde o Nacionalismo parece ser a tendência
dominante, estão sendo percebidos os limites dos
caminhos nacionais para o desenvolvimento e a
independência política. As federações regionais,
vistas como etapa na caminhada para a unificação do
mundo todo, parecem ser, pois, o verdadeiro objetivo
que irá possibilitar a realização plena daquela
finalidade que as revoluções nacionais não
conseguiram realizar plenamente.
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[LUCIO LEVI]
Nacional-socialismo.
I. PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO. — o termo Nacional-socialismo
possui inúmeros significados e diferentes conotações.
No seu sentido mais geral tem sido usado, há mais de
um século, por vários movimentos e ideologias
políticas, defensores de um tipo de socialismo
diferente do socialismo internacionalista e marxista,
ou até contrários a ele. Por um lado, o nacionalismo
nasceu no século XIX, como reação à sociedade
industrial e à emancipação liberal. Por outro, os
movimentos
nacionalistas
nos
países
em
desenvolvimento, sobretudo nos Estados árabes
(socialismo árabe), defenderam, até o presente
momento, formas novas de Nacional-socialismo,
como alternativa ao feudalismo e ao colonialismo. Em
todos estes exemplos, todavia, qualquer uso que se
faça do termo ficará praticamente abandona-
NACIONAL-SOCIALISMO
do ou provocará mais confusão uma vez que o
Nacional-socialismo, como fenômeno político de
dimensões históricas mundiais, indica sobretudo o
movimento político alemão, fundado e guiado por
Adolf Hitler após a Primeira Guerra Mundial,
polemicamente conhecido pelo diminutivo de
nazismo.
Conseqüentemente, como no caso do fascismo
italiano, é preciso não esquecer a origem concreta e o
significado político do Nacional-socialismo histórico,
todas as vezes que a palavra for empregada na
terminologia atual; este cuidado é de suma
importância uma vez que termos como fascismo e
Nacional-socialismo, inúmeras vezes, são utilizados
impropriamente, como instrumentos de polêmica ativa
contra o adversário político, sem levar em
consideração seu significado original e sua correta
aplicação à realidade. Em ambos os casos, a análise
do fenômeno histórico — o
Nacional-socialismo
alemão e o fascismo italiano — representa a condição
indispensável para qualquer tentativa de definição e
aplicação destes termos.
Como fenômeno histórico, o Nacional-socialismo
tem que ser definido focalizando dois níveis
principais: em primeiro lugar, como reação direta à
Primeira Guerra Mundial e a suas conseqüências,
porém, também, como resultado de tendências e idéias
bem mais antigas, relacionadas com a problemática da
unificação política e da modernização social —
problemática que dominou o desenvolvimento alemão
desde o começo do século XIX. Sem dúvida foram a
inesperada derrota de 1918 e suas trágicas
conseqüências — quer materiais quer psicológicas —
que tornaram possível a fundação e a ascensão
política do Nacional-socialismo. Porém, ao mesmo
tempo, é importante considerar o fato de que as
tendências e as idéias políticas fundamentais do
Nacional-socialismo nasceram muito antes de 1918 e
da guerra, e que o Nacional-socialismo é bem mais do
que um simples movimento de protesto pós-guerra,
dirigido por um eficiente agitador de massas como o
foi Hitler.
Ambos os níveis — as raízes ideológicas e a
concretização política — têm a mesma importância na
análise e na definição dos principais elementos do
Nacional-socialismo. Suas qualidades dinâmicas e
explosivas conseguiram tomar consistência unicamente
na situação de crise profunda da Alemanha no
primeiro pós-guerra; porém, os aspectos mais radicais
do movimento precisam ser explicados como
resultados
de
várias
posições
ideológicas
fundamentais que têm raízes históricas profundas.
Estas posições formam o pano de fundo da
Weltanschaung
nacional-socialista,
onde
já
encontramos os postulados principais e o
807
vocabulário específico do sistema de valores do
Nacional-socialismo, cujas palavras-chaves são: nação,
raça, espaço vital {Lebensraum), a comunidade do
povo
(Volksgemeinschaft),
liderança,
ação,
autoridade, sangue e terra, frente e batalha.
II. RAÍZES IDEOLÓGICAS E POLÍTICAS DO NACIONALSOCIALISMO. — Com relação às raízes históricas do
Nacional-socialismo
austro-alemão
não
há
concordância entre os especialistas. Alguns acham que
suas origens remontam ao império medieval, à
Reforma Protestante ou, pelo menos, a Frederico o
Grande da Prússia. Outros negam que haja qualquer
tipo de continuidade entre a política alemã anterior e o
desenvolvimento do Nacional-socialismo, sublinhando
a importância fundamental da Primeira Guerra
Mundial e de Hitler: o Nacional-socialismo é definido
como "movimento hitleriano" e "hitlerismo" —
exatamente na mesma medida em que o fascismo pode
ser visto como "mussolinismo". Enquanto as
"interpretações continuam oscilando entre estas duas
posições extremistas, permanece o problema de como
uma tradição intelectual e um comportamento político,
tipicamente alemães, seriam indispensáveis na
formação do Nacional-socialismo. O debate,
encontrado em inúmeros livros desde os anos 30, tem
em si um interesse que não é meramente acadêmico.
Por um lado, teve influência na própria afirmação do
Nacional-socialismo que foi percebido, justamente
pelos seus propugnadores e ideólogos, quais Joseph
Goebbels e Alfred Rosenberg, como sendo a
complementação definitiva de um milênio de história
alemã. Por outro lado, o problema assumiu uma
importância toda especial na medida em que se
envidaram esforços para combater e eliminar não
apenas o poder político, mas também as mais
profundas raízes do Nacional-socialismo na Alemanha,
a fim de impedir, após 1945, qualquer tipo de
continuação ou de revivescência do nazismo.
As raízes ideológicas do Nacional-socialismo, em
decorrência dos acontecimentos históricos alemães do
século XIX, encontram-se estritamente ligadas às três
fases mais importantes da caminhada da Alemanha
em direção ao sonhado Estado nacional: a reação
nacionalista à ocupação napoleônica (1806-1815); a
falência da revolução liberal de 1848; a solução
conservadora e militar do problema alemão, durante o
Governo de Bismarck, a partir de 1871. Na medida em
que progredia o complexo processo da unificação
política e da modernização, a idéia nacionalista alemã
experimentou um desenvolvimento todo especial
chegando a se sobrepor aos ideais liberais
808
NACIONAL-SOCIALISMO
e constitucionais. A "nação tardia" tinha a sensação de
ser a última a chegar entre os Estados europeus, pronta,
porém, para se adequar ao imperialismo e ao
colonialismo da época. Em um contexto muito
parecido com o italiano, estes sentimentos nacionalimperiais preparavam o caminho para os movimentos
pré-fascistas já bem antes da Primeira Guerra
Mundial. No caso alemão, uma antiga tradição acerca
da singular missão da Alemanha no contexto europeu
e no mundo, conforme o que defendia o filósofo
Fichte (1810), coincidiu com a reivindicação da
concretização de um império pangermânico que
compreenderia não apenas a Áustria e demais
territórios de língua alemã, mas que iria ser
reconhecido como potência hegemônica da Europa
central.
As idéias pangermânicas e hegemônicas dominaram
todos os movimentos que visavam anexações de
territórios na Primeira Guerra Mundial. A derrota
destas idéias em 1918, nunca aceita pelos partidos de
direita da República de Weimar, levou à formação de
grupos radicais antidemocráticos e revisionistas; um
deles foi o "Deutsche Arbeiterpartei" que em 1920
tornar-se-á o "National Sozialistische Deutsche
Arbeiterpartei" (N.S.D.A.P.). Uma característica
básica deste partido foi a continuidade das idéias que
dominaram o período pré-bélico; porém, a experiência
da derrota na guerra e a crise da república democrática
aumentaram a força de sua influência na opinião
pública alemã politizada.
A criação e a ascensão do Nacional-socialismo
podem ser explicadas da seguinte forma:
(como sendo uma nova forma do Sacro Império
Romano medieval da nação alemã). A personalidade e
as idéias de Hitler proporcionaram a esta reivindicação
de hegemonia nacional-imperialista o suporte da
ideologia nacionalista, tipicamente austríaca, de uma
grande Alemanha; em seguida esta ideologia foi
sobreposta às componentes prussiano-alemãs da
filosofia do expansionismo. Protegido pela estratégia
da revisão do tratado, manipulada com muita
inteligência, que enganou a muitos, quer na Alemanha
quer fora dela, Hitler buscou, desde o início, um
objetivo imutável: expandir o território do Estado
nacional e ampliar o Lebensraum alemão bem além
do "núcleo racial" do povo alemão. A idéia básica de
Hitler era a de manifestar o princípio expansionista do
Estado nacional mediante o princípio imperialista do
predomínio dos elementos "superiores" biológica e
racialmente, orientando seus ataques contra os
eslavos, racialmente "inferiores", ao leste e,
internamente, contra os judeus, "o inimigo mundial
número um".
c) Não está ainda bem esclarecida a função
desempenhada pelo militarismo alemão no meio de
todos esses fatores causais. Se, por militarismo,
entendemos a agressão, então o problema não se
reveste de crucial importância. Porém, é inegável que o
exemplo
e
a
tradição
de
um
Estado
predominantemente militar, como a Prússia, exerceram
uma influência notável na estrutura social e de poder
do Reich bismarckiano. O exército foi apresentado
como o lugar de treinamento para a nação ("Escola da
nação"); uma patente no exército de reservistas
a) Na situação existente em 1918-1919, era fácil a aumentava o status social de um civil. As
mobilização de um nacionalismo agressivo contra o considerações militares dominaram até as idéias
tratado de Versalhes com suas pesadas imposições à políticas de amplos segmentos da população. A
Alemanha pós-bélica. Na realidade, a carreira de Hitler ideologia "guerreira" do Nacional-socialismo pôde,
teve início, antes de tudo, com seus inflamados pois, se estruturar sobre estas bases: Hitler encontrou
discursos contra a "escravização" da Alemanha pelo dificuldades bem menores do que Mussolini na
tratado de Versalhes. Tudo isto, porém, ia muito além mobilização do povo e na conquista do exército.
de uma simples revisão dos tratados; ao nacionalismo Todavia, na medida em que se evidencia a função do
foi atribuído um significado maior: a expansão pensamento militarista prussiano, não é possível
imperialista da grande Alemanha, na sua condição de ignorar as idéias populares de Hitler de origens austropotência-guia mundial, fundamentada nas qualidades alemãs. Neste sentido, a energia expansionista de
superiores da raça germânica ou nórdica.
Hitler se orientou também para o combate à idéia
b) A saída concreta para esta forma de nacionalismo reducionista prussiano-alemã do Reich bismarckiano,
foi encontrada na doutrina do "espaço vital" que, excluindo a Áustria-Hungria, excluía uma notável
necessário aos alemães. Na sua atividade política de parcela da nação alemã.
cada momento o Nacional-socialismo se apresentou d) Não causa, pois, admiração o fato de que os
como o mais ardoroso representante das forças verdadeiros precursores do N.S.D.A.P., no início do
contrárias a Versalhes; na sua ideologia, voltou à século, foram originários da Áustria e da Boêmia,
velha idéia da singular posição da Alemanha na regiões onde o nacionalismo antieslavo e anti-semita,
Europa e desenvolveu a doutrina da superioridade do tipo sócio-popular e cristão-nacional, era
cultural e racial de um futuro "império germânico da fortemente sentido há muito tempo. Também não deve
nação alemã"
causar admiração o fato de que o partido de Hitler
tenha sido fundado em Munique na
NACIONAL-SOCIALISMO
809
Baviera, cidade que, assim como Viena, oferecia
ambiente favorável às ideologias de seitas nebulosas
ligadas a um fantástico misticismo alemão, bem como
ao conceito católico da grande Alemanha, mais do que
ao conceito prussiano-protestante do Estado. Guiados
pelos nacional-socialistas, os alemães do sul, os
austríacos e os alemães que se consideravam
etnicamente puros, se sobrepuseram aos prussianos.
Todavia, se não estivesse presente a tradição políticomilitar e estadual da Prússia, as idéias e a vida do
povo alemão, no império e na República de Weimar,
não teriam sofrido tamanho processo de militarização,
nem o Estado totalitário teria consolidado seu poder. A
união entre transnacionalismo e militarismo, durante a
Primeira Guerra Mundial, teve influência marcante
sobre Hitler e sua sobrevivência na luta contra a
República de Weimar, bem como na aliança entre
nacionalistas reacionários e revolucionários nacionalsocialistas. Esta união tornou possíveis os
acontecimentos de 1933.
grupos conservadores no poder, embora utilizassem
de vez em quando o anti-semitismo a seu favor,
preparando desta forma o caminho para sua afirmação
e seu desenvolvimento, nunca a ele proporcionaram
espaços consideráveis, politicamente. Antes da
ascensão de Hitler, as manifestações de violência antisemita na Alemanha eram raras, diversamente do que
ocorria na Europa oriental. Naturalmente, o antisemitismo estava sempre presente, aguardando novas
oportunidades, principalmente em períodos de crise
política e econômica. Conheceu momentos de grande
intensidade nos períodos de 1873 a 1895, 1918 a 1923
e 1930 a 1933, porém sua influência na vida política e
a terrível concretização de seus bárbaros objetivos
somente se tornaram possíveis, quando conseguiu se
incorporar a um grande movimento antidemocrático de
massa.
e) A ideologia nacional-socialista proporcionou a mais.
ampla manifestação das responsabilidades específicas
e dos fermentos históricos contidos na idéia do Estado
e da nação alemães. Ao mesmo tempo, não se pode
negar que a Weltanschaung nacional-socialista,
diferentemente do marxismo e do comunismo, não é
resultado de uma filosofia ou teoria coerente, e sim se
caracteriza por um conjunto de idéias e princípios,
concepções, esperanças e emoções, unidos por um
movimento político radical numa época de crise. A
Alemanha não precisava, necessariamente, de
caminhar para o Terceiro Reich. Escolheu este
caminho, contrariamente ao que fizeram outros países,
pela
natureza
específica
das
tendências
antidemocráticas existentes na Alemanha e pelas
específicas condições em que se deu o nascimento do
Nacional-socialismo na República de Weimar. A
causa final, porém, foi a ruptura profunda entre o
pensamento político alemão e o pensamento político
ocidental, bem como o surgimento de um particular
sentimento fatalista alemão com leves aspectos
antiocidentais.
(1919-1933) foi possível graças à conjugação dos
defeitos da política alemã, desde os primórdios do
século XIX, com as raízes fatídicas e a história repleta
de crises da República de Weimar. A democracia de
1918 foi considerada responsável pelas conseqüências
da derrota na Primeira Guerra Mundial. O novo
Governo se tornou o bode expiatório e o objeto do
ódio das forças da restauração e da reação no Estado e
na sociedade, bem como dos movimentos
revolucionários ditatorias reunidos nos belicosos
Freikorps, em seitas populares anti-semitas e em
organizações paramilitares. O "espantalho vermelho"
da revolução comunista completou a tarefa de tornar
exército e burocracia, classe média e patrões, fácil
conquista de tais sentimentos. As forças democráticas
estenderam a seus inimigos a tolerância de um sistema
jurídico constitucional. Além disso, o desejo difuso de
autoridade próprio de um Estado autoritário e
burocrático acabou provocando sérios problemas
organizacionais no interior da República.
Foram estas as bases que permitiram ao Nacionalsocialismo firmar-se como um novo tipo de força
integradora. Visto ser uma manifestação tipicamente
alemã de antidemocracia na Europa, o Nacionalsocialismo conseguiu harmonizar-se com a situação
alemã, tornando-se um fenômeno mais difícil de ser
exportado do que o fascismo. É este mais um exemplo
das limitações que se encontram nas idéias de um
fascismo universal. Os fundamentos nacionalistas
implicam a existência de profundas diferenças entre
um e outro país; daí não ser possível explicação
alguma monocausal baseada em premissas econômicas,
políticas ou ideológicas. O Nacional-socialismo, assim
f) Com relação à importância do radicalismo antisemita, é correto afirmar que os precursores antisemitas do Nacional-socialismo não tinham qualquer
possibilidade de sucesso político antes da grande
guerra. Não passavam de grupos insignificantes,
divididos entre si no que se referia aos objetivos e
também com relação à função dos judeus; não tinham
influência alguma no processo legislativo nem,
tampouco, tinham condições para propor leis antisemitas ou controlar o processo de emancipação e
assimilação dos judeus, apesar da magnitude de suas
manifestações entre 1873 e o início do século XX.
Além disso, os
III. FATORES DA ASCENSÃO DO NACIONALSOCIALISMO. — A ascensão do Nacional-socialismo
810
NACIONAL-SOCIALISMO
como Hitler, foi o produto da Primeira Guerra
Mundial, porém, recebeu sua forma e sua força
daqueles problemas básicos da história alemã moderna
que caracterizaram a difícil caminhada do movimento
democrático. Podemos salientar entre estes problemas:
a fragilidade da tradição democrática e os poderosos
resíduos das instituições autoritárias governativas e
sociais existentes antes e depois de 1848; a facilidade
de aceitação das idéias nacionalistas e imperialistas,
produto da criação atrasada e nunca plenamente
concretizada de um Estado nacional alemão; os
problemas decorrentes da inesperada derrota e da
decorrente invencionice da "facada pelas costas"; o
difuso mal-estar com relação à paz de Versalhes; a
crise permanente de uma república que nunca
conseguiu obter apoio total da população; as
explosivas conseqüências da depressão neste Estado
altamente industrializado, social e religiosamente
dividido, conservando ainda resíduos feudais e
tradicionalistas; enfim, o medo da proletarização e do
comunismo experimentado pela classe média, e o
ulterior ressentimento e pavor de uma população rural
ameaçada pela expansão da tecnologia moderna. Não
deveria, portanto, causar admiração o fato que o
Nacional-socialismo obteve seus maiores triunfos
eleitorais primeiro na Baviera rural e depois nas
províncias rurais do Schleswig-Holstein e na Baixa
Saxônia.
Entre os fatores que caracterizam os inícios do
Nacional-socialismo cumpre ressaltar o papel relevante
desempenhado pela ascensão espetacular e pela
veneração quase religiosa do Führer. A estrutura
organizacional e as atividades deste novo tipo de
movimento basearam-se completamente no princípio
do líder. Ao centro de tudo encontrava-se a figura de
Adolf Hitler. Em termos de psicologia social, ele
representa o homem comum, em posição de
subordinação, ansioso para compensar seus
sentimentos de inferioridade através da militância e do
radicalismo político. Seu nascimento na Áustria, seu
fracasso na escola e na profissão e a experiência
libertadora da camaradagem masculina durante a
guerra, forjaram, ao mesmo tempo, sua vida e a
ideologia do Nacional-socialismo.
O Nacional-socialismo se estruturava com base num
darwinismo social nacionalista, racista e muito
simplificado, tornado popular pelos escritos de
radicais sectários. Porém, ao mesmo tempo, procurou,
mediante uma mistura eclética de programas
doutrinários e políticos, atingir todas as camadas da
população. Os primeiros slogans do Nacionalsocialismo, pelo seu sucesso imperialista e
expansionista e pela submissão ao Governo ditatorial
nacionalista, foram elaborados para distrair a classe
média e a classe operária dos
reais problemas internos. A "comunidade nacional"
foi escolhida para ser a panacéia que curaria os males
econômicos e políticos, no lugar do pluralismo
econômico e da sociedade classista. As doutrinas
militaristas e racistas foram os instrumentos utilizados
para enganar e conquistar a população. Na campanha
contra o tratado de Versalhes se fez uso de um
nacionalismo agressivo que apelava para o tradicional
sentimento alemão de unidade e foi explorada a visão
de uma grande Alemanha unida. O passo seguinte foi a
propalada necessidade de expansão dos limites
nacionais e étnicos, para conseguir o espaço vital, em
direção ao leste, dos povos alemão e germânico,
considerados povos superiores. Além do culto ao
Führer, que era uma resposta ao desejo autoritário de
ordem, a versão social e biológica do anti-semitismo se
tornou uma das primeiras características fanáticas do
programa hitlerista. Esta forma de encarar o
"problema" se prestava para a elaboração da idéia do
inimigo radical, idéia esta necessária a todo
movimento totalitário para poder dirigir e orientar a
agressividade por ele gerada. Acima de tudo, a
ideologia nacional-socialista e a tragédia política
assentavam no direito do mais forte, conforme as
teorias do darwinismo social. A exaltação da "ação"
como ideal supremo, acima da razão e da inteligência,
caracterizou a natureza fundamentalmente irracional
do Nacional-socialismo. Seu fim último foi a conquista
de um poder sem limites mediante a agressão,
internamente, e mediante o expansionismo,
externamente. A história do terceiro Reich mostra que
o Nacional-socialismo cumpriu à risca os primitivos
planos de Hitler, muito embora seus críticos da época
pouco caso fizessem dele. Aliás, a história do
Nacional-socialismo é a história de sua fatal
depreciação.
Tudo isto vale também com relação à vitória de
Hitler em 1933; o terceiro Reich pôde se concretizar
graças a um conjunto de manobras eficazes e
enganadoras. Sem estas manobras, provavelmente,
Hitler nunca chegaria ao poder. Ele afirmava que a sua
era uma "revolução legal". Misturando estes dois
conceitos contraditórios, os nacionalistas conseguiram
satisfazer o desejo popular de ordem e, ao mesmo
tempo o desejo de uma mudança radical num período
de profunda crise econômica. Após o fracasso de seu
putsch em 1923, sem contar o fracasso do putsch
reacionário de Kapp em 1920, que evidenciou a
aversão da burguesia e dos funcionários públicos a
golpes de Estado e a revoluções abertamente
concretizadas, Hitler se limitou à utilização de táticas
pseudolegais. Em lugar de tentar um putsch contra a
República,
aproveitou-se
das
oportunidades
proporcionadas pela legislação de emergência
NACIONAL-SOCIALISMO
prevista na Constituição de Weimar a fim de revogar
a mesma. O caminho da ditadura presidencial sempre
foi apoiado pelos adversários conservadores da
democracia parlamentar e, após 1930, contou com o
apoio ativo do marechal Hindenburg, o autoritário
filomonárquico presidente alemão. Foi ele quem
ajudou o partido nacional-socialista a se libertar da
incômoda posição de partido minoritário, que nunca
tinha conseguido mais de um terço dos votos
populares em nenhuma eleição. Os poderes especiais,
que davam ao presidente o direito de dissolver o
Reichstag e nomear um chanceler, tornaram possível a
ditadura legal do presidente. Foi o exercício destas
prerrogativas, e não a aprovação de um Governo
majoritário que levou Hitler ao poder.
A bem sucedida imposição de um Governo
autocrático foi acompanhada pelo convite à realização
de uma verdadeira "revolução nacional" No que diz
respeito a Hitler, a aliança com os partidos de direita,
com o meio empresarial, com os interesses dos
grandes proprietários rurais e dos militares, foi apenas
um expediente tático. Quando começou a se
manifestar uma forte crise no partido, no fim de 1932,
ele não titubeou em fazer amplas concessões aos
líderes de uma "concentração nacional" da direita,
chefiados por von Papen, confidente de Hindenburg.
Porém, mesmo aceitando, como chanceler, uma
maioria de ministros conservadores, sempre fez
questão de exigir o direito de exercer poderes
presidenciais
ditatoriais.
Camuflando
as
reivindicações de poder dos nacional-socialistas como
sendo os apelos para um renascimento cristãonacional, Hindenburg atingiu o resultado desejado,
quer junto ao Governo quer junto ao povo, e nunca
interferiu nas terríveis medidas repressivas aplicadas
por Hitler, justamente em virtude destes poderes
ditatoriais "legais", em fevereiro de 1933. Os aliados
de Hitler, num primeiro momento, valorizaram em
excesso o próprio poder e, mais tarde, procuraram
reconduzir a revolução dentro de canais disciplinados.
Porém, foi justamente sua colaboração que tornou
possível a pseudolegalidade desta mesma revolução.
Por razões semelhantes, a oposição da classe média se
desarticulou diante da lei sobre os plenos poderes e os
funcionários colaboraram para a legalização da
revolução nazista. A própria esquerda se deixou
ludibriar e, por demasiado tempo, ficou paralisada
diante da nova situação de uma revolução "legal" e
"nacional".
Em suma, Hitler chegou ao poder como
conseqüência de um conjunto de erros que poderiam
ter sido evitados. Ele não foi eleito livremente pela
maioria do povo alemão, nem houve razões
insuperáveis que justificassem a capitulação da
república. Todavia, nos momentos finais, as forcas
811
democráticas se encontraram em minoria diante dos
partidos totalitários e ditatoriais dos nacionalsocialistas e dos comunistas. E foi nesta situação que
um grande número de dirigentes alemães optou por se
colocar do lado de Hitler, após 1933. A suscetibilidade
da classe média era resultado de causas históricas e
contingentes. A história da tomada do poder por parte
de Hitler sem dúvida possui seus lados obscuros, e
que são inúmeros. Por outro lado, os pré-requisitos do
Nacional-socialismo também não são passíveis de
explicações lineares. Foram inúmeros os fatores e os
elementos que aí desempenharam seu papel, obscuras
forças subterrâneas, resultado das condições nacionais
e sociais alemãs e européias. A fatal ascensão de
Hitler está intimamente relacionada com uma marcante
seqüência de acontecimentos que se verificaram na
Alemanha nos séculos XIX e XX, embora o Nacionalsocialismo não possa ser identificado com a história
alemã.
IV. CONSOLIDAÇÃO E DINÂMICA DO REGIME. — O
regime nacional-socialista alemão (1933-1945) teve
como característica um rápido processo de supressão e
coordenação (Gleichschaltung) de todas as forças e
instituições políticas, sociais e culturais. A "tomada do
poder" se deu com pleno sucesso no período de cinco
meses, e com muito maior definição do que aconteceu
na Itália fascista onde o processo levou seis anos. O
sistema totalitário com um partido único e com um
único líder foi definitivamente implantado no verão
de 1934, quando Hitler, através de expurgos
sangrentos dentro do partido (e das organizações
militares do partido, as SA), conseguiu o apoio total
do exército e se nomeou, após a morte do presidente
Hindenburg, chefe do Estado, chanceler, líder do
partido e da nação, ditador único da Alemanha.
Nos anos seguintes o regime se estruturou para
concretizar suas finalidades ideológicas, quer no
campo da política interna quer no da política externa.
O controle totalitário do poder, na própria Alemanha,
foi utilizado para a mobilização de todos os recursos
na sustentação militar da hegemonia alemã na Europa
e no empenho de anexação de amplos territórios,
principalmente na Europa oriental. Causa surpresa
observar o quanto a conduta política do Nacionalsocialismo tenha sido determinada por posições
ideológicas, principalmente no campo do racismo e do
anti-semitismo, o que foi sobremaneira comprovado
pela criminosa eliminação de milhões de judeus e pela
rigorosa supressão das nações eslavas. A política de
ocupação, levada adiante pelo Nacional-socialismo
durante a Segunda Guerra Mundial, foi uma terrível
concretização das idéias de
812
NÂO-ALINHAMENTO
superioridade alemã e do direito ao espaço vital. Esta
política diferiu profundamente da seguida pelo
Governo ditatorial, mais tradicional na sua forma, do
fascismo italiano, embora tenha sido justamente a
aliança entre Mussolini e Hitler que abriu o caminho
para que se chegasse às últimas conseqüências no
campo do terror, da guerra e da destruição.
No fim, as reais manifestações do regime nacionalsocialista foram uma refutação daquelas próprias
idéias em que o mesmo se baseava; daí que o
neonazismo não conseguisse melhores resultados na
Alemanha do pós-guerra. O fracasso total e a
autodestruição do Nacional-socialismo em 1945
servem, entre outras coisas, para refutar a crença
popular de que uma ditadura totalitária, pelo fato de
eliminar todo controle político e moral e
conseqüentemente possibilitar uma atuação mais
rápida e de mais impacto, seja fiador da ordem e da
eficiência de uma forma mais abrangente, bem como
de maior segurança e estabilidade do que os
complexos sistemas democráticos. Além da rígida
pseudo-ordem imperante no Terceiro Reich, havia um
mundo de rivalidades pessoais e profissionais, de
ordens arbitrárias por parte do líder, de insegurança
causada pela vigilância e pelo terror. O resultado foi
um momentâneo aumento do poder, seguido por um
enfraquecimento da consciência nacional, que
culminou no caos da fase final. Os excessos que
marcaram o declínio do Terceiro Reich evidenciaram
a verdadeira natureza de um sistema que,
contrariamente ao afirmado pela sedutora teoria da
ditadura, não proporcionou a seus cidadãos sequer
ordem política e Governo eficaz, e muito menos
segurança maior e possibilidades melhores de se
expressarem; ao contrário, erigiu-se exclusivamente
sobre o despotismo organizado e sobre crimes
pseudolegais e mal escondidos. Hitler teve para tudo
uma única, egomaníaca, resposta: o povo alemão
fracassara na sua prova histórica, pondo em jogo,
conseqüentemente, sua própria existência nacional.
Nos últimos tempos, uma idéia fixa o perseguia:
nunca cederia, nunca mais iria acontecer novamente
na história alemã o que tinha acontecido em
novembro de 1918. No seu testamento político de 29
de abril de 1945, repete as idéias fixas que tinham
orientado a ascensão e a dominação do Nacionalsocialismo, começando pelo seu ódio feroz com
relação ao "judaísmo internacional e seus cúmplices",
que, na visão do mundo de Hitler, seriam os
responsáveis por tudo aquilo que estava acontecendo.
A queda do Nacional-socialismo foi sancionada
juridicamente pela comissão aliada de controle que, a
4 de junho de 1945, dissolveu formalmente o
N.S.D.A.P. e ordenou a prisão de seus funcionários.
Os resultados do domínio nazista
foram óbvios assim como sua queda. Até seus critérios
para avaliar os sucessos refutam a eficácia da política
nazista. O preço pago foi imenso: mais de 6 milhões e
meio de alemães mortos, o dobro de prófugos, a
divisão e a repartição do país, o fim de sua existência
como Estado — este foi o balanço alemão do Terceiro
Reich. O balanço europeu, que se inicia com o
extermínio de aproximadamente 6 milhões de judeus,
nos leva muito além dos números acima: enquanto a
França contou com aproximadamente oitocentas mil
vítimas e a Grã-Bretanha quatrocentas mil, pelo menos
vinte milhões foram mortos na Rússia, quatro milhões
e meio na Polônia e um milhão e setecentos mil na
Iugoslávia. A culpa da Alemanha, principalmente com
relação aos povos da Europa oriental, e a expulsão, por
vingança, de todos os alemães destes territórios,
permanecerão para sempre como a herança deixada
pelo Nacional-socialismo.
BIBLIOGRAFIA - H. ARENDT, Le origini del
totalitarismo (1951), Edizione di Comunità, Milano
1967; K. D. BRACHER, La dittatura tedesca (1969), Il
Mulino. Bologna 1973; W., Die Auflösung der
Weimarer Republik. Ring Verlag, Villingen 1971'; Id.,
Die Nationalsozialistische Machtergreifung. West
deutscher Verlag, Köln 19743; Id., La crisi dell'Europa
(1976, 1979), Mondadori, Milano 1978; M. BROSZAT,
Der Staat Hitlers, Deutscher Taschenbuch Verlag,
München 1969; Anatomie des SS-Staates. sob a
direção de H. BUCHEIM. Deutscher Taschenbuch
Verlag, München 1965; A. BULLOCK, Hitler. studio
sulla tirannide (1952), Mondadori, Milano 1965; J.
FEST, Hitler (1973), Rizzoli, Milano 1975; K.
HILDEBRAND, Das Dritte Reich. Oldenbourg, München
1979; Il nazionalsocialismo (1958), ao cuidado de W.
Hora», Feltrinelli, Milano 1964; E. JAECKEL, Hitlers
wettanschauting, Wunderlich Rainer, Stuttgard 1981;
H. A. JACOBSEN, Nationalsozialistische Aussenpolitik
1933-1938, A. Metzner, Frankfurt 1968; G. L. MOSSE,
La crisi dell'ideologia tedesca (1964), Milano 1968.
[KARL DIETRICH BRACHER]
Não-alinhamento.
I. DEFINIÇÃO. — Por Não-alinhamento (ou
neutralismo), se entende a rejeição da guerra fria e da
política dos blocos por parte dos países do Terceiro
Mundo (ex-colonizados) e dos que se situam à
margem da esfera de influência e de "colonização
política" (v. SATÉLITE; das grandes potências
(Iugoslávia); a abstenção das opções políticas e
estratégicas internacionais dos blocos
NÃO-ALINHAMENTO
contrários. A definição mais rigorosa de Nãoalinhamento é aquela que foi formulada na Convenção
do Cairo em junho de 1961 e que preparou a primeira
conferência dos países neutralistas em Belgrado no
mês de setembro de 1961. "O primeiro critério para
definir a política de Não-alinhamento é aquele através
do qual podem ser considerados não comprometidos
aqueles países que dentro de uma coerência perseguem
uma política independente, inspirada nos princípios da
coexistência ativa e pacífica e da colaboração com
todos os países na base de igualdade, prescindindo das
diferenças existentes nos respectivos ordenamentos
sociais. O segundo critério é o de que cada país não
alinhado deve, com coerência e constância, apoiar e
contribuir ativamente para a luta pela independência
nacional e pela completa libertação de todos os povos.
Os outros três critérios dizem respeito à questão da
não adesão a alianças militares multilaterais e a outros
tratados que se apresentam como instrumentos do
antagonismos dos blocos, à questão das alianças
defensivas regionais convenientes e à posição dos
países que permitiram a instalação de bases em seu
próprio território a potências estrangeiras." O termo
Não-alinhamento define portanto uma opção de caráter
político e não deve ser confundido com outros termos
semelhantes mas não análogos, tais como
"neutralidade" e "neutralização" que se referem
essencialmente ao status e à relativa e conseqüente
atitude prescritiva de um país em período de guerra e
que dizem respeito à esfera do direito internacional
mais do que à esfera política. Na realidade, a condição
de país não-alinhado não exclui a possibilidade de
conflito com outros países neutros e não neutros,
referindo-se essencialmente aos dois blocos e a seus
possíveis conflitos.
II. COLOCAÇÃO HISTÓRICA. — O Não-alinhamento é
historicamente a conseqüência direta da guerra fria e da
divisão do mundo em blocos contrários e é também a
reação e a opção ético-política dos países excolonizados frente à polarização e à radicalização das
relações internacionais que se seguiu à Segunda Guerra
Mundial. É portanto a partir de 1945 que a natureza da
neutralidade muda para assumir novas conotações, não
mais conexas ao conceito de guerra em campos de
batalha mas ao de guerra ideológica e condicionadas
por novas e mais sofisticadas formas de organização
internacional (alianças estratégicas e militares
coletivas, organismos multinacionais políticos e
econômicos, etc). Pioneiro do Não-alinhamento foi o
líder indiano Nehru que o concebeu sobretudo como
rejeição da guerra fria em chave anticolonial. Rejeitado
pelas duas grandes potências (a URSS teve durante
muito tempo
813
como "burgueses" todos os países não comunistas e os
Estados Unidos o consideraram por longos anos como
uma traição à democracia), o Não-alinhamento foi,
assim, em sua primeira formulação, a bandeira
distintiva dos novos Estados independentes. Foi na
Conferência da Bandung (abril de 1955), em que
participaram também países pertencentes aos dois
blocos (Turquia, Paquistão, Iraque, China e Vietnã do
Norte), que apareceu, no ponto seis da resolução final,
de forma sistemática, a vontade de abstenção do
recurso a formas de defesa coletiva destinadas a servir
os interesses particulares de uma grande potência.
Pouco a pouco, foi-se atenuando o carácter de rígida
oposição dos dois blocos, próprio da guerra fria,
exaurindo-se o processo de descolonização, mudando
também o conceito de Não-alinhamento e perdendo
grande parte de seu primitivo conteúdo anticolonialista
e racial. De simples "recusa", o Não-alinhamento
assumiu a conotação de ideologia autônoma do
Terceiro Mundo e com a entrada da Iugoslávia no
clube dos países neutralistas, de ideologia positiva de
Não-alinhamento. O fim da guerra fria e o início da
distensão e da coexistência pacífica assinalaram, por
conseguinte, a passagem do Não-alinhamento "passivo"
— como opção moral pura dos tempos de Nehru —
para o Não-alinhamento "ativo" teorizado pelo
marechal Tito, presidente da Iugoslávia, como
autêntica opção política. Finalmente, com a
declaração emitida pela Conferência de Belgrado em
1961, o conceito de Não-alinhamento tornou-se um
princípio atuante dentro da Organização das Nações
Unidas, presença nas decisões internacionais,
arbitragem e participação nas iniciativas de paz no
âmbito da ONU e nos conflitos internacionais. A
criação de forças de paz das Nações Unidas e a própria
Carta da ONU — que torna difícil a neutralidade
clássica (com as cláusulas relativas à intervenção da
organização nas controvérsias internacionais, aos
poderes do Conselho de Segurança, etc.) mas que
parece favorecer o Não-alinhamento — conferiram, a
propósito, um papel positivo e autônomo aos pequenos
Estados assim como aos países neutralistas. Nas
sucessivas conferências dos não-alinhados (Belgrado,
1969; Lusaka, 1970; Argel 1974; Colombo, 1976;
Havana, 1979) manifestaram-se as contradições
latentes entre fautores de um Não-alinhamento
eqüidistante dos dois blocos (os chamados "amigos da
paz" chefiados pela Iugoslávia) e os fautores de um
Não-alinhamento
comprometido
com
o
antiimperialismo, na clássica acepção marxista-lenista
(liderados por Cuba), abrindo-se uma crise
praticamente sem saída no seio do movimento.
III. O NEUTRALISMO COMO IDEOLOGIA. —
Fundamentando-se na resolução da Conferência
814
NÃO-VIOLÊNCIA
de Belgrado, o Não-alinhamento: 1) rejeita o conceito
de inevitabilidade da guerra e também da guerra fria;
2) afirma o princípio da coexistência entre sistemas
diferentes, assim como dos princípios de
autodeterminação, de independência e de livre escolha
das formas de desenvolvimento; 3) reafirma a
essencialidade da participação dos países neutralistas
nas iniciativas de paz; 4) considera o alargamento da
esfera do Não-alinhamento como a única alternativa
possível contra a divisão do mundo em blocos e contra
a guerra fria; 5) recomenda a abolição de todas as
formas de colonialismo e de exploração. O programa
do Não-alinhamento cobre um amplo raio de variações
políticas simpatizantes com o Ocidente democráticoliberal e com o mundo comunista, traduzindo em
substância, muitas vezes, a simples vontade dos
Estados não-alinhados não se envolverem em conflitos
que não lhes digam diretamente respeito. Esta a razão
por que entre os mesmos Estados neutralistas não
existe comunhão de instituições, de preferências
ideológicas e de ação diplomática. A opção da forma
de Não-alinhamento em si não pode dizer-se que seja
fruto do grau e da natureza do subdesenvolvimento e
da forma institucional de organização política própria
de cada Estado neutralista. Foram as circunstâncias
políticas, e a psicologia das elites no poder e dos povos
que, ao contrário, determinaram e ainda determinam e
influenciam as modalidades do Não-alinhamento.
termo Não-violência pertence à mesma classe a que
pertencem termos como "marxismo", "anarquismo",
"liberalismo", e dar uma definição dele é esboçar uma
particular concepção ético-política. No primeiro caso
será oportuno falar de Não-violência pragmática e
negativa, no segundo, de Não-violência doutrinai e
positiva. Em ambos os casos, a Não-violência se
distingue do pacifismo, entendido como uma posição
ética que rejeita a guerra, e, mais em geral, a violência
física, na condução e solução dos conflitos, sobretudo
dos conflitos de grupo. Entendida como doutrina, a
Não-violência, na realidade, não é só uma posição
ética, enquanto que, entendida como maneira de agir,
não o é de modo algum, mesmo que, naturalmente,
possa ser escolhida por razões éticas.
I. A NÃO-VIOLÊNCIA PRAGMÁTICA E
NEGATIVA. — Com a expressão "Não-violência
pragmática e negativa", se pretende acentuar que
aquilo a que se faz referência é a) um conjunto de
métodos de luta, b) que se caracterizam,
negativamente, pela ausência da violência e c) cujo
emprego é de per si compatível com qualquer doutrina
ou ideologia, já que nada exclui que eles possam ser
usados, mesmo por razões táticas, por qualquer grupo,
com vistas a um fim ou causa tanto justos como
injustos. Do termo assim entendido há tantos
significados quantos os do termo "violência", em
função do qual aquele é definido. Podemos distinguir,
grosso modo, três significados de "violência", cada
BIBLIOGRAFIA — P. LYON, Neutralism, Leicester vez mais amplos ou inclusivos, e, respectivamente,
University Press. Leicester 1963; R. OGLEY, The três significados cada vez mais restritos ou exclusivos
theory and practice of neutrality in the twentieth de Não-violência.
century, Routledge & Kegan Paul, London 1970; O.
1) Por "violência" se pode entender, em sentido
R. YOUNG, The intermediaries. Princeton University estrito, a morte intencional e forçada de um ser
Press. Princeton 1967.
humano (ou. mais genericamente, de um senciente), ou
a provocação intencional e forçada de sofrimentos ou
[PIERO OSTELLINO] lesões físicas, mediante o uso da força (violência física
ativa). No campo das relações de conflito entre
grupos, a forma que a violência assim entendida
assume regularmente é a da violência armada e
Não-violência.
organizada, ou seja, a da violência militar. A esta
O termo Não-violência pode ser usado em duas noção restrita de violência corresponde uma noção
acepções bastante diversas que convém distinguir bastante ampla de Não-violência, pela qual o termo
claramente. No primeiro sentido, ele designa só um designa toda a técnica de luta isenta de violência física
modo de agir, ou seja, um conjunto de métodos ou ativa. No plano das relações de conflito entre grupos,
técnicas de luta. No segundo, ao invés, designa uma estas técnicas de luta se identificam, na prática, com
"doutrina" ou, de qualquer modo, um conjunto de os vários métodos de luta não-militar, como a greve,
idéias, conceitos, teses, teorias e propostas de estratégia o boicote, certas formas de sabotagem, etc.
política que pretende apresentar-se como tal. No
primeiro caso, o termo Não-violência pertence à mesma
classe do termo "violência" e a definição de um
envolve a definição do outro. No segundo caso, pelo
contrário, o
2) Numa acepção mais ampla, por violência se pode
também entender a morte intencional e forçada, ou a
provocação intencional e forçada de sofrimentos ou
lesões físicas, quer isso ocorra
NÃO-VIOLÊNCIA
mediante o uso da força (violência física ativa), quer
não, deixando, por exemplo, de fazer determinadas
ações cujo cumprimento seria suficiente, ou necessário
e suficiente, para salvar as vidas ou para evitar
sofrimentos e lesões físicas (violência física passiva). A
esta acepção mais ampla de violência corresponde uma
mais restrita acepção de Não-violência, pela qual o
termo designa toda a técnica de luta isenta tanto da
violência física ativa, como da violência física passiva.
Para nos referirmos a um tal método de luta,
poderemos usar o termo métodos de luta incruenta.
Todo o método de luta incruenta é, desse modo,
também um método de luta não-militar, mas nem todo
o método de luta não-militar é método de luta
incruenta. Se o grupo A, em conflito com o grupo B,
deixa de enviar os medicamentos de que o grupo B tem
extrema necessidade, e o faz para obrigar o grupo B a
ceder, este método de luta é um método não-militar,
mas não é um exemplo de método incruento, já que,
por omissão, o grupo A causa sofrimentos ou lesões
físicas aos membros do grupo B, exercendo, por isso,
violência passiva. 3) Numa terceira e ainda mais ampla
acepção, pode-se, enfim, entender por violência, além
da morte intencional e forçada ou da provocação
intencional e forçada de sofrimentos ou lesões físicas
(de modo ativo e passivo), a própria provocação
intencional e forçada de sofrimentos ou lesões
psíquicas. Por isso, além da violência física, poder-seá falar também de violência psíquica. Exemplos de
sofrimento psíquico são um estado de ansiedade
aguda, ou um estado de pânico ou desespero intensos.
Segundo esta acepção, o ato terrorista, enquanto
intencionalmente orientado a gerar tais estados de
angústia, pânico ou desespero, além de constituir um
exemplo de violência física, constitui também um
exemplo de violência psíquica. O exemplo mais claro
de lesão psíquica nos é oferecido, por sua vez, pela
destruição da capacidade de deliberação e decisão
autônoma do indivíduo (pense-se no estado a que fica
reduzido Winston Smith no fim do romance 1984 de
G. Orwell). A uma tal acepção ampla de violência
corresponde uma acepção restrita de Não-violência,
pela qual o termo designa todo o método de luta isenta
tanto de violência física (ativa ou passiva), quanto de
violência psíquica (ativa ou passiva). Poderemos
referir-nos a esses métodos com o termo métodos de
luta inofensivos. Um exemplo de método deste tipo é o
método democrático, fundado no princípio da maioria
e em outras regras conhecidas de procedimento. Com
efeito, embora certas pessoas que se venham a
encontrar em minoria, possam, em decorrência de tal
fato, experimentar sofrimentos, mesmo sérios, não se
pode, contudo, afirmar que a maioria lhes
815
inflige esses sofrimentos de maneira forçada, já que
os que são minoria, tendo aceitado livremente esta
eventualidade, aceitaram também os sofrimentos a ela
ligados (volenti non fit injuria). Como é já claro e
transparece também deste exemplo, um método
inofensivo é sempre igualmente um método incruento
e, a fortiori, um método não militar. Mas certos
métodos incruentos podem ser ofensivos, na medida em
que envolvem violência psíquica, como certas formas
de lavagem de cérebro, por exemplo.
O problema da escolha entre as três acepções de
Não-violência indicadas é um problema que enfrentam,
de modo particular, aqueles que rejeitam a violência,
pelo menos em parte, por motivos morais, enquanto
que tal não acontece com os que, em determinadas
situações, se abstêm da violência por razões
puramente táticas. Do ponto de vista moral, há duas
boas razões para a adoção da terceira e mais ampla
acepção de violência e, conseqüentemente, da mais
restrita de não-violência. A primeira é que, desde esse
ponto de vista, é difícil ver que diferença existe entre
matar uma pessoa ou causar-lhe graves sofrimentos
físicos cravando-lhe uma faca nas costas e fazê-la
morrer ou submetê-la a graves sofrimentos físicos
cortando-lhe os alimentos, razão pela qual, se se
caracteriza como violência o ato do primeiro caso,
também se há de caracterizar como tal a omissão do
segundo. A outra razão é que, ainda sob o mesmo
ponto de vista moral, é difícil ver que diferença existe
entre provocar sofrimentos ou lesões de natureza
física e provocar sofrimentos ou lesões de natureza
psíquica: se o primeiro é um mal, também o é o
segundo, visto existirem sofrimentos psíquicos que,
para certas pessoas, são muito piores que os
sofrimentos físicos mesmo intensos (muitos preferem
a dor a que são submetidos na cadeira do dentista, ao
estado de angústia intensa que experientam em sua sala
de espera). Uma das objeções mais sérias que se pode
fazer ao pacifismo tradicional é justamente a de operar
com uma acepção de violência indevidamente restrita,
ou seja, de rejeitar de modo bastante gratuito apenas a
violência física ativa. Isto não impede, contudo, que a
redução máxima dessa forma de violência, sobretudo
da violência militar, constitua no mundo de hoje um
objetivo particularmente importante, vistas as
conseqüências funestas que o seu uso pode trazer para
todo o gênero humano.
II. A NÃO-VIOLÊNCIA DOUTRINAI E
POSITIVA. — Entendida como "doutrina", a Nãoviolência se apresenta como uma tentativa de resposta
apropriada e abrangente aos novos e graves problemas
postos pelo enorme desenvolvimento dos armamentos,
pela escalation da violência política,
816
NÃO-VIOLÊNCIA
pelas tendências totalitárias congênitas ao Estado
moderno, pelo desenvolvimento sem controle do
industrialismo (não apenas capitalista) e pelas
diferenças cada vez maiores entre as populações
pobres e as populações ricas. Trata-se de uma
doutrina "aberta", no sentido de que está ainda em
elaboração, baseando-se, em parte, no encontro entre
certas idéias do pacifismo ocidental e de certos temas
do socialismo e do pensamento anárquico com o
pensamento e as "experiências" políticas de Gandhi,
em parte também no estudo atento e sistemático dos
vários exemplos de lutas não violentas que se
oferecem no curso da história humana, principalmente
em nosso século. Embora se trate de uma doutrina
aberta, como fica indicado, é possível, não obstante,
identificar alguns dos componentes fundamentais em
que se articula: uma concepção do homem como ser
racional, capaz de um comportamento moral mesmo em
situações de conflito extremamente fortes; uma
filosofia da educação que teoriza os métodos educativos
mais aptos a favorecer o máximo desenvolvimento de
tal capacidade; uma filosofia da história segundo a
qual as grandes conquistas humanas não obstante o
uso da violência, de modo algum foram alcançadas
graças ao seu emprego; uma concepção da vida
associada, do poder político e do Estado; uma
doutrina ética que se estende até abraçar todos os
seres sensíveis e dá consistência a uma rejeição da
violência que não é apriorística, mas se funda numa
atenta reflexão sobre a relação meios-fins; a proposta
de uma modalidade de luta totalmente particular, que
já se tornou habitual designar com o termo satyagraha,
criado por Gandhi, que continua ainda hoje seu maior
teórico. Remetemos, para uma melhor caracterização
desta proposta particular, à palavra GANDISMO,
limitando-nos aqui a expor as linhas de pensamento
que a doutrina em exame apresenta acerca do Estado e
da violência.
poderes decisórios, baseados no método democrático,
no que toca às questões de política local, e com um
poder efetivo sobre as decisões respeitantes a toda a
comunidade. A doutrina da Não-violência teoriza, além
disso, a socialização dos grandes meios de produção,
cuja autogestão deseja ver confiada aos trabalhadores,
mas deixa, pelo contrário, em aberto, a questão do grau
em que a economia há de ser planificada numa
sociedade assim. Reavaliando as críticas feitas por
Gandhi ao sistema de produção industrial como tal e
integrando estas críticas com as mais recentes
denúncias provenientes dos vários movimentos de
defesa do ambiente ecológico, a doutrina da Nãoviolência propõe uma sociedade de baixo consumo
energético, onde o desenvolvimento tecnológico seja
inteiramente condicionado pelas exigências de um
pleno e harmonioso desenvolvimento de toda a pessoa
humana. Numa sociedade deste tipo, serão mantidas
todas aquelas conquistas tecnológicas que sejam
indispensáveis ao bem-estar humano (entendido não
apenas em termos de satisfação das necessidades, mas
também em termos de qualidade de vida). Quanto ao
mais, esta doutrina propõe um rigoroso controle do
desenvolvimento das forças produtivas (divergindo
neste ponto das marxistas que vêem em tal
desenvolvimento algo sempre positivo) e faz votos para
que os trabalhos mais pesados, perigosos e monótonos
sejam feitos por turno e obrigatoriamente por todos
(serviço civil). Estes fatores já impediriam, segundo o
fautor desta doutrina, uma política de rapina em
relação às outras comunidades, garantindo, portanto,
além da justiça interna, também a externa. Mas, para
maior garantia disso e por outras razões abaixo
indicadas, o fautor da doutrina da Não-violência
propõe a abolição de todo o tipo de exército e confia a
defesa da sociedade, que propugna, à resistência nãoviolenta de massa (teoria do satyagraha e das técnicas
de luta não violenta positiva), que julga facilitada não
1) Tanto a concepção do homem como ser só pela descentralização que caracteriza tal sociedade,
autônomo, como a idéia de igualdade, que se manifesta como também pelo alto nível de consciência moral e
nas fórmulas de onicracia ou poder de todos (Capitini) política que se presume exista nela.
e do sarvodaya ou bem-estar de todos (Gandhi), levam
2) O discurso que a doutrina da Não-violência
o defensor da doutrina da Não-violência a opor uma apresenta acerca da violência assenta naquilo que Max
clara recusa àquela combinação de centralismo, Weber chamou ética da responsabilidade. É com base
burocracia e exército em que, com razão ou não, ele nela que o uso da violência, sobretudo da violência
crê basear-se fundamentalmente o Estado moderno e a organizada e empregada como instrumento de luta
sua aspiração cada vez mais totalitária. Servindo-se de política, é condenado, com argumentos que dizem
algumas propostas do socialismo, dos teóricos da auto- respeito às conseqüências negativas a ele inerentes.
gestão e da concepção gandhiana de um "estado não Nisso, a doutrina da Não-violência se distingue assaz
violento", a doutrina em questão propõe uma ordem claramente do pacifismo tradicional, especialmente do
política fortemente descentralizada, cujas estruturas de matriz religiosa (Tolstoi), onde o uso da violência
fundamentais são constituídas por conselhos de (física
cidadãos, organizados a nível de fábrica, de bairro, de
aldeia, etc, investidos de amplos
NÃO-VIOLÊNCIA
ativa) é condenado a priori, em qualquer tempo e
lugar.
A tese das conseqüências negativas da violência é
defendida com enorme série de argumentos.
Resumiremos aqui os mais importantes.
O primeiro faz ressaltar o processo histórico de
escalation da violência. Segundo tal argumento, o uso
da violência, mesmo o da violência justificada como
necessária para diminuir ou pôr cobro à violência,
levou sempre a novas e mais amplas formas de
violência, numa espiral que conduziu às duas últimas
guerras mundiais e que hoje ameaça acabar na
destruição de todo o gênero humano. À célebre
metáfora da violência como obstetriz da história opõe
o autor deste argumento a da violência como coveira
da história.
Outro
argumento
realça
as
tendências
desumanizantes e embrutecedoras ligadas à violência,
pelas quais quem se envolve em seu uso tende a
tornar-se cada vez mais insensível aos sofrimentos e
sacrifício de vidas que provoca, dispondo-se, por isso,
a aceitar e a sancionar formas de violência cada vez
mais amplas e destruidoras: "Se se recai no jogo da
violência, corre-se o risco de aí ficar para sempre"
(Merleau-Ponty, 1978, p. 23).
Um terceiro argumento contra o uso da violência
refere-se ao depauperamento do fim a que o seu
emprego pode levar: mesmo onde ela for justificada
por um fim altamente desejável, seu uso tende a pôr
em movimento um processo de reestruturação do
objetivo pretendido que se esvazia cada vez mais dos
seus componentes morais, humanos, e se reduz, em
medida
crescente,
aos
componentes
mais
imediatamente político-militares. Os meios violentos
corrompem o fim, mesmo o mais excelente.
Outro dos argumentos dá particular importância à
forma como a violência organizada favorece o
aparecimento e colocação em postos cada vez mais
importantes da sociedade ou do movimento, de
indivíduos e grupos autoritários, caracterizados por
débeis inibições quanto ao uso da violência e
favoráveis à militarização do movimento ou da
sociedade em que surgiram. O emprego da violência
organizada conduz sempre, mais tarde ou mais cedo,
ao militarismo.
O quinto e último argumento é o que põe em relevo
o processo pelo qual as instituições necessariamente
fechadas,
hierárquicas,
autoritárias,
quando
vinculadas ao uso organizado da violência, tendem a
transformar-se em componentes estáveis e integrais
do movimento ou da sociedade que a ela recorrem. O
emprego organizado da violência é fatal para a
democracia: "a ciência da guerra leva à ditadura"
(Gandhi).
817
Os fautores da doutrina da Não-violência sabem
muito bem que toda a condenação da violência como
instrumento de luta política está sujeita a converter-se
em exercício de estéril moralismo, se não for
acompanhada de uma séria proposta de instituições e
meios de luta alternativos. Daí a proposta da
alternativa satyagraha ou da luta não violenta
positiva, baseada na dupla tese a) da sua
praticabilidade mesmo a nível de massa e em
situações profundamente conflituosas, e b) da sua
eficácia como instrumento de luta pela realização de
uma sociedade do tipo acima esboçado. Em prol da
primeira tese, além das considerações teóricas, é
apresentada uma verdadeira série de exemplos de
lutas não violentas de massa, em situações onde, em
geral, se recorre à violência (lutas não violentas dos
docentes noruegueses contra o regime de Quisling
durante a ocupação nazista, grandes campanhas
satyagraha conduzidas ou inspiradas por Gandhi na
África do Sul e na Índia, etc). Em prol da segunda
tese, além de vários exemplos de luta não violenta que
se mostrou eficaz na consecução de determinados
objetivos, é também apresentado o argumento
segundo o qual o poder, mais que no cano do fuzil,
reside na firme vontade de não-colaboração, contra a
qual, se organizada em bases de massa e fundada num
vasto programa e num esforço construtivo, nem o
mais potente tirano pode resistir por muito tempo.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR.. Marxismo e nonviolenza.
Editrice Lanterna, Genova 1977; Id., Nonviolenza e
marxismo, Feltrinelli, Milano 1981; N. BOBBIO. li
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Bologna 1979; J. V. BONDURANT, Conquest of violence,
University of California Press. Berkeley 19692; A.
CAPITINI, La nonviolenza, oggi, Comunità, Milano
1962, Id.. Le tecniche della nonviolenza, Libreria
Feltrinelli, Milano 1967; B. De LIGT, Pour vaincre
sans violence, Mignolet & Storz, Paris 1935 e edição
aumentada The conquest of violence, E. P. Dutton, New
York 1938; T. EBERT, Gewaltfreier Aufstand.
Alternative zum Bürgerkrieg, Fischer Bücherei.
Freiburg 1968; J. GAITOU, On the meaning of
nonviolence, "Journal of peace research", 3, 1965; R.
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York 19662; H. J. N. HORSBURGH, Non-violence and
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MERLEAU-PONTY, Umanismo e terrore. trad. ital.,
Sugarco, Milano 1978; W. R. MlLLER, Nonviolence.
Allen and Unwin, London 1964; J. M. MULLER,
Strategia della nonviolenza (1972), Marsilio Editori,
Venezia-Padova 1975 (com uma ampla bibliografia
sobre a não-violência, ao cuidado de M. Soccio); J.
NARAYAN. Verso una nuova società, trad. ital., Il
Mulino, Bologna 1964; G. PONTARA, The concept of
violence. "Journal of peace research", I, XV, 1978, pp
19-32; G.
818
NEOCORPORATIVISMO
SHARP, The politics of nonviolent action, Porter
Sargent Publisher, Mass.. Boston 1973; The quiet
battle: writings on the theory and practice of nonviolent resistance. ao cuidado de M. Q. SIBLEY,
Anchor Books, Doubleday. New York 1963.
[GIULIANO PONTARA]
Neocorporativismo.
I.
OS DIFERENTES CONCEITOS DE
NEOCORPORATIVISMO. — O conceito de
Neocorporativismo difundiu-se recentemente na
literatura política internacional, como instrumento
para analisar um conjunto de mudanças ocorridas nas
relações entre Estado e organizações representativas
dos interesses particulares, nos países capitalistas com
regime democrático. O prefixo "neo", assim como os
adjetivos "societário", "liberal", "democrático",
"contratado", "voluntarista", utilizados em seu lugar
por diferentes autores (respectivamente: Schmitter
1974, Lehmbruch 1977, Wilenski 1977, Crouch 1977a
e 19776), quer sublinhar a necessidade de se distinguir
este conceito do outro, clássico, de corporativismo (v.
CORPORATIVISMO), irremediavelmente comprometido
por sua identificação ideológica com o fascismo. O
tipo de relações entre Estado e sociedade civil que os
dois conceitos pretendem identificar não é, na
realidade, muito diferente. Ambos "referem-se a
tentativas para reviver algo da unidade orgânica da
sociedade medieval, como reação ao individualismo e
à atomização produzidos pelo liberalismo" (Crouch
1977b). A diferença fundamental é a seguinte: num
sistema neocorporativista a organização representativa
dos interesses particulares é livre para aceitar ou não
suas relações com o Estado, contribuindo, portanto,
para defini-las enquanto que no corporativismo
clássico é o próprio Estado que impõe e define estas
relações.
Na prática, que tipo específico de relações entre
Estado e sociedade civil corresponde ao conceito de
Neocorporativismo? Na literatura mais recente têm-se
afirmado duas diferentes aplicações deste conceito.
Para os autores que se referem à definição de
Schmitter (1974), o Neocorporativismo é uma
particular forma de intermediação dos interesses entre
sociedade civil e Estado, diferente e até oposta à
amplamente conhecida como pluralista (v.
PLURALISMO). Contrariamente ao que ocorre no
sistema pluralista, no sistema neocorporativista os
interesses gerados na sociedade civil são organizados
em números limitados de associações
(principalmente em "grupos de produtores", isto é,
sindicatos dos trabalhadores e dos empresários,
associações de agricultores, etc.) cuja diferença está
fundamentalmente nas funções por elas desenvolvidas,
não competindo, portanto, entre si. Estas associações
têm uma estrutura interna centralizada e hierárquica, e
pertencer a elas é muitas vezes uma obrigação, pelo
menos de fato quando não de direito. O aspecto mais
característico, porém, está na sua específica relação
com a máquina do Estado. É o Estado que dá a estas
associações o reconhecimento institucional e o
monopólio na representação dos interesses do grupo,
assim como é o Estado que delega a elas um conjunto
de funções públicas. Segundo Offe (1981), a
"corporativização" das organizações representativas
dos interesses, em particular dos sindicatos, nos países
de capitalismo avançado de regime democrático,
consistiria essencialmente na "atribuição às mesmas de
um status público" por parte do Estado. O fenômeno,
todavia, lançaria suas raízes muito mais atrás no
tempo, na "refundação da Europa burguesa" (Maier
1975), ocorrida entre as duas guerras mundiais, ou até
na passagem do capitalismo liberal para o capitalismo
organizado na virada do século.
Polemizando com a visão pluralista, hegemônica
nos países anglo-saxônicos porém incapaz de
interpretar o sistema político dos países da Europa
ocidental, chegamos assim a ressaltar o papel
desenvolvido por muitos Estados na formação e
consolidação das organizações representativas dos
interesses, na maioria dos casos dispersos e incapazes
de se agregar na sociedade civil. "Apenas a
intervenção coercitiva do Estado burocrático moderno
na sustentação da vida das organizações, na
regulamentação de seu campo de jurisdição e na
manutenção de seu monopólico representativo, na
delegação às mesmas de determinadas funções, na
garantia de seus privilégios seletivos, na imposição da
obrigatoriedade de a eles se pertencer de fato ou de
direito, na solicitação de um fluxo de informações, no
estímulo à formação de 'partners' organizados de
acordo com os princípios da representatividade
funcional para gerir a política econômica e social. . .
tem chances para obter esta resposta organizada por
parte da sociedade civil" (Schmitter 1981).
Mas grande parte da literatura relativa ao
Neocorporativismo se refere a um momento de
processo político que pode ser analiticamente
distinguido do momento da mediação de interesses
entre sociedade civil e Estado. O Neocorporativismo é
visto, neste caso, como uma específica maneira de
formação das opções políticas por parte da máquina
do Estado. No Neocorporativismo as grandes
organizações representativas
NEOCORPORATIVISMO
dos interesses não se limitam a exercer pressões
externas — como acontece no modelo pluralista —
mas são envolvidas diretamente, ou incorporadas, no
processo de formação e de gestão das decisões. O
Neocorporativismo consiste, desta forma, de acordo
com diversos autores, na "participação dos grandes
grupos sociais organizados na formação da política do
Estado, e principalmente da política econômica"
(Lehmbruch 1977).
O primeiro conceito se refere, pois, ao input do
processo político, isto é ao momento da transmissão
dos apelos que a sociedade civil faz ao Estado: o
Neocorporativismo se refere ao tipo de estrutura e de
funções das organizações que reúnem e representam
os interesses. O segundo conceito se refere ao output
do processo político, isto é, à maneira pela qual as
opções se formam e são geridas: o Neocorporativismo,
neste sentido, está a indicar uma forma específica da
incorporação destas organizações na máquina
decisória e administrativa. Neste segundo caso, fala-se
muito também de "consensualidade" na política
econômica, isto para significar o fato de que algumas
organizações representativas de interesses particulares
são sistematicamente consultadas pelos governos
antes da adoção de medidas políticas. Parece, antes de
tudo, que o conceito de Neocorporativismo implique
uma relevante institucionalização e formalização
destas relações.
Não há dúvida de que, em ambos os casos,
tratamos de situações ideais. Em país algum tem-se
concretizado plenamente um sistema que corresponda
a todas as características presentes nos dois enfoques
dados ao conceito de Neocorporativismo. Porém este
conceito se torna útil para analisar tendências e
tentativas recorrentes em vários países europeus.
II. CAUSAS DAS TENDÊNCIAS NEOCORPORATIVISTAS. —
Está implícita, em ambos os usos do conceito de
Neocorporativismo, a visão de um Estado que assume
a iniciativa no que se refere às organizações
representativas dos interesses. Dá a elas um
reconhecimento público e às vezes as sustenta, delegalhes funções públicas, fá-las participantes na formação
das opções políticas.
Esta iniciativa é, geralmente, justificada pela
necessidade, por parte dos Governos, de responder a
um conjunto de problemas que surgem nos países de
capitalismo avançado. Em primeiro lugar, a
impossibilidade de evitar o conflito de classe
mediante a simples repressão da ação sindical traz a
necessidade de sua regulamentação, transportando este
conflito para a área política. Mediante a negociação
política, o Estado pode conceder poder e benefícios às
organizações do
819
capital e do trabalho, em troca de moderação em suas
relações conflituais. Em segundo lugar, o aumento
dos apelos dirigidos ao Estado por parte dos grupos
organizados leva, conforme os teóricos da
"sobrecarga", a uma crise de governabilidade. Alguns
Governos reagiriam, então, procurando incorporar os
grupos mais fortes no processo de formação das
opções políticas, para induzi-los a não exercer a
posteriori seu poder de veto sobre as próprias opções.
Enfim, conforme alguns autores, diante da crise do
Estado assistencial (v. ESTADO DO BEM-ESTAR) que se
limitava a sustentar de fora o desenvolvimento
econômico sem intervenções diretas, o Estado se vê
forçado a assumir um papel mais "diretivo" para
garantir níveis aceitáveis de acumulação complexiva
(Winkler 1976). Os Governos, porém, são, em geral,
demasiadamente fracos para desempenhar sozinhos
este papel; procuram, então, envolver na
regulamentação pública da economia as grandes
organizações representativas dos interesses, que têm
suficiente poder e legitimidade para tornar aceitável
este plano.
Todavia, é bom ressaltar que nem todos os
Governos dos países de capitalismo avançado
responderam a estes problemas comuns procurando
criar
estruturas
neocorporativistas.
Algumas
experimentaram soluções diferentes, como seja a busca
de uma governabilidade baseada em sistemas de apoio
que garantam um consenso atomizado, não
coordenado pelas organizações representativas dos
interesses, ou o controle do conflito de classes
mediante a exclusão — em lugar da incorporação —
da classe operária do bloco social destinado a gerir o
desenvolvimento econômico, ou, enfim, a volta ao
mercado e à pressure politics de tipo pluralista em
lugar de uma maior regulamentação pública da
economia. Na realidade, a solução neocorporativista
se impôs, acima das outras alternativas viáveis,
unicamente naqueles países (e naqueles períodos
históricos) em que o Governo é dominado pelos
partidos da classe operária (v. SOCIAL-DEMOCRÁTICOS,
GOVERNOS).
Com efeito, estes Governos representam para as
organizações sindicais a garantia política de que o
Estado será o promotor de alguns interesses
fundamentais da classe operária: pleno emprego e
sistema de Welfare, além da proteção dos direitos
sindicais. A existência desta garantia leva os
sindicatos a privilegiar a negociação política acima da
atividade conflitivo-contratual no sistema de relações
industriais. Este costume leva a uma centralização da
estrutura sindical e da atividade de negociação. Tal
fato permite, por sua vez, a participação dos
sindicatos na
820
NEOGÜELFISMO
formação da política econômica, bem como a
delegação aos mesmos de funções públicas.
A afirmação de soluções neocorporativistas não
deve, pois, ser vista como simples resultado de uma
"estratégia de dominação" (Crouch 1977b), buscada
pelos Estados como resposta a determinadas
exigências, e sim como o êxito de um processo onde
também as opções realizadas pelas organizações
sindicais e as características institucionais em que se
desenvolvem as relações de classe desempenham um
papel decisivo.
Onde não se verificam estas condições políticas e
institucionais e os sindicatos são fracos ou
fragmentários — como acontece nos Estados Unidos
da América ou na França giscardiana — estes ficam,
conseqüentemente, fora da negociação política. Em
alguns casos — como na Itália dos anos 70 — se
tornam particularmente fortes e, então, conseguem
obter reconhecimento e influência nas opções de
política econômica e participação no exercício de
funções semipúblicas. Manifestam-se, assim,
tendências
muito
parecidas
com
as
neocorporativistas, como resultado de conquistas
efetuadas a partir de baixo e não como fruto de
concessões vindas do alto. Porém, justamente a sua
origem torna difícil inserir estas tendências numa
coerente "estratégia de dominação" e uma estrutura
neocorporativista plenamente institucionalizada. Elas
permanecem, ao contrário, como fortes elementos de
tensão e de desequilíbrio no sistema político e nas
relações industriais.
BIBLIOGRAFIA. — C. CROUCH, Relazioni industriali ed
evoluzione del ruollo dello Stato nell'Europa
occidentale, in Confítti in Europa. Lotte di classe,
sindacati e Stato dopo il'68. ao cuidado de C. CROUCH
e A. PIZZORNO, Etas Libri. Milano 1977ª; Id., Class
conflict and the industrial relations crisis, Humanities
Press. London 1977b; G. LEHMBRUCH, Corporativismo
liberale e governo del partiti (1977), in La società neocorporativa. ao cuidado de M. MARAFFI. Il Mulino,
Bologna 1981; C. MAIER, La rifondazione dell'Europa
borghese (1975). De Donato. Bari 1979; C. OFFE, The
attribution of public status to interest groups. in
Organizing interests in western Europe. ao cuidado de
S. BERGER, Cambridge University Press. New York
1981; P. SCHMITTER, Ancora il secolo del
corporativismo? (1974), in M. MARAFFI, op. cit., Id.,
Interest intermediation and regime governability in
contemporary western Europe and North America, in S.
BERGER, op. cit.; H. WILENSKY, The "new
corporatism", centralization, and the welfare State. Sage
Publications, London 1977; J. WINLER. Corporatism. in
"Archives européennes de sociologie". XVII, 1976, n.°
I.
[MARINO REGINI]
Neogüielfismo.
É assim designado o movimento dos que
concordavam com as idéias expostas por Gioberti em
Primado, atribuindo ao Papa uma função diretora,
como presidente de uma confederação de príncipes
italianos.
Mais tarde, e ainda hoje, o nome continuou sendo
usado para definir toda atitude favorável a que a
Igreja tome posição nos acontecimentos italianos, ou
à criação de um Estado confessional católico.
Não houve partido político ou escritor que se
apresentasse, durante o Risorgimento e após o
Risorgimento, com este nome, forjado pelos
adversários (da mesma forma os adversários
designaram como neogibelinos todos os que, na época
da restauração e depois, desejavam se aproximar da
Áustria, na esperança ou na ilusão de que esta se
constituísse na herdeira do reino itálico deixando lá
um exército autônomo, seu código, suas instituições).
Na realidade os que, pelos seus adversários,
herdeiros do anticlericalismo jacobino e animadores
de revoluções, foram chamados neogüelfos,
consideravam-se a si mesmos como elementos
moderadores, pertencentes ao juste-milieu, assim
como o próprio Cavour declarava ser, antes de 1848.
Cumpre lembrar, o que traz luz à obra de Gioberti,
que, com a queda de Napoleão, houve, a título de
reação, uma grande explosão de romantismo e todos
os povos começaram a exaltar suas antigas glórias,
anteriores à Renascença; assim na Itália assumiram
uma nova significação a resistência ao Barba-Roxa, a
batalha de Legnano, o carroccio, o arcebispo
Ariberto, as comunas livres, embora se tratasse de
acontecimentos que diziam respeito apenas a uma
pequena parte da Itália e nos quais a lenda tinha
enfeitado muito a realidade. É a partir destas
lembranças revividas e voltando no tempo, mais
longe, até o século VIII, que surge a tese do Papa
como defensor dos italianos contra os estrangeiros,
tese que será sustentada também por Manzoni.
No período napoleônico os franceses não se tinham
tornado populares, por causa de sua arrogância, nem
sequer no reino itálico (lembre-se a obra de Porta);
porém, nenhuma região do centro ou do norte da Itália
se encontrava nas condições do Piemonte, ligado há
séculos a uma dinastia que tinha proporcionado
príncipes notáveis em ações de guerra e no campo da
diplomacia. A afeição pela dinastia não tinha
esmorecido mesmo no período do medíocre Vittorio
Amedeo III. Por isso houve, no Piemonte, forte
resistência à difusão não apenas de instituições,
NEUTRALIDADE
e sim da própria língua francesa, embora mesmo na
Corte o italiano nunca tivesse sido uma língua de
muito uso, predominando o francês, quando, e isto
ocorria na maioria dos casos, não se utilizava o
dialeto. Afrancesar o Piemonte, logicamente, era algo
temido especialmente pelos católicos, hostis a toda a
filosofia que tinha levado à revolução e,
posteriormente, a Napoleão com sua atitude orgulhosa
diante do Papa. Por esta razão, já no período
napoleônico tinha-se formado, na casa Balbo, uma
Accademia degli Ornati empenhada na defesa da
língua e das glórias literárias italianas, nem todas tão
distantes — era muito lembrado o Alfieri —, e na
insistência em ressaltar que o Piemonte era Itália e
não França (César D'Azeglio se empenhava,
principalmente, na superação dos danos que a
dominação francesa tinha produzido no campo
religioso).
Estas as premissas.
Os movimentos de 1821 e de 1830-1831 tinham
sido do tipo revolucionário e os moderados não
tinham aderido a eles.
Porém, a partir de 1841, a política de Carlos
Alberto, até então em perfeita harmonia com a
Áustria, parece tomar novos rumos. Em 1843 era
impressa a obra de Vincenzo Gioberti, Do primado
moral e civil dos Italianos, com tons acentuados de
catolicidade e de respeito para com o Papa, de
contestação para com a idéia de que o papado teria
dificultado a formação da unidade. Nesta obra
afirmava: "todo o desígnio de renascimento itálico é
inútil, se não tiver como base a pedra angular do
pontificado", e ainda "a idéia do primado romano é o
único princípio de união possível entre os diferentes
Estados peninsulares". É, pois, viável unicamente a
idéia da unidade federativa, a federação entre os
diferentes Estados sob a presidência do Pontífice, sem
mexer "na soberania efetiva no que diz respeito a cada
príncipe". Aconselhavam-se, conseqüentemente,
apenas assembléias consultivas, para que todos
pudessem se tornar conscientes de quais eram os
desejos dos povos.
Em um primeiro momento, a obra despertou
entusiasmo; afirma-se (existem, todavia, dúvidas a
respeito) que o próprio futuro Pio IX e o futuro
primeiro rei da Itália a tenham lido. Os soberanos,
porém, a receberam com bem pouco entusiasmo por
perceberem na confederação uma diminuição de seus
poderes. Não agradou de maneira alguma a todos os
anticlericais que, justamente, começaram a usar o
termo Neogüelfismo. Porém, também um católico
como Cesare Balbo, em As esperanças da Itália,
declarou-se contrário, observando que o domínio
exercido pela Áustria sobre uma parte da Itália tirava
a independência também aos príncipes italianos e que
o Papa,
821
príncipe italiano, se encontrava dominado pela
Áustria mais do que por outros Estados.
Além disso, para Balbo, seria impossível fazer da
Itália um único reino autônomo com uma única
capital.
É sabido que a idéia da confederação evaporou-se
em 1848, quer pela resistência apresentada pelo
governo piemontês, quer pela declaração de Pio IX de
que nunca declararia guerra à Áustria, quer por
prevalecerem movimentos insurreccionais na Itália
central. Por outro lado o mesmo Gioberti, mediante
seus escritos posteriores, afastou de si a simpatia
inicial dos católicos.
Apesar disso, a idéia da Confederação italiana
presidida pelo Papa não foi rapidamente esquecida,
principalmente fora da Itália. O padre Lacordaire, em
1860, pensa ainda na Confederação italiana, pelo
menos como o único instrumento de salvação do
poder temporal; em fevereiro de 1861, o escrito do
visconde de Gueronnière, considerado por todos
como a expressão do pensamento do Governo
francês, Le Pape e le Congrès, apresenta ainda traços
da visão giobertiana. Esta visão já se tinha
modificado. Conforme o Gioberti deste período, o
Papa deveria aceitar o sistema constitucional e, na
Romanha, ser rei apenas de nome, atribuindo o título
de seu vigário a Vítor Emanuel II.
É portanto possível falar em Neogüelfismo
somente como algo significativo no curtíssimo
período em que houve quem acreditasse na
possibilidade de concretização da idéia giobertiana,
muito embora, como foi rapidamente lembrado, o
termo continue a ser usado, porém com significações
bem diferentes (em Nápoles, até a Primeira Guerra
Mundial, publicava-se um periódico, O neoguelfo,
que era o órgão dos poucos remanescentes ainda fiéis
à casa dos Bourbons).
BIBLIOGRAFIA. — A. ANZILOTTI, Dal neoguelfismo
all'idea liberale. in "Nuova Rivista Storica", I, 1917;
Id., La funzione storica del giobertismo. Vallecchi,
Firenze, 1924; Id., Gioberti. Vallecchi, Firenze 19312;
W. MATURI, Neoguelfismo. in Enciclopedia italiana,
XXIV, Milano 1934; G. B. SCAGLIA, Cesare Balbo.
Studium, Roma 1975.
[ARTURO CARLO JEMOLO]
Neutralidade.
I. DEFINIÇÃO. — O termo Neutralidade serve para
designar a condição jurídica em que, na comunidade
internacional, se encontram os
822
NEUTRALIDADE
Estados que permanecem alheios a um conflito bélico
existente entre dois ou mais Estados.
II. NORMAS
INTERNACIONAIS
ACERCA
NEUTRALIDADE. — As normas internacionais que
DA
regem
o status de Neutralidade têm, fundamentalmente,
origem em práticas costumeiras. As convenções mais
importantes, existentes neste assunto, raramente
ultrapassam a simples, embora utilíssima, fiel e
orgânica estruturação — codificação — das regras
costumeiras já existentes. É de importância relevante
ressaltar este fato para se poder atribuir seu justo e
limitado valor à cláusula, presente em todas as
convenções adotadas na Conferência de Haia de
1907, segundo a qual as próprias convenções são
aplicáveis unicamente no caso de os beligerantes
serem todos partes contraentes (cláusula chamada si
omnes ou de participação geral). A limitação
provocada por esta cláusula tem valor, com efeito,
únicamente em relação às poucas normas convencio
nais que acrescentam algo novo às regras costumeiras,
enquanto estas regras permanecem com toda sua
força, sem nenhuma limitação, com relação a todos os
membros da comunidade internacional.
Ao lado das normas do direito internacional
existem também normas internas em matéria de
Neutralidade, normas definidas diretamente por cada
Estado a fim de regulamentar a conduta de seus
próprios órgãos e de seus próprios cidadãos. Podem
ser normas cujo objetivo é serem aplicadas em todos
os casos futuros em que o Estado em questão irá se
encontrar na posição de neutral ou numa situação
específica e concreta de conflito. As normas do direito
internacional que disciplinam a Neutralidade se tornam
aplicáveis com relação a um determinado Estado, a
partir do momento em que este adquire consciência da
existência de um conflito bélico, no qual,
evidentemente, não esteja envolvido. Uma vez que
cabe aos beligerantes provar sua situação de
beligerantes, geralmente eles cuidam de comunicar o
fato a outros países, que portanto adquirem disto o
conhecimento legal (cf. o art. 2.º da III Convenção de
Haia de 1907).
O estado de Neutralidade acaba com o término das
hostilidades (por causa, por exemplo, de uma
capitulação geral ou pela ocupação por parte de um
dos beligerantes de todo o território do outro), sem a
necessidade de se aguardar a cessação formal do
estado de guerra, que geralmente acontece num
momento posterior, isto é, mediante a assinatura do
tratado de paz.
III. DEVERES DOS ESTADOS NEUTRAIS. — As
principais normas do direito de Neutralidade,
de acordo com o que se encontra nas Convenções,
dizem respeito ao território dos Estados neutrais, ao
direito de asilo, à não emissão de atos capazes de
influenciar o desenvolver-se das operações militares,
ao comércio e à navegação de embarcações e
aeronaves neutrais.
A eclosão do estado de guerra não implica qualquer
renúncia ao princípio da inviolabilidade do território
dos Estados que permanecem alheios ao conflito;
origina, porém, no que diz respeito a estes Estados, o
dever de zelar com todos os meios por esta
inviolabilidade e de impedir que seu território venha a
ser usado, desta ou daquela maneira, por qualquer um
dos beligerantes como ponto de partida ou de apoio
para operações militares. É expressamente
reconhecido o poder que os Estados neutrais têm para
receber no seu território formações militares ou
indivíduos pertencentes às forças armadas em luta,
prisioneiros de guerra fugitivos, feridos e doentes;
porém, ao mesmo tempo, é definida sua obrigação de
mantê-los e vigiá-los de modo que não possam
participar mais das operações de guerra.
O dever de se absterem de todo comportamento
capaz de proporcionar vantagem ou prejuízo para
qualquer uma das partes antagônicas, comportamentos
tais que possam influenciar na evolução e no
resultado das hostilidades, se constitui na
característica fundamental da posição jurídica dos
Estados neutrais. É necessário, porém, ressaltar que
este dever não diz respeito àqueles comportamentos
cuja influência seria totalmente esporádica e sem
repercussões diretas na evolução da guerra e que diz
respeito unicamente a atividades de órgãos do Estado.
O Estado neutral, em suma, não será responsável por
atividades de seus cidadãos, atuando como
particulares, nem terá obrigação de impor limitações à
liberdade que os cidadãos têm de manter relações com
os beligerantes (quando, porém, são introduzidas
limitações desse tipo, elas devem se inspirar no
princípio da imparcialidade e devem ser
uniformemente aplicadas nas relações com ambos os
beligerantes).
Estas observações valem também no que diz
respeito às normas relativas ao comércio e à
navegação. Com efeito, é proibido aos Estados neutrais
entregar, por qualquer motivo, material bélico a um
dos beligerantes (v. art. 6.º da XIII Convenção de
Haia), porém não há, para os países neutrais,
obrigação alguma de impedir a exportação ou o
trânsito do mesmo material, quando isto é feito sob a
responsabilidade de um ou do outro beligerante (art.
7.°). Na sua condição de particulares, os cidadãos dos
Estados neutrais podem, pois, continuar seu comércio
e seu fornecimento de material bélico mesmo du-
NEUTRALIDADE
rante o conflito; fazem isto, porém, por sua conta e
risco. Eles estão sujeitos ao risco de ver confiscada ou
até destruída a mercadoria — e também as
embarcações e as aeronaves em que a mercadoria é
transportada — pela ação do beligerante adversário do
destinatário da mercadoria, isto sem que o Estado a
que eles pertencem, ou o Estado a que pertencem os
meios de transporte, possa exercer a proteção
diplomática e fazer valer pretensões de indenização.
É evidente que os princípios de liberdade de
comércio e de liberdade de navegação, garantidos
pelo direito internacional de paz, sofrem, pelo
princípio de necessidade bélica, uma diminuição
considerável em prejuízo dos neutrais. Além disso, é
preciso ressaltar que o ponto de equilíbrio,
penosamente alcançado mediante a conciliação de
exigências e princípios contrários, acabou por sofrer
modificações, no sentido de piorai ainda mais a
posição dos neutrais, como conseqüência da
transformação da guerra que tem se tornado um
fenômeno que abrange, cada vez mais profundamente,
toda a estrutura do Estado é principalmente sua
organização econômica. Nas duas guerras mundiais se
deram, pela ação dos beligerantes, graves e
sistemáticas violações das normas que dizem respeito
ao bloqueio naval e ao contrabando de guerra; além
disso, após o segundo conflito, os Estados vencedores
chegaram até a exigir em vantagem própria, a título de
reparação dos danos causados pela guerra, a
liquidação dos bens de propriedade alemã que se
encontravam em países neutrais.
IV. EVOLUÇÃO MAIS RECENTE. — Na prática, hoje, é
seriamente questionada a validade da disciplina acima
sintetizada, codificada nas Convenções de Haia de
1907, tendo como ponto central a obrigatoriedade, por
parte dos Estados não envolvidos, de manterem
atitudes de imparcialidade com relação aos
beligerantes. São inúmeros os fatores que levam a
perceber que ocorreu um notável desgaste nos
conceitos e nas disciplinas tradicionais acerca da
Neutralidade. Vários são os fatores que precisam ser
levados em conta: as mudanças estruturais ocorridas
na comunidade internacional; o caráter de totalidade
assumido pelas guerras nos dois conflitos mundiais,
que colocaram em questão a própria estrutura das
relações internacionais; a alteração dos equilíbrios de
poder ocorrida, na prática, após a Segunda Guerra
Mundial, juntamente com a continuação e
generalização de tensões entre sistemas e subsistemas
de Estados antagônicos; a natureza radical dos
instrumentos bélicos atualmente nas mãos de muitos
Estados; a ilegalidade de se recorrer à guerra de
acordo com o Pacto da Sociedade das Nações e a
Carta das Nações
823
Unidas (a exclusão do uso da força prevista pelo § 4
do art. 2.º pode ser considerada, atualmente, como
aceita por todos) e a conseqüente discriminação com
relação ao Estado agressor, sendo, porém, bom
lembrar a este respeito também o ineficiente
funcionamento do sistema de segurança coletiva
previsto pela Carta; enfim, a caracterização das
guerras de libertação nacional, vistas como uma
categoria independente, com características diferentes
tanto das guerras civis como das guerras
internacionais propriamente ditas.
De acordo com a doutrina mais moderna, os fatores
até aqui sumariamente recordados teriam levado à
superação da distinção tradicional entre direito
internacional de paz e direito internacional de guerra.
Sem dúvida levaram a um esvaziamento da
contraposição
entre
intervenção
armada
e
Neutralidade (perfeita). Uma atitude de participação
indireta no conflito ou, sob outro enfoque, de
Neutralidade discriminatória é normalmente assumida
pelas duas grandes potências a fim de controlar — nos
resultados e nas dimensões — os conflitos armados,
dando sua assistência a ambas as partes envolvidas
nestes conflitos. A posição e a atitude das potências,
evidentemente, tem reflexos inevitáveis, mediante o
jogo das alianças, nos comportamentos dos Estados
não diretamente envolvidos nos acontecimentos
bélicos.
V.
ESTADOS NEUTRALIZADOS. —
Estados
neutralizados são os que, geralmente mediante um
tratado, assumiram como seu programa de ação
generalizada o compromisso de se manterem alheios,
neutrais, com relação a toda possível guerra futura
(sem, logicamente, abrir mão do direito de defesa
quando agredidos) e que receberam dos Estados
contraentes o compromisso de nunca atacá-los e
considerá-los, justamente, como neutrais.
Assumir um compromisso desse tipo tem
repercussões, naturalmente, mesmo em tempo de paz,
na condição jurídica destes Estados. Eles são, com
efeito, obrigados a se abster de toda e qualquer atitude
que poderia, no futuro, envolvê-los num conflito: têm
a obrigação — para citar o exemplo mais claro — de
se abster da realização de alianças militares, mesmo
meramente defensivas.
Apesar do que foi dito no parágrafo anterior e
apesar dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial
(basta pensar nas violações sofridas por Estados
neutralizados da área balcânica, e também da área
centro-européia como a Bélgica e o Luxemburgo) que
evidenciaram claramente suas limitações, o instituto da
neutralização parece manter sua atualidade, mesmo
como instrumento a ser usado excepcionalmente.
824
NEUTRALISMO
Prova disto encontramo-la no rigor com que a
Confederação Helvética salvaguarda sua condição de
Estado neutralizado, desempenhando fielmente os
comportamentos decorrentes deste fato, e também o
ocorrido na neutralização da Áustria em 1955, bem
como a neutralização, ainda em processo, de Malta.
O fenômeno da neutralização apresenta finalidades
e características parecidas, integral ou parcialmente,
permanentemente ou não, em todos os territórios ou
em todos os espaços — submetidos à soberania de um
Estado, ou não pertencentes a Estado algum — cuja
não utilização, ou utilização apenas parcial, em
futuros e eventuais conflitos é prevista mediante
acordos adequados, excluindo com relação a estes
territórios ou espaços o uso de todos ou de específicos
instrumentos de guerra. Proporcionam exemplos
disto: o tratado de paz com a Itália de 10 de fevereiro
de 1947, que no art. 49 estipula a desmilitarização de
Panteleria e de outras pequenas ilhas; o Tratado de
Washington de 1.° de dezembro de 1959 que estipula
a desmilitarização da Antártida; o Tratado de
Tlatelolco, apresentado para a assinatura na Cidade do
México a 14 de fevereiro de 1967, que visa à
interdição das armas nucleares na América Latina;
enfim, o Tratado de Washington de 1.º de março de
1967 acerca do regime jurídico do espaço exterior,
proibindo colocar em órbita ao redor da Terra e
instalar nos corpos celestes artefatos nucleares,
obrigando os contraentes a utilizar a lua e outros
corpos celestes unicamente para fins pacíficos.
1978, XXVIII, pp. 164-99; Id. Neutralizzazione. in
Enciclopedia del diritto. Giuffrè, Milano 1978,
XXVIII, pp 199-228.
[FRANCO MOSCONI]
Neutralismo.
Em sentido amplo o termo designa a atitude
política de quem, diante de um conflito em
andamento, adota uma atitude de não-participação e
de eqüidistância com relação às partes em luta. Entre
os referenciais históricos, precisamos lembrar,
principalmente, a orientação política da parcela de
forças políticas bem como da opinião pública italiana
que, após o início da Primeira Guerra Mundial,
lutavam para manter o país fora do conflito. Estas
tendências, chamadas não-intervencionistas, tiveram
seu expoente mais categorizado na pessoa de
Giovanni Giolitti.
Após a Segunda Guerra Mundial o termo
Neutralismo tem sido utilizado para indicar a atitude
de grupos de países que rejeitam a lógica dos blocos
(ver BLOCOS, POLÍTICA DOS) antagônicos. Nesta
segunda acepção o termo é, normalmente, substituído
pelo mais adequado de NÃO-ALINHAMENTO (v.).
[GIORGIO BIANCHI]
BIBLIOGRAFIA. - G. BALLADORE PALLIERI, Diritto
bellico. Cedam, Padova, 19542; L. CONDORELLI,
Neutralizzazione, in Novíssimo digesto italiano, UTET, Niilismo.
Torino 1965, XI, pp. 259-168; R. DE NOVA, Neutralità e
nazioni unite. in "Comunita Internazionale". I, outubroI. O CONCEITO E A SUA EVOLUÇÃO. — De nihil,
dezembro 1946, pp. 495-505; Id., Considerazioni sulla
nada: termo que indica um pensamento — ou também
neutralità permanente dell Austria, in "Comunicazioni
uma condição geral da cultura e da existência — em
e studi dell'Istituto di diritto internazionale e straniero
que se negam o ser e os valores, e se afirma, ao
dell'Università di Milano", VIII, 1956, pp. 1-13; M.
contrário, o nada como a única "realidade".
VON GRÜNIGEN, Neutrality and peace keeping, in
O termo foi introduzido na terminologia filosófica
United nations peace keeping. ao cuidado de A.
na Alemanha nos últimos anos do século XVIII, no
CASSESE, Sijthoff & Noordhoff, Alphen aan den Rijn
contexto dos debates acerca dos sucessos idealistas do
1978, pp. 125-53; HJ. L. HAMMARSKJÕLD, La
kantismo. Assim, F. H. Jacobi (provavelmente o
neutralité in general, in "Bibliotheca visseriana", III,
primeiro a usar a palavra com significação filosófica
Brill, Lugduni Batavorum (Leiden), 1924, pp. 53-141;
precisa), fala em Niilismo numa carta a Fichte para
H. MEYROWITZ, Le principe de l'égalité des belligérants
indicar o caráter do idealismo como negação de Deus
devant le droit de la guerre, Pédone, Paris 1970; A.
e absolutização do mundo. Num sentido análogo,
MIELE, Neutralità. in Novíssimo Digesto Italiano.
encontramos o termo Niilismo em Baader; enquanto
UTET, Torino 1965, XI, pp. 234-59; Id. L'estraneità al
traços explicitamente niilistas, deste teor, podem ser
conflitti armati secondo il diritto internazionale.
encontrados em autores sensíveis aos aspectos mais
Cedam, Padova 1970; D. SCHINDLER, Aspects
claramente idealistas do romantismo, como E. T. A.
contemporains de la neutralité. in "Académie de droit
Hoffman, H. von Kleist e, principalmente, Jean Paul,
international", Recueil des cours, CXXI (1967 II), pp.
cujo Discurso do Cristo morto
221-321; G. SCHWARZENBERGER, The law of armed
conflict. Stevens & Sons, London 1968; L. Sico,
Neutralità. in Enciclopedia del diritto, Giuffrè, Milano
NIILISMO
(1797) foi indicado como uma "alegoria do
Niilismo".
A popularidade do termo Niilismo, que
encontramos durante a primeira metade do século
XIX usado às vezes pelos filósofos com significações
não tematicamente precisadas (por exemplo, Hegel
fala em Niilismo lógico para indicar o caráter
dialético da lógica), se inicia na Rússia dos anos 60,
quando a opinião conservadora e moderada tacha de
niilistas os que rejeitam a ordem vigente e os valores
tradicionais.
Com exceção da significação específica assumida
na Rússia, na segunda metade do século XIX, o
conceito de Niilismo encontra sua precisão filosófica
principalmente em dois autores: M. Stirner e F.
Nietzsche. São eles os primeiros a se declararem
niilistas em filosofia. Para Stirner (O único e sua
propriedade, 1844) trata-se de desmascarar o caráter
mistificador de todos os valores que sempre tiveram a
pretensão de se impor ao homem, afirmando em seu
lugar o eu, que por outro lado não possui base alguma
de legitimação; sua luta desta forma acaba se
fundamentando explicitamente sobre o nada. A
posição de Nietzsche é mais complexa. Ele vê no
niilismo a característica básica de toda a história da
cultura ocidental, pelo menos a partir de Sócrates.
Esta cultura tentou, com todas as suas forças,
contrapor ao fluir da vida e a seu caos estruturas e
valores imutáveis; estes, porém, acabaram revelando
progressivamente sua característica de meras ilusões,
até se chegar ao ponto em que, como escreve
Nietzsche, "Deus está morto" ou, o que é a mesma
coisa, a idéia de um mundo verdadeiro não passa de
uma fábula (Crepúsculo dos ídolos, 1888). O
desaparecimento de Deus e dos valores foi possível,
segundo Nietzsche, unicamente porque, no decorrer
da história construída para se justificar os dois, a
existência humana tem se tornado cada vez menos
violenta e insegura, tornando supérflua toda visão
globalizadora e metafísica do mundo. No vazio
deixado por estruturas metafísicas e valores, afirma-se
como único princípio real a vontade de poder. É
preciso, segundo Nietzsche, abandonar as posições de
Niilismo passivo e reativo (que considera a morte de
Deus como uma perda irreparável) optando, em seu
lugar, pelo Niilismo ativo, o do homem que assume
como sua a responsabilidade de definir valores e leis.
O duplo sentido que o Niilismo tem no pensamento
de Nietzsche — dissolução dos valores metafísicos e
responsabilização consciente por parte do homem —
serve para caracterizar também, numa dimensão
bastante generalizada, a história deste conceito no
século XX. Segundo
825
Martin Heidegger (Nietzsche, 1961) também o
Niilismo ativo de Nietzsche pertence à história do
Niilismo, percebida como história da dissolução (ou
"esquecimento") do ser da qual o pensamento precisa
buscar afastar-se; porém existem outros, como Ernst
Jünger, que salientam o afastamento, por parte do
Niilismo, de toda concepção pessimista. Para Jünger,
o Niilismo não se identifica de maneira alguma com
uma situação de abandono à decadência e ao caos.
Muito pelo contrário, o Niilismo é a condição que
acompanha a implantação da forma mais radical de
racionalização técnico-científica da existência (o que,
por sinal, tinha sido percebido também por Heidegger
em seus estudos sobre Nietzsche). Em sentido
análogo, podemos relacionar com o Niilismo também
o discurso politológico de Carl Schmitt, cujo
decisionismo se fundamenta na percepção do
desaparecimento, do mundo moderno, de toda a
legitimação baseada em estruturas metafísicas
estáveis. No contexto dos que salientam o caráter
afirmativo do Niilismo se situa também uma corrente
muito recente do pensamento francês, estruturalista e
pós-estruturalista, que coloca na eliminação do ser
metafísico a condição para o reconhecimento da
multiplicidade de estruturas (retóricas, lingüísticas e
psicológicas) que compõem a existência histórica.
Permanece, porém, bem viva, mesmo na cultura mais
recente, uma concepção "negativa" do Niilismo, que
no campo político, conforme alguns autores, teria
encontrado sua expressão no nazismo, como política
de poder cujo fim é ela mesma. Outro sentido, também
não "afirmativo", do Niilismo, mas sem qualquer
conotação nazista podemos encontrá-la na obra de
Albert Camus, onde o reconhecimento do absurdo dos
valores metafísicos tradicionais abre o caminho para
uma ética baseada em valores mínimos de respeito
pela vida e de solidariedade humana elementar.
BIBLIOGRAFIA. - A. CAMUS, L'uomo in rivolta
(1951), Bompiani. Milano 1980; E. JUNGER, Ueber die
Linie, Klostermann, Frankfurt 1950; F. MASINI,
Nichilismo e re-religione di Jean Paul, De Donato,
Bari 1974; H RAUSCHING, Masken und Metamorphosen
des Nichilismus. Der Nichilismus im XX Jahrhundert,
Humboldl Verlag, Frankfurt 1954; C. SCHMITT. Le
categorie del político (1922-32), Il Mulino, Bologna
1972; E. SEVERINO, Essenza del nichichilismo. Paidea,
Brescia 1972; G. VATTIMO, Il soggeto e la maschera,
Nietzsche e il problema della liberazione, Bompiani,
Milano 19792.
[GIANNI VATTIMO]
826
NIILISMO
II. O NIILISMO RUSSO. — O Niilismo russo é, mais
que um específico movimento político, uma corrente
intelectual-cultural surgida no contexto
da
intelligentzia revolucionária russa no final da década
de 1850 e no início da década de 1860. O termo
Niilismo foi criado pelo escritor Ivan Turgenev em
Pais e filhos, romance que veio à luz em 1862 e onde
o protagonista Bazarov expressava a carga de revolta
radical e destrutiva da nova geração, os filhos, contra o
regime autocrático czarista e a ideologia dominante,
em polêmica e contraposição às posições reformistas
dos pais. Seria, porém, atitude redutiva delimitar o
significado e o alcance do Niilismo a um mero conflito
de gerações. O Niilismo teve origem na época das
reformas iniciadas por Nicolau I e que tiveram seu
ápice com a emancipação dos servos, no tempo de
Alexandre Il (1861); reformas que, por seu caráter
limitado e tardio, não abriram perspectivas para uma
evolução democrática, embora tenham aberto alguns
caminhos na estrutura político-social da Rússia. Um
destes caminhos foi o aparecimento de uma nova
categoria de intelectuais, conseqüência da abertura da
universidade às camadas populares, e a formação de
quase uma nova classe social, os raznocincy, formada
por pequenos funcionários, artesãos, nobres decaídos,
camponeses e filhos de padres. Tudo isto ia
modificando a composição da velha intelligentzia
revolucionária, de origem principalmente nobre, e
evidenciando novos valores e interesses culturais,
novas atitudes psicológicas, novos comportamentos
políticos; mais especificamente esta nova camada
social, nascida na periferia da sociedade czarista e
fruto, em parte, de processos de marginalização, estava
propensa a rejeitar mais radicalmente ainda a ordem
dominante, não apenas nos seus aspectos autocráticos
opressores, mas como complexo de tradições e
valores
culturais,
ideológicos,
estéticos
e
comportamentais. Como portador destas pressões e
destas aspirações o Niilismo era expressão, também, da
nova configuração que ia sendo assumida pelos
conflitos sociais e políticos na segunda metade do
século XIX na Rússia.
Justamente pela sua característica de corrente
cultural-política é difícil estabelecer uma data precisa
para o nascimento do Niilismo. Encarado como
movimento de mudança social, de reviviscência da
consciência intelectual e moral, tal como o encarou
Aleksandr Herzen, que, no entanto, iria condenar com
firmeza suas manifestações políticas mais extremistas
e fanáticas, seus primórdios podem ser situados na
década de 1840 quando, como escreveu o próprio
Herzen, "a vida começou a brotar com força
crescente, quebrando portas até então rigidamente
fechadas". Nesta linha podem ser considerados pais
ou
inspiradores do Niilismo Nikolaj Cernysevskj
Dobroljubov que deram início na década de 1850, com
a revista "Sovremennik", a um movimento intelectualpolítico, cuja influência seria decisiva junto às
sucessivas gerações de intelectuais revolucionários,
inclusive a seus grupos terroristas. Se, porém,
encaramos os aspectos individualistas do Niilismo,
tornam-se evidentes suas conexões com o posterior
movimento anarquista e, era particular, com Michail
Bakunin, que teve um relacionamento profundo de
colaboração com Sergej Necaev, considerado como o
mais fanático expoente do Niilismo militante. São
inúmeras e complicadas suas relações como o
populismo, em cujo contexto o Niilismo tomou forma,
dele tornando-se uma cíclica expressão extremista ou
um "intermezzo" terrorista, em alternância com o
trabalho sócio-cultural e com as "idas ao povo".
Existiam, também, ligações diretas, ideológica e
politicamente, com o grupo que será chamado dos
jacobinos ou blanquistas russos, de Pëtr Tkacev.
Enfim, foram encontradas possíveis relações entre a
experiência do Niilismo revolucionário e o
bolchevismo pela importância por ambos atribuída à
figura do revolucionário profissional e ao problema da
organização.
No efervescente contexto de correntes culturais e
políticas que caracterizou as origens do movimento
revolucionário russo, é possível, todavia, delimitar
com maior precisão o espaço histórico do Niilismo:
quer como corrente cultural dos primeiros anos da
década de 1860, que teve seu epicentro na revista
"Russkoe slovo", quer como conjunto de iniciativas,
organizações e grupos políticos que, no decorrer das
décadas de 1860 e 1870, entraram no terreno da ação
violenta terrorista, inspirando-se explicitamente na
ideologia negativista do Niilismo teórico, ou, na
maioria das vezes, apresentando-se como derivações
extremistas e a nível de conspiração do movimento
populista russo.
A revista "Russkoe slovo", cujo animador principal
foi o literato Dimitrij Pisarev, nos poucos anos de sua
existência, teve ampla repercussão entre as novas
gerações de estudantes e intelectuais. Contrariamente
ao "Sovremennik", empenhado numa busca de crítica
cultural-social, a revista de Pisarev rejeitava os
valores tradicionais em nome de um individualismo
extremado, exaltava o egoísmo e o cálculo militarista
pessoal, e atribuía às ciências sociais o papel de
libertadoras do povo dos preconceitos tradicionalistas,
em polêmica com os princípios artístico-estéticos da
cultura russa. Inspirada num forte ecletismo
ideológico, a revista obteve sucesso entre a juventude
revolucionária mais pelo forte marco iconoclasta que
atingia também os comportamentos, as modas, os
gostos individuais, do
NOBREZA
que pelas orientações sócio-políticas, bem mais
evidentes no "Sovremennik". "Russkoe slovo" sofreu,
de qualquer forma, assim como o periódico de
Cernysevskj e Dobroljubov, as perseguições da
polícia e, em 1866, ambas as revistas foram proibidas
e presos muitos de seus promotores e colaboradores.
No plano estritamente político, tendências niilistas
se manifestaram após a onda de prisões ocorridas nos
primeiros anos da década de 1860 e o
desmantelamento, em 1864, da Zemlja i Volja,
primeiro núcleo organizado do populismo. Formou-se
então, o grupo de Nikolaj Isutin, chamado a
Organização, e que unia às atividades sociais e de
propaganda,
tipicamente
populistas,
objetivos
terroristas; foi neste grupo que amadureceu a decisão
de atentar contra a vida do czar, atentado que ocorreu,
sem sucesso em 1866, por obra de D. Karakozov. No
final da década nasceu, por iniciativa de Sergej
Necaev, a Narodnaja Rasprava, uma organização
quase misteriosa que serviu para que seu fundador
pudesse estreitar relações, no exterior, com os
representantes mais prestigiados da velha geração
revolucionária, Herzen, Ogarëv, Bakunin; sua maior
repercussão deveu-se ao seu Catecismo do
revolucionário, rígido código de comportamento do
militante profissional, e ao cruel assassinato do
estudante I. Ivanov, fato este que marcou o fim do
grupo. Uma reviviscência do terrorismo ocorreu após
o fim da segunda Zemlja i Volja e o relativo sucesso
da "ida ao povo". A nova fase começou com o
atentado levado a termo por Vera Zasulic contra o
general Trepov, em janeiro de 1868, e chegou ao seu
ponto culminante, em 1871, com a morte do czar
Alexandre Il por obra da Narodnaja Volja.
Independentemente dos resultados de sua atuação
histórico-política, que por sinal se acabou em curto
espaço de tempo, foi mérito do Niilismo perceber,
desde a metade do século XIX, o caráter radical que
iria ser tomado pelo processo revolucionário na Rússia
e intuir a impraticabilidade, para aquele país, de adotar
uma solução liberal-progressista. Mediante sua
negação integral da ordem estabelecida demonstrou
também um forte potencial ético, um espírito de
dedicação que muitas vezes chegou à beira do
fanatismo. Foi mérito do Niilismo enfrentar aspectos
cruciais da vida e do comportamento social, tais como
o obscurantismo, o fatalismo, a apatia e a inércia,
típicos do caráter russo, bem como antecipar temas e
problemas como a emancipação feminina e a
organização familiar, envolvendo inúmeras mulheres
no movimento. Foi o resultado de profundas
modificações e rupturas sociais, contribuindo para que
tudo isto viesse à tona e se tornasse. conscientemente
percebido.
827
Todavia, as soluções propostas eram confusas
culturalmente e excessivamente simplistas: como
afirmou Herzen, "suscitou homens de ação dotados de
grande força e de enormes talentos. . . porém não
trouxe novos princípios".
BIBLIOGRAFIA. - F. VENTURI, Il populismo russo.
Einaudi, Torino 1972; G. D. H. COLE, Marxismo e
anarchsimo. Laterza, Bari, 1967; A. HERZEN. A un
vecchio compagno. Einaudi, Torino 1977; V. STRADA.
Leggendo "padri e figli". in Tradizione e rivoluzione
nella letteratura russa, Einaudi. Torino 1980; V.
ZASULIC, O. LJUBATOVIC e E. KOVALSKAJA. Memorie
di dorme terroriste. Savelli, Roma 1979; A. B. ULAM,
In nome del popolo. Garzanti. Milano 1978.
[LISA FOA]
Nobreza.
I. CARACTERÍSTICAS DA NOBREZA. — Em todas as
sociedades, a transmissão hereditária constituiu
sempre um mecanismo normal de reprodução de
determinadas relações sociais. As próprias sociedades
modernas que aboliram juridicamente os privilégios de
sangue dividem os indivíduos em classes baseando-se
antes de tudo em suas condições familiares (v. CLASSE).
Nas sociedades pré-modernas e sobretudo nas mais
arcaicas, caracterizadas por escassa mobilidade, esse
mecanismo tem um papel decisivo na determinação do
lugar social dos indivíduos, sendo normal nelas a
presença de elites "definidas", ou seja de grupos de
famílias que de geração em geração mantêm posições
de privilégio em termos de poder, de riqueza e de
status. Tal situação de fato é normalmente
determinada por normas de direito positivo ou
consuetudinário que reconhecem a esses grupos um
direito exclusivo aos privilégios que possuem, fazendo
do sangue um pré-requisito regular e indispensável
para aspirar a eles. A importância dada ao "sangue"
exige, por outro lado, que os membros das famílias
privilegiadas desposem apenas membros de outras
famílias do mesmo nível, de modo a que o conjunto de
tais famílias constitua um grupo organicamente fechado
ou seja, uma CASTA (V,). Desta maneira dá-se o
fenômeno histórico da Nobreza, isto é, de um
agrupamento social endogâmico que goza de privilégios
juridicamente estatuídos e do qual ninguém faz parte a
não ser por via agnatícia.
O requisito agnatício pode não ser suficiente para
pertencer à Nobreza e tem muitas vezes
828
NOBREZA
correlação com a posse de bens patrimoniais, com o
exercício de funções públicas particulares ou com
determinadas capacidades pessoais, mas é de qualquer
maneira um requisito indispensável que todo o nobre
deve ter. Fazem exceção os casos em que um
indivíduo de origem ignóbil é investido de
prerrogativas mobiliárias por uma autoridade superior
a quem se reconhece esse poder de investidura. Em
tais casos, normalmente limitados, o novo nobre tem o
direito de transmitir a dignidade de seu grupo aos
próprios descendentes, os quais, por sua vez, entram
na norma geral de ser nobres por direito de sangue.
No caso de faltar essa investidura superior (ou na
ausência de uma autoridade que possa concedê-la
como nas antigas comunidades gentilicias), um "novo
homem" pode ascender a uma condição socialmente
elevada mas sua família não será inteiramente
reconhecida nas fileiras da Nobreza senão depois de
um número razoável de gerações. No mais, segundo a
genealogia nobiliária (v. também, III), a nobreza vinda
de cima não basta para criar um autêntico nobre, mas
simplesmente, na maior parte dos casos, para
reconhecer uma dignidade nobiliária preexistente.
A Nobreza, conforme já se disse, é um fenômeno
típico das sociedades dotadas de escassa mobilidade
social, a saber, das sociedades pré-modernas onde a
agricultura é a base normal da economia e o uso da
força material não é ainda, como nos Estados
modernos, monopolizado e gerenciado por um número
limitado de órgãos do poder soberano, mas está
espalhado por uma série de centros semi-soberanos de
poder. Isto explica por que é que as Nobrezas,
enquanto classes dominantes de um tal tipo de
sociedade, gozam do duplo privilégio da propriedade
fundiária e da função militar. Mesmo que tais
requisitos não sejam essenciais para o conceito de
Nobreza, eles ocorrem tão amiudadamente que
tornaram corrente a imagem do nobre como
proprietário de terras e como homem de armas.
II. PRIVILÉGIOS E IDEOLOGIA DA NOBREZA. — Para os
romanos, o nobre era, antes de mais nada, conforme a
força etimológica, aquele que era conhecido, estimado
ou considerado: nobilis quasi noscibilis seu notabilis.
O próprio termo Nobreza nos diz que o prestígio
social é certamente uma das vantagens que a condição
nobre oferece. Podemos acrescentar que quando vem
a faltar um reconhecimento jurídico raramente ele é
negado em linha de fato à Nobreza. Na origem de uma
ascendência nobre achamos normalmente requisitos
mais essenciais. Na maior parte das vezes, a riqueza é
o fundamento originário da Nobreza de uma família.
Éa
vantagem econômica que permite adquirir prestígio e
preeminente papel político, por exemplo. Um rico
proprietário de terras do século XII, por exemplo,
conquistará o título de cavaleiro em virtude da sua
possibilidade de pagar o caro equipamento exigido
para tal função e isso lhe valerá poderes senhoriais
sobre as suas terras e sobre eventuais outras que lhe
sejam dadas pelo seu senior, o que equivalerá a uma
sanção e a um aumento de seu prestígio, de seu papel
político e de seu estado patrimonial. Mais tarde, as
diversas formas de privilégio, de classe, de função e
de status, vão-se consolidando alternadamente. Entre
os privilégios concedidos à Nobreza, são típicos e
recorrentes, embora não onipresentes, o acesso
exclusivo e preferencial aos altos graus da
administração pública, das hierarquias militar e
eclesiástica, o direito de exoneração fiscal e de
tratamento judicial e penal privilegiado (foro
particular, julgamento por iguais, guidrigildo, exclusão
de penas infamantes) e o direito a distintivos de
dignidades particulares {ius immaginum, lugares
privilegiados na corte, na igreja, no teatro, etc).
Produto lento de complexas condições históricas, o
fenômeno nobiliário tem uma interpretação histórica
que o apresenta inteiramente limpo de todo o caracter
"ignóbil". Ideologicamente, a Nobreza, com seus
privilégios, é fruto da virtude. Para Cícero, a Nobreza
não é mais do que a virtude conhecida e seu
fundamento é a consideração devida à virtude: virtude
de uma linhagem divina (como no caso de ghéne
gregos) ou de uma série assaz longa de gerações
virtuosas e virtude de cada nobre que deve renovar
através de sua conduta os méritos da própria
ascendência ou pelo menos abster-se de atos e
comportamentos indignos da sua condição (rebeldia,
loucura, infâmia, núpcias desonestas, artes e ofícios
degradantes), sob pena de perder efetivamente sua
própria condição. A justificação dos privilégios
nobiliários como direitos devidos à virtude está
implícita no uso do termo aristocracia (= governo dos
melhores) como sinônimo de Nobreza. A tese de que a
virtude é transmissível pela via do sangue tem uma
importância central na ideologia da Nobreza. É ela na
verdade que tem como função justificar a transmissão,
por via hereditária, dos privilégios nobiliários. Por
isso, um indivíduo é tanto mais nobre quanto mais
antiga for a Nobreza da família a que pertence, por ser
maior o patrimônio de virtude que ele herda. Em
síntese, ideologicamente, a Nobreza é o atributo de
uma família que se gloria de longa tradição de
comportamentos virtuosos. É isso que significa a frase
atribuída a Henrique VIII segundo a qual para fazer
um nobre só é preciso virtude e tempo.
NOBREZA
O requisito do tempo explica por que é que o nobre
que se tornou nobre por recente concessão do príncipe
ou por ter tomado posse de alto cargo não é
considerado inteiramente um nobre, enquanto que o
poderão ser diversas gerações posteriores (mínimo de
três ou quatro) e seus descendentes. Como fato moral,
a Nobreza é por conseguinte independente do
reconhecimento jurídico dela (com relativos
privilégios) e permanece mesmo que este lhe venha a
faltar e isto pelo fato de o "título ser o acidente e a
Nobreza a substância". Da mesma forma, se a riqueza
faltar não vai faltar nada à essência nobiliária. Já
Teognides, o aristocrático poeta ateniense do século
VI-V, afirmava: "Muita gente inepta é rica enquanto
os nobres estão na miséria; com estes eu não trocaria
virtude por riqueza: pois que aquela resistirá
eternamente..." A possibilidade de provar a
antigüidade de uma linhagem é assegurada de várias
maneiras. À Nobreza romana era concedida a
prerrogativa de um cognomen transmissível
hereditariamente; a Nobreza feudal tinha origem nos
brasões cuja legitimidade originariamente era
verificada por ocasião dos torneios dos arautos (daqui
veio o nome de heráldica) e cuja exibição veio a ser
posteriormente exigida para a admissão às ordens de
cavalaria, aos capítulos das igrejas, colégios
aristocráticos, etc. A partir do tempo feudal, as
famílias
nobres
beneficiaram
de
títulos
hereditariamente transmissíveis (duque, marquês,
conde, etc.) que denotam o exercício, passado ou
atual, de altas funções públicas.
III. DADOS HISTÓRICOS: A NOBREZA NA ÉPOCA CLÁSSICA.
— O problema da origem da Nobreza nas sociedades
antigas se identifica com o controverso problema da
origem do poder e do Estado. Poder, Estado e Nobreza
podem ser considerados como o resultado de uma
acentuada estratificação endógena de uma sociedade
humana ou então como o efeito de uma conquista
externa e de uma "superestratificação" étnica dos
vencedores sobre os vencidos. Como quer que seja, a
existência de uma Nobreza como grupo de famílias
privilegiadas em termos de poder, de riqueza e de
prestígio é certificada em todas as formas mais
antigas de sociedades.
Na maior parte dos pequenos Estados da antiga
Grécia os nobres, que se autodefinem como áristoi (=
os melhores) ou como agathoi, eugenéis, eupatrídes,
fogem à modesta autoridade do monarca (wanax) e
fundam uma constelação de repúblicas aristocráticas
que florescem durante dois séculos aproximadamente.
A ascensão de uma classe de ricos mercadores e
empresários, animados pelo espírito burguês, os
movimentos ameaçadores das massas
829
camponesas empobrecidas levam à crise do regime
aristocrático e ao advento de regimes tributários (v.
TIMOCRACIA), entre os quais, o mais clássico é, sem
dúvida, o ateniense de Sólon. Em vão a aristocracia
helênica tentou defender seus privilégios. Na época em
que se deu o declínio do poder nobiliário, Píndaro
definia lúcida e pateticamente a ideologia da Nobreza:
somente quem possui a virtude (areté) tem o direito de
governar, mas se a virtude é também fruto de um
empenho pessoal nas guerras e nas competições, ela é
antes de tudo herança de uma nobre estirpe, como
dom de divina origem e nenhum mérito pessoal pode
suprir a falta de sangue nobre.
A passagem, bastante freqüente na história, de
formas aristocráticas de Governo para formas
timocráticas não comporta necessariamente por outro
lado o desaparecimento de privilégios hereditários
nem de uma casta nobiliária. Por um lado, na verdade,
o privilégio econômico é em grande parte hereditário
e com ele, indiretamente, o político, pelo fato de os
direitos políticos serem distribuídos em bases
tributárias. Por outra parte, a antiga Nobreza conserva
um privilégio de status, ciosamente defendido e mais
ou menos voluntariamente reconhecido por outras
couches sociais. Aliás, não poucas vezes riqueza e
Nobreza estão estreitamente unidas a ponto de no
regime tributário a classe aristocrática permanecer
também em destaque durante longo tempo e sob todos
os aspectos. O mesmo vale particularmente, como
veremos em seguida, para o regime timocrático da
Roma republicana.
No princípio, entre as classes em que se dividia a
sociedade romana encontramos o elemento
aristocrático, o patriciado, no qual se concentram
todos os privilégios e uma massa popular subalterna, os
plebeus. Através do monarca, por eles periodicamente
eleito, e do senado, constituído pelos anciãos das
famílias patrícias (paires), a aristocracia romana — os
optimates — tinha na mão o Estado e a sociedade
romana. Durante a dominação etrusca registrou-se um
atentado contra os privilégios aristocráticos exatamente
quando os soberanos estrangeiros em luta contra a
aristocracia indígena restauraram os comícios curiatos,
assembléia popular com poderes de decisão,
constituída em bases paritárias, por patrícios e
plebeus. O contraste entre os monarcas etruscos e a
aristocracia romana teve como desfecho a queda da
monarquia e a instituição da república. A isto se
seguiria rapidamente (talvez por volta de 471 a.C.) a
instituição do regime timocrático apoiado em
comícios centuriais (que a tradição faz remontar a
Sérvio Túlio). A instauração de um regime tributário
seria uma reforma baseada nos próprios interesses do
patriciado, que sendo por tradição a classe mais
830
NOBREZA
rica garantiria para si o poder político de Roma
associando na gestão dele um número limitado de
plebeus ricos. O predomínio aristocrático manteve-se
por longo tempo; depois, o patriciado perante a
crescente oposição da plebe foi constrangido a fazer
numerosas concessões (reconhecimento do direito de
os plebeus assumirem o consulado, 366 a.C;
reconhecimento do valor de lei dos plebiscitos, 287
a.C.) que formalmente colocam em pé de igualdade
os direitos políticos de patrícios e plebeus mas que de
fato permitem a um número limitado de plebeus ricos
entrar nas fileiras da classe dirigente. É desta maneira
que se forma em Roma uma nova aristocracia a que é
dada o nome novo de nobilitas. Os nobiles são os
membros das famílias que podem vangloriar-se de ter
entre seus membros um cônsul ou outro magistrado
curul de grau inferior. Em sua maioria, as famílias da
nobilitas são de origem patrícia. É reduzido o número
dos homines novi plebeus que promovidos a uma
magistratura curul conseguem fazer entrar sua própria
família no número das famílias nobiliárias.
As prerrogativas da Nobreza não são formalizadas
através de uma lei orgânica; seja como for, entre as
que são formalmente reconhecidas estão o ius
immaginum, ou seja, o direito de expor no átrio das
casas nobres os retratos dos parentes elevados a
cargos curuis, a adoção de um cognome hereditário,
um título particular na aspiração aos cargos curuis e
sacerdotais.
No regime de Augusto forma-se uma nova casta
privilegiada que tem a característica de Nobreza
apenas imperfeitamente. Na ordem senatorial cujos
membros só podem tornar-se magistrados e em
conseqüência disso senadores, não pode pertencer
ninguém que não possua pelo menos um milhão de
sestércios e é esta e não o sangue a condição
necessária para fazer parte da nova e mais alta casta
privilegiada. O declínio econômico leva ao
desaparecimento de quase toda a velha Nobreza
republicana antes dos fins do século I d. C. e é
substituída na ordem senatorial por uma nova leva de
famílias de origem eqüestre.
A partir de Constantino e com o início do período
do dominato importantes transformações acontecem
no âmbito da Nobreza romana. Desaparece a ordem
eqüestre deixando-se absorver pela ordem senatorial.
Os membros desta, conhecidos pelo nome de
clarissimi, dividem-se em vários graus, sendo os mais
importantes os inlustres e os spectabiles, importantes
pelas funções públicas exercidas. Cai o requisito da
pensão para pertencer à ordo senatorial e volta-se a
uma Nobreza estritamente hereditária. Começa, por
outro lado, a delinear-se uma crescente e nítida
separação entre ordem senatorial, cada vez
mais excluída da administração pública, e os altos
cargos da burocracia estatal, confiados, cada vez com
mais freqüência, diretamente, pelo imperador, a
"companheiros" (comites, de que deriva o título de
conde), ou seja, a personalidades que gozam da
confiança do imperador, transformado, na época do
DOMINATO (V.), em árbitro supremo da direção do
Estado. O título de comes consagrado no Baixo
Império é provavelmente o primeiro título
nobiliárquico que se expandiu durante a Idade dos
Bárbaros. No período gótico, os comites de muitas
cidades têm dignidades e poderes notáveis. Durante a
dominação bizantina destacam-se os duces (duques),
comandantes militares de províncias em estado de
guerra. Muitas vezes o duque era designado também
pelo título de patrício, termo que não indicava mais
uma condição nobre e sim um cargo e uma função
pública eminente. Com tais títulos serão condecorados
Odoacro e Teodorico. Patricius romanorum será
chamado pelos papas o rei dos Francos com o
significado de altíssima dignidade pública e de função
de protetor de Roma e da Igreja romana. Entre o final
do império do ocidente e o período da dominação
bizantina, a ordem senatorial conserva o caráter de
Nobreza hereditária mas fica inteiramente à margem
do exercício das funções públicas.
Reveste-se de particular interesse, no quadro do
império, a Nobreza provincial, que era a "classe
média" do Estado e o nervo social da "federação de
cidades" a que se resumia o império. Enquanto a alta
Nobreza provincial foi-se imiscuindo gradualmente na
ordem senatorial, a Nobreza média fornece os quadros
da administração municipal, ou seja, da ordem dos
curiales, que mantém através do senso cívico e dos
próprios recursos a vida dos municípios, adquirindo o
direito-dever de transmitir a seus descendentes os
cargos ocupados.
IV. A NOBREZA NA IDADE MÉDIA. — Nos
séculos da alta Idade Média foi-se formando
lentamente uma nova aristocracia. Aos remanescentes
da Nobreza tribal germânica (dizimada pelas guerras
de conquista e pelos soberanos bárbaros que
procuravam assegurar para si um poder absoluto) e
aos da classe senatorial romana e provincial se junta a
elite dos altos funcionários e chefes militares que os
reis
germânicos
empregam
para
controlar
politicamente seus próprios domínios. Esta última não
é ainda uma verdadeira Nobreza porque os seus
privilégios não são hereditários e não derivam do
nascimento e sim da função exercida e do patrimônio
fundiário e podem perder-se. Gradualmente, porém,
com o desenvolvimento do sistema feudal (v.
FEUDALISMO) este grupo de grandes funcionários
NOBREZA
e proprietários se transforma numa casta de famílias
que transmitem de geração em geração não somente a
propriedade de grandes bens fundiários livres e
feudais mas também funções de carácter público
relacionadas com os mesmos e títulos, recebidos ou
usurpados, dos mais altos cargos públicos: de conde,
de marquês, de duque, de vice-conde, etc. A partir do
século IX, o vértice da sociedade carolíngia é ocupado
por duzentas ou trezentas "famílias condais", em
grande parte de origem franca, que dispõem de
propriedades fundiárias imensas e que têm o
monopólio dos cargos públicos do Império. Mais:
dada a autonomia de que goza, a alta Nobreza feudal
dispõe em seus domínios de um poder político semisoberano, no quadro daquela confederação sui generis
que é o Sacro Império Romano. Depois do ano mil,
nos potentados que se formaram sobre as ruínas do
império carolíngio, achamos ainda uma alta Nobreza de
magnates, vassalos diretos do Império, descendente,
ao que parece, da própria Nobreza carolíngia, que
mantém uma seigneurie hautaine, com direito de alta
justiça, em cujo ambiente é quase impossível entrar.
Abaixo dela, se situa uma segunda faixa, a dos
cavaleiros ou milites, uma nova Nobreza que busca
sua origem na linhagem dos proprietários rurais com
possibilidades de comprar o caro equipamento militar
exigido pela evolução da técnica bélica que neste
período incide quase unicamente sobre a cavalaria
couraçada. O acesso à elite de cavalaria não é tão
difícil como o de acesso ao grau superior (as
qualidades pessoais podem levar um jovem corajoso a
entrar nela), mas a tendência histórica é no sentido de
fechamento, favorecido pela formação de um segundo
estrato de cavalaria cadete (minores ou secundi
milites). Os milites primi, chamados também de
capitanei ou cattani na Itália, gozam, dentro dos
próprios territórios e no âmbito da hierarquia feudal,
de limitadas funções públicas próprias dos vassalos
menores. Por sua vez, os secundi milites, ou vassalos
de um vassalo, exercem também poderes políticos
delegados pelo vassalo maior e, em dado momento,
adquirem na Itália, o direito à herança do feudo
(Constitutio de feudis de Conrado II, 1037). Na Itália,
a Nobreza menor está intimamente ligada e
subordinada à figura do bispo-conde, que substitui
amplamente a do grande vassalo leigo.
V. NOBREZA CÍVICA E REPÚBLICAS ARISTOCRÁTICAS.
OUTRAS FORMAS DE NOBREZA. — Com o nascimento e o
renascimento gradual das cidades se delineia a
formação de um novo tipo de Nobreza, o qual,
indiretamente, tem origem na queda da soberania e do
poder político, típico da idade feudal: a Nobreza
cívica ou patriciado.
831
Conforme é sabido (v. COMUNA), no princípio, o
fenômeno comunal tem origens aristocráticas. A
comuna nasce de parceria com os pequenos feudatários
não-urbanos, os quais, substituindo a autoridade leiga
e o bispo-conde fundam uma espécie de senhoria
coletiva. Gradualmente, todos os cidadãos se tornam
titulares da senhoria coletiva, perdendo-se a distinção
originária entre nobiles e cives. O cidadão livre,
enquanto tal, é equiparado nos direitos políticos e na
dignidade ao nobre: "nobilis vel civis". No primeiro
período da vida comunal os cidadãos exerciam seu
direito político através dos conselhos e dos cônsules.
Os conselhos comunais eram muito numerosos no
princípio. Depois ficaram reduzidos a um número
limitado de membros, dando lugar a uma nova forma
de desigualdade. Os membros dos conselhos eram
escolhidos entre as famílias mais ricas, originárias das
cidades e possivelmente citadas como nobres em
documentos antigos. Em muitos casos chega-se a
recorrer a elencos restritos de famílias cujos membros
podem fazer parte dos conselhos. Estas famílias
constituem o patriciado da cidade e a classe
dominante de Estados oligárquicos que se configuram
como repúblicas aristocráticas. Entre estas a mais
famosa é a República de Veneza, cujo patriciado
constitui o exemplo mais vistoso de uma Nobreza
fundamentalmente separada, nos séculos de sua
formação, da propriedade fundiária e dedicada ao
contrário a atividades comerciais e armatoriais,
julgadas ignóbeis pela aristocracia de origem feudal.
À Nobreza de formação alto-feudal dos séculos XXIII se ajunta, a partir do tempo das senhorias, uma
outra, criada por príncipes, grandes vassalos do
império e vigários imperiais, os quais tomam para a
concessão de feudos sob forma de compensação,
partes do território de seu Estado. Este uso se difundiu
amplamente pela Itália fazendo que em determinada
altura a maior parte das comunas se achasse
novamente dependente dos feudatários. Estes novos
nobres (domini no norte e baroni no sul) foram
assumindo com o tempo títulos desproporcionais em
relação à instituição feudal (condes e marqueses no
norte e duques e príncipes no sul)".
A partir do século XIV difunde-se ainda uma
forma de Nobreza puramente honorífica não ligada ao
exercício presente ou passado dos direitos feudais.
Trata-se da chamada Nobreza por diploma ou por
carta de nobilitação, que é criada por imperadores,
papas, reis, príncipes e cidades para compensar
súditos beneméritos por serviços especiais com um
título (de nobre a príncipe) transmissível aos herdeiros.
Hostilizada pela nobreza feudal, que contesta a
possibilidade de uma nobreza inteiramente dissociada
do poder
832
NOBREZA
senhorial ("Il n'ya pas de marquis sans marquisat"),
esse tipo de Nobreza se difunde também largamente
sobretudo na Alemanha, onde constitui a massa da
baixa Nobreza sem feudo.
Com a ampla difusão e consagração do direito
romano, em conexão com a ascensão do absolutismo
monárquico, volta a estar no auge o princípio
romanista segundo o qual a Nobreza está ligada aos
cargos públicos exercidos. Surge então a chamada
Nobreza de toga ou funcional que é atribuída aos
funcionários públicos de grau elevado e que se
difunde particularmente na França ("noblesse de
robe"). Segundo a definição dada no início, achamonos de novo diante de uma Nobreza imprópria pelo
seu carácter não adscritício e pela sua não
transmissibilidade: o funcionário era pessoalmente
enobrecido gozando os privilégios relativos mas sua
descendência não herdava a condição.
A partir do século XVI manifesta-se ainda uma
forma diferente de Nobreza que irá durar até
princípios do século XVIII. De acordo com a
ideologia nobiliária segundo a qual uma família se
torna nobre por virtude própria prolongada no tempo,
reconhece-se durante este período o direito à Nobreza
por usucapião àquelas famílias que puderem
demonstrar ter vivido nobremente durante um tempo
suficientemente longo (três ou quatro gerações), ou
seja, no luxo, sem que seus membros tenham exercido
atividades "vis" ou cometido atos infamantes ou
contraído matrimônios indecorosos e tiverem
adquirido paralelamente os privilégios próprios da
Nobreza.
Última no tempo e para ajuntar aos vários tipos de
Nobreza que até agora descrevemos, está a Nobreza
criada por Napoleão no início do século XIX (1804):
os títulos de duque, de conde, e de barão
acompanham os altos cargos civis, militares e
eclesiásticos e tornam-se transmissíveis aos
primogênitos, com a prévia instituição de um direito
de primogenitura com renda adequada ao título. Após
a queda de Napoleão, a Carta Constitucional de 1814
reconhece esta extrema forma de Nobreza
estabelecendo que a "velha Nobreza volte a ter seus
títulos e que a nova conserve os seus".
VI. NOBREZA E MONARQUIA. A DECADÊNCIA. — A
passagem da Idade Média para a Idade Moderna
assinala na Europa o progressivo enfraquecimento da
classe nobiliária e o paralelo fortalecimento da
instituição monárquica. A relação entre Nobreza e
coroa é complexa e mutável no tempos. Durante o
período feudal, a Nobreza conquistara um poder
político quase comparável ao poder soberano gozado
nas comunidades gentilícias arcaicas de estrutura
confederai (chefes e anciãos dos ghéne gregos, das
gentes latinas e das Sippen germânicas). Durante muito
tempo, a Nobreza tentou confinar o príncipe numa
condição de dependência, como se ele fosse uma
emanação dela. Tal determinação está muito bem
expressa na fórmula através da qual os ricos hombres
de Aragão nomeavam os reis antes de a coroa se ter
tornado hereditária: "Nós que somos iguais a vós e que
podemos mais do que vós, vos elegemos rei e senhor
se observardes nossas leis e nossos privilégios; se não,
não"; fórmula que recalca aquele ultimato dirigido ao
monarca da antiga Nobreza visigoda: "Rex eris, si
recte facies, si non facies, non eris". Paulatinamente, a
monarquia vai-se reforçando e com isso vai limitando
a autonomia semi-soberana dos feudos e o poder
político da Nobreza. A composição interna desta
última muda radicalmente. A Nobreza alto-feudal, que
tem origens não menos antigas do que a Nobreza das
dinastias reinantes, reduz-se a uma modesta minoria
em relação às novas formas de Nobreza: tardo-feudal,
de toga, por diploma, por usucapião, que tiram, todas,
títulos e fortuna do bon plaisir do monarca.
Progressivamente, toda a Nobreza se torna cortesã. A
posição na corte fixa novas relações hierárquicas,
enquanto que as funções políticas são paulatinamente
subtraídas aos aristocratas em benefício de elementos
da classe burguesa em ascensão. Esta evolução
alcança seu auge com Luís XIV que reduz a Nobreza
a esplêndido e a inútil ornamento da sua corte em
Versalhes: "Le néant par état de toute noblesse".
De outra parte, a monarquia, em seu secular esforço
por assegurar-se um poder absoluto e um próspero
domínio proporciona uma maiêutica histórica ao
trazer dos escombros da velha ordem feudal uma nova
sociedade que em certa altura se voltará contra ele.
Nesse momento, Nobreza e monarquia descobrem a
afinidade profunda que as liga como instituições de
uma mesma estrutura histórica, apoiadas sobre a
mesma base econômica, sobre a grande propriedade
imobiliária e legitimada pelos mesmos princípios: a
prerrogativa agnatícia, a sociedade hierárquica, a
legitimação religiosa do poder e do privilégio. Quando
o Ancien Régime for tomado de assalto pelas novas
classes em ascensão, o monarca voltará a sentir-se e a
comportar-se como o primeiro gentilhomem do reino e
na queda final poder monárquico e poder nobiliário
serão devorados juntamente.
Após a Revolução Francesa é afirmado o princípio
da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e as
câmaras altas dos Estados reservadas na maior parte
das vezes à Nobreza perdem gradualmente todo o
poder político real. A medida que os regimes
republicanos substituem as
NOTÁVEL
monarquias, os títulos de Nobreza são geralmente
abolidos ou no mínimo não são concedidos novos.
Nas monarquias que sobrevivem, a coroa conserva o
direito de conceder novos títulos, que têm entretanto
um caráter sempre honorífico. Na Itália, o código
albertino (1837) autoriza o rei a conceder novos
títulos e a renovar os das famílias extintas. Em 1869 é
instituída uma consulta heráldica para o conhecimento
e o regulamento do Estado nobiliário.
A Constituição da república italiana nas disposições
transitórias, e finais (XIV) negou o reconhecimento
dos títulos nobiliários, mas concedeu que os
existentes antes do advento do fascismo possam valer
como parte integrante do nome.
BIBLIOGRAFIA. - M. BLOCH, La società feudale
(1939), Einaudi, Torino 1949; G. A. DE LA ROQUE,
Traité de la noblesse et des toutes ses diffétes espéces.
Rouen 1735; F. DE MARTINO, Storia della costituzione
romana, Jovene, Napoli 19726; PH. DU PUY DE
CLINCHAMPS, La noblesse. P.U.F., Paris 1959; G.
FASOLI, Introduzione allo studio del feudalesismo
italiano, Patron, Bologna 1959; G. GLOTZ, La città
greca (1953), Einaudi, Torino 1973; P. GOUBERT,
L'Ancien Régime (1969), Jaca Book, Milano 1976; O.
TABACCO, Il feudalesismo, in Storia delle idee
politiche. economiche e sociali, ao cuidado de L.
FIRPO, UTET, Torino 1983.
[GIULIANO MARTIGNETTI]
Notável.
Mediante o termo Notável pretende-se indicar uma
pessoa que detém um particular poder político e
econômico, que é conseqüentemente pessoa
importante, com influência na vida e na atividade de
um grupo social ou político. Trata-se de pessoas cuja
influência e poder decorrem não tanto de suas próprias
e intrínsecas qualidades, carismáticas, morais e
intelectuais, quanto de sua sólida base econômicosocial, tornada mais forte politicamente por apoios
interesseiros.
O fenômeno em apreço originou-se na Itália do
século XIX, favorecido pela existência do colégio
eleitoral uninominal e do sufrágio limitado, já no
Parlamento piemontês e, em seguida, mais acentuado
ainda, no Parlamento italiano após a unificação. O
deputado, não existindo então partidos organizados no
sentido moderno, partidos que desempenhassem o
papel de mediadores entre interesses setoriais e
interesses
833
pessoais com a finalidade de procurar mais o bem
comum do que o bem particular, sentia-se autorizado,
pelos próprios eleitores, a ser seu patrono junto ao
Governo central, que recebia ou perdia o apoio dos
deputados na medida em que estes ficavam ou não
satisfeitos com os favores recebidos para si ou para
seus eleitores. Os presidentes do Conselho, para se
manterem no poder, viam-se muitas vezes forçados a
construir para si uma maioria parlamentar mediante o
apoio de pessoas interessadas em favores e mediante
negociações constantes com os líderes de bancadas
profundamente instáveis, reunidas ao redor de
pessoas, ou por grupos regionais de deputados. Figura
característica do regime liberal da época, o Notável,
de origem social burguesa, inserido profundamente na
estrutura da vida da província, depreciador de
atividades comerciais e industriais, proprietário de
terras, era na maioria das vezes um profissional
liberal, que exercia sua profissão com muita
dignidade e dedicação em consonância com os
postulados de sua severa educação humanista. Era
difícil tornar-se Notável, em geral era possível sê-lo
por direito de nascença, pelos bens, pela freqüência
do meio social aristocrático e da alta burguesia e pela
inscrição, quase uma obrigação, nos melhores círculos
da cidade. Neste meio as qualidades morais e
intelectuais mais valorizadas eram: a seriedade, a
integridade de caráter (fora, porém, do campo político
onde esta qualidade contava até um certo ponto),
estudos realizados e sucesso na atividade profissional,
capacidade para administrar com parcimônia, quase
com avareza, o patrimônio, na maioria dos casos
conspícuo, herdado. Os eleitores não votavam neste ou
naquele candidato unicamente com base nos
programas apresentados: sua opção era condicionada à
capacidade que os candidatos tinham de obter
benefícios para as cidades e os burgos da província
(uma estrada, uma parada do trem, etc.) e favores
pessoais (uma promoção, um título honorífico, uma
permissão, etc.). Desta forma "a seleção da classe
política mediante o clientelismo ocorria tendo como
critério não especificamente a capacidade política, e
sim a capacidade de patronato" (P. Gentile, Polemica
contro il mio Tempo, Volpe, Roma 1965, p. 126). O
clientelismo da base subia ao vértice, principalmente
mediante a figura dos prefeitos, representantes locais
do poder central, de tal forma que os que não se
mostravam propensos à vocação de ministeriali ou de
ascari, isto é, de pessoas fiéis ao Governo, fosse
quem fosse o homem que o chefiava ou a orientação
política assumida, eram punidos com o fracasso na
reeleição, habilmente manipulada. Assim delineada,
esta figura de Notável permanece como uma constante
na vida
834
NOTÁVEL
parlamentar, pelo menos até 1919, quando, após a
ampliação do direito de voto (1912) e o término da
Grande Guerra, apresentam-se no cenário político
nacional os grandes partidos de massa. O advento do
fascismo vai sustar seu provável desaparecimento e
vai transformar em Notáveis os hierarcas e burocratas
locais do partido único.
Após a Segunda Guerra Mundial, modificado o
regime, numa sociedade que caminha para se tornar
sociedade industrial mais do que agrícola, a figura do
Notável, excluídas algumas regiões do sul, muda
formalmente de fisionomia, e, num certo sentido,
muda até na sua substância. Atualmente é dentro dos
partidos que precisamos identificar o Notável, já com
uma nova fisionomia: sua origem social continua
burguesa, porém bem diferente é a evolução de sua
carreira política, assim como os métodos utilizados
para alcançar e manter o poder.
Num primeiro momento atinge os vértices da
política local e, mais tarde, os da política nacional
após uma caminhada quase meramente
burocrática na estrutura partidária, onde, graças à sua
habilidade de incansável negociador e à distribuição
de favores e benefícios a burocratas, eleitores e amigos
com as mesmas tendências, alcançou bases sólidas de
poder ocupando cargos de responsabilidade. Cercado
por elementos muitas vezes medíocres, porém fiéis, o
Notável recebe o apoio interesseiro de camadas
sociais e grupos econômicos ligados por interesses
corporativistas. Atuando, através de todo tipo de
manobras, entre partido e autoridade política e
administrativa, o Notável, ao assegurar, mediante a
prática do chamado Governo subterrâneo, vantagens
(um financiamento, uma aposentadoria, uma
encomenda, uma licitação, etc.) a seus "clientes",
cuida do próprio colégio eleitoral.
BIBLIOGRAFIA. - D. BLEITRACH e A. CHENU, Les
notables et la technocratie. in "Cahiers internationaux
de sociologie", LVI. janeiro-junho 1974, pp. 159-74.
[GIANPAOLO ZUCCHINI]
Oligarquia.
I. SIGNIFICADO TRADICIONAL. — Oligarquia significa
etimologicamente "governo de poucos", mas, nos
clássicos do pensamento político grego, que
transmitiram o termo à filosofia política subseqüente, a
mesma palavra tem muitas vezes o significado mais
específico e eticamente negativo de "Governo dos
ricos", para o qual se usa hoje um termo de origem
igualmente grega, "plutocracia" (aliás já empregado
por Xenofonte, Recordações, IV, 6, 12). Diz Platão: —
"Que sistema político... entendes por Oligarquia? — A
constituição baseada no patrimônio... onde os ricos
governam, enquanto o pobre não pode partilhar do
poder" (República, 550 c). Diz, de igual modo,
Aristóteles: "... poder-se-á dizer que existe democracia
quando governam os livres; com maior razão ter-se-á
uma Oligarquia quando governam os ricos, sendo
geralmente muitos os livres e poucos os ricos"
(Política, 12906). Segundo a distinção aristotélica
entre formas puras e formas viciadas de constituição, a
Oligarquia, como Governo dos ricos, é a forma viciada
da aristocracia, que é o Governo dos melhores
(Política, 12796). Geralmente, na linguagem política
grega, o termo Oligarquia é usado com um significado
que envolve um juízo de valor negativo. Isócrates, por
exemplo, afirma: "Da maioria dos discursos por mim
pronunciados se deduzirá claramente que eu vitupero
as Oligarquias e os regimes baseados na prepotência,
mas aprovo os baseados na igualdade e as
democracias" (Areopagítico, 60). Este significado
negativo perdurou em toda a tradição do pensamento
político posterior. Em De la république, Bodin fixa de
modo singularmente exemplar o sentido desta
tradição: "Como a monarquia pode ser régia,
despótica, tirânica, também a aristocracia pode ser
despótica, legítima, facciosa; este último tipo era
chamado oligarquia na antigüidade, isto é, domínio
exercido por um pequeno número de dominadores. ..
Por isso, os antigos usavam sempre o nome de
Oligarquia com significado
negativo e aristocracia com significado positivo"
(Livro II, cap. VI).
Devido ao seu forte significado de valor negativo, o
termo Oligarquia teve e tem ainda, na linguagem
política, mais uma função polêmica que ilustrativa.
Pode-se dizer por outras palavras que, enquanto é
imediatamente perceptível seu significado valorativo,
por ser imediatamente claro que, quando se diz que
um Governo é oligárquico, pretende-se afirmar que
ele é nocivo e chama-se assim justamente porque há
vontade de o condenar, já não é tão inequívoco o seu
significado descritivo, uma vez que, diversamente do
que ocorre com outros termos da mesma família,
como monarquia e democracia, que designam um
certo tipo de instituições, Oligarquia não designa tanto
esta ou aquela instituição, não indica uma forma
específica de Governo, mas se limita a chamar a nossa
atenção para o fato puro e simples de que o poder
supremo está nas mãos de um restrito grupo de
pessoas propensamente fechado, ligadas entre si por
vínculos de sangue, de interesse ou outros, e que
gozam de privilégios particulares, servindo-se de
todos os meios que o poder pôs ao seu alcance para os
conservar. A falta de um significado técnico bem
definido do termo Oligarquia é demonstrada ainda
pelo fato de que, diversamente mais uma vez do que
acontece com "monarquia" e "democracia", cujo uso
corrente se restringe à esfera das relações do poder
político,
o
termo
Oligarquia
é
aplicado
analogicamente, com excessiva facilidade, a relações
de poder diversas das relações políticas, com o fim de
designar o mesmo fenômeno do domínio de um grupo
restrito e fechado em organizações outras que não o
Estado, como quando se fala de Oligarquias
econômicas, militares, sacerdotais, burocráticas,
sindicais, financeiras, etc.
II. OLIGARQUIAS E ELITISMO. — Na teoria política
moderna, o conceito de Oligarquia, se não o termo,
começou a alcançar especial sucesso e uma
importância particular, quando alguns escritores
deram em sustentar (e com êxito) que todos os
Governos que existiram ou estão por
836
OLIGARQUIA
existir foram ou serão sempre Governos de poucos,
ou, para empregarmos as palavras mais freqüentemente
usadas. Governos de minorias organizadas ou de elites
(v. ELITES, TEORIA DAS). Mosca como Pareto não estão
familiarizados com o termo Oligarquia. Mosca fala de
"classe política", de "minoria governante"; Pareto fala
de "aristocracia", de "classe eleita" e, para a época
contemporânea, de "plutocracia", que divide em dois
tipos, a plutocracia demagógica e a plutocracia
militar. Mas o conceito é claro: segundo a teoria das
elites, a Oligarquia é, no sentido etimológico da
palavra, a única forma possível de Governo. Com
isso, os' elitistas não querem afirmar que todos os
Governos sejam iguais: limitam-se a sustentar que, no
tocante ao número de governantes segundo o qual têm
sido discriminadas as diversas formas de Governo, os
Governos não apresentam diferenças relevantes, isto
é, todos eles são oligarquias, embora de espécie
diversa, que cabe ao estudioso da história das
instituições identificar e descrever.
O termo, bem como o conceito, entraram
largamente no uso da ciência política graças à aplicação
que Robert Michels fez da teoria das elites, destinada a
explicar o fenômeno das minorias governantes no
âmbito da organização estatal, à organização dos
grandes partidos de massa. Como é sabido, ao estudar
a organização do partido social-democrático alemão,
Michels julgou poder deduzir daí uma lei de tendência
válida para qualquer grande organização, que chamou
"lei férrea da Oligarquia", com base na qual afirmou
ser "a formação de Oligarquias no seio das múltiplas
formas de democracia um fenômeno orgânico e, por
isso, uma tendência a que se submete necessariamente
toda a organização, inclusive a socialista e libertária".
Após Michels, o termo Oligarquia foi vastamente
aceito na linguagem da ciência política, perdendo,
aliás, pouco a pouco, a sua primitiva significação de
valor negativo e adquirindo outra axiologicamente
neutra. Que toda a grande organização e,
conseqüentemente, mais ainda o Estado sejam e não
possam ser senão governados por um restrito número
de pessoas, tem sido cada vez mais considerado como
um fato dependente da própria natureza das coisas; e,
para o estudioso, um fato é objeto de análise, não de
desaprovação. Um escritor de grande notoriedade
como Duverger usa o termo Oligarquia para designar a
classe dominante, isto é, para dar um nome àquele
mesmo fenômeno que os teóricos das elites haviam
chamado "minoria organizada" ou "classe eleita" (La
tecnodemocrazia, 1972). Para descrever a passagem da
democracia liberal àquela que ele chama
"tecnodemocracia", examina a composição e
modalidades de exercício do poder da "nova
Oligarquia", com o fim de evidenciar suas diferenças
em relação à Oligarquia que dirigia o Estado liberal
no século passado. O texto não deixa a menor dúvida
de que, para Duverger, o termo mais apropriado para
designar a estrutura do poder do Estado moderno em
suas várias fases é a Oligarquia, e isto em razão do
valor descritivo que o termo foi adquirindo à medida
que foi perdendo o seu significado valorativo.
III. OLIGARQUIA E REGIMES DO TERCEIRO MUNDO. —
Depois da Segunda Guerra Mundial, o interesse dos
estudiosos das ciências sociais e da ciência política
pela organização social e política dos países do
Terceiro Mundo, de onde surgiria a teoria do
desenvolvimento e subdesenvolvimento pouco a pouco
aplicada à própria análise e comparação dos regimes
políticos, contribuiu para que fosse posto de novo em
circulação, com um significado específico, o termo
Oligarquia. Este foi usado como termo oposto a
democracia (entendida como forma de Governo
dominante nos países do Ocidente) e referido à maior
parte dos regimes em vias de desenvolvimento, numa
época de transição de um sistema social e político
"tradicional" para um sistema social e político
"moderno". Num ensaio bastante conhecido, Edward
Shils (Political development in the new states, 1962)
apresenta uma tipologia dos sistemas políticos tão
ampla que abrange todos os sistemas existentes, mesmo
os dos países subdesenvolvidos. Esta tipologia se baseia
na distinção fundamental entre sistemas democráticos
e sistemas oligárquicos. Os últimos se caracterizam
por um grupo de poder restrito, homogêneo, estável,
com uma boa organização interna e fortes vínculos
entre seus membros, pouco confiante na lealdade de
quem a ele pertence e cauteloso na admissão de novos
membros; é um grupo que governa de modo
autoritário, robustecendo o executivo, controlando o
judiciário, marginalizando ou excluindo o Parlamento,
desencorajando ou eliminando a oposição. Os sistemas
democráticos dividem-se, segundo Shils, em
"democracias políticas" (a que correspondem as
democracias ocidentais) e "democracias tutelares"
(como a "democracia dirigida" da Indonésia); os
sistemas oligárquicos se dividem e distinguem, por sua
vez, à medida que se afastam do ideal democrático e se
acham num grau cada vez mais baixo de modernização,
em
"Oligarquias
modernizadas",
"Oligarquias
totalitárias" e "Oligarquias tradicionais" (James S.
Coleman acrescentou outro tipo, o das "Oligarquias
coloniais e raciais", entre as quais incluiu Estados
como a África do Sul e Rodésia do Sul, The politics
OLIGARQUIA
of developing areas, 1960, pp. 561-62). A maior parte
dos Estados em vias de desenvolvimento são
classificados entre os regimes oligárquicos de um e de
outro tipo. De fato, como observa Shils, "em todos os
novos Estados existe... uma fé difusa na necessidade
de uma mais elevada concentração da autoridade e de
um remédio mais forte para curar o paroquialismo, a
desunião e a apatia. No Sudão, no Iraque, no Egito, no
Paquistão e entre diversos elementos da Indonésia, do
Ceilão e da Índia se crê que a Oligarquia é a única via
capaz de criar uma sociedade moderna, com uma
administração racional e honesta, bem como uma ação
decisiva para o progresso social" (p. 67). Contrapondose assim claramente à democracia, o termo Oligarquia,
pelo fato de ter sido adotado para expressar de modo
exclusivo um dos dois campos em que se divide toda
a extensão ocupada pelos regimes políticos existentes
(são oligárquicos todos os regimes que não são
democráticos), adquire um significado descritivo
bastante preciso, mesmo que conserve o significado
de valor negativo que o acompanha desde a
antigüidade (um regime oligárquico é tanto mais ruim
quanto mais se afastar do regime posto como modelo,
a democracia política).
IV. OLIGARQUIA ANTIGA E MODERNA. — A vitalidade
do termo Oligarquia não deve induzir em erro no que
respeita à continuidade e coerência do léxico da
filosofia política da antigüidade até hoje. Como
vimos, pelo que tange ao seu significado valorativo, o
termo tem sido tradicionalmente usado em sentido
negativo, devido à influência da classificação
aristotélica, para a qual a Oligarquia é uma das formas
viciadas de constituição; contudo, por influência da
teoria das elites, ele foi adquirindo cada vez mais um
significado axiologicamente neutro, à medida que se
foi constatando que todos os regimes, mesmo os que
se proclamam democráticos, são regidos, e não podem
deixar de o ser, por Oligarquias. Mesmo onde o termo
continua a ter um significado polêmico, como nas
tipologias que compreendem os regimes do Terceiro
Mundo, o critério de avaliação negativa é divergente
na teoria tradicional e na moderna: naquela, o juízo
negativo derivava de um confronto com a aristocracia;
nesta, de um confronto com a democracia. Segundo a
formulação aristotélica, a Oligarquia é um mau
governo, não porque seja governo de poucos (a
aristocracia também o é), mas porque governa mal
(obedecendo aos interesses dos governantes e não do
povo); segundo o uso que fez do mesmo termo um
autor como Shils, a Oligarquia é um mau Governo
porque é um Governo de poucos, isto é, um Governo
sem base popular ativa, sustentado não por uma
participação contínua e
857
consciente, mas pela inércia da maioria ou pela
momentânea mobilização das massas nos momentos
cruciais, mesmo que, casualmente, nessa situação
histórica, esse seja o melhor dos Governos. É de fato
de observar que, em vez de ser acusada de buscar
apenas o próprio interesse, a Oligarquia dominante nos
países em vias de desenvolvimento é considerada
como o único grupo de poder capaz de promover os
interesses nacionais, desde que seja tido como
interesse nacional o abrir caminho ao processo de
modernização.
À medida que ia adquirindo relevo o confronto
entre democracia e Oligarquia, ia perdendo
importância o confronto tradicional entre Oligarquia e
aristocracia. Isto a partir do momento era que, por
influência dos escritores políticos, se começou a
entender por "aristocracia", desde o início da época
moderna, uma das duas formas de Governo
republicano (a outra era a da república popular),
precisamente aquela em que a classe política vai
transmitindo o poder hereditariamente (caso
paradigmático era a república de Veneza). Mosca,
ressaltando o valor perene do princípio da transmissão
hereditária do poder, se bem que dentro de limites
restritos,
contrapunha
também
o
princípio
democrático, não ao oligárquico, mas ao aristocrático.
Ora, extinta ou em vias de extinção toda a forma de
Governo aristocrático, entendido este como forma de
Governo onde se tem acesso aos cargos pelo
nascimento, o confronto entre aristocracia e
Oligarquia não teria já qualquer interesse. As
Oligarquias dos regimes políticos dos nossos dias já
não são aristocracias: sua unidade, sua coesão e sua
relativa estabilidade, presumivelmente menos
duradoura que a das aristocracias tradicionais, não
dependem do respeito ao princípio hereditário, mas da
comunhão de interesses (Oligarquias econômicas), da
integração no mesmo corpo de funcionários públicos
(é típico o regime dos coronéis), da solidariedade do
movimento revolucionário (os bolcheviques), ou da
libertação nacional (algumas das elites dos novos
Estados africanos) que as levou ao poder.
Dado o uso corrente de Oligarquia na ciência
política contemporânea, mantém-se ainda o interesse
pela distinção entre Oligarquia e democracia, mesmo
por parte daqueles que afirmam ser todos os regimes
Oligarquias, reconhecendo muito embora que existem
diferenças relevantes entre Oligarquias que governam
em sistemas democráticos (o próprio Duverger, que
fala
de
"novas
Oligarquias",
chama
"tecnodemocracia" ao regime em que elas atuam) e
Oligarquias que governam era sistemas não
democráticos. Estas diferenças, que são relevantes,
dizem respeito quer à fonte, quer ao exercício do
poder. Quanto às fontes, aquelas vão buscar sua
legitimidade ao
838
OMBUDSMAN
voto popular periódico, pelo menos formalmente usados no desempenho destas funções são de caráter
livre, estas ao voto dirigido, de opção única, à administrativo e às vezes também parajurisdicional.
tradição, ou à força carismática dos chefes, quando Contudo, este órgão está geralmente incorporado ao
não se regem pelo terror (neste caso, caem na velha poder Legislativo ou é considerado seu auxiliar.
categoria montesquiana do despotismo). Quanto ao Foram-se delineando alguns elementos caracterizantes
exercício, aquelas reconhecem a oposição legal, do Ombudsman, com uma tendência bastante unívoca
garantindo, dentro de certos limites, a liberdade de à sua tipificação:
expressão; estas não reconhecem nem uma nem outra,
a) o ordenamento que o adota deve seguir, pelo
antes as perseguem, onde quer que se manifestem.
menos em linhas gerais, o conhecido princípio
orgânico da separação dos poderes;
[NORBERTO BOBBIO]
Ombudsman.
I. CARACTERÍSTICAS GERAIS. — A insatisfação quanto
ao sistema de garantias que se oferecem em relação
aos comportamentos da administração pública
contribuiu para o sucesso do instituto escandinavo do
Ombudsman, que apresenta a possibilidade de
conciliar formas públicas de controle da administração
mediante um órgão fiduciário do Parlamento, com a
satisfação de solicitações que as pessoas privadas têm
o direito de lhe dirigir para obter tutela.
O papel do Ombudsman pode ser definido de modo
preferentemente negativo. Por um lado, não pode
exorbitar com formas de controle sobre a ação de
importância política da administração que se
confundam com a sindicância fiscalizadora que o
Parlamento tem de exercer sobre o Governo; por isso
foge à intervenção do Ombudsman tudo quanto possa
implicar averiguação da conduta política do Governo
ou da administração pública. Por outro, tampouco
pode exceder seus limites em formas de garantia
jurídica de situações subjetivas dos administrados que
se assemelhem às já oferecidas junto a órgãos
jurisdicionais previstos pelos vários ordenamentos.
Levadas em conta estas observações preliminares,
pode-se concluir que o objeto da intervenção do
Ombudsman são os comportamentos ou omissões que
possuem apenas relevância administrativa e não
política, enquanto que as ocasiões em que as pessoas
privadas podem provocar a sua interferência serão
sobretudo aquelas em que não seja possível alcançar
justiça usando dos remédios oferecidos pelos vários
ordenamentos, mediante o controle jurisdicional
exercido sobre as pessoas e sobre os seus atos, isto é,
em casos eventuais de prejuízo, originados por
desserviços e disfunções administrativos, e nos de
injustiça substancial.
As atribuições confiadas ao Ombudsman são
principalmente de inspeção; os procedimentos
b) o Ombudsman destina-se a flanquear o Legislativo
no controle do Executivo, devendo, por isso, ficar
absolutamente distante de qualquer possível
influência deste último;
c) a ação do Ombudsman concerne diretamente
apenas aos departamentos, administrativos que
dependem do Governo; nunca aos responsáveis
políticos pelos mesmos, os ministros;
d) o Ombudsman é fiduciário do Parlamento, mas
goza de uma ampla autonomia em relação a ele em
sua atuação concreta; o Parlamento estabelece
princípios de ação e diretrizes gerais, mas nunca
disposições perceptivas referentes a casos concretos;
e) o Ombudsman não é titular de poderes de direção
política, nem de sindicância política sobre o uso
desses poderes; sua presença não deveria alterar o
mecanismo equilibrado das relações ParlamentoGoverno que, embora com notáveis diferenças,
caracterizam os sistemas de Governo parlamentar.
f) o Ombudsman põe em evidência o mau uso do
poder administrativo, ligado ou não à lesão dos
interesses individuais, sem, no entanto, poder
substituir com sua ação a ação da administração
pública.
g) o Ombudsman, sob o aspecto fiscalizador, tem a
obrigação geral de referir ao Parlamento os resultados
das indagações efetuadas, enquanto que, no que se
refere à tutela das situações individuais, tem o direito
de assinalar, com mais ou menos veemência, à
administração as disfunções verificadas.
Tendo em conta o que fica dito, pode-se concluir
que não coincidem com a figura do Ombudsman
órgãos assim denominados e dotados de atribuições
análogas, dependentes na realidade do Executivo,
como acontece com os instituídos
pelas
administrações locais de alguns Estados-membros dos
Estados Unidos da América. O mesmo acontece
também com o médiateur, instituído pela lei francesa a
4 de janeiro de 1973, n.°s73-6, com claras referências
ao instituto escandinavo. Sendo nomeado pelo
Governo e não
OMBUDSMAN
pelo Parlamento, só parcialmente o podemos
remontar à origem do instituto que analisamos.
II. FUNÇÕES: ORIGENS E DESENVOLVIMENTO. —
Introduzido na Suécia por lei sobre a forma de
Governo, de 6 de junho de 1809 (art. 96), o
Ombudsman foi sucessivamente aceito nos restantes
Estados escandinavos e, a seguir, na Nova Zelândia, na
República Federal Alemã, no Reino Unido, nas
Províncias do Canadá e num bom número de Estados
de independência recente. As últimas constituições
portuguesa e espanhola lhe dedicaram normas
explícitas. Três estatutos regionais italianos o
prevêem, introduzindo-o assim, pela primeira vez, no
direito público italiano.
Tem-se como arquétipo do Ombudsman o sueco,
que se impôs inicialmente como órgão de controle
parlamentar sobre a orientação do Executivo.
A história constitucional sueca mostra, com efeito,
que, na época, a adoção do Ombudsman era uma
resposta à necessidade de garantir uma forma eficaz
de sindicância parlamentar sobre a ação régia no
campo administrativo, necessidade que ao princípio
foi. satisfeita sob o pretexto formal da afirmação do
princípio da correta aplicação da lei dentro da
administração pública: o Ombudsman zelava pelo
respeito da lei e, ao mesmo tempo, se achava em
condições de controlar a orientação administrativa do
Governo.
Superada a monarquia constitucional e assegurada
uma certa forma de Governo parlamentar, o
Parlamento, em conseqüência do princípio da
responsabilidade ministerial em face do mesmo,
garantiu um controle amplo e geral sobre a orientação
do Governo na administração e o papel do
Ombudsman foi se modificando progressivamente até
perder as características originais. Enquanto as
questões governamentais de direção política
encontravam um interlocutor no Parlamento, o
princípio da tutela da correta aplicação da lei assumia
um significado diverso, tendendo a restringir-se às
hipóteses em que a ação administrativa de sentido
estrito apresentasse disfunções objetivas ou incidisse,
com efeitos negativos, sobre situações de interesse
individual ou coletivo juridicamente tuteladas. Deste
modo, o Ombudsman se apresentava cada vez mais
firmemente como tutor público do uso correto do poder
administrativo. É assim que ele foi depois imitado e
admitido em outros ordenamentos até à recente
reforma inglesa. Seria então superficial limitarmo-nos a
pensar que, onde existente, o Ombudsman proporcione
ao Parlamento uma forma de controle direto da
administração pública, apoiando-se na forma mais
genérica de controle indireto que se obtém
examinando no âmbito parlamentar
839
a ação dos ministros, de acordo com os conhecidos
princípios
do
Governo
parlamentar.
Mais
precisamente: as novas funções afastavam o
Ombudsman da atividade de controle político,
enquanto o iam aproximando, sob alguns aspectos,
dos órgãos jurisdicionais.
Diversos fatores concorriam para isto. Um dos mais
importantes era o da insuficiência do sistema de
garantias jurisdicionais em relação à ação
administrativa, progressivamente crescente em
intensidade e abrangendo setores e matérias cada vez
mais vastos ou referindo-se a setores tradicionalmente
excluídos das formas de garantia das situações de
interesse individual, como no caso da organização das
forças armadas. Outro, geralmente não sublinhado, era
o da divisão cada vez mais clara do órgão parlamentar
em minorias de oposição e maioria, bem como da
união evidente que se vinha criando nos sistemas de
Governo parlamentar entre maioria e Governo. Em tal
situação, a inspeção parlamentar sobre as atividades
do Executivo nos departamentos administrativos, a
conseqüente sindicância e eventual censura, foram
deixadas de preferência à oposição, que nem sempre
dispõe dos meios necessários para se impor à atenção
do Governo. Em vez disso, o mais provável é que o
Governo, com a sua maioria, consiga eludir ou
circunscrever formas de ingerência desagradáveis no
desenvolvimento da atividade administrativa, de
acordo com uma linha de tendência dificilmente
reversível.
Isto é verdadeiro especialmente nas questões que
envolvem, de modo mais claro, a orientação política
da maioria. Então, enquanto se mantiver a relação de
confiança, é praticamente impossível infringir a
vontade do enlace maioria parlamentar-Governo,
tornando-se utópico reclamar formas de controle
objetivamente oportunas, como ensina a experiência
dos inquéritos parlamentares. Quanto às relativas ao
desenvolvimento da atividade administrativa normal,
não sendo questões politicamente relevantes, podem
os desajustes e as disfunções no uso do poder
discricionário levar à concordância sobre a
necessidade de um remédio objetivo, à margem dos
problemas das relações entre maioria e minorias da
oposição, a fim de se achar solução para a crise de
confiança do cidadão em face das instituições
administrativas, mediante a utilização de um
mecanismo institucional mais ágil e eficaz que o
recurso às interpelações e aos inquéritos
parlamentares.
Hoje, portanto, o Ombudsman não significa função
de controle político, mas tende, antes de tudo, a
assegurar uma forma de controle parlamentar
confiável, para além do contraste de interesses da
maioria e das minorias da oposição,
840
OMBUDSMAN
sobre o funcionamento da administração pública. Não
se trata, porém, de um controle sob o aspecto
meramente objetivo da ação administrativa, Já
lembramos que outro dos fatores importantes que
justificam o Ombudsman é a insuficiência de formas
de garantia jurisdicional das situações de interesse
subjetivo em face da ação administrativa. Na
realidade, o Ombudsman funciona como instância de
tutela de situações individuais, onde não existem
remédios suficientes de caráter administrativo ou
jurisdicional.
Com o que fica dito, podemos agora esboçar com
mais precisão a figura orgânica do Ombudsman: é um
órgão vinculado ao Legislativo, privado de
atribuições de controle político, garantia do uso
correto do poder administrativo, integrante de formas
insuficientes de tutela administrativa e jurisdicional
dos interesses da coletividade.
III. POSIÇÃO NA ORGANIZAÇÃO. — Em conformidade
com as funções que lhe foram designadas, o
Ombudsman se encontra em particular posição de
independência dentro da organização. Não só está
desvinculado do Executivo, enquanto a sua ação diz
respeito aos departamentos administrativos dele
dependentes, como também do Parlamento, porquanto,
se o Ombudsman fosse um instrumento da maioria,
verificar-se-iam os mesmos inconvenientes já
observados sobre a sua credibilidade como efetivo
instrumento de controle da atuação governamental.
A independência do Ombudsman é garantida
mediante vários expedientes fixados no âmbito
constitucional, legislativo e convencional. Não pode
ser parte do Parlamento nem ser submetido a qualquer
constrangimento parlamentar, uma vez eleito por
ampla maioria, muitas vezes com o acordo unânime
dos partidos mais importantes. Está apenas sujeito a
normas gerais de comportamento, prescritas pela
constituição, por leis e regulamentos, mas nunca a
instruções relativas a casos concretos. Seu caráter
apolítico e imparcialidade são considerados requisitos
fundamentais; a escolha recai amiúde sobre
magistrados com o objetivo de satisfazer a tais
exigências. A garantia de independência em relação ao
Parlamento é ainda acentuada pelo caráter fixo dos
termos da função, não ligada à duração da legislatura
que elegeu o Ombudsman, pela tendência à
prorrogação do cargo e pela prática cada vez mais
persistente da reconfirmação dos titulares. A
autonomia da ação do Ombudsman é reforçada pela
discricionariedade de que goza na organização do
cargo, na escolha dos colaboradores, na direção e
desenvolvimento das atividades.
Mas esta independência não impede que exista um
importante vínculo entre o Ombudsman e o
Parlamento. Trata-se de uma relação de confiança
que é mister que subsista permanentemente. Se essa
confiança vier a faltar, o Ombudsman poderá ser
exonerado. Como já foi lembrado, o Parlamento só
pode estabelecer disposições de caráter geral,
concernentes aos critérios de organização e aos
princípios de comportamento, mas há contatos
constantes entre o Ombudsman e o Parlamento",
geralmente por intermédio de comissões parlamentares
restritas. Além disso, o Parlamento e seus membros
podem influir de vários modos na atividade do
Ombudsman, pois gozam de poderes de decisão em
relação a ele. Enfim, sobre o Ombudsman pesa a
obrigação de informar o Parlamento, o que se verifica
sempre através de relatórios anuais, mas às vezes
também através de relatórios particulares sobre
questões específicas.
IV. COMPETÊNCIA E PROCEDIMENTOS. — Ao
Ombudsman cabem amplos poderes de inspeção,
sinteticamente chamados de poder de informação,
abrangendo os poderes de inspetoria, de exame da
documentação das administrações controladas, de
presença em debates de órgãos administrativos e, de
quando em quando, também nos de órgãos
jurisdicionais. Está prevista a obrigação de
colaboração por parte das administrações controladas.
Compete sempre ao Ombudsman o poder de iniciativa
nos processos de indagação, sempre autônomos.
O Ombudsman não pode nunca substituir a
administração ou a jurisdição, porquanto é considerado
parte do Legislativo e vale neste caso o princípio da
separação. E, quando se fizer questão de disposições
da administração pública onde se reconheça
ilegitimidade ou inoportunidade, ele não pode anular
ou revogar, nem sequer parcialmente. Seus poderes,
terminada a fase de instrução, são poderes de
persuasão e de influência em relação à autoridade
administrativa diretamente interessada, ou poderes de
proposta para com as autoridades administrativas
superiores, jurisdicionais e legislativas.
No primeiro caso se diz que o Ombudsman é
essencialmente uma magistratura de influência em
relação
aos
órgãos
administrativos
cujo
comportamento ativo ou omisso censura. Seu controle
é exercido sobre o comportamento do órgão e, se
existirem, sobre os atos formais do mesmo. Mas a
censura é só sobre o órgão, nunca sobre as suas
disposições. O Ombudsman intervém usando de
recomendações ou exprimindo pareceres —
impróprios, já que sua função não é consultiva — para
estimular a autotutela administrativa. Em certos casos,
pode chegar à advertência e à admoestação.
No segundo caso, o Ombudsman funciona como
centro propulsor de ulteriores intervenções
OMBUDSMAN
de órgãos pertencentes aos três poderes tradicionais.
Quando verificar que a autoridade administrativa,
objeto do seu interesse, persiste em comportamentos
considerados insatisfatórios, o Ombudsman se dirigirá
ao superior hierárquico, para que se proceda inclusive
a ação disciplinar, ou então à autoridade jurisdicional.
Em alguns ordenamentos, era também reconhecido ao
Ombudsman o poder de iniciar ação penal dentro dos
critérios usuais do acusador público, mas tal poder
parece ter caído em desuso. Seus poderes mais
importantes são aqueles de que goza em relação ao
Parlamento, ao qual aponta as disfunções
administrativas e as situações de lesão de interesses,
quer de forma isolada, quer nos relatórios periódicos
que lhe tem de remeter, pelo menos uma vez ao ano.
Se durante as investigações vem a verificar
imperfeições em atos normativos, está também
previsto que o faça notar ao Governo.
Os procedimentos perante o Ombudsman estão
regulamentados por disposições minuciosas que
tendem a garantir, não obstante, uma grande
informalidade. São desenvolvidos, sob a iniciativa
unilateral do Ombudsman, por sujeitos privados, pelo
Parlamento e pelos seus próprios membros: a lei
inglesa prevê apenas esta última possibilidade. Em
caso de recurso de pessoas privadas, é exigida a forma
escrita, fornecimento de provas e uso de terminologia
apropriada. A apresentação do recurso obriga o
Ombudsman a responder. Uma solicitação
parlamentar obriga à apresentação de exposição
motivada.
Na fase preliminar, o Ombudsman decide da
própria competência. Recorde-se que não pode aceitar
recursos nem agir com autoridade, sempre que esteja
em questão assunto de importância política. Isto está
relacionado com o que se disse antes sobre as funções
hodiernas desta instituição: todas as legislações
concordam em excluir do Ombudsman o exame das
questões políticas, reservando-lhe apenas as
administrativas. Pelo que respeita à procedência, sua
ação é geralmente vedada pelo debate parlamentar
anterior ou contemporâneo. É complexo o problema
das relações entre os processos junto ao Ombudsman e
os processos administrativos e jurisdicionais: em
geral, observa-se a tendência a experimentar antes estes
últimos, mas não há uniformidade. Mas parece certo
que, na pendência de processos jurisdicionais, o
Ombudsman não pode agir.
Quando dada por certa a sua competência, o
Ombudsman inicia a fase de averiguação, onde usa
amplamente dos seus poderes de inspeção. São
particularmente extensivas as normas respeitantes à
aquisição de provas e às garantias dos sujeitos
envolvidos no processo. Concluído o processo, se os
resultados confirmarem as
841
observações iniciais, o Ombudsman adotará as
providências já lembradas.
V. O OMBUDSMAN NO ORDENAMENTO
ITALIANO. — A experiência do Ombudsman
escandinavo e a sua influência nas decisões adotadas
em numerosos ordenamentos acabaram por fazer com
que se encarasse a introdução desse instituto no
ordenamento italiano. Após uma série de debates
doutrinais, foram apresentadas propostas para a sua
adoção a nível nacional, mas sem êxito, enquanto, a
nível regional, os estatutos de três regiões de
autonomia ordinária previam a criação do ofício do
"defensor cívico", claramente inspirado no
Ombudsman. Trata-se dos estatutos das regiões da
Liguria (art. 14), Lazio (art. 38) e Toscana (art. 61) que
entraram em vigor, respectivamente, com a L.R. de 6
de junho de 1974, n.° 17, a L.R. de 28 de janeiro de
1980, n.° 17, e a L.R. de 21 de janeiro de 1974, n.° 8.
A estas disposições estatutárias • se hão de acrescentar
as iniciativas tomadas por outras regiões que
pretendem constituir o Ombudsman com base no
poder genérico da auto-organização atribuído pelos
estatutos às instituições regionais. Entre as numerosas
propostas apresentadas tanto nas regiões de estatuto
ordinário como nas de estatuto especial, já se
converteram em lei as da Campania L.R. de 11 de
agosto de 1978, n.° 23), da Umbria (L.R. de 22 de
agosto de 1979, n.° 48), da Lombardia (L.R. de 18 de
agosto de 1980, n.° 7), de Friuli-Venezia Giulia (L.R.
de 27 de abril de 1981, n.° 20) e da Puglia (L.R. de 9
de julho de 1981, n.° 38).
O defensor cívico, que revelam as normas regionais,
se configura como fiduciário do conselho regional, que
provê à sua nomeação bem como à sua eventual
destituição. O seu status tende a equiparar-se ao dos
conselheiros regionais. As funções que lhe são
atribuídas podem se resumir na vigilância sobre a
administração regional, para que esta possua uma
segura eficiência na satisfação dos interesses dos
administrados. Suas intervenções incidem sobre os
procedimentos administrativos onde estes se
desenvolvam de modo danoso para os interesses dos
administrados, por exemplo, com atrasos e
irregularidades, e não, portanto, quando se enfrentam
comportamentos da administração que podem ser
condenados, sob o aspecto do mérito e da
legitimidade, perante a justiça administrativa. Está, de
qualquer modo, taxativamente excluído o recurso ao
defensor cívico em pendências de procedimentos
administrativos e jurisdicionais.
A intervenção do defensor pode efetuar-se de ofício
ou em virtude de o interessado dirigir solicitação
documentada prévia, procrastinada pela administração.
O defensor cívico intervém para
842
OPINIÃO PÚBLICA
examinar o estado do exercício da prática
administrativa; tem o direito de obter as informações
oportunas e pode pedir para examinar a prática
vinculada
ao
ofício
competente,
fixando
eventualmente um termo para a regularização e
aperfeiçoamento dos processos. Quando continuam as
irregularidades, as insuficiências e descumprimentos
que envolvem violação do princípio de eficiência da
ação administrativa, faz a denúncia ao superior
hierárquico com vistas a eventuais sanções
disciplinares. Sempre que surjam hipóteses de reato,
apresenta uma exposição à autoridade judiciária e
penal. Além disso, são sempre enviados relatórios
semestrais ou anuais ao conselho regional sobre os
resultados das verificações ocorridas.
O defensor cívico não possui, pois, particulares
poderes de sanção em relação à administração, mas,
mediante a intervenção em cada um dos processos, as
advertências que pode enviar à administração e os
relatórios que dirige ao Conselho, parece poder
exercer uma certa influência na correção da ação
administrativa regional.
BIBLIOGRAFIA. — R BIN. Il difensore cívico in
Toscana: metamorfosi di un istituto?. in "Le Regioni".
1977, n.° 5; G. DE VERGOTTINI, Sull'istituzione di un
commissario parlamentare alle forze armate. in
"Rivista trimestrale di diritto pubblico", 1970; Id.,
L'Ombudsman: esperienze e prospetlive, in "Diritto e
società", 1973, n.° 3; Id., Ombudsman. in Enciclopedia
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trimestrale di diritto pubblico", 1974; W. GELLHORN.
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Cambridge, Mass. 1966; A.
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Sull'evoluzione del commissario parlamentare in
alcune esperienze costituzionali europee, in "Annali
della Facottà di scienze politiche dell'Università di
Gênova", 1973, I, e 1974, II; A. LEGRAND,
L'Ombudsman scandinave. Pinchon. Paris 1970;
L'Ombudsman (il difensore cívico), sob a
responsabilidade de C. MORTATI, UTET, Torino 1974;
G NAPIONE, L'Ombudsman, Giuffrè, Milano 1969; G.
PIRAS. L'Ombudsman in Italia nella dottrina e nella
legislazione: bilancio di dieci anni (1965-1975). in
"Giurispnidenza italiana", 1976, IV; I. E. PITARCH, El
Ombudsman en el Estado intervencionista. in AUT.
VÁR., El control parlamentario del gobierno en Ias
democracias pluralistas. Barcelona 1978; D. C.
ROWAT, The Ombudsman. citizen's defender, Allen and
Unwin, London 1968; Id., The Ombudsman plan,
MacLelland and Stewart, Toronto 1973; Ricerca sul
comissario parlamentare. Segretariato generale della
Camera del deputati. Roma 1971; F. TERESI, Brevi
osservazioni sull'Ombudsman delle Regioni. 'in "Atti
del XII convegno di
Studi di
scienza
dell'Amministrazione", Giuffrè, Milano 1972.
[GIUSEPPE DE VERGOTTINI]
Opinião Pública.
I. DEFINIÇÃO. — A Opinião pública é de um duplo
sentido: quer no momento da sua formação, uma vez
que não é privada e nasce do debate público, quer no
seu objeto, a coisa pública. Como "opinião", é sempre
discutível, muda com o tempo e permite a
discordância: na realidade, ela expressa mais juízos de
valor do que juízos de fato, próprios da ciência e dos
entendidos. Enquanto "pública", isto é, pertencente ao
âmbito ou universo político, conviria antes falar de
opiniões no plural, já que nesse universo não há
espaço apenas para uma verdade política, para uma
epistemocracia. A Opinião pública não coincide com
a verdade, precisamente por ser opinião, por ser doxa
e não episteme; mas, na medida em que se forma e
fortalece no debate, expressa uma atitude racional,
crítica e bem informada.
A existência da Opinião pública é um fenômeno da
época moderna: pressupõe uma sociedade civil
distinta do Estado, uma sociedade livre e articulada,
onde existam centros que permitam a formação de
opiniões não individuais, como jornais e revistas,
clubes e salões, partidos e associações, bolsa e
mercado, ou seja, um público de indivíduos
associados, interessado em controlar a política do
Governo, mesmo que não desenvolva uma atividade
política imediata.
Por isso, a história do conceito de Opinião pública
coincide com a formação do Estado moderno que,
com o monopólio do poder, privou a sociedade
corporativa de todo o caráter político, relegando o
indivíduo para a esfera privada da moral, enquanto a
esfera pública ou política foi inteiramente ocupada
pelo Estado. Mas, após o advento da burguesia, ao
constituir-se dentro do Estado uma sociedade civil
dinâmica e articulada, foi se formando um público que
não quer deixar, sem controle, a gestão dos interesses
públicos na mão dos políticos. A Opinião pública foi
levada deste modo a combater o conceito de segredo
de Estado, a guarda dos arcaria imperii e a censura,
para obter o máximo de "publicidade" dos atos do
Governo.
II.
A OPINIÃO PÚBLICA ENTRE A
MORAL E A POLÍTICA. — Enquanto para Hobbes, o
maior teórico do absolutismo, a Opinião pública é
condenável por introduzir no Estado um germe de
anarquia e de corrupção, a primeira reivindicação
clara da sua autonomia só se dá com o pensamento
liberal. Em seu Ensaio sobre a inteligência humana, J.
Locke fala de uma "lei da opinião ou reputação", que é
uma verdadeira e autêntica lei filosófica: ela é a norma
das ações, serve para
OPINIÃO PÚBLICA
julgar se elas são virtuosas ou viciosas. Ao formar a
sociedade política, os homens abdicaram, a favor do
poder político, do uso da força contra 06 concidadãos,
mas mantiveram intangível o poder de julgar a virtude
e o vício, a bondade e maldade das suas ações. A lei
da opinião se coloca perto da lei divina e da lei civil;
sua sanção é a exprobração e o elogio, por parte da
sociedade, desta ou daquela ação. Sendo juízo
expresso pelos cidadãos, apoiado em oculto e tácito
consenso, toda a sociedade, de acordo com seus
próprios costumes, estabelecerá leis de opinião, que
serão diversas conforme os países. Na estruturação do
Estado liberal esboçada por Locke, é de salientar uma
radical distinção entre a lei moral, expressa pela
Opinião pública, e a lei civil, expressa pela assembléia
representativa, verdadeira e autêntica distinção entre o
poder político e o poder filosófico. E claro o contraste
entre moral e política. A moral, no entanto, não se
erige em tribunal da política, dado que Locke fala,
não de um Estado absoluto, mas de um Estado liberal
representativo.
Em Rousseau a Opinião pública continua a
expressar juízos morais, mas tais juízos estão em
consonância direta com a política e com os canais
institucionais por meio dos quais se exprimem. De
fato, no Contrato social, revaloriza a instituição da
censura, sendo o censor o ministro da lei da Opinião
pública: "Assim como a declaração da vontade geral
se faz por meio da lei, assim também a declaração do
juízo público se faz por meio da censura". O censor
não é o árbitro da opinião do povo, mas apenas sua
expressão; não pode, portanto, afastar-se do costume.
Deste modo, se a censura pode ser útil para conservar
os costumes, não o é para os restabelecer, quando se
corrompem. Rousseau que, com sua "vontade geral",
quer superar a distinção entre política e moral,
apresenta uma estreita correlação entre soberania
popular e Opinião pública, leis e costumes, política e
moral, vendo na Opinião pública a "verdadeira
constituição do Estado". Não pôde desenvolver mais
seu pensamento, já porque em sua democracia direta
não se pode dar aquela tensão entre esfera privada e
esfera pública, que é própria do Estado moderno, onde
há espaço para a Opinião pública, já porque ele define
como tal o que são mais propriamente "costumes",
herança do passado ou criações espontâneas nunca
certamente o resultado de uma discussão pública
racional, como acontece com uma verdadeira e
autêntica Opinião pública.
Quem tratou de modo mais sistemático da função
da Opinião pública no Estado liberal foi Emmanuel
Kant, se bem que não use este termo, mas o de
"publicidade" ou de "público".
843
Perguntando a si mesmo Que é o Iluminismol,
responde que ele consiste em "jazer uso público da
própria razão em todos os campos"; é o uso que dela
se faz "como estudioso perante a totalidade do público
dos leitores", como membro da comunidade e
dirigindo-se a ela. Este "uso público" da razão, que há
de ser sempre livre, possui uma dupla função e tem em
vista dois destinatários. Por um lado se dirige ao povo,
para que se torne cada vez mais capaz de liberdade de
agir, enquanto na comunicação da própria opinião se
tem a confirmação da sua verdade pelo consenso dos
demais homens. Por outro, se dirige ac Estado
absoluto, para lhe mostrar que é vantajoso tratar o
homem, não como uma "máquina" de acordo com as
regras do Estado de polícia, mas segundo sua
dignidade; deve chegar até os tronos, para fazer sentir
sua influência nos princípios do Governo, para fazer
ouvir os lamentos do povo. Depois da Revolução
Francesa, em Pela paz perpétua e Se o gênero humano
está em constante progresso para melhor, o conceito
de "publicidade" é mais bem explicado por Kant no
âmbito do ideal da constituição republicana. Antes de
tudo, quem deve esclarecer o povo sobre os seus
direitos e deveres não deverão ser pessoas oficiais
designadas pelo Estado, mas livres cultores do direito,
filósofos: aqui, na desconfiança para com o Governo,
pronto sempre a dominar, fica clara a distinção entre
política e moral, e a autonomia da sociedade civil,
composta de indivíduos autônomos e racionais, em
face do Estado. Ligada a tal concepção, a publicidade
serve para superar o conflito existente entre política e
moral, para superá-lo pelo ideal do direito, o único
que pode alicerçar a paz: "a verdadeira política não
pode fazer qualquer progresso, se antes não prestar
homenagem à moral; e, embora a política seja por si
mesma uma arte difícil, sua união com a moral não é
de modo algum uma arte, pois que esta corta os nós
que aquela não pode desatar, mal surge o conflito
entre ambas". A publicidade é justamente o que
constrange a política "a dobrar o joelho diante da
moral", serve de mediadora entre política e moral,
entre Estado e sociedade, e se torna assim um espaço
institucionalizado e organizado no âmbito do Estado
de direito liberal, onde os indivíduos autônomos e
racionais procedem, pelo debate público, à
autocompreensão e entendimento.
O pensamento liberal inglês e francês dá
continuidade, com Burke e Bentham, Constant e
Guizot, ao pensamento de Locke, mas com uma
novidade fundamental: acentua a função pública, ou,
melhor, política, da Opinião pública como instância
intermédia entre o eleitorado e o poder legislativo. A
Opinião pública tem por função
844
OPINIÃO PÚBLICA
permitir a todos os cidadãos uma ativa participação
política, colocando-os em condições de poder discutir
e manifestar as próprias opiniões sobre as questões de
geral interesse: é assim que a agudeza e sabedoria
políticas se estendem para além dos governantes e as
discussões do Parlamento são parte das discussões do
público. Se de um lado isto serve de controle ou
virtual oposição à classe política, de outro favorece a
onipotência do Parlamento, quando se governa sob o
consenso da Opinião pública: esta é um tribunal da
política, um tribunal que talvez possa errar, mas que é
"incorruptível". Mas, para que a Opinião pública
possa desempenhar sua função, é necessária a
"publicidade" das discussões parlamentares e dos atos
do Governo, e a plena liberdade da imprensa.
Benjamin Constant estuda, além disso, todas as
reformas institucionais (as leis eleitorais, por
exemplo), para levar a Câmara dos deputados a ser a
expressão da Opinião pública, que, para ele, em muitos
casos, se mostrou bastante mais avançada que a
representação nacional, e para impedir que as
assembléias adquiram um espírito de corpo que as
isole da Opinião pública.
III. A CRISE DA OPINIÃO PÚBLICA. — Uma primeira
desvalorização da Opinião pública, em cotejo com a
ciência, ocorre em Hegel, em Filosofia do direito; é
uma desvalorização paralela à da sociedade civil em
relação ao Estado. A Opinião pública é, para Hegel, a
manifestação dos juízos, das opiniões e dos pareceres
dos indivíduos acerca dos seus interesses comuns.
Trata-se de um saber apenas como fenômeno, como
conjunto acidental de modo de ver subjetivos, que
possuem uma generalidade meramente formal,
incapaz de atingir o rigor da ciência. A sociedade
civil, onde se forma a Opinião pública, é, de igual
modo, um conjunto anárquico e antagônico de
tendências que não elimina a desigualdade. Dos
interesses particulares não se chega à universalidade,
porque a sociedade civil está desorganizada: por isso, o
auto-entendimento da Opinião pública não se pode
apresentar como razão; se, mediante o poder
Legislativo do Estado de direito, se eleva o grupo dos
particulares à participação da coisa universal,
permuta-se o Estado com a sociedade civil, levando a
desorganização desta ao seio daquele, o qual, se quiser
ter universalidade, tem de ser orgânico. No Estado
orgânico, existe uma integração dos cidadãos a partir
do alto, uma real superação da sociedade civil, a
passagem do bom senso à "ciência", só possível em
política, quando os indivíduos adotam o ponto de vista
do Estado, que é a objetivação do Espírito absoluto.
Uma análoga depreciação da Opinião pública a
encontramos em Marx, a partir da Crítica da filosofia
hegeliana do direito público. Em Questão hebraica,
ele observa que, com a formação do "Estado político",
foi neutralizada e despolitizada a sociedade civil,
baseada nas castas e nas corporações, sendo
contrapostos, de um lado, os indivíduos e, do outro, o
espírito político universal, que se presume
independente dos elementos particulares da vida civil.
A Opinião pública é só falsa consciência, ideologia,
pois, numa sociedade dividida em classes, emascara o
interesse da classe burguesa: o público não é o povo, a
sociedade burguesa não é a sociedade geral, o
bourgeois não é o citoyen, o público dos particulares
não é a razão. A Opinião pública é, portanto, apenas a
ideologia do Estado de direito burguês. Contudo, com
a ampliação do sufrágio universal, há uma tendência
da sociedade a dar a si própria uma existência
política: a arma da publicidade, inventada pela
burguesia, tende a voltar-se contra ela. Quando a
sociedade civil tiver uma completa existência política,
cessará, com a abolição das classes, a sua
contraposição ao Estado, porquanto as novas classes,
não mais burguesas, já não terão interesse em manter
a sociedade civil como esfera privada da propriedade,
separada da política. Só então a Opinião pública
realizará a total racionalização do poder político até o
ponto de o abolir, porque o poder político se
constituiu pela opressão de uma classe sobre outra. O
poder político se dissolverá no poder social e a
Opinião pública poderá assim desenvolver
plenamente as suas funções políticas; com a
desaparição da esfera privada, dar-se-á a identidade
entre homme e citoyen.
Também a geração dos liberais que sucedeu aos
Constant e aos Bentham começou a temer que a
Opinião pública não fosse assim tão "incorruptível"
como havia crido a anterior: o perigo da corrupção
não vinha tanto do Governo, como da própria
sociedade, através do despotismo da maioria ou o
conformismo de massa. Alexis de Tocqueville, em
Democracia na América, e, na sua esteira, John Stuart
Mill, em Sobre a liberdade, mostram como o
despotismo da massa opera não tanto através da
autoridade pública, por meio do aparelho coercitivo
do Estado, quanto sobretudo mediante pressão
psicológica da sociedade sobre a alma e não sobre o
corpo do indivíduo, para quem então só resta a
dramática escolha entre o conformismo e a
marginalização. Há aí um controle social mais que um
controle político, a impedir o livre desenvolvimento da
personalidade individual e a formação de um público
de indivíduos que use da razão para raciocinar. A
crise da Opinião pública é, aliás.
OPORTUNISMO
devida a outros dois fatores: de um lado, ao eclipse da
razão que, para demonstrar sua legitimidade, tem que
demonstrar ser útil praticamente e tecnicamente
avaliável para o bem-estar, para o qual ela se reduz ao
cálculo mercantil, não buscando mais, no diálogo
racional, a universalidade das opiniões; de outro, à
"indústria cultural" que transforma as criações
intelectuais em simples mercadoria destinada ao
sucesso e ao consumo, sendo o desejo da glória
suplantado pelo do dinheiro. O diálogo ideal do
iluminista com o seu público, pretendido por Kant,
não tem assim condições de se poder realizar.
A sociologia crítica atual aceitou algumas das
intuições de Tocqueville, para provar o
desaparecimento ou declínio da Opinião pública. Com
o triunfo do "grande", deixaram de existir os lugares
que facilitavam a formação, através do diálogo, da
Opinião pública: em lugar da sala de reuniões, temos
a televisão; os jornais tornaram-se empresas
especulativas; as associações e os partidos são
dirigidos por oligarquias; os espaços da formação da
Opinião pública não são autogovernados, mas
administrados por potentes burocracias. Além disso,
no Estado contemporâneo, vai desaparecendo a
distinção entre Estado e sociedade civil, já que ambas
as realidades se compenetraram, dando lugar à
formação de uma classe dirigente que, ávida do poder,
pode manipular facilmente a Opinião pública. A isto
só se poderá pôr remédio criando espaços
institucionais que permitam tornar efetiva a liberdade
de expressão, de associação e de imprensa, por meio
de uma real participação dos cidadãos na formação da
Opinião pública. É preciso obrigar as organizações
que controlam os meios de comunicação de massa, a
desenvolver sua função no sentido da criação de um
diálogo, assente num processo de pública
comunicação e não no da manipulação de um público
atomizado, que tem hoje na "publicidade", não um
instrumento de liberdade racional, mas de sujeição ao
sistema produtivo. Em suma, é preciso reinventar
soluções institucionais que devolvam à publicidade o
elemento que a distinguia: seu poder de crítica.
A experiência dos regimes totalitários, onde a
"publicidade" kantiana se converteu em propaganda, e
a existência das novas tecnologias dos meios de
comunicação de massa, que fazem perder o hábito da
crítica, ofuscaram certamente a imagem da Opinião
pública. Contudo, o mito das massas, totalmente
passivas e dóceis à publicidade, tem sido
desencantado e, por conseguinte, a Opinião pública se
pode afirmar onde quer que exista liberdade de
pensamento e de expressão, pluralidade e pluralismo
de órgãos de informação autônomos ou não
controlados pelos políticos: neste policentrismo, com
equilíbrio, sempre se
845
pode formar a Opinião pública num duplo processo,
de baixo para cima e vice-versa, através dos líderes de
opinião, tanto a nível local como nacional.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., Nascita dell'opinione
pubblica in Inghilterra. ao cuidado de A. CARACCIOLO e
R. M. COLOMBO, fasciculo especial de "Quaderni
storici", XIV. setembro-dezembro de 1979; H. L.
CHILDS, Public opinion; nature, function and role, Van
Nostrand, Princeton 1965; L. COMPAGNA, Alle origini
della liberta di stampa nella Francia della
restaurazione. Laterza, Bari 1979; J. HABERMAS,
Storia e critica dell'opinione pubblica (1962), Laterza,
Bari 1971; R. KOSELLECK, Critica illuministica e crisi
della società borghese (1959), Il Mulino, Bologna
1972; H.D. LASWELL, e outros, Propaganda,
communication and public opinion, Princeton
University Press. Princeton 1946; N. MATTEUCCI,
Opinione pubblica, in "Enciclopaedia del diritto", vol.
XXX, Giuffrè, Milano 1980; A. SAUVY. L'opinion
publique, Presses Universitaires de France, Paris 1964.
[NICOLA MATTEUCCI]
Oportunismo.
Entende-se por Oportunismo a busca do proveito
pessoal no desenvolvimento de qualquer atividade
política, sem nenhuma consideração pelos princípios
ideais e morais. O Oportunismo distingue-se da
corrupção (v. CORRUPÇÃO) em dois aspectos. A
corrupção é típica do funcionário público, estatal,
enquanto o Oportunismo diz respeito a qualquer
pessoa que exerça uma atividade política, sobretudo
em organizações não estatais como os partidos
políticos e as associações sindicais. Com a corrupção
se favorecem mais os interesses particulares de um
grupo que os interesses pessoais; com o Oportunismo,
pelo contrário, é a consecução de vantagens puramente
pessoais que acaba por orientar a atividade política.
O Oportunismo surge nas situações de crise ou de
transição e prospera, enquanto tais situações não
hajam mudado e o processo político não tenha sido
convenientemente institucionalizado; mas ele também
contribui para a criação e permanência das situações
de crise. Estas situações são fundamentalmente
períodos em que se verifica a transferência do poder
de uma para outra classe, durando até que tal
transferência se consuma totalmente. Por conseguinte,
é sobretudo nas sociedades com instituições políticas
ainda não solidamente legitimadas que medra o
Oportunismo político.
846
OPOSIÇÃO
São três os fatores fundamentais de que depende o
Oportunismo político: a composição da classe
política, a cultura política dos componentes do sistema
político e a rapidez das mudanças sócio-políticas. O
Oportunismo é tanto maior e tanto mais difuso quanto
mais heterogênea é a classe política, quanto mais a
cultura política ressalta o sucesso pessoal e quanto
mais profundas e complexas são as mudanças sóciopoliticas. Depende, além disso, das características
sócio-econômicas da sociedade e do tipo de processo
político predominante. É provável que o Oportunismo
cresça simultaneamente com a possibilidade de obter
ganhos pessoais no exercício da atividade política e
com a possibilidade de fugir às sanções (possibilidades
que dependem da fragilidade das estruturas e da
debilidade da disciplina dos partidos); mas ele cresce
sobretudo quando a atividade política se constitui o
único caminho do sucesso, ou o mais rápido, e quando
condiciona todas as demais atividades, representando o
meio mais seguro para adquirir status, riqueza e poder.
Neste último caso, o Oportunismo tende a obter seu
máximo desenvolvimento nas sociedades que se
modernizam, não só quando o poder estatal constitui o
fulcro do sistema político, econômico e social, como,
sobretudo, quando o poder econômico alcançou tal
desenvolvimento que condiciona todo o tipo e nível de
atividade política. São as elites em declínio como as
elites nascentes que se mostram, em tais sociedades,
mais propensas ao Oportunismo, quer para manter as
vantagens pessoais que se desvanecem com a própria
classe, quer para conquistar tais vantagens
antecipadamente. O índice de Oportunismo parece
estar ligado ao grau de participação política e ao tipo
de estruturas onde a participação se manifesta. Assim,
onde a participação é limitada, e as elites concorrentes
bem como as organizações políticas são embrionárias,
o Oportunismo é elevado. Onde a participação é vasta,
onde as elites são concordes sobre os princípios
fundamentais do sistema e as organizações políticas
são sólidas, o Oportunismo é limitado e não compensa;
pode até acontecer que seja contraproducente para
quem a ele recorra
Na linguagem política marxista. Oportunismo é o
contrário de dogmatismo. Enquanto com o
dogmatismo se quer indicar uma rígida e excessiva
adesão aos princípios marxistas, uma adesão que
exclui qualquer tentativa de os adaptar criticamente às
mutáveis situações políticas, com o Oportunismo se
faz referência a uma também excessiva desenvoltura e
flexibilidade na interpretação dos mesmos princípios.
Em ambos os casos, contudo, a conseqüência pode ser
a esclerose da ação política revolucionária. Enquanto
os dogmáticos se situam geralmente à esquerda, os
oportunistas se colocam à direita, pois renunciam de
fato à revolução reconhecendo-a de palavra, não
aceitam romper definitivamente com a burguesia, não
crêem na ditadura do proletariado e admitem a
conquista do poder sem a destruição da máquina do
Estado e sem a eliminação da burocracia.
Conseqüentemente, "os oportunistas não acham nada
melhor que deixar tranqüilamente ao futuro todas as
questões capitais relativas às tarefas da revolução
proletária" (Lenin).
[GIANFRANCO PASQUIM]
Oposição.
I. DEFINIÇÃO. — O termo Oposição, um tanto difícil
de definir como todos os termos essenciais das
ciências sociais, nasce das funções inerentes ao papel
que os grupos ou indivíduos assumem e desempenham
no contexto da sociedade. Este modo de ver e entender
a Oposição não se acha, portanto, separado da análise
dos papéis e relações segundo os quais agem, por
exemplo, A e B, os quais, quando um adota uma
posição, o outro lhe contrapõe uma posição igual e
contrária. O que nos interessa não é tanto A, B ou C...
quanto o papel que eles têm e a função que
desempenham dentro de uma relação política,
sabedores de que o papel da Oposição pode ser
executado, de vez em vez, segundo um sem-número
de variáveis, dentre as quais indicamos o tempo e os
objetivos, ora por A, ora por B, ora por C..., etc.
Podemos assim definir a Oposição como a união de
pessoas ou grupos que objetivam fins contrastantes
com fins identificados e visados pelo grupo ou grupos
detentores do poder econômico ou político; a estes,
institucionalmente reconhecidos como autoridades
políticas, econômicas e sociais, opõem os grupos de
oposição sua resistência, servindo-se de métodos e
meios constitucionais e legais, ou de métodos e meios
de outros tipos, mesmo ilegais e violentos. De tudo isto
se pode deduzir um novo e mais específico significado
de Oposição. Falamos daquele tipo particular de
Oposição política que é a oposição parlamentar, a que
hoje se faz geralmente referência, quando, num
regime liberal-democrático, se fala simplesmente de
Oposição. Num regime de Governo parlamentar, o
papel e função da Oposição são reconhecidos e
tutelados pela Constituição, bem como pelas leis que
sancionam os modos, os tempos e as formas em que o
direito à Oposição pode ser exercido. Mas a Oposição
parlamentar, embora seja o modelo mais comum e
importante, não
OPOSIÇÃO
esgota a tipologia da Oposição. De fato, já que, como
se viu, a Oposição, constituída por grupos, mesmo
ligados entre si como os partidos, opera dentro de um
sistema social mais amplo de que o sistema político é
apenas uma parte ou subsistema não indiferente, vai
hoje adquirindo cada vez maior relevo um vasto
movimento de oposição às instituições (políticas,
econômicas, culturais) que não se serve dos clássicos
canais de manifestação das divergências de opinião e
dos conflitos, reconhecidos como legítimos pelo
sistema e a ele adequados, mas que, procurando
envolver a maior parte da base populacional, opera
servindo-se de ações enérgicas e/ou métodos e meios
violentos na conquista de seus objetivos, a mudança
radical e global do sistema.
Neste caso, nos encontramos diante daquela
Oposição que é definida como anti-sistema ou extrasistema. Ao passo que no modelo de sistema político
que se apóia num sistema de crenças liberaldemocráticas (modelo de regime pluralista ou
poliárquico), é possível encontrar Oposições extrasistema, também chamadas Oposições ilegítimas, ao
lado de Oposições legítimas, que são as que agem
dentro dos valores e limites claramente partilhados pela
sociedade, no modelo de sistema político de inspiração
autoritária (modelo de regime hegemônico), a
Oposição, embora proibida, continua a ter vida, de
modo clandestino, atuando através dos canais de
difusão e de agregação do consenso dentro do partido
único ou da sociedade, sob duas formas: a) como
Oposição subsersiva ou Oposição anti-sistema em
sentido estrito; b) como Oposição fracionária de
grupo de poder ou de facção ideologicamente
integrada, mas de modo mais ou menos
acentuadamente desviada e discorde da linha oficial de
gestão do sistema quanto aos modos e tempo de
alcançar os objetivos, aliás unicamente aceitos. A
acusação dirigida pelos inimigos contra este tipo de
Oposição é, em geral, a de constituir um grupo
antipartidário e/ou revisionista. Num regime de
democracia representativa (modelo poliárquico),
podemos também, sempre no âmbito da Oposição
extra-sistema, assinalar outra divisão: a) a Oposição
anti-sistema que, embora rejeite em princípio o
modelo de sociedade existente e proponha,
conquistado o poder, sua substituição por outro, aceita,
contudo, tacitamente o papel que funcionalmente lhe é
reservado, assim como as regras de jogo conseqüentes;
b) a Oposição extra-sistema que nasce da
"contestação" de grupos ou grupúsculos, de leadership
essencialmente intelectual (por exemplo, a "New left"
ou "Nova esquerda" americana), que pretendem
restringir as normas do sistema político à interpretação
que o grupo apresenta das normas gerais desse sistema,
considerando as aplicações feitas como abusivas e não
847
correspondentes às aplicações originais, que eram as
certas. Tal ação se traduz primeiro na exigência de
maior socialidade, liberdade, igualdade, etc, e se
transforma depois em Oposição extra-sistema, à
medida que o movimento afronta o insucesso com a
recusa por parte do establishement (Governo e
oposições legítimas) em aceitar as reivindicações. Isto
poderá levar à total radicalização, por se entender que
o grupo contestador excede os limites impostos pelo
subsistema político, para atropelar todo o modelo de
desenvolvimento da sociedade. Neste sentido, a
transformação dos grupos representativos da minoria
negra dos Estados Unidos em Oposição extra-sistema
é exemplar. Trata-se de uma Oposição que, não
obstante dar sempre preferência ao fator político, é
mais simplesmente definida como Oposição
extraparlamentar (v. abaixo), por sua específica
rejeição da instituição parlamentar e sua perspectiva
revolucionária. A Oposição extra-sistema tende a
construir um modelo absolutamente novo (de
sociedade e sistema político) em relação aos
existentes.
II. FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DA OPOSIÇÃO. — Se,
portanto, falamos de Oposição referindo-nos a
qualquer movimento contrário ao grupo e movimento
político detentor do poder, é possível pensar que a
Oposição data dos primórdios da organização política
da sociedade. Elemento fundamental da democracia, a
Oposição achou meio de se exprimir na antigüidade
em formas similares às modernas, na Grécia e,
particularmente, em Atenas, no período do seu maior
esplendor. Contudo, é depois de sucessivos períodos
de mudanças e vicissitudes, que a Oposição política
chega a concretizar-se no modelo específico da
Oposição parlamentar, aparecendo historicamente pela
primeira vez na Inglaterra do século XVIII, com seu
significado e conteúdo modernos. Este primeiro
modelo, baseado no conceito de que no Parlamento
havia de ser politicamente representado todo o povo,
era caracterizado pela alternância no Governo de dois
grupos socialmente homogêneos, os Whigs e os Tories,
que compartilhavam o mesmo objetivo comum de
manter o sistema numa visão substancialmente
unitária do quadro político geral, enquanto divergiam
sobre a estratégia e, em parte, sobre os fins últimos do
desenvolvimento do país. Em tal situação, os contrastes
eram mais de caráter pessoal que de tipo políticoideológico. Isso não impediu, porém, que, no decurso
do mesmo século XVIII e começos do XIX, tal hábito
e método de fazer Oposição se enraizassem de tal
maneira no ânimo dos cidadãos que, mesmo depois das
reformas eleitorais de 1867, que reconheceram o direito
do voto aos operários da indústria, e da de 1884, que
estendiam o mesmo direito aos trabalhadores agrícolas,
favorecendo assim o
848
OPOSIÇÃO
surgimento dos partidos de massa típicos da
democracia
moderna,
eles
se
mantiveram
essencialmente intangíveis, conquanto os conflitos
entre maioria e minoria da Oposição não estivessem já
marcados e dominados pela personalidade dos líderes,
mas por visões do quadro político geral, cada vez mais
diametralmente opostas e ideologicamente distantes,
mesmo se globalmente aceita a validade do sistema e
do contexto sócio-econômico. O sistema de Governo
se consolidou, baseando-se na alternância da maioria e
minoria, esta transformada, por seu turno, de
Oposição em partido do Governo, sob a guia do
Executivo. O sistema, que tinha dado boa prova de si e
obtido resultados consideráveis, passou da Inglaterra,
graças também às teorizações levadas a termo pelos
pensadores políticos do século XVIII e XIX, a muitos
outros
Estados,
tornando-se,
com
algumas
modificações mais formais do que substanciais, o
modelo de todos os regimes democráticos onde a
Oposição, como organização aglutinante da dissensão,
possui, não apenas por definição, um papel e uma
função sumamente importantes, que caracterizam o
próprio sistema.
Assim, do primeiro modelo de regime parlamentar,
onde o líder da maioria é também chefe do Governo,
como na Inglaterra, se passou, onde ele não pôde ser
posto em prática, por diferentes e diversos motivos
histórico-políticos e pela escolha de sistemas de eleição
proporcional, a Governos de coalizão entre forças
políticas homogêneas, sendo a Oposição não já
representada por um só grupo de minoria, mas cada
vez mais por grupos nem sempre homogêneos e
ideologicamente afins. Se bem que, mediante
estratégias e objetivos finais diferentes e o mais das
vezes divergentes entre si, estes grupos se propõem,
como objetivo comum imediato, substituir a maioria
no exercício do poder político.
que constituem o quadro institucional delimitador e
regulador do jogo das forças políticas do sistema:
referimo-nos às estruturas constitucionais, aos
sistemas eleitorais, à organização administrativa, à
burocracia estadual e local, etc. A par de tais
condições, podem se encontrar outras de igual valor e
importância, relativas à formação histórico-cultural da
sociedade, ao seu grau de cultura política e à sua
modernização. A estas se poderá acrescentar ainda
uma série de condições secundárias e dependentes,
entre as quais poderemos indicar, como mais
influentes na diversificação das Oposições de Estado
para Estado, os diferentes sistemas de crenças, os
graus e níveis de conflito, de desagregação e de
agregação de tendências e opiniões diferentes ou
contrastantes, e grau de polarização do sistema
político.
Do exame global destas condições, primárias e
secundárias, dentro das quais atua a Oposição, é
possível extrair algumas considerações importantes,
conquanto sumárias, e certas conclusões. Em primeiro
lugar, resulta claro que as condições primárias podem
variar,
dentro
de
uns certos limites
e
independentemente umas das outras; mas, quando tais
limites são em certa medida ultrapassados e as
condições singulares sensivelmente modificadas, há
uma série de reações nas relações entre as próprias
condições primárias e entre estas e as dependentes
secundárias que originam uma forte pressão para a
modificação das demais, aumentando assim o grau de
probabilidade da mudança do modelo de oposição
existente. Em segundo lugar, quando em dois países há
notáveis diferenças, mesmo em relação a uma única
condição das acima referidas, pode-se afirmar com
muita probabilidade que também seus modelos de
Oposição são diferentes. De tudo isto se conclui que,
antes de procedermos à análise e comparação de dois
ou mais modelos de Oposição existentes em vários
III. ESTRUTURA E FUNÇÕES DA OPOSIÇÃO. — Neste sistemas políticos, é necessário analisar as condições
contexto, é constitucionalmente reconhecida à primárias e secundárias, bem como as interações que
Oposição a função da limitação e do controle crítico as ligam, subjacentes a tais modelos.
do poder da maioria, controle e limitação que se
Elemento característico
e distintivo
das
exercem, no plano formal, mediante o exame da democracias, a Oposição não é, pois, como vimos,
legitimidade da atividade legislativa desenvolvida pela redutível a um só modelo. Isso não impede, contudo,
maioria, e, no plano essencial, mediante a defesa dos que possamos identificar um conjunto de características
direitos das minorias dissidentes e a alternativa e elementos comuns aos vários modelos que permitam
política do poder.
chegar, quando menos, a uma esquemática mas
As condições nas quais e pelas quais nasce, vive e significativa estrutura de classificação. A este
se desenvolve a Oposição são as mais variadas, estando propósito, segundo Robert A. Dahl em Political
ligadas não só ao quadro político geral, mas também à opositions in western democracies (1966), podemos
situação sócio-econômica do sistema onde ela opera e distinguir seis elementos mais importantes, sobre os
às condições histórico-políticas internacionais. Outra quais é possível fundamentar uma análise comparativa
série de elementos, de que não podemos prescindir dos modelos de Oposição. São: 1) coesão orgânica ou
numa análise da solidez e funcionamento de qualquer concentração dos opositores; 2) caráter competitivo
Oposição, está no conjunto das estruturas chamadas da Oposição; 3) pontos-chaves de desenvolvimento
formais
OPOSIÇÃO
da competitividade entre a Oposição e a maioria; 4)
caráter distintivo e identificável da Oposição; 5)
objetivos da Oposição; 6) sua estratégia.
Se excetuarmos a Oposição que definimos como
extraparlamentar, a expressão mais visível da
Oposição está hoje nos partidos; que são os agentes de
agregação da demanda política; é à analise do
subsistema partidário que é preciso recorrer, para
poder individualizar e classificar esses elementos. As
hipóteses então possíveis, mediante a combinação dos
diversos elementos, são múltiplas; contudo, só usando
alguns desses elementos se poderá obter pluralidade de
modelos, enquanto, na realidade, cada um desses
elementos singulares, sob o aspecto modelar, não
apresenta senão poucas mas precisas variáveis. Assim,
em relação (1) à coesão orgânica ou concentração dos
opositores, é possível verificar que, numa situação de
bipartidarismo, existe maior grau de concentração das
Oposições do que numa situação de pluripartidarismo,
onde há uma tendência à polarização competitiva. No
seio de cada partido, devido a um conjunto de
variáveis que vão da busca de liderança e, em geral,
das oposições de poder às diversas escolhas
estratégicas, poder haver níveis de coesão desiguais,
determinados pelo número e combatividade das
facções. Será interessante acrescentar que, no caso de
um sistema de partido único, a Oposição, não podendo
manifestar-se abertamente, tenderá a agir de
preferência dentro do próprio partido. O grau de
concentração das Oposições é também, em parte, causa
determinante (2) do caráter competitivo, competitivocooperativo ou de coalizão do partido ou partidos da
oposição em relação ao partido ou partidos do
Governo. Em caso de bipartidarismo e de partidos de
tendência fortemente unitária, o caráter de
competitividade alcançará sua máxima expressão nas
eleições políticas gerais e nas votações parlamentares
que caracterizam a política da maioria, pois às
cadeiras ou votos perdidos ou ganhos por um dos
contendores corresponderá a vitória ou a derrota do
outro. Nos sistemas pluripartidários, ao contrário, o
grau de competitividade será sempre mais fraco,
deixando tanto mais lugar para manobras de
cooperação ou de coalizão entre os partidos de
maioria e os de minoria, quanto mais baixo for o grau
de concentração da Oposição. Os (3) pontos-chaves
onde mormente se evidencia esta competitividade não
são, porém, os mesmos em todos os sistemas: de
alguns já se falou; pode-se acrescentar-lhes um
elemento fundamental, básico em toda a democracia,
que é a luta pela conquista do apoio da opinião pública
pelo incremento do consenso popular em torno da
própria ação política. Assim, partindo do exame
analítico da combinação dos primeiros três elementos,
é possível identificar as (4) características
849
distintivas da Oposição dentro do sistema. No modelo
clássico, tipo inglês, a Oposição é claramente
identificável, porque existe nele, em geral, um nítido
contraste e forte espírito competitivo entre a maioria e
a minoria oposicionista, contraste esse que, facilitado
pela forte coesão interna aos partidos, se desenvolve a
diversos níveis, do Parlamento, que representa o papel
principal, às eleições gerais (e em parte também às
administrativas) e à opinião pública; as maiores
dificuldades estão na observação dos outros modelos
onde, com muita freqüência, as linhas que separam a
maioria da Oposição, não são, como se pôde ver, muito
distintas e claras. Nestes casos, se desenvolvem nas
estruturas onde são postos em ação os processos
políticos decisivos, estratégias características de
cooperação-competitividade entre maioria e Oposição,
determinadas ainda por graus diferentes de coesão
interna nos partidos e de descentralização da sua
política, tornando-se por vezes difícil, como acontece
nos Estados Unidos, indicar exatamente quem é da
Oposição ou quem é favorável à política do Governo,
já que os conflitos relativos aos diversos pontos que
caracterizam tal política passam a ser partilhados tanto
pelo grupo da maioria como pelo da minoria. Em
outros
lugares,
onde
existe
um
açulado
pluripartidarismo e o Governo se apóia quase sempre
numa maioria resultante da coalizão de dois ou mais
partidos, a Oposição tende, ao invés, a evidenciar-se
mais no plano estratégico e ideológico, podendo
chegar, como na Itália, a teorizar uma alternativa
global do sistema político e econômico-social, sem,
contudo, aceitar a lógica conseqüência de se pôr à
margem do sistema como Oposição extraparlamentar.
Há por isso grupos de Oposição que tentam modificar
as estruturas decisórias do poder, permanecendo, não
obstante,
dentro
do
sistema
e
aceitando,
conseqüentemente, a sua lógica funcional de
racionalização. Dito isto, resta apenas examinar os (5)
objetivos, a curto e a longo prazo, como dizem alguns
autores, preponderantes ou reguladores da Oposição,
como prefere Dahl, e as (6) estratégias usadas como
meio de alcançar eses mesmos objetivos. Também
aqui, aqui principalmente, se torna impossível proceder
a uma exata classificação. Contudo, podemos afirmar
com certa razão que os objetivos que orientam e
suscitam a atividade da Oposição, hão de buscar-se na
mudança de rumo político do Governo, quer se trate da
mudança de homens da estrutura governativa (Oposição
não estrutural), quer de pontos qualificativos e
específicos da política da maioria (Oposição estrutural
limitada), quer das estruturas políticas e das estruturas
sócio-econômicas
(Oposição
essencialmente
estrutural). De qualquer modo, simplificando ao
máximo a linha de comportamento político da
Oposição pode ser
850
OPOSIÇÃO
sempre
identificada
como
inspirada
no
conservadorismo,
no
reformismo
ou
no
revolucionarismo. Assim, uma vez analisado o
sistema político e os pontos-chaves onde a Oposição,
dadas suas características específicas, melhor pode
atuar, a escolha de uma estratégia por parte dos
grupos de Oposição será igualmente influenciada
pelos objetivos que eles querem atingir e obter.
IV. A OPOSIÇÃO EXTRAPARLAMENTAR. — A
esta última conclusão, que resume o comportamento e
funcionamento da Oposição, chegou, se bem que
através de uma análise em parte diferente e à margem
das regras do jogo, que rejeita, esse fenômeno político
recente, revelado, em formas ostensivas, nas
democracias ocidentais (mas também nas socialistas e,
de algum modo, em todo o mundo), que é a Oposição
extraparlamentar. Nascida do impulso do movimento
estudantil de 1968, visa à transformação
revolucionária ou, melhor, à destruição do sistema
político capitalista-burguês ou comunista-revisionista
e à sua substituição por um novo modelo. A análise
dos grupos de Oposição extraparlamentar parte, de
fato, na experiência ocidental, de uma constatação: a
de que é impossível que o Parlamento cumpra sua
função com um sistema representativo que não
espelha a realidade social e política do país; ele é um
simulacro que permite a institucionalização do
conflito, excluindo da gestão do poder decisório,
portanto do Governo da coisa pública, as massas
trabalhadoras, ao ser delegado substancialmente à
maioria o poder de guiar a política do Estado sem o
efetivo controle das Oposições. Em vez disso, as
massas operárias são cada vez mais exploradas, no
plano político e econômico, pelas classes dominantes,
que, mediante o esvaziamento da assembléia
parlamentar e o sistema de representação adotado a
todos os níveis do poder de decisão, da fábrica à
universidade e ao Estado, tornaram mais fácil o
processo de racionalização tecnológica do capitalismo
avançado das modernas sociedades industriais,
incluídas as estruturas sociais e políticas, impedindo,
por meio da repressão, as convulsões mais profundas e
os conflitos que surgem das contradições internas do
capitalismo. A rejeição do sistema envolve também os
partidos de inspiração marxista e classista, que
deveriam defender na teoria e na prática os interesses
do proletariado urbano e rural, mas que, ao invés, no
entender dos grupos de Oposição extraparlamentar, se
integraram no sistema e perderam a sua genuína carga
revolucionária original, para seguir uma linha
reformista-burguesa, renunciando, na realidade, à sua
natureza classista e proletária. Quanto à política
externa, a Oposição extraparlamentar contesta a
liderança do movimento marxista-lenista ao grupo
dirigente da
União Soviética que, sendo favorável à coexistência
pacífica e à manutenção do status quo da divisão do
mundo em blocos e zonas de influência, põe em ação,
de acordo com o capitalismo internacional, uma
política revisionista dentro do país e uma política
imperialista em relação ao exterior. Para atingir seu
objetivo, o da destruição do atual sistema capitalista
ou socialista historicamente formado, a Oposição
extraparlamentar não se serve tanto dos meios
revolucionários clássicos da insurreição armada
quanto, sobretudo, do uso de meios menos violentos
no plano físico, mas não no plano moral e no da
eficácia prática, mas em consonância com o atual
desenvolvimento da sociedade industrial. É justamente
uma das características da Oposição extraparlamentar
o rebelar-se e agir de preferência nas sociedades
industriais avançadas. A finalidade é a de concentrar
em torno de si, por meio de ações significativas
(manifestações e atos coletivos, por exemplo), por um
lado, e ações instrumentais, por outro, o mais amplo
consenso da sociedade, sacudindo-a da sua suposta ou
real apatia e resignação, para fazer com que a
revolução, partindo da base, se transforme numa
avalanche cada vez mais ingente que destrua o
sistema.
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M. PUNNETT, Front bench opposition. Heinemann
Educational, London 1973.
[GIAMPAOLO ZUCCHINI]
Ordem Pública.
Fala-se de Ordem pública com significados
completamente diferentes em hipóteses dificilmente
conciliáveis com um sistema orgânico de conceitos.
Em primeiro lugar, no direito público defende-se
desde há muito tempo uma concepção material ou
objetiva da Ordem pública que é semelhante à que
vigora na área política. A Ordem pública é concebida
ao mesmo tempo como uma circunstância de fato
como um fim do ordenamento político e estatal e nesse
sentido o encontramos na legislação administrativa,
policial e penal como sinônimo de convivência
ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal
e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados
pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de
um ordenamento. Nessa hipótese, Ordem pública
constitui objeto de regulamentação pública para fins
de tutela preventiva, contextual e sucessiva ou
repressiva, enquanto que a jurisprudência tende a
ampliar o conceito "material" de Ordem pública até
fazer incluir nele a execução normal das funções
públicas ou o normal funcionamento das instituições
como a propriedade, de importância publicitária
(ordem legal constituída).
É evidente que uma vez que é objeto de disciplina
normativa, a Ordem pública material se traduz através
de um sistema de normas que a têm como objeto e que
variam de ordenamento para ordenamento. Por
conseguinte, com a variação da inspiração ideológica e
dos princípios orientadores (democráticos ou
autocráticos, por exemplo), cada ordenamento dará
uma disciplina própria (ampla ou restrita) das
hipóteses de intervenção normativa e de administração
direta tendentes a salvaguardar a Ordem pública.
Além do aspecto objetivo da tranqüilidade social,
política e econômica ligada à convivência "ordenada",
a temática da Ordem pública é importante sob o perfil
das possíveis repercussões conseqüentes sobre a esfera
jurídica dos vários sujeitos de um ordenamento.
A Ordem pública é comumente evocada como limite
ao exercício de direitos e assume particular
importância quando referida aos direitos de liberdade
assegurados pela constituição: neste caso se indica que
não é possível questionar um limite de
851
caráter geral ligado à chamada Ordem pública
constitucional — que parece fazerem coincidir com o
conjunto dos princípios fundamentais de um
ordenamento — porquanto dos princípios gerais não se
poderiam originar limites situados além dos já previstos
no âmbito da disciplina constitucional de casa um aos
direitos. Discute-se se a Ordem pública, quando se
trata de determinar as limitações aplicáveis aos
direitos fundamentais, há de identificar-se com a
simples realidade material, isto é, com a situação de
normalidade já lembrada, ou ter presente também uma
hipotética realidade ideal, ou seja, um conjunto de
finalidades que deveriam caracterizar idealmente as
relações sociais. Afirma-se a este propósito que nos
regimes democrático-liberais predominaria a primeira
tendência, enquanto a segunda seria característica aos
regimes, ideologicamente muito marcados, dos Estados
monopartidários recentemente consolidados. Parece
certo que, neste tipo de ordenamento, se confirmou
uma noção elástica de Ordem pública que trouxe
consigo a ampliação dos limites e permite uma maior
redução dos direitos de liberdade. Contudo, se bem
que por motivos diferentes, observou-se sempre uma
elasticidade
semelhante
nos
ordenamentos
primeiramente lembrados.
Em sentido diferente, a Ordem pública assume a
posição jurídica dos sujeitos no âmbito do direito
privado enquanto limite ao exercício da autonomia
contratual. Todavia, já que existem limites precisos que
derivam de uma minuciosa disciplina normativa ad hoc,
considera-se que tal noção coincide com os princípios
diretivos gerais deduzidos das próprias opções
constitucionais que não influiriam senão de modo
geral e indireto na autonomia privada. No direito
privado, portanto, todas as vezes que a Ordem publica
é evocada como limite ao exercício de direitos, ela se
apresenta como noção residual que é difícil de definir
de forma precisa: trata-se, na verdade, de um limite
que atua quando não existem limites específicos e que
tende a coincidir com a exigência, por via integrativa,
do núcleo de princípios que caracterizam a constituição
do Estado, mas que por vezes coincide com a
exigência também de um núcleo de valores e de
critérios extrajurídicos que fogem a uma possível
predeterminação objetiva.
Nas relações entre ordenamentos regulados pelo
chamado direito internacional privado, o limite da
Ordem pública internacional é chamado a indicar
situações em que na prática não se pode recorrer à
dilação: nessa hipótese, a utilização, realizável em
termos abstratos, de uma norma estrangeira para
regulamentar
relações
internas,
chocar-se-ia
concretamente com os princípios fundamentais do
ordenamento jurídico. A Ordem
852
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA
pública constitui portanto limite de caráter
excepcional na medida em que derroga o
funcionamento normal das vinculações entre os
ordenamentos.
No caso indicado, a Ordem pública dita
internacional é, na realidade, um limite derivado
direta e exclusivamente do sistema constitucional que
deveria operar o adiamento, quando a norma chocasse
com os princípios de tal sistema. Mas existem limites
de Ordem pública originados em princípios
fundamentais da comunidade internacional. Contudo,
como os ordenamentos estatais se apropriam de tais
princípios constitucionalizando-os, pode-se dizer que
eles acabam também por impor-se como limites
internos: trata-se, porém, de limites gerais que operam
sempre, mesmo independentemente de hipóteses de
dilação no quadro do direito internacional privado.
Lembremos, enfim, que o conceito de Ordem
pública internacional é usado com um sentido
diferente, em referência às relações postas em prática
no âmbito da comunidade internacional, tendo os
Estados por protagonistas. Então os princípios
constitucionais da comunidade, refletindo o standard
moral em que se moldam os comportamentos
interestatais, constituem a Ordem pública internacional
e se impõem como limite inderrogável quer à atividade
pactuai, quer à praxe consuetudinária interestatal.
[GIUSEPPE VERGOTTINI]
Organização Eclesiástica.
I. DEFINIÇÕES. — Com relação à noção geral de
organização,
definida
como
"conjunto
dos
instrumentos (órgãos) escolhidos, predispostos e
oportunamente coordenados por um indivíduo ou
grupo, com vistas à consecução de determinados fins"
(Etzioni), a Organização eclesiástica apresenta, pelo
menos, dois aspectos específicos: a natureza religiosa
dos fins visados pela própria organização e a estrutura
formal e hierárquica que a caracteriza. Este último
elemento distingue a Organização eclesiástica do
gênero mais abrangente das "organizações religiosas",
que não oferecem o mesmo grau de estabilidade,
complexidade e institucionalização.
A Organização eclesiástica tem sido analisada, em
geral, pelas disciplinas que entroncam com a ciência
da organização e, especialmente na Europa, com a
ciência da administração. As análises deste último
tipo, diferenciadas das primeiras por uma mais
acentuada atenção aos aspectos jurídico-institucionais
da Organização eclesiástica, não se hão de confundir
com os estudos de
administração
eclesiástica,
desenvolvidos
particularmente nos Estados Unidos ("church
administration", "church management"), orientados a
investigar os processos, as técnicas e os "estilos"
administrativos mais adequados aos diversos modelos
organizacionais e mais aptos a assegurar a melhor
utilização dos recursos humanos e materiais
disponíveis.
Ressalte-se por último que o estudo das
Organizações eclesiásticas pode efetuar-se a diversos
níveis: a par de pesquisas de caráter geral, voltadas
para a análise dos aspectos organizacionais de uma
instituição de grandes dimensões (a Igreja, por
exemplo), existem pesquisas mais particulares,
concentradas em entidades de menores dimensões
(uma diocese ou uma paróquia, por exemplo), que, por
seu turno, podem fazer parte de uma Organização
eclesiástica mais ampla.
II. PERFIL E DIMENSÕES DA ORGANIZAÇÃO
ECLESIÁSTICA. — A aplicação da noção de fins às
Organizações
eclesiásticas
suscitou
algumas
dificuldades. Os mais atentos aos dados da teologia
têm, com efeito, notado uma acentuada orientação das
Organizações eclesiásticas a se autodefinirem em
termos de presença (a Igreja como povo de Deus,
comunidade dos fiéis, nova criação, corpo de Cristo)
mais que em termos de atividade orientada à
consecução de fins específicos. Tal constatação (unida
a uma certa perplexidade de caráter mais geral sobre a
vantagem de privilegiar modelos finalisticamente
orientados na análise organizacional) levou a adotar um
gênero de abordagem de tipo relacionai que impeça
separar a consideração da Organização eclesiástica da
consideração do ambiente em que ela se insere, ou
desarticular o exame de cada um dos seus componentes
internos. A atenção concentrou-se, portanto, nas
interações existentes entre as diversas partes da
Organização eclesiástica (estruturas, processos,
finalidades, comportamentos, sistemas de crenças...) e
entre esta e o mundo exterior.
Esta orientação encontrou um ulterior impulso no
desenvolvimento das teorias sistêmicas, ou seja, de
teorias baseadas no estudo de uma entidade (sistema)
completa e limitada quanto ao ambiente circundante,
mas em constantes e recíprocas relações com ele
(Langrod). As teorias sistêmicas foram aceitas como
adequadas por aquelas correntes de pensamento que,
nas últimas duas décadas, puseram em relevo, em
todos os setores ligados ao estudo das instituições
eclesiásticas, a necessidade de concentrar a pesquisa
nas relações entre a Igreja e o "mundo": daí a
tendência a aprofundar particularmente os processos
de adequação da Organização eclesiástica às
mudanças da sociedade em que se vive, assim como
os processos de transformação dos recursos
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA
ambientais em produtos, para se usar de um termo
habitualmente aplicado às organizações seculares.
No primeiro aspecto, as solicitações, vindo do
exterior, estimulam uma resposta organizativa das
Igrejas que, através de um processo de adaptação às
condições ambientais, tendem a assumir a
configuração julgada mais adequada ao contexto em
que se inserem e atuam. Daí que as estruturas, os
processos e os comportamentos das Organizações
eclesiásticas sejam freqüentemente condicionados por
uma série de fatores a elas extrínsecos e por elas em
grande parte não controlados. Assim, se os estudos de
Houtart evidenciaram o nexo existente entre
fenômenos de urbanização, declínio das estruturas
eclesiásticas territoriais (como a paróquia) e
desenvolvimento
de
ministérios
pastorais
"especializados", as pesquisas de Thompson sobre o
anglicanismo atribuíram o imobilismo administrativo e
organizacional, que caracterizou até há bem pouco
tempo a Igreja da Inglaterra, à sua relação de
subordinação ao Estado. Outros ressaltaram a
influência exercida no modelo organizacional das
Igrejas por outros elementos como a presença numa
mesma área geográfica de mais de uma instituição
religiosa (em relação de recíproca colaboração ou de
competição), a caracterização política e ideológica da
comunidade social em que a organização eclesiástica
se desenvolve, e por aí afora.
As relações entre o mundo exterior e a Organização
eclesiástica não se apresentam só sob o aspecto do
condicionamento que exerce aquele sobre esta; os
elementos
intelectuais,
materiais
e,
mais
genericamente, humanos que constituem o ambiente
em que a Organização eclesiástica se insere,
representam, na realidade, um enorme conjunto de
recursos de que ela virtualmente dispõe para a
consecução dos seus próprios fins. Nesta perspectiva,
a Organização eclesiástica se apresenta como uma
entidade em constante intercâmbio com o mundo
exterior, onde vai buscar as idéias necessárias para o
desenvolvimento do próprio "corpus" doutrinai,
recrutar os indivíduos que hão de constituir o pessoal
eclesiástico e arrecadar os meios materiais
indispensáveis ao seu funcionamento. O exato
conhecimento dos processos e técnicas de
identificação, seleção, distribuição, utilização e
controle dos recursos é essencial para uma adequada
compreensão das estruturas e dos comportamentos da
organização eclesiástica. A articulação do poder no
seio das Igrejas e a adoção de métodos de Governo de
orientação democrática ou autoritária, por exemplo,
não podem ser estudadas a fundo sem se terem em
conta os processos de seleção e utilização do pessoal
eclesiástico (controlados em alguns casos pela
hierarquia episcopal, em outros pelas congregações
dos fiéis, em outros ainda por colégios de
853
eclesiásticos), os métodos de distribuição dos recursos
econômicos (pense-se, por exemplo, na diferença que
existe entre a fragmentação do patrimônio a que dá
lugar o sistema de benefícios vigente na Igreja
católica, e a concentração administrativa que
caracteriza a instituição dos "Church Commissioners"
na Igreja da Inglaterra), o grau de controle exercido
por cada um dos ministros de culto sobre as fontes da
própria renda e, conseqüentemente, o grau de
independência que cada um pode blasonar em relação
à autoridade eclesiástica ou ao laicado. Por aqui se
pode ver como o estudo dos processos de
transformação a que estão sujeitos, dentro das
Organizações eclesiásticas, os recursos provenientes
do ambiente, é, sem dúvida, vasto e está ainda longe
de se haver completado. Parece particularmente
descurado o estudo dos procedimentos através dos
quais a Organização eclesiástica chama a si e faz
próprios os recursos intelectuais presentes no mundo
exterior. Basta pensar, no que se refere à Igreja
católica romana, que está ainda substancialmente
inexplorado o jogo de sugestões e influências que liga
as opções de "engenharia" constitucional do Concilio
Vaticano Il às transformações institucionais ocorridas
na sociedade secular e o "Condex Iuris Canonici" às
codificações civis do século XIX. São lacunas que,
pelo menos em parte, se explicam por falta de um nexo
interdisciplinar, ou então por debilidade ou ausência
de uma relação entre os estudos referentes à
Organização eclesiástica e os estudos respeitantes a
outros ramos do saber — direito canônico, teologia,
história das relações entre Estado e Igreja — que,
embora correspondam a ciências diversas, assumem o
mesmo objeto de estudo.
Foi igualmente subestimada até tempos bastante
recentes a importância dos processos de comunicação,
assim como a dos mecanismos decisórios, intrínsecos à
Organização eclesiástica. Foi só nestes últimos anos
que os progressos da cibernética induziram ao
aprofundamento de tal temática, estimulando a
pesquisa sobre a rede de comunicações (formais e
informais) dessa organização — cuja estrutura influi no
esmero
das
mensagens
transmitidas,
nas
"performances" globais dos membros da organização,
na satisfação que obtêm com seu trabalho, etc. —
sobre os elementos que compõem o processo de
comunicação
(fonte,
codificação,
mensagem,
descodificação, destinatário) e sobre as distorções que
ele pode sofrer nas fases de codificação e
descodificação por causa da heterogeneidade de
experiências e percepções entre a fonte e o destinatário
da mensagem. Estes estudos levaram a interpretar a
"crise" de algumas Organizações eclesiásticas como
um "communication breakdow" (Granfield) que
impede a circulação de informações entre a Igreja e a
sociedade, por
854
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA
um lado, e, por outro, dentro da própria Igreja, com a
conseqüência de que a Organização eclesiástica se vai
estruturando cada vez mais como sistema fechado,
incapaz de receber os estímulos provenientes de fora,
criando-se uma certa tendência à polarização (pela
qual as decisões de cúpula são entendidas como "out of
touch" das realidades de base) e o. senso de frustração
nos grupos que encontram dificuldade em influir
eficazmente, por meio das próprias informações, nos
processos decisórios (o episcopado, por exemplo, se
sente impotente, incapaz de influir nas decisões dos
órgãos eclesiásticos centrais, o laicado nas decisões do
clero, etc). Em especial, a análise dos processos de
comunicação e decisão pode servir para constatar a
efetiva importância das mudanças operadas nas
estruturas em que se articula a distribuição da
autoridade no seio da Organização eclesiástica. A
desintegração do poder central e a simultânea aparição
de organismos de índole participativa e colegial
(sínodos, conferências, conselhos), se na realidade
constituem, como se escreveu a propósito da Igreja
católica, uma transição da estrutura monofásica para
uma estrutura polifásica (Fichter), de um modelo
organizacional de tipo "benevolent authoritative" a um
tipo "consultive" (Donahue), não podem coexistir por
longo tempo com uma Cúria romana estruturada como
um sistema "fechado", caracterizado por canais de
"inputs" reduzidos e seletivos, e por "outputs"
autoritários e não participativos: não é caso único que
uma ampla pesquisa realizada entre o clero católico
dos Estados Unidos tenha levado à conclusão de que
os principais motivos de insatisfação se referem ao
modo como o poder decisório está distribuído na
Igreja. Para pôr remédio a esta situação — ou, para
apresentar outro exemplo, para pôr remédio às tensões
freqüentemente originadas entre a Cúria romana e as
conferências episcopais nacionais, que reclamam ser
previamente informadas das decisões e declarações da
Santa Sé, para poderem propor as correções
aconselhadas pelas situações locais — torna-se
evidentemente necessário controlar a rede de
comunicações que une os organismos colegiais de
criação mais recente com as instituições centrais
tradicionais da Igreja e verificar o número, a
capacidade de operação, a mobilidade e a eficiência
dos canais que permitem a tais organismos fruir do
fluxo de informações e intervir nos processos
decisórios das instituições centrais.
III. ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES ECLESIÁSTICAS. —
As observações já formuladas sobre o problema da
distribuição da autoridade levam-nos ao tema das
estruturas da Organização eclesiástica. A relação
entre os dois elementos foi subli-
nhada por Spencer, entre outros, que fez notar como o
poder decisório se concentra, na Igreja católica, a três
níveis (papado, diocese, paróquia) que já não
correspondem às articulações fundamentais da
sociedade civil (cidade, área metropolitana, nação,
região geográfico-cultural supranacional). Daí se segue
que os problemas surgidos nesses âmbitos não
encontram na Igreja uma estrutura de decisão
correspondente, capaz de os enfrentar cora eficácia.
Spencer sugeria, por isso, que se multiplicassem os
níveis hierárquicos na Igreja católica e se concedesse
um poder real aos decanatos e arquidecanatos (nas
áreas urbanas e metropolitanas), por um lado, e às
conferências episcopais nacionais e continentais (nas
áreas nacionais e supranacionais), por outro.
O estudo das estruturas eclesiais tem sido
especialmente incentivado, nestas últimas décadas,
pelas mudanças institucionais ocorridas em numerosas
confissões religiosas. Pelo que toca à Igreja católica,
em particular, o Concilio Vaticano Il veio pôr fim a um
longo período de imobilismo organizativo e constituiu
o início de uma obra de revisão "constitucional" que
veio favorecer tanto a redefinição das funções e
competência dos organismos eclesiásticos já
existentes, como a criação de novas instituições. Neste
contexto, caracterizado por inevitáveis tensões
oriundas da coexistência entre o velho e o novo, têm
sido propostas diversas linhas de interpretação,
baseadas na distinção entre estruturas e funções
individuais e colegiais, autoritárias e participativas,
centralizadas e descentralizadas, hierárquicas e
congregacionais... Subjacente a estas e outras
variações terminológicas, existe, contudo, um idêntico
problema: o de avaliar o alcance, em termos de
alteração da ordem estrutural antes existente, das
inovações introduzidas pelo Concilio na Igreja
católica e pelo processo mais geral de adaptação às
transformações da sociedade secular nas demais
Organizações eclesiásticas.
Trata-se particularmente de avaliar a intensidade do
processo de transformação que invadiu a Igreja
católica (atinge as estruturas centrais da instituição
eclesiástica ou incide, de preferência, sobre pontos
periféricos?) e a sua distribuição (tende pelo menos a
cobrir todas as estruturas, processos e comportamentos
internos da Igreja ou apenas algumas áreas?). Para
verificá-lo, será conveniente analisar as transformações
institucionais no que respeita a quatro elementos que
caracterizam a estrutura de toda a organização
complexa: a) definição das tarefas concernentes a cada
um dos membros da organização; b) aglutinação das
diversas funções nela existentes; c) grau de controle
exercido sobre o trabalho dos membros da
organização ("span of control");
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
d) distribuição da autoridade. A conveniência de
recorrer a tais instrumentos de investigação parece
confirmada pelos primeiros e animadores resultados a
que a sua utilização levou. Assim, algumas pesquisas
sobre os organismos colegiais da Igreja católica
(sínodo dos bispos, conselhos pastorais, conselhos
diocesanos, etc.) permitiram chegar à conclusão de
que a sua instituição não alterou de forma
significativa nem o "span of control", nem o grau de
descentralização,
e,
conseqüentemente,
de
distribuição, da autoridade existente antes do Vaticano
II. Isto faz pensar que as mudanças institucionais
ocorridas na Igreja católica (e provavelmente também
em outras Organizações eclesiásticas) se hão de
considerar, não na perspectiva de uma transformação
da estrutura hierárquica tradicional, mas na da criação
de uma nova estrutura de coordenação de caráter
horizontal — distinta da hierárquica, de caráter
vertical, sempre substancialmente inalterada — que
garante a ligação das iniciativas nos vários níveis da
organização eclesiástica e constitui um canal de
transmissão que leva até ao vértice (cúria/pontífice) as
instâncias e problemas locais (nacionais, regionais,
sub-regionais, etc).
BIBLIOGRAFIA. — Communication in the church, ao
cuidado de G. BAUM e A. GREELEY, in "Concilium", III,
1978; J. A. BECKFORD, Religious organization,
Mouton, La Haye-Paris 1973; B. F. DONAHUE, Political
ecclesiology in "Theological studies", 1972; P.
GRANFIELD, Ecclesial cybernetics. Macmillan, New
York 1973; D. T. HALL E B. SCHNEIDER,
Organizational climates and careers. The work lives of
priests, Seminar Press. New York-London 1973; F. X.
KAUFMANN, The church as a religious organization. in
"Concilium", 1974; G. LANGROD, L'Église catholique
et le management, in Les Églises comme institutions
politiques. ao cuidado de L. MOULIN, I, Bruxelles 1972;
Id., Les mutations du pouvoir dans l'Église, in
Mélanges C. Burdeau, Paris 1977; P. F. RUDGE,
Ministry and management, Tavistock, London 1968;
Id-, Management in the Church. Maidenhead, LondonNew York 1976; A. E. C. W. SPENCER, The structure
and organization of the catholic church in England. in
Use of sociology. ao cuidado de J. D. HALLORAN e J.
BROTHERS, London 1966; Le pouvoir dans l'Église. in
"Pouvoirs'', 17, 1981.
[SILVIO FERRARI]
Organização Internacional.
I. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS GERAIS
ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS. — O fenômeno
DAS
855
associativo, embora sob modalidades diversas, é uma
necessidade comum a todo o corpo social, qualquer
que seja a sua dimensão e a sua composição. Isso se
observa na própria comunidade internacional que, ao
desenvolver-se, tende a organizar-se em esquemas
cada vez mais complexos. Entendido como fato sóciopolítico, tal fenômeno só indiretamente poderá
interessar à análise jurídica; para esta são de grande
relevo as manifestações singulares onde é possível
concretizar a referida evolução organizativa.
A história das relações internacionais tem
registrado, principalmente nos últimos vinte anos, o
surgir e rápido multiplicar-se de associações de
Estados
que,
de
simples
uniões,
foram
progressivamente evoluindo até às mais recentes
comunidades supranacionais.
Uma contribuição decisiva para a mencionada
evolução se pode encontrar no fenômeno do
regionalismo internacional, revelado no âmbito da
sociedade multinacional. O progressivo aumento dos
membros da comunidade internacional e a variedade
de interesses políticos, econômicos e sociais que ele
trouxe, levaram os Estados a criar formas associativas
em áreas geopolíticas, espontaneamente definidas pela
afinidade de interesses e problemas, com o fim de
alcançar objetivos comuns, mais facilmente
asseqüíveis num contexto homogêneo, baseado em
razões políticas, econômicas, sociais, geográficas, ou
mesmo étnicas e religiosas. Esse fenômeno se
manifesta na instituição de organizações regionais
específicas, nomeadamente no campo econômico; mas
dá-se também no seio de organizações internacionais
de tendência universalista em cujo âmbito os grupos
regionais homogêneos constituem muitas vezes o
elemento catalisador no desenvolvimento de ações
comuns ou coordenadas, ou então o pressuposto de
uma estrutura descentralizada, territorialmente
articulada, mediante órgãos regionais criados na área
dos órgãos subsidiários (v. adiante).
O estudo de tal fenômeno deu lugar a uma análise
jurídica e amiúde até a uma disciplina específica que
tem por objeto os diversos exemplos de Organizações
internacionais.
Para delimitar o campo da nossa pesquisa, torna-se,
portanto, necessário proceder a uma definição do
conceito de Organização internacional. Para isso, é
oportuno partir de um exemplo já conhecido que é o
da união internacional de Estados. Esta é, de fato, a
forma mais freqüente e, ao mesmo tempo, mais
simples, usada pelos sujeitos do ordenamento
internacional para a satisfação de um interesse
comum. Os requisitos essenciais se resumem na
existência de um acordo internacional entre os
Estados, visando criar uma colaboração estável,
disciplinada por normas de direito internacional, para
a realização de interesses
856
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
comuns. Desta ampla categoria se distinguem depois
as chamadas uniões internacionais institucionalizadas,
isto é, as que não se limitam a coordenar as atividades
dos Estados-membros, mas dão lugar a uma entidade
separada, destinada a exercer sua própria função, não
já por meio dos órgãos dos Estados, mas sim mediante
a instituição de órgãos adequados, previstos no acordo
internacional.
Outro elemento de individualização do conceito de
Organização internacional se deduz da consideração
da atual realidade jurídica, caracterizada pela
pluralidade de ordenamentos. Considerada, de fato, sob
o aspecto normativo, toda Organização internacional
constitui ordenamento jurídico, já que possui uma
estrutura própria, seus órgãos, seus meios de ação e
normas jurídicas peculiares. Este ordenamento,
embora se mova, em sentido lato, na órbita do
ordenamento internacional geral, de que se distingue
e freqüentemente se afasta em virtude da própria
autonomia, possui um caráter particular, quer em
relação aos Estados e ao ato que lhe deu origem, quer
porque visa a disciplinar, não já toda a vida dos
membros, mas apenas algumas das suas atividades.
Segue-se, portanto, de quanto fica dito que a
Organização internacional representa como que um
genus em relação à species das uniões internacionais,
podendo ser definida como associação entre sujeitos
de direito internacional, instituída e disciplinada
segundo normas do mesmo direito, concretizada numa
entidade de caráter estável e dotada de um
ordenamento jurídico peculiar, bem como de órgãos e
meios próprios para cumprir os fins de interesse
comum para que foi criada.
O fato de as Organizações internacionais terem de
ser instituídas, como se disse, mediante acordo entre
sujeitos de direito internacional exclui, de per si, que
no conceito exposto possam ser incluídas aquelas
outras formas de associação que não se constituem
por meio de atos jurídicos internacionais, comumente
designadas como organizações não governativas.
Ao conceito de Organização internacional acima
apresentado, a análise da realidade permite acrescentar
certos elementos que, por sua presença na quase
totalidade das Organizações internacionais existentes,
bem podem ser considerados como características
gerais dessas entidades. O primeiro de tais elementos
reside no caráter voluntário da sua constituição. O
acordo internacional que lhe dá origem é, de fato, o
ato típico em que se concretiza o encontro das
vontades de vários sujeitos. Esta característica está
destinada a refletir-se na própria vida da entidade,
geralmente ligada à duração do ato da instituição e,
conseqüentemente, à vontade dos sujeitos que lhe
deram vida.
Outro elemento é o caráter paritário em que a
associação se funda. Diversamente do que ocorre com
certas uniões de Estados que podem, inclusive, validar
a preponderância de um sujeito sobre outro, todas as
Organizações internacionais se baseiam no princípio
da igualdade dos membros. Isto não impede, aliás,
como se dirá a seguir, que algumas organizações, por
exigências de estrutura e funcionamento, tenham
introduzido, no próprio ordenamento interno,
corretivos tais como o voto ponderado que derrogam o
princípio da paridade dos membros.
Ainda outro elemento é o da pluralidade dos
membros que constituem uma Organização
internacional. Esta se origina num acordo multilateral
e só fica geralmente instituída quando um certo
número de Estados, previsto no próprio acordo,
manifestou a vontade definitiva de participar, mediante
as formalidades prescritas para a aceitação do ato
institutivo.
II. A CRIAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL.
— Todo o fenômeno associativo entre sujeitos de
direito internacional tem sua origem num acordo de
que deriva o conjunto de direitos, obrigações, poderes,
faculdades e encargos de que são titulares os membros
participantes da associação. Também as Organizações
internacionais que, conforme se disse, pertencem à
categoria mais ampla das uniões de Estados, devem a
sua origem a um acordo internacional; mas nem todos
os acordos internacionais são aptos para dar vida a
uma entidade, nem toda a união cristaliza numa
instituição.
Para
haver
uma
Organização
internacional, é mister que exista uma entidade
separada dos Estados-membros que participaram do
acordo, é mister também que estes hajam constituído
um aparelho institucional, isto é, um conjunto de
órgãos e de institutos distintos de cada um desses
Estados e que a entidade tenha seu próprio
ordenamento interno e uma atividade específica na
busca dos interesses comuns dos associados.
O ato institucional da Organização internacional
não se considera, portanto, apenas como ato formal
pertencente à categoria jurídica dos acordos, mas
também como ato diretamente ligado à nova entidade
a que dá vida e cuja constituição representa. Na
verdade, ele não possui as características normais de
um acordo internacional, destinado a esgotar seus
efeitos com a consecução dos objetivos previstos, mas
as de um ato destinado a perdurar e a desenvolver-se
no tempo, bem como a representar o núcleo jurídicoestrutural da nova organização.
Fixado o acordo institucional, para que se possa
dizer que a Organização internacional foi efetivamente
criada, é preciso proceder à constituição concreta e
funcional dos mecanismos
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
institucionais previstos. A entidade internacional não
surge, pois, no momento em que o acordo entra em
vigor, mas, com base no princípio da efetividade, no
momento em que a organização começa a funcionar
mediante seus próprios órgãos, como sujeito distinto
dos Estados-membros. Na prática, de fato, para que se
torne efetiva a constituição da organização, são muitas
vezes criadas comissões preparatórias, que deverão
operar durante o período inicial até à constituição e
funcionamento dos órgãos previstos. Isto aconteceu,
por exemplo, com as Nações Unidas, efetivamente
instituídas em 10 de janeiro de 1946 com a primeira
reunião da Assembléia, onde foram designados o
secretário-geral e os demais órgãos, e não em 24 de
outubro de 1945, data em que entrou em vigor a Carta
de S. Francisco.
As linhas gerais acima apresentadas são igualmente
aplicáveis ao fenômeno da extinção de uma
Organização internacional, não necessariamente ligada
a uma previsão do ato institucional ou a uma
manifestação da vontade dos associados, mas ao
momento em que deixa de funcionar o aparelho
institucional, qualquer que seja a causa determinante.
III. FORMAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS, —
As
Organizações
internacionais
constituem
comunidades particulares, compostas por um certo
número de Estados. O sujeito que participa de uma
organização por haver ratificado o ato da sua
instituição, por haver aderido ou por ter sido admitido,
vem a encontrar-se numa situação jurídica peculiar que
o distingue de todos os demais sujeitos de direito
internacional. Assume um status jurídico particular e
torna-se, por isso, sujeito de um conjunto característico
de situações jurídicas, comuns apenas aos outros
sujeitos que se acham em condições idênticas. Para
sabermos ao certo que categoria de sujeitos pode
adquirir o status de membro de uma organização
internacional, é preciso, antes de tudo, recordar o
caráter de acordo, isto é, de fonte de produção
normativa do direito internacional, de que se reveste o
ato institucional de tal entidade. Como tal ele só pode
ser estipulado por sujeitos e entre sujeitos com a
qualificação
requerida
pelo
ordenamento
internacional. A praxe atual demonstra, de fato, que as
entidades internacionais são, em geral, estabelecidas
entre sujeitos que possuem caráter de Estados. Isso
não exclui, aliás, que algumas organizações permitam
a participação de sujeitos sem esse caráter. O Estatuto
do Conselho da Europa, por exemplo, contém uma
cláusula que permitiu ao Sarre tornar-se membro
associado, ao mesmo tempo que protetorados, colônias
e territórios não autônomos podem vir a ser membros
do UPU, do OMM,
857
tanto quanto membros associados do UIT, do IMCO
e outras associações.
Um dos elementos constitutivos do conceito de
Organização internacional é o caráter voluntário
manifestado principalmente no momento da aquisição
do status de membro: quer isto dizer que nenhum
Estado pode converter-se em membro em virtude de
uma disposição obrigatória do acordo e
independentemente da própria vontade. Pelo contrário,
a participação associativa é o efeito jurídico exclusivo
da manifestação da vontade do Estado ou de um
procedimento onde a vontade do Estado de aceitar sua
qualidade de membro é elemento indispensável.
A primeira forma de aquisição do status de
membro de uma Organização internacional é a que se
realiza pela participação do sujeito na estipulação do
acordo institucional e em sua ratificação consecutiva.
Esta modalidade só excepcionalmente constitui a única
via possível: o é nas organizações fechadas, como
certas uniões aduaneiras; o Benelux, por exemplo, não
prevê a admissão de outros membros além dos três
atuais. Na maioria das outras Organizações
internacionais, chamadas abertas, estão previstos um
ou mais procedimentos que permitem tornarem-se
membros sujeitos que não participaram no ato da
instituição. Nestes casos, a participação no ato da
instituição, conquanto não seja o único, mas tão-só
um dos processos de aquisição do status de membro,
alcança particular importância, dando lugar à categoria
dos chamados membros originários ou fundadores.
Pelo que respeita aos Estados que não tomaram parte
no acordo, duas possibilidades ou procedimentos se
lhes oferecem geralmente como meios de aquisição do
status de membros: a adesão e a admissão.
A cláusula da adesão, contida no ato institucional,
manifesta explicitamente a vontade e consentimento
da associação; por isso, não se dirige a todos os
Estados indiscriminadamente, mas só àqueles que,
por pertencerem a uma determinada categoria ou por
se acharem em determinadas condições, oferecem
garantias suficientes que permitam, a priori, o
assentimento favorável ao seu ingresso. Nos outros
casos, os mais freqüentes, a participação dos Estados
está sujeita ao processo de admissão, pelo qual um ou
mais órgãos da entidade ponderam a candidatura de
cada Estado e se pronunciam sobre a sua aceitação.
Este processo faz com que a organização possa
estabelecer as condições e requisitos necessários, para
que um Estado passe a fazer parte dela. A par da
categoria dos membros ordinários, há também
organizações que prevêem a categoria dos membros
associados, que participam com direitos limitados.
858
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
O caráter voluntário do vínculo associativo, base
de toda a Organização internacional, se revela
também na perda do status de membro por retirada.
Alguns atos institucionais prevêem explicitamente, em
benefício de cada um dos Estados-membros, a
possibilidade de estes porem termo à sua permanência
na organização, mediante uma declaração de
propósitos manifestada sob certas condições. A
doutrina ensina, além disso, que essa possibilidade
subsiste, mesmo quando o ato institucional não prevê
explicitamente o caso da retirada.
A perda do status de membro pode ser também
conseqüência de uma decisão da organização, decisão
pela qual um Estado, por graves motivos particulares,
é excluído da sociedade a que pertencia. A hipótese
da expulsão, embora presente em diversos atos
institucionais, tem registrado casos muito limitados,
em virtude da gravidade de tal medida.
Finalmente, a suspensão, que é uma medida
essencialmente temporária e tem muitas vezes o
caráter de sanção, não provoca a perda do status, mas
limita-se a privar um Estado-membro do gozo dos
seus direitos.
IV. ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS.
— Nenhuma organização, qualquer que seja a sua
natureza ou estrutura interna, poderá agir
materialmente senão por meio das pessoas físicas. A
atividade dos indivíduos, capazes de querer e de agir,
é atribuída à organização, em virtude de normas
apropriadas que regulam, entre outras coisas, a
estrutura interna da entidade, número de órgãos, sua
composição e sua função. Contudo, na fase atual, o
direito internacional geral não contém normas
orientadas a disciplinar a estrutura interna das
Organizações internacionais; prevalece, portanto, a
este respeito, o princípio da liberdade de organização,
que faz com que exista uma grande variedade quanto
ao número, dimensões, funcionamento e competência
dos órgãos de tais entidades. Esta liberdade constitui
uma das manifestações mais evidentes do poder de
autonomia que têm as Organizações internacionais;
não encontra qualquer limite externo.
Ao estabelecer seus próprios órgãos internos, cada
entidade parte de necessidades e interesses diversos,
levados em conta as funções e os objetivos para que
foi criada. Se existem casos onde um só órgão é capaz
de assegurar a atividade de uma organização (é o caso
do "Conselho" no Conselho Nórdico), o normal é que
exista pluralidade de órgãos ou de instituições, criados
para desempenhar funções diversas e para responder a
diferentes exigências.
Não obstante esta liberdade de esquemas, uma
rápida indagação sobre as organizações hoje existentes
permite verificar que a estrutura mais freqüente é a
chamada ternária, englobando três órgãos principais:
uma assembléia que reúne todos os Estados-membros;
um órgão de composição mais restrita e dotada de
poderes executivos para responder às necessidades de
uma concreta capacidade funcional da entidade; um
órgão burocrático de caráter administrativo.
A assembléia é um órgão que se encontra em todas
as Organizações internacionais. Mesmo que tenha
títulos diversos como conferência, conferência geral,
conselho, congresso, etc, responde sempre à
necessidade de constituir um órgão colegial onde
possam ser representados, em condições de paridade,
todos os Estados-membros da organização. A
assembléia se reúne normalmente uma vez por ano e
tem competência sobre todas as atividades da
associação. Em sua organização interna estão muitas
vezes previstas comissões cuja competência em
determinadas matérias se assemelha à dos
Parlamentos nacionais.
Na recente experiência européia, a estas
assembléias formadas pelos Estados se acrescentaram
órgãos formados por indivíduos eleitos pelos
respectivos parlamentos nacionais, representando
conseqüentemente os povos dos Estados-membros e
não já os Governos desses Estados. Ao primeiro
exemplo, que foi o da Assembléia Consultiva do
Conselho da Europa, seguiram-se a Assembléia
análoga da UEO e a da CECA. Esta última se
transformou, em decorrência dos tratados de Roma, no
Parlamento europeu, que é a assembléia comum das
três comunidades européias e constitui até hoje o
primeiro exemplo de órgão de uma instituição
internacional diretamente eleito pelo povo dos
Estados-membros.
O órgão executivo das Organizações internacionais
recebe várias denominações: conselho, conselho
executivo, comitê, etc. Mas as suas funções, na maioria
dos casos, são as de um órgão permanente de Governo
que atua dentro dos limites das diretrizes da
assembléia. Em algumas organizações universais, o
órgão de Governo não é o único. Na ONU, por
exemplo, o órgão de Governo é representado por três
órgãos diversos por sua competência: o Conselho de
Segurança, o Conselho Econômico e Social e o
Conselho de Curadorias. Nas comunidades européias,
devido à particular influência da atividade comunitária
sobre os ordenamentos internos de cada um dos
Estados, ao lado do órgão executivo clássico, a
comissão, se colocou outro órgão executivo, o
Conselho de Ministros, que é uma emanação direta
dos Estados-membros.
Não existem regras uniformes para a composição
de tais órgãos. Podem ser formados pelos
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
Estados, como os conselhos da ONU, ou por
indivíduos, como a Comissão da Comunidade
Européia. Tampouco há uniformidade nos modos de
designação dos membros. Em geral são eleitos pela
assembléia, total ou parcialmente. No último caso,
alguns dos membros podem estar predeterminados por
precisa indicação dos estatutos, como acontece com os
membros permanentes do Conselho de Segurança da
ONU, ou então podem ser indicados segundo critérios
de escolha, como, por exemplo, a tonelagem da frota
mercante, em se tratando do órgão do IMCO.
O terceiro órgão que completa a estrutura ternária
das
Organizações
internacionais,
comumente
designado com os termos secretário-geral ou diretorgeral, é o órgão que garante a continuidade da ação da
organização e, sobretudo, a administra. Nomeado pela
assembléia, sob indicação eventual do executivo, ele é
posto à cabeça do pessoal e de todo o aparelho
administrativo, que poderá ser mais ou menos
complexo segundo as dimensões da entidade. O
secretário-geral acompanha as atividades dos diversos
órgãos e sustenta o relacionamento com os Estadosmembros. Da sua personalidade e da sua capacidade
depende, muitas vezes, o sucesso da organização,
especialmente quando lhe são atribuídas particulares
incumbências político-diplomáticas, como no caso das
Nações Unidas.
Os atos de instituição das Organizações
internacionais limitam-se a prever a constituição dos
órgãos principais, como os já descritos, órgãos que
exercem os poderes e atribuições essenciais para a
vida da organização. Mas a complexidade da vida das
Organizações internacionais, cujos objetivos se
estendem e multiplicam progressivamente, carece de
uma adaptação constante que se reflete em sua própria
estrutura interna. Tal necessidade é inerente a toda a
organização que participe da vida e da evolução da
sociedade internacional. Não raro, os próprios Estados
promotores, prevendo o fenômeno, atribuem
explicitamente à organização o poder de instituir
órgãos subsidiários. É o caso das Nações Unidas cujo
estatuto contém uma disposição geral (art. 7°, § 2) que
permite a criação de órgãos subsidiários, quando se
revelem claramente necessários, e disposições
específicas que atribuem tal poder à Assembléia Geral
(art. 22), ao Conselho de Segurança (art. 29) e ao
Conselho Econômico e Social (art. 68).
Mas, mesmo nos numerosos casos em que o ato de
instituição nada prevê a tal respeito, os princípios
gerais das Organizações internacionais têm sido
considerados como fonte suficiente para a criação de
órgãos subsidiários. Nesse contexto, no que respeita à
prática dos procedimentos na criação dos
mencionados órgãos, uma
859
interessante evolução se verificou no âmbito das
comunidades européias, onde se recorreu a um acordo
entre os Estados-membros para a reestruturação de
órgãos anteriormente instituídos: com o tratado de 8
de abril de 1965 sobre a fusão dos comitês executivos,
se atribuiu na realidade um status definitivo ao
Comitê dos Representantes Permanentes (COREPER)
já previsto pelo art. 151 do tratado CEE, enquanto
que, com o tratado de 22 de julho de 1975, se proveu
à instituição de um tribunal de contas comunitário.
A variedade e diversidade dos órgãos subsidiários
não permite a esquematização senão limitada aos
órgãos periféricos, de caráter regional, instituídos
dentro de algumas organizações universais, com o
intuito de melhor satisfazer às necessidades das várias
regiões do mundo. Pertencem a esta categoria as
quatro comissões econômicas da ONU, respeitantes à
Europa (ECE), à África (ECA), à Ásia e ao Extremo
Oriente (ECAFE) e à América Latina (ECLA), bem
como as diversas agências regionais criadas no âmbito
da OMS, da FAO, da OMM, etc. Entre as restantes
categorias de órgãos subsidiários, que são numerosas,
pode-se mencionar, antes de tudo, as comissões de
especialistas a quem é encomendado o estudo e a
preparação dos atos que depois hão de ser adotados
por outros órgãos; os organismos de gestão, atuantes
fundamentalmente no âmbito das instituições
econômicas; finalmente, os órgãos destinados a
resolver as controvérsias relativas à relação de
emprego dos funcionários, como o Tribunal
Administrativo das Nações Unidas, o da OIT e as
comissões de recurso, que possuem funções análogas
e foram criadas junto de outras Organizações
internacionais.
V. A FORMAÇÃO DA VONTADE NAS
ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS. — As
Organizações internacionais, qualquer que seja a sua
estrutura, simples ou complexa, elaboram suas decisões
com base nas normas do ato que as instituiu. Não
existem, com efeito, no ordenamento internacional,
princípios gerais referentes à formação da vontade nas
instituições. Deste modo, elas prepararam diversos
sistemas e corretivos que foram pouco a pouco
evolvendo, da regra da unanimidade, ainda hoje
amplamente seguida, baseada no princípio da absoluta
igualdade jurídica dos Estados e incompatível,
portanto, com qualquer limitação à sua recíproca
independência, para os mais modernos sistemas
funcionais onde as diversas maiorias dão lugar a uma
ampla variedade de aplicações. É neste contexto que se
insere, por exemplo, o estatuto da OCSE que, embora
preveja a regra geral da unanimidade, permite a sua
não-aplicação, quando se concorde que
860
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
uma determinada resolução não se refere a alguns dos
Estados-membros em razão da sua situação particular.
Além disso, na aplicação do regulamento de
procedimentos, toda a eventual abstenção há de ser
motivada e, por conseguinte, sempre que um Estado
declara abster-se por não estar interessado no objeto
da deliberação, a ausência do seu voto não impede a
formação da unanimidade prevista.
Parecem também de grande importância as
disposições destinadas a definir uma maioria
qualificada por meio de um sistema de votos
favoráveis necessários, cujo exemplo típico se
encontra no Conselho de Segurança da ONU, onde,
nas questões de maior interesse, se exige que, no
cálculo da maioria necessária para a adoção de
medidas, estejam compreendidos os votos favoráveis
de todos os membros ditos permanentes. Tal sistema
fez com que se pensasse que cada um dos membros
permanentes tinha poder de veto sobre as resoluções
do órgão.
Algumas organizações, conscientes de que a rígida
aplicação do princípio da igualdade jurídica dos
Estados poderia paralisar suas atividades — pense-se,
por exemplo, em iniciativas que implicam notáveis
compromissos financeiros, aprovadas por uma maioria
numérica de Estados que representem, porém, uma
quota mínima de capital — introduziram um
corretivo, o chamado voto ponderado, com a intenção
de atribuir maior peso à vontade expressa pelos
representantes de determinados Estados. O efeito
pode ser alcançado por meio de diversos expedientes
e responde a várias necessidades. Nas Organizações
internacionais de financiamento, por exemplo, o voto
atribuído é proporcional à quota de capital subscrita
pelo Estado. Daí reconhecer-se maior influência aos
Estados que contribuem com maior prestação
financeira para as atividades da associação. No
Conselho das Comunidades Européias, se atribui, em
vez disso, a cada Estado um número de votos
relacionado com o seu peso político-econômico. Em
outros casos, como o das assembléias parlamentares,
compostas por indivíduos eleitos pelos respectivos
Parlamentos nacionais, o princípio da igualdade dos
Estados é substituído por um sistema que lhes atribui
um número de cadeiras proporcional às respectivas
populações.
A variedade de sistemas exemplificados se deve
acrescentar que a formação da vontade pode diferir de
um órgão para outro; e, muitas vezes, dentro de um
mesmo órgão, não tem uma disciplina uniforme, mas
está diversamente prevista, levada em conta a natureza
das decisões a tomar.
Não obstante o progresso verificado nos processos
de votação descritos, em muitas Organizações
internacionais, onde aumentou
consideravelmente o número dos membros, houve uma
crescente dificuldade em utilizar o sistema de voto na
formação das decisões da instituição. Recorreu-se, por
isso, com freqüência, ao uso do consensus que, sendo
já utilizado pela ONU, foi explicitamente previsto nas
normas de procedimento da Conferência para a
Segurança e Cooperação na Europa (C.S.C.E.): "o
consenso significa ausência de qualquer objeção
manifestada por um representante e por ele
considerada como um obstáculo à adoção da decisão".
O consensus não constitui um novo processo de
"votação" em sentido técnico, mas uma prática que,
em certas situações, é usada para superar o rígido
mecanismo do voto e expressar de algum modo a
vontade do órgão ou da entidade.
VI. FUNÇÕES DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS.
— A variedade de fins para os quais são instituídas as
Organizações internacionais se reflete também na
variedade das funções por elas desempenhadas. Isso
não impede, contudo, que façamos algumas
considerações gerais e nos detenhamos em algumas
das funções mais comuns.
Toda Organização internacional, conquanto se
origine num acordo que cria direitos e obrigações entre
os associados, adquire importância institucional na
medida em que desenvolve funções próprias, diversas
das dos Estados-membros. Estes encontram a razão
das suas funções no próprio poder e não na autoridade
a eles conferida pelo ordenamento internacional. Todo
o Estado adquire, de fato, subjetividade internacional
na medida em que é capaz de justificar
autonomamente as próprias funções. As Organizações
internacionais, pelo contrário, embora sendo
portadoras, como já foi dito, de um ordenamento
jurídico autônomo, desempenham funções a elas
confiadas pelos Estados, mediante ato institucional.
Todas as atividades da entidade encontram um limite
intransponível na sua mesma "constituição". As
funções das Organizações internacionais não só
pressupõem a existência dos Estados-membros com
suas atividades específicas, como são por vezes
instrumentalizadas em relação a tais atividades,
assumindo um caráter integrativo. Muitas das
atividades das organizações são, de fato, destinadas a
promover, a acompanhar e facilitar atividades
específicas dos Estados.
Entre as funções de maior relevo das Organizações
internacionais está geralmente, antes de tudo, a função
normativa. Esta tem de ser ententendida em sentido
lato: compreende não só a atividade específica da
criação de normas jurídicas, mas também qualquer
outra iniciativa que contribua para a promoção e
desenvolvimento da atividade normativa. As
primeiras
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
manifestações desta função têm lugar na esfera das
relações internas da entidade e visam à sua autoorganização. A evolução deste poder leva depois a
atividades normativas relevantes à margem do
ordenamento interno da organização, atividades
apontadas como função normativa externa, distinta da
interna antes mencionada. J u n t o com este poder
normativo direto, assume particular relevância
também o indireto. O poder normativo indireto
revela-se no plano do ordenamento internacional,
objetivando facilitar a produção de normas jurídicas
entre os Estados-membros.
As Organizações internacionais desenvolvem a
propósito uma complexa ação que vai da especificação
da matéria que deverá constituir o objeto da norma,
até os estudos e pesquisas preliminares, recolha de
dados informativos e de todos os elementos que
possibilitem a confluência dos diversos interesses para
uma solução comum, preparação e convocação de
grupos de técnicos competentes ou de conferências
internacionais.
Se
todas
as
Organizações
internacionais
desenvolvem as atividades referidas, merece uma
menção especial a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) que, durante estes seus anos de
existência, tem contribuído, com suas mais de cento e
vinte convenções, para a consolidação internacional da
observância das condições mínimas do trabalho.
Além das funções normativas, as Organizações
internacionais exercem também, embora de forma
limitada, uma função executiva. As primeiras uniões
administrativas internacionais já desempenhavam
predominantemente atribuições correspondentes à sua
denominação, exercendo funções administrativas
comuns do interesse dos Estados-membros. No período
histórico atual, essa função tende a adquirir um
desenvolvimento mais amplo, pois as Organizações
internacionais vêm assumindo diretamente tarefas
operativas e executivas, com a conseqüente
diminuição da atividade dos Estados nesses campos.
Pensemos, por exemplo, em alguns setores da pesquisa
científica, como o espacial e o da energia nuclear, os
quais, pelo menos na Europa, se acham cada vez mais
subtraídos à ação de cada um dos Estados para serem
diretamente
administrados
por
Organizações
internacionais para isso instituídas (EURATOM,
CERN, ESA, etc).
Merecem também uma menção as funções militares
que,
embora
excepcionalmente,
têm
sido
desempenhadas pelas Nações Unidas, em situações de
especial perigo para a paz do mundo. A primeira vez
que isso aconteceu foi durante o conflito coreano,
quando dezesseis Estados-membros forneceram seus
contingentes militares, organizados sob a égide da
ONU. Depois, a crise do Suez em 1956 levou à
constituição de um
861
corpo regular de forças armadas da ONU, as
chamadas forças de emergência (UNEF), que
guarneceram, por motivos de segurança, alguns
pontos do território egípcio. O mesmo aconteceu em
1960, quando, com a crise do Congo, se procedeu à
constituição de outro corpo (ONUC), com a
incumbência de manter a ordem pública e de reprimir
as atividades terroristas e secessionistas.
Uma
função
que
teve
um
particular
desenvolvimento nas mais recentes manifestações das
organizações internacionais foi a jurisdicional. O
surgimento desta função foi assaz lento, devido, entre
outras razões, à resistência tradicionalmente oposta
pelos Estados à instituição de órgãos judiciários com
competência para julgar os seus atos, mesmo que
apenas dentro de um contexto específico.
A atribuição de poderes judiciários é
particularmente ampla e eficaz em algumas
Organizações internacionais, como, por exemplo, o
Conselho da Europa, em cujo âmbito, conquanto
restrito à Convenção Européia dos Direitos do
Homem, foram instituídas uma Comissão e uma Corte,
perante as quais se desenvolve um efetivo "processo"
que, passando pelas fases de instrução e decisão,
termina com uma sentença obrigatória e vinculadora.
Um exemplo ainda mais eficaz, embora até hoje
único, é o que nos oferecem as comunidades
européias cuja estrutura compreende a Corte de
Justiça, criada como juiz permanente, com
competência exclusiva no âmbito do ordenamento
comunitário.
Entre outras numerosas funções que desempenham
as Organizações internacionais, será oportuno ainda
recordar a atividade de assistência técnica, assistência
das mais diversas formas, hoje principalmente
orientada aos países em vias de desenvolvimento, que
recebeu particular impulso com os programas
preparados para tal fim. pela ONU/UNDP.
Recordamos as funções de estímulo às atividades dos
Estados-membros e as destinadas à coordenação das
mesmas, bem como a atividade de uniformização de
standards e de medidas técnicas nos mais variados
setores, com o fim de facilitar e desenvolver as
relações internacionais.
VII.
CLASSIFICAÇÃO
INTERNACIONAIS. — A
DAS
ORGANIZAÇÕES
singular amplitude que
alcançou o fenômeno da Organização internacional no
século XX, e seu contínuo multiplicar-se em
infinidade de siglas que confundem até os mais
expertos, toma sobremaneira oportuna uma tentativa
de classificação. Os critérios que se podem usar com
tal objetivo são variadíssimos, mas nenhum, por si só,
poderá oferecer uma visão completa do fenômeno.
Convém, por conseguinte.
862
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
integrar os critérios que dizem respeito ao ato
constitutivo com uma referência às atividades que
realiza a organização.
Levados em conta, antes de tudo, os sujeitos que
podem vir a ser membros, as Organizações
internacionais podem ser abertas ou fechadas,
segundo o ato institucional contenha ou não
disposições que consistam a admissão ou adesão de
membros diferentes dos originais. Pelo que respeita à
sua duração, as Organizações internacionais podem
depois dividir-se em organizações por tempo
indeterminado
e
organizações
por
tempo
determinado. Se levarmos em consideração o espaço
em que operam e os Estados que delas fazem parte, as
Organizações internacionais podem ser universais e
regionais ou particulares. As primeiras são
constituídas com objetivos tão gerais que requerem a
participação de todos os Estados do mundo. Tal
universalidade é, de resto, potencial, já que nenhuma
das organizações hoje existentes, compreende todos os
Estados do Mundo, e, mesmo que os compreendesse
num determinado momento, essa característica podia
ser logo menoscabada com o afastamento de qualquer
dos membros ou com o surgimento de um novo
sujeito da comunidade internacional. As demais
organizações, constituídas ao invés, com intuitos
particulares, não tanto pela matéria objeto das suas
atividades quanto pelos interesses comuns a um
determinado grupo de Estados, são chamadas
particulares e, mais freqüentemente, regionais,
levando-se em consideração os Estados entre os quais
surgem, geralmente pertencentes a uma mesma área
geográfica. Pense-se, por exemplo, em típicas
organizações regionais como a Comunidade
Econômica Européia ou a Organização dos Estados
Americanos, confrontando-as com as Nações Unidas, o
exemplo mais clássico das organizações de tendência
universal.
As distinções acima apontadas, de caráter
essencialmente jurídico, hão de ser oportunamente
complementadas com o estudo das atividades e fins
das diversas organizações.
lá nos referimos à existência de Organizações
internacionais com fins e competência gerais, isto é,
organizações que têm por objeto todos os interesses
comuns aos membros, dentro do âmbito global da sua
cooperação. Pertence a esta categoria sobretudo a
ONU, que constitui, de resto, a única organização que,
além de possuir competência geral, possui também um
caráter universal. As outras organizações com
objetivos e finalidades similares são, na realidade,
sem exceção, de caráter regional, isto é, destinadas a
atuar a favor dos interesses comuns dos associados,
mas tendo em conta, fundamentalmente, as
necessidades específicas da região em que operam.
Na região européia, podemos citar o Conselho da
Europa e, apenas concernente à península escandinava,
o Conselho Nórdico; nas Américas, a Organização dos
Estados Americanos (OEA) e a dos Estados Centroamericanos, que mergulham suas raízes nos primeiros
movimentos pan-americanos de Simón Bolivar de
1826; na África, a recente Organização para a
Unidade Africana (OUA), surgida em Addis Abeba
com o tratado de 26 de maio de 1963 e, só relativa aos
Estados árabes, a Liga Árabe, instituída no Cairo em
22 de março de 1945.
Consideradas as atribuições específicas das
Organizações internacionais, podemos distinguir as
seguintes categorias:
a) Organizações econômicas, constituídas com fins
de cooperação entre os Estados com vistas a alcançar
objetivos econômicos gerais ou restritos a
determinados setores. Entre estas últimas lembramos
as Organizações internacionais respeitantes aos
chamados produtos de base, como o Grupo
Internacional do Estudo do Estanho, o Órgão
Internacional dos Vinhos, a Comissão Internacional
da Baleia, o Conselho Internacional do Açúcar, o
Conselho Internacional do Trigo, o do Chá e o do
Café, o Comitê Consultivo Internacional do Algodão
e o Conselho Internacional do Estudo da Lã.
Outras Organizações internacionais possuem uma
função monetária e bancária específica. Entre as
primeiras é de assinalar o Fundo Monetário
Internacional (FMI), onde vai dar todo o sistema da
estabilidade e paridade das moedas, bem como as
diversas uniões monetárias internacionais. Entre os
institutos de crédito assinalamos: o Banco das
Regularizações Internacionais, o Banco Internacional
para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), a
Sociedade Financeira Internacional (SFI), a
Associação Internacional para o Desenvolvimento
(IDA) e numerosos bancos regionais como o Banco
Europeu de Investimentos (BEI), no sistema das
Comunidades Européias, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (IBD), o Asiático, o Africano e o
Árabe. Organizações de competência econômica geral
temos as surgidas na região da Europa,
particularmente: o Benelux, união econômica, que
engloba a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, a
OECE, nascida imediatamente depois da guerra, como
conseqüência do plano Marshall, e depois transformada
em
Organização
para
a
Cooperação
e
Desenvolvimento Econômicos (OCDE), bem como o
Conselho de Mútua Assistência entre os Países da
Europa Oriental (COMECON) e as três comunidades
européias.
b) Organizações
técnicas,
como
a
União
Internacional de Proteção à Propriedade Industrial,
Literária e Artística, o Instituto Internacional de
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
Patentes, a Comissão Internacional do Estado Civil e
o Comitê Internacional de Exposições.
863
recordaremos: a Organização Marítima Consultiva
Inter-governativa (IMCO) para as comunicações
c) Organizações técnico-científicas, destinadas a marítimas, a Organização Internacional da Aviação
operar em determinados setores técnicos, com a exata Civil (ICAO), a União Postal Universal (UPU) e a
incumbência de desenvolver os conhecimentos União Internacional das Telecomunicações (UIT).
científicos dos Estados-membros, mediante programas
de pesquisa que não poderiam ser realizados pelos
VIII. As ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E AS
Estados isolados. Entre elas se contam a Agência COMUNIDADES EUROPÉIAS. — As considerações acima
Internacional para a Energia Atômica (AIEA), ligada apresentadas, aplicáveis na sua generalidade às
às Nações Unidas, a Organização Européia de Pesquisa múltiplas Organizações internacionais hoje existentes,
Nuclear (CERN), o Instituto Central de Pesquisas não levam em conta a particularidade de alguns
Nucleares, que engloba 11 Estados da Europa oriental, fenômenos recentemente manifestados. Com o Tratado
a Organização Meteorológica Mundial (OMM), uma de Paris, de 18 de abril de 1951, foi instituída a
instituição especializada da ONU, a Organização Comunidade Européia do Carvão e do Aço, que devia
Européia de Pesquisa Espacial (ESA) e a da depois ser apontada como a primeira comunidade
Construção e Desenvolvimento dos Vectores (ELDO); supranacional.
Tal
qualificação,
mencionada
incluem-se também aqui a Agência Hidrográfica de explicitamente no tratado da CECA, é a seguir
Padronização dos Documentos Náuticos, a Agência igualmente aplicada à Comunidade Econômica
Internacional de Pesos e Medidas, que guarda os Européia (CEE) e à EURATOM, instituídas em
protótipos internacionais das unidades de medida do cumprimento do Tratado de Roma, de 25 de março de
sistema métrico decimal, o Comitê Internacional de 1957. O caráter supranacional, que diferencia estas
Medicina e Farmácia Militares, a Comissão comunidades das demais Organizações internacionais,
Internacional das Indústrias Agrícolas e o Conselho patenteia-se em certos elementos estruturais e
Internacional para a Exploração do Mar, cujo objeto funcionais que as apresentam como colocadas acima
são as pesquisas oceanográficas internacionais.
dos Estados que delas fazem parte.
Um dos elementos essenciais consiste no fato de
d) Organizações sociais, entre as quais adquirem
particular importância alguns dos institutos que as associações comunitárias são capazes de
especializados da ONU: a Organização Internacional obrigar direta e imediatamente, por meio dos seus
do Trabalho (OIT), a Organização Mundial da Saúde órgãos, os sujeitos dos Estados-membros, ao passo que,
(OMS) e a Organização para a Educação, para a em qualquer outra Organização internacional, os
Ciência e para a Cultura (UNESCO). Propósitos órgãos diretivos, conquanto expressem a vontade da
amplamente sociais são também os da Organização entidade, se dirigem unicamente aos Estadospara a Alimentação e Agricultura (FAO) e de membros, que, por seu lado, deverão conformar-se. A
Organizações internacionais de competência geral obrigatoriedade se manifesta, portanto, só quanto às
como a ONU, através do seu Comitê Econômico e relações entre o Estado-membro e a organização, isto
Social, e o Conselho da Europa, que criou instrumentos é, quanto ao ordenamento internacional, tornando-se
jurídicos de particular importância, entre os quais se necessário, no plano interno, um processo de
inclui a Convenção Européia dos Direitos do Homem, adaptação do ordenamento do Estado às diretrizes da
a Carta Social Européia e a Convenção Européia de Organização internacional. No sistema comunitário, ao
invés, essa adaptação não é necessária, já que o
Estabelecimento.
ordenamento da entidade se integra com o
ordenamento interno dos Estados, apresentando os
e) Organizações militares, instituídas no segundo mesmos sujeitos e unidades de origem da produção
pós-guerra, com o fim de se criar formas de defesa jurídica.
coletiva com base na institucionalização das anteriores
A justificar a supranacionalidade das organizações
alianças militares. A mais conhecida é a Organização comunitárias, estão, além deste elemento, já de
do Tratado do Atlântico Norte (NATO), instituída em notável importância, estes outros: o princípio
Washington a 4 de abril de 1949; se lhe contrapõe a majoritário na adoção das decisões, princípio que
Organização do Pacto de Varsóvia, de 14 de maio de substitui o da unanimidade não como exceção, mas
1955, que une os países da Europa Oriental em torno como regra geral; o caráter parlamentar da
da União Soviética.
assembléia, que é representativa dos povos e não dos
f) Podem englobar-se numa última categoria as Governos; a estrutura do órgão executivo, composto de
numerosas Organizações internacionais que operam pessoas físicas escolhidas em função da sua
nos diversos setores das comunicações. Entre as capacidade e desvinculadas,
instituições especializadas da ONU
864
ORGANIZAÇÃO, TEORIA DA
no desempenho das suas atribuições, de qualquer
relação com o país a que pertencem.
Não obstante os elementos postos de relevo, parece
difícil, dada a limitada casuística, podermos hoje
sustentar a existência de uma nova categoria de
Organizações internacionais, isto é, a existência das
comunidades supranacionais. Isso não impede, aliás,
que as atuais comunidades européias se diferenciem
substancialmente
das
clássicas
Organizações
internacionais, quer no plano associativo, onde se
apresentam como entidades de notável integração
econômica e política, quer no plano jurídico, em cujo
âmbito as características do ordenamento e o
desenvolvimento do direito comunitário vêm a
constituir uma terceira dimensão do direito, entre o
direito interno dos Estados e o da comunidade
internacional.
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organizzazioni internazionale. Cedam, Padova 1971;
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K. ZEMANEK, Das Vertragsrecht der internationalen
Organisationen. Springer, Wien 1957.
[CLAUDIO ZANGHI]
Organização, Teoria da.
1. PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO. — Quando se fala de
Teoria da organização, o termo "teoria" não é usado
na acepção própria das ciências físicas, segundo a qual
uma teoria não é apenas uma sólida estrutura lógica
com referências empíricas, mas o é de tal sorte que
poderá ser refutada, caso um único dado empírico a
contra-diga. Neste contexto entendemos antes por
teoria um esquema conceituai ou, melhor, um
conjunto de esquemas conceituais, complementares ou
alternativos, cujo objetivo, não necessariamente
alcançado, é o de nos deixar em condições de
podermos descrever, interpretar, possivelmente prever
e
eventualmente
controlar,
os
fenômenos
organizativos.
A expressão Teoria da organização é demasiado
ampla e indefinida para se prestar a uma definição
sintética e substantiva. De fato, dada a amplitude e
indeterminação terminológica da expressão, tal
vocábulo é inteiramente reservado à tentativa de
definir analiticamente, de uma perspectiva históricocrítica, o que vem a ser Teoria da organização.
Numa primeira análise, diremos que a Teoria da
organização é uma ciência social que estuda todas as
organizações, fazendo-o desde uma perspectiva
interdisciplinar; é uma disciplina social, por assim
dizer, de segunda geração, cujos antecedentes
imediatos se encontram, por um lado, no recente e
autoconsciente progresso das ciências sociais e, por
outro, na consolidação dos estudos de organização
empresarial e de ciência da administração. Sua matriz
teórica é, pois, a mesma das ciências sociais, as
primeiras que entraram sistematicamente na pesquisa
de campo, para chegar a generalizações validadas pela
verificação das hipóteses, ou seja, a do empirismo e, a
nível mais específico, conforme a escola e as
tendências científicas, a do comportamentismo, do
neopositivismo, e da concepção estrutural-funcional
do agir social.
As tendências que acabamos de indicar possuem
uma perspectiva comum: consideram a organização
como um sistema, como uma realidade cujas partes se
dispõem obedecendo a relações sistemáticas, sendo
constituídas por pessoas. Em suma, a dimensão da
organização que aqui se acentua é a que a caracteriza
como estrutura social, como instituição humana. São
numerosos os adjetivos qualificativos usados pelos
autores para mostrar mais especificamente — se bem
que não de forma unívoca — qual é a organização que
interessa ou, melhor, qual dos seus aspectos: as
expressões que se encontram com maior freqüência
são as de organização administrativa, complexa, "em
larga escala", burocrática ou formal. Em geral, não se
trata tanto de atributos usados para distinguir
determinadas organizações concretas, quanto de
termos evocativos desta ou daquela orientação
metodológica, desta ou daquela fundamentação
teórica.
Todavia, comumente, esses termos qualificativos
possuem a particularidade de se referir a experiências
humanas realizadas no âmbito de estruturas orgânicas
preeminentemente
ORGANIZAÇÃO, TEORIA DA
caracterizadas como tipos peculiares de sistemas
sociais, ou seja, caracterizadas por uma rede de
relações prescritas por uma autoridade, por valores
mais ou menos amplamente interiorizados, conquanto
sempre setoriais e específicos, por processos de
socialização e de diferenciação dos participantes e,
particularmente, por funções que tendem a ser
minuciosamente circunscritas, relativamente estáveis e
explicitamente definidas tanto quanto à dimensão
hierárquica, como quanto à dimensão da
especialização individual.
No presente artigo, após uma breve exposição do
desenvolvimento histórico desta disciplina, daremos
conta das principais tendências teóricas e
metodológicas que caracterizam a sua evolução mais
recente para, enfim, discutirmos as contribuições da
Teoria da organização que assumem importância
particularmente relevante em relação à ciência
política.
II. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
CONSTANTES.
— A Teoria da
E
SUAS
organização
contemporânea deriva de um breve, rápido e intenso
processo onde é possível distinguir, generalizando e
sintetizando, duas escolas ou movimentos de
características e objetivos bem diversos. A tais escolas
servem de fundo e oferecem apoio conceptual duas
orientações de base, dois modos antitéticos de ver e de
conceber o fenômeno organizacional. Estas duas
orientações se apresentam, numa análise históricocrítica do pensamento organizativo, como constantes
intelectuais que, além de haverem moldado o
desenvolvimento histórico da disciplina, permeiam
umas e outras das várias tendências e escolas que hoje
coexistem dentro da Teoria da organização.
Desde o momento em que, nas ciências sociais, se
começou a fazer das organizações o objeto de uma
especulação autônoma, duas concepções, mutuamente
excludentes, foram propostas em relação ao fenômeno
organizativo: por um lado, a organização foi analisada
com referência a um modelo racional, por outro, com
referência a um modelo natural. Temos, num extremo,
uma concepção racionalista; no outro, uma concepção
organicista:
podemos
buscar
sua
origem,
respectivamente, em Saint Simon e em Comte. Para a
primeira, a organização é um instrumento, uma
máquina que o homem pode conscientemente
construir e manipular até alcançar, por meio de
processos racionais, os fins explicitamente estatuídos.
Para a segunda, ao invés, a organização é um
organismo dotado de vida própria, interessado em
manter um equilíbrio interno e externo que lhe possa
garantir mais eficazmente a sobrevivência e o
desenvolvimento.
Historicamente, como já foi dito, estas duas
orientações correspondem a outras tantas escolas
865
bem definidas em seus contornos. De um lado temos a
Teoria da organização que hoje é costume apresentar
como teoria clássica ou ortodoxa. O seu conteúdo
provém de um movimento que teve lugar pelos anos 30
especialmente na América e que está bem representado
nos trabalhos de Gulick e Mooney. Esta teoria está
caracteristicamente marcada por uma interpretação
racionalista da organização — podendo-se afirmar que
é uma ampliação e reelaboração sistemática do
trabalho pioneiro de Taylor e Fayol — assim como por
um conjunto de técnicas produtivas que se
desenvolveram no princípio do século e foram
principalmente aplicadas ao trabalho industrial. A
teoria clássica propõe como objetivos e valores mais
importantes os da economia e eficiência, fazendo sua
uma concepção mecânica e formalista que pretende
restringir o fenômeno organizativo aos limites do
organograma. Os temas e interesses fundamentais são
os da especialização, do controle e da cadeia
hierárquica; o objetivo é o de apresentar descrições
acuradas da fenomenologia da organização, mas o
fator operativo é de longe muito mais importante que o
cognoscitivo, e o fim principal que os representantes
desta escola têm em vista é um fim prescritivo, o de
melhorar o produto econômico e a eficiência. O
conceito das estruturas organizacionais é tipicamente
mecanicista, assim como a teoria da motivação mais
ou menos explicitamente adotada por esta escola; tal
como o taylorismo, a teoria clássica concebe o
participante da organização em termos rigorosamente
individualistas e hedonistas, ignorando a influência do
grupo e as exigências emocionais e psicológicas.
Temos de outro lado aquela que hoje é definida como
teoria neoclássica (mais comumente conhecida como
movimento das "Relações Humanas"), expressão típica
da concepção natural e organicista da organização,
cujo êxito está intimamente associado às pesquisas e
escritos de Mayo. A teoria neoclássica se desenvolveu
e consolidou entre os anos 30 e 40 e é de
extraordinária importância por dois motivos principais.
Primeiro, do ponto de vista metodológico, por ter
realçado a função essencial da psicologia, da psicologia
social e da sociologia no estudo das instituições
organizacionais. Isso equivale a dizer que, com Mayo e
seus discípulos, as ciências do comportamento são
introduzidas no campo dos estudos da organização,
levando consigo, portanto, rigorosas metodologias de
investigação empírica e de teorização baseada na
comprovação das hipóteses. Em segundo lugar, é
preciso lembrar os resultados fundamentais, de caráter
cognoscitivo, originados deste movimento: é com a
teoria neoclássica que se dá uma sistemática relevância
866
ORGANIZAÇÃO, TEORIA DA
aos aspectos sociais, informais e de motivação no
funcionamento organizacional.
A teoria neoclássica pode ser interpretada, em
muitos dos seus aspectos, como uma refutação
polêmica da teoria clássica. Não resta a menor dúvida,
se pensarmos na tendência da teoria neoclássica a
rejeitar os esquemas estruturais, mecanicistas e
racionalistas da teoria ortodoxa, na função essencial
que ela atribui a processos espontâneos e informais na
interpretação do funcionamento da organização e do
comportamento dos seus participantes, e na
meticulosa formulação de uma teoria da motivação
que nega a importância do aspecto individual e
econômico, para valorizar a do aspecto coletivo e
social. Não obstante, através da teoria neoclássica
perpassa o mesmo fio que costura conjuntamente as
diversas partes da teoria clássica: é o caso de sublinhar
especialmente a contínua ênfase dada aos valores do
conhecimento científico, da produtividade e da
eficiência. Por isso se pode dizer que a estratégia
imanente à escola neoclássica consiste em colocar os
fenômenos não racionais, espontâneos e informais, por
ela convertidos em objeto de conhecimento
sistemático, sob o controle de uma racionalidade que
visa à eficiência. Não é por acaso que muitas das
técnicas e experimentos das "relações humanas"
atraíram sobre si a acusação não imerecida de
favorecerem uma direção manipulatória dos
participantes da organização e uma visão mistificante
das relações industriais.
À medida que nos vamos acercando do terceiro
estádio de desenvolvimento da Teoria da organização,
o que abrange aproximadamente os últimos vinte
anos, torna-se cada vez mais difícil fazer qualquer
especificação ou generalização. Na realidade, aquela
que se impôs num período mais recente é
genericamente definida como teoria moderna, mas
não existe na respectiva literatura acordo quanto a
definições, métodos e objetivos, como aliás já
assinalamos na introdução a estas notas. Se nos
afigura, portanto, oportuno apresentar analiticamente
os vários modelos e as várias escolas que, embora
interagindo entre si, se foram desenvolvendo com
características próprias.
III. O MODELO DO PROCESSO DECISÓRIO. —
O primeiro dos modelos, que se tornou conhecido no
fim da década de 40 com os trabalhos de Simon, é o
que põe como centro do funcionamento organizacional
o processo de formação das decisões (decisionmaking). Entre os aspectos que identificam esta escola,
os mais importantes são: a ênfase dada aos aspectos
racionais
e
intelectivos
do
comportamento
organizacional, onde ressalta claramente a influência
dos economistas e dos
psicólogos da comunicação, e a adesão programática e
consciente às orientações próprias do neopositivismo
lógico. Simon e a sua escola criaram uma estrutura
conceptual de notável elegância e solidez: está
baseada em opções precisas a nível filosóficometodológico (distinção entre fato e valor, correlação
entre meios de organização e fins institucionais, clara
adesão à concepção científica da ação organizacional
com o intuito de lhe melhorar a eficiência), na
reelaboração
crítica
de
temas
tradicionais
(comunicação,
autoridade,
especialização),
na
possibilidade de considerar e avaliar os aspectos
afetivos, informais e espontâneos do comportamento
organizacional e, conseqüentemente, na aceitação, em
clave diversa, das contribuições da escola neoclássica.
Mas o ponto focai do modelo simoniano é o de que
os processos administrativos são processos de decisão
que se desenvolvem no contexto de uma racionalidade
limitada, se articulam em escolhas entre alternativas
sucessivas e, levadas em consideração as premissas
organizativas da decisão (estruturais, funcionais,
comportamentais, etc), se orientam à realização dos
fins fixados.
Para concluir, pode-se afirmar que o objetivo
prático e ao mesmo tempo teórico de tal orientação é o
de descobrir os modos pelos quais os processos
decisórios se podem tornar cada vez mais lógicos e
racionais; mas, à medida que a orientação foi
adquirindo maior profundidade de conhecimentos e
maior requinte metodológico, pode-se dizer que o
modelo decisório foi assumindo importância para uma
área cada vez mais limitada da fenomenologia
administrativo-organizacional. A crítica tem insistido
nomeadamente sobre o fato de que ficam excluídos do
modelo decisório, tal como ele se tem ido delineando
nos últimos tempos, aspectos essenciais da
fenomenologia organizacional como a modificação de
objetivos para fins de sobrevivência ou de expansão
institucional, e a interação entre ambiente e
organização, bem como os seus efeitos sobre os
sistemas institucionais e ideológicos.
IV. A ORGANIZAÇÃO COMO SISTEMA. — Se
O modelo decisório, mesmo que concentrado num
aspecto setorial e específico do comportamento
organizacional, traz consigo a necessidade de estudar
as organizações na sua totalidade, tal exigência
constitui o tema central e o objetivo fundamental de
outro movimento que optou pelo modelo da
organização como sistema (General systems theory). A
idéia-base é a de que a melhor maneira de estudar as
organizações consiste em estudá-las como sistemas,
isto é, como entidades que são mais ou menos
independentes e estão
ORGANIZAÇÃO, TEORIA DA
constituídas de partes que são variáveis mutuamente
dependentes.
Do ponto de vista metodológico, são grandes as
influências exercidas pela sociologia, mas mais ainda
pela cibernética, sobre este modelo. A systems theory
apresenta, contudo, uma característica muito própria e
uma orientação inconfundível: seu tema fundamental é
o de que os sistemas, como tais, possuem características
genéricas comuns e que, por isso, a pesquisa científica,
qualquer que seja o seu campo de aplicação (da física à
biologia, da economia à sociologia), poderá encontrar
no conceito de sistema significados e orientações
universais. Podemos afirmar basicamente que, quando
se fala de systems theory, trata-se de um movimento
que propugna a unidade da ciência. As pesquisas
nascidas deste movimento apresentam todas elas
numerosas diferenças entre si no que respeita aos
métodos e tendências conceptuais: há contribuições de
representantes da concepção racionalista da
organização, como os cultores da cibernética, e obras,
pelo contrário, moldadas na concepção organicista,
especialmente as devidas a psicólogos. Mas, afora tais
diferenças, há também características que contribuem
para dar um tom unitário ao movimento. Além da
insistência geral em analisar as organizações como
sistemas de variáveis interdependentes, podemos
indicar também alguns temas comuns estudados pela
systems theory: os agregados de indivíduos inseridos
no sistema; as interações entre os indivíduos e o
ambiente do sistema organizacional; as interações
entre os indivíduos dentro do sistema; as condições
necessárias para garantir a estabilidade do sistema. A
maior parte das pesquisas está encaminhada a
identificar quais são os elementos estratégicos de um
sistema organizacional, qual é a natureza da sua
interdependência e quais são os processos ativos do
sistema que desempenham uma função conectiva entre
as diversas partes, facilitando a sua mútua adaptação.
V. ORIENTAÇÃO SOCIOLÓGICA. — No campo da
teoria moderna da organização, as contribuições
quantitativamente mais relevantes e, quiçá,
essencialmente mais significativas, são, podemos sem
dúvida afirmar, de origem sociológica. Também aqui
abundam as diferenças de tendência e de método, mas
é sempre possível identificar duas bases principais de
pesquisa, inspiradas respectivamente no modelo
burocrático de organização e no modelo de
organização como sistema social. Acrescentemos ainda
que, neste ou naquele autor, são freqüentes e
numerosas as interdependências e integrações entre
ambos os modelos.
867
O modelo burocrático tem a sua origem e a sua
mais autorizada matriz ainda hoje na análise da
burocracia levada a cabo por Max Weber. A análise
desenvolvida por este sociólogo se caracteriza por
observações extraordinariamente minuciosas acerca
das estruturas formais e do funcionamento da
burocracia, sendo ao mesmo tempo extremamente
cautelosa sob o ponto de vista historicista. Assim, se,
por um lado, a análise weberiana chega a
generalizações de vasto alcance sobre as modalidades
estruturais e funcionais da organização burocrática,
por outro, nutrida por uma riquíssima consciência
histórica, está continuamente atenta e voltada para a
identificação das "précondições" que hão de existir
numa sociedade, para que nela se possa desenvolver a
burocracia.
O modelo burocrático (ou ideal-típico) consiste
num catálogo de descrições sucintas de aspectos tanto
estruturais como funcionais da organização
burocrática (como hierarquia, divisão do trabalho,
processos de recrutamento, atitude impessoal dos
burocratas, etc.) que fornecem assunto para a
observação empírica, mas que não são, em si,
descrições desta ou daquela organização concreta; são
acentuações unilaterais do que empiricamente foi
observado, com vistas a poder delinear um tipo puro
de burocracia. Enfim, o modelo weberiano não é uma
classificação de organizações concretas e históricas,
mas antes um mapa que ajuda a leitura do mundo das
organizações burocráticas, que mostra quais os
elementos característicos e relevantes para a análise.
O modelo weberiano tem inspirado, direta ou
indiretamente, toda a literatura sociológica da Teoria
da organização: parte dela não atinge o núcleo
essencial da metodologia weberiana, quando se
aventura a refutar a validade do modelo burocrático,
baseando-se na distonia, empiricamente demonstrada,
entre as características do modelo e as características
das organizações concretas. Mas isto é secundário. O
importante é que muitas das contribuições científicas
mais significativas dos últimos anos se devem a
autores que fizeram da teoria weberiana o motivo da
sua inspiração, se bem que criticando-a num ou noutro
ponto. Basta lembrar a este propósito os trabalhos de
Bendix e de Gouldner sobre a estrutura da autoridade
na indústria, as contribuições de Merton e Crozier
sobre a questão das disfunções patológicas da
burocracia, e os trabalhos de Selznick e Blau sobre a
institucionalização administrativa.
Como já foi assinalado, no âmbito da orientação
sociológica, temos, ao lado dos estudos centralizados
no modelo burocrático, os que se centralizam na
organização, entendida como sistema
868
ORGANIZAÇÃO, TEORIA DA
social. Isto quer dizer que as organizações são vistas
como sistemas sociais que funcionam no contexto
mais amplo e abrangente da sociedade global, com a
qual
mantêm
estreitíssimas
relações
de
interdependência.
Esta orientação tem em Parsons seu mais
autorizado defensor. Considerando as organizações
burocráticas como um dos aspectos mais salientes da
diferenciação e especialização funcional dentro da
sociedade moderna, apresenta uma definição de
organização que indica como elemento que a
distingue de outros tipos de agregado social, sua
orientação essencial à consecução de um fim
específico. Esta consecução é um output que, de um
lado, é visto como um input para outras organizações
e, do outro, é entendida como uma ação
funcionalmente referida à sociedade como um todo.
O conceito de organização como sistema social
tem sido amplamente usado, se bem que com maior
ou menor adesão ao pensamento de Parsons, pela
literatura organizativista. Entre as obras sistemáticas
mais recentes, a de Etzioni, por exemplo, define o
conceito de organização em termos mais ou menos
parsonsianos, caracterizando-a explicitamente como
sistema social. Etzioni põe como central na
organização entendida como sistema social a
reelaboração do conceito weberiano de autoridade,
isto é, do poder que é legítimo aos olhos dos
destinatários, na medida em que estes compartilham,
pelo menos parcialmente, das suas premissas de
valor. Etzioni sustenta, de fato, que o elemento que
caracteriza toda a organização é o controle que
dentro dela se exerce, e que este controle assume
formas e características diversas, de acordo com a
relação que existe entre as modalidades de
articulação da autoridade da organização e a
expectativa dos que nela participam. Eis por que o
controle organizacional pode se basear na coação, na
distribuição de gratificações econômicas ou em
valores normativos. Aqui, as variáveis principais são
constituídas pelas modalidades de adesão ao
comando organizacional. Pode haver três tipos,
correspondendo cada um deles a um determinado tipo
de controle social. Deste modo, ao fim, será possível
chegar a uma classificação de todas as organizações,
levando-se em conta o predomínio nelas de controles
coercivos, utilitaristas ou normativos.
VI. ANÁLISE COMPARATIVA DA ORGANIZAÇÃO. — A
literatura organizacional mais recente vem mostrando
um interesse cada vez maior pelo método comparado.
Em muitos autores foi amadurecendo a convicção
crítica de que, se a investigação empírica é condição
indispensável sempre que se queira obter
conhecimentos confiáveis
sobre a estrutura e o funcionamento das organizações,
ela não é uma condição suficiente. E isto porque,
ainda até há poucos anos, as generalizações propostas
por um ou outro autor derivavam de pesquisas que,
embora esquematicamente bem elaboradas e
metodologicamente aprofundadas, se limitavam à
observação intensiva de casos singulares, sendo,
portanto, capazes de levar a resultados apenas válidos
para o caso considerado e nunca aplicáveis a outras
situações. Os que propugnam um conhecimento das
organizações baseado na análise comparada
pretendem obviar as deficiências acima referidas. O
aspecto fundamental da sua tese é o de que, para
chegar a resultados verdadeiramente generalizáveis, é
preciso estudar mais organizações do mesmo ou de
diverso tipo, adotando um mesmo esquema conceituai
montado sobre uma série de variáveis. O acordo,
contudo, termina aqui. Existem, por isso, pesquisas
comparadas, como a de Etzioni acima lembrada, que
aceitam como variável independente o controle social;
outras que, ao contrário, aceitam como tal a dimensão
ou o processo tecnológico, o nível de
profissionalização, etc. Embora no contexto de um
sem-número de orientações e temas de análise
comparada, é hoje possível distinguir duas correntes
principais de análise comparativa das organizações.
Temos, por um lado, grande número de estudos
respeitantes a organizações de todo o tipo, mas
especialmente a organizações de caráter industrial ou
comercial, estudos que foram adquirindo um cunho
acentuadamente intracultural. Queremos dizer com
isto que, conquanto sejam numerosíssimas e diversas
entre si as organizações tomadas em consideração, elas
foram geralmente escolhidas entre as que operam nos
países ocidentais de elevado nível industrial ou quase
exclusivamente nos Estados Unidos. A objeção que se
pode fazer a tal orientação é, portanto, a de que as
generalizações de caráter conclusivo a que muitos
autores pensam haver chegado não fazem caso algum
da relação existente entre cultura e funcionamento
organizacional. Isto traz como conseqüência
apropriarem-se muitas vezes tais generalizações de
critérios de avaliação ideológico-normativa, de uma
forma acrítica.
Por outro lado, existe uma segunda corrente,
também amplamente representada na literatura
recente, que estuda de preferência organizações
públicas (primeiramente as burocracias), numa
perspectiva comparada intercultural. Neste caso, a
pesquisa concentra-se normalmente em organizações
do mesmo tipo, operantes em contextos culturais
diferentes; deste modo, as variáveis culturais e
ecológicas, descuradas, como se viu, pela primeira
corrente, têm aqui importância fundamental.
ORGANIZAÇÃO, TEORIA DA
Concluamos. Embora muitos autores recentes
tenham apresentado análises otimistas sobre o estado
da Teoria da organização, crendo ser possível formular
princípios verdadeiramente universais sobre o
funcionamento das organizações, é conveniente
fecharmos com uma palavra de cautela, cautela que é
sugerida pelos resultados de alguns dos recentes
trabalhos de administração comparada. Parece
podermos concluir que é ilusório pensar poder-se
chegar, como crêem numerosos autores rigorosamente
neopositivistas, a uma Teoria da organização
absolutamente abstrata e "livre de valores". Isto
porque o conceito de organização, tal como foi
definido na introdução a estas notas (administrativa,
formal, complexa ou "em larga escala", etc), se refere
a entidades que não existem em estado natural, mas só
em sociedades caracterizadas por um certo nível e um
certo tipo de desenvolvimento: daí se segue que as
organizações estão infiltradas e impregnadas dos
valores predominantes na sociedade em que atuam.
Por isso, se é verdade que as técnicas de pesquisa e os
esquemas conceptuais apresentados até agora pelos
cultores da Teoria da organização fazem esperar a
aquisição de notáveis conhecimentos científicos,
também é verdade que, em última análise, "tais
conhecimentos só adquirirão relevância probatória e
peculiar em relação a tipos específicos de valores que
podem ser buscados por organizações operantes num
certo tipo de sociedade".
VII. BUROCRACIA E CIÊNCIA POLÍTICA. — Fica ainda
por discutir um último setor de reflexão teórica e
pesquisa empírica que, embora se situe de pleno
direito dentro da Teoria da organização e incorpore
muitas das suas propriedades e características
descritas até aqui, assume uma importância específica
e direta para a ciência política. Trata-se da área de
estudo que se concentra na análise das funções
"políticas" mais ou menos latentemente desenvolvidas
pelo aparelho da administração pública. O ponto de
partida, hoje amplamente conseguido e empiricamente
válido, está em que os administradores de profissão
participam ativamente na formação das decisões
político-administrativas e exercem um controle quase
monopólico sobre as tecnologias de organização que
regem a execução dessas mesmas decisões. Por outras
palavras, trata-se do tema clássico da relação entre
política e administração que está sendo sujeito à
revisão crítica e à verificação empírica.
Dentro deste setor se observam duas correntes de
pesquisa, com bases metodológicas e elaborações
teóricas específicas e distintas, uma de origem
comportamentista, a outra de tendência estruturalista.
A corrente comportamentista
869
concentra a sua atenção na estrutura das opiniões
políticas e das atitudes ideológicas dos burocratas,
bem como nos dados sociográficos que mais
diretamente influem nos processos de socialização
política. Para esta tendência, uma vez afastada a idéia,
empiricamente inaceitável, segundo a qual a
imparcialidade da ação administrativa seria
assegurada pela neutralidade política dos burocratas, e
uma vez assente que o papel do administrador público
não é, como pretende a mesma concepção, um papel
instrumental com relação aos órgãos políticodeliberativos, mas um papel de ativa participação na
formação das decisões político-administrativas, o
conceito de "receptividade" dos burocratas adquire
uma importância fundamental. A receptividade é
definida como prontidão em captar as solicitações
provenientes do público e dos seus representantes e
como capacidade de agir em sintonia com os valores e
planos manifestados pela sociedade civil. É por isso
que a análise das atitudes ideológicas e das opiniões
políticas da burocracia como grupo social constitui o
centro de interesse da corrente comportamentista.
Quando tal análise visa, em seu desenvolvimento,
conhecer melhor os princípios de valor de uma das
mais importantes elites da sociedade contemporânea e
os modos como se situa no âmbito do sistema
político, os resultados obtidos são de grande
importância empírica e parecem dotados de um
elevado poder explicativo. Mais prudente, se não
negativo, há de ser nosso juízo, quando se admite uma
relação estreita, ou até mesmo unilinear, entre
receptividade dos burocratas e eficácia (que definimos
como relação entre objetivos estabelecidos e objetivos
efetivamente alcançados) da ação administrativa, pelo
que esta seria uma função de alta congruência entre as
atitudes político-ideológicas da classe administrativa e
os valores dominantes no sistema político,
interiorizados e expressos pela classe política.
É esta prudência crítica que mantém a corrente
estruturalista, propensa a pôr em relevo os efeitos de
uma série de condições estruturais, institucionais e
culturais, sobre a eficácia dos serviços administrativos.
Baseados em case-studies, ou seja, em pesquisas
dinâmicas sobre o processo de formação e execução
das decisões, os representantes desta tendência
observam que, para um mais eficaz desempenho, aos
diversos tipos de função pública (distinguem-se três:
funções autoritário-abonadoras, de intervenção
econômico-social, de intermediação de interesses)
deveriam corresponder modalidades diferentes de
decisão, cada uma delas caracterizada por uma
específica e distinta racionalidade administrativa. Por
sua vez, a racionalidade administrativa é função das
estruturas orgânicas e normativas e das culturas
870
ORGANIZAÇÕES SINDICAIS
profissionais que nela se inserem, muitas vezes fruto
de longos processos históricos. A conclusão a que se
chega com base nestas análises é que, embora com
destaques diferentes nos diversos países, as
burocracias atuantes nos sistemas políticos liberaldemocráticos são estruturadas e culturalmente
condicionadas de tal modo que privilegiem a
racionalidade legal (no sentido weberiano), com total
desvantagem dos outros tipos de racionalidade, o que
ajudaria a explicar os problemas de caráter
governativo das sociedades pós-industriais. Com
efeito, a racionalidade legal, de grande eficácia no que
concerne aos processos decisórios lógico-dedutivos
adotados no exercício das funções autoritárias típicas
do Estado de direito do século XIX, é totalmente
inadequada quando as funções a desempenhar tiverem
o caráter de intervenção econômico-social ou de
intermediação de interesses. As primeiras poderão ser
eficazmente cumpridas, usando da racionalidade
empírico-indutiva, experimental e incrementável, as
segundas mediante uma racionalidade receptiva,
orientada para decisões "aceitáveis" e negociadas. A
racionalidade legal é dotada de grande eficácia em
contextos que se caracterizam por fins inequívocos e
por meios de organização (ou conhecimentos) sempre
apropriados aos fins. A situação é outra, quando os
meios de organização têm de ser constantemente
atualizados
mediante
metódicas
empíricoexperimentais (como no caso das intervenções
econômico-sociais), ou quando os objetivos são por
vezes definidos mediante o uso de técnicas de
arbitragem (como no caso da intermediação de
interesses). E, em conclusão ao que concerne à
tendência estruturalista, uma vez que o tipo de
racionalidade que caracteriza uma administração é
resultante de vínculos estruturais relativamente
inelásticos, não é tanto a atitude política da burocracia
que importa, mas a sua prontidão e disponibilidade em
cumprir as funções do Estado moderno, partindo de
adequados princípios decisórios.
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[GIORGIO FREDDI]
Organizações Sindicais.
I. TIPOLOGIA DOSSINDICATOS.— As grandes organizações de
representação dos trabalhadores dependentes, ou,
simplesmente, os sindicatos, apresentam hoje uma
grande quantidade de formas de organização. De
acordo com os critérios de referência, podem-se
distinguir vários tipos.
Se se leva em conta o critério com que se definem
os âmbitos, as áreas onde se recrutam os membros, a
distinção principal é a dos sindicatos de profissão e
dos sindicatos de indústria (v. SINDICALISMO): aqueles
recrutam indivíduos pertencentes ao mesmo mister,
independentemente do setor ou setores industriais
onde ele é exercido; estes fazem seu recrutamento
entre os que pertencem a um determinado ramo ou
categoria industrial. Nos países anglo-saxônicos
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de indústria podem-se distinguir ainda os sindicatos
Modem social
que representam juntamente operários e
ORGANIZAÇÕES SINDICAIS
empregados de uma mesma indústria (como acontece
na Itália) e os sindicatos onde a representação dos
empregados é uma representação à parte.
Se se considera a amplitude dos interesses que os
sindicatos representam, pode-se distinguir entre
sindicatos associativos e sindicatos de classe: os
primeiros fazem referência exclusiva aos interesses dos
seus inscritos; os segundos, ao contrário, procuram
também incumbir-se dos interesses dos não aderentes,
revelando, além disso, uma certa tendência pelos
estratos mais débeis e desprotegidos. Mais: os
primeiros recorrem, de preferência, à contratação
coletiva; os segundos utilizam também a ação política
(Pizzorno, 1976). De modo amplo, embora não
perfeitamente, esta distinção coincide com a distinção
entre sindicatos de profissão (que são associativos) e
sindicatos de indústria (que tendem a ser de classe).
Finalmente, é possível ainda distinguir entre
sindicatos não confessionais ou sem ideologia e
sindicatos que se caracterizam por sua base ideológica
(como na França, e na Itália nas décadas de 50 e 60).
Todas as distinções que foram mencionadas têm
sua origem nos momentos da constituição ou
reconstituição dos vários movimentos sindicais,
havendo-se depois consolidado em estruturas
orgânicas. Mas, se lembrarmos os comportamentos
efetivos dos diferentes sindicatos nestas duas últimas
décadas, parece que se poderá notar uma real
atenuação em muitas das diferenças. Teremos
sindicatos
associativos
envolvidos,
embora
cautelosamente, em objetivos de alcance geral, ou,
pelo contrário, sindicatos de classe fautores de
políticas de descentralização contratual, ou ainda
processos de reaproximação ou reunificação de
sindicatos ideologicamente divididos (Pizzorno, 1976).
II. A ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DOS
SINDICATOS. — A articulação orgânica dos
sindicatos mais representativos conta hoje com um
nível nacional (de categoria, de profissão) e com um
ou mais níveis descentralizados com base no território
e/ou lugar de trabalho (sendo a descentralização de
base territorial típica dos sindicatos de classe, e a que
se baseia especificamente nos lugares de trabalho,
muito mais típica dos sindicatos associativos).
Existem ainda sindicatos menores que são meros
sindicatos de empresa, como a SIDA, na Itália,
sindicato autônomo dentro da Fiat. O nível mais
significativo no que concerne à distribuição do poder
é, como observa Clegg, aquele em que se acha
mormente desenvolvida a contratação coletiva (salva a
vária importância relativa à ação política): nos
sindicatos associativos será a estrutura periférica que
se constitui a partir dos lugares de trabalho; nos
sindicatos
87!
de classe, serão antes os níveis centrais, capazes de
selecionar e coordenar as solicitações particulares da
base (Clegg, 1980).
Os sindicatos nacionais estão geralmente afiliados
a uma ou mais confederações, que constituem o nível
mais geral, o árbitro dos litígios (quando se trata, por
exemplo, de conflitos de competência entre os
sindicatos) e a instância de representação de todo o
movimento sindical nas negociações ou nas ações de
pressão sobre os Governos.
Na Itália, a articulação das estruturas da CGIL, tal
como ficou definida no imediato pós-guerra (e foi
depois reproduzida com algumas modificações pelas
outras duas centrais sindicais, a CISL, de inspiração
católica, e a UIL, de inspiração social-democrática,
em sentido lato, após a cisão sindical), assenta num
duplo critério organizacional: o de tipo territorial ou
horizontal, e o de categoria ou vertical. Ambas estas
linhas de organização possuem articulações a nível
local, provincial e nacional. Mas é a lógica da
coordenação e da direção geral, tal como se expressa
nas estruturas horizontais, que prevalece sobre a
lógica da representação de interesses mais específicos
e particulares, melhor expressa nas estruturas de
categoria. Com efeito, é pelo fato de se pertencer à
Câmara do Trabalho provincial (instância horizontal)
que se faz parte da CGIL. No estatuto de 1945 se lê
que "todas as câmaras confederativas do trabalho
locais e todos os sindicatos provinciais de indústria ou
categoria constituem a Câmara Confederativa do
Trabalho provincial, que realiza a união orgânica da
classe operária e de todos os trabalhadores
organizados da respectiva província". O conjunto das
câmaras de trabalho provinciais e das federações
nacionais de indústria e de categoria formam a CGIL.
Diversamente do que acontece com outros
movimentos sindicais, na Itália, a confederação não é,
portanto, uma superinstância de coordenação entre
sindicatos fundamentalmente autônomos (é desta
posição que se aproxima bastante a CISL, definida,
com efeito, como confederação de "sindicatos" e não
de trabalhadores), mas é, em sentido lato, o sindicato
(observações análogas sobre o sindicalismo francês
encontram-se em Clegg, 1980, 53).
Na década de 70, a estrutura do sindicato italiano
se modificou com a introdução de um nível de base
nos locais de trabalho (v. REPRESENTAÇÃO OPERÁRIA)
e de um nível regional, tanto no tocante à linha
vertical como à horizontal. A criação de uma estrutura
sindical na empresa é o principal resultado (a nível de
organização) do enorme incremento da contratação
descentralizada ocorrido entre os fins dos anos 60 e o
início dos anos 70. A introdução dos níveis
872
ORGANIZAÇÕES SINDICAIS
regionais pode ser considerada, tanto como um
processo de adaptação ao ambiente, pois que imita a
descentralização administrativa posta em prática pelo
Estado com a criação das regiões, quanto como uma
busca de instâncias intermediárias de coordenação
entre as locais e as nacionais, exigidas por uma
estratégia contratual voltada para a consecução de
objetivos a médio prazo. Este processo de redefinição
dos níveis de articulação do sistema há de continuar
ainda, segundo se prevê, pela década de 80, com o
desenvolvimento de estruturas de ligação entre o nível
regional e o nível local, a exemplo dos projetos de
reorganização das administrações locais, e com o
progressivo
desaparecimento
das
estruturas
provinciais.
III. O SINDICATO COMO ORGANIZAÇÃO: FINS
INSTITUCIONAIS. — Todos os sindicatos enfrentam
o problema de garantir a sobrevivência da organização,
de lhe assegurar a duração mesmo em condições
desfavoráveis e, se possível, de a expandir.
A força de um sindicato depende, de fato, em
grande parte, embora decerto não exclusivamente, da
consistência dos que a ele aderem: quanto maior for a
adesão explícita, tanto maior será a possibilidade de
fazer pressão sobre as partes adversárias com o fim de
obter benefícios para os representados e consideração
ou poder, bem como reconhecimento e prestígio, para
os representantes. E quanto maiores forem os êxitos e
resultados que o sindicato apresentar, tanto maior será
a probabilidade de alcançar novas adesões, que depois
o reforçarão. Poder-se-ia, sem dúvida, pensar que se
trata de uma espiral, onde o recurso inicial (a adesão
da base) e o produto final da ação sindical se reforçam
cumulativamente. Na realidade não é assim, pois que
a concessão dos benefícios não se pode dar
indefinidamente sem provocar efeitos distorcidos e
indesejáveis em outros pontos do sistema (pressão
inflacionária, redução das bases de emprego regular,
etc).
Os sindicatos têm, além disso, necessidade de
garantir a suficiente estabilidade das inscrições, por
ser delas que deriva grande parte das suas
disponibilidades financeiras. E este é também um
recurso de que não é possível prescindir, já que, de
pequenas associações voluntárias, os sindicatos se
transformaram em grandes organizações, com um
aparelho amplo e inúmeras atividades.
Os modos como os diversos sindicatos procuraram
assegurar os fins institucionais da sobrevivência, da
estabilidade e da expansão da organização são
variados
e
apresentam-se
marcados
pelas
circunstâncias em que se deu seu fortalecimento. Os
sindicatos associativos, que se
impuseram em condições de mercado de trabalho
favoráveis à oferta, fizeram valer em muitos casos a
regra do closed shop ou do union shop, pela qual a
inscrição se torna um pré-requisito necessário para a
entrada no trabalho, ou uma prática obrigatória depois
de o assumir. Os sindicatos de classe deixaram um
espaço maior ao proselitismo, contando mais com a
voluntariedade da adesão.
Mas, mesmo neste caso, têm crescido as medidas
de proteção sindical. Consideremos, por exemplo, o
caso italiano. Desde a metade da década de 60, os
sindicatos de muitas categorias negociaram e obtiveram
a instituição da delegação sindical que implica a
inscrição por tempo indeterminado e a retenção direta
na fonte das cotas sindicais. É claro que isto não
explica a expansão das inscrições verificada no início
dos anos 70, mas dá conta da gestão sindical e do rigor
das inscrições, uma vez que os inscritos, para saírem,
têm de tomar a ingrata iniciativa de apresentar a
renúncia explícita à direção. Em alguns casos
(agricultura, emprego público) o envolvimento
institucional do sindicato lhe permite também oferecer
benefícios acrescidos aos inscritos (informações e
proteção, ajuda no acesso à assistência pública, etc),
favorecendo diretamente o aumento das inscrições.
Uma conseqüência contraditória do incremento das
medidas de proteção sindical é que, se com elas se
assegura a estabilidade orgânica dos sindicatos, por
outro lado, o nível das inscrições perde com o tempo o
significado de indicador do consenso da base à
organização; e a manifestação do consenso, de que os
sindicatos não podem prescindir, terá de ser buscada
por outras vias.
IV. O
SINDICATO COMO ORGANIZAÇÃO: RELAÇÕES
— Uma organização de representação de
interesses coletivos como o sindicato se caracteriza,
decerto, também pelas relações que se estabelecem
entre representantes e representados, pelo grau de
participação na vida associativa e de controle das
decisões dos dirigentes, e pelo tipo de democracia
interna.
Muitos estudiosos das relações industriais puseram
em relevo como os sindicatos adotaram uma estrutura
formalmente democrática (os dirigentes são eleitos
pelos membros por meio de congressos, as decisões
mais importantes são submetidas ao parecer das
assembléias dos inscritos ou dos trabalhadores), mas
também como a essa estrutura corresponde uma
escassa participação, quando não uma clara
indiferença, dos sindicalizados (Rees, 1962; Seidman,
1954; Korpi, 1978; Streeck, 1978). As razões
apresentadas para explicar a minguada participação
ativa dos
INTERNAS.
ORGANIZAÇÕES SINDICAIS
inseritos na vida sindical são variadas: o fato de as
questões enfrentadas pelos sindicatos tenderem a ser
cada vez mais complexas e, portanto, difíceis de
julgar; a tendência generalizada entre os trabalhadores
de considerar o sindicato como uma agência
seguradora ou um serviço semipúblico, a que se pede
apenas um bom funcionamento sem implicações
pessoais, muito mais quando a organização é sólida e
tem tradição; a própria grandeza da organização que
faz parecer inútil o custo individual da participação.
Mas há uma indicação que parece emergir das
observações dos estudiosos, sobretudo anglo-saxões,
que foram os que mais se ocuparam destes temas: é a
de que a queda da participação não pode ser simples e
univocamente interpretada como queda de consenso,
como diminuição do apoio dos trabalhadores. O que
acontece de preferência é que o sindicato que possui
uma tradição firme se transforma numa organização
onde os papéis são cada vez mais profissionalizados e
técnicos, e dificilmente controláveis. Estas
observações parecem, portanto, confirmar as
previsões de Michels sobre o fortalecimento do
comando oligárquico nas organizações complexas.
A experiência italiana da década de 70 também
revela a passagem de uma elevada participação na
vida sindical, em momentos em que a organização
mais se expande através da ação descentralizada da
fábrica (e a exigência comum entre os trabalhadores é
a de uma participação "direta", não delegada), a um
progressivo declínio depois, quando a estratégia
sindical tende a concentrar-se em objetivos de médio
e longo prazo, fora da fábrica. É possível interpretar
esta evolução como indicadora de uma geral
tendência histórica à centralização das decisões nas
873
organizações políticas de representação. Mas também
se pode aventar a hipótese de que a queda da
participação não é uma tendência irreversível: ela
poderá existir, e até em parte ser favorecida, enquanto
os sinais de um escasso envolvimento ativo dos
inscritos não ameaçar a consistência do recurso
fundamental em que se baseia a organização, a adesão
da base. Nessa altura, tornar-se-á conveniente abrir
novo espaço às instâncias descentralizadas, aos
militantes de base, a novos estratos operários.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VAR., Il sindacato e le sue
strutture, '"Quaderni di rassegna sindacale", XII,
julho-agosto 1974; Id., La sindacalizzazione fra
ideologia e pratica, ao cuidado de G. ROMAGNOLI, Ed.
Lavoro, Roma 1980; H. CLEGG, Sindicato e
contrattazione colletiva (1976), Franco Angeli, Milano
1980; M. CROZIER, Sociologie du syndicalisme, in
Trattato di sociologia del lavoro. ao cuidado de G.
FRIEDMANN e P. NAVILLE, Edizioni di Comunità,
Milano 1963; W. KORPI, The working class in welfare
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University Press. Oxford 1963; J. SEIDMAN, The labor
union as an organization. in Industrial conflict. ao
cuidado de A. KORNAAUSER, R. DUBIN e A. M. Ross,
McGraw-Hill, New York 1954; W. STREECK, Processi
di nazionalizzazione amministrativa nei sindacati della
Germania occidentale. in Sindacato e organizzazione.
ao cuidado de G. GASPARINI, Franco Angeli. Milano
1878.
[IDA REGALIA]
Pacifismo.
I. DEFINIÇÃO. — Por Pacifismo se entende uma
doutrina, ou até mesmo só um conjunto de idéias ou
de atitudes, bem como o movimento correspondente,
marcados por estas duas características: a) condenação
da guerra como meio apto para resolver as contendas
internacionais; b) consideração da paz permanente ou
perpétua entre os Estados como um objetivo possível
e desejável. O Pacifismo é contrário tanto ao
belicismo, isto é, a todas as doutrinas que exaltam a
guerra como fator de progresso moral, social e
técnico, quanto ao imperialismo, isto é, à doutrina que
não exclui a paz mesmo permanente, mas quer
alcançá-la mediante a conquista ou a sujeição dos
mais débeis, política e economicamente, pelos mais
fortes. O Pacifismo distingue-se, por sua vez, tanto do
cosmopolitismo, que é a afirmação de universalismo,
mais no campo das idéias que das instituições, e
reivindica a superação de todas as barreiras nacionais
quanto aos indivíduos, não quanto aos Estados, como
também do internacionalismo, que proclama a união
supranacional das pessoas pertencentes ao mesmo
grupo, classe ou partido, com o objetivo de reforçar
sua coesão e influência, não necessariamente com fins
pacíficos.
II. BREVE HISTÓRIA DAS CORRENTES PACIFISTAS. — O
Pacifismo moderno nasceu sob a forma de uma
doutrina filosófico-jurídica, no século XVIII, com
Projeto para tornar a paz perpétua na Europa, do abade
Charles Frené Castel de Saint-Pierre (1658-1743),
aparecido em 1713 e alicerçado no princípio de uma
aliança perpétua entre os Estados soberanos,
obrigados, por um tratado internacional, a submeter
todas as suas contendas ao juízo de todos os outros
Estados reunidos em assembléia permanente. Sua
primeira elaboração doutrinai de relevo se encontra
num pequeno tratado kantiano, Para a paz perpétua
(1795), que se inspira no princípio de que a tendência
da história humana é a de tornar real uma sociedade
jurídica cada vez mais vasta, entendido o
direito como conjunto de condições capazes de tomar
possível a coexistência pacífica das liberdades
externas: um fim que pode ser alcançado por uma
federação de Estados livres, quando cada Estado
houver adotado uma forma republicana, onde o poder
de decidir da guerra ou da paz não caiba ao monarca,
mas ao povo. Em 1814, Saint-Simon, juntamente com
o historiador Thierry, escreveu um opúsculo, Da
reorganização da sociedade européia, onde auspiciava
a formação de um parlamento geral europeu,
constituído à imagem e semelhança do Parlamento
inglês, que fosse "colocado acima de todos os
Governos nacionais e investido do poder de julgar
seus litígios".
No século XIX, os projetos individuais, ligados a
pessoas singulares, cedem a passagem à formação de
associações para a paz, primeiro de caráter religioso
como a Sociedade da Paz de New York (1815),
instituída pelo quacre David Dodge, a Sociedade
Americana para a Paz (1828), fundada por William
Ladd, e a primeira sociedade pacifista européia
fundada na Suíça, em 1830, pelo conde de Sellon;
numa segunda fase, se inspiraram na doutrina
econômica do livre comércio, de que foi animador
Richard Cobden, nos primeiros grandes congressos da
paz (Londres, 1843; Bruxelas, 1848; Paris, 1849);
numa terceira fase, elas se desenvolveram por obra de
grupos democráticos e radicais que aspiravam à paz
mediante o triunfo do princípio da nacionalidade, a
destruição dos antigos impérios e a instauração de
Governos fundados na soberania popular (recorde-se,
neste sentido, o Congresso de Genebra de 1867,
organizado pela Liga Permanente da Paz de Frédéric
Passy, onde Garibaldi tomou parte com grande
sucesso; a seguir, os Congressos de Berna, 1868, e de
Lausana, 1869). Com a constituição da Segunda
Internacional socialista (1889), os congressos
socialistas
representaram
uma
das maiores
manifestações de Pacifismo internacional.
III. AS VÁRIAS FORMAS DE PACIFISMO. —
As várias correntes pacifistas se distinguem pela
maneira diversa como explicam as origens das
876
PACIFISMO
guerras e, conseqüentemente, pelos diversos meios que
propõem como necessários para as eliminar. Para o
Pacifismo ético-religioso, as causas das guerras hão de
ser buscadas sobretudo na própria índole ou natureza
do homem; portanto, o remédio só pode ser de caráter
espiritual. A versão secularizada desta interpretação
individualista da guerra encontramo-la nas várias
teorias psicológicas, e agora também psicanalísticas,
que vinculam a guerra à agressividade instintiva do
homem e propõem como remédio modos alternativos,
menos nocivos, de satisfazer e desafogar o instinto de
agressão.
O Pacifismo econômico, que obteve grande êxito
com os defensores do livre comércio, sustentava que a
causa principal das guerras era o protecionismo
econômico que obrigava os Estados a buscar pela
conquista o que não conseguiam obter com o livre
comércio. A idéia de Cobden de que, mediante a
abertura das fronteiras econômicas, o comerciante
substituiria pouco a pouco o guerreiro, era uma idéia
que emparelhava com a filosofia da história de
Spencer, para quem as leis fatais da evolução teriam
transformado as antigas sociedades militares, que
viviam da guerra e na guerra, em pacíficas sociedades
industriais. Já Voltaire escrevera que a guerra, um dos
flagelos mais terríveis da humanidade, é obra "da
fantasia de trezentas ou quatrocentas pessoas
espalhadas pela superfície do orbe terráqueo, com o
nome de príncipes ou governantes". Que a guerra era
devida ao "capricho dos príncipes" e, portanto, a
causas essencialmente políticas, e que, por
conseguinte, a única esperança de eliminar a guerra
estava no abandono do despotismo pela democracia,
foi também, como se viu, a idéia de Kant. Esta forma
de Pacifismo, que se pode chamar político pela sua
causa ou democrático pelo remédio, esteve em voga
sobretudo nos movimentos democráticos do século
passado. Mazzini, no estatuto da Nova Europa,
proclamava que "a humanidade não estará
verdadeiramente constituída senão quando todos os
povos que a compõem, havendo alcançado o livre
exercício da sua soberania, se associarem numa
federação republicana" (art. 19). No âmbito das
diversas correntes socialistas, a guerra foi sempre
considerada um produto, não tanto de um certo tipo de
regime político, quanto de uma determinada forma de
produção, como é justamente a capitalista, cuja
sobrevivência depende da constante conquista de
novos mercados; isso traz como conseqüência, de um
lado, as guerras de conquista colonial e, de outro, as
guerras ainda mais terríveis entre as mesmas potências
coloniais pela repartição das colônias, de acordo com
as teorias da fase imperialista
do capitalismo, de que conhecemos duas diversas
versões, a de Rosa Luxemburg e a de Lenin. Segundo
esta interpretação da história, a paz internacional não
poderá ser alcançada senão com a eliminação do
capitalismo. Moções de orientação pacifista podemos
encontrá-las em todas as ordens do dia aprovadas
pelos diversos congressos da Segunda Internacional;
"As guerras entre os Estados capitalistas — lê-se na
declaração final do Congresso de Stuttgart, de 1907
— são em geral resultado da sua concorrência no
mercado mundial"; vem a seguir a conclusão de que
"as guerras cessarão com o desaparecimento do
capitalismo". A Terceira Internacional, empenhada em
defender as conquistas da revolução soviética, foi
obrigada a deixar para tempos melhores o Pacifismo
finalístico, limitando-se a desmascarar o falso
Pacifismo da Sociedade das Nações, infamada como
Santa Aliança dos Estados capitalistas. Pacifismo
jurídico, ou da paz pelo direito, é, enfim, o que atribui
as guerras à permanente anarquia da sociedade
internacio nal e vê como único remédio a eliminação
da soberania absoluta de cada um dos Estados e a
criação de organizações internacionais cada vez mais
amplas e cada vez mais centralizadas, até que venha a
constituir-se o Superestado ou o Estado universal.
Segundo este ponto de vista, é preciso distinguir bem
a noção de conflito da noção de guerra. A guerra é
apenas um modo, caracterizado pelo uso da força
organizada, de resolver os conflitos internacionais: há
razões econômicas, políticas e sociais que servem para
explicar a origem dos conflitos, mas só a soberania
absoluta dos Estados e a fraqueza de um direito como
o internacional, que é paritário e não hierárquico,
explicam por que é que os conflitos entre os Estados
não podem ser resolvidos, com o andar do tempo,
senão pela guerra. Em 1947 foi elaborado por um
comitê um plano de constituição do Estado universal;
outros projetos e comissões se lhes seguiram nos anos
sucessivos, mas sem qualquer resultado para a política
dos Estados e com pouca repercussão na opinião
pública.
IV. PACIFISMO PASSIVO E PACIFISMO ATIVO. —
Segundo outro critério de distinção, as dou trinas
pacifistas podem dividir-se em passivas e ativas,
conforme considerem a meta final, a paz, como
resultado de uma evolução fatal da sociedade humana
ou como conseqüência do esforço inteligente e
organizado do homem com vistas a um fim desejado.
Reproduz-se, assim, no âmbito do pensamento
pacifista, a mesma distinção que divide os movimentos
socialistas da Segunda Internacional, inspirados numa
concepção
PARLAMENTO
determinista da história, daqueles que vão buscar a
força e o nome à teoria leninista do partido
revolucionário. Grande parte das correntes pacifistas
do século passado eram guiadas pela idéia de que a
guerra estava destinada a desaparecer, tal como o
Estado, com o desenvolvimento da sociedade
industrial (teorias liberais), com a ampliação e
consolidação dos Estados nacionais e populares
(teorias democráticas), ou com a desaparição gradual
das sociedades divididas em classes. O Pacifismo
passivo esgotara sua função, quando conseguiu
demonstrar que a guerra já não era necessária para o
desenvolvimento da humanidade. O Pacifismo ativo
quis demonstrar, em vez disso, que a guerra é um
acontecimento negativo e danoso que tem de ser
impedido. A característica das correntes pacifistas de
hoje, da era da guerra atômica, é a de se haverem
transformado em Pacifismo ativo: em face do perigo
da destruição de todo o vestígio humano sobre a terra,
a paz é um bem sumamente importante, ao qual é
preciso tender com esforço tenaz e unânime.
877
isto é, até o autor e usuário das técnicas e das várias
formas de organização social. Uma vez que a
viabilidade está em relação inversa com a
complexidade e a eficácia em relação direta com a
profundidade, poder-se-á também dizer que qualquer
destes três caminhos para a paz será tanto mais viável
quanto menos eficaz, e vice-versa. Isto permite
colocá-los numa ordem decrescente de viabilidade e
numa ordem crescente de eficácia, partindo do
desarmamento, que é o caminho mais viável, mas
também o menos eficaz, até à reforma moral do
homem, que é certamente o caminho mais eficaz, se
bem que, no plano real, o menos viável.
BIBLIOGRAFIA. - AUT. VÁR., La paix. 2 vols. Éditions
de la Librairie encyclopèdique, Bruxelles 1961-62; G.
BOUT-HOUL, La guerra, Elementi di polemologia
(1951), Longanesi, Roma 1961: G. del VECCHIO, Il
fenomeno della guerra e l'idea della pace. Bocca,
Torino 1911; E. ROIA. I movimenti pacifisti dell'800 e
del 900 e le organizzazioni internazionali, in Questioni
di storia contemporanea, vol. II, Marzorati, Milano
V. PACIFISMO INSTRUMENTAL, INSTITUCIONAL E 1952; T. RUYSSEN, Les sources doctrinales de
FINALÍSTICO. — Este esforço pode estar voltado para
l'internationalisme, 2 vols., P.U.F., Paris 1954-1958; M.
os meios que se usam para fazer a guerra, para as SCHELER, Die Idee des Friedens und der Pazifismus, Der
instituições que a tornam possível, ou para o próprio Neue Geist Verlag, Berlim 1931.
homem. Daí a distinção entre Pacifismo instrumental,
institucional e finalístico. Cada uma destas três formas
[NORBERTO BOBBIO]
de Pacifismo ativo apresenta, por sua vez, duas faces.
No Pacifismo instrumental convém distinguir a ação
orientada à destruição ou à drástica limitação dos
instrumentos bélicos (doutrina e política do
Parlamento.
desarmamento), da ação tendente a substituir os meios
violentos pelos não violentos e, conseqüentemente, a
obter, por outros meios, o mesmo resultado (teoria e
I. ESBOÇO HISTÓRICO. — Quando se fala de
prática da não-violência, em particular a doutrina do
Satyagraha de Ghandi). Ao Pacifismo institucional Parlamento e de parlamentarismo, se faz normalmente
a
fenômenos
políticos
cujo
estão ligadas tanto as teorias que visam à constituição referência
do Estado universal, como as que visam à abolição do desenvolvimento histórico se insere na curva temporal
Estado, isto é, tanto o Pacifismo que dissemos que vai da Revolução Francesa até os nossos dias.
jurídico, como, em última análise, a doutrina Contudo, em quase todos os países europeus houve,
comunista e anárquica. No Pacifismo finalístico mesmo nos séculos anteriores, instituições políticas
juntam-se, enfim, quer o Pacifismo ético-religioso que genericamente denominadas "Parlamentos", embora
tem em vista a conversão e transformação moral do por vezes fossem também chamadas de "Estados
homem, o homem novo, quer o Pacifismo científico, Gerais", "Cortes", "Estamentos", etc.
Afora o nome, existe algum vínculo de parentesco
que tem em vista neutralizar ou canalizar em outras
direções o instinto de agressão; junta-se aí tanto o entre esses dois tipos de instituições? Existe algum
Pacifismo dos sacerdotes e dos moralistas, quanto o elemento que permita falar de continuidade entre os
dos homens da ciência. As três formas de Pacifismo Parlamentos chamados "medievais" e os Parlamentos
dispõem-se numa ordem progressiva de maior modernos, não obstante as enormes transformações
complexidade e profundidade: a primeira finca-se no que se hão de dar por descontadas? É difícil dar uma
plano das técnicas específicas; a segunda estende-se resposta totalmente unívoca a tais questões. O exame
ao plano da organização social global; a terceira vai das características estruturais e das modalidades de
desenvolvimento das funções específicas revela uma
mais além, até o homem.
grande distância entre os Parlamentos "medievais" e
os Parlamentos modernos, distância que
878
PARLAMENTO
reflete a diferença igualmente clara que existe entre o
Estado medieval e o Estado moderno. Contudo, se
descermos aos princípios fundamentais (o medieval
de que quod omnes tangit ab omnibus probetur e o
moderno da participação) e ao núcleo funcional
(representação, controle, elaboração de normas) que
caracterizam as instituições parlamentares tanto
velhas como novas, poderemos descobrir elementos
de continuidade que não são de desprezar. A própria
experiência histórica européia justifica sem dúvida,
até certo ponto, essa divergência de interpretações.
Ela apresenta, de fato, diversas seqüências de
desenvolvimento: umas onde predomina a
continuidade, outras, ao invés, acentuadamente
marcadas por transformações bruscas. Só para termos
alguns exemplos clássicos, pensemos na Inglaterra e
na França. Ressalvadas as diferenças justificadas pela
diversidade histórica, ocorre perguntar se será
possível conciliar, pelo menos parcialmente, tais
interpretações. Ora, é necessária uma certa
conciliação, porquanto, se é verdade que entre os
Parlamentos medievais e os modernos há enormes
diferenças, quer se considere sua composição, seus
poderes ou duração, também é verdade que, pelo
menos um dos Parlamentos contemporâneos, e não
certamente o de menor importância, nasceu, por
evolução, das instituições medievais. É preciso,
porém, ter presente que a chave de um confronto útil
entre as instituições políticas de uma curva temporal
tão longa está em buscar, não tanto semelhanças
muito precisas, improváveis por causa das mudanças
ocorridas no contexto político geral, quanto as
"correspondências" e analogias de estruturas e
funções. Tomemos, por exemplo, a função da
elaboração das normas. Os Parlamentos medievais
exerciam-na,
fundamentalmente,
como
ação
"conservativa", de consolidação do direito
consuetudinário e de defesa dos privilegia em vigor.
Nos Parlamentos modernos, ao contrário, esta função
assume um caráter nitidamente "inova- • dor", visa à
produção de novas leis. Contudo, após havermos
explicado estas variedades funcionais, referindo-as
aos
diversos
ordenamentos
jurídicos,
um
descentralizado e estático e o outro centralizado e
dinâmico, a que correspondem tais variedades,
emergirá, não obstante, um certo parentesco básico.
O contexto político, que dá origem às instituições
parlamentares e lhes imprime a marca fundamental,
é o do Estado medieval, caracterizado por uma
estrutura muito descentralizada e articulada, um
verdadeiro mosaico de situações e "privilégios"
particulares. A atividade política central do Estado
não se elevou ainda a uma posição de grande relevo
e se desenvolve sem muita continuidade. Estas
características
repercutem diretamente nos Parlamentos. À estrutura
complexa e variada do Estado medieval, corresponde
a estrutura igualmente complexa dos Parlamentos
(subdivisão em várias câmaras, presença simultânea de
membros eleitos e de membros de direito), assim como
à maior homogeneidade nacional resultante, em geral,
do surgimento do Estado moderno, corresponderá
uma maior homogeneidade também na composição
dos Parlamentos.
Na verdade, é a estrutura caracteristicamente
policêntrica do Estado medieval que cria os
pressupostos para o nascimento das instituições
parlamentares. A descentralização da autoridade, que
é resultado da organização feudal, faz surgir a
necessidade da ação compensatória de um elemento
unificador. Quem desempenha inicialmente esta
função é o próprio entourage do soberano, isto é,
aquela assembléia bastante restrita de feudatários
leigos e eclesiásticos que toma umas vezes o nome de
curia e outras o de consilium regis. É deste núcleo que
nasceram muito provavelmente, mediante progressivos
alargamentos, os Parlamentos medievais. Uma etapa
fundamental deste processo é assinalada pela
intervenção, primeiro irregular e de peso incerto,
depois de freqüência mais regular e eficácia maior,
nas reuniões destes organismos, de delegados dos
centros urbanos, que vão adquirindo uma crescente
importância econômica e social. A instituição
ampliada perde o caráter de órgão estritamente ligado
ao soberano com funções de assistência e conselho;
em tais funções, cede pouco a pouco o seu lugar a
organismos de caráter profissional (isto é, formados de
clérigos) e mais especializados que vão nascendo. O
Magnum Consilium se transforma em Parlamentum,
saindo desta transformação com uma posição de maior
autonomia em face do poder régio. Relacionados com
esta nova posição, se desenvolvem os poderes
moderador e de controle. Este processo genético se
verifica, mais ou menos, em todos os países da
Europa, entre os séculos XII e XIV; as vicissitudes
sucessivas dos Parlamentos serão as mais diversas.
Como base nestes desenvolvimentos históricos, há uma
dupla necessidade. Por um lado, há a urgência de o
poder central do rei consolidar o consenso do país,
associando e, conseqüentemente, vinculando às
decisões políticas os poderes periféricos, tanto feudais
como urbanos, sem cuja colaboração se tornaria quase
impossível a execução de qualquer programa político.
Paradoxalmente é, portanto, o próprio poder régio
que, pelo menos no início, enquanto não dispõe de
instrumentos administrativos próprios e eficazes busca
uma certa participação das partes politicamente
importantes do país. Por outro lado, entra em jogo a
necessidade sentida pelos
PARLAMENTO
poderes periféricos de garantir os próprios privilégios
e de exercer certo controle sobre o emprego que o
poder régio faz das suas contribuições pessoais e
financeiras (lembremos o aforismo inglês no taxation
without representation).
É claro, porém, que, se existe entre as duas
posições ama certa área de convergência, esta possui,
entretanto, limites bem definidos, para além dos quais
os interesses das partes tornam a divergir. A aspiração
natural das assembléias parlamentares é a de
institucionalizar, de tornar regulamentada a própria
presença política. Ao poder régio, pelo contrário, os
Parlamentos só interessam, enquanto são assembléias
facilmente controláveis, que se limitam a prestar seu
assentimento e a conceder contribuições, sem aspirar a
um verdadeiro e autêntico exercício conjunto do
poder.
O nascimento e desenvolvimento das instituições
parlamentares dependem, portanto, de um delicado
equilíbrio de forças entre o poder central e os poderes
periféricos. Onde o poder central goza de uma
significativa preponderância, graças à disponibilidade
autônoma de bases do poder, as instituições
parlamentares vingam mal e dificilmente prosperam.
Mas tampouco na situação oposta, ou seja, onde são,
ao contrário, os poderes periféricos que prevalecem,
existem condições para a consolidação dos
Parlamentos; falta, na verdade, um estímulo que leve
as várias forças do país a se unirem de forma
duradoura. Neste caso, a linha de desenvolvimento
mais freqüente é a da fragmentação política, As
assembléias parlamentares tornam-se então, na prática,
assembléias de enviados de entidades políticas
autônomas, sem consciência unitária de uma
representação nacional. O caso da Alemanha é talvez
o que mais se aproxima deste esquema de
desenvolvimento.
A prova da dificuldade de tal equilíbrio no-la dá o
geral declínio que, nos séculos XVI e XVII, atinge as
instituições parlamentares nascidas na Idade Média. É
o momento em que o Estado feudal cede lugar à
monarquia chamada "nacional" e "moderna". O poder
monárquico, para cumprir as tarefas de unificação e de
defesa nacional de que se incumbiu, se transforma,
munindo-se de instrumentos administrativos de
crescente eficácia, em face dos quais as assembléias
parlamentares se vêm a encontrar, o mais das vezes,
em situação de inferioridade. É também desfavorável
ao Parlamento a sua subdivisão em classes: isso
permite ao poder régio aproveitar-se dos contrastes
existentes entre os diversos componentes do
Parlamento, apoiando-se ora nuns, ora noutros. Em
particular, é freqüente que a burguesia nascente preste
seu apoio à monarquia absoluta, que se apresentava
como uma força
879
modernizadora relativamente aos múltiplos embaraços
postos pela organização feudal às atividades
econômicas.
Neste período, só o Parlamento inglês sai vitorioso
do confronto com o poder régio. A partir da
"Revolução Gloriosa" (1688), torna-se bem claro o
curso ascendente do Parlamento britânico. Foi até a
vitalidade deste Parlamento, tornado modelar para a
literatura e para a prática política, que veio a constituir
poderoso fator de renovação das instituições
parlamentares, nos fins do século XVIII. Tal
renovação é, contudo, caracterizada por importantes
transformações. Desempenha aqui um papel relevante,
como experiência e exemplo, o Parlamento americano.
Implantado ex novo num sistema político que não
possuía
as
tradições
medievais,
apresenta
características de total novidade (abolição da divisão
por classes, base bastante ampla de sufrágio, estrutura
mais homogênea). Mas a mudança mais radical veio
quiçá da França. É justamente o desvio parlamentar
francês que constitui o pressuposto essencial da
transformação. O ressurgir, em fins do século XVIII,
dos Estados gerais que, deixados no esquecimento,
não se tinham podido desenvolver e modernizar, vem
pôr a nu o inadequado dos Parlamentos tradicionais e
assinalar, por isso mesmo, a sua morte, para deixarem
lugar a uma instituição parlamentar inteiramente nova.
O século XIX é o grande período do
desenvolvimento dos novos parlamentos. Alguém o
definiu como século de ouro do parlamentarismo
europeu. Na Inglaterra, na França (excetuados os
períodos imperiais), na Bélgica, na Holanda e na
Itália, o Parlamento constitui-se o centro do debate
político, estendendo progressivamente a sua influência
ao Governo que havia sido até então expressão do
poder régio. A monarquia constitucional cede o lugar
ao regime parlamentar, que tem como fulcro a
"responsabilidade" do governo perante o Parlamento.
Naturalmente, esta transição acontece não sem
inquietações e conflitos: suas etapas estão marcadas
por votos de censura parlamentar, por dissoluções
antecipadas das câmaras por parte do rei com o fim de
lhes bloquear o desenvolvimento, e por verdadeiras
crises constitucionais. Mas, no começo do século XX,
o conflito entre o Parlamento e a monarquia já se havia
resolvido, em quase todos os países europeus, a favor
do primeiro.
II. DEFINIÇÃO DE PARLAMENTO. — Se da dimensão
histórica voltarmos os olhos para a situação atual, nos
encontraremos diante de uma variedade de formas
parlamentares igualmente desconcertante. O nome é
sempre o mesmo, o de Parlamento, mas a substância é
diversíssima de
880
PARLAMENTO
caso para caso. Na base destes contrastes há múltiplos
fatores, nomeadamente a própria proliferação das
instituições parlamentares em grande número de
novos Estados aparecidos neste século e
caracterizados por realidades políticas sumamente
variadas, e a diversa incidência das grandes novidades
políticas (democracia de massa, partidos organizados,
regimes totalitários, etc.) neste período.
Para nos orientarmos no meio desta variedade de
formas, precisamos, como ponto de referência, de uma
definição, certamente ampla e elástica, mas capaz de
individualizar alguns elementos comuns que não sejam
meramente nominais. Parlamento pode definir-se
assim: uma assembléia ou um sistema de assembléias
baseadas num "princípio representativo", que é
diversamente especificado, mas determina os critérios
da sua composição. Estas assembléias gozam de
atribuições funcionais variadas, mas todas elas se
caracterizam por um denominador comum: a
participação direta ou indireta, muito ou pouco
relevante, na elaboração e execução das opções
políticas, a fim de que elas correspondam à "vontade
popular". Convém precisar que, ao dizermos
"assembléia", queremos indicar uma estrutura colegial
organizada, baseada não num princípio hierárquico,
mas, geralmente, num princípio igualitário. Trata-se,
por isso, de uma estrutura de tendência policêntrica.
Como toda a definição, também esta apresenta o
problema de certos casos-limites. Existem, por
exemplo, instituições políticas que respeitam
formalmente estes cânones e que se poderiam chamar,
portanto, Parlamentos, mas que, por trás da fachada
exterior, apresentam uma realidade muito diferente,
não podendo, por isso, ser consideradas como tais. E
não se deve esquecer que tais ambigüidades possuem
um claro significado político.
A definição escolhida compõe-se de duas partes: a
primeira atende à dimensão morfológica e estrutural
do fenômeno; a segunda, ao invés, à sua dimensão
funcional.
III. ASPECTOS ESTRUTURAIS DO PARLAMENTO. — A
análise morfológica distingue dois níveis: o ambiental
ou estrutural e o individual. Ou seja, um organismo
colegial como o Parlamento é suscetível de ser
estudado e classificado, tanto do ponto de vista do
pessoal que o compõe, quanto do das estruturas
dentro das quais ele age.
O ambiente parlamentar é uma realidade bastante
complexa na verdade; é resultante de múltiplos
fatores. Em primeiro lugar, numa sucessão lógica e não
em ordem de importância, estão os processos de
recrutamento e seleção do próprio pessoal. Trata-se
certamente de um elemento
crucial, porque é nele que encontra especificação
operativa o princípio representativo característico da
instituição parlamentar. Enquanto nos Parlamentos
"pré-modernos" coexistem critérios diversos de
determinação dos componentes — para um setor do
Parlamento o princípio eletivo, para outro a
participação de iure, para outro ainda a transmissão
hereditária — nos modernos, o processo normal de
designação é o da investidura eletiva. É uma
homenagem prestada, pelo menos formalmente, ao
princípio dominante da soberania popular. Restam
ainda, é verdade, formas de nomeação "do alto" ou de
participação de iure (por exemplo, na Itália fazem
parte do Parlamento cinco senadores nomeados pelo
Presidente, bem como os presidentes da república
cessantes), mas em grau limitadíssimo e sem peso
decisivo.
O processo eleitoral é suscetível de múltiplas
variações de grande significado político (v. SISTEMAS
ELEITORAIS). Uma vez que são os mecanismos
eleitorais que determinam a natureza da ligação entre
a sociedade e o Parlamento, é deles que depende em
boa medida o "peso específico" da instituição
parlamentar e o seu grau de autonomia em relação às
demais estruturas políticas. Eles determinam, além
disso, as relações de força entre os diversos grupos
políticos e, parcialmente, também o clima político,
contribuindo para a definição da natureza e limites do
papel do Parlamento no processo político. Possuem
particular relevo, entre os diversos elementos, a
extensão da base eleitoral, o nível de competitividade
e a presença ou não de fatores de distorsão nos
critérios de avaliação do resultado eleitoral.
Da grande revolução política do último século — a
da universalização do voto, brusca ou progressiva
segundo os casos — as instituições parlamentares
saíram em toda a parte transformadas. As mudanças se
referem sobretudo às características do pessoal
parlamentar (desaparece a figura do político
independente, sendo substituída pelo homem de
partido, pelo político de profissão) e à dimensão da
unidade de referência da vida parlamentar (o
parlamentar isolado e o grupo pouco estruturado são
suplantados pelo partido ou grupo solidamente
organizado e disciplinado). Isto vale naturalmente
como quadro geral, porque, examinados um a um, há
Parlamentos como a Câmara dos Comuns inglesa, de
rígida disciplina partidária, o Parlamento italiano, que
conhece também a disciplina partidária mas
enfraquecida pela oposição das correntes, e o Senado
americano, onde as figuras individuais se elevam
amiúde à posição de destaque político.
O nível competitivo do processo eleitoral pode
muito bem ser definido como elemento discriminante
entre duas categorias de Parlamentos:
PARLAMENTO
Parlamentos que assumem um papel fundamental na
vida política e Parlamentos reduzidos a um papel de
adorno ou de fachada. O Parlamento reproduz, com
efeito, se bem que com certa distorsão, prolongando-a
pelo período da sua duração, a dialética das forças
políticas que o momento eleitoral pôs em relevo; é a
forma dessa dialética e sua vivacidade que
caracterizam a ação política do Parlamento. Onde,
como nos regimes de partido único, o mecanismo
eleitoral desencoraja ou até suprime a pluralidade e a
competição, o Parlamento, não sendo animado pela
dialética maioria-oposição, funciona, antes de tudo,
como caixa de ressonância propagandística dos
órgãos reais do Governo (o executivo, o partido).
Onde a dialética política é aceita, o andamento da
competição eleitoral influirá também no caráter que
ela assumirá no seio do Parlamento. A diferença, por
exemplo, entre oposição responsável e oposição
irresponsável está ligada não só a fatores de tradição
histórica, como também ao espaço e às possibilidades
de afirmação que o momento eleitoral atribui às
várias forças políticas.
Desaparecidas, quase por toda a parte, as câmaras
nobiliárquicas hereditárias, e sendo também assaz
raras as câmaras constituídas por nomeação, a duração
temporaneamente limitada do mandato é uma das
características
fundamentais
dos
Parlamentos
contemporâneos. Que se trata de um elemento de
importância política demonstram-no as lutas que, na
história parlamentar, se travaram em torno da questão
dos limites de duração, especialmente na Inglaterra, e
do poder de dissolução antecipada por parte do
executivo (lembremos a crise política da III República
Francesa, provocada, em 1877, com a dissolução
antecipada do Parlamento). Do ponto de vista político,
são de importância sobretudo a regularidade e
confiabilidade
dos
períodos
eleitorais
e,
conseqüentemente, da duração da "legislatura". O
poder de dissolução atribuído geralmente ao
executivo, correspondente ao poder que o Parlamento
tem de retirar a confiança ao Governo, não perturba a
vida parlamentar, enquanto permanece um poder
limitado e é usado com discrição. Onde se recorre a ele
com excessiva facilidade e de modo reiterado, ele se
converte em instrumento capaz de explicar a
autonomia política do Parlamento (cf. a experiência de
Weimar).
A duração média das assembléias parlamentares
gira em torno de 4-5 anos. A Câmara dos
Representantes americana, com um mandato de apenas
dois anos, é uma exceção. Em alguns casos, para
conciliar as necessidades contrastantes da continuidade
e da periodicidade da "responsabilidade política", foi
adotada a fórmula da renovação parcial: o Senado
americano
881
renova-se num terço de dois em dois anos; por isso,
cada terço permanece no cargo, seis anos. A duração é
um fator que influi particularmente na capacidade de
atividade política das assembléias; de fato,
parlamentares continuamente sujeitos à obsessão da
reeleição têm dificuldades em esboçar um trabalho de
longo prazo, que pode trazer consigo também uma
impopularidade momentânea. Ela influi igualmente
nas reações do Parlamento aos estímulos políticos
externos e, em último termo, na sua independência
política. Mas a "duração" de uma assembléia não
depende, substancialmente, apenas da extensão do
intervalo entre duas eleições sucessivas, mas quiçá
mais ainda da presença de um núcleo mais ou menos
grande de parlamentares que não mudam de uma
eleição para outra. Este núcleo, quando dotado de
uma certa consistência, constitui fator significativo de
continuidade, já que assegura a transmissão de toda
aquela bagagem de costumes, convenções e regras não
escritas que tanta importância têm na caracterização
de um Parlamento. É a estes parlamentares
"permanentes" que convém atender antes de tudo,
para distinguir as estruturas de poder que também
existem por trás da fachada paritária das assembléias
parlamentares.
Outro elemento significativo na morfologia do
Parlamento está no número das assembléias. Os
Parlamentos
contemporâneos
são
geralmente
monocamerais ou bicamerais, isto é, são compostos
de uma ou de duas câmaras. O bicameralismo,
herança tradicional dos Parlamentos medievais e do
"Estado de classes" (Ständestaat), adquiriu hoje, após
o desaparecimento das câmaras nobiliárquicas, um
significado diverso do do passado. Geralmente, no
bicameralismo moderno, o princípio político que serve
de base a uma e outra câmara é o mesmo, ou seja, o da
soberania popular, mas são diversas as modalidades
institucionais que nas duas câmaras lhe hão de garantir
a atuação prática. As duas câmaras representam,
portanto, elementos complementares que se integram
num mesmo esquema. O sistema bicameral é até
agora o mais comum, se bem que, depois da última
guerra, em vários países como Nova Zelândia,
Dinamarca
e
Suécia,
se
introduziu
o
monocameralismo. No âmbito do sistema bicameral,
há muita variedade. Nos Estados federativos ou de
ampla autonomia regional, o bicameralismo constitui
uma constante, como o demonstram os Estados
Unidos, a União Soviética, a Áustria, a Suíça, a
Alemanha Federal e tantos outros exemplos. Nestes
casos, a segunda câmara é concebida como instrumento
de integração da representação, considerada a
estrutura particular do sistema político; ela deve
representar as unidades
882
PARLAMENTO
federadas em sua singularidade, enquanto a primeira
as representa de modo indiferenciado. Em outros
casos, a segunda câmara é concebida como elemento de
equilíbrio, como contrapeso das tendências políticas
da outra câmara; constitui, pois, fator de reflexão na
atividade decisória do Parlamento. Revelam-se mais
adequadas ao desempenho deste papel as assembléias
de dimensões numéricas reduzidas e de longa duração.
A coexistência de duas câmaras não está isenta de
problemas: a presença da segunda câmara adquire
uma conotação negativa, se provocar uma injustificada
lentidão nos trabalhos parlamentares e der lugar a
uma situação de xeque, devido ao fato de se
afirmarem nas duas câmaras maiorias politicamente
inconciliáveis. Por isso, para uma avaliação da forma
bicameral, são particularmente importantes as relações
que existem entre ambas as câmaras no desenrolar das
várias funções parlamentares. Tais relações podem
apresentar aspecto de "divisão do trabalho", de
"cooperação" e de "oposição" moderada ou
intransigente. Estas relações dependem tanto de
fatores institucionais constantes (como a atribuição a
cada uma das câmaras de competências específicas),
quanto da mutável situação política (relações de força
política, consistência das maiorias, clima dialético
maioria-oposição). A história do bicameralismo inglês
pode servir para ilustrar as diversas relações possíveis
entre as câmaras. Ao período de oposição frontal que
desembocou no Parliament Act de 1911, limitativo
dos poderes dos Lordes, sucedeu um regime, ora de
colaboração, com os conservadores no Governo, ora
de oposição moderada, quando eram os trabalhistas
que governavam; hoje vigora ainda entre as duas
câmaras uma certa divisão de trabalho no tocante a
algumas funções.
Quanto à estrutura interna das assembléias
parlamentares, o panorama mundial mostra uma
grande variedade nos graus de complexidade. Poderse-á encontrar a explicação destas diferenças no
processo genético associado a cada Parlamento e nas
condições políticas em que ele se desenvolveu. Há, de
fato, câmaras que são o resultado de um longo
processo de institucionalização, câmaras para as quais
este processo está ainda no início ou sofre a resistência
das condições políticas ambientais, e, enfim, câmaras
que nasceram já com uma estrutura complexa. A
importância das características estruturais é grande, já
que delas depende, em grande parte, a funcionalidade
do Parlamento e a possibilidade de ele ter uma
participação significativa no processo político. Em
linhas gerais, os Parlamentos caracterizados por
escassa diversificação política e baixo grau de
articulação operativa interna não podem aspirar a um
papel político de grande peso,
quando não ficam reduzidos, sem mais, a uma função
puramente aclamatória.
A primeira dimensão estrutural que é preciso
considerar é a da articulação operativa das
assembléias
parlamentares.
Nesse
termo
compreendemos todos aqueles elementos organizativos
internos que foram instituídos para permitir e facilitar
o desenvolvimento das atividades parlamentares.
Neste campo, uma das estruturas parlamentares mais
antigas e comuns é a da presidência, principal órgão
de arbitragem e regulamentação dos trabalhos
parlamentares. Em alguns Parlamentos, o presidente é
figura de indiscutível imparcialidade — o speaker
britânico é o modelo, em outros, como na Câmara dos
Representantes americana, assume uma posição mais
partidária. A presidência possui um significado
particular, já que dela dependem, em geral, os
instrumentos administrativos e jurisdicionais da
autonomia parlamentar. A autoridade de que goza
pode ser tida como índice desta autonomia. E não se
deve esquecer que o princípio da autonomia
parlamentar, isto é, da não interferência dos outros
órgãos políticos nos interna corporis, princípio penosa
e tenazmente afirmado no confronto com o poder
monárquico, constitui tradicionalmente um dos
fundamentos da experiência parlamentar. Em sua
outra função, a da coordenação e direção do
andamento dos trabalhos parlamentares, a presidência
é geralmente coadjuvada por um organismo composto
por representantes dos vários grupos políticos
parlamentares.
Dado o número dos seus componentes, quase sempre elevado
devido
às exigências da
representatividade e ao volume crescente do trabalho,
as assembléias parlamentares tendem a articular-se em
comissões, isto é, em organismos mais restritos e, por
isso, mais eficazes no plano operativo. Os critérios
segundo os quais é organizado o sistema das
comissões, variam de um Parlamento para outro.
Relativamente ao critério de distribuição do trabalho,
há comissões especializadas e comissões não
especializadas; quanto à duração, há comissões
permanentes e comissões ad hoc, criadas unicamente
para o desempenho de uma determinada tarefa. Um
elemento importantíssimo é a estabilidade do pessoal:
quanto maior ela for, tanto maior tenderá a ser
também a coesão política e, conseqüentemente, o peso
das comissões. São disso um ótimo exemplo as
comissões parlamentares da III República e certas
comissões do Senado americano que, pelo alto grau de
permanência dos componentes, se tornaram
verdadeiros
baluartes
políticos,
dificilmente
expugnáveis desde fora. O relevo que as comissões
adquirem numa assembléia parlamentar tem um
notável significado político, já que o modelo decisório
típico delas é comumente diferente do
PARLAMENTO
da assembléia: acordo e negociação no primeiro caso,
critério majoritário no segundo. Por isso, quanto mais
importantes forem as comissões, tanto mais a
dialética parlamentar estará marcada por esse modelo
decisório e tanto menos se caracterizará por um clima
de choque frontal.
Mas a estrutura real de uma assembléia parlamentar
também é definida por elementos que se situam numa
outra dimensão: aquela que concerne aos grupos
políticos presentes nos Parlamentos. Os parlamentares
não agem, com efeito, de modo atomístico, mas
geralmente enquadrados em unidades superindividuais
organizadas: esta é uma constante na grande maioria
dos Parlamentos atuais. Um fenômeno que é fruto da
grande revolução política que trouxe à ribalta os
partidos organizados. Os partidos modernos possuem,
em geral, a sua base organizacional fora do âmbito
parlamentar; mas tornam-se também presentes nas
assembléias parlamentares mediante estruturas
organizativas apropriadas, como os grupos
parlamentares. Do ponto de vista da estrutura do
Parlamento, são elementos importantes o número dos
partidos, as possibilidades de alianças e coalizões
interpartidárias, o grau de coesão interna, ou seja,
aqueles fatores que são a base da dinâmica
interpartidária. Dada a grande incidência da variável
partidária, podemos dizer que há pelo menos tantos
tipos de Parlamentos quantos são os tipos de sistemas
partidários. Há Parlamentos onde o sistema de partido
único elimina toda a forma de dialética política, assim
como onde o bipartidarismo apresenta uma vigorosa
contraposição de linhas políticas alternativas; e
também onde o pluripartidarismo oferece uma
complexa amálgama de formas de conflito e acordo
entre as variadas forças políticas. Assim, a par dos
Parlamentos onde a relação maioria-minoria é
equilibrada, há também aqueles onde ela pende a favor
da maioria que goza de uma superioridade
esmagadora, ou então de uma minoria que está em
condições de reduzir a maioria à impotência. Outra
variável está na maior ou menor dependência dos
órgãos partidários parlamentares em relação aos
órgãos partidários externos e, vice-versa, no papel que
o componente partidário parlamentar desempenha
dentro do partido global. Do máximo de
desvinculação, como é a do Parlamento americano, se
passa a uma situação qual a inglesa, onde o
parliamentary party está estreitamente ligado ao
partido, gozando, porém, dentro dele de uma posição
de grande destaque político. Em geral, nas
democracias parlamentares européias, existe um
elevado grau de dependência dos órgãos partidários
externos, que são o verdadeiro centro motor da
política.
883
São todos estes elementos da morfologia parlamentar
que concorrem para a formação do complexo sistema
de oportunidades e limitações, de recompensas e
punições, de motivações e desestímulos, dentro do qual
se define a ação do ator parlamentar individual. A
ação parlamentar, entretanto, é resultado não só destes
elementos
ambientais,
como
também
das
características pessoais dos que compõem as
assembléias. A classe de onde provém, a qualificação
profissional, a carreira política já vivida e, finalmente,
no plano psicológico, o tipo de percepção do próprio
papel são as características que podem ter um
significado político. Sob este aspecto, também é
possível descobrir importantes transformações na
história parlamentar do último século. Dos
Parlamentos aristocráticos aos Parlamentos da
democracia de massa, o passo relativo à mudança das
características dos parlamentares foi muito grande.
Fenômenos como a ampliação do sufrágio, o
alargamento da base política, a expansão da
intervenção estatal na vida social e o advento dos
partidos organizados de massa, tiveram todos clara
repercussão em tais características. A figura do
político independente, proveniente das classes altas e
diletantes, é substituída cada vez mais pela do político
de profissão, que faz carreira nas fileiras do partido e
é geralmente originário da classe média. Estes fatores
influem no papel que os atores parlamentares poderão
assumir; para um amplo setor, que da atividade
política tira também a sustentação econômica, o papel
de gregário torna-se o único possível.
IV. FUNÇÕES PARLAMENTARES. — Do ponto de
vista funcional, os Parlamentos são instituições
geralmente polivalentes. A variedade de funções
desempenhadas tem uma explicação no papel
característico dos Parlamentos, que faz delas os
instrumentos políticos do princípio da soberania
popular. É deste papel que nasce para o Parlamento o
direito e o dever de intervir, embora de formas
diversas, em todos os estádios do processo político.
Segundo o estádio e as modalidades de tal
intervenção, haverá atividades de estímulo e de
iniciativa legislativa, de discussão e de deliberação, de
inquérito e de controle, de apoio e de legitimação. Tão
variadas atividades podem ser globalmente
compreendidas no quadro das quatro funções
parlamentares
fundamentais:
representação,
legislação, controle do Executivo e legitimação. É
natural que, conforme a posição que cada Parlamento
ocupa no sistema político, varie a importância das
diversas funções; certamente há funções que, em
determinadas situações políticas, podem se atrofiar e
ficar reduzidas ao simples aspecto formal.
884
PARLAMENTO
Dentre as funções parlamentares, é a representativa
a que possui uma posição que poderíamos chamar
preliminar. Isso porque, em primeiro lugar, ela é uma
constante histórica em meio das transformações
sofridas pelas atribuições do Parlamento, e, em
segundo lugar, porque nela se baseiam todas as demais
funções parlamentares, cujas características dependem,
em boa parte, das formas do seu desenvolvimento. Por
ser fundamental, esta função assume um significado
discriminante entre um Parlamento e outro.
A representação política é uma função assaz
delicada; de fato, faltando determinadas garantias
institucionais, é capaz de cair no oposto, a
"manipulação", ou seja, de se transformar de fluxo de
opiniões e opções políticas que se movem de baixo
para cima, em fluxo descendente de modelos e opções
políticas impostos desde o alto. A posição intermédia
do Parlamento, entre o público e os órgãos do
Governo, pode convertê-lo em instrumento de qualquer
dessas duas possibilidades. Em certos casos, a
representatividade dos Parlamentos está tão reduzida,
tão cerceada e deformada, que se pode dizer que ela é
apenas uma fachada destinada a esconder a realidade,
que é, ao invés, a de um verdadeiro encapsulamento
do corpo político e de uma mobilização do consenso
de cima para baixo. É o que se verifica nos regimes
autocráticos de todos os tipos, os quais, embora
rejeitem substancialmente o princípio da soberania
popular, dele conservam, no entanto, para efeitos de
cobertura política, a aparência externa, mediante
instituições parlamentares desvitalizadas. No âmbito
dos Parlamentos que atuam como verdadeiros
instrumentos representativos, o elemento distintivo
está na "imagem" característica da sociedade política
que eles são capazes de personificar. Em tal situação, a
variável partidária tem naturalmente um peso decisivo.
Uma das distinções mais importantes pelas
conseqüências que implica para as outras atividades
parlamentares é a existente entre Parlamentos
aglutinadores da demanda política e Parlamentos
pouco aglutinadores, ou seja. entre Parlamentos que
concedem ampla margem a todas as instâncias mesmo
particulares, e Parlamentos capazes de selecionar e
sintetizar as demandas, "agregando-as" em alternativas
políticas de certa amplitude. Um delicado problema de
equilíbrio político é o de conciliar esta exigência de
agregação com a exigência, também importante, de
manter no Parlamento um elevado grau de
transparência do pluralismo existente na sociedade, isto
é, de evitar o risco de uma representação demasiado
redutiva. Neste campo da função representativa, são
também elementos importantes a sensibilidade às
transformações do
clima político e a receptividade a novas demandas.
Aqui se revela de particular importância o espaço
político que o Parlamento atribui à oposição, já que é
esta a força institucionalmente mais adequada ao
desenvolvimento de uma ação estimuladora em tal
sentido.
A par da função representativa, o Parlamento
desempenha também a função de legitimação. Os
Parlamentos, na verdade, não só transmitem demandas
e pedidos, como também, em geral, manifestações de
consenso e dissenso, de apoio político ou de
contestação, em face das estruturas de Governo. É
natural que as mensagens políticas de um e de outro
tipo se misturem: a própria forma das demandas é já
amiúde um indício do grau de apoio público ao
sistema político. Intermediário do apoio ou dissenso, o
Parlamento ajuda a conferir ou a subtrair legitimidade
política ao Governo. Nos regimes que limitam
fortemente o papel político autônomo do Parlamento,
esta função legitimadora constitui a principal
justificação para a manutenção das instituições
parlamentares. Nestes casos, é claro, a estrutura
parlamentar é reforçada em seus aspectos mais
adequados às exigências de legitimidade do regime. A
pluralidade de opiniões cede lugar à unidade de
expressão política.
Todas as demais atividades parlamentares estão
estreitamente ligadas à função representativa: elas
são, na realidade, os instrumentos da sua atuação. Com
o tempo e de acordo com o regime político, estes
instrumentos
parlamentares
sofrem
notáveis
mudanças. A interferência do Parlamento no processo
político se torna mais ou menos direta, mais ou
menos determinante.
A atividade legislativa é, de todas, sem dúvida, a
mais típica do Parlamento moderno, tanto que ele é
definido por antonomásia como "poder legislativo".
Convém lembrar que, por trás desta identificação, está
aquela complexa corrente de pensamento conhecida
sob o nome de doutrina da separação dos poderes.
Esta doutrina, onde os aspectos descritivo e prescritivo
se misturam, atribui ao Parlamento a função
legislativa, entendida como elaboração de normas
gerais; deixa-se ao Executivo a atividade de Governo,
ou seja, a incumbência de atender ao caso concreto e
particular dentro do quadro geral estabelecido pela
legislação. Mas as transformações políticas do último
século ofuscaram bastante a clareza destas distinções.
Influíram particularmente dois fatores. Recordemos,
em primeiro lugar, o declínio do poder da realeza, que
trouxe como conseqüência a gravitação do executivo
dentro da esfera parlamentar, tornando-se às vezes o
dominador, outras o dominado, mas perdendo sempre
aquele destaque que o separava do
PARLAMENTO
Parlamento, quando o Executivo era expressão do
poder real. Em segundo lugar, convém referir a
transformação do próprio instrumento legislativo. A
lei, na moderna situação criada pela crescente
intervenção da autoridade política na vida social,
perdeu o seu primitivo caráter de raridade e
estabilidade e, convertida em forma comum de ação
política, se transformou em algo necessariamente
particular e mutável.
Em contraste com a antiga distinção, pode-se
afirmar que hoje se governa legislando. O Executivo,
responsável pela função de governar, atua também no
setor da legislação. A atividade legislativa tornou-se,
portanto, em todas as suas fases (iniciativa, discussão,
deliberação), resultado da intervenção conjunta do
Parlamento e dos órgãos do Governo. Já desde a
primeira fase, a da iniciativa, se insere o Executivo na
clássica função parlamentar. O Governo tem de
intervir desde o início, se quiser realizar o seu
programa político. Mas quanto mais forte for o
Executivo e maior for a posição de autoridade de que
goza perante o Parlamento, tanto mais a iniciativa
legislativa de origem parlamentar se reduzirá a uma
atividade residual. A título de exemplo, comparemos,
de um lado, a marginalidade das iniciativas
parlamentares no Parlamento inglês, de outro a
relativa importância de tais iniciativas no Parlamento
italiano. Outro aspecto importante desta primeira fase
do processo legislativo é o da coordenação e
programação do trabalho parlamentar. Trata-se de
fixar as prioridades políticas, de escolher entre as
iniciativas legislativas concernentes ao mesmo assunto
ou de as integrar. O Executivo, como centro principal
da iniciativa política orgânica, aspira geralmente a uma
participação destacada também neste campo. O seu
êxito depende do grau de controle que consegue
exercer sobre a maioria parlamentar que o apóia e do
peso institucional da oposição, quando existente.
A fase de deliberação se desenvolve segundo
moldes que variam de um Parlamento para outro. O
projeto legislativo em questão é geralmente submetido
a repetidos exames. O elemento de diversificação mais
significativo está na importância que têm neste
processo a assembléia plenária e as comissões, sempre
que existam. Há um mínimo de interferência das
comissões, quando estas expressam apenas seu
parecer, e um máximo, quando lhes é delegado o
poder de decidir com eficácia vinculatória para todo o
Parlamento. A dialética entre as diversas forças
políticas, que caracteriza esta fase de deliberação, é
fortemente influenciada pelo ambiente institucional
em que se desenvolve. As comissões parlamentares,
criando um ambiente mais restrito e
885
discreto, favorecem as formas negociáveis e
conciliatórias de decisão. Isto será tanto mais válido
quanto mais densa for a textura de recíprocas
concessões que o pessoal das comissões, superando as
diferenças de alinhamento político, conseguir criar
com sua estabilidade. O grau de eficiência do sistema
de comissões é ainda importante, porque dele depende,
em grande parte, a possibilidade de o Parlamento
interferir nas iniciativas legislativas externas (do
Executivo, dos partidos) para as modificar e emendar.
De fato, onde, como na Inglaterra, o Executivo
mantém fortemente sob controle o processo
legislativo, nota-se claramente sua oposição às
transformações que, tais como a introdução de
comissões especializadas e estáveis, fortaleceriam os
poderes do Parlamento.
A fase que se desenrola na assembléia segue
esquemas bastante mais rígidos e formais que os da
comissão. Em geral ela compreende, antes de tudo,
uma discussão global sobre o projeto legislativo,
depois o exame de cada um dos artigos e das emendas
propostas, e, finalmente, a votação do projeto em seu
conjunto. Na etapa da discussão, como na final da
votação, não falta geralmente a intervenção, direta ou
indireta, de forças políticas externas. O Executivo
pode intervir diretamente, declarando qual é a sua
vontade política, apresentando emendas, retirando
suas próprias propostas de lei, ou introduzindo a
questão de confiança durante a votação. De igual
modo, tal como os grupos de pressão de qualquer
gênero, também o Executivo pode intervir de modo
indireto, ou seja, por meio das suas bases de apoio
parlamentar. Nos regimes parlamentares, a base do
Executivo é quase sempre constituída pela maioria
parlamentar; nos regimes presidenciais ocorre não raro
faltar esta base majoritária, ou então ela tem um
caráter meramente ocasional, como acontece
geralmente nos Estados Unidos com os presidentes
republicanos. Para os múltiplos grupos de pressão que
caracterizam a vida política moderna, a base
parlamentar está, em geral, em grupos informais de
deputados que se comprometem a favorecê-los durante
o período legislativo.
A função parlamentar que se segue, em ordem
lógica, é a do controle do Executivo e das atividades
dos seus setores burocráticos. Devemos, além disso,
lembrar que esta é uma das funções primordiais dos
Parlamentos. Se foi um pouco eclipsada pela exaltação
da função legislativa no século XVIII (a sublimidade
das leis gerais e libertadoras), hoje se revelou de novo
a sua extrema importância. Isto se deve à diminuída
grandeza das leis, inflacionadas e, com freqüência,
totalmente privadas de uma eficácia prática
886
PARLAMENTO
direta, e à crescente importância de uma série de atos
governativos que. se bem que teoricamente de
natureza executiva, isto é, limitados pelo quadro
legislativo existente, são substancialmente de natureza
decisória e constituem atividades de grande inovação
política. Na base destas novas formas de ação política,
está a crescente responsabilidade do Governo no que
se refere ao andamento da vida econômica, que fez
dele, ao mesmo tempo, empresário igual aos outros,
mediador nos conflitos sindicais e programador de
todo o desenvolvimento da sociedade.
O Parlamento, que limitasse a sua intervenção
apenas à fase legislativa, deixaria escapar uma
importantíssima parcela do processo político. O real
peso político do órgão representativo deveria ser
avaliado, portanto, tendo também em conta a eficácia
da sua atividade de controle.
São vários os instrumentos por meio dos quais o
Parlamento exerce esta função. Nos regimes
parlamentares, a negação da confiança é a forma mais
drástica de ação do Parlamento sobre o Governo. Mas
é uma forma bastante rara, primeiro, por sua própria
gravidade, depois, por causa dos vínculos partidários
que ligam o Executivo à maioria parlamentar; as
maiores possibilidades ocorrem com Governos de
coalizão ou então minoritários. Nos regimes
presidenciais, onde a permanência do Executivo não
depende do Parlamento, as condições de intervenção
são necessariamente diversas: o Parlamento pode
recorrer à ameaça, ou de obstar ao Executivo nos
aspectos do seu programa que, exigindo a forma
legislativa, têm de passar pelo crivo parlamentar, ou
de negar fundos aos programas governamentais. Mas,
em linhas gerais, o instrumento parlamentar de
controle mais comum está no poder de tornar notória e
apontar à opinião pública, por meio da solicitação de
explicações, interpelações e inquéritos, a atuação do
Executivo. É claro que este tipo de ação, para ser
eficaz, requer a existência de um público atento aos
acontecimentos políticos e capaz de influir no seu
processo. Um momento importante da função de
controle dá-se com a repetição anual da discussão do
orçamento. Esta atividade parlamentar tradicional,
que, em certos países, dá ao Parlamento o poder de
modificar o projeto de orçamento do Governo,
enquanto em outros vê o papel do Parlamento limitado
à sua aprovação ou rejeição total, possui, em todo o
caso, um importante significado político, pois submete
à vigilância parlamentar a realidade global do
programa anual do Governo e oferece ocasião para um
debate geral acerca das finalidades da ação do
Executivo.
Dizendo que o Parlamento tem um papel peculiar
no processo legislativo e que ele exerce
a função de controle, estamos usando expressões
sintéticas que não irão esconder uma realidade que é
feita de partes e papéis diversos. A tradição
parlamentar ocidental, não obstante todas as suas
variações, se baseia na dialética entre duas partes
diversas: maioria e oposição. A maioria, vinculada ao
Governo, tem seu papel determinante na atividade
legislativa. A oposição se limita aqui a uma função
crítica, com interferências modificativas, caso tenha
força para tanto. Na atividade de controle, pelo
contrário, a parte principal cabe justamente à oposição
que, pela sua posição política, é muito mais instada a
examinar criticamente a ação do Governo do que a
maioria que o apóia. Há certamente países onde falta
um razoável equilíbrio entre maioria e oposição, um
equilíbrio que constitua a base de uma dialética
política viva, e o Parlamento se exprime a uma só voz;
mas é difícil que a intervenção do Parlamento nos
momentos cruciais do processo político seja ali
determinante.
V. CONCLUSÃO. — Sendo estas as atividades em
que participa o Parlamento, poder-se-á dizer ainda
hoje que ele goza de um poder decisivo ou pelo
menos significativo no processo político? Não se
deverá falar, em vez disso, do "ocaso do parlamento"?
São questões repetidamente levantadas em face de
certas realidades políticas que parecem demonstrar que
o Parlamento foi suplantado por outras instituições.
Não é o caso de falar aqui do fenômeno macroscópico
dos regimes totalitários e autoritários que se
desenvolveram neste século e destruíram o regime
democrático parlamentar preexistente, abolindo o
Parlamento ou, de qualquer modo, esvaziando-o
completamente de toda a autonomia e significado
políticos. A questão assume uma importância muito
maior justamente em relação aos regimes democráticos
pluralistas, onde não existe certamente o
antiparlamentarismo explícito dos anteriores, mas, não
obstante, se assiste igualmente ao desenvolvimento
das tendências que parecem denotar uma perda da
centralidade do Parlamento; o debate político não tem
já o âmbito parlamentar como sede principal, mas se
desenrola, em grande parte, fora, entre partidos,
organizações sindicais, forças econômicas, e através
dos canais de comunicação fornecidos pelos mass
media. Vemos também como uma série de
negociações, acordos e decisões de importância
política decorrem à margem da esfera parlamentar.
Por isso, em muitos casos, o Parlamento se limita a
registrar decisões que foram tomadas alhures.
Na origem desta situação real que contradiz o
modelo tradicional do parlamentarismo, ainda aceito
nas constituições democráticas, existem
PARLAMENTO
fundamentalmente dois fenômenos. O primeiro está
no desenvolvimento do aparelho partidário fora do
Parlamento; o segundo na consolidação, concomitante
à expansão da interferência estatal na economia, da
prática da negociação das decisões públicas entre o
Governo e as grandes "corporações" (sindicatos
operários, organizações empresariais, associações
profissionais, associações do comércio e da
agricultura). A questão é se estas tendências da política
contemporânea assinalam necessariamente o fim do
papel do Parlamento como instituição fundamental e
indispensável da democracia, ou se, mesmo alterandolhe as funções, lhe reservam ainda uma função
importante a desempenhar. Uma democracia
meramente
"partidária"
ou
meramente
"neocorporativa" (o "neo" é para distinguir o
corporativismo espontâneo das sociedades industriais
avançadas do corporativismo de caráter autoritário)
será possível? Pelo que respeita a um dos dois
aspectos do problema, o partidário, podemos já
destacar uma função do Parlamento que, se não se
inclui entre as suas funções tradicionais e é por isso
habitualmente pouco notada, nem por isso deixa de ser
importante: a função reguladora da competição
política. A competição entre os partidos, que constitui
o eixo e suporte da democracia contemporânea, como
tem sido acentuado a partir de Schumpeter, tem
naturalmente nas complexas normas do processo
eleitoral o primeiro mecanismo de regulamentação, de
arbitragem e de sanção dos resultados. Mas o
confronto e competição entre esses atores políticos
não se exaure na precisão e intermitência do momento
eleitoral, mas constituem um dado continuativo da vida
política. A condição para que as eleições não se
transformem em embates decisivos e para que exista
uma instituição capaz de proporcionar um canal de
expressão duradouro a esta competição, dotada dos
instrumentos necessários para lhe oferecer uma
mediação continuada. Hoje o Parlamento ainda
continua sendo a instituição mais bem aparelhada para
desenvolver esta tarefa pouco visível, mas certamente
basilar. E isto devido à sua específica forma estrutural,
que permite a presença simultânea, sob o mesmo teto,
de múltiplas forças políticas, bem como ao seu
apetrechamento institucional, destinado a regular as
relações entre elas e a institucionalizar a sua
cooperação. A prática parlamentar, pela sua intrínseca
necessidade de reciprocidade de comportamentos, de
intercâmbio de comunicações, de colaboração e de
mútuos favores, constitui um fator que pode
contribuir, de modo bastante significativo, para criar
um fundo de coesão entre as forças políticas, capaz de
transcender as suas divergências, e pode servir
887
para contrabalançar as pressões centrífugas que
nascem inevitavelmente da dialética política. Como é
natural, para que o Parlamento possa desempenhar
eficazmente este papel, não basta a existência pura e
simples do seu arcabouço institucional e jurídico; é
preciso também que este órgão político seja dotado de
uma vida institucional própria e real. Parece aqui
particularmente
importante
a
questão
da
institucionalização, isto é, do processo de
desenvolvimento multidimensional pelo qual uma
estrutura política adquire força e coerência. Um
processo que, no caso do Parlamento, significa
afirmação de um específico ethos político, ou seja, de
uma tradição de normas, costumes e convenções
informais, nem por isso menos vinculatórios, capaz de
se impor a todas as forças políticas, de um certo grau
de continuidade e sustentação institucional do pessoal
parlamentar, apto a garantir-lhe alguma margem de
autonomia, e, finalmente, de uma certa homogeneidade
das forças políticas representadas, no sentido de uma
adequação da sua estrutura ao modelo parlamentar.
Quanto ao outro aspecto, o da política neocorporativa, parece à primeira vista mais difícil ver a
possibilidade de que o Parlamento continue a
desempenhar aí um papel significativo. As negociações
e acordos de tipo vertical entre as grandes
organizações sócio-econômicas e o Governo parecem
tornar totalmente vã a necessidade e possibilidade da
interferência de um organismo complexo e lento no
plano das decisões e, além disso, imediatamente não
tão representativo dos 'interesses", como é o
Parlamento. Na realidade, este quadro neocorporativo
não é totalmente convincente. O que acontece é que a
impetuosa ascensão política de certas corporações
(especialmente os sindicatos), ocorrida nas últimas
décadas, e o predomínio do método de negociação em
muitas decisões importantes e altamente manifestas
fizeram quiçá com que se superestimasse a
importância e extensibilidade desta forma de política.
Entretanto é preciso dizer que este modelo não parece
poder ser aplicado a todos os setores do policymaking, na política externa, por exemplo, na política
judiciária, na política fiscal, pelo menos em suas linhas
fundamentais, etc. É nestes âmbitos, portanto, que
subsiste a possibilidade de um espaço para o
Parlamento. Em segundo lugar, mesmo nos setores em
que vigora o modelo neocorporativo, uma das partes
em causa é necessariamente o Governo. Ora bem,
num regime que queira ser de democracia pluralista,
será possível alicerçar a estrutura do Governo sem a
instituição parlamentar? O Governo que não estivesse
ladeado por um Parlamento capaz de oferecer espaço
888
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
político à oposição, não degeneraria necessariamente
em órgão autocrático? Voltamos assim ao que se
disse antes sobre a política partidária. O futuro das
instituições parlamentares depende, portanto, em
grande parte, da sua capacidade de adaptação, no que
respeita a estruturas e modos de operar, ao papel de
elemento de equilíbrio num sistema político aberto e
pluralista.
BIBLIOGRAFIA. - W. BAGEHOT, The english
constitution (1865), Oxford University Press. London
1964; K. VON BEYME, Die parlamentarischen
Kegierungssysteme in Europa, Piper, München 1970;
G. BURDEAU, Il regime parlamentare, Comunità.
Milano 1950; H. FINER, The theory and practice of
modern government (1932), Methuen, London 1961;
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Cambridge Univ. Press. Cambridge 1957; K. KLUXEN,
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1967; G. LOEWENBERG e S. C. PETERSON, Comparing
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Tübingen 1918; G SARTORI e outros. Il parlamento
italiano 1946-63, Esi. Napoli 1963; Legislative
behavior. ao cuidado de J. WAHLKE e H. EULAU. Free
Press. Glencoe 1959; Id.. e outros, The legislative
system, Wiley. New York 1962.
[MALRIZIO COTTA]
Participação Política.
Na terminologia corrente da ciência política, a
expressão Participação política é geralmente usada
para designar uma variada série de atividades: o ato
do voto, a militância num partido político, a
participação em manifestações, a contribuição para
uma certa agremiação política, a discussão de
acontecimentos políticos, a participação num comício
ou numa reunião de seção, o apoio a um determinado
candidato no decorrer da campanha eleitoral, a
pressão exercida sobre um dirigente político, a
difusão de informações políticas e por aí além. E fácil
de ver que um tal uso da expressão reflete praxes,
orientações e processos típicos das democracias
ocidentais. E não é para admirar, se considerarmos
que foi justamente em tais contextos que se realizaram
as primeiras pesquisas sobre a Participação política e
que até hoje, não obstante a ampliação de tais estudos,
os nossos conhecimentos sobre o assunto derivam de
pesquisas
efetuadas num número bastante limitado de países
ocidentais. A matriz cultural destes estudos faz com
que a fundamentação conceptual e o campo de
pesquisa nem sempre sejam transferíveis para contextos
diferentes. Assim, a aplicação a sociedades em vias de
desenvolvimento, carentes de infra-estruturas políticas
e caracterizadas por elevadas taxas de analfabetismo,
dos esquemas preparados para o estudo da
Participação política em sociedades desenvolvidas e
possuidoras de uma tradição democrática mais ou
menos sólida, não é sempre frutífera. Tampouco
contribui para a clareza conceptual assemelhar, por
exemplo, a participação nas atividades de partido num
regime pluralista às formas de enquadramento e
mobilização das massas, características dos sistemas
ditatoriais. É indispensável precisar bem isto, porque
se verifica que o substantivo e o adjetivo que
compõem a expressão Participação política se prestam
a interpretações diversas. Antes de tudo, a definição
de atividade política nem sempre é unívoca; se quanto
a certas atividades como o ato de votar, por exemplo,
não existem dúvidas, pelo que respeita a outras,
principalmente da esfera religiosa, econômica e
cultural, o problema não é assim tão simples e a
solução depende amiúde da cor ideológica dos próprios
participantes. Em segundo lugar, o termo participação
se acomoda também a diferentes interpretações, já que
se pode participar, ou tomar parte nalguma coisa, de
modo bem diferente, desde a condição de simples
espectador mais ou menos marginal à de protagonista
de destaque. Há pelo menos três formas ou níveis de
Participação política que merecem ser brevemente
esclarecidos. A primeira forma, que poderíamos
designar com o termo de presença, é a forma menos
intensa e mais marginal de Participação política; tratase de comportamentos essencialmente receptivos ou
passivos, como a presença em reuniões, a exposição
voluntária a mensagens políticas, etc, situações em que
o indivíduo não põe qualquer contribuição pessoal. A
segunda forma poderíamos designá-la com o termo de
ativação: aqui o sujeito desenvolve, dentro ou fora de
uma organização política, uma série de atividades que
lhe foram confiadas por delegação permanente, de que
é incumbido de vez em quando, ou que ele mesmo
pode promover. Isto acontece quando se faz obra de
proselitismo, quando há um envolvimento em
campanhas eleitorais, quando se difunde a imprensa
do partido, quando se participa em manifestações de
protesto, etc. O termo participação, tomado em sentido
estrito, poderia ser reservado, finalmente, para
situações em que o indivíduo contribui direta ou
indiretamente para uma decisão política. Esta
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
contribuição, ao menos no que respeita à maior pane
dos cidadãos, só poderá ser dada de forma direta em
contextos políticos muito restritos; na maioria dos
casos, a contribuição é indireta e se expressa na
escolha do pessoal dirigente, isto é, do pessoal
investido de poder por certo período de tempo para
analisar alternativas e tomar decisões que vinculem
toda a sociedade. É evidente que a Participação
política em sentido estrito só se pode dar com um
número bastante reduzido de pessoas, naqueles
sistemas políticos, ou organismos, que não têm um
caráter competitivo e que utilizam os mecanismos
eleitorais, se os utilizam, para fins bem diversos.
As pesquisas feitas nos últimos decênios permitem
traçar um quadro bastante completo da extensão da
Participação política nas sociedades democráticas
contemporâneas. Note-se, antes de mais, que a inserção
de grandes massas nos mecanismos da vida política é
um fato bastante recente: excetuados os Estados
Unidos, o sufrágio universal e a igualdade do voto só
foram conquistados, de uma maneira geral, nos
primeiros decênios deste século. De 1861 a 1880, os
que tinham direito a voto na Itália não iam muito
além dos 2% da população; de 1882 a 1909, o
percentual é inferior a 10%; nas eleições de 1913,
apesar da ampliação do sufrágio, os eleitores só
representavam cerca de 23% da população; as
mulheres só tiveram direito ao voto após a Segunda
Guerra Mundial; em países que blasonam de tradições
democráticas, como a Suíça, as mulheres ainda são
parcialmente excluídas de votar. O mesmo se diga de
outras estruturas de participação de grande
importância, como os partidos políticos: estes também
são instituições muito recentes e, em certos países, sua
continuidade foi muitas vezes interrompida por
experiências de regimes não democráticos.
O ideal democrático supõe cidadãos atentos à
evolução da coisa pública, informados dos
acontecimentos políticos, ao corrente dos principais
problemas, capazes de escolher entre as diversas
alternativas apresentadas pelas forças políticas e
fortemente interessados em formas diretas ou indiretas
de participação. Numerosas pesquisas levadas a cabo
nos últimos decênios demonstraram claramente que a
realidade é bem diferente. Em primeiro lugar, o
interesse pela política está circunscrito a um círculo
bem limitado de pessoas e, não obstante o relevo dado
pela comunicação de massa aos acontecimentos
políticos, o grau de informação a tal respeito é ainda
baixo: os acontecimentos esportivos, o mundo do
espetáculo e outros aspectos da crônica diária são
muito mais conhecidos do grande público. Vale a
pena lembrar que, segundo uma pesquisa efetuada em
889
1959, cerca de 40% da população italiana adulta não
conseguiam sequer citar o nome de um líder político e
53% não foram capazes de recordar o nome de um
único membro do Governo. Pelo que respeita à
participação propriamente dita, a forma mais comum,
e, para muitos, também a única, é a participação
eleitoral. Contudo, em diversos países, neles incluídos
alguns dos que possuem uma longa tradição
democrática como os Estados Unidos, as taxas de
abstencionismo atingem por vezes níveis bastante
elevados. Em outros países em que o abstencionismo é
reduzido, como na Itália, à participação eleitoral não
se seguem outras formas de Participação política. A
militância em partidos políticos atinge uma faixa
bastante limitada de cidadãos: segundo levantamentos
bastante recentes, os inscritos em partidos políticos
italianos seriam cerca de 4 milhões, de acordo com as
avaliações mais otimistas. Pensemos, além disso, que
a inscrição não se traduz depois, automaticamente,
numa verdadeira e autêntica participação: os militantes
ativos constituem uma fração reduzida do total dos
inscritos e os participantes, em sentido estrito, isto é,
os dirigentes de base, intermediários e nacionais,
constituem um número ainda mais exíguo. O quadro
não melhora muito, se se considera a inscrição noutras
associações não explicitamente políticas, mas que
exercem freqüentemente uma certa influência na vida
política e podem ser consideradas como veículos
subsidiários de Participação política, como, por
exemplo, os sindicatos, as associações culturais,
recreativas, religiosas, etc. Consideremos também que
as diversas formas de Participação política tendem a
acumular-se e que os inscritos e participantes são, no
conjunto, os mesmos. Finalmente, têm adquirido certo
relevo formas novas e menos pacíficas de participação,
nomeadamente as manifestações de protesto, marchas,
ocupação de edifícios, etc. Segundo alguns
observadores, encontraríamo-nos, aqui, em face de
uma revitalização da Participação política que,
abandonados os velhos esquemas, se articularia agora
em outros canais. Trata-se indubitavelmente de
fenômenos de um certo interesse que não podem ser
subestimados. Recorde-se, no entanto, que, visando
estas formas a tornarem-se extremamente visíveis e
sendo com freqüência documentadas em toda a sua
dramaticidade e com grande realce pelos meios de
comunicação de massa, é fácil sermos levados a
superestimar sua importância pelo número de pessoas
que participam. Trata-se, além disso, de formas
esporádicas de participação que não levam quase
nunca à criação de instrumentos organizativos, isto é, à
institucionalização da Participação política.
890
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÃOS EUROPEUS
Vejamos agora quais são os fatores que
condicionam, positiva ou negativamente, a
Participação política. Atentemos principalmente em
dois elementos fundamentais. O primeiro é constituído
por aquilo que poderíamos chamar estruturas ou
ocasiões de Participação política, amplamente
determinadas pelo ambiente em que o indivíduo se
move. Não se exclui evidentemente que o indivíduo se
faça promotor de novas formas, mas esses são casos
bastante raros. Ora, tais estruturas variam
notavelmente de sistema para sistema e mesmo dentro
de um mesmo sistema: basta pensar nas diferenças
entre regimes de amplo sufrágio e regimes de sufrágio
restrito, ou então nas diversas formas de organização
de base dos partidos, ou ainda nas normas da
legitimidade das forças de oposição. As estruturas de
participação mais importantes estão ligadas, nos
sistemas democráticos, aos mecanismos de
competição entre as forças políticas e estão geralmente
institucionalizadas nas normas que dizem respeito ao
processo de renovação dos cargos públicos. Além
disso, é importante realçar o papel do conjunto de
associações voluntárias que constituem o tecido
conectivo de uma sociedade pluralista e que têm uma
tríplice função principal: são fontes de estímulo
político, servem de mecanismo de recrutamento e
unem os indivíduos e os grupos primários às
instituições e às diversas forças políticas. Nos sistemas
autoritários e totalitários, a Participação política, em
vez de ser estimulada por mecanismos competitivos,
em vez de ser, por conseguinte, essencialmente
voluntária, apresenta, a despeito de uma terminologia
que é muitas vezes idêntica, um caráter bem diferente.
O termo mais adequado seria o de mobilização para
acentuarmos que a presença e a atividade de estratos
mais ou menos amplos da população são programadas
do alto e enquadradas na atividade das organizações
de massa, às quais são confiadas, além de funções de
estímulo, a incumbência do controle social. Conquanto
difusas, as estruturas de participação não são por si sós
suficientes onde a motivação para participar é baixa ou
limitada a um círculo restrito; é aqui que as
características da cultura política — ou, melhor, das
diversas subculturas que a compõem — mais se fazem
sentir. Assim, na Itália, a cultura política dominante dá
relevo exclusivo ou principal ao dever cívico do voto e
a motivação está mais vinculada ao temor de sanções,
um temor mais ou menos justificado, do que a
elementos de caráter positivo. Podemos dizer, em
substância, que largos estratos recebem estímulos
insuficientes de participação política, se não estímulos
contrários que levam à abstenção.
As pesquisas sobre participação trouxeram à luz
certas características individuais, psicológicas ou
sociológicas, que andam unidas a uma elevada ou
baixa Participação política. Algumas destas
características parecem ser relativamente constantes de
sistema para sistema; outras, ao invés, são função de
traços específicos de determinados contextos. Mas é
preciso ter presente que se trata de tendências e não de
uma uniformidade absoluta. Em geral, os resultados
indicam que os níveis de participação política são mais
elevados entre os homens, nas classes altas, nas
pessoas de mais elevado grau de instrução, nos centros
urbanos mais que nas zonas agrícolas, entre pessoas
educadas em famílias onde a política ocupa um lugar
de relevo, entre os membros de organizações ligadas
mesmo indiretamente à política, entre os que estão
mais facilmente expostos a contatos com pessoas ou
ambientes politizados, etc. A identificação de
características deste tipo tem, contudo, por enquanto,
apenas um valor descritivo. Não obstante as numerosas
pesquisas realizadas, ainda não foi elaborada uma
verdadeira e autêntica teoria da Participação política
que conseguisse explicar a variedade de resultados.
BIBLIOGRAFIA. —F. ALBERONI e outros, L'attivista
di partito. Il Mulino. Bologna 1967: L. W. MILBRATH.
Political participation. Rand Mc Nally. Chicago 1965:
A. PIZZORNO. Introduizone alla studio della
partecipazione politica. in "Quaderni di sociologia' .
XV. 1966; Elezioni e compartamento politico in Italia,
ao cuidado de A. SPREAFICO E J. IA PALOMBARA.
Comunità. Milano 1963: S. VERBA E N. H. NlE.
Participation in America, political democracy and
Social equality, Harper & Row. New York 1972; S.
VERBA, N. H. NIE e J. KIM. Participation and political
equality. A seven-nation comparison, Cambridge
University Press. Cambridge 1978.
[GIACOMO SANI]
Partidos Católicos e Democrático-Cristãos Europeus.
I. ELEMENTOS PARA UMA DEFINIÇÃO. — Como os
partidos tradicionalistas da direita ou conservadores,
os partidos liberais, democráticos e radicais, e os
partidos socialistas e comunistas, os Partidos católicos
e
democrático-cristãos
constituem
um
dos
componentes do panorama político da Europa, nos
séculos XIX e XX. Sua influência se estendeu pela
América Latina no decorrer deste século. Estes
partidos são ou se mantiveram
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÃOS EUROPEUS
por muito tempo como partidos "religiosos",
reportando-se, de vários modos, a uma confissão
religiosa ou aos princípios cristãos. Esta característica
explica por que tais partidos conseguiram sobreviver
até hoje, apesar das mudanças históricas, e lograram
superar suas grandes divisões internas.
Enquanto a expressão Partidos democráticocristãos não encontra objeções, pode acontecer que a
noção de Partidos católicos venha a ser rejeitada como
imprecisa, se não polêmica. Poder-se-ia justamente
observar que o Centro alemão recusou, de fato,
qualquer denominação confessional e que Windthorst
insistiu constantemente sobre este ponto. Contudo,
existem várias razões, razões não apenas de
comodidade, a favor da adoção da expressão Partido
católico. Ela tem o mérito de abranger uma realidade
mais vasta e variada que a de Partido democráticocristão, que só se introduz progressivamente e, por
muito tempo, não se agrega nem ao partido católico
belga, nem, por exemplo, ao partido católico holandês.
A análise comparativa não pode restringir-se só à
democracia cristã, que é, na realidade, um dos
componentes de um complexo mais vasto.
Houve uma época em que a expressão Partido
católico foi adotada não só pelos adversários de tais
partidos, mas também com muita freqüência pelos
seus próprios dirigentes. Enquanto o Centro alemão
não tem uma denominação confessional, a Katholische
Volkspartei, criada no Grãoducado de Baden pelos
fins da década de 60, no século passado, apresenta um
caráter abertamente confessional. Finalmente, enquanto
a expressão Partido católico nem sempre é de fato
utilizada e é até por vezes rejeitada, ela traduz, com a
máxima fidelidade, a realidade efetiva, tal qual foi
percebida pelos contemporâneos e se impõe à atenção
do historiador. Por isso, poderá afigurar-se legítimo o
uso da, expressão Partido católico (uma noção que, de
resto, tem aplicação principalmente no século XIX, ao
passo que o desenvolvimento dos Partidos
democrático-cristãos é sem dúvida característico do
século XX).
Para dizer a verdade, as expressões Partidos
democrático-cristãos e Partidos católicos não esgotam
certamente a série de denominações que o historiador
confronta em sua investigação. Partido Católico
Popular (nos Países-Baixos, no Grãoducado de Baden,
na Hungria em 1894), Partido do Centro, Partido
Democrático Popular, Liga Democrática (na Bélgica
em 1891), Federação dos Republicanos Democráticos
(na França, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial),
Movimento Republicano Popular: eis uma lista,
891
provavelmente incompleta, de denominações que já é
de per si suficiente para suscitar observações e
perguntas capazes, umas e outras, de nos dar uma
primeira perspectiva. A adjetivação confessional é
relativamente rara. É escolhido de preferência o
atributo "cristão", um atributo interconfessional, que
permite também englobar os protestantes —
entendidos como não ortodoxos, mas, no entanto,
ligados à moral cristã — e que põe em evidência uma
autonomia de ação com relação à hierarquia católica.
A declaração de confessionalidade caracteriza,
desde antes de 1914, o Centro alemão, bem como, por
exemplo, a Schweizerische Konservative Volkspartei,
fundada em 1912, ou o Partido da Direita, no
Luxemburgo, fundado a 9 de janeiro de 1914. O
programa destes partidos, que são confessionais,
refere-se, de resto, à "visão cristã do mundo" e à
"política social cristã". A diversidade e evolução das
denominações merecem uma certa atenção: o atributo
cristão aparece na Alemanha e na Itália só depois da
Segunda Guerra Mundial. Na Áustria, ao contrário, é
uma denominação não confessional que substitui o
atributo
cristão-social
em
1945,
com
a
Oesterreischische Volkspartei.
Estes partidos se apresentam com freqüência como
partidos "populares". O adjetivo, que em alemão é
portador de uma intensa carga ideológica, faz
referência a uma visão social bem definida, a do povo
"organizado" em corpos e associações, contraposto ao
individualismo liberal. É este o "popularismo" de dom
Sturzo. Estes partidos populares, sociais, não se dizem
necessariamente democráticos, como o demonstra o
nome da C.S.U. (Christliche Soziale Union) bávara. O
termo de democracia reflete um ideal social, o da
democracia cristã, que dirige sua atenção, em primeiro
lugar, para os "interesses populares", mas que também
pode querer pôr em questão as hierarquias sociais
tradicionais. "Democracia cristã", por outro lado,
expressa uma perspectiva política. É uma expressão
que sugere a aceitação da democracia política liberal e
dos seus valores. Nem todos os que, em fins do século
XIX e princípios do século XX, se dizem
democrático-cristãos,
aceitam
este
segundo
significado; os que não o aceitam reduzem o sentido
de tais palavras a uma "benéfica ação social a favor do
povo", tal como é pedido pela Encíclica Graves de
communi, em 1901.
Até as denominações relativas aos tipos de
organização destes partidos são subjetivas.
"Federação" lembra formas de organização elásticas,
descentralizadas. "Liga" ou "Movimento" traduzem a
vontade de se distinguirem dos partidos clássicos,
com a formação de uma estrutura
892
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÂOS EUROPEUS
original e o apelo às "forças vivas", como aconteceu
com o Movimento Republicano Popular, em 1944, na
França. A palavra "Centro", enfim, desde o Centro
alemão ao Centro Democrático francês, alude a uma
das estratégias possíveis, não a única, mas a mais
usual, e ao modo como tais partidos tentaram se
inserir no jogo das forças políticas, entre os
socialistas e a direita.
O estudo dos Partidos católicos e democráticocristãos, que se estendem por mais de século e meio
de história, está ligado a outros dois temas de
reflexão, muito próximos mas distintos: a Igreja
católica e a política, os católicos e a política. A
relação entre a Igreja e a política não é mediada só
pelos partidos. Durante muito tempo, a Igreja
preferiu, aliás, a intervenção dos bispos e da cúria
junto ao chefe de Estado, herdeiro do "príncipe
cristão", à ação dos partidos parlamentares,
controlados pelos leigos. Não há imagem menos exata
do que a que simboliza os Partidos católicos ou
democrático-cristãos como "braço secular" da
hierarquia ou da Santa Sé. Quando se quis pôr fim ao
Kulturkampf, Roma tratou diretamente com Bismarck
sem levar em conta o Centro. Em 1943, a Cúria não
viu com muito bons olhos o nascimento de um grande
partido democrático-cristão na Itália. Aconteceu, por
outro lado, que a Igreja preferiu à ação dos partidos a
ação de organizações católicas capazes de atuar como
grupos de pressão sobre o poder político e sobre os
vários partidos, organizações que tinham por
incumbência defender os interesses católicos; foi
assim, na França, com a Federação Nacional Católica
em 1924, ou com a Associação Parlamentar pela
liberdade do ensino em 1951. O exame do campo das
relações entre Igreja e política não se limita, portanto,
ao dos Partidos católicos.
Ocorre a mesma coisa quando se estudam as
atitudes políticas dos católicos. É um estudo
indispensável para compreender a história dos Partidos
católicos, mas que não se identifica com as suas
manifestações. Na Grã-Bretanha, os católicos, grupo
minoritário,
jamais
formaram
um
partido,
diversamente do que ocorre em outro país onde os
católicos são também minoria, como nos PaísesBaixos. Na França e na Espanha, países em que o
catolicismo é religião majoritária, os Partidos
católicos ou de inspiração cristã tiveram apenas uma
história efêmera e um destino medíocre. Um tal
fracasso é indício da multiplicidade dos
comportamentos políticos dos católicos e da
resistência à fórmula que havia de encontrar no
mundo germânico, ou na Bélgica e na Itália (neste
caso, em época tardia), seus mais notáveis resultados.
Por outro lado observa-se que nem todos os católicos
alemães, mesmo
no apogeu do Centro, votavam pelo partido de
Windthorst. A medida que a lembrança do
Kulturkampf se foi afastando, este fenômeno se
acentuou.
Quem se quiser adstringir a uma definição rigorosa,
capaz de orientar a pesquisa relativa aos partidos que
remontam, em sua própria base essencial, ao
catolicismo e aos princípios cristãos, não poderá incluir
entre os partidos católicos os partidos dinásticos ou
conservadores, mesmo que neles os católicos sejam
numerosos e a defesa da religião tenha um lugar de
relevo em seu programa. Nem o carlismo na Espanha,
nem o legitimismo na França possuem características
que os possam colocar na galeria dos partidos
católicos. Seu princípio de origem é a fidelidade
dinástica, conquanto o acatamento a Deus e ao rei
sejam uma coisa só. Do mesmo modo, há formações
conservadoras, como o partido de "Ordre dans la
France", na França da Segunda República, ou o da
Federação republicana no período entre as duas
guerras, que não podem ser designados como partidos
católicos. São formações que reúnem em torno do
mesmo programa, antes de tudo político, homens entre
os quais há alguns — pense-se, por exemplo, em
Thiers ou Louis Marin, na França — que não têm uma
particular ligação com a Igreja. Embora tais partidos
pretendam defender os "interesses religiosos" e
contem em seu eleitorado com numerosos católicos,
não são por isso Partidos católicos.
Este mesmo critério de classificação leva a reservar
também a expressão "partido protestante" para aqueles
partidos que, na origem, se reportam expressamente ao
cristianismo. É neste sentido que podemos lembrar o
Partido cristão histórico e o Partido Antirevolucionário nos Países-Baixos, ou a tentativa de
Ludwig von Gerlach na Prússia, mas não o Partido
conservador prussiano, mesmo que os luteranos
tenham apoiado tal formação. De resto, as
experiências de partidos protestantes parecem raras,
como se a doutrina dos "dois reinos" e uma certa
atitude de desconfiança do luteranismo em relação à
política tenham desaconselhado por longo tempo tal
fórmula. Por sua parte, o calvinismo só
excepcionalmente originou a formação de partidos
"religiosos"; levou antes seus fiéis a assumir, dentro
da própria responsabilidade individual, atitudes
políticas de esquerda, nas fileiras liberais e
democráticas primeiro, e socialistas depois. Merece
particular atenção o crescimento, especialmente depois
da Segunda Guerra Mundial, do interconfessionalismo
dos partidos de inspiração cristã, como conseqüência
tanto da luta comum dos católicos e protestantes
contra o nazismo, como da melhoria das relações entre
as confissões.
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÃOS EUROPEUS
II. ORIGEM E DESENVOLVIMENTO: CONDIÇÕES. — As
condições em que nascem os Partidos católicos e
democrático-cristãos constituem um primeiro conjunto
de problemas. Existe uma condição prévia,
constituída pela existência de um regime
representativo e por um parlamento. Formam-se então
grupos parlamentares, como no caso do Centro
prussiano em 1852, e começa a tomar corpo um
movimento específico de opinião, embora não se trate
ainda de uma verdadeira estruturação partidária. Outra
das condições prévias é a existência de um Estado
"indiferente em assuntos de religião", segundo a
expressão de La Mennais. Com efeito, numa
monarquia católica ou num Estado cristão, a idéia de
um partido que se reporte ao catolicismo parece
absurda. Em contraste, logo que o catolicismo deixa
de ser a religião de Estado para ser simplesmente a
religião "dominante", como afirma, por exemplo, a
Concordata com a França, e à medida que se
estabelece uma certa laicização, os católicos, ou pelo
menos uma parte deles, tendem a servir-se das
instituições liberais e a apelar para a opinião pública:
um procedimento que bem pode ser ilustrado com o
exemplo do Partido católico de Montalembert. Nos
Países-Baixos ou na Prússia, a existência de um
soberano protestante leva às mesmas conseqüências.
São exemplos que nos levam a fazer referência,
pelo que concerne à constituição dos Partidos católicos,
não já ao papel das relações entre a Igreja e o Estado,
mas ao desempenhado pelo mapa religioso da Europa.
Não há dúvida de que os primeiros êxitos dos Partidos
católicos se deram nos Estados em que o catolicismo
era minoritário e de que eles surgiram como um
verdadeiro e autêntico instrumento de defesa dos
direitos dos católicos, mantidos em condições de
inferioridade. A associação católica de O'Connell na
Irlanda, os primeiros passos políticos dos católicos na
Prússia, as iniciativas dos católicos belgas no Reino
dos Países-Baixos, tudo isso são casos que ilustram tal
fenômeno. Além disso, é preciso consignar que, nestes
casos, as minorias católicas são na realidade maiorias
dentro de um determinado complexo territorial, na
Renânia, na Irlanda, na futura Bélgica. Tem sido posto
com freqüência em evidência que o mapa religioso da
Europa, fixado no século XVI, na época das Reformas,
segundo o princípio cujus regio, ejus religio, pelo qual
os súditos hão de seguir a religião do soberano, tem
ainda hoje um certo peso na geografia dos partidos. A
C.S.U. bávara obteve por longo tempo seus maiores
sucessos nas zonas onde a tradição católica se
manteve depois do século XVI.
É claro que os Partidos católicos não surgiram só
nos Estados onde o catolicismo era
893
minoritário. Contudo, em sua origem, sempre se
encontra o desejo de lutar contra a política anticlerical
dos liberais no poder, uma política que faz dos
católicos cidadãos de segunda classe. O Partido
popular italiano, fundado por dom Sturzo em 1919,
visa restituir aos católicos seu lugar na sociedade
política. No império da Áustria, outro Estado em que o
catolicismo é majoritário, o Partido cristão-social, em
fins do século XIX, pretende pôr fim à influência
dominante dos liberais.
Em sua origem, estes partidos eram, portanto,
partidos de defesa religiosa que tinham em vista a
garantia e proteção dos direitos da Igreja no campo do
direito comum. Mas adotaram depois, em ritmos
diversos, um programa político e social próprio. Estes
programas se baseavam numa filosofia política e
social e numa concepção da civitas que era inspirada
pelo cristianismo. Teria sido mais que incerto o
destino dos partidos de mera defesa religiosa. Pelo
contrário, a referência à concepção do homem e do
mundo afirmada pelo ensino político e social da Igreja
deu a esses partidos o apoio, se bem que nem sempre
constante e total, da hierarquia e do clero, que seria a
base da sua força e da sua continuidade.
Estes partidos encontraram principalmente um
viveiro de militantes e de pessoal fiel em movimentos e
associações extremamente variados, que se
desenvolveram particularmente a partir de finais do
século XIX, prenunciando o surgimento da Ação
católica. Esta formou numerosos militantes cujo
compromisso político se traduziria em ação nas
fileiras dos Partidos católicos e democrático-cristãos.
É corrente a afirmação de que os Partidos católicos
tiveram sua origem nas regiões de características
fortemente cristãs, naquelas regiões em que a prática
religiosa apresenta ainda hoje um particular fervor. Na
realidade, a vitalidade religiosa de uma região é
condição necessária mas não suficiente para fazer
nascer um Partido católico. Não é menos indispensável
a existência de uma rede de associações e movimentos
que
enquadrem
a
população
naquele
Vereinskatholizismus tão fundamental na história do
catolicismo alemão, mas que no Vêneto como em
Flandres ou na Eslováquia teve um destino não menos
relevante. Desse modo, os Partidos católicos foram
verdadeiramente a expressão política de um
catolicismo "popular", profundamente radicado no seu
húmus, de um catolicismo "social", para dizer tudo.
Tornaram-se um dos componentes da paisagem da
cristandade, como as obras, as associações e os
sindicatos cristãos agrícolas ou operários.
Estes partidos surgiram da reação à política
anticlerical e da convicção que os católicos
894
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÃOS EUROPEUS
militantes tinham de ser excluídos de uma vida
política dominada pelos liberais. Quando dom Sturzo
funda, em 1919, o Partido popular italiano, pretende,
aproveitando-se da cessação do non expedit , rejeitar
o acordo clérico-moderado de 1913 e afirmar
intransigentemente a autonomia das forças católicas.
É hostil tanto a um compromisso com a classe
dirigente burguesa, como a uma aliança com o
socialismo. A criação do P.P.I. é justamente o desfecho
da longa luta dos católicos italianos contra o Estado
liberal. A política liberal e anticlerical favoreceu o
surgimento dos partidos católicos. Constatar isto
equivale a formular uma interrogação, que não é de
somenos importância, sobre o porvir de tais partidos,
numa época em que a questão "religiosa" já não é de
primeiro plano nas lutas políticas.
Partidos de simples defesa religiosa, pode acontecer
que se limitassem à proteção dos direitos dos
católicos, no campo das liberdades comuns de que
estes deveriam também gozar a par de todos os demais
cidadãos. Tal pode ser a motivação de um Windthorst,
entre outros, na época do Kulturkampf. Mas, de um
catolicismo político "defensivo", se passou a um
catolicismo político de "proselitismo", visando
assegurar à Igreja posições políticas privilegiadas, com
a aprovação de leis aptas a criar um clima favorável à
vida religiosa. É evidente que se tornaria necessário
analisar desde esta perspectiva a legislação posta em
vigor nos países onde o Partido católico manteve o
poder sozinho durante um longo período: foi o que
aconteceu na Bélgica de 1884 a 1919. Ao mesmo
tempo, seria conveniente poder avaliar as reações
provocadas por tal política.
Enfim, além do simples proselitismo, vê-se às vezes
delinear-se a possibilidade de um catolicismo político
"teocrático" sob a forma parlamentar. Foi esse o juízo
que dos Partidos católicos fizeram seus adversários
liberais e que está bastante bem expresso nestas
palavras de Émile de Laveleye: "Na Idade Média, os
papas tentaram privar os reis de suas coroas,
excomungando-os: quase nunca o conseguiram. Hoje
parte de Roma uma palavra de ordem; transmitem-na
os bispos e os párocos; os eleitores obedecem e assim,
por meio do mecanismo do voto, o sumo pontífice
escolhe os ministros, depõe-nos, numa palavra,
governa os Estados". É um tema repetido infindas
vezes: os Partidos católicos são aos olhos dos
adversários o último expediente duma estratégia
teocrática. A realidade é indubitavelmente bem mais
complexa. Mas é um fato que o sonho teocrático
jamais foi totalmente abandonado; pense-se na atitude
de Fornari, núncio em Bruxelas logo a seguir à
independência, ou nas esperanças de certos
democrata-cristãos, fiéis
a uma tradição que na Itália, depois da liberação,
culminou nos sonhos de uma nova cristandade de
Dossetti ou de La Pira.
Na realidade, no curso da sua história, os Partidos
católicos experimentaram, não sem contradições e
dificuldades, a condição ambígua derivada da sua
própria definição, das suas estreitas relações com os
bispos, o clero e os movimentos católicos, e até do
próprio
eleitorado.
Confessionalismo,
interconfessionalismo
com
os
protestantes,
aconfessionalismo, limites da autonomia política com
relação à Igreja, relações com a hierarquia e com
Roma, eis outros tantos motivos de controvérsias, de
conflitos e, conseqüentemente, de divisões. A
referência confessional ao catolicismo é mais rara que
a referência interconfessional ao cristianismo, em que
se baseia o apelo de Windthorst à colaboração com os
protestantes, com os não católicos, portanto. E
indubitável que a presença dos protestantes no Centro
se mantém bastante escassa. Foi-se ampliando, não
obstante, nos últimos anos da República de Weimar,
preludiando assim aquela colaboração que se
estabeleceria depois no seio da C.D.U.
A referência ao cristianismo não implicava para os
Partidos católicos e democrático-cristãos a renúncia à
autonomia política em face da hierarquia. Significava,
antes de mais nada, a adesão a uma moral política e
social. Contudo, a reivindicação da aconfessionalidade
envolvia um certo equívoco: o Partido democrático
popular, fundado na França em 1924, bem como o
Partido popular italiano, fundado em 1919, afirmaram
vigorosamente não serem partidos confessionais; o
próprio Centro alemão também o afirmou
constantemente. Além disso, em contraste com a
Christliche Demokratische Union, surgida logo a
seguir à Segunda Guerra Mundial, a denominação do
Centro não continha qualquer referência explícita ao
cristianismo.
Entre os dirigentes e os militantes destes partidos,
por um lado, e as autoridades religiosas, por outro,
estabeleceram-se relações mais complexas do que
habitualmente se tende a afirmar. Até há bem poucos
anos, a hierarquia da Itália, da Bélgica, da Alemanha,
dos Países-Baixos aumentava regularmente, na
iminência das consultas eleitorais, seu apoio aos
Partidos católicos. Portanto, os vínculos efetivos com
as autoridades religiosas eram estreitos. Mas, em tais
condições, os Partidos católicos conservavam um
âmbito de ação que há de ser avaliado levando-se em
conta as situações nacionais e a falta de
homogeneidade, por não dizer divisões, dos
episcopados. Já nos fins do século passado, o
historiador Charles Seignobos intuíra que, entre os
leigos e os "chefes oficiais da Igreja", "as rivalidades
contrastantes,
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÃOS EUROPEUS
as influências e as divergências de opinião" estavam
para suscitar "conflitos de novo gênero". O próprio
"Partido católico" de Montalembert, que era, de fato,
um grupo de pressão pela liberdade do ensino, havia
provocado, em 1846, a desconfiança de uma parte dos
bispos, apreensivos em face do "laicismo": parecialhes que as novas autoridades exerciam sua influência
sobre o ânimo dos fiéis,' enquanto as lutas políticas
não podiam senão dividir os católicos; não seria
melhor intervir diretamente junto aos governos, sem
passar pela mediação dos partidos? Era este, com assaz
freqüência, o pensar dos bispos, ligados à imagem
tradicional das relações entre a Igreja e o Estado.
As restrições dos bispos convertiam-se por vezes
em hostilidade, quando os Partidos católicos adotavam
um programa social que suscitava a aversão dos
católicos conservadores, ou quando parte do clero
jovem militava ativamente nesses partidos, contra o
parecer da hierarquia. É bem conhecida a
desconfiança do alto clero da Áustria, no tempo do
império, com relação à Kaplansbewegung; são
conhecidas suas queixas a Roma, especialmente por
causa do anticapitalismo, misturado de anti-semitismo,
dos cristão-sociais, e o apoio que estes tiveram dos
cardeais Agliardi e Rampolla. Neste caso, Roma
parece ter apoiado um Partido católico, passando por
cima dos chefes dos católicos locais. Mas, ao invés,
existem também exemplos de tensão entre os Partidos
católicos e a cúria: o de maior relevo foi o da recusa
do Centro alemão a votar o Setênio militar, em 1887,
apesar do convite expresso da Santa Sé. O episódio
marcou uma mudança nas relações entre o Centro e a
cúria e trouxe consigo uma evolução mais "alemã" e
menos "romana" do partido de Windthorst. Este caso
demonstra que os Partidos católicos não foram o braço
secular da Santa Sé, mas comprova que, ao estudá-los,
não se pode ignorar a política vaticana e a sua
influência.
III. AMBIENTE IDEOLÓGICO. — A história dos
Partidos católicos vai buscar sua substância na
história das ideologias sociais e políticas de que o
catolicismo foi portador na época contemporânea. Os
primeiros católicos que empreenderam uma ação
política organizada afirmaram seu direito à liberdade
e sua vontade de se servirem das instituições liberais e
parlamentares. Neste sentido, os primeiros Partidos
católicos são inseparáveis do movimento católico
liberal. Observa-se, ainda, por outro lado, que eles
compartem da mesma ambigüidade do catolicismo
liberal: de que é que se trata, de reivindicar a
liberdade para os católicos ou a liberdade para todos?
Por
895
outra parte, muitos destes católicos liberais —
pensemos, por exemplo, em Mérode, na Bélgica —
apresentam ainda os sinais do tradicionalismo contrarevolucionário. Além disso, nem todos os católicos
liberais quiseram atuar dentro de um Partido católico,
podendo até ter acontecido que preferissem a ação dos
católicos dentro das diversas formações políticas,
unidos aos "honestos". Na França, em particular, os
homens ligados à tradição do catolicismo liberal
acolheram antes desfavorável que favoravelmente as
iniciativas tendentes à criação de um Partido católico.
Seria legítimo, pensavam, impor a todos os católicos
uma mesma linha política? Uma tal escolha seria
verdadeiramente a mais adequada à atuação em defesa
do catolicismo? Foi por essa razão que a Santa Sé
desaprovou, em 1885, a tentativa, da autoria de Albert
de Mun, de constituir um Partido católico, quando a
morte do conde de Chambord fez desvanecer as
esperanças dos legitimistas.
Débito equivalente ao que têm com o catolicismo
liberal, têm-no também os Partidos católicos com o
catolicismo
"intransigente".
A
historiografia
contemporânea pôs em evidência a importância desta
corrente, durante muito tempo tratada com desprezo
pelos historiadores liberais. Não é este o lugar para
avaliar o papel, assaz notável, do movimento
intransigente na vida religiosa da segunda metade do
século XIX. Bastará dizer que ele serviu para
preservar, ou, antes, para reforçar, a "sociedade
católica", em oposição à sociedade civil, sujeita a uma
progressiva
secularização.
Este
catolicismo
intransigente, este "intransigentismo", como dizem os
historiadores italianos utilizando um vocábulo que
indica bem quão misturados aí andam o religioso e o
ideológico, é possuidor de uma filosofia política e social
específica. E esta, por seu turno, também é devedora
ao pensamento tradicionalista: é dominada pela
hostilidade contra o liberalismo condenado pelo
Syllabus e contra o individualismo nascido da
Revolução Francesa; exalta uma sociedade baseada em
corpos e associações e rejeita o Estado centralizado e
jacobino.
Tudo isto são temas que os Partidos católicos
encontraram e que muitas vezes se apropriaram,
quando tais formações políticas adquiriram sua
verdadeira feição, no último terço do século XIX. Sob
muitos aspectos, a conjuntura é então bastante diversa
daquela que viu florescer o catolicismo liberal e que
acompanha a pré-história dos Partidos católicos após
1830. Mudam as dimensões da vida política. Às elites
sucedem as massas, ao sufrágio restrito o sufrágio
ampliado ou mesmo o sufrágio universal. Os partidos
deixaram de ser juntas de notáveis ou tendências de
896
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÂOS EUROPEUS
opinião pública, para ser antes poderosas organizações
de massa. O anticlericalismo torna-se mais radical. Os
liberais moderados abandonam a colaboração com os
católicos na Bélgica, na Prússia e nos Países-Baixos. O
socialismo transforma-se numa força política. Torna-se
agora imperiosa aos católicos uma organização no
plano político que até então se achava apenas
esboçada.
Como herança do catolicismo liberal, os Partidos
católicos conservam, sem dúvida, a inclinação de
fazer uso das instituições liberais e parlamentares,
contestadas, ao invés, por alguns intransigentes, não
por todos. É um fato incontestável que os Partidos
católicos foram uma derivação do catolicismo
intransigente. É a ele que devem não só grande parte
de sua ideologia e a estratégia da luta em duas frentes,
contra os liberais e contra os socialistas, mas também
seus quadros e estruturas. Com efeito, os Partidos
católicos se desenvolveram no campo de associações,
de organizações, de obras e de um enquadramento do
povo cristão que, em larga medida, era obra dos
intransigentes. Sem esse Vereinskatholizismus, tais
partidos não se teriam tornado forças importantes,
capazes de lutar com sucesso contra o socialismo, nem
teriam triunfado, com o advento do sufrágio universal,
sobre as formações liberais, como aconteceu na
Bélgica.
O catolicismo intransigente queria ser popular e o
foi. Aceitava a democracia de sentido social, mas não
político. Deu aos Partidos católicos a possibilidade de
serem populares e democráticos por meio de seus
eleitores e militantes. Uma rede de comitês e
associações, fortaleza de apoio do clero, unia os fiéis
(camponeses, mas também operários e classe média).
A democracia não está necessariamente ligada, como
o uso francês da palavra induziria a crer, à condição
liberal e jacobina e ao anticlericalismo. Na realidade,
uma das virtualidades da democracia era exatamente a
de estar associada ao ultramontanismo e ao
cristianismo.
São observações que levam a interrogarmo-nos
sobre as relações entre os Partidos católicos, o
catolicismo social e a democracia cristã. O catolicismo
social firma-se, em suas origens, no patrimônio
espiritual do catolicismo contra-revolucionário, do
tradicionalismo e do catolicismo intransigente. Não
surpreende, pois, que os Partidos católicos tenham
assumido os temas "sociais" do catolicismo
intransigente:
crítica
da
sociedade
liberal,
desconfiança a respeito do industrialismo, apologia da
ordem corporativa. Em contraposição, os homens que
podemos incluir na família católico-liberal foram
aqueles que, diante destas idéias sociais, mantiveram as
maiores reservas: assim
aconteceu com os conservadores belgas que
dominaram por longo tempo o Partido católico.
A esta cisão entre católicos conservadores liberais e
católicos sociais, se juntou bem depressa, no seio dos
Partidos católicos, a oposição cada vez mais profunda
entre católicos sociais e democratas cristãos. A
democracia cristã não possui primariamente e não
possui apenas um sentido político. O movimento
democrático-cristão invade todo o mundo católico no
fim do século passado, depois da Encíclica Rerum
novarum.
Encontram-se
aí
associados
três
componentes que não caminham sempre pari passu:
uma vontade de reforma e de transformação religiosa,
assim como de democracia na Igreja, uma vontade de
transformação social, e uma vontade de transformação
política. Postas tais premissas, pode-se afirmar que,
assim como a história dos Partidos católicos possui
uma extensão bastante mais ampla que a dos Partidos
democrático-cristãos (naquela incluída), assim também
a história da democracia cristã é bastante mais que um
capítulo da história dos Partidos católicos, conquanto
tal capítulo haja atingido, no século XX, dimensões
consideráveis.
Os democratas cristãos tinham em comum com os
outros componentes da família católica social a
rejeição do liberalismo econômico e social e do
coletivismo socialista. Mas as exigências da democracia
"social" os levaram a repelir a visão hierárquica da
sociedade, uma visão própria do catolicismo social
contra-revolucionário, a preconizar a participação e a
igualdade de direitos, e a fundar sindicatos "separados"
e não "mistos" Duras controvérsias opuseram os dois
ramos do catolicismo social, o tradicionalista e o
democrático, refletindo-se na história dos Partidos
católicos desde o fim do século XIX até aos nossos
dias. Foi o que aconteceu no Centro alemão e também
na C.D.U. dos cristãos-sociais austríacos e no Partido
católico belga. Estas controvérsias, que deram lugar a
graves conflitos, ou mesmo a cisões, não impediram,
contudo, a convivência dentro do Partido católico, na
Bélgica, de democratas cristãos e conservadores.
Depois de 1945, os ideais dos democratas cristãos se
tornaram predominantes no programa social dos
partidos católicos.
Outras controvérsias foram provocadas pela
necessidade da democracia "política". Os debates no
plano social e no plano político possuem
interferências mútuas, mas nem sempre coincidem: é
assim que a ala mais "social" do Centro alemão, no
tempo da República de Weimar e tendo Stegerwald à
frente, não foi a mais avançada no plano político. Os
"dossettianos", que integraram a Democracia cristã
italiana desde 1945, estão
PARTIDOS CATÓLICOS E DEMOCRÁTICO-CRISTÂOS EUROPEUS
longe de aceitar, como De Gasperi, o Estado laico.
A vontade de estabelecer uma autêntica democracia
política leva a reivindicar a plena participação dos
cidadãos na vida do país. A criação de um senado
profissional, a descentralização e a reforma regional,
temas
fundamentais
para
uma democracia
participativa, reaparecem em programa após programa,
desde o fim do século passado até os nossos dias. Não
eram exclusivos da democracia cristã, que nisso se
colocava
dentro
da
própria
corrente
do
tradicionalismo, e, por isso, se impuseram facilmente
aos Partidos católicos. Ao invés disso, quando
democracia política significava afirmar a autonomia
política em relação à Igreja, desconfessionalização,
colaboração com os não-crentes, com os liberais, ou
mesmo com os socialistas, aceitação de uma legislação
que já não concedia à Igreja condições de privilégio,
então as tensões internas se tornavam fortes. Os
"democratas cristãos", que se opunham aos defensores
de uma linha confessional e "integralista", se alinham
à tradição do catolicismo liberal condenado pelo
Syllabus de Pio IX, que inicialmente parecia
rejeitarem.
No curso da história dos Partidos católicos se
observa a repetição de seqüências análogas. A
princípio há a vontade expressa de permanecer no
campo estritamente católico, de levar as exigências
cristãs ao corpo social e à sociedade civil. É assim que
se manifesta o sonho de uma política e de uma civitas
cristãs. Trata-se de uma tendência intimamente ligada
a uma certa rejeição do mundo presente e da
esperança de o transformar sob a influência do
cristianismo. Nisto os partidos católicos trazem
consigo uma certa visão milenarista de regeneração
social. Depois, a época da rejeição do presente e da
esperança nos fins últimos cede o lugar à dura
revelação dos condicionamentos da política, que
pertence a uma ordem diversa da da religião. Para
alguns esta é a hora da desconfessionalização e da
descoberta dos valores profanos. Para outros é o
tempo da transição da mística à política e às realidades
do poder e da gestão. Os Partidos católicos viveram
assim entre dois pólos, um religioso, o outro político. É
esta tensão que constitui a originalidade da sua
história e talvez, mais em geral, da história dos
movimentos de inspiração cristã empenhados no
mundo. Entre a afirmação da necessidade de uma
política de inspiração cristã e a afirmação da
autonomia da política, quantas soluções intermédias,
que caminhos complexos. . .
eram verdadeiros e autênticos partidos apenas nos
pequenos Estados da Europa liberal, Bélgica, PaísesBaixos, Suíça, e nos dois impérios da Alemanha e da
Áustria-Hungria. O único destes partidos que detinha
o poder era o Partido católico belga. Na Suíça, nos
Países-Baixos e na Alemanha, países em que os
protestantes constituíam maioria, os Partidos católicos
mantinham-se minoritários. Mas, depois de haverem
sido formações de oposição na época das lutas
anticlericais, passaram a fazer parte das maiorias de
Governo e puderam, como aconteceu nos PaísesBaixos, ter acesso às responsabilidades governativas.
Os anos que se sucederam à Primeira Guerra
Mundial viram surgir diversos partidos democráticos
de inspiração cristã, favorecidos pela democratização
da vida pública do imediato pós-guerra, caracterizada
pela extensão do sufrágio universal, que chegou a
incluir às vezes até o voto feminino. O surgimento do
Partido popular italiano em 1919, do Partido social
popular na Espanha em 1922, do Partido democrático
popular na França em 1924, e de um Partido popular
na Tchecoslováquia, confirma essa tendência. Mas
este mapa dos Partidos democrático-cristãos se reduz
rapidamente como pele de lixa, à medida que as
democracias liberais se retraem diante dos regimes
autoritários.
Depois da Segunda Guerra Mundial, as formações
democráticas cristãs mantêm uma posição duradoura,
sem igual até então, na vida política da Europa
Ocidental. As razões são bem conhecidas: encontramse no papel dos democratas cristãos na Resistência, no
eclipse dos partidos da direita tradicional depois da
guerra, no medo ao comunismo e na atitude favorável
da Igreja. Não é momento de voltar à imagem um
tanto mítica de uma Europa democrático-cristã
encarnada por Konrad Adenauer, Alcide De Gasperi e
Robert Schuman. Enquanto na França o M.R.P sofre
um rápido declínio, na Alemanha e na Itália, a
democracia cristã adquire um papel dominante na vida
política. O mesmo acontece, mas não é novidade, com
o Partido social-cristão belga e com o Partido católico
holandês. Mas, por fins da década de 60, muitos
observadores tiveram a sensação de um inelutável
declínio dos partidos democrático-cristãos: o fim do
M.R.P. na França, o fracasso do Centro-esquerda na
Itália, a passagem à oposição na Alemanha Federal e
na Áustria e o refluxo dos partidos confessionais nos
Países-Baixos constituem outros tantos sinais de crise.
É incontestável que a longa permanência no poder
tinha privado os Partidos democrático-cristãos daquela
força de atração que tinham quando da Liberação.
IV. DIMENSÕES DO FENÔMENO. — Ao concluir estas Haviam-se tomado partidos de gestão, identificandoreflexões, é necessário fazer um balanço. No início do se com políticas
século XX, os Partidos católicos
898
PARTIDOS POLÍTICOS
conservadoras. Além disso, as realizações reformistas
dos Governos do pós-guerra tinham esvaziado parte
do seu programa.
Tal como a evolução política, também a evolução
da Igreja pôde parecer desfavorável aos Partidos
democrático-cristãos. A diminuição dos conflitos
entre a Igreja e o Estado deixou sem objetivo os
partidos de defesa religiosa. E o que é sobremaneira
importante é que a Igreja, após o Concilio,
reconheceu a legitimidade do pluralismo nas atitudes
políticas dos católicos, desde que não sejam contrárias
aos ensinamentos do cristianismo.
Mas é preciso que nos guardemos da tentação de
deduzir de tais constatações conclusões demasiado
apressadas, que seriam desmentidas pela realidade.
Parece, com efeito, que, nos últimos anos, como foi
revelado por diversas consultas eleitorais, se está
verificando uma certa estabilização de posições, se
não mesmo um novo revigoramento dos Partidos
democrático-cristãos. O que é certo é que eles foram
se convertendo cada vez mais em partidos como os
outros, perdendo parte da sua especificidade. Em
diversos países como a Alemanha e a Áustria,
ocupam, com efeito o lugar dos partidos
conservadores, já ausentes do mapa político. Mas
seria engano negar sua capacidade de renovação,
como o demonstrou em certos momentos a
Democracia cristã italiana ou o êxito do Apelo
democrático-cristão nos Países-Baixos, nascido da
união dos partidos confessionais.
É certo que tanto a evolução da Igreja como a
mudança dos objetivos políticos tendem ao
enfraquecimento
dos
aspectos
propriamente
confessionais dos Partidos democrático-cristãos, que
assim vão perdendo a ambigüidade que os
caracterizava. Na realidade, os Partidos democráticocristãos se convertem autenticamente — e não apenas
em seus ideais — em partidos aconfessionais. Mas,
chamem-se ou não cristãos, mantêm uma referência,
se não à doutrina social e política do cristianismo ("a
Bíblia não é um livro de receitas", diz o programa do
C.D.U.), ao menos à visão do mundo de que o
cristianismo é portador. Deste modo eles constituem
coisa bem diversa dos partidos de gestão,
pragmáticos, à americana. Permanecem como
Weltanschauungsparteien, em cujo seio convivem
correntes diversas, conservadoras umas, democráticas
outras, quando não socializantes. Esta mesma
variedade é um indício de vitalidade; aconselha, em
todo caso, o historiador a ser prudente em seus
prognósticos.
Quando se pretende conhecer a evolução dos
programas dos partidos democráticos de inspiração
cristã de há dez anos para cá, é grande a impressão
que causa a continuidade e, ao mes-
mo tempo, o esforço de aprofundamento. Na
insistência sobre os valores familiares e sobre o papel
das comunidades intermediárias, no respeito pela
propriedade privada, na busca da participação nas
relações do trabalho, e no pluralismo político, não
existe nada de particularmente novo. Mas o relevo
dado aos direitos e à liberdade da pessoa e ao perigo
da burocratização e do estatalismo é algo que
responde com maior precisão às inquietações recentes
quanto à evolução das sociedades contemporâneas.
São temas suscetíveis de encontrar eco numa Europa
onde os projetos socialistas talvez tenham perdido seu
fascínio, numa Europa em busca de valores
espirituais.
BIBLIOGRAFIA. — J. BEALFAYS, Les partis catholiques
en Belgique et aux Pays-Bas. 1918-1958. Bruylant
Bruxelles 1973; K. BÜCHHEIM, Geschichte der
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en Italie. Colin. Paris 1966; G. DE ROSA, Storia del
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M. VAUSSARD, Storia della democrazia cristiana (1956),
Cappelli, Bologna, 1959.
[JEAN-MARIE MAYEUR]
Partidos Políticos.
I. DEFINIÇÃO. — Segundo a famosa definição de
Weber, o Partido político é "uma associação... que
visa a um fim deliberado, seja ele 'objetivo' como a
realização de um plano com intuitos materiais ou
ideais, seja 'pessoal', isto é, destinado a obter
benefícios, poder e, conseqüentemente, glória para os
chefes e sequazes, ou então voltado para todos esses
objetivos conjuntamente". Esta definição põe em
relevo o caráter associativo
PARTIDOS POLÍTICOS
do partido, a natureza da sua ação essencialmente
orientada à conquista do poder político dentro de uma
comunidade, e a multiplicidade de estímulos e
motivações que levam a uma ação política associada,
concretamente à consecução de fins "objetivos" e/ou
"pessoais". Assim concebido, o partido compreende
formações sociais assaz diversas, desde os grupos
unidos por vínculos pessoais e particularistas às
organizações complexas de estilo burocrático e
impessoal, cuja característica comum é a de se
moverem na esfera do poder político. Para tornar mais
concreta e específica esta definição é usual sublinhar
que as associações que podemos considerar
propriamente como partidos surgem quando o sistema
político alcançou um certo grau de autonomia
estrutural, de complexidade interna e de divisão do
trabalho que permitam, por um lado, um processo de
tomada de decisões políticas em que participem
diversas partes do sistema e, por outro, que, entre essas
partes, se incluam, por princípio ou de fato, os
representantes daqueles a quem as decisões políticas
se referem. Daí que, na noção de partido, entrem
todas as organizações da sociedade civil surgidas no
momento em que se reconheça teórica ou
praticamente ao povo o direito de participar na gestão
do poder político. É com este fim que ele se associa,
cria instrumentos de organização e atua.
Nesta acepção, os partidos aparecem, pela primeira
vez, naqueles países que primeiramente adotaram
formas de Governo representativo: não que os partidos
nasçam
automaticamente
com
o
Governo
representativo; é mais porque os processos civis e
sociais que levaram a esta forma de Governo, que
previa uma gestão do poder por parte dos
"representantes do povo", teriam depois conduzido a
uma progressiva democratização da vida política e à
integração de setores mais amplos da sociedade civil
no sistema político. Em termos gerais, pode portanto
se dizer que o nascimento e o desenvolvimento dos
partidos está ligado ao problema da participação, ou
seja, ao progressivo aumento da demanda de
participação no processo de formação das decisões
políticas, por parte de classes e estratos diversos da
sociedade. Tal demanda de participação se apresenta
de modo mais intenso nos momentos das grandes
transformações econômicas e sociais que abalam a
ordem tradicional da sociedade e ameaçam modificar
as relações do poder. É em tal situação que emergem
grupos mais ou menos amplos e mais ou menos
organizados que se propõem agir em prol de uma
ampliação da gestão do poder político a setores da
sociedade que dela ficavam excluídos ou que propõem
uma estruturação política e social diferente da própria
sociedade. Naturalmente, o tipo
899
de mobilização e os estratos sociais envolvidos, além
da organização política de cada país, determinam em
grande parte as características distintivas dos grupos
políticos que assim se formam.
II. O PARTIDO DOS NOTÁVEIS. — Historicamente, a
origem do partido pode remontar à primeira metade
do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos. É o
momento da afirmação do poder da classe burguesa e,
de um ponto de vista político, é o momento da difusão
das instituições parlamentares ou da batalha política
pela sua constituição. Na Inglaterra, o país de mais
antigas tradições parlamentares, os partidos aparecem
com o Reform Act de 1832, o qual, ampliando o
sufrágio, permitiu que as camadas industriais e
comerciais do país participassem, juntamente com a
aristocracia, na gestão dos negócios públicos. Antes
dessa data, não se pode falar propriamente de Partidos
políticos na Inglaterra. Os dois grandes partidos da
aristocracia, surgidos no século XVIII e desde então
presentes no Parlamento, não tinham, fora disso,
nenhuma relevância nem algum tipo de organização.
Tratava-se de simples etiquetas atrás das quais
estavam os representantes de um grupo homogêneo,
não dividido por conflitos de interesses ou por
diferenças ideológicas substanciais, que aderiam a um
ou a outro grupo, sobretudo por tradições locais ou
familiares. Como afirma Weber, eles não eram mais
do que séquitos de poderosas famílias aristocráticas
tanto que "toda a vez que um Lord, por qualquer
motivo, mudava de partido, tudo o que dele dependia
passava, na mesma hora, para o partido oposto".
Depois do Reform Act começaram a surgir, no país,
algumas estruturas organizativas que tinham o escopo
de ocupar-se da execução prevista pela lei para a
eleição do Parlamento e de recolher votos em favor
deste ou daquele candidato. Tratava-se de associações
locais promovidas por candidatos ao Parlamento ou
por grupos de pessoas notáveis que tinham lutado pelo
alargamento do sufrágio ou, algumas vezes, por
grupos de interesse. Estes círculos reagrupavam um
número mais restrito de pessoas, funcionavam quase
exclusivamente durante os períodos eleitorais e eram
liderados por notáveis locais, aristocratas ou
burgueses de alta sociedade, que proviam à escolha
dos candidatos e ao financiamento da atividade
eleitoral. Entre os círculos locais não existia nenhum
laço de tipo organizativo nem em sentido horizontal
nem em sentido vertical. A sua identidade partidária
assim como a sua expressão nacional se achava no
Parlamento: era o grupo parlamentar do partido que
tinha a função de preparar os programas eleitorais e
escolher os líderes do partido. O poder do grupo
parlamentar
900
PARTIDOS POLÍTICOS
do partido, além disso, era acrescido do fato de que os
deputados tinham um mandato absolutamente livre:
não eram responsáveis por sua atividade política nem
frente à organização que tinha contribuído para sua
eleição nem frente aos eleitores, mas, como se
afirmava então, eles eram responsáveis "só diante da
própria consciência".
Este tipo de partido que na literatura sociológica é
chamado de "partido dos notáveis" por sua
composição social ou partido do "comitê" por sua
estrutura organizativa, ou de "representação
individual" pelo gênero de representação que
exprimia, é o que prevalece durante todo o século
XIX, na maior parte dos países europeus. Existem
obviamente diferenças entre um país e outro, seja
porque em alguns países os partidos nascem muito
mais tarde (na Alemanha, por exemplo, pode-se falar
de partidos só depois da revolução de 1848 com a
formação dos partidos liberais da burguesia e na Itália
só depois da unificação nacional) seja porque as
condições sociais e políticas que levaram à sua
constituição foram parcialmente diversas das inglesas.
Todavia, pode-se afirmar, de um modo geral, que o
ingresso da burguesia na vida política foi contraassinalado pelo desenvolvimento de uma organização
partidária com base no comitê e que enquanto o
sufrágio foi limitado e a atividade política
exclusivamente atividade parlamentar da burguesia,
não houve mudanças na estrutura partidária.
III. O PARTIDO DE ORGANIZAÇÃO DE
MASSA. — Nos decênios que precederam e se
seguiram aos fins do século XIX a situação começou
a mudar após o desenvolvimento do movimento
operário. As transformações econômicas e sociais
produzidas pelo processo de industrialização levaram à
ribalta política as massas populares cujas
reivindicações se expressam inicialmente em
movimentos espontâneos de protesto, encontrando
depois canais organizativos sempre mais complexos
até à criação dos partidos dos trabalhadores. É
precisamente com o aparecimento dos partidos
socialistas — na Alemanha em 1875, na Itália em
1892, na Inglaterra em 1900 e na França em 1905 —
que os partidos assumem conotações completamente
novas: um séquito de massa, uma organização difusa, e
estável com um corpo de funcionários pagos
especialmente para desenvolver uma atividade política
e um programa político-sistemático.
Estas características correspondiam a exigências
específicas dos partidos dos trabalhadores, quer pelos
objetivos políticos que se propunham quer pelas
condições sociais e econômicas das massas a que se
dirigiam. Os movimentos
socialistas haviam surgido com o programa de
promover um novo modo de convivência civil, de que
seriam artífices as classes subalternas política e
socialmente emancipadas. Para tal fim, era necessário
educar as massas, torná-las politicamente ativas e
conscientes do próprio papel. Para fazer isto não era
suficiente uma genérica agitação política por ocasião
das eleições nem tinha grande importância a atividade
parlamentar. Ao contrário, era essencial que no país se
desenvolvesse uma estrutura organizativa estável e
articulada, capaz de enfrentar uma ação política
contínua que envolvesse o maior número possível de
trabalhadores e que atingisse toda a esfera de sua vida
social, que acolhesse as suas demandas e exigências
específicas e as transformasse num programa geral.
Além disso, era necessário que à atividade de
educação e propaganda e ao trabalho organizativo se
dedicassem, em tempo integral, pessoas qualificadas e
especialmente pagas para isto, não sendo possível que
os trabalhadores, com pesados horários de trabalho e
baixos salários, dedicassem à atividade política mais
do que um pouco do seu escasso tempo livre, nem que
abandonassem o trabalho para se dedicarem à política
a simples título de honra. Havia, enfim, o problema do
financiamento do partido: faltando os "Notáveis" que
financiassem a atividade e a organização política foi
introduzido o sistema das "quotas", isto é, as
contribuições periódicas que cada membro devia
pagar ao partido.
A estrutura que assim se desenvolveu teve uma
configuração de tipo piramidal. Na base havia as
uniões locais — círculos ou seções — com a
finalidade de enquadrar todos os membros do partido
pertencentes a um dado espaço territorial (bairro,
cidade, país). As seções tinham reuniões periódicas e
discutiam os principais problemas políticos e
organizacionais do momento. Ocupavam-se da
atividade de propaganda e proselitismo e elegiam os
próprios órgãos de direção internos e os seus
representantes de nível superior no partido. Por sua
vez, as seções estavam organizadas a nível de
circunscrição eleitoral ou a nível provincial ou
regional, em federações, que constituíam os órgãos
intermediários
do
partido
com
funções
prevalentemente de coordenação. Enfim, a cúpula era
constituída pela direção central, eleita pelos delegados
enviados pelas seções ao Congresso Nacional que era
o órgão máximo de deliberação dentro do partido, o
qual estabelecia a linha política a que deviam sujeitarse todas as instâncias do partido, desde as seções até à
direção central. Todas as posições de responsabilidade
eram de caráter eletivo e era também função das
assembléias do partido escolher os candidatos às
eleições. Estes últimos, uma vez
PARTIDOS POLÍTICOS
eleitos, tinham um mandato imperativo e eram
obrigados a uma rígida disciplina de partido na sua
atividade parlamentar.
Juntamente com a verdadeira estrutura partidária,
os partidos socialistas podiam contar com uma densa
rede de organizações econômicas, sociais e culturais,
sindicatos, cooperativas, organizações de assistência
para os trabalhadores e suas famílias, jornais e
tipografias — que agiam como instrumentos de
integração social e contribuíam para reforçar a
identidade política e os valores que o partido
propunha. Tais organizações, de um modo geral,
tinham nascido antes do partido e haviam contribuído
para sua fundação. Apesar de tudo, o partido se
preocupava em reforçá-las e em criar outras novas
com o fim de ampliar a própria presença social.
A extensão e a complexidade desta rede
organizativa indica como os partidos socialistas, pelo
menos nos primeiros decênios de sua história, se
preocupavam sobretudo com a mobilização
permanente dos seguidores e pela conquista de
espaços de influência cada vez mais amplos dentro da
sociedade civil, na tentativa de aumentar o espaço e a
intensidade da adesão ao seu projeto de gestão da
sociedade. O momento eleitoral e a conquista de
cadeiras no Parlamento era sobretudo importante para
a etapa posterior de marcar presença entre as massas e
como instrumento para a própria batalha política
posterior, mas não constituía o objetivo principal do
partido. Bem pelo contrário, muitas vezes o
Parlamento era considerado com uma certa
desconfiança e o grupo parlamentar do partido estava
sujeito a uma vigilância particular a fim de que seu
comportamento correspondesse à linha política
decidida pelos congressos nacionais e mandada
respeitar pela direção.
Este modelo, denominado "partido de aparelho" ou
"partido de organização de massa", se aplica
sobretudo ao partido social-democrático alemão no
período da sua linha revolucionária, mas caracteriza,
de uma certa maneira, também, os partidos socialistas
francês e italiano. Este último, embora contando com
uma estrutura organizacional espalhada por quase
todo o país e com uma série de organizações de
sustentação como são as câmaras de trabalho, as
cooperativas e as caixas rurais, tinha laços
organizativos verticais mais frágeis e o seu grupo
parlamentar era dotado de uma notável autonomia.
Isto devia-se ao fato de que o partido socialista
italiano era expressão de setores heterogêneos das
classes subalternas, faltava-lhe um forte núcleo
operário, estando o desenvolvimento capitalista
italiano apenas em seus inícios e por conseqüência nele
coexistiam linhas políticas diversas que impediam
901
a construção de uma "máquina" partidária
racionalmente organizada e politicamente homogênea.
Nos primeiros decênios do século XX, o partido
socialista italiano acentuou as suas características de
partido organizativo de massa, mas, na Itália, o
modelo mais completo de tal partido surgirá só depois
da Segunda Guerra Mundial com o desenvolvimento
do partido comunista.
IV. O PARTIDO ELEITORAL DE MASSA. — A
introdução do sufrágio universal ou de um sufrágio
muito generalizado, a rápida expansão dos partidos
operários nos países em que estes estavam radicados e
sua parcial ou total integração no sistema político,
estava destinada a produzir mudanças graduais até nos
partidos da burguesia. No início, os notáveis não se
mostraram muito favoráveis à formação dos partidos
de massa. Tinha havido progressiva ampliação da
participação nos círculos e nos comitês eleitorais, e
tinha-se procurado unificar, a nível nacional, o
trabalho eleitoral, e potenciá-lo através da admissão
de pessoal político remunerado. Todavia, o medo de
ver ameaçada a própria posição de preeminência de
uma democratização dos seus partidos ou de ver
colocada em discussão a própria concepção da política
ou os próprios critérios de gestão do poder produziram
nos notáveis uma acentuada hostilidade em relação aos
partidos de massa. Além disso, tendo em mãos as
principais levas do poder político e podendo contar
com a ação do exército e da burocracia, os partidos da
burguesia puderam impedir, durante um certo período,
a integração política dos partidos dos trabalhadores e
neutralizar, portanto, a concorrência no mercado
político. Só na Inglaterra, onde o Governo trabalhista
foi aceito rapidamente como legítimo aspirante ao
poder governativo, o partido conservador iniciou,
desde o fim da Primeira Grande Guerra Mundial, a
própria transformação em partido com a participação
de massa. Na Europa continental, este processo
aconteceu, de um modo geral, depois da Segunda
Guerra Mundial quando a maior parte dos partidos de
comitê foi obrigada a criar um aparelho estável para
uma eficaz propaganda, procurando uma clientela de
massa e coligações com grupos e associações da
sociedade civil capaz de dar ao partido uma base
estável de consenso.
Todavia, diferentemente dos partidos dos
trabalhadores, estes partidos tiveram e têm como
característica distintiva a mobilização dos eleitores
mais do que a dos associados. Dotados de uma
organização em parte decalcada sobre a dos partidos
operários — com seções, federações, direção
centralizada e pessoal político trabalhando em tempo
integral — os partidos eleitorais de massa não são
dirigidos de um modo geral a
902
PARTIDOS POLÍTICOS
uma classe ou a uma categoria particular, não se
propõem uma gestão diferente da sociedade e do
poder, mas procuram conquistar a confiança dos
estratos mais diversos da população, propondo em
plataformas amplas
e flexíveis,
além de
suficientemente vagas, a satisfação do maior número de
pedidos e a solução dos mais diversos problemas
sociais.
Precisamente
por
seus
objetivos
essencialmente eleitorais, a participação dos inscritos
na formulação da plataforma política do partido é de
natureza formal: mais do que o debate político de
base, a atividade crucial do partido é a escolha dos
candidatos para as eleições, que devem corresponder
a toda uma série de requisitos aptos para aumentar o
potencial eleitoral do partido. Por esta razão, ganham
ainda importância os notáveis, que, precisamente pelo
fato de ocuparem posições-chaves na sociedade civil,
podem procurar para o partido grande clientela e
fornecer parte dos meios econômicos necessários para
o financiamento da atividade eleitoral.
Ao mesmo tempo, a conquista das posições de poder
político e a gestão dos negócios públicos a nível
nacional e local fazem aumentar os recursos eleitorais
dos partidos que a partir dessas posições podem
corresponder às exigências de variados grupos da
população e merecer seu apoio. Finalmente, neste tipo
de partido não existe, ou existe de modo contrastado,
uma disciplina de partido ou uma ação política
unitária. É muito freqüente, na verdade, que o partido
apresente várias faces segundo a natureza das
camadas e das zonas geográficas a que se dirige, tal
como aconteceu muitas vezes em que sua linha política
sofreu variações táticas notáveis em conexão com
momentos políticos particulares. Por este conjunto de
conotações, o partido eleitoral de massa foi definido
também como "partido pega-tudo" (partito
pigliatutto).
O partido eleitoral de massa é o último a
comparecer na cena política européia e em certo
sentido termina a história tal como se desenvolveu até
agora. Deve repetir-se que se trata de uma "história"
que prescinde, em grande parte, dos acontecimentos
específicos de cada Estado, uma vez que as
características sociais e políticas dos vários países
europeus influíram tanto sobre a data de nascimento
do sistema político como sobre o período de
constituição deste ou daquele partido ou de partido
com características "mistas". Além disso, se entre os
partidos descritos existe uma ordem de sucessão, no
sentido em que historicamente são comparsas da
ordem a que nos referimos acima, não existe entre
eles uma relação necessariamente evolutiva. Não se
segue, por isso, que um certo tipo de partido produza
inevitavelmente um outro, com o
desaparecimento conseqüente do precedente. Mais do
que isso, causas sociais e políticas específicas levam à
emergência de uma determinada configuração
partidária que pode durar por um certo tempo e depois
modificar-se e assumir finalmente características
inteiramente novas. Isto comporta, entre outras coisas,
que tipos diversos de partidos podem coexistir no
mesmo sistema partidário. Na verdade, ainda que a
maior parte dos partidos burgueses tenha se
transformado em partidos eleitorais de massa,
permanece ainda pequeno partido de pessoas notáveis,
assim como em certos países existem, ao mesmo
tempo, partidos eleitorais de massa e "partidos de
aparelho".
V. TRANSFORMAÇÃO DO PARTIDO DE ORGANIZAÇÃO DE
— Quando se aludiu às modificações que
podem ocorrer numa determinada configuração
partidária ficaram demonstradas as transformações
que sofreram ou estão sofrendo importantes partidos de
aparelho europeus. Foram estes partidos que mais
interesse despertaram na literatura e nas publicações
de caráter sociológico e político. Julgados por alguns
como os mais aptos a permitir a participação política
dos cidadãos e tidos por outros como partidos de
estrutura antidemocrática dominada pelos aparelhos
que servem de instrumento de manipulação das
massas, eram todavia unanimemente considerados
como "partidos modernos" por excelência,
conseqüência necessária ou inevitável da democracia
de massa, destinados a ocupar o lugar de todos os
outros. Houve até tentativas de transformar alguns
partidos eleitorais de massa em partido de aparelho,
assim como de outros lados era desejada uma
transformação de todos os partidos nesta direção.
Contudo, estas tentativas e estes auspícios jamais se
realizaram completamente, assistindo-se, de outra
parte, a uma progressiva modificação dos partidos de
aparelho. Em particular, eles foram perdendo algumas
das suas características essenciais, como a alta
participação das bases na vida do partido, a contínua
ação de educação moral e intelectual das massas, a
precisão do programa político e o apelo à
transformação da sociedade. Do lado contrário, se
acentuou sua orientação eleitoral e o empenho maciço
em ampliar sua influência para além das próprias
bases tradicionais e a importância sempre crescente da
atividade parlamentar. Assistiríamos, assim, a um
processo de homogeneização dos partidos, todos
preparados para se transformar em partidos "pegatudo".
As razões que servem de base a esta transformação
são de ordem política e social ao mesmo tempo. Em
primeiro lugar, nas últimas décadas,
MASSA.
PARTIDOS POLÍTICOS
a partir do segundo pós-guerra, foi-se realizando nos
principais países europeus, a integração, pelo menos
formal, das massas populares no sistema político: os
partidos de origem operária foram reconhecidos quase
em toda a parte como concorrentes legítimos no
"mercado" político — especialmente os que
abandonaram totalmente qualquer apelo a uma
transformação radical da sociedade — e, portanto,
como possíveis detentores do poder político. Sendo
por ela favorecida, esta integração provocou ao mesmo
tempo uma intervenção cada vez maior do Estado nos
setores mais diversos da sociedade e a conseqüente
necessidade de princípios de planejamento econômico
e social, ou, em todo o caso, de uma mediação entre
interesses diversos, para a qual se requer a
colaboração, clara ou tácita, dos partidos operários,
especialmente quando eles podem contar com o apoio
das mais poderosas organizações sindicais do país.
Isto representou uma diminuição ou queda da pressão
das massas, mantidas antes à margem do sistema, e
uma mudança na qualidade e no nível das suas
exigências políticas. E, fato, ainda mais importante, se
assistiu na esfera social a profundas modificações que
atingiram vastos setores da população, tais como: a
consecução de um mínimo de segurança social, a
difusão do consumo e de símbolos culturais
homogeneizados, e o surgimento de tendências de tipo
secular e privativo. Este conjunto de fatores implicou
uma relativa estabilização das relações sociais, uma
codificação mais ou menos compartilhada pela maior
parte da população das regras de convivência civil e,
conseqüentemente, uma menor intensidade na
participação política com objetivos de tipo geral e
totalizante.
A possibilidade real ou potencial da gestão do
poder político, a relativa estabilização da situação
social e, em conseqüência, a menor participação
política das massas, fez com que os partidos operários
abrandassem os apelos de classe em benefício de uma
imagem de si mesmos que pudesse merecer o
assentimento de vários setores da sociedade: a
referência às solicitações e aos interesses de uma
determinada classe foi acompanhada ou substituída
por programas e apelos cujo conteúdo realça o
interesse "nacional" e, em geral, as aspirações globais
da sociedade. Tudo isto trouxe conseqüências mesmo
a nível de estrutura organizacional. A participação
política de base se orientou preponderantemente para
a propaganda eleitoral e a obra de educação moral e
política das massas se tornou quase que supérflua. Em
contraposição, acentuou-se a importância do
profissionalismo político nos níveis médios e altos do
partido e a cooptação de "peritos" para se poder fazer
face a uma
909
atividade política cada vez mais complexa; do mesmo
modo, tornou-se essencial a escolha dos candidatos
com vistas ao sucesso eleitoral do partido, recorrendose para isso aos próprios notáveis de várias esferas
sociais e profissionais.
Este processo de transformação atingiu, de forma
mais ou menos acentuada, os principais partidos de
articulação européia. Obviamente os partidos podem
encontrar limitações, mais ou menos rígidas, às suas
tendências do "tudo serve": certos interesses
claramente em contraste com os da sua base
tradicional não podem ser representados, a não ser
que se queira incorrer na defecção eleitoral dessa
mesma base; da mesma maneira, as persistentes
tradições políticas de classe podem desaconselhar uma
propaganda interclassista muito ousada. Porém, em
geral, os partidos superam tais obstáculos evitando
assumir posições claras sobre problemas capazes de
criar divisões e conflitos decisivos dentro do país,
lutando pela conquista do poder político com
plataformas eleitorais e sistemas de gestão do próprio
potencial que não se diferenciam substancialmente
dos de outros partidos, mas são até muito semelhantes
a eles sob muitos aspectos.
Em síntese, poderíamos dizer que a persistência dos
partidos de aparelho ou vice-versa, a sua
transformação em partidos eleitorais de massa, parece
estar ligada à qualidade e à intensidade da
participação política: onde existir um consenso
generalizado sobre certos temas e problemas de base e
a participação popular se manifestar através de
exigências setoriais e específicas, é provável que
prevaleçam estruturas partidárias com tendências
"pega-tudo"; quando, ao contrário, por qualquer
motivo de ordem interna ou internacional, surgirem
crises capazes de criar fortes conflitos políticos ou de
colocar em discussão as relações sociais existentes, a
tendência para "construir máquinas políticas"
profundamente homogêneas e organizadas deverá ser
mais clara.
VI. FUNÇÃO DOS PARTIDOS. — A aparição dos
partidos de massa, quer sob a forma de partidos de
aparelho, quer sob a forma de partidos eleitorais,
tornou crucial um problema que na bibliografia
sociológica e política foi muito debatido desde o
aparecimento dos partidos. É o problema das suas
funções. Com esta expressão se indicam, em geral,
todas as atividades dos partidos que geram
conseqüências mais ou menos relevantes no sistema
político e social. Especialmente no momento em que
os partidos se difundiram por grande parte do mundo
e assumiram um relevo enorme na vida política, o
problema das suas funções tornou-se não apenas uma
questão de
904
PARTIDOS POLÍTICOS
análise e teoria política mas também e sobretudo uma
questão política que inevitavelmente suscitou
respostas contrastantes e muitas vezes polêmicas.
Ao analisar o desenvolvimento dos partidos, viu-se
como eles foram um instrumento importante, senão o
principal, através do qual grupos sociais sempre mais
vastos imergiram no sistema político e como,
sobretudo, por meio dos partidos, tais grupos puderam
exprimir, de modo mais ou menos completo, as
próprias reivindicações e as próprias necessidades e
participar, de modo mais ou menos eficaz, da
formação das decisões políticas. Que os partidos
transmitem o que nos livros de sociologia e de política
se chama de "questionamento político" da sociedade e
que, através dos partidos, as massas participem no
processo de formação das decisões políticas, são as
duas funções que unanimemente são reconhecidas
para os partidos. A função de transmissão do
questionamento político pertencem todas aquelas
atividades dos partidos que têm como escopo fazer
com que ao nível de decisão sejam tomadas em
consideração certas necessidades da sociedade. Por
outro lado, ao momento da participação no processo
político pertencem atos como a organização das
eleições, a nomeação de pessoal político e a
competição eleitoral; através disso, o partido se
constitui sujeito de ação política e é delegado para agir
no sistema a fim de conquistar o poder e governar.
O modo como os partidos exercem estas duas
funções, a prioridade dada a uma ou a outra, é o que
diferencia empiricamente os próprios partidos,
constituindo também o objeto das respostas
contrastantes presentes nos estudos da matéria e das
polêmicas políticas sobre os partidos e seu
funcionamento.
É evidente que se se faz referência aos velhos
partidos dos notáveis, não existem muitos problemas
a respeito. Eles, na verdade, agregando uma camada
homogênea, numericamente restrita e não dividida
por fortes contrastes de princípios e de interesses, não
tinham necessidade nem de uma organização nem de
procedimentos muito complexos para transmitir o
questionamento político da própria base social e para
nomear e controlar os próprios representantes oficiais.
Estes últimos podem agir facilmente para satisfação
das necessidades da base que representavam e às
quais organicamente pertenciam, para manutenção e
proteção dos próprios privilégios sociais.
Com os partidos de massa, pelo contrário, os quais
por vezes organizam milhões de pessoas, que podem
expressar questionamentos diversos de tipo setorial
como de tipo geral, homogêneos ou contrastantes
entre si e que pressupõem
complicados procedimentos para nomeação e controle
das pessoas que agem dentro do sistema político, em
nome e por conta desta centena de milhares ou
milhões de pessoas, a situação é diferente e de
necessidades muito complexas. Quais são, de
preferência, os questionamentos que os partidos
transmitem? Refletem efetivamente as exigências mais
autênticas da própria base social? De que modo os
partidos transmitem estes questionamentos? De que
natureza é a delegação que os partidos recebem dos
próprios correligionários? Quais são as conseqüências
que se verificam no sistema político se um partido ou
diversos partidos desenvolverem suas funções de um
modo, em vez de outro?
A resposta a estas interrogações toma, em geral, em
consideração, a configuração organiza-tiva dos
partidos. Os partidos de massa — como longamente já
se expôs —, não obstante a letra de seus estatutos e de
seus complicados processos de controle, são, em sua
maior parte, casos constituídos de uma maioria de
seguidores que, pelas mais diversas razões, aderem ao
partido e por uma minoria de profissionais da política
— o círculo interno —, que toma todas as decisões
importantes, define a linha política, controla as
nomeações apesar do possível dissenso ou dos
interesses reais das bases do partido. Isto deveria
atribuir-se, essencialmente, a uma lógica de tipo
organizativo. Segundo R. Michels, um dos mais
ilustres estudiosos dos Partidos políticos, uma
participação política difundida necessita de estruturas
organizativas complexas, mas é exatamente a
existência da organização que produz necessária e
inevitavelmente tendências oligárquicas. Na verdade, o
progressivo desenvolvimento da organização, a
crescente complexidade dos fins a atingir com a
conseqüente divisão de trabalho e a necessidade de
conhecimentos especializados que este fato comporta,
conduzem à profissionalização e estabilização da
liderança do partido, à sua objetiva superioridade em
relação aos outros membros da organização e portanto
à sua inamovibilidade e ao exercício de um poder de
tipo oligárquico. Nesta situação, portanto, a delegação
e o controle sobre ela seriam fictícios e a transmissão
do questionamento político seria manipulável e
manipulado conforme os interesses de poder da
oligarquia do partido. Ao nível de sistema político
geral, a conseqüência seria naturalmente a negação de
grande parte das instâncias democráticas que os
partidos deveriam representar.
Embora se reconheça que, em muitos casos e em
muitas situações, os partidos manifestam tendências
oligárquicas, a interpretação de Michels foi criticada
porque ela apresenta como
PARTITOCRACIA
"lei" um fenômeno que pode verificar-se em algumas
circunstâncias históricas, pode ser uma tendência em
outras ou pode até nem apresentar-se de fato em outros
casos ainda. O modo de funcionamento dos partidos
não é uniforme. Ele pode variar segundo os tempos e
os lugares e é por isso difícil, a propósito, encontrar
uma regra que seja válida universalmente.
Para dar uma resposta que tenha em conta esta
variedade de funcionamento e que ao mesmo tempo
seja empiricamente verificável põe-se a hipótese de
que, tanto a transmissão do questionamento político
como o processo de delegação estão estreitamente
ligados ao fenômeno da participação política. Dentro
desta hipótese, os tipos e os modos de transmissão do
questionamento político, assim como as várias
modalidades de formação da delegação derivam, em
grande parte, do tipo e da intensidade de participação
política existentes em sistemas políticos diversos e em
diversas circunstâncias histórico-sociais. Uma vez que
se sabe que a participação política assume várias
formas — participação eleitoral, inscrição nos
partidos, freqüência às reuniões e às várias atividades
dos partidos, mobilização de grupos e de categorias
sócio-profissionais — e é de intensidade diversa
segundo os partidos e os sistemas políticos, e de
diferentes
momentos
históricos,
também
o
funcionamento dos partidos estará sujeito a uma
grande variabilidade. Quando o nível de participação
for elevado e o envolvimento político dos cidadãos
intenso, a delegação e o controle sobre ela serão
acumulados e específicos e os partidos serão levados a
colocar um questionamento político que tenha em
conta as exigências e as necessidades mais gerais dos
próprios associados e simpatizantes. Ao contrário, um
baixo nível de participação e uma situação de nãomobilização tornarão menos controlável a delegação,
favorecerão a cristalização das estruturas políticas
permitindo que estas funcionem como filtro de
questionamentos particulares e setoriais. Em resumo, a
possibilidade de os partidos serem instrumento de
democracia está dependente do controle direto e da
participação das massas.
Para concluir, podemos afirmar que se o fenômeno
"partido" como configuração organiza-tiva e como
conjunto de funções por ele desenvolvidas mostra, em
termos gerais, uma tipicidade própria, do ponto de
vista concreto e analítico se apresenta de modo muito
diferente pelo que, para captar sua especificidade e a
relevância atual num dado sistema político, é
necessário vê-lo inserido na estrutura econômicosocial e política de um determinado país, num bem
definido momento histórico.
905
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comparative politics Weindenfeld e Nicholson.
London 1969; M. DUVERGER, I partito politici (1951),
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Comunità. Milano 1961. pp. 241-42, 718-28 do Il
volume
[ANNA OPPO]
Partitocracia.
I. ORIGEM E DEFINIÇÃO. — Este termo é utilizado
em alguns contextos europeus, particularmente depois
da Segunda Guerra Mundial, em referência a um
fenômeno que não é novo, mas que é inusitado em
suas manifestações quantitativas: a presença e a
consolidação social e política dos partidos de massa. O
fenômeno não é novo, já que tanto a Alemanha como a
França e a Itália souberam o que eram os partidos de
massa, radicados e constituídos, desde o início deste
século, com o fortalecimento dos partidos socialistas.
Ele assume um caráter insólito, pois, por um lado, os
pequenos partidos moderados ou foram varridos ou
drasticamente redimensionados em seu efetivo peso
político e, por outro, os partidos de massa
conquistaram o quase monopólio da atividade política.
Partitocracia significa, de fato, mais que Governo
dos partidos, seu domínio ou expansão da ambição de
domínio. Este termo foi usado, numa primeira fase que
vai até ao final da década de 60, de uma forma
essencialmente crítica, por autores e homens políticos
que poderíamos definir, em sentido lato, como liberais.
Recordam com saudade os tempos da representação
individual dos interesses, a fase em que os notáveis
(ou seja, os homens dignos de nota) podiam
desenvolver
atividades
políticas
relativamente
desvinculados das organizações, em que existia um
"público" restrito e bem informado que debatia os
906
PARTITOCRACIA
problemas políticos e controlava seu representante
(observe-se que a polêmica contra a Partitocracia está
muitas vezes unida aos ataques contra a representação
proporcional). Se De Gaulle não cessa de criticar os
partidos como corpos intermediários que distorcem a
vontade dos cidadãos, se Maranini investe
incessantemente contra a penetração obsessiva dos
partidos na sociedade, na Alemanha também se
atribuem ao Estado de partidos (Parteienstaat)
qualidades positivas de consolidação da democracia
pós-nazista.
Estudiosos e políticos visam neste momento
criticar, mais ou menos conscientemente, não tanto os
partidos em si, mas uma nova fase política que tem
sido definida como irrupção das massas na cena
política. É uma fase caracterizada pelo aparecimento e
consolidação dos partidos chamados de integração
social. Estes tornaram-se alvos da crítica como
representantes de interesses de massa, interesses
muitas vezes não diferenciados e amiúde totalizantes.
Na medida em que esta crítica propõe um retorno
impossível ao passado, talvez idealizado, ela pode bem
ser definida como conservadora.
Contudo,
na
própria
palavra-definição
"Partitocracia" há uma possível crítica implícita que
diz justamente respeito à ambição ou até mesmo ao
êxito dos partidos em monopolizar não só o poder
político como também a própria vida política
organizada. A Partitocracia se identifica então, antes
de mais nada, com o predomínio dos partidos em
todos os setores: político, social e econômico.
Caracteriza-se por um constante esforço dos partidos
em penetrar em novos e cada vez mais amplos
espaços. Culmina no seu total controle da sociedade. É
então que a Partitocracia é deveras domínio dos
partidos.
Depois do longo período de assentamento e
consolidação dos partidos, até mesmo alguns
estudiosos e homens políticos que tinham visto com
bons olhos a expansão da política mediante e graças
ao papel por eles desempenhado, começam agora a
questionar alguns dos seus elementos que consideram
inadequados ou degenerados. Foi assim que surgiram
as críticas de Bobbio aos partidos italianos,
transformados em diafragma e não em ponto de
transmissão da demanda social e política, de Pizzorno
aos partidos que se tornaram incapazes de
desempenhar eficazmente as funções de transmissão
da demanda e de delegação política (ele chega a tocar
os problemas da burocratização dos partidos e da falta
de mudança), e de Sartori à degeneração dos partidos,
cheios de facções.
Mas a orientação das críticas à Partitocracia muda
profundamente, quando, em 1968, alguns grupos
repelem a institucionalização burocrática e vêem nos
partidos, em todos eles, um
instrumento de conservação e não de transformação
da sociedade, e, sobretudo, quando, por meados dos
anos 70, os movimentos e autores radicais lançam
suas críticas contra os partidos totalizantes e didáticos
e contra a sua pretensão de monopolizar a demanda
política, controlar a expressão das novas necessidades
e impedir todo o movimento potencialmente
desestabilizador dos equilíbrios políticos tradicionais.
Mas então a crítica possuía uma nova marca
política: provinha agora da esquerda (do próprio seio
dos partidos da esquerda, conquanto preocupados em
manter as suas posições de poder) e se erguia como
representante de uma sociedade civil transformada e
com vontade de mudar, contra os próprios partidos ou,
de qualquer maneira, sem eles ou à margem deles. A
Partitocracia foi acusada de querer deter a necessidade
de mudança, de querer canalizar tudo para o leito da
política institucional dos partidos, de não deixar
espaço para a sociedade civil e para as verdadeiras
aspirações das massas. Os ataques à Partitocracia são
também ataques à política dos "profissionais", de uma
nova classe que se recruta e mantém por si mesma,
que vive da política e não para a política (como Weber
tinha profeticamente advertido).
O círculo fecha-se assim: a Partitocracia provocou
fortes críticas mesmo entre aqueles que lhe haviam
reconhecido a necessidade na fase de transformação da
política em atividade de massa, mas que agora
denunciam sua insuficiência e danos, dedicando-se a
descobri-los. Mas ela criou meios próprios para se
manter e consolidar, lançando mão de novos
instrumentos.
II. INSTRUMENTOS DA PARTITOCRACIA. — Embora
muitas vezes evocado no contexto italiano, o voto
obrigatório é um instrumento muito débil (não
existindo sanções) nas mãos da Partitocracia. E
indubitável que a alta percentagem de votantes e a sua
estabilidade no tempo podem constituir, aos olhos dos
dirigentes de partido, uma prova de que o sistema
partidário não perde legitimidade. Mas, sendo assim, o
recente crescimento do abstencionismo, mesmo na
Itália, há de ser avaliado como princípio da nãolegitimação da Partitocracia, em situações claramente
definidas e com sinais bastante específicos
(referendum, eleições regionais, etc.).
Os dois principais instrumentos da Partitocracia,
adequadamente utilizados na sua manutenção e
expansão, são, por um lado, o financiamento público
dos partidos e, por outro, a atribuição de cargos em
vastos setores da sociedade e da economia segundo
critérios predominantemente políticos (fenômeno que,
no caso italiano, é apropriadamente definido como
loteamento). Ambos
PARTITOCRACIA
os instrumentos fortalecem os partidos, envolvendo
amplas e, às vezes, importantes camadas de cidadãos.
Em quase todos os sistemas políticos ocidentais
existem formas de financiamento público dos partidos.
São as modalidades que diferem com freqüência,
indicando filosofias políticas diversas como base de
tal escolha e envolvendo conseqüências várias. O
máximo reforço da Partitocracia se dá, quando os
fundos vão diretamente à caixa dos partidos e não são
previstos pagamentos a cada um dos candidatos, nem
financiamento de atividades específicas, nem
concessões, como espaços publicitários, salas,
imprensa, propaganda radiotelevisiva. Obviamente, um
dos elementos que poderiam servir de freio à
Partitocracia seria um sério e rigoroso controle dos
orçamentos. A questão é que os fundos que afluem
diretamente aos partidos e são utilizados sem controle
se prestam ao robustecimento da burocracia, da
submissão dos eleitos à cúpula partidária e da criação
de uma verdadeira e autêntica classe dependente da
política (e, mais especificamente, dos administradores
dos fundos).
O sistema de financiamento público dos partidos
italianos representa, neste contexto, um dos mais
eficazes
instrumentos
de fortalecimento
da
Partitocracia e das cúpulas partidárias, em detrimento
da difusão da política e da independência dos eleitos
(dentro de limites um tanto restritos, mas possíveis).
Submetida a referendum em junho de 1978, a lei n.°
195, de 9 de abril de 1974, transformou-se no
catalisador de um tão vasto e difuso quão heterogêneo
sentimento antipartidário, que conquistou sem
dificuldade 43,7 por cento de votos favoráveis à sua
revogação.
O outro instrumento clássico da Partitocracia é o da
distribuição dos cargos fundada na adesão ao partido.
É importante sublinhar que são duas as variáveis que
influem para que este instrumento seja mais ou menos
eficaz. Antes de mais nada, quanto mais vasto for o
âmbito de intervenção do Estado nos setores social e
econômico, tanto mais numerosas serão as posições
disponíveis para os partidos (e quanto mais débeis
forem as instituições, tanto mais fácil será para os
partidos intervir e colonizá-las). Por isso, um Estado
intervencionista e instituições débeis, como, por
exemplo, um aparelho burocrático mantido à mercê
do Governo, são um terreno favorável à Partitocracia
e às suas atividades de expansão e fortalecimento.
A outra variável é a do uso de critérios de adesão
partidária mais que o de critérios de competência e
profissionalismo. É raro que o simples fato de
pertencer a um partido avantage totalmente a
competência; mas é, evidentemente.
907
o grau de combinação entre ambas as coisas que
determina a existência de uma Partitocracia voraz e
ramificada. Dizemos até que, em certos contextos, é,
às vezes, a própria adesão partidária que serve de
trampolim para alguns funcionários blasonarem da
posse de qualidades profissionais. Assim, o
responsável pela seção dos estudos escolares de um
partido poderá afirmar ser um perito e,
conseqüentemente, aspirar a cargos na área da
instrução pública; por sua vez, um jornalista que haja
trabalhado no jornal ou nas publicações do mesmo
partido poderá, sendo preciso, ornar-se do título de
"experto em problemas de comunicação de massa", e
assim por aí afora. É claro que, se as posições a lotear
entre os partidos são muitas e se os critérios de adesão
partidária continuam a constituir o elemento
preferencial na escolha para um sem-número de
cargos, haverá possivelmente uma corrida à inscrição
nos partidos, ou, em todo caso, a favor e serviços dos
dirigentes de partido. A Partitocracia entrará então
num círculo muito produtivo para o seu destino,
podendo, às vezes, recrutar até os mais ambiciosos e
sem escrúpulos dentre os competentes. Contudo, as
mais das vezes, não é assim, e o recrutamento
partitocrático se desenvolve entre os homens do
partido e os seus fiéis vassalos, sem atender a
qualquer título profissional. O sistema é muitas vezes
criticado até pelos que dele desfrutam; enreda-se em
escândalos, mas a rede de conluios se revela bem mais
forte que as resistências ou as polêmicas.
III. REMÉDIOS PARA A PARTITOCRACIA. — Por muito
forte que possa ser o domínio dos partidos, muitas
vezes lhe escapam decisões importantes; as poderosas
multinacionais, por exemplo, são capazes de passar
por cima deles, de fugir ao seu controle, levando
avante seus próprios programas, devido ao seu peso
econômico e político e à capacidade técnica que
podem mobilizar. Este exemplo mostra um aspecto
importante: a Partitocracia é capaz de se apropriar dos
meios existentes, mas, se não os souber criar, com o
andar do tempo, acabará por provocar as condições da
sua própria crise. Mas esta crise pode tardar em
chegar e coincidir, afinal, com a disgregação do
sistema em seu conjunto.
Com isso, os poucos remédios identificáveis para a
Partitocracia, ou seja, para o domínio dos partidos tal
qual se apresenta no início da década de 80, quase
sempre requerem que os mesmos partidos estejam de
acordo em levá-los a efeito, em pô-los em prática; por
isso, têm poucas possibilidades de sucesso. Só uma
casual e afortunada coincidência de fortes pressões
provenientes da sociedade civil e de movimentos de
autonomia
908
PATERNALISMO
oriundos das instituições colonizadas pelos partidos
(órgãos públicos da economia, bancos, ministérios,
Parlamento, meios de comunicação de massa) podem
criar uma situação onde a intervenção dos partidos
seja censurada, severamente regulamentada e
drasticamente limitada, e os responsáveis por
violações paguem politicamente (com a derrota nas
urnas) e penalmente.
Outro caminho está na mudança das regras de jogo
político, isto é, em reformas institucionais que
provoquem situações de incerteza e de competição
incessante entre os partidos. É o que De Gaulle quis e
conseguiu fazer contra os partidos franceses e contra
seu jogo político em 1958, no início da V República. É
o que, numa situação originariamente muito favorável,
fizeram, no contexto norte-americano, as reformas de
democratização dos processos de seleção dos
candidatos e de financiamento das campanhas,
chegando ao extremo oposto da decomposição dos
partidos. Este também é um caminho por onde é
possível enveredar, já com a aprovação de todos os
partidos, que se tornaram conscientes da gravidade e
dos danos da situação (mas isto é certamente raro), já
contra todos os partidos, não sendo muito claro, no
caso
italiano,
de
quem
possa
surgir,
democraticamente, a necessária e autorizada iniciativa.
O que se requer pode, em parte, ser obtido mediante
normas rigorosas sobre a incompatibilidade dos
cargos, sua renovação e rotatividade. A circulação do
pessoal político, a ruptura de esquemas ossificados e a
criação de situações em que seja impossível ter uma
carreira por tempo ilimitado na esfera política poderão
desestimular virtuais membros da Partitocracia e
tornar, por isso, menos amplo o círculo dos
dependentes da política. Isto pode não bastar por si só.
O turnover do pessoal político só poderá constituir um
dos mecanismos que contribuem para destruir ou, de
algum modo, reduzir as características mais odiosas da
moderna Partitocracia, se ligado a uma constante e real
competição entre os partidos políticos, que reproduza,
na esfera da política, as condições que se atribuem (se
bem que erroneamente), na esfera econômica, à
competição entre empresas e produtos e ao mercado
de trabalho, ou seja, concorrência e mobilidade. O
turnover do pessoal político pode constituir um dos
mecanismos que contribuem para destruir ou de
alguma maneira reduzir as características mais odiosas
da moderna Partitocracia.
De outro modo, a Partitocracia, mesmo com a crise
dos partidos, estará destinada a continuar como
fenômeno característico de alguns sistemas políticos
contemporâneos, sobretudo daqueles que não contam
com a alternância no poder e estão
privados da substituição do pessoal político. Seus
aspectos mais visíveis e suas degenerações mais
graves se evidenciarão onde a sociedade civil for mais
débil e as instituições menos autônomas. Infelizmente,
é este o caso italiano.
BIBLIOGRAFIA. — S. BERGER, Politics and antipolitics
in western Europe in the seventies, in "Daedalus",
Winter 1979, pp. 27-50; J. JULLIARD, Contre la politique
professionnelle, Seuil Paris 1977; A. PANEBIANCO, Le
risorse della partitocrazia e gli equivoci della
partecipazione, in '"Argomenti radicali", abril-maio
1978, n.° 7, pp. 26-41; G. PASQUINO, Contro il
finanziamento pubblico di questi partito. in "Il Mulino",
março-abril 1974, pp. 233-55; Id., Crisi del partito e
governabilità. Il Mulino, Bologna 1980; A. PIZZORNO, I
soggetti del pluralismo. Classi Partito Sindacati, Il
Mulino, Bologna 1980; Correnti. Frazioni e fazioni nei
partito politici italiani. ao cuidado de G. SARTORI, Il
Mulino, Bologna 1973; M. WEBER, Il lavoro
intellettuale como professione (1919), Einaudi. Torino
1971
[GIANFRANCO PASQUINO]
Paternalismo.
Na linguagem vulgar, Paternalismo indica uma
política social orientada ao bem-estar dos cidadãos e
do povo, mas que exclui a sua direta participação: é
uma política autoritária e benévola, uma atividade
assistencial em favor do povo, exercida desde o alto,
com métodos meramente administrativos. Para
expressar tal política, nos referimos então, usando de
uma analogia, à atitude benevolente do pai para com
seus filhos "menores".
Do ponto de vista conceptual, o pensamento liberal
identificou repetidas vezes, embora de formas
diversas, as características do Estado paternal, um
Estado que, de vários modos, de acordo com as
diversas épocas, sempre ameaçou o Estado "político"
ou liberal. John Locke, no segundo Tratado sobre o
governo, distingue três poderes: o paterno, o político e
o despótico. Dava assim continuação à polêmica
iniciada no primeiro Tratado contra Robert Filmer
que, no Patriarca, tinha defendido, partindo do direito
divino dos reis e da teologia natural, uma estreita
analogia entre o poder que os pais têm sobre os filhos
e o que tem o monarca sobre seus súditos. Para Filmer
a única diferença está na amplitude e extensão, pois
ambos governam segundo a própria vontade e não
segundo as leis ou o querer dos filhos e dos súditos.
Com sua tripla distinção dos Governos, Locke quis
defender o
PAUPERISMO
Governo político (ou liberal) contra os Governos
paternal e despótico (ou absoluto). O poder do
magistrado sobre os súditos, o do pai sobre a mulher e
os filhos, e o do senhor sobre os escravos e servos,
são entre si logicamente distintos: o primeiro se
baseia no consenso, o segundo na natureza (o direitodever do progenitor à criação da prole, limitado no
tempo), o terceiro exclusivamente na força. No
Estado paternal Locke via a encarnação da monarquia
senhorial, onde o rei "pai" era também proprietário do
reino; mas, para ele, o direito de propriedade é um
direito privado, diferente do direito de soberania que
é, ao invés, um direito público.
Enquanto Locke polemizava contra a monarquia
senhorial, Immanuel Kant fazia-o contra o despotismo
iluminado, contra o Estado de polícia, que atende ao
bem-estar dos cidadãos de modo exclusivamente
administrativo. No ensaio Sobre o dito vulgar: "isto
pode ser justo em teoria, mas não vale na prática",
onde demonstra que o Estado civil, considerado como
Estado jurídico, se fundamenta em três princípios a
priori (liberdade, igualdade e independência), Kant
afirma que o princípio da liberdade pode ser assim
expresso: "Ninguém me pode obrigar a ser feliz a seu
modo (isto é, como imagina o bem-estar dos outros
homens), mas cada um poderá buscar a sua felicidade
pelo caminho que lhe parecer bom, com tal que não
leve prejuízo à liberdade que os demais têm de tender
ao mesmo fim, podendo deste modo a sua liberdade
coexistir com a liberdade de qualquer outro, segundo
uma possível lei universal". Condena de igual modo,
com dureza, o Governo paternalista (imperium
paternale), onde os súditos são filhos menores de
idade, incapazes de um querer autônomo, como o pior
despotismo que se possa imaginar, pois tolhe a
liberdade.
Com o advento da democracia parecia que o perigo
do Estado paternal tivesse sido eliminado; mas Alexis
de Tocqueville mostra, no último capítulo do seu livro
Democracia na América, como tal ameaça é mais
grave e impendente que nunca. O Estado paternal é
possível numa sociedade atomizada de massa, onde o
individualismo encerrou o indivíduo no círculo
estreito dos interesses familiares e domésticos, e onde
predomina, com paixão exclusiva, a corrida ao bemestar e ao gozo dos bens materiais. O novo Estado
paternal se diferencia, segundo Tocqueville, do antigo
despotismo, porque "estaria mais estendido, seria mais
brando e envileceria os homens sem os atormentar":
tornou-se possível graças precisamente a um
compromisso entre o despotismo administrativo e a
soberania popular. Sobre uma multidão incontável de
homens
909
semelhantes e iguais, que não se conhecem, é ainda o
pensamento de Tocqueville, "ergue-se um poder
imenso e tutelar que se encarrega, por si só, de lhes
assegurar o desfrute dos bens e de vigiar sobre a sua
sorte. É absoluto, minucioso, sistemático, previdente e
brando. Assemelhar-se-ia à autoridade paterna se,
como esta, tivesse por fim preparar o homem para a
idade viril, mas não procura senão prendê-lo
irrevogavelmente à infância", afastando dele "todo o
tédio de pensar, toda a canseira de viver".
As três definições, embora diversas por haverem
sido escritas em tempos históricos diferentes,
apresentam certos elementos comuns: a defesa da
liberdade política, que conduz à valorização do
pluralismo político e social, e a recusa da solução dos
problemas individuais e sociais com métodos
administrativos e burocráticos, que alienam o
indivíduo do sistema político.
[NICOLA MATTEUCCI]
Pauperismo
O termo Pauperismo, derivado do vocábulo latino
pauper, apareceu na Inglaterra e entrou rapidamente
em uso nos alvores do século XIX, sendo empregado
para designar o fenômeno de generalização,
recrudescimento e progressiva estabilização da
indigência que assinalou, de forma dramática, as
primeiras fases da Revolução Industrial. Se o
surgimento do termo no contexto particular de uma
sociedade invadida pelo processo de transformação
capitalista serve para situar historicamente o
fenômeno por ele indicado, será, contudo, necessário
observar que esse quadro histórico foi ultrapassado
pela prática lingüística que se valeu do vocábulo para
designar não só a chaga da miséria aberta com a
Revolução
Industrial,
como
também,
mais
genericamente, o problema da pobreza em sua
dimensão social, surgida como tal com o nascimento
do capitalismo moderno.
É na Inglaterra elisabetana que se apresenta, de
fato, pela primeira vez, o problema do Pauperismo,
como conseqüência do vasto movimento de cerco das
terras que pôs na rua amplas camadas de camponeses,
até então no gozo de uma série de direitos
consuetudinários sobre as propriedades alheias. O
aparecimento de turbas de indigentes que desolavam as
cidades e os campos ingleses surgiu aos olhos das
autoridades como um fato grave, não tanto pela
intensidade inicial do fenômeno, quanto pelas
deletérias conseqüências que se temia pudesse trazer
aos costumes
910
PAZ
o reiterado espetáculo da vagabundagem, lesando
aquele espírito de dedicação ao trabalho que, sendo
resultado da ética protestante, constituía o pressuposto
em que se sustentava a nascente sociedade capitalista.
Daí a severidade da legislação elisabetiana sobre a
matéria: organicamente recapitulada no Ato n.° 43,
conhecido como Poor Law, cominava graves penas à
mendicância e instituía, com o fim de a evitar, um
complexo sistema assistencial que se manteria em
vigor até 1834.
Mas é só no fim do século XVIII que o fenômeno
do Pauperismo irrompe com toda a sua gravidade,
como conseqüência do surgimento na França e da
definitiva consolidação na Inglaterra do sistema
liberal em todos os setores da economia,
particularmente no da indústria manufatureira. De
fato, a proletarização das classes rústicas e artesanais
que o regime do laissez-faire tinha arrancado
violentamente à terra e ao comércio, a súbita imissão
no mercado do trabalho de mulheres e crianças
provocada pela introdução do maquinismo, a vaga de
aumento demográfico que se registrou nessa época na
Europa, foram fatores que geraram um grande
aumento na disponibilidade de mão-de-obra. Isto,
num sistema onde a determinação dos salários era
deixada ao livre jogo das leis da oferta e da procura,
não podia senão levar à sua depressão a níveis de
fome, e a uma constante presença na sociedade de
amplas faixas de desocupados: problemas que foram
ulteriormente exacerbados pelo já iniciado processo de
concentração capitalista e pelas freqüentes crises de
superprodução que começavam a afligir a indústria
moderna.
Da dramaticidade do fenômeno do Pauperismo na
primeira fase de desenvolvimento do capitalismo
industrial dão testemunho as várias tentativas
realizadas pelos Governos para o conter: pense-se nas
medidas introduzidas pelo Governo inglês, no fim do
século XVIII, para adaptar os salários ao aumento do
custo de vida, especialmente no chamado
Speenhamland System, ou naquelas mais radicais e
orgânicas propostas pelo Comité de mendicité na
França revolucionária. São também prova disso as
inquirições sobre a miséria levadas a efeito na
primeira metade do século passado (basta pensar nas
promovidas pelo Governo inglês com vistas à revisão
da Poor Law, ou nas conhecidíssimas de Villermé e
Buret), bem como o aceso debate suscitado nessa
mesma época em torno dos princípios da economia
clássica.
Esta discussão teórica, se teve como porta-bandeiras
os representantes do então nascente pensamento
socialista, envolveu também expoentes de diversas
tendências políticas, como De Bonald, Bigot de
Morogues e De Gérando, na França,
Craig, Sadler e Laing, na Inglaterra. Dela surgiu clara
a necessidade de uma ampla obra de previdência e
assistência para os indigentes, que seria promovida
pelo Estado; tenazmente combatida pelos mais
assanhados defensores da teoria liberal clássica, ela
havia de ser empreendida a partir dos fins do século
passado em diversos países europeus, em virtude da
pressão exercida sobre os Governos pelas associações
sindicais e políticas da já então organizada classe
operária. Com a entrada na cena política das
organizações de classe, o problema do Pauperismo
perdeu a dramaticidade que o caracterizara nos
princípios do século XIX, sem por isso deixar de se
impor à atenção dos estudiosos. Provam-no as
pesquisas sobre a pobreza levadas a cabo por Charles
Booth em 1892, por B. Seebohm Rowntree em 1899,
1936 e 1950, por A. L. Bowley em 1928, e por D.
Caradog Jones em 1934.
[MIKELLA LARIZZA]
Paz.
I. PAZ INTERNA E EXTERNA. — Na sua acepção mais
geral, Paz significa ausência (ou cessação, solução,
etc.) de um conflito. Por Paz interna entendemos a
ausência (ou cessação, etc.) de conflito interno,
conflito entre comportamentos ou atitudes do mesmo
ator (por exemplo, entre dois deveres incompatíveis,
entre dever e prazer, entre razão e paixão, entre o
interesse próprio e o interesse de outrem). Por Paz
externa entendemos a ausência (ou cessação, etc.) de
conflito externo, o conflito entre indivíduos ou grupos
diversos. No conceito de Paz externa, inclui-se
também a Paz interna de um grupo, Paz que é externa
para os indivíduos que o compõem. O tema da Paz
interna pertence à moral e seu estudo é incumbência
habitual dos moralistas; o tema da Paz externa
pertence ao direito e sua discussão é incumbência
habitual dos juristas. De passagem podemos
acrescentar que o nexo existente entre os dois
significados de Paz tem sido muitas vezes acentuado no
próprio plano axiológico, especialmente pelas
filosofias espiritualistas, que consideram a Paz interior
como a "verdadeira" Paz de que depende a Paz
exterior, ou, de qualquer modo, como condição
necessária e suficiente para se obter a Paz entre os
indivíduos ou os grupos.
No que toca à Paz externa, o campo em que aqui
nos movemos e em que se movem geralmente os
estudos acerca da Paz deve ser também delimitado.
Quando contrapomos a Paz externa à Paz interna, nos
referimos à Paz que se segue
PAZ
a qualquer tipo de conflito entre indivíduos ou grupos.
Daí usarmos as expressões "apaziguar" ou "fazer as
pazes", referindo-nos a duas pessoas que litigam entre
si, e falarmos de Paz sindical, religiosa, etc, ou
genericamente de Paz social. A Paz de que aqui
pretendemos falar é, em vez disso, a Paz para a qual
está geralmente voltada a chamada "peace research"
que se tem desenvolvido nestes últimos anos. Trata-se
da Paz que põe termo ao tipo de conflito particular que
é a guerra, em todas as suas acepções. De resto, é este
o sentido predominante, não só na linguagem literária,
filosófica e jurídica, como também na linguagem
comum, onde Paz é usada habitualmente como
antônima de "guerra" e não, genericamente, como
oposta ao conflito, e muito menos à violência, como
sustenta, ampliando o significado do termo, um dos
mais acreditados expoentes da "peace research", Johan
Galtung.
II. A PAZ COMO NÃO-GUERRA. — Acerca da
definição de Paz, a primeira consideração que importa
fazer é a de que a Paz não pode ser definida senão em
relação e em estreita ligação com a definição de
"guerra". Convém atentar no seguinte: enquanto, entre
dois termos opostos, um é freqüentemente definido
por meio do outro, como "movimento" (ausência de
repouso) ou "repouso" (ausência de movimento), no
caso dos dois opostos Paz-guerra, é sempre o primeiro
que é definido por meio do segundo e nunca ao
contrário. Por outras palavras: enquanto "guerra" é
definida positivamente com o elenco das suas
conotações
características.
Paz
é
definida
negativamente como ausência de guerra, em síntese,
como não-guerra. Dos dois termos em questão se diz
que o primeiro é o termo forte, o outro, o termo fraco.
Não é difícil encontrar uma explicação para tal
persistência em definir só negativamente a Paz.
Quando dois termos opostos não são definidos ambos
positivamente, isto é, independentemente um do
outro, ou ambos negativamente, isto é, um
dependentemente do outro, ou seja, quando dos dois
termos um é sempre o termo forte e o outro sempre o
fraco, o termo forte é o que denota o estado de fato
existencialmente mais relevante. Quem se detiver
sequer por um instante a considerar a história da
filosofia política não poderá ter dúvidas a tal respeito:
existe uma copiosa filosofia da guerra, como fenômeno
positivo, mas não existe uma vasta filosofia da paz.
Poder-se-ia até afirmar que grande parte da filosofia
política, especialmente da época moderna, é uma
constante meditação sobre o problema da guerra, nela
compreendida, já se entende, a guerra civil. Mais: a
ampla filosofia da
911
história da época moderna que vai do iluminismo ao
marxismo, passando pelo historicismo e pelo
positivismo, parte da pergunta sobre o significado da
guerra e da luta, em geral, pelo desenvolvimento da
civilização humana. Não houve fenômeno social que,
mais que a guerra, tenha levado o filósofo a
interrogar-se sobre o sentido da história e sobre o
contraste entre duas respostas antitéticas, a otimista e a
catastrófica, bem como sobre a resposta que,
abandonando a história do mundo (Weltgeschichte) ao
contra-senso, isto é, ao domínio da neo-razão, à
contingência, ao acaso, encontra um sentido apenas na
história da salvação individual (Heilgeschichte).
Uma prova a contrario se pode achar numa
antítese, em muitos aspectos semelhantes à antítese
guerra-paz, a antítese ordem-desordem, onde, ao
inverso, o termo forte é "ordem", análogo de Paz, e o
termo fraco é "desordem", análogo de "guerra". De
fato, enquanto é correto definir "desordem" como
falta de ordem, seria não apenas impróprio, mas
contrário ao uso comum, definir "ordem" como falta
de desordem. Isto ocorre evidentemente, porque, em
seu uso mais comum, "ordem" é nas relações internas
de um Estado o que a Paz é nas relações internacionais,
conquanto não seja incorreto falar de paz interna e de
ordem internacional. Nas relações internas, o estado
de coisas duradouro não é a desordem, mas a ordem,
tanto que, ao invés do que ocorre na história das
relações entre Estados, tradicionalmente concebida
como uma história de guerras, isto é, de sucessivas
desordens, a história de um Estado é normalmente
concebida como uma história de sucessivos
ordenamentos, onde os momentos de ruptura ou de
desordem, de mudanças devidas a conflitos violentos,
são momentos excepcionais. No campo das relações
internacionais, é historicamente relevante e
preeminente a desordem-guerra; no das relações
internas, é historicamente relevante e preeminente a
Paz-ordem.
É evidente que, se caracterizarmos a Paz como nãoguerra, a definição de Paz depende da definição de
guerra. As definições de guerra são tais e tantas, é tão
variada a diferença de tonalidades entre umas e
outras, que teremos de nos contentar aqui apenas com
indicações gerais. De resto, sabemos muito bem que
as diversas definições de um conceito dependem da
sua maior ou menor extensão, fixada por sua vez, com
grande margem de arbítrio, pelo investigador. As
conotações de "guerra" mais freqüentes são estas: a) é
um conflito; b) entre grupos políticos respectivamente
independentes ou considerando-se como tais; c) cuja
solução é confiada ao uso da violência organizada.
Existe situação de conflito.
912
PAZ
sempre que as necessidades ou os interesses de um
indivíduo ou de um grupo não podem ser satisfeitos
senão com dano de outro indivíduo ou grupo: um caso
típico é o da concorrência de vários indivíduos ou
grupos à posse de um bem escasso. Mas os motivos
de conflito podem ser também psicológicos, uma
ofensa, por exemplo; neste caso, o objeto que
desencadeia o conflito não é um bem, mas a própria
pessoa do outro. Por "grupo político" entendemos um
grupo organizado, cujo objetivo é manter ou
conquistar o máximo poder possível entre e sobre
homens que convivem. Máximo poder possível é o
daquele que pode dispor do monopólio da força física,
para conseguir que suas ordens sejam cumpridas: nos
referimos aqui não só à conservação, mas também à
conquista do máximo poder, para abranger no conceito
de guerra também a guerra civil. Finalmente,
entendemos por violência: a) o uso da força física; b)
intencionalmente orientado ao efeito desejado pelo
sujeito ativo; c) não aceito por parte do sujeito
passivo. Não é violência, no sentido corrente da
palavra, a chamada violência psicológica, ou o uso de
meios de manipulação da vontade, para conseguir um
fim desejado; causar sofrimentos, mesmo graves, sem
intenção; causar sofrimentos, mesmo graves, em quem
consente. Acrescentamos violência "organizada",
porque o conceito de guerra não é tão amplo que
compreenda explosões de violência, mesmo entre
grupos políticos, que sejam esporádicas, não
duradouras, acidentais.
No conceito de guerra assim definida, incluem-se
quatro tipos: a guerra externa entre Estados
soberanos, a guerra dentro de um Estado ou guerra
civil, a guerra colonial ou imperialista, e a guerra de
libertação nacional. Usando outra terminologia
empregada por Aron, teríamos: a guerra interestatal, a
guerra infra-estatal, a guerra superestatal ou imperial,
e a guerra infra-imperial.
Definida assim a guerra, a Paz, entendida como nãoguerra, pode ser definida como uma situação em que
não existe entre os grupos políticos relação de
conflito caracterizado por uma violência durável e
organizada. Daí deriva que: a) dois grupos políticos
podem estar em conflito entre si sem estar em guerra,
já que o estado de paz não exclui todo o conflito, mas
só o conflito que se traduz em violência durável e
organizada; b) dois grupos políticos não se hão de
considerar em estado de guerra, se nas suas relações
se verificam casos de violência esporádica, como são,
por exemplo, os incidentes de fronteira.
III. PAZ "NEGATIVA" E PAZ "POSITIVA". — Embora
seja habitualmente definida como ausência de guerra,
embora, por outras palavras,
a Paz não conte habitualmente senão com um conceito
negativo, isso não exclui que na linguagem técnica,
especialmente técnico-jurídica, o termo Paz tenha
também um significado positivo. Trata-se então de um
conceito não genérico, mas específico, com que se
entende não tanto a ausência de guerra (Paz como nãoguerra), mas o fim, a conclusão, ou o desfecho
juridicamente regulado de uma guerra. Em seu
significado negativo, a Paz é um estado de coisas
genérico (o estado de não-guerra); em seu significado
positivo, a Paz é um estado específico, previsto e
regulado pelo direito internacional, um estado que
acaba por ser criado em conseqüência de um acordo
com que dois Estados cessam as hostilidades e
regulamentam as suas relações futuras. "Estabelecer a
Paz" não significa apenas cessar as hostilidades e
deixar de fazer a guerra, mas significa também
instaurar um estado de coisas juridicamente ordenado,
com tendência a uma certa estabilidade. Enquanto
guerra, em sua significação positiva, e Paz, em sua
significação negativa, podem ser entendidas como
dois termos contraditórios, de modo que, entre um e
outro, tertium non datur, isto é, se entre dois Estados
há guerra, não há Paz, e, se há Paz, não há guerra,
guerra e Paz, em sentido positivo, podem ser
interpretados como dois termos contrários, de tal
modo que entre um e o outro tertium datur, podendo
existir entre a guerra, em sentido positivo (como
vimos, a guerra é sempre definida nesse sentido), e a
Paz, também em sentido positivo, uma zona intermédia,
como a trégua ou o armistício, que não são nem guerra
nem Paz, ou não são guerra, mas também não são
ainda Paz. Por outras palavras, guerra (em sentido
positivo) e Paz (em sentido negativo) ocupam toda a
extensão das relações possíveis entre os Estados;
guerra, em sentido positivo, e Paz, em sentido positivo
(onde Paz já não é definida negativamente como
ausência de guerra, mas positivamente como
conclusão juridicamente regulada de uma guerra), são
dois termos extremos que, como tais, não ocupam toda
a extensão das relações possíveis entre os Estados,
antes deixam um espaço livre para um termo médio
indispensável para a completar. Isto deve-se ao fato de
que o conceito positivo de Paz, que é um conceito
técnico e não genérico, é mais restrito do que o
negativo, ocupando como tal um espaço menor.
Fique bem claro que este conceito positivo de Paz,
sendo um conceito técnico do direito internacional, não
tem nada a ver com o conceito positivo de Paz que se
insere às vezes no discurso teológico e filosófico,
onde por paz, em sentido positivo, se entende a
"verdadeira" paz, não uma Paz qualquer, não a Paz
ditada pelo
PAZ
vencedor, mas a Paz com justiça, como se lê, por
exemplo, na Gaudium et spes do Vaticano Il (n.° 78):
"A Paz não é a simples ausência da guerra, ela é
definida com toda a exatidão: obra da justiça, opus
iustitide, pax". Enquanto que o conceito técnicojurídico de Paz é positivo no sentido de que não se
limita a definir a Paz como ausência de guerra, mas
leva em conta as condições formais sob as quais uma
guerra pode ser concluída de modo definitivo, o
conceito teológico-filosófico de Paz é positivo no
sentido de que, rejeitando a definição negativa de paz
como ausência de guerra, a caracteriza como um
estado de coisas que é portador de um valor positivo
como a justiça, capaz, por si só, de tornar tal estado
desejável. Mas aqui a definição de Paz já não é uma
definição meramente lexical, mas uma definição
persuasiva, isto é, uma definição que diz, não o que a
Paz é, mas o que deveria ser para ser considerada
como um bem. Na definição técnico-jurídica de Paz,
não há nada que permita distinguir uma Paz justa de
uma Paz injusta; na definição teológico-filosófica, só
a Paz com justiça merece ser propriamente chamada
Paz, enquanto a Paz injusta é apenas um simulacro de
Paz, uma Paz aparente, uma Paz impropriamente dita.
IV. A PAZ COMO VALOR. — Esta discussão sobre o
conceito de Paz positiva no sentido teológicofilosófico, repetido, se bem que inconsideradamente,
por alguns estudiosos da Paz, nos abre caminho para
o exame do segundo problema que queríamos tratar:
o da Paz como valor. Da oposição de termos como a
de guerra-Paz, é costume fazer um uso
classificatório, dizendo, por exemplo, que todos os
seres de um universo (neste caso, o universo são as
relações entre grupos políticos) se englobam na
extensão de um ou de outro dos termos (no exemplo
todas as relações entre grupos políticos são ou
relações de guerra ou relações de Paz), ou então um
uso axiológico, ao dizer que um dos dois termos tem
valor positivo e o outro um valor negativo, que é um
desvalor (mais uma vez, tertium non datur). Não há
dúvida de que, na antinomia guerra-Paz, o primeiro
termo é geralmente entendido como um estado de
coisas a que se atribui um valor negativo, o segundo
como um estado de coisas a que se atribui um valor
positivo.
É paradigmático o caso da filosofia política de
Hobbes, sendo lícito falar de um "modelo
hobbesiano" que dominou, por sua simplicidade e
rigor, toda a filosofia política posterior, mesmo
quando polemicamente rejeitada. Como é sabido,
Hobbes parte do estado de natureza, considerado
913
como estado de guerra universal e perpétua. Como
tal, o estado de natureza é uma condição de que a
humanidade precisa absolutamente de sair; para isso,
pax est quaerenda. Contraposto ao estado de
natureza, entendido como estado de guerra, o estado
de Paz é a sociedade civilizada. Este modelo
hobbesiano
é
importante
e
historicamente
significativo, porque o confronto entre guerra e Paz,
respectivamente consideradas como mal e bem
absolutos, se tornou atual com o advento e contínua
ameaça de uma guerra termonuclear. O equilíbrio do
terror é, num certo sentido, o retorno ao estado de
natureza, isto é, um estado de que é preciso
necessariamente sair. Isto explica o crescente interesse
que existe pelos problemas da Paz (da Paz
tradicionalmente entendida como ausência de guerra)
na era da guerra atômica. Em face de tal perigo, existe
uma certa tendência a considerar de novo a guerra, à
maneira de Hobbes, como um mal absoluto,
consideração que levou, em conseqüência, a avaliar a
Paz como um bem absoluto. Só com o perdurar do
equilíbrio do terror que, contra as apreensões dos
chamados "apocalípticos", afastou aparentemente o
perigo da guerra, e com o suceder das guerras parciais
em quase todas as partes do mundo, guerras não
atômicas, é que se reapresentou o problema do valor
da Paz e do desvalor da guerra, mas não já em termos
de bem e de mal absolutos. Dissemos "se
reapresentou", porque, pensem e digam o que
quiserem a tal respeito os críticos no âmbito da
pesquisa sobre a Paz, que descobriram que a Paz,
entenda-se a Paz negativa, não foi sempre o valor
último, a filosofia política, ao longo dos séculos da
sua história, quase nunca fez da antítese guerra-Paz o
uso axiológico que dela fez Hobbes, isto é, jamais
considerou a guerra como um desvalor absoluto e a
Paz como um valor absoluto.
V. O VALOR DA PAZ EM SI. — Na recusa de
considerar a guerra como um mal absoluto e a Paz
como um bem absoluto, podemos distinguir, no curso
do pensamento político dos últimos séculos, duas
tendências: a) a tendência segundo a qual nem todas
as guerras são injustas e, correlativamente, nem toda a
Paz é justa, razão por que a guerra nem sempre é um
desvalor, e a Paz nem sempre um valor; b) a
tendência segundo a qual tanto a guerra como a Paz
não são valores absolutos ou intrínsecos, mas
relativos ou extrínsecos, resultando daí que, de acordo
com o princípio de que o valor do meio depende do
valor do fim, uma guerra pode ser boa, se o fim a que
tende é bom, e a Paz só é boa, quando o resultado que
dela se origina é bom.
914
PAZ
Desde os tempos das guerras hegemônicas entre os
Estados europeus até hoje, o problema da guerra justa
mudou de natureza após um período obscuro que
corresponde mais ou menos ao período das duas
grandes conflagrações européias. Há, de fato, dois
modos fundamentais de justificar a guerra, isto é, de
distinguir uma guerra que se aprova como justa, de
uma guerra que se desaprova como injusta. Uma é a
guerra como resposta a uma violação do direito
estabelecido ou como sanção, com base no princípio
aceito no próprio seio dos Estados soberanos, segundo
o qual "vim vi repellere licet"; então guerra justa por
excelência seria a guerra de defesa ou mesmo a de
reparação de uma ofensa, e injusta a guerra de
agressão. Outra é a guerra como instauração de um
direito novo contra o velho tornado injusto, isto é,
como. ato criativo de direito, com base noutro
princípio não menos tradicional, o de que ex facto
oritur ius; então guerra justa por excelência seria a
guerra revolucionária ou de libertação nacional, e
injusta a guerra imperialista. Enquanto durante a
guerra do equilíbrio europeu a teoria da guerra justa,
que apaixonou teólogos, moralistas, filósofos e juristas,
se resolvia na justificação da guerra como sanção e,
conseqüentemente, como restauradora do status quo ou
da ordem internacional constituída, atualmente o
interesse pelo problema da justificação da guerra está
sobretudo voltado para as guerras que tendem a
modificar o status quo e a instaurar uma nova ordem
internacional.
Do mesmo modo que a guerra pode ser justa e,
como tal, não ser mais um valor negativo, também a
Paz pode ser injusta e, como tal, não ser mais um valor
positivo. O princípio segundo o qual se pode distinguir
uma Paz justa de uma Paz injusta, é o mesmo que serve
para a legítima defesa, que se requer seja
proporcionada à ofensa, isto é, o princípio da chamada
justiça corretiva, segundo o qual deve existir proporção
entre delito e castigo, entre transgressão e reparação
do direito. Será, portanto, injusta uma Paz que
imponha aos vencidos um castigo, uma reparação de
danos, uma perda de territórios, ditados pelo espírito de
vingança e não pelo propósito de restabelecer a ordem
lesada. Frases famosas como "solitudinem faciunt,
pacem appellant", "a ordem reina em Varsóvia", a
"paz dos cemitérios", exprimem bem a idéia de que a
Paz não é sempre justa e, como tal, nem sempre é um
benefício, mesmo para o vencedor.
Vão será dizer que, na realidade concreta, é difícil
estabelecer quando é que uma guerra é justa e quando
é que uma Paz é injusta. Isto por falta de um juiz
imparcial superior às partes na ordem internacional e,
segundo as teorias classistas do Estado, como as
geralmente aceitas pelos
partidos revolucionários, por falta de um juiz
imparcial também nas relações internas do Estado.
Qualquer grupo político tende a considerar justa a
guerra que faz e injusta a Paz que é obrigado a
suportar. E, quanto ao tribunal da história, seu critério
de julgamento não é a justiça ou a injustiça, mas o
sucesso.
VI. A PAZ COMO MEIO. — A segunda tendência, que
propende a dar à guerra e à Paz um valor que se afasta
do modelo hobbesiano, segundo o qual a guerra é um
mal absoluto e a Paz um bem absoluto, é a que
considera a guerra e a Paz como valores
instrumentais; conseqüentemente, se o valor do meio
depende do valor do fim, são válidos os princípios de
que "um fim bom justifica um meio mau", "um fim
mau injustifica também um meio bom". Neste
contexto, as duas teorias predominantes até aos
nossos dias, sobretudo no campo da filosofia da
história,
primeiro
na
iluminista,
depois,
sucessivamente, na idealista, na positivista e na
marxista, são as que consideram a guerra como mal
necessário e a Paz como bem insuficiente.
A teoria da guerra como mal necessário tem sido
certamente a de maior difusão em todas as filosofias
da história que, de uma forma ou de outra, meditaram
sobre o significado da guerra para a civilização
humana. Está estreitamente ligada às teorias do
progresso, segundo as quais, em diversa medida e sob
diversos aspectos, o progresso da humanidade vem ou
sempre veio através da guerra. O nexo entre a
concepção da guerra como mal necessário e as teorias
do progresso apresenta-se sob três formas principais. A
guerra é necessária para o progresso moral da
humanidade, porque desenvolve energias que em
tempo de Paz não têm possibilidade de se manifestar, e
incita os homens ao exercício de virtudes sublimes,
como a coragem heróica, o sacrifício de si mesmo em
prol de um ideal, o amor à pátria, sem as quais
nenhum grupo social teria condições de sobreviver. A
guerra é necessária para o progresso social da
humanidade, pois torna possível a unificação de povos
diversos em comunidades cada vez mais vastas,
contribuindo assim para o fim último da história que é
a unificação do gênero humano. A guerra é necessária
para o progresso técnico, porquanto a inteligência
criadora do homem responde com maior vigor e
resultados mais surpreendentes aos desafios que o
contraste com a natureza e com os demais homens lhe
apresenta de quando em quando; a guerra é
certamente um dos maiores desafios que um grupo
social tem de enfrentar para sobreviver.
A outra face da concepção da guerra como mal
necessário é o da concepção da Paz como
PAZ
bem insuficiente. Considerar a Paz como bem
insuficiente significa que a Paz não pode, por si só,
garantir uma vida social perfeita, onde os homens
vivam felizes e prósperos. A Paz é considerada
geralmente como condição, apenas como uma das
condições para a realização de outros valores,
habitualmente considerados superiores, como a
justiça, a liberdade e o bem-estar. Se pode dizer da
Paz, como aliás se diz do direito enquanto técnica
social orientada à realização da Paz, que esta impede
o maior dos males, a morte violenta, mas não visa a
alcançar o maior dos bens. O bem que a Paz defende é
o bem da vida. Mas a vida será o maior dos bens?
Além de não existir, em absoluto, o maior dos bens, a
vida é um bem posto continuamente em confronto
com outros, como a liberdade, a honra pessoal, a
honra do grupo, o bem-estar da coletividade, etc, e,
nesse confronto, nem sempre leva a melhor. Quando
outro bem, como a liberdade, é considerado como
superior à vida (recorde-se o "antes mortos que
vermelhos" com que responderam à provocação de
Bertrand Russell "antes vermelhos do que mortos"), a
Paz não é mais um valor supremo e, em certas
circunstâncias, poderá até converter-se em desvalor.
Todos aqueles que consideraram a guerra como causa
do progresso, consideraram a Paz como causa, se não
do retrocesso, ao menos do não-progresso; viram nela
a chave explicativa daquelas civilizações que no
século passado foram chamadas, em contraposição às
da progressiva Europa, de "estacionárias".
VII. TIPOLOGIA DA PAZ. — São inumeráveis as
formas ou tipos de Paz de que encontramos notícia na
história, e não são menos numerosos os critérios
segundo os quais vários autores tentaram sua
classificação. A título de orientação, limitar-me-ei a
recordar a classificação feita por Raymond Aron, uma
das mais conhecidas. Aron distingue três tipos de Paz,
que ele chamou de "potência", de "impotência" e de
"satisfação". A Paz de potência é subdividida, por seu
turno, em três subespécies, que são a Paz de
"equilíbrio", de "hegemonia", e de "império",
conforme os grupos políticos estiverem em relação de
igualdade, ou de desigualdade baseada na
preponderância de um sobre os outros (como acontece
no caso dos Estados Unidos em relação aos outros
Estados da América), ou então baseada num
verdadeiro e autêntico domínio, exercido pela força,
como a chamada "pax romana". A Paz de impotência
seria um evento novo e assentaria naquele estado de
coisas que, com o surgir da guerra atômica, se
chamou de "equilíbrio do terror", definido como um
estado que "reina entre unidades políticas, cada uma
das quais é capaz
915
de infligir à outra um golpe mortal". A Paz de
satisfação tem lugar, quando, de um grupo de Estados,
nenhum deles nutre ambições territoriais ou de
qualquer outro tipo para com os outros, e as suas
relações se baseiam na confiança recíproca, que é
justamente o oposto do temor recíproco. É esta a Paz
que vigora, depois da Segunda Guerra Mundial, entre
os Estados da Europa Ocidental.
Mas esta classificação, como todas as classificações,
também não é totalmente satisfatória. Em primeiro
lugar, entre os diversos tipos de Paz de potência,
faltam, quando menos, outros dois, presentes em todas
as classificações, isto é, a Paz de extermínio, que é
algo bastante mais resolutivo que a Paz de império, e a
Paz confederativa (v. CONFEDERAÇÃO), que é algo
bastante mais vinculante que a Paz de equilíbrio, se
bem que seja um tanto diversa da Paz de império,
porque a superação da pluralidade de seres em
possível conflito ocorre com base não na força, mas
num acordo. Em segundo lugar, a distinção entre Paz
de potência e Paz de impotência é forçada. Poder-se-ia
dizer, com igual direito, que a Paz do terror é a paz do
máximo de potência, da superpotência, e não de
impotência, e que o equilíbrio das potências é, ao
mesmo tempo, o equilíbrio das impotências. O
equilíbrio do terror não é senão a forma extrema da
Paz de equilíbrio. Tanto uma como a outra têm isto em
comum: que o estado de ausência de guerra se apóia
na igualdade entre os Estados e não na desigualdade,
como ocorre, ao invés, tanto na Paz de hegemonia
quanto na de império. A definição que Aron dá do
equilíbrio do terror é idêntica à que Hobbes deu do
estado de natureza, quando observa, justamente no
início da descrição deste estado, que nele os homens
são todos iguais, no sentido de que cada um pode levar
ao outro o maior dos males, a morte. O estado de
natureza assim concebido é o estado de equilíbrio do
terror permanente, isto é, um estado que, quando não
degenera em guerra aberta, se rege pelo terror
recíproco. A diferença entre o estado de natureza e a
sociedade civilizada é a de que, no estado de natureza,
o temor é recíproco, ao passo que, na sociedade
civilizada, o temor é de todos em relação a um. A
passagem do estado de guerra potencial ao estado de
Paz atual não é outra coisa senão a passagem do
estado de temor recíproco ao estado de temor de todos
em face de um só. Quando o temor é recíproco, como
acontece quer na Paz de equilíbrio no sentido
tradicional, quer na Paz assente no equilíbrio do terror,
a relação entre os Estados é simultaneamente de
potência e de impotência, no sentido de que cada um é
potente
916
PAZ, PESQUISA CIENTIFICA SOBRE A
na medida em que o outro é impotente e vice-versa.
Só na Paz de império (que corresponde à sociedade
civilizada de Hobbes), onde a relação entre poder e
não poder deixou de ser recíproca para ser de uma só
direção, é que, à potência de um, o soberano,
corresponde a impotência de todos os restantes. Com
isso quero dizer que não existe uma Paz de potência e
uma Paz de impotência, mas Paz onde a potência e a
impotência se acham diversamente distribuídas.
Da Paz de potência, que é ao mesmo tempo
também de impotência, se distingue a Paz de
satisfação, onde a ausência de guerra depende, não do
temor, mas da falta de conflitos que, por sua
gravidade, só podem ser resolvidos pela força.
BIBLIOGRAFIA. — Para a história do problema são
fundamentais os dois volumes de AUT. VÁR., La paix,
Editions de la librairie encyclopédique, Bruxelles 196162 (contêm numerosos ensaios sobre a história da Paz.
desde a idade arcaica até aos nossos dias). Para o
aspecto teórico do problema e para a tipologia é
fundamental R. ARON, Paix et guerre entre les nations,
Calmann-Lévy, Paris 1962. Para o conceito amplo de
Paz, entendida como não-violência, veja-se J.
GALTUNG, Violence, peace and peace research. in
"Journal, of peace research", 1969, 167-191; do mesmo
autor, Peace thinking. in AUT. VÁR., The search for
world order. Meredith Corporation, New York 1971,
120-153. Para o conceito de Paz positiva, ou Paz com
justiça, AUT. VÁR. La Pace come dimensione della
spirito, Il Mulino, Bologna 1967 (atas de um encontro
organizado
pelo
Comitato
cattolico
docenti
universitari). Para o conceito de paz como fim da
guerra, B. A. CARROLL, How wars end: and analysis of
some current hypothesis. in "'Journal of peace
research", 1967, 295-321. Sobre os aspectos políticos
do problema, G. BOUTHOUL, Avoir la paix. Grasset.
Paris 1967; R. CLARKE, The science of war and peace,
Jonathan Cape, London 1971
[NORBERTO BOBBIO]
Paz, Pesquisa Científica Sobre a.
A pesquisa sobre a Paz, ou peace research, PR,
pode ser definida, de modo genérico e provisório,
como uma atividade científica, interdisciplinar e
multidisciplinar, que se preocupa em pôr em
evidência as condições de uma paz estável e
duradoura no mundo, bem como de averiguar em que
medida e de que maneira tais condições se podem
tornar realidade. O desenvolvimento científico e
sistemático que esta
atividade de pesquisa alcançou nos últimos vinte anos
é tal que talvez não seja de modo algum prematuro
começar a falar de uma verdadeira e autêntica ciência
da Paz ou irenologia.
I. ORIGENS E DESENVOLVIMENTO. — As origens do
movimento da pesquisa científica sobre a Paz
remontam aos anos que antecederam a Segunda Guerra
Mundial, anos em que um certo número de psicólogos
e psicólogos sociais (M. Conway, E. Glover, J. F.
Brown) e de estudiosos das ciências políticas (H. D.
Lasswell, Q. Wright) demonstraram crescente
interesse pela aplicação dos métodos de pesquisa das
ciências sociais ao estudo dos fenômenos da guerra e
da Paz. Durante algum tempo tornou-se habitual fazer
referência a este tipo de pesquisa científica com o
termo polemologia e, em 1945, surgia já na França o
Institut Français de Polemologie. Logo depois do fim
da Segunda Guerra Mundial, o grande estímulo ao
ulterior desenvolvimento da PR veio da UNESCO, sob
cuja iniciativa, em 1947, 1948 e 1949, grupos de
estudiosos de diversas origens científicas e ideológicas
se reuniram para discutir sobre a contribuição que as
ciências sociais poderiam prestar para uma mais
profunda compreensão dos conflitos, especialmente de
grupo, e da maneira de os resolver de forma pacífica.
Fruto destes encontros foram os dois volumes
coletâneas Tensions that cause wars (Urbana, 1950,
trad. franc. Paris, 1951) e The nature of conflict (trad.
franc, UNESCO, Paris, 1957). Outros estímulos ao
desenvolvimento da PR vieram do movimento de
Pugwash, surgido graças à iniciativa de Bertrand
Russell, com o objetivo de reunir estudiosos de várias
proveniências científicas e ideológicas para a
discussão do contributo da ciência para a solução dos
grandes problemas do nosso século, particularmente o
da Paz.
Em 1952, o Instituto de Pesquisas Sociais de Oslo
anunciava um concurso de ensaios sobre o problema
da "importância da pesquisa científica relacionada com
a solução pacífica dos conflitos internacionais" Os três
ensaios vencedores (de Ch. Boasson, W F. Cottrell e
Q. Wright) foram publicados no volume Research for
peace (Amsterdam, 1954) e as propostas de ulteriores
pesquisas neles contidas levaram à criação, em 1959,
no mesmo Instituto de Oslo, de uma seção de pesquisa
sobre os conflitos e a Paz, cuja direção foi confiada a I.
Galtung. Nesse mesmo ano, era fundado junto à
Universidade de Michigan o Center for Research on
Conflict Resolution. Mas já em 1957, havia sido criada,
na mesma universidade, a primeira revista de pesquisa
sobre os conflitos e a Paz, o Journal of Conflict
Resolution, que, com o andar do tempo, se foi
PAZ, PESQUISA CIENTIFICA SOBRE A
ocupando cada vez mais da aplicação da teoria dos
jogos ao estudo dos conflitos. Entre os que
colaboraram mais intensamente nesta iniciativa,
contam-se o economista K. Boulding, o sociólogo R.
Angell, o psicólogo D. Katz e o matemático e biólogo
A. Rapoport. Após 1957, multiplicaram-se
rapidamente por todo o mundo as iniciativas de
criação de centros de pesquisa sobre a Paz. Entre as
etapas mais importantes deste desenvolvimento,
recordam-se as seguintes. Em 1961, surge o Canadian
Peace Research Institute que, desde 1964, publica o
importante Peace Research Abstract Journal, onde
vem classificada a maior parte das publicações que
vão aparecendo no mundo sobre a matéria, e que,
desde 1969, publica também a quadrimestral Peace
Research. Em 1964, é fundado pela seção de pesquisa
sobre os conflitos e a Paz do Instituto de Pesquisas
Sociais de Oslo o Journal of Peace Research, uma das
revistas mais brilhantes na matéria e a mais importante
do gênero na Europa. Em 1966, essa seção de pesquisa
é transformada em instituto independente com o nome
de International Peace Research Institute. Ainda no
mesmo ano, surge em Estocolmo, por direta iniciativa
do Governo sueco, o Stockholm International Peace
Research Institute (SIPRI), que, desde 1969, publica
um importante anuário, o World armament and
disarmament sipri yearbook. Desde 1964, existe
também uma associação internacional, a IPRA
(International Peace Research Association), cuja tarefa
é a de "promover a pesquisa interdisciplinar sobre as
condições da Paz e as causas da guerra". Esta
associação publica o boletim bimestral International
Peace Research Newsletters, fundado em 1963, onde
se dão regularmente informações acerca das
atividades de pesquisa sobre a Paz que se estão
efetuando no mundo. A maior parte dos institutos ou
centros dedicados com exclusividade à pesquisa sobre a
Paz se encontram na América do Norte e na Europa
Ocidental. Na Itália, o interesse pela PR foi
promovido, na década de 60, sobretudo por F. Fornari
e pelo chamado "Grupo anti-H", que se reuniu em
torno de Fornari e L. Pagliarani. Fruto deste interesse
foi o volume coletâneo Dissacrazione della Guerra
(ao cuidado de F. Fornari, Milano 1969).
Recentemente foi fundado em Nápoles um instituto
com o nome de Italian Peace Research Institute, que
publicou já alguns escritos e está filiado ao IPRA. Não
obstante estas e outras iniciativas, não se pode ainda
afirmar que a PR já tenha começado na Itália.
II. DEFINIÇÕES E ÁREAS DE PESQUISA. — Não existe
uma definição universalmente aceita da PR. Isso
depende, em parte, da dificuldade que há em delimitar
de forma precisa o fenômeno a
917
que a pesquisa se refere, ou seja, em definir o que se
deve entender por Paz. A definição de tal conceito não
é, aliás, apenas fundamental para uma mais precisa
definição da atividade científica em questão; é
também fundamental para a elaboração de uma
adequada "teoria da Paz", justamente considerada não
raro como uma das tarefas fundamentais da PR. Ora,
do termo Paz, como de qualquer outro termo, cada um
é livre de dar, dentro dos limites, por certo bastante
amplos, das propriedades semânticas, a definição que
mais lhe agrade. Na realidade, entre os que se
autodefinem como peace researchers, há os que se
inclinam por uma acepção bastante lata do termo; para
estes, a sociedade pacífica torna-se praticamente
sinônimo de sociedade ideal sob todos os aspectos,
uma vez que a Paz é justamente definida, não apenas
negativamente como ausência de violência, mas
também positivamente, em termos de justiça, de bemestar, de relações integradas e construtivas entre os
grupos. Segundo outros, por Paz se há de entender, em
sentido mais restrito, uma propriedade de sistemas de
conflito, mais precisamente, a propriedade de estarem
isentos de violência. Neste sentido, o ordenamento
pacífico se identifica com o ordenamento social onde
os conflitos são acompanhados e resolvidos sem
recorrer à violência, especialmente militar. Na prática,
contudo, nota-se uma certa tendência dos peace
researchers a realizar pesquisas sobre as condições da
Paz neste sentido mais restrito, porquanto é da
realidade da Paz assim entendida que pode hoje
depender a existência de todo o gênero humano.
Podemos falar da pesquisa sobre a Paz em sentido
estrito como de uma atividade científica que visa o
estudo das condições de eliminação da guerra e, mais
em geral, da violência armada como métodos de
condução e solução dos conflitos de grupo. Mas, à PR
assim entendida, pode-se contrapor a objeção de estar
politicamente comprometida, pois favorece o status
quo, ou seja, o sistema internacional vigente, com
todas as suas injustiças patentes e com as suas diversas
formas de exploração do homem. A ela se subtraem os
peace researchers que crêem ser uma das principais
tarefas da pesquisa a que se dedicam, a de estudar os
vários tipos de métodos não violentos de condução
dos conflitos e as possibilidades que tais métodos
oferecem em prol de soluções construtivas e
conformes à justiça. Entendida desta maneira, a PR
acolhe algumas das exigências apresentadas pelos que
são por uma acepção lata do termo Paz e se
caracteriza, ao mesmo tempo, não só como pesquisa
sobre a Paz, mas também como pesquisa pela Paz.
Torna-se assim, fundamentalmente, um ramo da
ciência aplicada, entendendo-se como tal
918
PENSAMENTO SOCIAL CRISTÃO
aquela parte da pesquisa científica que estuda as
condições de consecução de um certo fim ou valor
(como a saúde na medicina). E, já que a Paz, mesmo
se entendida em sentido restrito, é um fim cuja
consecução tem sido sempre extremamente difícil e
dependente de múltiplos fatores, eis como se explica
que a PR seja uma atividade de pesquisa
interdisciplinar: contribuem para ela as mais variadas
e diversas disciplinas como a ciência política, a
sociologia, as relações internacionais, a economia, a
psicologia, a história, a filosofia, o direito
internacional, a estatística, a matemática, a
demografia, etc. À medida que a pesquisa adquire
contornos mais precisos, torna-se desejável a
passagem da fase predominantemente interdisciplinar,
em que se encontra agora, à fase multidisciplinar,
caracterizada pelo fato de que a pesquisa é levada a
efeito, não já por equipes de cientistas provenientes
das disciplinas que interessam, mas por cientistas
versados nos aspectos de interesse das disciplinas em
questão.
Existem duas disciplinas com as quais a PR tem
muito de comum, mas de que é importante também
diferenciá-la, a ciência das relações internacionais e a
teoria geral do conflito. A primeira se distingue,
grosso modo, como estudo do comportamento dos
Estados e dos fatores que lhes determinam os vários
modos de interação. A segunda se pode caracterizar,
também grosso modo, como estudo dos mais variados
tipos de conflito, entre indivíduos, grupos e
organizações, desde os conflitos econômicos, sociais e
políticos, aos conflitos raciais, éticos, religiosos e
ideológicos, com o objetivo de pôr em evidência, se
possível, as leis do seu desenvolvimento no âmbito de
uma mais vasta e abrangente teoria geral. A PR
distingue-se delas sob dois aspectos. Em primeiro
lugar, enquanto aquelas são ramos do que se costuma
chamar pesquisa pura, exclusivamente orientada à
apuração e explicação dos fatos, a PR é, como já se
acentuou, um ramo da pesquisa orientada à realização
de um determinado fim. Em segundo lugar, a PR se
distingue das duas disciplinas referidas por entrarem
em seu campo de pesquisa problemas que são
estranhos a elas. Apresentemos só alguns exemplos:
problemas concernentes aos aspectos econômicos,
jurídicos, matemáticos, psicológicos e socialpsicológicos do controle dos armamentos e do
desarmamento; os que concernem aos fatores que
influem nos processos de decisão nas relações
internacionais; os ligados ao estudo da formação da
opinião pública sobre a política externa; os ligados ao
estudo de alternativas, processuais e funcionais,
diversas da da violência organizada como método de
solução dos conflitos; os relacionados com o estudo
do imperialismo e do
militarismo como causa da guerra; os problemas
apresentados pelo estudo dos métodos de defesa não
violenta, etc.
Um problema particularmente importante e
dramático que enfrentam os peace researchers é o da
utilização dos resultados obtidos no campo teórico da
investigação como contribuição para a efetiva
realização de uma Paz estável no mundo. Trata-se do
problema de traduzir a teoria em propostas precisas e
práticas e do modo como influir nos decision-makers,
para que as adotem. A consciência deste problema
levou a um crescente interesse pelas questões relativas
á educação para a paz e à criação, em 1970, do
periódico Bulletin of Peace Proposals, editado pelo
Instituto de Oslo, sob os auspícios do IPRA. Seu
objetivo é o de "apresentar, de um modo sistemático,
vários planos, propostas e idéias respeitantes ao
desenvolvimento, à justiça e à Paz, e de os confrontar
e discutir à luz da teoria geral da peace research".
BIBLIOGRAFIA. K. E. BOULDING, The peace research
mouvement in the USA, in Alernatives to war and
violence. ao cuidado de T. DUM. James Clarke, London
1963; C. CHATFIELD, International peace research: the
field defined by dissemination, in "Journal of peace
research", 1979, 2, pp. 161-79; J. GALTUNG, Essays in
peace research, vol. I: Peace, research, education,
Christian Ejlers, Copenaghen, 1975; T. LENTZ,
Towards a science of peace, Halcyon Press. London
1955; G. PONTARA, La ricerca interdisciplinare e
multidisciplinare sulla pace, in Dissacrazione della
guerra, ao cuidado de F. FORNARI, Feltrinelli, Milano
1969, H. SCHMID, Politics and peace research. in
"Journal of peace research", 3, 1968; Kritische
Friedensforschung, ao cuidado de D. SENGHAAS,
Suhrkanp Verlag, Frankfurt an Main 1977; H.
WIBERG, JPR 1964-1980 — What have we learnt
about peace2 , in "Journal of peace research", 2, 1981.
[GIULIANO PONTARA]
Pensamento Social Cristão.
Por Pensamento social cristão se há de entender
aquele conjunto de idéias e doutrinas que, embora
inspiradas nos valores do cristianismo, concebem a si
mesmas como inseridas numa sociedade autônoma em
relação à comunidade eclesial. A doutrina da
existência de um espaço autônomo do social, que tem
sua origem na distinção marxista entre sociedade civil
e Estado, era um elemento adquirível pelo pensamento
cristão. Com ela foi possível transferir as teses
respeitantes à autonomia da família e da Igreja
PENSAMENTO SOCIAL CRISTÃO
de um contexto estritamente eclesiológico para uma
reflexão global, que ambicionava apresentar-se como
interpretação católica da ciência social e, por isso, de
qualquer modo, como uma ciência alternativa. Não foi
por acaso que, desde o fim do século passado até à
década de 50, se falou longamente de "sociologia
cristã".
O problema da produção capitalista, o fato
operário, as mudanças que eles acarretam, constituem
a "questão social" e são o principal objeto da nova
ciência cristã-social.
Um leitor contemporâneo achará a Rerum novarum
(1891) de Leão XIII um documento de escasso valor e
um tanto ou quanto reacionário: mas continua
autêntica a impressão explosiva que, no Diário de um
cura de aldeia de G. Bernanos, é reevocada pelo
pároco de Torcy. A encíclica leonina constitui um
esforço por definir o poder, por estabelecer um
contrato, a propriedade, limitado pelos direitos da
outra parte, o trabalhador, independentemente dos
termos em que este esteja disposto a estipulá-lo. O
jusnaturalismo católico não enfrentara o tema da
propriedade senão em termos jurídicos e, portanto,
formais. A tese de São Tomás, que não considerava
furto o que é tomado para saciar a fome mesmo contra
a vontade do proprietário, já que o direito ao uso
comum dos bens é de maior valor que o da apropriação
privada deles, não fizera escola.
"Embora, pois, o operário e o patrão estabeleçam,
de comum acordo, um pacto e, nomeadamente, o valor
do salário, entra aí sempre um elemento de justiça
natural, anterior e superior à livre vontade dos
contraentes, o de que a quantia do salário não deve ser
inferior à do sustento do operário, frugal, entende-se,
e de bons costumes. Se este, obrigado pela necessidade
ou por medo de pior, aceita acordos mais pesados,
que, sendo impostos pelo proprietário ou pelo
empresário, hão de ser aceitos de bom ou de mau
grado, isso é sofrer violência contra a qual a justiça
protesta" (Rerum novarum, n.° 27).
Este texto pode ser considerado como momento
original do pensamento social cristão. O conteúdo do
contrato é visto em função de um quid indeterminado,
mas determinável, que é o "sustento do operário
frugal". Aqui o Papa se opõe tanto à concepção
liberalista da concorrência como medida única do
preço do trabalho, ou de qualquer outro preço, quanto
à tese marxista do decrescimento necessário do
salário. O tema fundamental é de que o lucro não
pode ser tido como único critério para a fixação do
salário. A fórmula é, evidentemente, assaz moderada
e parece lembrar a fórmula marxista sobre a
reprodução da força-trabalho: a medida social do
salário
919
é "o sustento" do operário, portanto a mera existência,
e, além disso, O operário que faz regra há de ser
"frugal e de bons costumes". Não parece que tais
palavras pudessem impedir a exploração.
Mas o importante era que a Igreja se declarava, em
princípio, se bem que de forma mínima, a favor da
reforma social, tomando posições contra as teses
liberalistas. No plano teórico, surgia a idéia de que o
interesse social qualificava os interesses individuais e
impunha suas regras à autonomia de cada um,
independentemente dos vínculos das leis positivas.
Revelava-se a idéia fundamental do Pensamento social
cristão, que era justamente a da inserção do homem
num todo social que tinha por fim a plenitude da vida
individual.
Nesta perspectiva, esse texto modesto e moderado
da Rerum novarum apresenta-se como ponto de
partida. O Papa foi mais incisivo ao afirmar como
direito natural, portanto não restringível pelas leis
positivas, o direito de associação: "o direito de se unir
em sociedades o homem o possui por natureza: e os
direitos naturais o Estado deve tutelá-los, não destruílos". E lembrava o princípio mais forte da tradição
jusnaturalista católica: "pois as leis não obrigam senão
enquanto conformes com a reta razão e,
conseqüentemente, com a lei eterna de Deus" (n.° 30).
O Papa citava Tomás de Aquino, cujo pensamento
possui virtualidades dinâmicas ainda não realizadas: e
mostrava uma delas.
Leão XIII introduzia outro elemento importante, o
da intervenção obrigatória do Estado a favor dos
economicamente mais fracos: "a classe dos ricos, forte
em si mesma, tem menos necessidade da pública
defesa; as populações miseráveis, que carecem de um
apoio próprio, é que têm especial necessidade de o
encontrar no amparo do Estado. E aos operários, que
pertencem ao número dos fracos e necessitados, deve
o Estado dirigir seus cuidados e providências".
Foi assim que a Igreja, como instituição e como
totalidade, enveredou pelas vias do reformismo,
entrando desse modo, através do social, no campo das
liberdades modernas que tão duramente rejeitara, com
Gregório XVI e Pio IX, no plano formalmente
político e estadual. Mas a Igreja de Pio IX estava
envolvida na onda da cultura romântica e
tradicionalista. Leão XIII, com a restauração do
tomismo, reabriu à corrente jusnaturalista e racional a
via mestra do pensamento eclesiástico. E podia fazêlo graças precisamente ao êxito principal das
correntes tradicionalistas: a solene definição do
primado e
920
PENSAMENTO SOCIAL CRISTÃO
infalibilidade pontifícios, proclamada em 1870 pelo I
Concilio Vaticano.
Só a autoridade papal podia permitir uma ação
social comum a um povo tão dividido em sua cultura,
em suas paixões e interesses como o da Igreja
católica.
Criava-se assim uma situação rica de tensões. Os
católicos foram impelidos, conforme se afirmou,
"para fora da sacristia". Mas isto os expunha às
influências do mundo circunstante, das suas várias
culturas e opiniões; estimulava as diferenças no seio
da própria Igreja.
Não foi por acaso que o pontificado de Leão XIII
se encerrou, deixando os católicos mais ativos, mas
também mais divididos; o pontificado seguinte, o de
Pio X, surgiu como uma reação ao pontificado
leonino.
A doutrina social da Igreja foi assim totalmente
assumida pelo papado. Foi tida como um conjunto de
verdades ligadas à revelação e por isso incluídas no
objeto próprio do magistério eclesiástico. Isso acabou
por mudar profundamente seu papel. Com efeito,
nenhuma outra intervenção dos papas em matéria
social provocou a impressão e emoção da Rerum
novarum. Aquela vibrante sintonia com os interesses
sociais espezinhados, que é uma característica
objetiva da encíclica, não obstante o limitado valor
das suas fórmulas, não se tornou mais a ver salvo
talvez em alguma das radiomensagens de Pio XII
durante a guerra ou em textos como a Populorum
progressio (1967) de Paulo VI.
No período que vai de Leão XIII a Pio XII, as
tensões inerentes ao compromisso cristão-social se
revelam sobretudo à volta do problema da autonomia
política dos crentes.
Se o social entra nos horizontes da Igreja e, por
outro lado, não pode, na realidade, ser considerado
como algo confiado simplesmente ao magistério ou ao
Governo eclesiástico, surge um problema, o do papel
de cada um dos crentes no plano social. Existe um
espaço onde o seu juízo se pode considerar congruente
com a sua existência de crentes e, ao mesmo tempo,
não determinado por um preceito eclesiástico? Não se
trata aqui apenas de um problema prático, mas de um
problema que envolve também um elemento teórico.
Pode a justiça social realizar-se sem a participação
direta daqueles que estão interessados na sua
realização, sem a participação, portanto, antes de mais,
dos crentes? Ou será que os crentes se hão de limitar à
ação religiosa e à enunciação de princípios gerais? É
um problema que irrompe subitamente, no pontificado
de Pio X; tanto na França, com o Sillon, como na
Itália, com a democracia cristã de Murri. Com Pio X,
a hierarquia escolhe a via da
concentração dos crentes no espaço eclesiástico e
nega o conceito de autonomia dos crentes em sua
prática política e social. Não teve melhor sorte depois,
com Pio XI, a tentativa de Sturzo, na Itália, com o
partido popular italiano, só tornado possível por Bento
XV, que retoma a mesma linha de Leão XIII. Os
interesses de Sturzo se referem mais à esfera do
Estado do que à esfera social propriamente dita: o que
lhe interessa é a franca aceitação por parte dos
católicos das instituições democráticas e, ao mesmo
tempo, a luta pela sua reforma. Contudo, o princípio
da autonomia é um princípio fundamental na obra de
Sturzo. Este princípio sofreu duro revés com o
fascismo e com a atitude de Pio XI, muito longe de o
aceitar e profundamente decidido a comprometer
diretamente a Igreja na solução da "questão social". A
sua encíclica para comemorar a Rerum novarum, a
Quadragesimo anno, tem por objetivo centralizar a
questão social na competência da instituição
eclesiástica como tal. O destinatário intencional da
Quadragesimo anno não são bem os partidos ou os
sindicatos, nem os cristãos individuais como tais; a
Igreja, na plenitude da sua autoridade, se dirige aos
Estados. É preciso colocar a Quadragesimo anno no
quadro do grande zelo concordatário de Pio XI. Ele
quer concentrar todas as forças católicas na
hierarquia, de modo que seja esta a representá-las
integralmente. As diferenças entre os católicos
parecem, pois, irrelevantes, inúteis para o fim que se
tem em vista e, portanto, nocivas. Na Igreja só a
hierarquia parece ativa no plano social. A ação social
é vista como uma só coisa com a evangelização de uma
sociedade novamente paganizada: "nós devemos lutar
com um mundo que recaiu, em grande parte, no
paganismo. . . os primeiros apóstolos dos operários
têm de ser operários, e os industriais e comerciantes,
os apóstolos dos industriais e dos homens de
comércio" (Quadragesimo anno, n.° 60).
A unidade é, por isso, a palavra de ordem numa
luta que não se situa já no imediato da ordem social,
mas vem a ser o "bom e pacífico combate de Cristo",
a que se devem unir "todos os homens de boa
vontade... sob a guia dos pastores da Igreja" (ibidem,
n.° 61).
É uma linha que não prevaleceu. A guerra de
Espanha dividiu os católicos. Um grupo de intelectuais
franceses, com Bernanos e Maritain, assume uma
posição de desvinculação do nexo orgânico entre
Igreja e Estado que a Quadragesimo anno supõe, e dá
novamente início à luta pela autonomia. Em
Humanisme intégral (1936), }. Maritain apresenta a
distinção entre o que um católico cumpre como
católico e o que ele faz por ser católico. Aquelas
ações pertencem à
PENSAMENTO SOCIAL CRISTÃO
ordem da doutrina e do culto, estas à da ação
histórica. É para este segundo tipo de ação que se
reivindica a autonomia.
O pontificado de Pio XII é um pontificado de
transição, porque põe como centro do pensamento
social cristão o tema dos direitos da pessoa humana.
Até então, a linha fundamental do magistério
pontifício tinha insistido no caráter objetivo da justiça
social e isto dera às intervenções da hierarquia o
cunho de um apelo a normas que transcendem a
vontade dos indivíduos. Colocar, ao invés, o tema dos
direitos da pessoa humana como conteúdo primário
da "ordem natural" implica a valorização das opções
subjetivas de cada um. A ordem natural consiste num
espaço de exeqüibilidade em torno de cada homem e
a norma ética fundamental está no equilíbrio objetivo
dos direitos.
Pio XII baseia teocentricamente os direitos da
pessoa humana na sua condição de imagem de Deus e
tal fundamentação converte-se também numa
delimitação e qualificação do espaço de
exeqüibilidade: "a origem e o fim essencial da vida
social hão de ser a conservação, o desenvolvimento e o
aperfeiçoamento da pessoa humana, que a ajudarão a
pôr retamente em prática as normas e os valores da
religião e da cultura" (Radiomensagem natalina 1942,
n.° 7).
Os direitos da pessoa humana baseiam-se apenas
numa ordem moral teocêntrica. Mais uma vez se
concentra na finalidade e instituição religiosas a
importância fundamental do social propriamente dito.
Contudo, no desenvolvimento concreto do
pensamento, o direito da pessoa é expresso de forma
absoluta, como algo que se impõe mesmo a quem não
lhe reconhece ou avalia o fundamento teocêntrico: "do
ordenamento jurídico, querido por Deus, dimana o
inalienável direito do homem à segurança jurídica e,
com isso, a uma esfera de direito protegido de
qualquer investida arbitrária" (ibidem, n.° 11). O
campo dos direitos da pessoa humana é definido como
"intangível" (ibidem, n.° 9). Em todas as questões que
respeitam ao Estado, à estrutura social e à organização
produtiva, o tema fundamental do Papa não é mais a
ordem objetiva, tomada como algo preciso, mas os
"intangíveis direitos" da pessoa humana.
A tradição liberal-democrática do Ocidente obtém
aqui seu mais pleno reconhecimento em face do
desafio totalitário.
Este problema se apresenta de novo, quando se
define o papel da Igreja na sociedade. O social é tido
como parte eminente da ação eclesial, chegando
mesmo a constar expressamente na definição de
Igreja: "a Igreja pode chamar-se a sociedade daqueles
que, sob o influxo sobrenatural da
921
graça, constróem, na perfeição da sua dignidade
pessoal de filhos de Deus e no desenvolvimento
harmônico de todas as inclinações e energias humanas,
a estrutura da convivência humana" (discurso ao
primeiro Consistório, 20-2-1946, n.º 14).
Por intermédio dos leigos, "a Igreja é o princípio
vital da sociedade humana" (ibidem, n.° 18). Por outro
lado, o caráter fortemente institucional da eclesiologia
de Pio XII faz com que, no plano eclesial, se volte a
operar aquela concentração hierárquica que se tornou
habitual na doutrina social pontifícia. A Igreja
defende, por conseguinte, os direitos da pessoa
humana na sociedade, mas, para o fazer, acentua em si
a dimensão unitária e autoritária. São as obras sociais
das instituições eclesiásticas que têm a incumbência
de provocar a mudança na vida civil. Mesmo quando,
na Exortação aos romanos, de fevereiro de 1952, Pio
XII se dirigir a todos os homens de boa vontade, será,
mais uma vez, com vistas a uma ação social que tenha
por inspiradora e guia a Igreja em sua hierarquia.
Pio XII tentará elaborar um conceito mais amplo
do apostolado dos leigos e abandonar, portanto, a
referência exclusiva à AÇÃO CATÓLICA (v.), usual em
Pio XI; mas se deterá no limiar dos problemas
efetivos da autonomia política e do pluralismo. Ele
criou, contudo, no pensamento e na prática, uma
situação histórica que tornou inevitável a transposição
desses limiares.
Isso é já de notar em dois documentos de João
XXIII, a Mater et magistra (1961) e a Pacem in terris
(1962).
Estes documentos assinalam indubitavelmente um
avanço na história do Pensamento social cristão, uma
mudança de tal natureza que nos leva a perguntar se,
depois de João XXIII, se pode ainda continuar a falar
de Pensamento social cristão no sentido em que se
falava antes. Antes de tais documentos, a doutrina
social da Igreja era exposta como uma doutrina
racional, vinculada à revelação, de que a hierarquia
eclesiástica é intérprete e guardiã. Seu perfil é, pois,
teórico de um lado e paradogmático do outro. Com a
Mater et magistra, o discurso assume o aspecto de
uma avaliação prudencial dos problemas na ordem do
dia e respeitantes à cultura e à política mundial: o
Papa fala do equilíbrio entre agricultura e indústria,
entre mundo do desenvolvimento e mundo dos
subdesenvolvidos. É um tema que não se presta a
soluções racionais claras, não se trata de uma discussão
de feição jurídica sobre as relações entre a
propriedade privada e o direito da coletividade.
Conseqüentemente, torna-se evidente que a Igreja não
dispõe de soluções definidas e que o Pensamento
social
922
PENSAMENTO SOCIAL CRISTÃO
cristão não pode ser usado como uma ideologia, não
pode ser cultura básica de um partido, etc. Sob este
aspecto pode-se dizer que, com João XXIII, o
Pensamento social cristão tende a ser prudência, uma
arte de conselho e de atividade prática: nisso vem a
coincidir com temas tradicionais, já presentes na
teoria política de Tomás de Aquino. Mas, por outro
lado, justamente por ser um esprit de finesse, modo
essencial de um julgar concreto, o habitus cristãosocial se apresenta como imediatamente adequado à
prática. Dirige-se, por isso, diretamente aos leigos,
que atuam mais imediatamente no âmbito político:
"que (os leigos cristãos) não esqueçam que a verdade
e a eficácia da doutrina social católica se demonstram
sobretudo pela orientação segura que ela oferece para
a solução dos problemas contemporâneos. . . Uma
doutrina social não deve ser apenas proclamada, mas
há de ser traduzida em termos concretos na realidade"
(Mater et magistra, IV).
O que vale não são, portanto, os princípios como
tais, a teoria e o papel da hierarquia, mas a avaliação
dos fatos e a prática concreta. O social passa assim da
ordem da fé para a ordem da caridade.
Não se trata de uma mudança de somenos
importância, já que, com ela, se abandona um
esquema linear doutrina-prática, para se estabelecer
um esquema circular onde teoria e prática se
fundamentam
reciprocamente.
Mas
isso,
inevitavelmente, envolve também, por um lado. os
não-crentes, que podem se achar comprometidos na
prática, baseada afinal numa avaliação prudencial do
real e não num sistema teórico definido, e evoca, por
outro, a possibilidade de diversas escolhas por parte
dos crentes.
É sobretudo este segundo ponto que é apresentado
no segundo dos documentos sociais de João XXIII, a
Pacem in terris.
Este documento torna próprias todas as
reivindicações do pensamento democrático: descreve
a sociedade onde são respeitados os direitos de cada
um como a sociedade justa e vê na própria distinção
dos poderes uma garantia do respeito pelos direitos
individuais.
E o próprio nexo entre a ordem divina e a ordem
social é posto a nível da consciência do indivíduo.
A doutrina social da Igreja adquire assim um tom
novo, não já distante daquilo que hoje é entendido na
cultura contemporânea como laicidade. A declaração
das Nações Unidas sobre os direitos do homem é
agora elogiada sem reservas, conquanto não
fundamente tais direitos na transcendência divina.
O princípio da colaboração dos católicos com os
não-católicos transforma-se, de exceção, em princípio.
As próprias ideologias hostis ao cristianismo já não
são, de per si, consideradas como motivo de nãocolaboração. Importa considerar a prática concreta
dos movimentos, não a sua ideologia: tal prática se
modifica, de fato, concretamente, mesmo que a
referência à ideologia possa, em abstrato, permanecer
imutável. João XXIII aplica, pois, a todas as posições
ideológico-políticas aquela passagem ao prudencial e
operativo, aquela avaliação funcional que aplicou à
doutrina social cristã.
Com o Concilio Vaticano II, começa uma nova era
para o Pensamento social cristão. Isso até tal ponto que
podemos perguntar se ainda pode-se classificar assim
o magistério conciliar e pós-conciliar e, sobretudo, o
modo concreto como o pensamento e a prática dos
crentes se manifestam.
Com os documentos conciliares, o pensamento
social abandona o campo da lei natural e da reflexão
racional para se situar mais dentro do cristianismo.
Definindo biblicamente o homem como imagem de
Deus e retomando o tema escatológico do Reino, os
grandes textos conciliares, como a Lumen gentium e a
Gaudium et spes, transformam a imagem do próprio
sujeito do discurso, a Igreja.
Nela aparece mais claramente a dimensão do
mistério, ou seja, da vida trinitária comunicada ao
homem, e a dimensão escatológica, isto é, o advento
do reino de Deus na história como fim, sentido e
epílogo da mesma. Criação, redenção e comunicação
da vida divina surgem não só como diferentes, mas
também como intimamente unidas. A própria Igreja é,
pois, concebida dentro de uma economia que envolve
toda a realidade histórica. A história é vista como
realização do Reino. A Igreja não se apresenta mais
como o lugar da salvação numa história de perdição,
mas como o lugar onde se manifesta o gesto salvífico
de Deus dirigido a todo o homem e a toda a história.
A história universal encontra exatamente a sua
unidade na unidade do gesto criador, redentor e
divinizador do Deus trino.
Que isso comporta uma mudança na concepção da
relação entre a Igreja e a sociedade é coisa que parece
evidente.
O que sucede à doutrina social da Igreja poderia
provisoriamente ser definido como teologia da
libertação.
Estes dois termos, teologia e libertação, possuem
um sentido preciso que os distingue do tema da
doutrina social da Igreja. Trata-se de uma pesquisa
livre, que se refere à totalidade da revelação e não é
mais determinada apenas
PERONISMO
pelo magistério e concernente a uma reflexão filosófica
sobre a sociedade, vista como implicitamente
vinculada à reflexão propriamente revelada. É uma
coisa que se expressa melhor com o termo de teologia
do que com o de doutrina da Igreja. O termo de
libertação, de tradição bíblica e da mesma natureza
que o de redenção, indica melhor a densidade
teológica da reflexão e, ao mesmo tempo, seu caráter
prático.
Os temas novos que enfrenta tal reflexão são os
temas das relações entre o mundo desenvolvido e o
mundo subdesenvolvido. Surgem como temas centrais
naquela que pode ser considerada a primeira encíclica
da teologia da libertação, a Populorum progressio de
Paulo VI. O lugar histórico onde esta teologia se situa é
a América Latina. Até isso mostra as dimensões da
mudança. A doutrina social da Igreja teve por
epicentro a questão operária; a teologia da libertação
tem como central o tema do imperialismo e do
subdesenvolvimento. É devido a tal diferença de forma,
de âmbito e de planos que a preocupação eclesial pelo
político não pode, depois do Concilio Vaticano II,
assentar nas mesmas bases do primeiro.
BIBLIOGRAFIA. A. ACERBI. La chiesa nel tempo. Vita e
Pensiero. Milano 1979; G. BAU. That they may be one.
A study on papal doctrine Leon XIII. Pius XII. London
1958; G. JARLOT. Doctrine ponitificale et histoire,
Gregoriana, Roma 1964-1973. vol. 2: A. F. UTZ e M.
BOEGI.IN, Éthique sociale, Éditions Universitaires.
Fribourg 1960-1965, vol. 5; Id.. La doctrine sociale de
l'Église à travers les siècles. Fond. Internaz Himanum.
Roma. Paris 1970. vol. 5.
[GIANNI BAGET-BOZZO]
Peronismo.
I. DEFINIÇÃO. — Este termo designa o movimento
político criado por Juan D. Perón, quando foi
presidente da república argentina (1946-1955). Para
diferenciar o seu movimento de um partido político, o
próprio Perón destacou sempre o caráter heterogêneo
do Peronismo, que era constituído não só por um
partido político com duas ramificações, masculina e
feminina, mas também por organizações sindicais e
um aglomerado de forças diversas, estudantis,
esportivas, etc., que confluíam ao "movimento", ao
qual incumbia representar a totalidade "dos interesses
nacionais". A este movimento se deu também o nome
de "justicialismo".
923
A palavra de ordem lançada pelo Peronismo era: a)
"justiça social", baseada não na luta de classes (Perón
acentuou sempre o caráter interclassista do seu
movimento), mas na melhoria do nível de vida dos
trabalhadores; b) "independência econômica" do país
diante dos monopólios estrangeiros; c) "terceira
posição" no âmbito internacional, entendida como uma
atitude neutralista em relação aos dois grandes blocos
que, durante os anos do seu Governo, se defrontavam
na guerra fria.
II. PERONISMO, FASCISMO, NASSERISMO. —
Considerado não já como movimento, mas como tipo
de regime político, o Peronismo foi sucessivamente
comparado ao fascismo, ao nasserismo, ao
bonapartismo, etc. Pelo que concerne aos resultados
obtidos, foi visto depois como "revolução nacional"
por seus partidários e como "revolução democráticoburguesa sem sucesso" ou como processo sincréticofascista por outros. Com os três primeiros modelos
indicados, o Peronismo tem em comum um elemento
fundamental: a presença de um líder carismático. Mas
são também claros os elementos discordantes.
A sua comparação com o fascismo foi peculiaridade
da oposição liberal ao regime. Perón, ex-adido militar
na Itália durante a Segunda Guerra Mundial,
pertencera a uma loja militar simpatizante do Eixo (o
"Grupo de oficiales unidos" — GOU), e, durante o seu
Governo, a Argentina tornou-se o refúgio de muitos
chefes nazistas e fascistas. Contribuiu também para
reforçar a imagem fascista do Peronismo o círculo de
intelectuais de extrema direita que rodearam Perón,
sobretudo nos primeiros anos do seu Governo. Porém,
diversamente do fascismo, o Peronismo não se baseou
na mobilização da pequena burguesia, mas na dos
setores operários e dos camponeses que chegavam aos
centros urbanos para se inserirem no processo de
industrialização. Embora este sindicalismo operário
tenha sido organizado do alto, com a eliminação dos
dirigentes socialistas ou anárquicos incapazes de se
associar e mediante a criação de uma espécie de
sindicalismo de Estado, foram sem dúvida os
operários a fonte principal de apoio do regime. Foi
precisamente durante o decênio peronista que ocorreu
na Argentina a inserção das massas no processo
político, mesmo que o sufrágio universal masculino
existisse já desde 1912. Por outro lado, o
corporativismo nunca teve um grande desenvolvimento,
ainda que se desenvolvessem esforços nesse sentido.
Finalmente, o partido peronista teve sempre um papel
predominante, mas nunca o de partido único.
A identificação com o nasserismo provém, ao
invés, da suposta origem militar de ambos os
924
PERONISMO
regimes. Contudo, embora Perón tenha tomado parte
no golpe militar que em 1943 derrubou o regime civil,
que por mais de uma década conseguira manter-se no
poder por meio da fraude eleitoral, sua elevação à
presidência deu-se, não por imposição das forças
armadas, mas graças a eleições constitucionais, em
competição regular com as demais forças políticas do
país. O Peronismo manteve sempre este aspecto legal,
mesmo que, em virtude de uma rígida censura da
imprensa, da supressão de várias publicações e da
perseguição aos líderes da oposição, as ulteriores
eleições não fossem já tão incontestáveis como as que
o levaram ao poder. É igualmente verdadeiro que o
Peronismo conservou seu peso eleitoral mesmo
depois da queda de Perón e, nas ocasiões em que lhe
foi possível concorrer, nunca obteve menos de um terço
dos sufrágios do eleitorado argentino. Por isso,
embora o exército (mais que a aeronáutica e a
marinha) tenha apoiado Perón durante boa parte do
seu Governo, ele não chegou ao poder como Nasser,
mediante um golpe militar, O exército teve depois um
papel mais de oposição que de direta co-gestão do
poder, Mas é característica comum de ambos os
regimes a perseguição da esquerda tradicional,
sobretudo do partido comunista, posta em prática
tanto pelo Peronismo como pelo nasserismo.
III. A POLÍTICA DO PERONISMO. — Se a caracterização
teórica do Peronismo já foi difícil para a literatura por
causa das peculiaridades deste regime, a dificuldade
torna-se ainda maior se se consideram as claras
diferenças existentes entre as suas primeiras
realizações e as últimas. As fontes ideológicas gerais
da sua caracterização hão de ser buscadas na teoria da
"nação em armas", concebida pelos teóricos do
militarismo alemão da segunda metade do século
XIX, traduzida pelo Peronismo na doutrina da "defesa
nacional". Seus elementos fundamentais eram: a) o
impulso ao processo de industrialização — iniciado na
Argentina antes do Peronismo — para que as forças
armadas pudessem contar com os meios necessários ao
seu armamento, sem dependerem do estrangeiro; b)
uma política de salários mais altos para os setores
operários, como meio de "abolir a luta de classes" e de
reforçar assim a frente interna. Era função do Estado
servir de árbitro entre o capital e o trabalho. Esta
política distributiva foi posta em prática nos primeiros
anos do Peronismo e favorecida pelo extraordinário
volume de exportações de carne e cereais do imediato
pós-guerra. Para tornar viável tal política, as
exportações foram subordinadas a um órgão estatal
centralizador, para que, ao mesmo tempo, seu produto
pudesse ser orientado ao investimento industrial. Mas,
no que se refere
à industrialização, só se alcançaram bons resultados
na indústria média; na indústria pesada não se operou
um verdadeiro desenvolvimento, uma vez que a maior
parte daquelas reservas foi usada, tanto na
concretização da referida política distributiva, quanto
numa ingente obra de propaganda destinada a
consolidar a popularidade do regime.
A situação mudou fundamentalmente nos últimos
anos, quando o agravamento da conjuntura econômica
obrigou o Peronismo ao lançamento de uma
campanha de "produtividade" nas fábricas que agitou
profundamente os ambientes operários e provocou
diversas tentativas reprimidas de greve. A
redistribuição da renda agrária, que teve lugar no
primeiro Governo de Perón mas não no segundo,
quando ele foi reeleito graças à modificação da
Constituição, não foi acompanhada da necessária
reforma, o que permitiu aos proprietários de terras
imporem-se de novo logo após a queda do Peronismo.
Todos estes elementos assinalam as etapas da crise que
derrubaria o Peronismo em 1955, crise que foi
agravada pelo início de negociações visando à
exploração de jazidas petrolíferas por parte de
empresas estrangeiras.
A Igreja (que não recebera com agrado as
tentativas de beatificação da esposa, Eva Perón, morta
em 1952), após haver perdido a confiança em Perón
como "homem de ordem", começou a tratar da criação
de um novo partido de orientação democrático-cristã.
Perón reagiu com a introdução do divórcio, pondo
assim fim ao idílio com a hierarquia local da Igreja
católica que tinha caracterizado o seu Governo.
Tudo isto debilitou as bases de apoio do regime e
abriu caminho às tentativas da direita econômica para
o derrubar. Fracassada a tentativa de um golpe de
Estado levada a efeito principalmente pela marinha,
Perón ameaçou com a radicalização do movimento e
intimidou os opositores, lançando a idéia da criação
das milícias operárias. Três semanas depois, em
setembro de 1955, foi derrubado por um golpe militar.
Com a queda do regime e o exílio do seu chefe, o
movimento sindical converteu-se no principal
sustentáculo do Peronismo, já que os elementos
peronistas foram excluídos das forças armadas. As
classes médias que tinham apoiado o movimento,
trataram de se inserir no novo sistema, já por meio dos
antigos partidos políticos, já mediante a criação de
sucessivos partidos "neo-peronistas". Esta iniciativa foi
apoiada em certos casos até por muitos chefes
sindicais. Com as freqüentes polêmicas internas,
acabou por produzir-se no Peronismo um certo
processo de polarização entre a direita, e a esquerda do
movimento. Do exílio, Perón manteve o seu controle,
PERSONALISMO
apoiando pendularmente ora um ora outro dos setores,
ou os dois ao mesmo tempo, por meio de diferentes
porta-vozes.
Esta polarização agravou-se com o surgimento de
grupos guerrilheiros ligados ao Peronismo, mas em
contraste com os setores reformistas e com a direita do
movimento.
Nos dezessete anos que se seguiram à queda do
regime peronista, apenas foram eleitos dois Governos
civis em eleições onde não foi permitida a
participação de listas oficialmente peronistas. Ambos
os Governos foram derrubados por golpes militares
antes do fim do seu mandato: no primeiro caso, 1962,
para impedir que assumissem seus cargos candidatos
peronistas que saíram vencedores em eleições para a
renovação das Câmaras e dos Governos provinciais;
no segundo, 1966, para impedir um eventual sucesso
eleitoral peronista.
Em 1972, a última das ditaduras militares instaladas
desde 1955, na impossibilidade de controlar o
processo econômico-social, abriu o caminho eleitoral
ao Peronismo, no intuito de o integrar numa frente
moderada e de levantar um dique, com a regularização
do processo político, contra a crescente radicalização
em curso, de que a atividade guerrilheira era o
fenômeno mais visível.
Em 1973, Perón retornou à Argentina e, depois de
várias vicissitudes, foi reeleito presidente da república
em setembro do mesmo ano, com o voto de mais de
60% do eleitorado. Mas o seu reconhecido poder
carismático não bastou para superar as profundas
cissuras que se foram abrindo entre as faixas extremas
do seu movimento. Acusado pela esquerda de ser
fraco e de chamar para o Governo figuras
conservadoras, Perón se pronunciou irritado a favor
do establishment sindical e, indiretamente, dos setores
de direita identificados com o Peronismo, tendência
depois aprofundada por sua mulher, Maria Esteia
Martínez, tornada presidenta com a sua morte (1974).
Agravou-se então a luta entre as diversas facções
de inspiração peronista, num clima de generalizada
violência que se insere no panorama mais vasto de
agudos conflitos de que se tornou cenário o país
inteiro. Malgrado o esforço de diversas forças
políticas — entre elas algumas tradicionalmente
opostas ao Peronismo que não escondiam suas críticas
à gestão governativa — para que não se rompesse de
modo algum a continuidade institucional, o Governo
de Maria Esteia Martínez foi deposto em 1976 por um
novo golpe de Estado mi li ta r.
Entre os diversos grupos e facções, ficava ainda
aberta a luta pela herança do Peronismo.
925
BIBLIOGRAFIA. C. BARBÉ. Il peronismo e la crisi
argentina, in "Il Mulino". n." 221. maio-junho 1972: A.
CAFIERO. De la economia social-justicialista al régimen
libiral-capitalista. Eudeba. Buenos Aires 1974:
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1973
[CARLOS BARBE]
Personalismo.
Em sua acepção moderna, Personalismo designa
um movimento surgido na França, por 1930, em torno
da revista "Esprit", sob a guia de Emmanuel Mounier
(1905-1950). Este movimento desenvolve uma
concepção
filosófica,
chamada
Personalismo
comunitário, que insiste no valor absoluto da pessoa e
nos seus vínculos de solidariedade com as outras
pessoas. O humanismo personalista de Mounier se
opõe tanto ao individualismo burguês, objeto de uma
critica intransigente, como ao coletivismo soviético,
não deixando de simpatizar, todavia, com o
marxismo, com o qual travou um intenso diálogo
"espiritual"'.
O personalismo comunitário apresenta um certo
relevo politológico, pois foi viva em seu fundador a
aspiração a transformar a filosofia personalista numa
deontologia ético-política que teria por objeto, embora
só em princípios essenciais, a sociedade econômica, a
sociedade política e o Estado.
As origens culturais do Personalismo comunitário
encontram-se no cristianismo, no existencialismo e na
tradição socialista, marxista e não marxista. Os
autores que mais influenciaram Mounier pertencem à
linha do humanismo
926
PERSONALISMO
espiritualista, místico e religioso, desde Max Scheler
a Martin Buber, Nicolai Berdiaeff, Maurice Blondel e
sobretudo Gabriel Marcel, a cuja descrição das
"estruturas do universo pessoal" ele se refere com
freqüência.
Para Mounier, o universo pessoal não pode ser
definido "objetivamente", porque a pessoa não é um
"objeto". A pessoa "é uma atividade vivida de
autocriação, de comunicação e de adesão, que se
apreende e conhece a si mesma em seu próprio ato,
como movimento de personalização". As "dimensões"
da "experiência da vida pessoal" são a vocação, a
encarnação e a comunhão. A vocação é a tendência da
pessoa a se superar indefinidamente; a encarnação é a
condição corporal e material da pessoa; a comunhão
indica que a pessoa não se realiza senão dando-se à
comunidade, que é superior às pessoas.
O "primado do econômico", defendido pelo
marxismo, é para Mounier a conseqüência de uma
desordem histórica cuja responsabilidade remonta,
antes de tudo, ao capitalismo. Contra o capitalismo e
o poder anônimo do dinheiro, Mounier elabora um
quadro de reivindicações substancialmente tirado do
socialismo: abolição da condição proletária,
substituição da economia anárquica, baseada no lucro
e na "fecundidade do dinheiro", por uma economia
organizada dentro das "perspectivas totais da pessoa",
socialização sem estatização dos setores de produção
que
são
causa
de
alienação
econômica,
desenvolvimento da vida sindical e da pessoa
operária. Trata-se, em síntese, da afirmação da
primazia do trabalho sobre o capital, do serviço social
sobre o lucro, da responsabilidade pessoal e orgânica
sobre os aparelhos anônimos e os mecanismos.
É na sociologia político-jurídica de G. Gurvitch e
no pluralismo democrático que se inspiram as páginas
que Mounier dedica à tentativa de bosquejar uma
"teoria personalista do poder". O direito é a garantia
institucional das pessoas contra o abuso do poder,
que, se não controlado, tenderá naturalmente à
exorbitância. É necessário, por isso, um "estatuto
público da pessoa" e uma limitação constitucional dos
poderes do Estado: equilíbrio entre o poder central e
os poderes locais, organização dos instrumentos de
recurso legal dos cidadãos contra o Estado, habeas
corpus, limitação dos poderes de polícia,
independência do poder judiciário.
A soberania popular não pode se basear na mera
autoridade do número: a maioria é tão arbitrária
quanto o arbítrio individual. A soberania não pode ser
senão a soberania do direito, de uma ordem jurídica
racionalmente organizada.
mediando entre liberdade e organização, entre
espontaneidade social e poder. Mas é a pressão direta
dos cidadãos sobre as estruturas do poder organizado
que produz o "direito", muito mais que as iniciativas
dos juristas e a boa vontade dos detentores do poder.
Os partidos modernos perderam a sua função
original de agregação e de educação política e tendem
a transformar-se em mecanismos de despersonalização e
de esclerose ideológica. Um estatuto público dos
partidos, conquanto insuficiente, poderia ser útil na
contenção desta tendência involutiva.
Aceitando a crítica marxista do Estado
representativo, Mounier propõe uma reorganização
completa da democracia política, baseada numa efetiva
democracia econômica. Mais que na extinção do
Estado, preconizada pelo marxismo, o Personalismo
confia num "Estado pluralista", ou melhor, já que o
Estado não pode abdicar da sua unidade, num "Estado
organizado ao serviço de uma sociedade pluralista".
Entre os fins da década de 40 e princípios da de 50,
o Personalismo comunitário exerceu uma certa
influência política na Europa. Foi o "estatuto público
da pessoa", em particular, apresentado por "Esprit"
em 1939 e feito objeto, em 1944-1945, de um projeto
de declaração, que influiu na Constituição francesa de
1946. O personalismo de Mounier também inspirou na
Itália algumas das formulações constitucionais, graças
à participação nos trabalhos da Constituinte de
personalidades católicas como Giorgio La Pira e
Giuseppe Dossetti.
Menos importância parece ter hoje a elaboração
propriamente filosófica do personalismo comunitário.
A inspiração oratória encobre aparentemente, com
excessiva freqüência, nas páginas elegantes de
Mounier, a generalidade dos assuntos e a incerteza
metodológica. Parece sobretudo insuficiente a própria
conceituação da idéia de pessoa, ecleticamente tensa
entre as solicitações opostas do platonismo
espiritualista e do realismo, do apriorismo religioso e
da antimetafísica. Pensamento não sistemático, o
Personalismo expressa sobretudo uma sincera e
apaixonada necessidade de renovação da cultura
européia entre as duas guerras e, particularmente, da
espiritualidade cristã, que Mounier crê contaminada
por uma indébita solidariedade com a ética e os
interesses do mundo burguês.
O próprio pensamento político de Mounier, não
obstante a nobreza dos propósitos e o talento crítico,
parece antes uma brilhante combinação de elementos
extraídos de tradições diversas do que uma proposta
teórica consistente e original.
PLEBISCITO
BIBLIOGRAFIA.
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LACROIX.
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MOIX La pensée d'Emmnuel Mounier, Editions du
Seuil. Paris 1960; t. MOUNIER. Rivoluzione
personalista e comunitaria (1935). Comunità, Milano
1955; Id., Dalla proprietà capitalista alla proprietà
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service du personnalisme. Montaigne, Paris 1936; Id.,
Il personalismo (1949). Garzanti. Milano 1953: A.
RIGOBELLO, Il contributo filosofico di E. Mounier,
Milano 1955.
[DANILO ZOLO]
Plebiscito.
A noção de Plebiscito é controversa. Que se trata de
um pronunciamento popular, é coisa fora de discussão.
Comprovam-no, quer a origem histórica do termo, que
designava, na antiga Roma, uma deliberação do povo
ou, mais exatamente, da plebe convocada pelo
tribuno, quer o uso que dele se faz habitualmente para
designar as votações que, após a Revolução Francesa
e a difusão das ideologias fundadas na soberania
popular, se realizaram na Europa e na própria Itália,
sobre assuntos de importância constitucional.
Pensemos, por exemplo, nos Plebiscitos sobre
anexações territoriais que se sucederam durante o
Ressurgimento e a formação do Estado italiano. O
plebiscito é, pois, uma votação popular sobre assuntos
de relevância constitucional, sendo, por isso, um
instrumento de democracia direta, se bem que, como
todos os dispositivos deste tipo, possa ser
instrumentalmente usado por correntes autoritárias ou
totalitárias para legitimar o seu poder autocrático. Ora,
tal definição poderá parecer parcial e incompleta, já
que não permite estabelecer uma clara distinção entre
Plebiscito e um instituto análogo, o REFERENDUM (V.),
também consistente num pronunciamento popular
sobre assuntos de importância constitucional. Mas
existe realmente uma diferença conceptual rigorosa
entre ambos?
Os estudiosos defendem, cm geral, que existe uma
diferença. Mas as definições que dão de Plebiscito e
que o deveriam distinguir do referendum, não se
coadunam com o uso da linguagem apresentado no
curso da história.
Assim, há quem defenda que existe Plebiscito,
quando o povo delibera sobre um assunto sem ato
prévio dos órgãos estatais, cuja presença
caracterizaria o referendum. Mas tal definição é
contestada pela existência de Plebiscitos,
927
realizados para ratificar atos estatais, como, por
exemplo, a aprovação da constituição de 22 de
brumário do ano VIII, que abriria caminho ao golpe
de Estado de Napoleão I, ou então a aprovação da
incorporação, já efetuada, das várias regiões no reino
da Itália, ao passo que há também referenduns, como,
por exemplo, o de 2 de junho de 1946 na Itália, que
não foram precedidos por atos estatais. Dizem outros,
e é uma opinião difusa na Itália, que existe Plebiscito,
quando o povo se pronuncia sobre determinados fatos
ou acontecimentos (preposição de pessoas para cargos,
anexações territoriais, escolha de formas de Governo) e
não sobre atos normativos, para os quais existiria o
referendum. Mas esta definição também não se
harmoniza com a prática histórica, se se tiver em conta
o já citado Plebiscito que aprovou a constituição (ato
normativo) de 22 de brumário do ano VIII. Há ainda
outros que apresentam o Plebiscito como escolha de
um homem, vendo no referendum o voto relativo a um
problema (distinção seguida pelos estudiosos
franceses da ciência política). Estas definições, no
entanto, também contrastam com a existência de
Plebiscitos por motivo de anexações.
Desta rápida resenha de definições propostas pelo
uso histórico é possível tirar algumas conclusões.
Sob o aspecto normativo, poder-se-á apresentar uma
definição de Plebiscito que o distinga do referendum; a
partir daí, qualificar-se-ão ou não como Plebiscitos as
votações populares historicamente verificadas, se, por
suas conotações, entrarem ou não na definição préescolhida. Mas, sob o aspecto descritivo, é de registrar
a falta de uma definição unívoca de Plebiscito que o
diferencie do referendum. Os dois termos são, a rigor,
sinônimos. Apenas pode-se observar uma certa
diferença histórica no uso de um ou de outro termo.
Assim, em primeiro lugar, o termo Plebiscito é usado
para designar eventos excepcionais, normalmente à
margem das previsões constitucionais, situações em
que os textos constitucionais aludem mais
freqüentemente ao referendum. Neste contexto,
poderão encontrar, não uma ratificação, como vimos,
mas uma explicação, certas definições apresentadas,
porquanto se pode considerar que, dada a sua normal
excepcionalidade, se usa mais freqüentemente o termo
Plebiscito para indicar pronunciamentos populares
não precedidos por atos estatais, máxime sobre fatos
ou eventos (não atos normativos) que, por sua
natureza excepcional, não contam com uma disciplina
constitucional.
[GLADIO GEMMA]
928
PLURALISMO
Pluralismo.
I. O QUE É O PLURALISMO. — Na linguagen política
chama-se assim a concepção que propõe como modelo
a sociedade composta de vários grupos ou centros de
poder, mesmo que em conflito entre si, aos quais é
atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até
o ponto de o eliminar, o centro do poder dominante,
historicamente identificado com o Estado. Como tal, o
Pluralismo é uma das correntes do pensamento político
que sempre se opuseram e continuam a opor-se à
tendência de concentração e unificação do poder,
própria da formação do Estado moderno. Como
proposta de remédio contra o poder exorbitante do
Estado, o Pluralismo se distingue da teoria da
separação dos poderes, que propõe a divisão do poder
estatal, não em sentido horizontal, mas em sentido
vertical. Distingue-se igualmente da teoria do
liberalismo clássico que propõe a limitação da
onipotência do Estado pela subtração à sua ingerência
de algumas esferas de atividade (religiosa, econômica
e social, em geral), onde os indivíduos possam
desenvolver livremente sua própria personalidade.
Distingue-se, finalmente, da teoria democrática que vê
o remédio na participação mais ampla possível dos
cidadãos nas decisões coletivas. Distingue-se de tais
teorias, mas não se lhes opõe: as propostas das
doutrinas pluralistas são perfeitamente compatíveis, já
com as propostas da doutrina constitucionalista, uma vez
que a divisão horizontal do poder não obsta mas integra
a divisão vertical, já com as da doutrina liberal, visto a
limitação da ingerência do poder estatal constituir, de
per si, condição de crescimento e desenvolvimento dos
grupos de poder diversos do Estado, já com as da
doutrina democrática, pois a multiplicação das
associações livres pode constituir um estímulo e uma
contribuição para o alargamento da participação
política. Todas elas são compatíveis, porquanto visam
ao mesmo alvo comum: o Estado como único centro de
poder. O Pluralismo impugna-lhe a tendência à
concentração, o constitucionalismo a indivisibilidade, o
liberalismo o caráter absoluto, a democracia a
concepção descendente e não ascendente do poder. É
freqüente os teóricos do Pluralismo considerarem como
sistema antitético o totalitarismo. Mas o sistema
totalitário de poder é, ao mesmo tempo, também
anticonstitucionalista, por não reconhecer a separação
dos poderes, antiliberal, por não reconhecer nenhuma
das formas tradicionais de liberdade da ingerência do
Estado, e antidemocrático, porquanto degrada o povo
reduzindo-o a massa inerte e aclamante. Por
conseqüência, a par de
um Estado constitucional, liberal, democrático, pode
dar-se um Estado pluralista, assim definido: "O
Estado pluralista é simplesmente um Estado onde não
existe uma fonte única de autoridade que seja
competente em tudo e absolutamente abrangente, isto
é, a soberania, onde não existe um sistema unificado
de direito, nem um órgão central de administração,
nem uma vontade política geral. Pelo contrário, existe
ali a multiplicidade na essência e nas manifestações; é
um Estado divisível e dividido em partes" (Kung
Chuan Hsiao, p. 8).
O que distingue o Pluralismo das restantes doutrinas
antiestatalistas é que ele se afirma polemicamente
contra toda a forma de concepção individualista da
sociedade e do Estado, isto é, contra toda a concepção
que contraponha o indivíduo singular ao Estado,
porquanto considera o estatalismo e o individualismo
como duas faces da mesma medalha, isto é, como duas
concepções que, embora de dois pontos de vista
diversos, tendem a marginalizar ou até mesmo a
eliminar as formações sociais que ocupam o espaço
intermédio entre os dois pólos extremos do indivíduo e
do Estado. A luta que o Pluralismo trava tem sempre
duas frentes: uma contra a concentração de todo o
poder no Estado, outra contra o atomismo. É uma luta
travada em nome da concepção de uma sociedade
articulada em grupos de poder que se situem, ao
mesmo tempo, abaixo do Estado e acima dos
indivíduos, e, como tais, constituam uma garantia do
indivíduo contra o poder excessivo do Estado, por um
lado, e, por outro, uma garantia do Estado contra a
fragmentação individualista.
II. DOUTRINA DOS CORPOS INTERMÉDIOS. — Uma
das fontes históricas do Pluralismo moderno é a teoria
dos "corpos intermédios", que teve em Montesquieu
um dos seus mais autorizados defensores. O autor de
Esprit des lois vê na presença de "ordens intermédias"
o caráter distintivo do Governo monárquico em
relação ao Governo despótico: "O Governo
monárquico apresenta grande vantagem sobre o
despótico. Já que a própria natureza quer que o
príncipe tenha abaixo de si várias ordens vinculadas à
constituição, o Estado é mais forte, a constituição
mais firme, a pessoa dos governantes mais segura". As
ordens intermédias distinguem também o Governo
monárquico do republicano, cujo princípio é a virtude
dos cidadãos. Isto explica por que a teoria dos corpos
intermédios foi rejeitada conjuntamente pelos fautores
do despotismo iluminado, como os fisiocratas, e por
Rousseau que, fundindo a vontade dos indivíduos na
única, indivisível e infalível vontade geral,
PLURALISMO
condenou as "sociedades parciais", acusando-as de
fazerem prevalecer interesses setoriais sobre o
interesse geral. Conquanto os corpos intermédios, de
que fala Montesquieu (nobreza, clero e antigas ordens
privilegiadas), não tenham nada a ver com as várias
formas associativas de que os fautores do Pluralismo
moderno se fazem propugnadores, a função que lhes
atribui Montesquieu não é diferente, uma vez que
essas ordens constituem uma "contraforça" capaz de
impedir que o príncipe governe a seu talante. Se algo
mais há a observar é que Montesquieu é também um
dos maiores teóricos da divisão dos poderes, isto é, do
Pluralismo vertical, e que, das duas teorias, a do
contrapoder e a dos poderes divididos, a que foi aceita
nas primeiras constituições não foi a primeira mas a
segunda: enquanto que o art. 16 da Declaração dos
direitos do homem e do cidadão de 1789 diz que "toda
a sociedade em que a garantia dos direitos não for
assegurada nem a separação dos poderes determinada,
não tem constituição", a Constituição de 1791, em seu
preâmbulo, depois de haver declarado que ficam
"abolidas irrevogavelmente as instituições que feriam
a liberdade e igualdade dos direitos", proclama que
"não há mais juramentos, nem corporações de
profissões, artes e ofícios". A teoria dos corpos
intermédios contrastava com a teoria jusnaturalista da
sociedade e do Estado, que havia sido construída de
Hobbes a Kant, com base na contraposição simples do
Estado de natureza, onde não há senão indivíduos
isolados, livres porque sem leis, iguais porque sem
superiores, e o estado civil, onde os indivíduos se
transformaram, mediante um pacto de associação e de
união, em povo soberano: segundo a concepção dos
jusnaturalistas, entre os indivíduos singulares e o
Estado não há graus intermédios. Além disso, tais quais
os considerara Montesquieu, os corpos intermédios
eram uma sobrevivência do passado, um obstáculo às
reformas desejadas pela nova classe que, no momento
de fazer valer os próprios direitos, se identificaria com
a nação inteira. Para os propugnadores dos direitos
naturais do indivíduo, a defesa contra o despotismo
não estava nos corpos intermédios: estava quer no
alargamento da liberdade de cada um, quer no
controle do poder estatal deste baixo, ou seja, na
liberdade negativa e na liberdade positiva.
III. VÁRIAS FORMAS DE PLURALISMO. — A
supressão dos corpos intermédios como proteção do
interesse geral contra o predomínio dos interesses
particulares baseava-se em duas hipóteses destinadas
a não se concretizarem: a fusão de todos os indivíduos
que constituíam o corpo da nação na vontade geral e
da vontade geral
929
na expressão genuína do interesse comum, e a lenta
mas inexorável limitação dos poderes do Estado, à
medida que fosse ocorrendo a transição (segundo as
falazes previsões do evolucionismo positivista) das
sociedades militares do passado à irreprimível
sociedade industrial. A permanência, ou antes, o
robustecimento do Estado-aparelho, fizeram com que
a maior parte dos escritores políticos do século XIX,
posteriores à época da Restauração, voltassem os olhos
para a sociedade subordinada ao Estado, aquela que
Hegel chamara "sociedade civil". Diversamente do
que teria acontecido no hipotético estado de natureza,
na sociedade civil, que é a sociedade das relações reais e
concretas, das relações econômicas, os indivíduos não
são solitários. Relacionam-se entre si, associam-se e
desassociam-se, encontram-se e desencontram-se,
entram em conflito. Nesta perspectiva, o fenômeno
associativo é observado e estudado com renovado
interesse e nasce a sociologia. As principais correntes
de pensamento político do século XIX redescobrem,
se bem que de ângulos diversos e com inspirações
ideais opostas, várias formas de associação dos
indivíduos à margem do Estado ou mesmo contra o
Estado, como fator destinado a mediar e a resolver a
longo prazo a antítese entre o indivíduo-só e o Estadotudo. Estas correntes são o liberalismo democrático, o
socialismo libertário e o cristianismo social.
Conquanto as diversas concepções do Pluralismo não
possam ser colocadas no mesmo plano, o relevo dado
às sociedades intermédias, venha de onde vier,
compreende sempre um aspecto oposto ao Estado e
outro ao indivíduo, e implica o esforço por encontrar,
se não uma síntese, pelo menos uma mediação entre os
dois pólos opostos do universo social.
Poder-se-ia distinguir, imitando uma distinção
célebre, um Pluralismo dos antigos e um Pluralismo
dos modernos. Por Pluralismo dos antigos entendo o
que, em face de um Estado centralizador e nivelador,
desenterra o velho Estado de classes ou de ordens que
a Revolução Francesa já deu por morto e que a
sociedade industrial em marcha tornou cada vez mais
anacrônico: tal foi sem dúvida a doutrina dos "corpos
sociais" (a Cenossenschaftslehre) que Gierke exumou
do antigo direito germânico; tal foi também ao
princípio, em sua referência às corporações medievais,
a doutrina das sociedades intermédias do cristianismo
social. Por Pluralismo dos modernos entendo aquele
que, contra o mesmo Estado centralizador e só
aparentemente nivelador, mas na realidade
profundamente inigualitário, utiliza, do modo mais
amplo e desabusado, as conquistadas liberdades civis,
primeiro
930
PLURALISMO
a liberdade de associação, para criar uma defesa do
indivíduo isolado contra a potência e intromissão do
Estado burocrático, ou das classes economicamente'
mais débeis contra o poder econômico que se vai
organizando na grande empresa capitalista. No tocante
aos corpos intermédios, enquanto o associonismo
inspirado no cristianismo social favorece as formas
comunitárias, como a família e a paróquia, e o
associonismo democrático as associações voluntárias,
o Pluralismo socialista leva sumamente em conta, de
forma alternativa, tanto umas como outras. Outra
diferença é a que concerne à concepção geral da
sociedade onde essas três diversas teorias do
Pluralismo se baseiam: é orgânica e hierárquica a do
cristianismo social, funcional a socialista, conflituosa
a democrática.
IV. O PLURALISMO SOCIALISTA. — Se é verdade que
nem todo o socialismo é pluralista (o socialismo
marxista não o é certamente), também é verdade que
uma das correntes historicamente mais importantes do
Pluralismo é de inspiração socialista. Só para
começar, a toda a doutrina socialista está
inseparavelmente ligada a idéia da superioridade do
homem associado ao homem isolado, e a idéia do
homem isolado está sempre vinculada à ideologia
burguesa que parte do homo oeconomicus (o próprio
Marx não deixou nunca de mofar dos "Robinsons").
Na época da Restauração na França, o termo
"association", que, contraposto a "antagonisme", é
fundamental na "doutrina" saint-simoniana, passa por
"socialisme". Os dois grandes princípios para a
reforma da humanidade são, para Fourier, a
associação e a atração. O verdadeiro pai do Pluralismo
socialista é Proudhon, cuja doutrina é uma das
expressões mais radicais do reviramento da tradição
em relação à sociedade e ao Estado, tão característico
de boa parte da filosofia política do século XIX. Em
oposição à sociedade organizada pelo poder do Estado,
Proudhon põe na multiplicidade dos agrupamentos
sociais, unidos entre si por vínculo federativo e onde
os indivíduos participam segundo as próprias aptidões
e necessidades, o segredo da emancipação humana. É
diretamente de Proudhon que deriva a teoria do
Pluralismo jurídico e social de Georges Gurvitch que,
com a afirmação de um "direito social" contraposto ao
"direito do Estado", descobre a própria conclusão da
Declaração dos direitos sociais (1945), verdadeira e
autêntica summula de uma concepção pluralista da
sociedade global. Segundo ela, o homem deve ser
considerado, não como um ser abstrato, mas nas
multiformes atividades sociais em que participa, e, por
conseguinte, como produtor, como consumidor e
como cidadão; a toda a atividade há
de corresponder uma forma de associação funcional
que não pode ser impedida de buscar seus próprios
fins dentro da sociedade nacional, que, como tal, é
suprafuncional e tem por incumbência coordenar e não
dominar.
A corrente mais significativa do socialismo
pluralista é representada por aquele pequeno grupo de
socialistas ingleses, fabianos ou próximos ao
fabianismo, que, com G. D. H. Cole e S. G. Hobson,
deram origem ao movimento chamado de "guildsocialism", um movimento que elaborou uma teoria
completa do "Estado pluralista", definido como
tentativa de combinação da verdade do marxismo com
a do sindicalismo. A nota característica do Estado
pluralista é a descentralização funcional que deveria
integrar a descentralização territorial, típica do Estado
democrático puro e simples. A idéia da
descentralização funcional nasce da constatação de
que a função política exigida ao Estado, mesmo que
seja a função principal em qualquer sociedade, não
pode absorver a função econômica, que deve, por
conseguinte, ser confiada a associações representativas
dos vários interesses econômicos, relativamente
autônomos em relação ao poder central do Estado.
Cole fala da necessidade de um equilíbrio funcional
entre política e economia, e distingue três graus ou
séries de organizações: as que unem os produtores, as
que reúnem os consumidores, as que se orientam a
fins culturais e civis, todas elas compreendidas dentro
da superior organização política do Estado. Do ponto
de vista institucional, é uma conseqüência da divisão
entre descentralização funcional e descentralização
territorial a proposta corrente da representação por
interesses, também chamada funcional. Na mesma
tradição do Pluralismo socialista, mesmo que
fortemente inspirado por autores cristãos (Jacques
Maritain, Emmanuel Mounier), pode ser também
incluído o movimento de comunidades, fundado por
Adriano Olivetti ao findar a Segunda Guerra Mundial.
Suas teses estão expressas no volume L'ordine politico
delle Comunità (1946) (mas veja-se também Società,
stato, comunità, 1952); uma dessas teses é, mais uma
vez, a da representação funcional. De resto, neste
caso, poder-se-ia falar talvez antes de comunitarismo
do que de Pluralismo, dado que o que se acentua é não
tanto a multiplicidade dos centros de poder quanto a
importância do pequeno grupo, da comunidade
precisamente, para a formação moral e integração
social da pessoa humana. Mais que o Estado
centralizador, é o coletivismo o alvo do
comunitarismo, que se serve da centralização estatal
para alcançar seus intentos. O que é comum ao
Pluralismo e ao comunitarismo é a
PLURALISMO
luta contra o individualismo atomizante e o
reconhecimento de que é preciso que o indivíduo
aperfeiçoe a própria personalidade na solidariedade
com o grupo.
V. O PLURALISMO DEMOCRÁTICO. — As célebres
páginas que Tocqueville escreveu sobre a intensa e
fecunda vida associativa dos americanos têm sido
fonte perene de inspiração para a ideologia do
Pluralismo democrático, um dos componentes
essenciais, se bem que hoje duramente contestado, do
"American way of life". "A América — escreveu — é
o único país do mundo onde se tirou o maior proveito
da associação e onde se aplicou este poderoso meio de
ação a maior variedade de situações". Em outro lugar:
"Os americanos de todas as idades, condições e
tendências, se associam constantemente... Ali onde à
frente de uma nova iniciativa encontrais na França o
Governo e na Inglaterra um grande senhor, podeis
estar seguros de que encontrareis nos Estados Unidos
uma associação". Esta observação serviu a
Tocqueville para captar o nexo profundo que existe
entre associação e democracia, ao escrever que "o
habitante dos Estados Unidos aprende desde a
nascença que precisa contar consigo mesmo na luta
contra os males e obstáculos da vida; ele não olha
senão com desconfiança e inquietação a autoridade
social, só recorrendo ao seu poder quando não a pode
dispensar". Embora hoje, sob o nome de "Pluralismo
democrático", entendam vários escritores de ciência
política americana a teoria que se opõe ao elitismo (v.
ELITES, TEORIA DAS), isto é, a teoria que, mesmo
admitindo a existência de elites de poder, sustenta
que, na sociedade americana, existem diversas elites
em concorrência entre si, o sentido predominante e
ideologicamente mais completo de Pluralismo é ainda
o de Tocqueville. Robert Dahl, um dos mais
convencidos teóricos e ideólogos do Pluralismo, no
duplo sentido, depois de haver afirmado que a
constituição americana se inspirou em três princípios,
o da autoridade limitada, o da autoridade equilibrada e
o do "Pluralismo político", definiu assim este último:
"Já que os próprios mecanismos jurídicos e
constitucionais podem ser subvertidos, se alguns
cidadãos
ou
grupos
adquirem
parcelas
desproporcionadas de poder em comparação com os
demais, o poder virtual de um grupo há de ser
controlado (balanced) pelo poder de outro grupo" (p.
40). O texto clássico a que se refere é uma declaração
de Madison na Convenção, onde o pai da Constituição
afirma categoricamente, contra a temida tirania da
maioria, que "o único remédio é ampliar a esfera e,
conseqüentemente, dividir a
931
comunidade em tão grande número de interesses e de
partes que, em primeiro lugar, a maioria não possa ter,
no mesmo momento, um interesse comum separado do
de todos ou da minoria e, em segundo lugar, tendo-o,
não possa estar unida ao buscá-lo". O axioma
fundamental de um sistema pluralista é, segundo
Dahl, o seguinte: "Em vez de um único centro de
poder soberano, é necessário que haja muitos centros,
dos quais nenhum possa ser inteiramente soberano.
Embora na perspectiva do Pluralismo americano só o
povo seja o legítimo soberano, ele não deve ser nunca
um soberano absoluto... A teoria e a prática do
Pluralismo americano tendem a afirmar que a
existência da multiplicidade de centros de poder,
nenhum deles totalmente soberano, ajudará a refrear o
poder, a garantir o consenso de todos e a resolver
pacificamente os conflitos" (p. 24).
Entre as correntes da ciência política americana, a
maior contribuição para a análise teórica e empírica,
bem como para a apologia da sociedade pluralista é a
que se faz remontar à obra de Arthur F. Bentley, The
process of government (1908), retomada e continuada
por David B. Truman, The governmental process
(1953). Um dos conceitos fundamentais da análise de
Bentley é o conceito de "grupo", entendido como
conjunto de indivíduos que desenvolvem uma
atividade comum. Partindo do conceito de grupo,
Bentley e os seus continuadores dão particular relevo,
na análise da sociedade, a sociedade americana da
primeira metade do século, ao fato de que os
indivíduos se associam em grupos para satisfazer seus
interesses (podendo, por isso, cada um pertencer e
geralmente pertence a grupos diversos) e de que os
grupos assim constituídos, sobrepondo-se, permitem
que os vários interesses se manifestem e se
contraponham, sem acabar, no entanto, em conflitos
destruidores da sociedade em seu conjunto, desde que
acima dos grupos parciais exista e se mantenha um
grupo universal em potência cujo interesse seja o de
não permitir que se alterem as regras do jogo. Como
entidade social, o grupo se contrapõe à classe, no
sentido marxista da palavra: enquanto o indivíduo
singular pode pertencer a diversos grupos, o mesmo
indivíduo não pode pertencer senão a uma classe, com
a conseqüência de que uma sociedade dividida em
grupos tenderá a resolver os conflitos mediante ajustes
entre os próprios grupos, e uma sociedade dividida em
classes não poderá refrear o antagonismo frontal de
uma classe contra outra senão recorrendo à coerção.
Contraposto assim o grupo à classe, o Pluralismo
democrático se apresenta como a antítese não só de
uma concepção monística do
932
PLURALISMO
Estado, como também de uma concepção dualista ou
dicotômica da sociedade.
VI. O PLURALISMO CRISTÃO-SOCIAL. — Enquanto a
concepção social do Pluralismo democrático é
conflituosa, a do Pluralismo cristão-social é
organicista, pois vê os vários grupos sociais disporemse em ordem hierárquica, recebendo cada um a
própria dignidade da função que desenvolve, segundo
a própria ordem e grau, dentro do todo. O Código
social de Malines (1927), depois de ter afirmado que
"a vida humana se desdobra num certo número de
sociedades", enumera as seguintes: a sociedade
familiar, a sociedade civil ou política, a Igreja, as
sociedades profissionais, as sociedades que buscam
um fim particular, a sociedade internacional. A
multiplicidade das sociedades, naturais ou não
naturais, em que o indivíduo toma parte, é aduzida
como uma prova contra duas falsas doutrinas entre si
opostas, a do individualismo, segundo a qual o
indivíduo basta a si mesmo, e a do coletivismo que, ao
invés, deifica o Estado ou a sociedade: "Mediando
estes extremos, o pensamento cristão segura
firmemente as duas extremidades da cadeia, ou seja, a
eminente dignidade da pessoa humana e a necessidade
da sociedade para o seu desenvolvimento integral".
Para citar um documento autorizado e recente, lemos
na Constituição Pastoral "A Igreja no Mundo
Contemporâneo" (Gaudium et spes) do Concilio
Vaticano II: "Rcconheçam-se, respeitem-se e
promovam-se os direitos das pessoas, famílias e
grupos, assim como o seu exercício, juntamente com os
deveres aos quais estão obrigados todos os cidadãos. .
Acautelem-se os governantes de entravar os grupos
familiares, sociais ou culturais, as corporações ou
organismos intermédios, e não os privem da sua ação
legítima e eficaz, antes procurem promovê-la, de boa
vontade e regularmente" (§ 75).
É sobradamente conhecida a influência que teve a
concepção pluralista do cristianismo social, através de
alguns dos membros da Assembléia Constituinte
(Giorgio La Pira, Aldo Moro, Giuseppe Dossetti), na
formulação do art. 2.º da Constituição da república
italiana, onde se pede que o Estado reconheça os
direitos invioláveis do homem, não só como indivíduo
singular, mas também "nas organizações sociais onde
se desenvolve a sua personalidade" (v. FORMAÇÃO
SOCIAL). É de notar que o próprio La Pira, nas
discussões da Assembléia Constituinte, para esclarecer
seu pensamento, usou justamente a expressão
"sociedade pluralista", afirmando: "O ideal a propor
numa sociedade pluralista é precisamente este ideal
orgânico, pelo qual todo o homem possua
uma função e um lugar na organização social, função
e lugar que lhe hão de ser determinados pelo chamado
Estado profissional, que define a posição de cada um
no corpo social". Atrás dos constituintes, que usavam
esta linguagem, estava a tradição do movimento
político dos católicos, nascido na Itália em fins do
século passado. Os dois escritores mais populares do
movimento, Romolo Murri e Luigi Sturzo,
apresentaram sempre a sua doutrina social como uma
defesa contra o individualismo de origem iluminista e
contra o estatismo de origem romântica (o "Estado
panteísta" de Sturzo). Num discurso programático de
1899, Propositi di parte cattolica, escrevia Murri:
"Em lugar do liberalismo decadente e em oposição ao
socialismo,... ressurge mais vivo, com o despertar
católico, o verdadeiro espírito das liberdades
populares, fundadas no direito social cristão e postas
como base do nosso programa democrático,
juntamente com o princípio do reordenamento social
por profissões e da participação efetiva do povo
organizado na vida pública". Num dos seus primeiros
escritos, L'organizzazione di classe e le unioni
professionali (1901), Sturzo não será diferente. Ele
fala de uma "concepção orgânica da sociedade" contra
a "concepção individualista dos princípios de 89"; na
conferência La lotta sociale legge di progresso (1903),
vê os conflitos sociais acabarem sempre em novos
equilíbrios, para os quais concorrem os vários
"organismos" que formam a sociedade global e
"constituem, nas suas relações concêntricas e
harmônicas, nas suas finalidades naturais e
coordenadas, o todo social". No "Apelo aos livres e
aos fortes", que é o manifesto do Partido Popular
Italiano (18 de janeiro de 1919) pede um "Estado
verdadeiramente popular" que "respeite os núcleos e os
organismos naturais, a família, as classes, as
comunas".
VII. O
PLURALISMO
COMO
TEORIA
E
COMO
— Como quase todos os "ismos" da
linguagem política, também o Pluralismo se apresenta
sob dois aspectos: como teoria, isto é, como tentativa
de explicação global de um conjunto de fenômenos, e
como ideologia, isto é, como proposta de ação prática,
não importa se com propósitos conservadores,
reformadores ou revolucionários. Enquanto o
Pluralismo socialista e o cristão-social tiveram uma
função predominantemente ideológica, o Pluralismo
democrático teve também, no que respeita
especialmente à sociedade americana de onde nasceu
e à qual tem sido com particular insistência aplicado,
uma função teórica; tanto é assim que foi considerada
pela corrente de ciência política, pelo menos até há
bem poucos anos, academicamente
IDEOLOGIA.
PODER
mais influente, como a interpretação sociológica mais
correta da natureza específica da sociedade americana.
As críticas dirigidas ao Pluralismo dizem respeito
tanto ao seu valor teórico como ao seu valor
ideológico. Sob o aspecto teórico, os pluralistas são
acusados de ter apresentado uma imagem distorcida da
realidade social (entenda-se da sociedade americana).
Um dos críticos recentes das teorias pluralistas
escreveu sentencialmente: "A teoria do Pluralismo
faliu... A tecnologia coletivizou o que a geografia uma
vez separara" (Kariel, The promise of politics, p. 49).
Entre as obras de interpretação da sociedade americana
que obtiveram maior sucesso nestes anos, hão de ser
incluídas algumas que tiveram por principal objetivo a
interpretação pluralista, como The power elite de C.
Wright Mills (1956), The decline of American
pluralism de Henry Kariel (1961), One-dimensional
man de Herbert Marcuse (1964). As teorias pluralistas
são acusadas de continuar a julgar verdadeira uma
imagem da sociedade americana que, na melhor das
hipóteses, corresponde a uma fase superada do
desenvolvimento econômico, social e político dos
Estados Unidos, e, portanto, de continuar a
apresentarem-se como teorias científicas, quando já só
mantêm uma função meramente ideológica, que é a de
fazer crer, aos controlados, que ainda controlam, aos
esbulhados, que ainda possuem pelo menos uma parte
do poder, ao homem unidimensional que ele tem,
participando de diversos grupos igualmente influentes,
várias dimensões. Quanto à crítica da ideologia
pluralista, isto é, ao Pluralismo como proposta de
solução do problema tradicional dos limites do poder,
podemos fazê-la partindo de duas vertentes diversas:
no associonismo pluralista tanto se pode considerar
seu aspecto contrário ao individualismo, como o que
se opõe ao estatalismo. Do ponto de vista do
indivíduo, o Pluralismo é acusado de não levar em
conta que todo o grupo social tem uma tendência
natural ao enrijecimento das estruturas, à medida que
cresce o número dos seus membros e se estende o raio
das suas atividades. Uma sociedade aparentemente
pluralista é, na realidade, policrática, isto é, tem vários
centros de poder, cada um dos quais fará valer as
próprias
pretensões
sobre
seus
membros;
conseqüentemente, quando o indivíduo crê ter-se
libertado para sempre do Estado-patrão, torna-se servo
de muitos patrões. Do ponto de vista do Estado, as'
sociedades parciais, pelo menos desde que Rousseau
sentenciou sua condenação, são consideradas
culpáveis de impedir a formação da vontade geral e,
por isso, de levar, quando não coibidas, à disgregação
da unidade estatal. O .fenômeno que, quando julgado
positivamente.
933
é chamado Pluralismo, julgado negativamente, é
apontado como um novo feudalismo, isto é, como
falta de um verdadeiro centro de poder, como
prevalência dos interesses setoriais ou corporativos
sobre o interesse geral, das tendências centrífugas
sobre as centrípetas: não como Pluralismo, mas como
particularismo.
BIBLIOGRAFIA. AUT. VÁR. The bias of pluralism. ao
cuidado de W. E. CONNOLLY, Atherton Press. New
York 1969; AUT. VÁR., Legal personality and political
pluralism. ao cuidado de L. C. VERB. Melbourne
University Press. Melbourne 1958; R. A. DAHL,
Pluralist democracy in the United States. Conflict and
consent. Rand McNally. Chicago 1967; R. EISFELD,
Il pluralismo tra liberalismo e socialismo (1972). Il
Mulino. Bologna 1976; W. KORNHAUSER. The polities
of mass society, Free Press. New York 1959; KING
CHUAN HSIAO. Political pluralism. A study in
contemporary political theory, Kegan Paul. London
1927; A. S. MCFARLAND. Power and leadership in
pluralist systems. Stanford Univ. Press. Stanford 1969;
R A. NISBET. La comunità e lo Stato (1953), Edizioni
di Comunità. Milano 1957 Para a discussão do
pluralismo na Itália e fundamental P. RESCIGNO,
Persona e comunità. Il Mulino. Bologna 1966.
[NORBERTO BOBBIO]
Poder.
1. DEFINIÇÃO. — Em seu significado mais geral, a
palavra Poder designa a capacidade ou a possibilidade
de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida a
indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a
fenômenos naturais (como na expressão Poder
calorífico, Poder de absorção).
Se o entendermos em sentido especificamente
social, ou seja, na sua relação com a vida do homem
em sociedade, o Poder torna-se mais preciso, e seu
espaço conceptual pode ir desde a capacidade geral de
agir, até à capacidade do homem em determinar o
comportamento do homem: Poder do homem sobre o
homem. O homem é não só o sujeito mas também o
objeto do Poder social. E Poder social a capacidade
que um pai tem para dar ordens a seus filhos ou a
capacidade de um Governo de dar ordens aos
cidadãos. Por outro lado, não é Poder social a
capacidade de controle que o homem tem sobre a
natureza nem a utilização que faz dos recursos
naturais. Naturalmente existem relações significativas
entre o
934
PODER
Poder sobre o homem e o Poder sobre a natureza ou
sobre as coisas inanimadas. Muitas vezes, o primeiro é
condição do segundo e vice-versa. Vamos dar um
exemplo: uma determinada empresa extrai petróleo de
um pedaço do solo terrestre porque tem o Poder de
impedir que outros se apropriem ou usem aquele
mesmo solo. Da mesma forma, um Governo pode obter
concessões de outro Governo, porque tem em seu
Poder certos recursos materiais que se tornam
instrumentos de pressão econômica ou militar.
Todavia, em linha de princípio, o Poder sobre o
homem é sempre distinto do Poder sobre as coisas. E
este último é relevante no estudo do Poder social, na
medida em que pode se converter num recurso para
exercer o Poder sobre o homem.
Por isso não se podem aceitar as definições que,
inserindo-se numa tradição que remonta a Hobbes,
ignoram este caráter relacionai e identificam o Poder
social com a posse de instrumentos aptos à
consecussão de fins almejados. A definição de
Hobbes, tal como se lê no princípio do capítulo décimo
do Leviatã, é a seguinte: "O Poder de um homem...
consiste nos meios de alcançar alguma aparente
vantagem futura". Não é diferente, por exemplo, o que
Gumplowicz afirmou: que a essência do Poder
"consiste na posse dos meios de satisfazer as
necessidades humanas e na possibilidade de dispor
livremente de tais meios". Em definições como estas, o
Poder é entendido como algo que se possui: como um
objeto ou uma substância — observou alguém — que
se guarda num recipiente. Contudo, não existe Poder,
se não existe, ao lado do indivíduo ou grupo que o
exerce, outro indivíduo ou grupo que é induzido a
comportar-se tal como aquele deseja. Sem dúvida,
como acabamos de mostrar, o Poder pode ser exercido
por meio de instrumentos ou de coisas. Se tenho
dinheiro, posso induzir alguém a adotar um certo
comportamento que eu desejo, a troco de recompensa
monetária. Mas, se me encontro só ou se o outro não
está disposto a comportar-se dessa maneira por
nenhuma soma de dinheiro, o meu Poder se desvanece.
Isto demonstra que o meu Poder não reside numa coisa
(no dinheiro, no caso), mas no fato de que existe um
outro e de que este é levado por mim a comportar-se
de acordo com os meus desejos. O Poder social não é
uma coisa ou a sua posse: é uma relação entre pessoas.
É preciso também notar que a expressão acima
empregada, "Poder do homem sobre o homem", se
entende mais exatamente como "Poder de um homem
sobre um outro homem". Com tal especificação se
exclui do nosso campo de pesquisa o Poder que um
homem possa exercer sobre si mesmo. Sempre que,
por exemplo, uma senhora
se imponha uma certa dieta de emagrecimento e, não
obstante os desejos, mantenha seu propósito, podemos
dizer que ela exerce um Poder sobre si mesma. Neste
caso, como em casos análogos, pelo menos se se
considerarem em si mesmos, não se trata de uma
relação de Poder entre pessoas, mas de um exercício
de Poder que começa e termina no âmbito, digamos,
de uma só pessoa; mas o Poder que nos interessa
analisar em relação ao estudo da política é o que uma
pessoa ou grupo tem ou exerce sobre outra pessoa ou
grupo.
Como fenômeno social, o Poder é portanto uma
relação entre os homens, devendo acrescentar-se que se
trata de uma relação triádica. Para definir um certo
Poder, não basta especificar a pessoa ou o grupo que o
detém e a pessoa ou o grupo que a ele está sujeito:
ocorre determinar também a esfera de atividade à qual
o Poder se refere ou a esfera do Poder. A mesma
pessoa ou o mesmo grupo pode ser submetido a vários
tipos de Poder relacionados com diversos campos. O
Poder do médico diz respeito à saúde; o do professor, à
aprendizagem do saber; o empregador influencia o
comportamento dos empregados sobretudo na esfera
econômica e na atividade profissional; e um superior
militar, em tempo de guerra, dá ordens que comportam
o uso da violência e a probabilidade de matar ou
morrer. No âmbito de uma comunidade política, o
Poder de A (que pode ser, por exemplo, um órgão
público ou um determinado grupo de pressão) pode
dizer respeito à política urbanística; o poder de B, à
política exterior em relação a uma certa área
geográfica; o poder de C dirá respeito, enfim, à política
educacional, e assim por diante. A esfera do Poder pode
ser mais ou menos ampla e delimitada mais ou menos
claramente. O Poder que se funda sobre uma
competência especial fica confinado ao âmbito dessa
competência. Mas o Poder político e o Poder paterno
abrangem, normalmente, uma esfera muito ampla. Por
sua vez, a esfera de Poder de uma pessoa que ocupa
um cargo numa organização formal (como é o caso do
presidente ou do tesoureiro de uma associação) é
definido de modo preciso e taxativo, enquanto que a
esfera de Poder de um chefe carismático não é
precisada por antecipação e tende a ser ilimitada.
II. O PODER ATUAL. — Quando, no exercício do
Poder, a capacidade de determinar o comportamento
dos outros é posta em ato, o Poder se transforma,
passando da simples possibilidade à ação. Assim,
podemos distinguir entre o Poder como simples
possibilidade (Poder potencial) e o Poder efetivamente
exercido (Poder em ato ou atual). O Poder em ato
(atual) é uma relação entre comportamentos. Consiste
no comportamento
PODER
do indivíduo A ou do grupo A que procura modificar o
comportamento do indivíduo B ou do grupo B em
quem se concretiza a modificação comportamental
pretendida por A, abrangendo também o nexo
intercorrente entre os dois comportamentos: um exame
mais detalhado do Poder em ato comporta uma análise
destes três aspectos do fenômeno.
Num primeiro sentido se pode dizer que o
comportamento de A visa a modificar a conduta de B:
A exerce Poder quando provoca intencionalmente o
comportamento de B. O requisito da intenção é
amplamente aceito nos escritos de politologia e
sociologia respeitantes ao Poder. Contudo, alguns
autores excluem-no, julgando que se pode falar de
Poder sempre que um dado comportamento provoque
um outro, embora não de maneira intencional. Mas tal
definição do Poder parece demasiado ampla. É correto
afirmar que o pai exerce Poder sobre o filho, quando
lhe dá, com êxito, uma determinada ordem; mas já não
parece tão correto afirmá-lo, quando o filho não
obedece e, em vez disso, se rebela ou abandona a
família em decorrência da ordem paterna. Neste
segundo caso, é ainda verdade que o comportamento
do pai provoca o comportamento do filho;
descreveremos todavia esta relação não como um
exercício de Poder do pai sobre o filho, mas como uma
tentativa malograda de exercer o Poder.
Por outro lado, se pode distinguir uma posição
intermédia que estenda a noção do Poder para além da
modificação intencional do comportamento alheio,
sem por isso se qualificar como Poder qualquer tipo de
causalidade social não intencional. O conceito em que
convém basear este alargamento da noção de Poder é o
conceito de interesse, tomado em sentido subjetivo,
isto é, como estado da mente de quem exerce o Poder.
Diremos então que o comportamento de A, que exerce
o Poder, pode ser associado, mais que à intenção de
determinar o comportamento de B, objeto do Poder, ao
interesse que A tem por tal comportamento. As
relações de imitação, por exemplo, onde falta a
intenção no imitado de se propor como modelo, se
incluem em Poder, se a imitação corresponde ao
interesse do imitado (como em certas relações entre
pai e filho), mas não se incluem, se à imitação não
corresponde o interesse do imitado (como pode
acontecer, quando uma senhora vê que uma amiga
imita o seu modo de vestir).
O comportamento de B, que é sujeito de Poder, é
dotado, no mínimo, de voluntariedade. Mas não se diz
que B esteja consciente de que deverá agir de acordo
com a vontade de A. Por um lado, portanto, trata-se de
um comportamento voluntário. Mas isto não comporta
necessariamente que
935
o comportamento também seja "livre". No caso, por
exemplo, do Poder coercitivo, B tem o comportamento
desejado por A, só para evitar um mal de ameaça:
embora o comportamento não seja livre, B executa-o e
por isso é dotado de um mínimo de voluntariedade. Isto
permite distinguir entre o exercício do Poder
coercitivo e o emprego direto da força ou VIOLÊNCIA
(V.). Neste último caso, A não modifica a conduta de
B, mas modifica diretamente seu estado físico: mata-o,
fere-o, imobiliza-o, aprisiona-o, etc. É sabido que, nas
relações sociais e políticas, se recorre muitas vezes à
força quando não se consegue exercer o Poder. Por
outra parte, para se ter Poder, não é necessário que B
tenha intencionalmente o comportamento pretendido
por A. A pode provocar um determinado
comportamento de B sem manifestá-lo explicitamente;
pode até esconder de B que ele deseja esse
comportamento e sem que B se dê conta de que se está
comportando segundo a vontade de A. Isto pode
verificar-se, por exemplo, em certos casos de
propaganda camuflada. Este tipo de relação, que
habitualmente é conhecido pelo nome de
MANIPULAÇÃO (v.), entra, certamente, no âmbito do
conceito do Poder.
Falemos, enfim, da relação que intermedeia entre o
comportamento de A e o de B. Para que exista Poder, é
necessário que o comportamento do primeiro
determine o comportamento do segundo, o que se pode
exprimir de outra maneira dizendo que o
comportamento de A é causa do comportamento de B.
Deve-se, no entanto, explicar em que sentido é lícito
usar aqui a noção de "causa". Antes de tudo, quando
referida às relações do Poder social, a noção de causa
não envolve em si uma perspectiva de determinismo
mecanicista. As relações entre comportamentos são
relações prováveis, não relações "necessárias". Por
isso, neste contexto, o conceito de causa está
desvinculado do conceito de "necessidade", devendo
ser entendido como "causa provável". Em segundo
lugar, pelo menos em muitos casos, a noção de Poder
social serve para descrever uma determinada relação
que intermedeia entre dois comportamentos
particulares, sem que isso implique que a relação
descrita seja um caso particular de uma lei universal ou
geral. Em muitos casos, dizer que o comportamento a de
A é causa do comportamento b de B não implica que
todas as vezes que A adota um comportamento do tipo
a, este seja seguido de um comportamento do tipo b de
B, ou que sempre que B adote um comportamento do
tipo b, lhe precede um comportamento do tipo a de A.
B é induzido por A, por exemplo, a votar no partido
socialista numa determinada disputa eleitoral; mas, nas
eleições seguintes, B
936
PODER
pode votar no partido liberal, apesar de A tentar leválo, mais uma vez, a votar nos socialistas; ou então B
pode votar de novo no partido socialista, mas sem a
interferência de A nesse sentido. Por conseguinte,
afirmar que, dentro do exercício do Poder, o
comportamento de A é causa do comportamento de B,
é apenas dizer, pelo menos em numerosos tipos de
relação, que a e causa de b naquele caso determinado.
Outras vezes, contudo, um certo uso do Poder pode
constituir um caso particular de uma lei ou de uma
uniformidade geral. Isso se pode dizer, por exemplo, em
determinadas situações, de uma particular relação de
mando e obediência que liga ao "Governo" um
membro da sociedade política, pelo menos num dos
dois sentidos acima referidos: às injunções de tipo a
do Governo é provável, em geral, que se sigam
condutas de obediência de tipo b tanto desse como dos
demais membros da sociedade política.
Com as restrições agora mencionadas, pode-se,
portanto, afirmar que a relação de Poder constitui um
certo tipo de causalidade, particularmente um tipo de
causalidade social. Mantém-se todavia aberta a questão
de como entender, se bem que dentro dos limites
referidos, o conceito de causa. Alguns autores
entendem o nexo causai entre os comportamentos no
sentido de que o comportamento de A é condição
necessária do comportamento de B (o comportamento
de B só ocorre, se ocorrer o comportamento de A).
Outros, considerando demasiado rígida tal
interpretação, entendem o nexo causai no sentido de
que o comportamento de A é condição suficiente do
comportamento de B (se se verifica o comportamento
de A, verifica-se também o de B). Há ainda quem opta
por uma orientação contrária, pensando que se deveria
reformular o conceito de Poder equiparando-o à noção
de condição necessária e suficiente (o comportamento
de B se dá quando e só quando se dá o de A).
Penso, com Oppenheim, que entre estas três noções
de causa convém escolher a de condição suficiente, que
é a que mais se conforma com a perspectiva provável.
Por um lado, um comportamento a que seja condição
necessária, mas não suficiente, de um subseqüente
comportamento b, pode não ser um exercício de
Poder. Por exemplo, a inclusão do meu nome nas
listas eleitorais pelo funcionário comunal para isso
designado é uma condição necessária para que eu vote,
assim como para que eu vote por um certo partido. Mas
certamente não se pode dizer que esse funcionário
exerceu Poder sobre mim e isso, atente-se bem, mesmo
no caso em que ele estivesse interessado na vitória
eleitoral desse partido: eu, na verdade, poderia votar
em outro partido ou abster-me de votar. Por outro
lado, quando um comportamento
a é condição suficiente de um subseqüente
comportamento b, é razoável qualificar tal relação
como exercício de Poder, mesmo que a não seja
condição necessária de b. Com as bombas atômicas de
Hiroshima e Nagasaki, os Estados Unidos exerceram
um indubitável Poder sobre o Japão, no sentido de que
o levaram à rendição (condição suficiente); mas não se
pode afirmar que, sem essas bombas, o Japão não se
teria rendido, pois não é possível excluir
absolutamente que ele não se houvesse decidido à
rendição de modo autônomo ou que não fosse
induzido a isso movido por qualquer outro agente (a
URSS, por exemplo). Concluindo este ponto, se pode,
portanto, afirmar que, na prática do Poder, o
comportamento a é a causa determinante,
pragmaticamente decisiva, do comportamento b; ou
seja, é a sua condição "suficiente", não a sua condição
"necessária", nem, com maior razão, a sua condição
"necessária e suficiente".
Do fato de existir entre os comportamentos um nexo
causai, alguns estudiosos pretendem deduzir também
que a relação do Poder é assimétrica, no sentido de
que se o comportamento de A é causa do
comportamento de B, o comportamento de B não é
causa do comportamento de A. Ora, é verdade que
muitas relações de Poder possuem esta característica,
sendo, por conseguinte, unidirecionais; mas existem
também relações de Poder que se distinguem por um
maior ou menor grau de reciprocidade. Pensemos, por
exemplo, nas relações de Poder que intermedeiam
entre dois partidos durante as negociações para a
formação de um Governo de coalizão. Cada partido
usa de diversos meios para influir no comportamento
do outro e no resultado dos entendimentos; mas é
claro que não pode deixar de fazer certas concessões
(e de suportar, portanto, o Poder do outro partido) para
arrancar também, por sua vez, algumas (e exercer,
conseqüentemente, Poder sobre o outro partido).
III. O PODER POTENCIAL. — O Poder potencial é a
capacidade de determinar o comportamento dos
outros. Enquanto o Poder atual é uma relação entre
comportamentos, o potencial é uma relação entre
atitudes para agir. De uma parte, A tem a possibilidade
de ter um comportamento cujo objetivo é a
modificação do comportamento de B. De outra parte,
se esta possibilidade é levada a ato, é provável que B
tenha o comportamento em que se concretize a
modificação de conduta pretendida por A. Um chefe
militar exerce Poder sobre seus soldados quando
ordena o ataque e seus soldados executam a ordem. E
tem Poder sobre eles se é provável que os soldados
atacariam se o comandante ordenasse. Uma vez que
exercer o Poder
PODER
implica necessariamente ter a possibilidade de exercêlo, o Poder social, em seu sentido mais amplo, é a
capacidade de determinação intencional ou interessada
no comportamento dos outros,
Quando podemos dizer, de verdade, que tal
capacidade existe?
Antes de tudo, é necessário que A tenha à sua
disposição recursos que podem ser empregados para
exercer o Poder. Os recursos deste tipo são numerosos:
riqueza, força, informação, conhecimento, prestígio,
legitimidade, popularidade, amizade, assim como
ligações íntimas com pessoas que têm altas posições
de Poder. Mas não basta. A capacidade de A depende
também da habilidade pessoal de converter em Poder
os recursos à sua disposição. Nem todos os homens
ricos têm a mesma habilidade em empregar recursos
econômicos para exercer Poder. Uma favorita pode
usar a sagacidade com fins de Poder, ao aproveitar seu
íntimo relacionamento com o monarca, levando
vantagem sobre outras que já ocuparam posição
análoga. Esta habilidade pode dizer respeito à
utilização de um determinado recurso ou de vários
recursos. E no caso de A ser um grupo, deve ser
utilizada a coesão e a coordenação do próprio grupo.
Assim, nas relações internacionais, os Poderes
recíprocos de dois Governos podem não ser
proporcionais aos recursos humanos, econômicos e
militares que os dois Governos têm respectivamente à
disposição, porque um dos Governos é mais
habilidoso na utilização de um recurso importante ou
no emprego combinado de vários recursos, ou então
porque um dos dois Governos tem maior grau de
coesão e coordenação mais eficaz.
Por outro lado, o fato de A ser dotado de recursos e
de habilidades máximas não é suficiente para fazer
que A tenha Poder sobre B. A pode ser riquíssimo e
entretanto não ter Poder sobre o paupérrimo B, em
relação a certos comportamentos, se o segundo não
estiver disposto a ter tais comportamentos a troco de
uma compensação. Analogamente, um homem que
dispõe dos mais poderosos meios de violência não tem
Poder sobre um inerme a respeito de um determinado
comportamento, se o segundo prefere morrer a
assumir tal ou tal comportamento. É o caso do mártir
que recusa renegar seu Deus, ou o do conspirador que
recusa revelar os nomes dos companheiros. Trata-se,
sem dúvida, de casos de exceção, mas que têm o
mérito de pôr em evidência que o Poder potencial, tal
como o Poder atual, é uma relação entre seres
humanos. Uma relação que se rompe se aos recursos
de A e à sua habilidade em utilizá-los não
corresponder a atitude de B para se deixar influenciar.
Esta atitude — a probabilidade de B realizar o
comportamento
937
pretendido por A — depende, em última análise, da
escala de valores de B. Se os instrumentos usados
para exercer Poder forem de tipo generalizado dentro
de um ambiente social, como é o caso do dinheiro,
haverá também uma atitude mais ou menos
generalizada, naquele âmbito social, para uma pessoa
se deixar influenciar em certas esferas de atividade.
Nesta hipótese, se para atingir seus fins A não precisa,
especificamente, do comportamento de B, e não
apenas do comportamento de B (como acontece no
caso do mártir e do conspirador), mas do
comportamento de B ou C ou de D ou de É..., a sua
probabilidade de ter sucesso dependerá da escala de
valores que prevalecer no ambiente social em que age.
Com base nos conceitos desenvolvidos na análise do
Poder potencial, podemos individualizar as relações de
Poder estabilizado, particularmente importantes na
vida social e política. O Poder diz-se estabilizado
quando a uma alta probabilidade de que B realize com
continuidade os comportamentos desejados por A,
corresponde uma alta probabilidade de que A execute
ações contínuas com o fim de exercer Poder sobre B. O
Poder estabilizado se traduz muitas vezes numa
relação de comando e obediência. E pode ser ou não
acompanhado de um aparato administrativo com a
finalidade de executar as ordens dos detentores do
Poder. E o que acontece, respectivamente, nos casos
do Poder governamental e do Poder paterno. Além
disso, o Poder estabilizado pode fundar-se tanto em
características pessoais do detentor de Poder
(competência, fascínio, carisma) como na função do
detentor do Poder. Quando a relação de Poder
estabilizado se articula numa pluralidade de funções
claramente definidas e estavelmente coordenadas entre
si, fala-se normalmente de Poder institucionalizado.
Um Governo, um partido político, uma administração
pública, um exército, como norma, agem na sociedade
contemporânea com base numa institucionalização do
Poder mais ou menos complexa.
IV. O PAPEL DAS PERCEPÇÕES SOCIAIS E
DAS EXPECTATIVAS. — De tudo o que se disse até
agora fica evidenciado que o Poder não deriva
simplesmente da posse ou do uso de certos recursos
mas também da existência de determinadas atitudes dos
sujeitos implicados na relação. Essas atitudes dizem
respeito aos recursos e ao seu emprego e, de maneira
geral, ao Poder. Entre tais atitudes, devem ser
colocadas as percepções e as expectativas que dizem
respeito ao Poder, As percepções ou imagens sociais do
Poder exercem uma influência sobre fenômenos do
Poder real. A imagem que um indivíduo ou um grupo
faz da distribuição do Poder, no âmbito social a que
938
PODER
pertence, contribui para determinar o seu
comportamento, em relação ao Poder. Neste sentido, a
reputação do Poder constitui um possível recurso do
Poder efetivo. A pode exercer um Poder que excede os
recursos efetivos que tem à disposição e a sua vontade
e habilidade em transformá-los em Poder, se aqueles
que estão debaixo do seu Poder reputam que A tem de
fato mais Poder do que aquele que seus recursos, sua
vontade ou sua habilidade mostram. Num confronto ou
numa negociação internacional, se o Governo A acha
que o Governo B tem um Poder maior do que ele, esse
Governo tende naturalmente a sofrer, de fato, um
maior Poder da parte do Governo B, até nos casos em
que uma avaliação correta dos recursos disponíveis, por
parte dos dois Governos, pudesse levar a um resultado
mais favorável ao Governo A.
No que toca às expectativas, deve dizer-se, de uma
maneira geral, que, numa determinada arena de
Poder, o comportamento de cada ator (partido, grupo
de pressão. Governo, etc.) é determinado parcialmente
pelas previsões do ator relativas às ações futuras dos
outros atores e à evolução da situação em seu conjunto.
Mas é nas relações de Poder que operam através do
mecanismo das reações previstas que o papel das
expectativas se torna mais evidente.
O Poder age de modo previsível quando B modifica
sua conduta de acordo com os desejos de A, não
através da intervenção direta de A, mas porque B prevê
que A adotaria reações desagradáveis, se ele não
modificasse seu comportamento. Naturalmente, para
que haja Poder, é necessário que A, embora não
provoque intencionalmente o comportamento de B,
nutra um interesse por tal comportamento. Por
exemplo, um Governo está sujeito ao Poder de certos
setores agrícolas influentes, mesmo sem a intervenção
direta destes últimos, quando ao programar sua
política agrícola não leva em consideração as reações
desses setores e faz um planejamento que não prejudica
os interesses dos agricultores. Como já observou Carl
(. Friedrich, que. pela primeira vez, pôs em relevo a
importância deste aspecto do Poder, o mecanismo das
reações previstas constitui habitualmente um
poderoso fator de conservação, uma vez que é muito
mais fácil "avaliar e, portanto, conhecer as
preferências de um indivíduo ou de um grupo no que
diz respeito ao estado das coisas existentes do que
conhecer a sua preferência no respeitante a um
possível futuro e eventual estado das coisas". Este
modo operacional do Poder torna ambíguas muitas
situações concretas. Por exemplo, o fato de que as
providências tomadas por um Governo, em matéria
industrial, encontrem notável correspondência no
comportamento dos
empresários da nação, pode querer dizer que o
Governo tem um grande Poder sobre eles, mas pode
significar também, ao contrário, que os empresários
usufruem de um grande Poder sobre o Governo, pela
capacidade que têm de impedir, através do mecanismo
das reações previstas, que sejam tomadas decisões que
ponham em perigo seus interesses.
Não estamos privados, entretanto, de instrumentos
para desfiar a meada. Em primeiro lugar, podemos
fazer um mapa dos interesses dos atores do sistema e
procurar identificar, por este processo, as vigas
mestras sobre as quais podem apoiar-se as previsões
das reações e as respectivas relações de Poder. Em
segundo lugar, deve ter-se presente que a ambigüidade
depende do equilíbrio da situação. Se surgem conflitos
relevantes entre os atores, torna-se possível averiguar a
orientação fundamental da vontade dos mesmos e
portanto a direção prevalente em que opera o Poder.
V. MODOS DE EXERCÍCIO E CONFLITUALIDADE DO
— Os modos específicos pelos quais os
recursos podem ser usados para exercer o Poder, ou
seja, os modos de exercício do Poder, são múltiplos:
da persuasão à manipulação, da ameaça de uma
punição à promessa de uma recompensa. Alguns
autores preferem falar de Poder só quando a
determinação do comportamento alheio se funda sobre
a coação. Neste sentido, se distingue, às vezes, entre
Poder e influência. Mas a palavra influência é
empregada em muitos sentidos diferentes, tanto na
linguagem comum, como na linguagem técnica. E são
numerosos os casos em que se emprega o termo Poder
para denotar relações não coercitivas: pode-se falar,
por exemplo, de um Poder baseado na persuasão. A
verdade é que neste aspecto, o problema essencial se
arrisca a tomar-se uma simples questão de palavras.
Para além dos termos empregados, o que importa é
formular uma noção clara da determinação intencional
ou interessada sobre a conduta alheia e identificar,
dentro deste genus, a species particularmente
importante da determinação do comportamento alheio
fundado sobre a coerção (coação). A coerção pode ser
definida como um alto grau de constrangimento (ou
ameaça de privações). Ela implica que as alternativas
de comportamento em que B se acha (e que sofre a
coerção) são alteradas pela ameaça de sanções de A
(que faz a coerção), de tal modo que o comportamento
que este último deseja do primeiro termina por parecer
a B como a alternativa menos penosa. É o caso daquele
que é assaltado e dá a carteira para salvar a vida. No
conceito de coerção pode incluir-se também um alto
grau de aliciamento (promessa de vantagens).
PODER.
PODER
Neste sentido sofre coerção, por exemplo, o indivíduo
que, para sair de um estado de extrema indigência,
aceita fazer um trabalho perigoso ou degradante. Para
além da etiqueta terminológica, existe uma diferença
entre o primeiro e o segundo caso. No primeiro, é o
assaltante que coloca o assaltado em situação de ceder
à ameaça; no segundo, não se diz que seja o aliciante a
pôr o aliciado em estado de inferioridade que o força
ceder à promessa.
O problema da conflitualidade do Poder está ligado,
ao menos parcialmente, com os modos específicos
através dos quais se determina o comportamento alheio.
As relações de Poder são necessariamente de tipo
antagônico? Do conflito entre a vontade de A e de B
podemos falar, referindo-nos ao momento em que A
inicia a tentativa de exercer Poder sobre B ou tendo
em conta o momento em que B executa o
comportamento pretendido por A: no momento inicial
ou no momento final do exercício do Poder. Ora, que
exista um conflito inicial entre a vontade de A e a
vontade de B está implícito na definição de Poder: B
teria agido de maneira diferente daquela com que foi
induzido a agir por A. C problema que interessa é saber
se existe necessariamente um conflito entre a vontade
de A e a de B, mesmo no momento final. Colocada
assim em termos precisos, a pergunta não pode ter
senão uma resposta negativa: a conflitualidade ou não
conflitualidade depende do modo de exercer o Poder.
Consideremos, por exemplo, um exercício baseado
sobre a persuasão, de um lado, e um exercício baseado
sobre a ameaça de uma punição, do outro. Em ambos
os casos, por definição, B teria tido — não havendo
intervenção de A — um comportamento (que chamados
(a) diferente de (b)) que proviria como conseqüência
de tal intervenção. Mas, no caso do Poder de
persuasão, B, após a intervenção de A, prefere b a a e,
tendo b, se comporta como é de seu agrado se
comportar. Por outras palavras, B atribui maior valor
ao comportamento que tem depois da intervenção de A
do que ao comportamento que teria tido sem tal
intervenção. Por conseqüência podemos dizer que não
existe conflito de vontade entre A e B. Bem ao
contrário, no caso do Poder baseado sobre ameaça de
punição, B, após a intervenção de A, continua a
preferir a a b e tem o segundo comportamento não
porque o prefira simplesmente ao primeiro, mas
prefere-o ao primeiro sem a ameaça de punição feita
por A (a-p). Por outras palavras, B atribui menor valor
ao comportamento que tem depois da intervenção de A
do que ao comportamento que teria tido na ausência de
tal intervenção. Podemos dizer, por isso, que nesta
relação de Poder existe um conflito de vontade entre A
e B.
939
O caráter antagônico das relações de Poder pode
derivar, porém, mais do que do conflito de vontade,
acima referido, de outros aspectos do Poder.
Na relação de manipulação, por exemplo, não surge
imediatamente um conflito, mas existe, via de regra,
um conflito potencial que se torna atual no momento
em que B se der conta de que seu comportamento foi
manipulado por A. E este conflito pode derivar da
simples manipulação: do juízo negativo e do
ressentimento de B em relação à manipulação de A.
Também, num nível extremo de aliciamento, a
conflitualidade da relação pode nascer do fato de B se
sentir ferido e nutrir ressentimento pela grave
desigualdade entre seus recursos e os recursos de A e
também pelo fato de A tirar vantagem desta situação
de desigualdade. O ressentimento derivado da
desigualdade de recursos é, por isso, juntamente com o
antagonismo das vontades, a segunda matriz que se
evidencia na conflitualidade do Poder. Ela pode ser
encontrada também nas relações de manipulação e
aliciamento moderado e, de um modo geral, em todas
as relações de Poder, particularmente se estabilizadas,
uma vez que toda a forma de Poder é habitualmente a
expressão de uma desigualdade de recursos. E quanto
mais esta é sentida pelo sujeito passivo como um peso
oneroso ou como uma vergonha infamante, tanto mais
a relação de Poder tende a criar um antagonismo de
atitudes e a preparar um conflito aberto.
VI. A MENSURAÇÃO DO PODER. — Esclarecido o
conceito de Poder, podemos aplicá-lo à realidade
social e ver quando existe, de fato, uma relação do
Poder. Mas em relação aos fenômenos reais, temos
também necessidade de comparar entre si diversas
relações de Poder e de saber se uma relação de Poder
é, ao menos grosso modo, maior ou menor do que
outra. Coloca-se assim o problema da mensuração do
Poder.
Um modo de medir o Poder é o de determinar as
diversas dimensões que pode ter o comportamento em
causa. Em tal sentido, uma primeira dimensão do
Poder é dada pela probabilidade que o comportamento
desejado se verifique. Quanto mais provável for que B
reaja positivamente às ordens e às diretrizes de A,
tanto maior é o Poder de A sobre B. Uma segunda
dimensão é constituída pelo número dos homens
submetidos ao Poder. Existem Poderes que se dirigem a
uma só pessoa e Poderes que dizem respeito a
milhares e" até a milhões de pessoas. Existe uma
terceira dimensão que é a esfera do Poder. Com base
na escala de valores prevalecentes numa determinada
cultura, pode-se dizer que um Poder que diz respeito a
uma certa esfera tem um peso maior ou
940
PODER
menor do que outro que se refere a uma esfera
diversa. Por exemplo, na nossa cultura, o Poder de
um bom costureiro sobre a forma de vestir é bem
menor do que um Poder que diz respeito à vida e à
morte e que pode ser, em certas ocasiões, o próprio
Poder político. Uma quarta dimensão do Poder é dada
pelo grau de modificação do comportamento de B (ou
de B, C, D. . .) que A pode provocar dentro de uma
certa esfera de atividades. Por exemplo, dois grupos
de pressão têm ambos um certo Poder sobre o
Governo no campo da instrução pública, mas um deles
tem condições de influir sobre a política escolar em
maior medida que o outro.
Pode constituir-se ainda uma quinta dimensão a
partir do grau em que o Poder de A restringe as
alternativas de comportamento que restam abertas
para B.
A esta tentativa de mensuração do Poder que
concentra sobre a entidade a atenção dos efeitos
provocados em B foi objetado que, para medir o Poder
de um modo adequado, convém levar em conta,
também, os custos que pesam sobre A, para tentar
exercer Poder sobre B e também a sua força, que
seriam os custos que pesariam sobre B no caso de este
se recusar a ter o comportamento desejado por A. E
não há dúvida de que esta colocação do problema
enriquece as possibilidades de mensuração fornecidas
pelas dimensões do Poder anteriormente mencionadas.
Deve-se acrescentar, finalmente, que foram feitas
tentativas de elaboração de métodos para a mensuração
da distribuição do Poder dentro de um sistema: de um
modo particular para medir a distribuição do Poder
entre os membros de um Comitê eleitoral, quando a
decisão depende exclusivamente da própria votação e
para medir o grau de concentração de Poder entre os
participantes de um sistema político.
VII. O PODER NO ESTUDO DA POLÍTICA. — Um
dos fenômenos mais difundidos na vida social é
exatamente o do Poder. Pode dizer-se que não existe
praticamente relação social na qual não esteja presente,
de qualquer forma, a influência voluntária de um
indivíduo ou de um grupo sobre o comportamento de
outro indivíduo ou de outro grupo. Não devemos nos
surpreender ao verificar que o conceito de Poder foi
empregado para interpretar os mais diversos aspectos
da sociedade: desde os pequenos grupos da
administração de produção e desde a família até às
relações entre as classes sociais. Todavia, o campo em
que o Poder ganha seu papel mais crucial é o da
política; em relação aos fenômenos políticos, o Poder
tem sido pesquisado e analisado continuamente e com
a maior riqueza de métodos e de resultados. Isto é
atestado pela longa história e tradição da filosofia
política, e é atestado pelas ciências sociais
contemporâneas, a partir da análise hoje tomada
clássica que do Poder fez Max Weber.
Para Weber, as relações de mando e de obediência,
mais ou menos confirmadas no tempo, e que se
encontram tipicamente na política, tendem a se basear
não só em fundamentos materiais ou no mero hábito
de obediência dos súditos, mas também e
principalmente num específico fundamento de
legitimidade. Deste Poder legítimo, que é muitas vezes
designado pela palavra AUTORIDADE (V.), Weber
especificou três tipos puros: o Poder legal, o Poder
tradicional e o Poder carismático. O Poder legal, que é
especificamente característico da sociedade moderna,
funda-se sobre a crença na legitimidade de
ordenamentos jurídicos que definem expressamente a
função do detentor do Poder. A fonte do Poder é,
portanto a lei, à qual ficam sujeitos não apenas aqueles
que prestam obediência, como são os cidadãos e
consócios, mas também aquele que manda. O aparelho
administrativo do Poder é o da burocracia, com sua
estrutura hierárquica de superiores e de subordinados,
na qual as ordens são dadas por funcionários dotados
de competência específica. O Poder tradicional fundase sobre a crença no caráter sacro do Poder existente
"desde sempre". A fonte do Poder é portanto a
tradição que impõe vínculos aos próprios conteúdos
das ordens que o senhor comunica aos súditos. No
modelo mais puro do Poder tradicional, o aparelho
administrativo é de tipo patriarcal e composto de
servidores ligados pessoalmente ao patrão. O Poder
carismático, enfim, está fundado na dedicação afetiva à
pessoa do chefe e ao caráter sacro, à força heróica, ao
valor exemplar ou ao Poder de espírito e da palavra
que o distinguem de modo especial. A fonte do Poder
se conecta com o que é novo, com o que não existiu
nunca, e por isso o Poder tende a não suportar vínculos
predeterminados. Quem comanda é verdadeiramente o
líder (o profeta, o herói guerreiro, o grande
demagogo) e aqueles que prestam obediência são os
discípulos. O aparelho administrativo é escolhido com
base no carisma e na dedicação pessoal e não constitui,
por isso, nem uma burocracia, nem um corpo de
servidores.
Depois de Weber, o interesse dos estudiosos pelo
Poder se acentuou cada vez mais. Particularmente, no
que se refere ao conceito de Poder, surgiu uma das
principais correntes que deram vida à ciência política.
Esta corrente, que teve seu maior representante em
Harold Lasswell, se contrapôs às teorias jurídicas e
filosóficas precedentes centradas em torno do conceito
de Estado e concentrou a análise política no estudo do
Poder
PODER
como fenômeno empiricamente observável. De uma
parte, Lasswell viu no Poder o elemento distintivo do
aspecto político da sociedade e construiu elaborado
sistema conceptual para o estudo dos fenômenos do
Poder no quadro da vida social cm seu conjunto. Por
outra parte, utilizando conceitos psicanalíticos de
origem freudiana, Lasswell examinou as relações
existentes entre Poder e personalidade: identificou a
personalidade política como sendo a que está orientada
predominantemente para a busca do Poder; estudou
sua dinâmica de formação, chegando à conclusão de
que ela se funda numa transferência racionalizada, em
termos de interesse público, de impulsos privados
reprimidos, para objetos públicos; e analisou o marco
deixado pelos aspectos neuróticos da personalidade
sobre a participação na vida política e sobre suas
diversas formas, como a do agitador e a do
organizador. Destes estudos lasswellianos tomaram
impulso as pesquisas sucessivas sobre a personalidade
autoritária (v. AUTORITARISMO).
Atualmente, o Poder é considerado como uma das
variáveis fundamentais, em todos os setores de estudo
da política. Isto se verifica, por exemplo, na análise das
burocracias, e, mais genericamente, na análise das
organizações, onde a estrutura hierárquica mais ou
menos acentuada e as diversas formas que ela pode
assumir colocam, naturalmente, em primeiro plano, o
fenômeno do Poder. Verifica-se também a
fundamentalidade do Poder no estudo das relações
internacionais, onde o conceito de Poder, quando não é
considerado como instrumento privilegiado de
interpretação, fornece, de uma maneira, um critério de
análise de que não se pode prescindir e verifica-se
também, no estudo dos sistemas políticos nacionais e
locais, onde o estudo do Poder termina no estudo da
natureza e composição das elites políticas (v. ELITES,
TEORIA DAS) e das relações que existem entre elites e
outros setores da população. Neste último campo
existem pouquíssimas pesquisas empíricas dirigidas
para o estudo da distribuição do Poder, a nível do
sistema político nacional. Por outro lado, existem
numerosas pesquisas voltadas para o estudo da
distribuição do Poder ao nível da comunidade política
local. A propósito, sociólogos e politólogos,
especialmente nos Estados Unidos, construíram
técnicas de investigação mais ou menos elaboradas para
identificar onde reside, de preferência, o Poder e quem
governa nesta ou naquela cidade. Deveremos recorrer a
este tipo de estudo para examinar os principais
métodos de pesquisa empírica do Poder, adotados até
agora.
Mais recentemente, uma importante tentativa de
construir uma teoria política geral fundada
941
sobre o conceito de Poder foi realizada por Talcott
Parsons. Identificando como função específica do
sistema político no âmbito do funcionamento global da
sociedade a "consecução de objetivos" ou a capacidade
de tornar efetivos os objetivos coletivos, Parsons
define o Poder, no sentido específico de Poder
"político", como a "capacidade geral de assegurar o
cumprimento das obrigações pertinentes dentro de um
sistema de organização coletiva em que as obrigações
são legitimadas pela sua coessencialidade aos fins
coletivos e portanto podem ser impostas com sanções
negativas, qualquer que seja o agente social que as
aplicar". Nesta perspectiva, o Poder, conservando
embora sua característica relacionai fundamental,
torna-se entretanto uma propriedade do sistema; tornase, precisamente, o "meio circulante" político, análogo
à moeda na economia, ancorado por uma parte na
institucionalização e na legitimação da autoridade e
por outra na possibilidade efetiva do recurso à ameaça
e, como extrema medida, ao uso da violência.
VIII. MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA. — Um
método de pesquisa do Poder que nas investigações
mais recentes foi usado como instrumento secundário é
o posicionai. Consiste na identificação das pessoas mais
poderosas que têm uma posição formal de cúpula nas
hierarquias públicas e privadas mais importantes da
comunidade. O maior valor desta técnica de pesquisa é
a sua grande simplicidade. Basta saber quem ocupa
formalmente certas posições para estabelecer quem
detém maior Poder. Mas é também nesta simplicidade
que está o defeito fundamental do método. Na verdade,
não foi dito que o Poder efetivo corresponde à posição
ocupada formalmente. Dentro das estruturas de Poder
formalmente reconhecidas, podem existir, e
normalmente existem, estruturas informais de Poder
que exercem sobre as primeiras uma influência maior
ou menor. Por isso, o método não atinge diretamente o
Poder. Dá somente um indicador indireto muito
inadequado e inteiramente insuficiente. Todavia, isso
não significa que o método seja inteiramente
inservível. Ele pode ser usado utilmente, em particular
para averiguação das posições de cúpula entre os
ocupantes dos cargos mais elevados em diversas
organizações. Poderá, assim, oferecer elementos muito
úteis para identificar a existência de laços mais ou
menos orgânicos entre diversas organizações e setores
institucionais.
Um outro método de pesquisa, que tem sido usado
principalmente por sociólogos, é o da reputação. Ele
se funda essencialmente na avaliação de alguns
membros da comunidade estudada, os quais, quer
pelas funções, quer pelos
942
PODER
cargos que exercem, são considerados bons
conhecedores da vida política da comunidade. Por
outras palavras, o pesquisador que adota este método
se fia na "reputação" formulada por um certo número
de juizes que previamente considera particularmente
atendíveis. Os poderosos da comunidade são as
pessoas que os "juizes" reputam como tais. Este
método é relativamente econômico e de fácil
aplicação. Ele foi submetido a numerosas e múltiplas
críticas. Mas a mais importante e mais radical objeta
que o método não atinge o Poder efetivo, mas só o
Poder reputado. Este último pode corresponder ou não
corresponder ao Poder real e, enquanto estivermos no
âmbito da técnica reputacional, não é possível
estabelecer a medida de tal correspondência.
E desde que as reputações ou as percepções sociais
do Poder são uma possível fonte de Poder, o método
pode ser utilizado para averiguação desta fonte e, em
tal caso, deverá ser dirigido não para as "reputações"
de um certo número de juizes, mas para as reputações
de indivíduos e grupos que participam mais ou menos
ativamente do processo do Poder. Como técnica geral
para averiguar a distribuição do Poder na comunidade,
o método reputacional deve ceder o lugar a outros
instrumentos mais objetivos, que estejam em
condições de investigar o Poder de forma mais direta.
A técnica reputacional se abaixa ao nível da técnica de
reforço e de integração. Neste sentido, ela foi muito
útil para especificar se em que medida existem
fenômenos de Poder oculto na comunidade, a saber,
relações de Poder que não são abertamente visíveis
para que se verifiquem nos bastidores da cena da vida
pública.
Um terceiro método de investigação, que foi
empregado especialmente por politólogos, é o
decisional. Baseia-se sobre a observação e sobre a
reconstrução dos comportamentos efetivos que se
manifestam no processo público de decisões. Para
determinar quais sejam as pessoas poderosas, alguns
pesquisadores se limitam a considerar a participação
ativa no processo de decisão, ou porque conseguem
que seja tomada uma decisão agradável ou porque
impedem que seja tomada uma decisão desagradável.
Trata-se obviamente de um método menos simples e
econômico do que os precedentes; e por isso pode ser
utilizado apenas para estudar algumas decisões ou
alguns setores de decisão que o investigador considera
importantes e fundamentais. O enormíssimo valor
desta técnica é o de pesquisar o Poder diretamente em
seu real desenvolvimento.
Mesmo assim, também o método decisional
recebeu numerosas críticas, das quais destacamos duas
particularmente incisivas. A primeira afirma que
através do estudo de alguns setores de
decisão, mesmo quando julgados importantes pelo
pesquisador, não pode reconstruir-se de modo
satisfatório a distribuição geral do Poder na
comunidade. Isto é ainda mais verdadeiro se
considerarmos, como sustenta a segunda crítica, que o
processo de decisão pública não é todo o Poder, mas
apenas uma parte. Quem exerce Poder, na verdade, é
quem propugna, com sucesso, uma certa decisão;
exerce Poder quem impede que seja tomada uma
decisão proposta, mas também o exerce quem controla
de fora todo o processo de decisão e impede, por
exemplo, que certas decisões sejam propostas ou
tomadas. Por outras palavras, o processo de decisão
não tem lugar no vácuo mas num determinado contexto
organizativo. Ele parte de instituições, de regras de
jogo e de valores dominantes que pré-selecionam as
propostas admissíveis ao processo de decisão e
caracterizam a orientação geral da ação pública. E a
delimitação e a orientação geral do processo de
decisão, por sua vez, se apóiam sobre uma constelação
de outros centros de Poder, como o econômico e o
religioso, por exemplo, que condicionam, de modo
relativamente estável, o Governo local. Ora estes
condicionamentos estruturais, que são uma parte
decisiva do Poder na comunidade, fogem inteiramente
ao método decisional. Estas críticas atingem
indubitavelmente o alvo e levam à conclusão de que o
método decisional, embora constitua uma técnica
indispensável para o estudo do Poder que se manifesta
no processo de decisão, não pode definir, por si só, a
distribuição geral do Poder.
Em conclusão: ainda que a fertilidade relativa
destes métodos de pesquisa seja muito diferente,
nenhum dos que foram até agora utilizados conseguiu
averiguar, de modo satisfatório, a distribuição do
Poder dentro da comunidade ou, de forma geral,
dentro de um sistema político, visto em seu conjunto.
Isto parece indicar que, para estudar o Poder
empiricamente, não é necessário utilizar simplesmente
um dos métodos mencionados, mas usar um leque
articulado de técnicas de pesquisa, dirigidas para a
averiguação não só do dinamismo dos processos de
decisão, mas também para os Poderes estruturais que
condicionam esses dinamismos de uma forma mais ou
menos profunda.
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[MARIO STOPPINO]
Policentrismo.
A expressão Policentrismo é usada tanto quando se
faz referência ao fenômeno da crise da liderança
ideológica da URSS dentro do sistema de Estados de
regime comunista e do movimento comunista
internacional, quanto para indicar uma ordem do
sistema internacional diversa do sistema bipolar.
Quanto ao primeiro aspecto, começou-se a falar de
Policentrismo em 1948, quando da defecção iugoslava
do bloco comunista, que veio pôr em questão o
princípio do Estado-guia, contrapondo-lhe a tese de
que, embora dentro de uma comum orientação
ideológica de base, fossem possíveis diversos modelos
de construção do socialismo. Este pensamento teve
um desenvolvimento teórico de capital importância
nas posições assumidas por Togliatti (veja-se
particularmente a entrevista a "Nuovi argomenti", em
1956) em face da reviravolta representada pelo XX
Congresso do P.C.U.S. Nessa ocasião, o líder do
P.C.I. não só recalcou a tese, aprofundada a partir da
viragem de Salerno, das diversas "vias nacionais para
o socialismo" (que até então girara em
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torno do problema de como chegaram todos, partindo
cada um das condições nacionais singulares e
específicas, a identificar-se com a substância política da
experiência soviética), mas sustentou também que o
modelo soviético não devia mais ser entendido como
obrigatório e que, em conseqüência, o movimento
comunista deveria tornar-se policêntrico, deixando de
estar sujeito a um guia único. Um passo tangível e de
enorme importância nesta direção se deu a seguir com
a emancipação da China da hegemonia soviética, ou
seja, de uma potência que soube, pouco a pouco, unir à
sua crítica ideológica contra a URSS uma capacidade
de iniciativa autônoma, no plano internacional, capaz
de provocar uma mudança substancial no equilíbrio
mundial. A mais recente e significativa manifestação do
Policentrismo está no "eurocomunismo" que,
sobretudo em sua versão italiana, constitui, em termos
concretos, a definição de um modelo socialista
radicalmente diverso do modelo soviético e, por
conseguinte, a primeira tentativa concreta de solução,
na Europa Ocidental, do problema proposto por
Togliatti a partir de 1956, mas que só pôde contar com
progressos reais no quadro da distensão.
Quanto ao segundo aspecto, a expressão é usada
quer para descrever um processo fatual ainda em
curso, quer para indicar um objetivo que, de acordo
com vários pontos de vista, há de ser alcançado ou
evitado.
No plano descritivo, fala-se de Policentrismo para
indicar o resultado da progressiva decomposição do
sistema bipolar. Enquanto funcionou, este sistema
criou uma situação que permitia às duas
superpotências um controle eficaz sobre quase todo o
mundo, de que se excluíam, sem contudo ser
realmente capazes de influir na evolução mundial,
alguns poucos países não alinhados. Esta situação
entrou em crise no decorrer dos anos 60 e 70, com o
surgir de novos "centros" ou "pólos" (daí a expressão
"multipolarismo", preferida, em geral, pelos estudiosos
de relações internacionais), mais ou menos
eficazmente autônomos em relação às superpotências.
Na esfera de influência soviética, o fato decisivo está
na conquista de uma plena autonomia por parte da
China, fato que, como vimos, está ligado ao fenômeno
mais complexo da crise da liderança ideológica
soviética. Na esfera de influência americana, os fatos
determinantes foram o fortalecimento da Comunidade
européia (que constitui a base real das iniciativas
autonomistas, mesmo no plano militar, da França de
De Gaulle e dos seus sucessores) e do Japão e o
despertar do Terceiro Mundo (particularmente dos
países ricos em matérias-primas), que, em sua grande
maioria, estava sujeito a um controle mais ou
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POLÍCIA
menos eficaz, mais ou menos direto dos Estados
Unidos. Diversamente do que ocorreu com a URSS,
não se pode, contudo, falar, no caso americano, ou
não é possível fazê-lo nos mesmos termos, de uma
crise de liderança ideológica, pois jamais existiu uma
organização dos partidos não comunistas (liberais,
democráticos, cristão-sociais, social-democráticos e
socialistas) comparável, na extensão ou na coesão, ao
movimento comunista internacional. Excluídas tais
diferenças, a progressiva erosão das posições
hegemônicas das duas superpotências levou
finalmente ao surgimento de um novo sistema
internacional que se define como policêntrico e
multipolar do ponto de vista político, mas que, ao
invés, se mantém ainda substancialmente bipolar do
ponto de vista militar.
No plano ordenativo, entende-se geralmente por
Policentrismo uma ordem internacional que supere
profundamente o bipolarismo e onde a China e a
Comunidade européia (esta depois da plena
consecução da sua unidade tanto no plano econômico
como no político-defensivo) se tornem pólos do
equilíbrio mundial fundamentalmente equivalentes à
URSS e USA, sendo possível o emergir sucessivo de
outros pólos autônomos de equilíbrio e da conseqüente
superação dos blocos. Os defensores desta perspectiva
pensam que ela contém, em confronto com o sistema
bipolar, uma série de aspectos positivos que se podem
resumir; em tornar mais fluido o confronto de forças
(se um pólo se debilita, não se encontra só em face de
um outro automaticamente fortalecido, pois podem
intervir, como fatores reais de equilíbrio, os demais
pólos), o que criaria uma condição estrutural mais
favorável — tidos em conta os perigos para a
sobrevivência da humanidade ligados à existência das
armas de destruição total — aos progressos para o
desarmamento e para uma mais duradoura distensão;
na maior autonomia das médias e pequenas potências,
pois a passagem de uma aliança ou zona de influência
a outra, ou a preferência pelo não alinhamento, seriam
menos traumáticos numa situação onde não existem
apenas dois blocos, um dos quais ganharia
automaticamente o que o outro perde; na
possibilidade, a isso ligada, de que até os outros
Estados mais débeis e pobres possam fazer valer mais
as suas exigências diante dos Estados mais fortes.
Como é óbvio, esta convicção é contestada por quem
pensa que, muito pelo contrário, só um sistema bipolar
pode garantir uma maior estabilidade e segurança,
uma vez que a coexistência pacífica seria mais fácil de
se concretizar entre dois sujeitos do que entre um
número maior de sujeitos autônomos.
[SÉRGIO PISTONE]
Polícia.
I. DEFINIÇÃO. — É uma função do Estado que se
concretiza numa instituição de administração positiva
e visa a pôr em ação as limitações que a lei impõe à
liberdade dos indivíduos e dos grupos para
salvaguarda e manutenção da ordem pública, em suas
várias manifestações: da segurança das pessoas à
segurança da propriedade, da tranqüilidade dos
agregados humanos à proteção de qualquer outro bem
tutelado com disposições penais.
Para uma melhor definição no que concerne à Itália,
temos o art. 1.º do Texto Único das Leis de Segurança
Pública em vigor: "A autoridade da segurança pública
vela pela manutenção da ordem pública, pela
segurança dos cidadãos, pela sua incolumidade e pela
tutela da propriedade; cuida da observância das leis e
dos regulamentos gerais e especiais do Estado, das
províncias e das comunas, bem como da observância
das determinações das autoridades; presta auxílio em
caso de desgraça pública ou privada. ..".
Esta definição de Polícia não abrange o sentido que
o termo teve no decorrer dos séculos: derivando de um
primeiro significado diretamente etimológico de
conjunto das instituições necessárias ao funcionamento
e à conservação da cidade-Estado, o termo indicou, na
Idade Média, a boa ordem da sociedade civil, da
competência das autoridades políticas do Estado, em
contraposição à boa ordem moral, do cuidado
exclusivo da autoridade religiosa. Na Idade Moderna,
seu significado chegou a compreender toda a
atividade da administração pública: veio assim a
identificar-se um ESTADO DE POLÍCIA (v.), com que se
designava um ordenamento em que toda a função
administrativa era indicada com o termo de Polícia.
Este termo voltou a ter um significado mais restrito,
quando, no início do século XIX, passou a identificarse com a atividade tendente a assegurar a defesa da
comunidade dos perigos internos. Tais perigos estavam
representados nas ações e situações contrárias à ordem
pública e à segurança pública. A defesa da ordem
pública se exprimia na repressão de todas aquelas
manifestações que pudessem desembocar numa
mudança das relações político-econômicas entre as
classes sociais, enquanto que a segurança pública
compreendia a salvaguarda da integridade física da
população, nos bens e nas pessoas, contra os inimigos
naturais e sociais.
Estas duas atividades da Polícia são apenas
parcialmente distinguíveis do ponto de vista político:
na sociedade atual, caracterizada por uma evidente
diferenciação de classes, a defesa dos bens da
população, que poderia parecer uma
POLÍCIA
atividade destinada à proteção de todo o agregado
humano, se reduz à tutela das classes possuidoras de
bens que precisam de defesa; quanto à defesa da
ordem pública, ela se resume também na defesa de
grupos ou classes particulares. A orientação classista
da atividade de Polícia consentiu, além disso, que
normas claramente destinadas à salvaguarda da
integridade física da população contra inimigos
naturais tenham sido utilizadas com fins repressivos:
pensemos, por exemplo, nas normas sobre a
funcionalidade dos locais destinados a espetáculos
públicos (cinemas, teatros, estádios, etc.) e no uso que
deles se fez em tempos e países diversos para impedir
manifestações ou reuniões antigovernamentais.
É nesse sentido que se confirma a definição de
Polícia acima apresentada, já que a defesa da
segurança pública é, na realidade, uma atividade
orientada a consolidar a ordem pública e,
conseqüentemente, o estado das relações de força
entre classes e grupos sociais.
II. ORGANIZAÇÃO FUNCIONAL. — A atividade de
Polícia abrange, em seu conjunto, as iniciativas
voltadas para a prevenção e repressão dos delitos. Na
Itália, estas iniciativas são geralmente da incumbência
dos mesmos corpos de polícia, mas distinguem-se em
atividades de Polícia administrativa (preventiva) e de
Polícia judiciária (repressiva).
É função da Polícia administrativa aplicar as
limitações e proibições impostas pela lei à liberdade
dos cidadãos e dos grupos sociais, e derrogá-las, caso
se trate de proibições não absolutas, com
autorizações. A título de exemplo, enquanto a Polícia
tem por obrigação impedir a venda de produtos
regulamentados por lei (tabacos, bebidas alcoólicas,
etc), pode derrogar a proibição, concedendo as
oportunas autorizações a tipos particulares de prática
comercial.
O caráter duplo da atividade de Polícia
administrativa
revela-se
em
suas
variadas
especializações operativas: Polícia de segurança, que
tem por fim a salvaguarda da segurança e ordem
públicas e que, dentro do âmbito das leis, proíbe as
manifestações contrárias a esses dois interesses e
concede autorização só para as permitidas; Polícia
veterinária, que autoriza e proíbe o transporte e
comércio de carnes, assegura a profilaxia dos animais,
etc; Polícia sanitária, que visa à defesa da higiene e
da saúde pública e à fiscalização das atividades
profissionais e comerciais que interessam à saúde
pública; Polícia marítima, que cuida das alfândegas
marítimas e do bom funcionamento da aparelhagem
portuária; Polícia de trânsito, para o controle do
tráfego automobilístico e da viabilidade das estradas;
Polícia ferroviária, para a manutenção da ordem nas
945
estações e nos trens; Polícia local, para o controle das
cidades, do tráfico, do comércio e dos setores sob a
jurisdição das administrações locais; Polícia
funerária, para o controle das operações de
sepultamento ou, de qualquer modo, relacionadas
com os cemitérios; e outras. A Polícia administrativa
depende orgânica e operativamente do poder
executivo (Governo, prefeitos, síndicos).
É função da Polícia judiciária a averiguação dos
delitos, sua repressão para impedir que continuem, a
garantia das provas e das pessoas indiciadas à
autoridade judiciária, e todas as investigações que
esta julgue necessárias ou úteis para o
desenvolvimento da instrução. A Polícia judiciária
depende
organicamente
do
executivo
e
operativamente do judiciário. Esta separação é muitas
vezes causa do mau funcionamento deste tipo de
Polícia, suscitando o problema da especialização
orgânica dos corpos policiais. Disso falaremos mais
adiante.
Outro tipo de Polícia é, geralmente, o da Polícia
tributária que tem por finalidade a repressão e
averiguação dos delitos em matéria fiscal: as fraudes,
o contrabando, a sonegação de tributos, etc. Todavia,
este tipo de Polícia pode muito bem ser englobado nos
outros dois, já que não representa uma função
diferente, mas, mais simplesmente, um campo
específico e técnico de intervenção.
III. CORPOS DE POLÍCIA. — As funções de Polícia
administrativa e de Polícia judiciária não têm
correspondido na Itália a diferentes corpos de Polícia
para isso organizados.
No período que vai até à Primeira Guerra Mundial,
não se pode falar de verdadeiros e autênticos corpos
de Polícia: afora o Corpo de Guardas Aduaneiros
(1862), depois Guarda de Finanças (1881), que
desempenhava tarefas administrativas e judiciárias em
matéria tributária, as funções de Polícia foram de
preferência exercidas pelas prefeituras e pelos
empregados civis do ministério do interior. É verdade
que, pouco a pouco, se foram organizando corpos de
guardas locais, como o Corpo de Guardas da
Segurança Pública (1852), depois Corpo dos Guardas
de Cidade, desde 1890, Guarda Real para a Segurança
Pública, desde 1919, Classe dos Carabineiros
Especializados, desde 1923, e novamente Corpo de
Guardas da Segurança Pública, desde 1925, mas tal
corpo não apresentará senão pelos fins do século
passado características orgânicas suficientes para uma
utilização autônoma em operações de ordem pública.
Até esse momento, os funcionários da Segurança
Pública, caso surgissem manifestações populares,
solicitavam a intervenção do exército, para que ele
reprimisse manu militari os motins e
946
POLÍCIA
restabelecesse a ordem pública. Era de igual modo aos
militares que, em momentos de especial tensão social
e política, se confiava a gestão da ordem pública,
mediante a declaração de estado de sítio (instituição
que, no entanto, não estava prevista no Estatuto). Foi
assim que aconteceu em Gênova em 1849, na
Sardenha em 1852, na Sicília em 1862, em Palermo
cm 1866, de novo na Sicília em 1894, em Milão em
1898, em Messina e Reggio Calabria em 1909, e
finalmente em Turim em 1917. Restabelecida a ordem
por meio da repressão e dos tribunais militares,
suspendia-se o estado de sítio e as funções de Polícia
eram de novo confiadas aos funcionários ci vis das
prefeituras.
Nesse mesmo período, eram limitadas as funções
desempenhadas pela Arma dos Carabineiros Reais:
órgão integrante do exército, de consistência numérica
limitada, dispunha de escassa capacidade operativa,
devido ao parcelamento territorial da sua força. Fora
dos casos de grave situação da ordem pública, como o
do banditismo nas províncias meridionais, a função de
Polícia civil desta Arma se revelou na atividade de
vigilância e controle sobre o país que a sua organização
fracionária lhe permitia. Mais importante foi a sua
função de Polícia militar, no respeitante aos delitos
cometidos por elementos pertencentes às forças
armadas: neste sentido, porém, não se pode falar de
um uso maciço deste corpo antes da Primeira Guerra
Mundial, quando foi determinante a utilização dos
Carabineiros na repressão das revoltas na frente.
O fascismo constituiu também no campo da Polícia
o elemento racionalizador do aparelho jurídicorepressivo do Estado liberal: logo a seguir à chamada
marcha sobre Roma, para dar uma aparência de
ocupação a uma parte dos subproletários e
aventureiros
que
tinham
participado
no
empreendimento, foi criada a Milícia Voluntária para
a Segurança Nacional, órgão paramilitar de Polícia de
partido e de regime que se equiparou, nas tarefas
tradicionais, aos funcionários de Polícia e às forças
armadas. Para ampliar o próprio campo de ação e o
controle sobre o país e para aumentar as
possibilidades de emprego para os seus membros, a
M.V.S.N. se organizou em várias especialidades
operacionais: milícia de estradas, florestal, portuária,
ferroviária, etc. Os problemas de atritos e rivalidades
surgidos entre ela e as forças armadas foram por fim
resolvidos com a exclusão destas das tarefas de
Polícia, a que haviam sido antes destinadas.
A queda do regime fascista não significou a
automática eliminação do sistema repressivo por ele
organizado. O Corpo de Guardas de Segurança
Pública passou a fazer parte, formal e
disciplinarmente. das forças armadas em 1943, poucos
dias depois da queda do fascismo, para garantir sua
fidelidade ao soberano e ao novo governo. A M.V.S.N.
foi extinta, mas os Governos que se sucederam a 1948
aproveitaram a sua organização, suas especialidades e
até grande parte dos seus homens.
Na Itália contemporânea, os corpos de Polícia
compreendem: a Polícia de Estado, o Corpo dos Agentes
de Custódia, o Corpo de Vigias do Fogo. dependentes
do ministério do Interior; o Corpo da Guarda das
Finanças, dependente do ministério das Finanças: o
Corpo dos Guardas Florestais, dependente do
ministério da Agricultura: e os vários corpos de
guardas e vigilantes rurais urbanos, dependentes de
cada uma das administrações locais. Desempenha
sobretudo funções de Polícia, embora pertença às
FORÇAS ARMADAS (v.) e, especificamente, ao exército,
a Arma dos Carabineiros. a única que desenvolve
também funções de Polícia militar.
IV. RECRUTAMENTO. — O primeiro elemento de
avaliação dos corpos de Polícia está na análise do tipo
de recrutamento adotado. Os corpos que recrutam o
seu pessoal em todo o território nacional podem
realmente organizar-se de forma que contem com
unidades e grupos constituídos por elementos
provindos de regiões diferentes das regiões de
operações: o emprego de corpos de Polícia contra
populações que não possuem vínculos sociais,
econômicos e culturais com eles, foi sempre a melhor
solução para uma política repressiva antipopular. Daí o
envio do pessoal de Polícia para regiões distantes da
região de origem com um duplo resultado, o do
isolamento social e cultural com relação às populações
controladas e o do conseqüente aferro psicológico ao
corpo a que se pertence e às suas estruturas.
Os corpos de Polícia, que têm um recrutamento
circunscrito à zona de controle (por exemplo, os
guardas urbanos alistados pelas comunas onde se
encontram trabalhando), não se prestam a ações
diretamente antipopulares e repressivas pelos ligames
sociais e políticos que existem entre seus componentes
e as populações controladas. Sua utilização fica, pois,
restrita ao desempenho de funções de Polícia urbana,
rural, etc, em tarefas que não apresentam um imediato
aspecto político e que envolvem mormente a defesa da
segurança pública em sentido lato e não tanto a ordem
pública.
Tal distinção .permite reexaminar os juízos
emitidos por alguns sobre os corpos de Polícia
italianos. As chamadas "oito Polícias" que d'Orsi, por
exemplo, julga atuarem com uma função políticorepressiva, hão de ser, em nosso entender, analisadas e
diferenciadas segundo o critério
POLÍCIA
do tipo de recrutamento adotado. Segundo o
recrutamento em uso, os corpos poderão ser
considerados ou não como capazes de se envolver em
operações políticas antipopulares conforme as
diretrizes do executivo: os vigilantes e guardas não
podem ser usados numa repressão política
determinada, mas podem constituir, pelo estreito
ligame que os une à realidade sócio-econômica do
lugar, um instrumento de contenção e esfriamento das
situações de tensão. Assim também outros corpos,
considerados como disponíveis na repressão política,
como os Vigias do Fogo e os Agentes de Custódia, só
poderão ser utilizados com grande dificuldade fora
dos seus campos específicos de intervenção.
V. ESPECIALIZAÇÃO. — O segundo elemento de
avaliação dos corpos de Polícia está no seu grau de
especialização funcional e na correspondência deste
com a estrutura orgânica dos corpos. A especialização
da Polícia de estradas, por exemplo, é um elemento
positivo para a explicação do controle do trânsito e da
rede rodoviária; o mesmo se pode dizer da Polícia
científica, onde o funcionamento dos corpos apresenta
aspectos substancialmente positivos. Onde, pelo
contrário, a especialização não se acha acompanhada
de uma estrutura organizacional apropriada, as
funções de Polícia apresentam problemas que não
podem ser desprezados.
A inexistência de um corpo organizado de Polícia
judiciária, por exemplo, prejudica muitas vezes o
correto e pronto andamento das investigações e da
instrução dos processos. A Polícia judiciária é composta
por Núcleos da Arma dos Carabineiros, da Polícia de
Estado e da Guarda das Finanças, depende
operacionalmente do procurador geral junto ao
Tribunal de Recursos e do procurador da república e,
organicamente, dos vários ministérios a que está
subordinado cada um dos corpos. Este estado de dupla
dependência tem criado dois tipos de disfunções.
Devido ao prevalecente emprego dos Núcleos nos
trabalhos de secretaria, a capacidade operacional da
Polícia judiciária está ligada às exigências de serviço
dos vários corpos e, conseqüentemente, à
disponibilidade das autoridades de Segurança Pública
local. A falta de autonomia explica, de fato, a
dependência revelada pela autoridade judiciária em
relação à autoridade de Segurança Publica em certas
investigações: daí as indagações serem feitas
principalmente por questores e comissários, e uma
perda de autoridade por parte dos órgãos judiciários.
Outra das disfunções está na separação entre carreira e
setor de atuação dos agentes: estes não se sentem
estimulados a um melhor trabalho, porque o
mecanismo de carreira obedece ao corpo e não à
especialidade
947
(como acontece, ao invés, com a Polícia de trânsito,
por exemplo).
O problema da falta de especialização existe
também nos corpos organizados segundo critérios e
métodos de uso já um tanto ultrapassados. É o caso da
Polícia de fronteira, oprimida por regulamentos
antiquados e obrigada, por isso, a não os aplicar, e
composta de elementos escassamente preparados e
especializados para as novas tarefas que a instituição
exige (pense-se no policiamento dos aeroportos e nas
delicadas tarefas antiterroristas). Está igualmente
ultrapassado o critério de emprego da Polícia de
segurança (em seus grupos móveis) na manutenção da
ordem pública: o uso das armas mesmo em situações
livres de perigo, a utilização dos grupos em condições
psicofísicas precárias por causa das longas esperas e do
estado de tensão criado artificialmente pelos quadros
diretivos, a total desinformação sobre as situações que
provocaram a intervenção, fazem com que o emprego
destes grupos, em lugar de representar um instrumento
especializado e funcional para o pronto
restabelecimento da ordem pública, se transforme,
amiúde, em elemento de desordem e. por conseguinte,
de aumento das tensões. A exigência por muitos
formulada em face do exemplo inglês, de
desarmamento dos grupos de Polícia empenhados em
operações de ordem pública, embora profundamente
válida, alcança apenas parcialmente a realidade do
problema: a especialização da Polícia de Segurança
apresenta aspectos que vão além do desarmamento
dos seus corpos e abrange uma melhor compreensão
da realidade social e política do país. Os métodos
atuais do seu uso têm, com efeito, sua razão de ser na
utilidade que o sistema repressivo criado pelo Estado
fascista apresenta ainda hoje quanto ao emprego
indiscriminado dos corpos de Polícia nas operações de
ordem pública.
VI. DESCENTRALIZAÇÃO. — Outro elemento que
caracteriza a atividade dos corpos de Polícia está no
seu grau de descentralização com relação à
administração estatal. A direta dependência dos corpos
de Polícia dos prefeitos e, por conseqüência, do
Governo nacional, permite que eles sejam utilizados
na instauração do estado de ordem que o executivo
exige para o desenvolvimento da sua própria função.
Num sistema de poder tendente à descentralização,
como é o baseado nas instituições regionais e nas
autonomias locais, a estrutura centralizada dos corpos
de Polícia constitui um elemento de unidade nacional
entre as várias situações da ordem, sendo também um
forte fator da permanência da estrutura do poder
tradicional.
948
POLÍCIA
A descentralização dos corpos de Polícia em
lermos de um efetivo recrutamento regional e local e a
organização estruturada sobre essa base e esse raio de
ação limitado poderiam constituir um fator de
potenciação da atividade de Polícia no verdadeiro e
específico campo da segurança pública, ao mesmo
tempo que poderia ser mais moderado e, de qualquer
maneira, correspondente a situações de mais amplo
interesse, o emprego desses corpos em funções de
ordem pública. A criação de variado número de
corpos de Polícia regional reduziria o perigo das
involuções autoritárias que os corpos de Polícia
organizados mediante recrutamento nacional sempre
representaram até aqui. Além disso, a fragmentação
geográfica das forças de Polícia permitiria que se
superasse o mecanismo do antagonismo entre os
diversos corpos hoje existentes, mecanismo que, se
constituiu um indiscutível fator de estabilidade
institucional, não impediu que em certos momentos se
criasse o perigo de retrocesso e de algum golpe de
força, mercê de determinados corpos de Polícia.
Nestes últimos tempos, também se tem agitado na
Itália a questão da diferença existente entre as
necessidades operativas — predominantes nas zonas
industriais do Norte — e a oferta de candidatos para a
carreira de agentes de Polícia, provenientes em grande
número das zonas mais subdesenvolvidas do Sul ou
das Ilhas. Esta diferença punha os corpos de Polícia
diante do pedido insistente dos agentes oriundos das
regiões meridionais para serem transferidos para o Sul
ou, em todo caso, para regiões não distantes das
regiões de origem. Uma das soluções adotadas
consistiu na regionalização dos editais de
recrutamento, onde se indicam as necessidades de
pessoal para cada uma das regiões e se exige como
requisito aos candidatos a residência nelas. Trata-se de
um artifício burocrático que não lesa o caráter
nacional dos corpos de polícia (P. de S., G. de F.) por
não constituir um verdadeiro e autêntico recrutamento
regional, que não respeita à totalidade desses corpos (os
carabineiros, por exemplo, estão excluídos) e que se
apresenta como um instrumento técnico de contenção
do impulso ao "retorno à casa", que o sistema de
clientela da administração do Estado favorecia e não
estava, portanto, em condições de resolver.
VII. SINDICALIZAÇÃO DOS CORPOS DE
POLÍCIA. — O problema da agremiação dos
membros do Corpo de Guardas da Segurança Pública
em sindicatos de categoria foi recentemente resolvido
com a lei n.° 121 de 1.º de abril de 1981, que
substituiu o nome do corpo pelo de Polícia de Estado,
sempre dependente do ministério do
Interior, e introduziu outras importantes inovações,
tanto orgânicas como funcionais.
O problema político da sindicalização dos corpos
de Polícia surgiu na década de 70, devido ao encontro
do espírito das medidas de militarização da
corporação, emanadas por evidentes razões de ordem
pública do Governo Badoglio em 1943, com o temor
de que a organização sindical constituísse, por si, uma
ameaça à disciplina e ao profissionalismo dos
integrantes do Corpo de Guardas da Segurança
Pública.
A exigência de um sindicato dos que trabalham na
polícia era reforçada por uma situação de mal-estar
respeitante ao trabalho, pelas condições precárias em
que ele era realizado, pelo baixo nível de remuneração
e pela escassa influência que o pessoal tinha nas
decisões de organização e funcionamento da
corporação; manifestada desde 1974, em reuniões
cada vez menos clandestinas dos membros do Corpo
de Guardas da Segurança Pública, foi pouco a pouco
sensibilizando as forças políticas parlamentares
italianas, que debateram longamente uma solução
legislativa para as exigências concordemente
formuladas pelos integrantes deste setor particular da
administração pública. Evocando o direito comparado
europeu, não deixaram dúvidas sobre importantes
casos anteriores de sindicalização dos membros de
numerosos corpos de Polícia dos países da
comunidade, precedentes que já haviam conseguido
demonstrar a inconsistência dos temores de uma
queda na eficiência dos corpos de Polícia, quando
privados da particular tutela decorrente das limitações
postas pelos códigos militares à liberdade pessoal.
Contudo, foi exatamente em torno do raciocínio
sindicalização-desmilitarização que se desenvolveu e
encontrou solução o debate político sobre tal
problema na Itália: entendeu-se que só com a
desmilitarização do Corpo de Guardas da Segurança
Pública se poderia permitir a sindicalização dos seus
membros, atribuindo-se com isso ao texto da
Constituição — que no art. 98 admite, mas não indica,
tal limitação a respeito dos elementos dos corpos
militares e da Polícia — um significado de sentido
mais restrito; ignorava-se, além disso, o alcance da
convenção da OIL, ratificada pelo próprio Parlamento
italiano, que prevê expressamente a possibilidade de
que os militares possam pertencer a organizações
sindicais.
A liberdade de associação sindical dos membros da
Polícia de Estado fez-se assim derivar da
desmilitarização dos seus membros, ficando a
prudência do legislador italiano satisfeita com a
proibição de afiliação a outros sindicatos imposta, por
lei, aos sindicatos do pessoal da Polícia, e com a
proibição, aliás aceita por esse
PÓLIS
mesmo pessoal desde o surgir do problema da
sindicalização, de usar a arma da greve.
Do desenvolvimento e ação dos sindicatos dos
empregados da Polícia dependerá, em conclusão, a
possibilidade de que, num futuro que não é lícito
prever particularmente próximo, a mesma liberdade
seja estendida também aos integrantes de outros
corpos de Polícia — Guarda das Finanças, Arma dos
Carabineiros, etc. — a menos que o Governo e o
Parlamento não definam e ponham em prática
soluções destinadas a acabar com o mal-estar reinante
entre os trabalhadores destes corpos e a eliminar a
base de descontentamento que deu origem à exigência
de sindicalização da Polícia italiana.
BIBLIOGRAFIA. S. BOVA. Il controllo politico delle
forze armate, Einaudi. Torino 1982; A. BRAVO.
Gestione dell'ordine pubblico e classe operaia.
"Política del diritto", vol. 3/4, agosto 1974; A. CICERO,
Cenni sull'organizzazione delle forze di polizia. Roma
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forze dell'ordine italiano. Feltrinelli. Milano 1972; V.
GUCCIONE, La polizia di sicurezza, Firenze 1960; P.
JANNITTI PIROMALLO. Manuale delle leggi di pubblica
sicurezza, Giuffrè, Milano 1953.
[SERGIO BOVA]
Pólis.
I. NOÇÃO DE PÓLIS E ELUCIDAÇÃO SOBRE A
PERSISTÊNCIA
HISTÓRICA
E
DIFUSÃO
GEOGRÁFICA DA CIDADE-ESTADO. — Por Pólis
se entende uma cidade autônoma e soberana, cujo
quadro institucional é caracterizado por uma ou várias
magistraturas, por um conselho e por uma assembléia
de cidadãos (politai).
A noção assim antecipada, em cuja formulação
entram categorias jurídicas de algum modo estranhas
ao espírito grego, é na realidade fruto de um processo
de abstração de situações históricas assaz diversas
entre si. Basta dizer que, falando da Pólis grega,
podemos nos referir quer aos regimes oligárquicos
(típicos dos séculos VIII-VI, mas verificáveis também
nos séculos posteriores), quer aos regimes
democráticos que se encontram a partir mais ou menos
do século VI. Por outro lado, o fenômeno da cidadeEstado não se esgota no mundo grego, isto é, no
território da Hélade e nas regiões colonizadas pelos
gregos tanto no Oriente como no Ocidente, tais como
a Magna Grécia. Cidade-Estado é, de fato, em suas
origens e mesmo depois por longo tempo, a própria
Roma. Aqui nos limitaremos,
949
porém, a tratar apenas das vicissitudes fundamentais
por que passou a Pólis por antonomásia, isto é, a
grega.
II. ORIGENS DA PÓLIS
CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS.
NA GRÉCIA E SUAS
— Os momentos mais
obscuros da história da Pólis concernem às origens,
isto é, ao período da sua consolidação como estrutura
política própria do mundo grego. Existem sobre esta
matéria opiniões bastante díspares: alguns autores
fixam sem hesitar a origem da Pólis em torno do ano
500 a. C; outros, ao contrário, fazem remontar o
fenômeno à época monárquica, tal como no-la
descrevem os poemas homéricos. Tais divergências são
obviamente fruto dos diferentes ângulos em que se
colocam os estudiosos; mas é preciso reconhecer que
o problema não é de fácil solução. Um dos maiores
obstáculos à clara determinação das circunstâncias
históricas que favoreceram o surgimento das Póleis
está na vexata quaestio da invasão dórica: segundo a
opinião de alguns estudiosos, teriam sido precisamente
os dórios, outro povo de origem indo-européia e de
estirpe helênica, mas mais jovem e militarmente mais
forte, que submeteram os aqueus, já estabelecidos no
território da Hélade e governados por uma monarquia.
Com a conseqüente queda do regime monárquico e a
instauração do regime oligárquico teria surgido uma
nova organização política, precisamente a Pólis. Na
opinião de outros estudiosos, não se há de dar fé à
tradição da invasão dos dórios, que seria o novo nome
dado aos aqueus no momento da sua expansão por
outros pontos. Segundo esta mesma tese, a Pólis teria
surgido de algum modo da passagem da monarquia à
oligarquia; ter-se-ia, porém, consolidado sem a
intervenção de fatores externos como simples
conseqüência da supremacia da nobreza militar sobre
o poder monárquico, supremacia que se generaliza
durante o século VIII e reduz o basileus, quando não o
elimina, a mero órgão do Estado ou a rex sacrificulus.
Isto exposto, será conveniente estabelecer alguns
pontos essenciais que permitam compreender o
desenvolvimento histórico
O primeiro se refere à peculiar conformação
orográfica da Grécia, favorável, sem dúvida, à
formação de pequenos Estados, constituídos por uma
cidade principal, geralmente de modestas dimensões, e
um território, também ordinariamente de reduzidas
proporções.
O segundo ponto refere-se às relações entre a Pólis
e os organismos políticos menores; estes, além da
família em sentido estrito, são, em ordem crescente de
amplitude, o ghenos (isto é, o conjunto dos que estão
ligados a um tronco familiar comum), a fratria
(associação de famílias com
950
PÓLIS
encargos de comum defesa e assistência, e culto
próprio) e a tribo (conjunto de fratrias que, na
ausência de um eficiente poder estatal, acaba por
assumir funções de grande importância). A Pólis teria
se formado precisamente com o reconhecimento de uma
autoridade superior à dos organismos ora
mencionados. Diga-se também que de alguns destes
organismos, nomeadamente do ghenos, se discute sua
anterioridade em relação à Pólis; mas podemos
também acrescentar que uma parte ao menos da
tradição política grega apresenta as origens da Pólis
precisamente como foi acima exposto.
O terceiro ponto, relacionado com o precedente, diz
respeito à qualidade e quantidade das funções
assumidas pela cidade-Estado: é claro que a
sobreposição da Pólis aos organismos menores não
podia significar a imediata subtração de todas as
funções que eles até então haviam desempenhado. Em
vez disso, muitas instituições conservaram por longo
tempo os sinais da sua origem nos organismos préestatais: pensemos, por exemplo, na repressão do
homicídio que, estando outrora confiada aos
organismos menores, fica posteriormente sujeita ao
exercício de uma ação penal privada, isto é, sem
qualquer intervenção de ofício dos órgãos estatais. O
direito de família também se manteve essencialmente
livre das ingerências da Pólis; foram conservadas as
normas vigentes nas instituições menores e o Estado
apenas se limitou a exigir sua observância.
O último ponto concerne às relações entre as Póleis.
Convém dizer a tal respeito que as cidades gregas
estiveram ligadas, desde os tempos mais antigos, por
vínculos de caráter sagrado. no sentido de que os
grupos de Póleis se uniam em torno de santuários
célebres. Estas ligas sagradas ou anfictionias (dentre
as quais a mais importante é a de Delfos na Fócída)
não conseguiram nunca, não obstante, exercer uma
ação eficaz a favor da unificação política da Grécia.
Formaram-se, é verdade, unidades cantonais ligadas
por vínculos federativos; mas a renúncia às
prerrogativas de soberania, ou mesmo apenas a uma
parte delas, constituiu sempre para cada uma das
Póleis um sacrifício pesadíssimo. A confederação mais
importante foi a pcloponésia. O perigo da hegemonia
de uma cidade sobre as outras (diante do qual os
gregos reagiam de modo tão particular) teve aqui
plena realização; a supremacia de Esparta, ao
princípio só verificável no plano dos fatos, foi depois
também
formalmente
reconhecida.
Houve
excepcionalmente uniões de cidades ainda mais
amplas, como no caso de perigo de invasões externas;
foi assim que a ameaça persa teve o condão, em 481,
de unir pelo menos momentaneamente
Atenas e Esparta, tradicionalmente rivais. Mas,
podemos concluir, à unidade da cultura grega não
correspondeu, na época das póleis, uma visão unitária,
ou seja, nacional, no plano político.
III. A PÓLIS OLIGÁRQUICA. — Ficam assim
delineados, se bem que de forma sumária e segundo as
teses mais tradicionais, os problemas da origem da
Pólis, e fixados os pontos fundamentais para a
compreensão do seu desenvolvimento histórico.
Poderemos agora falar brevemente da Polis
oligárquica.
Já sabemos que a superação das instituições
monárquicas se deu com o predomínio da nobreza
militar; é precisamente por isso que o novo
ordenamento da Pólis se chamou aristocrático. Mas as
mudanças econômicas que se verificaram a partir do
século VIII com o incremento do comércio marítimo
tiveram como conseqüência a formação de uma rica
burguesia urbana, influindo igualmente no Governo da
cidade. Em suma, quem mais se enriquecera e havia
empregado, por vezes, seus recursos financeiros na
aquisição de terrenos, foi alcançando, pouco a pouco,
a possibilidade de tomar parte mais ativamente na
vida política. Foi assim que nasceu a oligarquia
timocrática ou plutocrática: o acesso aos cargos
públicos estava vinculado à posse de um certo
patrimônio, geralmente bastante elevado.
A tipologia das cidades oligárquicas é assaz variada
e está destinada a evoluir com o tempo. Por isso, as
quatro formas que Aristóteles conseguiu distinguir
(Pol.: IV, 5, 1 e 6-8) são de caráter meramente lógico:
na primeira forma, a renda exigida para participar do
Governo era bastante baixa, de tal modo que as
magistraturas se tornavam acessíveis à maioria; na
segunda forma, a renda necessária já era mais elevada
e os magistrados eram escolhidos por cooptação; a
terceira exigia uma renda ainda maior, sendo os cargos
transmitidos por via hereditária; a quarta, onde se
formava, sem mais, uma "dinastia" notável pelas
riquezas e não sujeita às leis, como o estavam, pelo
contrário, os demais tipos de oligarquia.
Por sua vez, os órgãos da cidade oligárquica são os
mesmos que se encontram na cidade democrática e que
já enumeramos anteriormente.
A diferença essencial entre os dois regimes não
consiste, pois, no número de tais órgãos, mas antes na
gama de poderes a eles atribuídos. Na prática, na Pólis
oligárquica era menor o peso político, e mesmo
jurídico, da assembléia dos cidadãos, especialmente
quando seu número era bastante elevado, se
comparado com os poderes de que gozavam o
conselho e os magistrados. Se considerarmos, por
exemplo, as leis
PÓLIS
constitucionais de Esparta, que ficou para sempre
como tipo da cidade oligárquica, depressa
observaremos que, pelo menos a partir de uma certa
época, metade do século VII, a Apella ou assembléia
dispôs de poderes quase exclusivamente formais, salvo
no que respeita, como veremos, à eleição dos éforos. A
amplitude dos poderes, quer no concernente aos
negócios internos, quer no tocante às relações
exteriores, pertencia à gherousia, formada por vinte e
oito membros vitalícios escolhidos pela assembléia
entre os que houvessem completado sessenta anos. Da
gherousia faziam parte também os dois reis ou diarcas,
elevando assim o número total dos seus membros para
trinta. Os diarcas eram obviamente um resíduo, em
Esparta mais resistente do que em qualquer outro
lugar, da antiga monarquia; tinham originariamente
funções de grande relevo, mas foram-nas perdendo
progressivamente a favor de outros órgãos.
Não há dúvida de que, sob o aspecto jurídico,
também o conselho fosse uma verdadeira e autêntica
magistratura; aliás, os gregos o consideravam a
magistratura mais elevada. Contudo, devido à própria
necessidade
da
divisão
do
trabalho
e,
conseqüentemente, da especialização, bem como da
preparação da atividade do conselho, surgiram mais
tarde outros magistrados, que, no caso específico de
Esparta, são os cinco éforos. Estes magistrados, por
serem eleitos cada ano pela Apella, representavam,
sem dúvida, um órgão mais próximo da vontade
popular e foram ampliando cada vez mais seus poderes,
originariamente só de controle, em prejuízo dos
diarcas. Trata-se, porém, de uma magistratura muito
questionada, à qual se imputava sobretudo haver traído
suas origens populares e aspirar ao poder absoluto. Por
este mesmo motivo, pode-se afirmar que a constituição
espartana, tradicionalmente atribuída ao legislador
Licurgo (hoje, de resto, considerado pela crítica
moderna como mera figura mítica), foi sempre de
tendência oligárquica.
IV. A TIRANIA E A ORIGEM DA PÓLIS
DEMOCRÁTICA. — No decorrer do século VI,
ocorreu em muitas cidades gregas uma profunda
transformação política. Será oportuno considerar a este
propósito que, na transição da oligarquia aristocrática
à oligarquia timocrática, nem sempre a inteira classe
média, ou seja, aquela que então era chamada demos,
obteve adequado reconhecimento político. Contudo,
havia tempo que a burguesia prestava uma
contribuição essencial para o exército da cidade que,
ao transformar-se de exército de cavaleiros em
exército de hoplitas, isto é, de infantaria, se havia
servido de quantos eram capazes, por si sós, de
conseguir uma armadura,
951
indubitavelmente menos custosa que a manutenção de
um cavalo. Acrescente-se a isto que, abaixo da classe
média, existia o largo estrato dos que nada tinham, ou
seja, uma base naturalmente disponível para a luta de
facções, ou mesmo de classes. Diante desta massa de
pequenos burgueses e deserdados se apresentavam
alguns objetivos imediatos, como a codificação das
normas consuetudinárias, assim como outros de mais
longínqua perspectiva. Para alcançar todos esses
objetivos, ou parte deles, se oferecia às classes
inferiores como alternativa, ou o acordo com as classes
dominantes (responde a tal escopo a nomeação de
esimnetas, ou pacificadores, e de legisladores), ou, ao
invés, o apoio a um chefe capaz de deslocar o eixo do
poder político. A escolha de semelhante chefe, muitas
vezes pertencente justamente às classes mais ricas, deu
azo à "tirania", instituição detestável para o
pensamento político grego (sobretudo porque o tirano
tendia a afirmar a toda a custa seu poder pessoal), mas
à qual se há de reconhecer uma função específica na
transição da oligarquia para a democracia.
Como é fácil de entender, o advento da democracia
implicava, em primeiro lugar, a atribuição do máximo
poder político à assembléia e trazia consigo novos
critérios para a escolha dos magistrados, inclusive para
a atribuição das magistraturas por sorteio. Mas é de
observar aqui que a idéia democrática também contou
com uma ampla e clara oposição intelectual. De
Sócrates a Platão e Aristóteles, pode-se encontrar, se
bem que com tonalidades diversas, a condenação do
individualismo vinculado à idéia democrática e a
aversão à onipotência da assembléia (que amiúde
acabava por governar por meio de decretos e não
segundo a lei) como uma das constantes do
pensamento político. Aristóteles, particularmente,
acentua repetidas vezes o perigo que existe de que a
democracia degenere em demagogia; um risco
verdadeiramente grave, porquanto a democracia já é
tida como uma degeneração da politia, isto é, daquela
forma ideal de constituição onde governa certamente a
maioria, mas no interesse de todos e não no de uma só
classe social, conquanto numerosa. Aristóteles (Pol.,
IV, 4, 2-7, e IV, 5, 3-5) distingue cinco formas de
democracia: a primeira é aquela em que as classes dos
ricos e dos pobres estão, por lei, no mesmo plano de
igualdade, mesmo que, sendo os pobres mais
numerosos, seja a eles que cabe inevitavelmente
governar, com a conseqüência implícita de uma
política de classe; a segunda é aquela onde, para
chegar à magistratura, é preciso possuir um patrimônio
não elevado; a terceira é aquela em que os cargos são
acessíveis a qualquer cidadão de origem
irrepreensível; a
952
PÓLIS
quarta é aquela em que todos os cidadãos podem
aspirar aos diversos cargos; a quinta é aquela onde é
soberana não a lei, como nas formas precedentes, mas
a massa, ou seja, a assembléia, sendo então que ocorre
o fenômeno da demagogia. Aristóteles acaba por
aderir à opinião daqueles que vêem no último caso a
ausência de uma verdadeira constituição.
V. A CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE
ATENAS
NAS
SUAS
PRINCIPAIS
INSTITUIÇÕES E MOMENTOS HISTÓRICOS. —
Contrastando com Esparta, a cidade democrática por
antonomásia é Atenas. Sua constituição democrática
se foi formando, sem dúvida, gradualmente; a
tradição assinalou, por isso, alguns momentos
fundamentais, ligados às maiores personalidades
políticas.
Deixando de lado Drácon, em que a crítica moderna
se inclina a ver não já o autor de uma constituição,
mas antes um codificador do direito, a primeira figura
de grande importância na história da democracia
ateniense é, indubitavelmente, Sólon. Obteve o
arcontado, que era a magistratura epônima, entre 594593, com a incumbência de reorganizar a constituição
e de eliminar, em conseqüência, os contrastes entre as
classes em luta. Elaborou, de fato, uma série de
medidas: em primeiro lugar, aboliu, com efeito
retroativo, a escravidão por dívidas, declarando
também nulas as hipotecas sobre bens indispensáveis à
vida do devedor, mas, ao mesmo tempo, se recusou a
autorizar novas distribuições de terras; em segundo
lugar, já num plano diretamente constitucional,
procedeu, baseando-se nas distinções então existentes,
à divisão censitária dos cidadãos em quatro classes (a
dos pentacosiomedimnas, a dos cavaleiros, a dos
zeugitas e a dos tetas), reconhecendo depois como
capazes de eleição passiva apenas as três primeiras
classes e, em certos casos, só a primeira ou a primeira
e a segunda, ao passo que o direito de eleição ativa
atingia todos os cidadãos, sem distinção; finalmente,
ainda no plano constitucional, criou novos órgãos,
como a Eliea ou tribunal do povo, cujos membros
eram escolhidos à sorte entre os cidadãos e sob cuja
alçada recaíam as acusações públicas.
A avaliação da atividade de Sólon e da sua linha
política tem sido sempre de grande interesse para a
historiografia moderna. Entre as interpretações
extremas que vêem em Sólon, ora o fundador da
democracia ateniense, ora, pelo contrário, o simples
conservador iluminado, o juízo mais freqüente e
equilibrado é o de que ele levou a cabo uma
revolução moderada, não ainda plenamente
democrática, mas certamente favorável à instituição
da democracia.
Depois de Sólon, Atenas experimentou longos anos
de lutas civis, seguidos depois por longos anos de
tirania, com Pisístrato e com seu filho Hípias. Tratouse, não obstante, de uma tirania bastante respeitosa da
constituição. Após o fim do Governo de Hípias, cuja
queda foi provocada pela aristocracia com a ajuda dos
espartanos, surgiu outra figura de grande relevo,
Clístenes. Era um aristocrata, como aliás Sólon, mas a
sua ação política e as suas reformas, que tiveram
início por volta do ano 510, depois de ser nomeado
arconte, estiveram claramente voltadas para o
interesse do demos. Clístenes dividiu o país em dez
tribos territoriais; cada tribo compreendia três distritos
ou trittie, e cada um destes distritos abrangia outros
menores, os demi. Isto não só destruiu os laços
conaturais às antigas tribos gentilícias, mas constituiu
também a base da instituição de um novo órgão, a Bule
dos Quinhentos, de que faziam parte cinqüenta
cidadãos tirados à sorte de cada uma das tribos: a
Bulè, uma magistratura colegial, converteu-se no
supremo órgão administrativo da cidade, tendo
também uma função probuleutica, que implicava a
composição da ordem do dia da assembléia popular.
Quanto ao mais, Clístenes não modificou
substancialmente a constituição de Sólon; mas é de
assinalar a criação da instituição do ostracismo que
veio aumentar ainda mais os poderes da assembléia
popular, se bem que os estudiosos não estejam
totalmente de acordo quanto à atribuição deste
instituto a Clístenes.
A
constituição
de
Clístenes
manteve-se
praticamente imutável durante várias décadas, isto é,
até ao advento de Péricles. Uma das novidades mais
importantes deste período, marcado, aliás, por
acontecimentos como as guerras pérsicas e as reacesas
discórdias entre os partidos, é a reforma do sistema de
nomeação dos arcontes, agora escolhidos mediante
sorteio, mesmo que tal novidade tenha coincidido com
o decréscimo da importância do arcontado e com o
aumento da influência da estratégia, magistratura
criada por Pisístrato e destinada a tornar-se a mais
importante da cidade. Outra inovação de interesse,
devida a Efialta em 461, foi a limitação da
competência do Areópago (órgão naturalmente
conservador, porquanto composto de membros
vitalícios) só aos homicídios premeditados.
A época de Péricles, iniciada em 460 com a sua
primeira eleição para estratego, distinguiu-se por uma
complexa e intensa relação entre aquele que
representava uma espécie de chefe do Governo,
reeleito estratego pela assembléia umas trinta vezes, e
a própria assembléia popular. As inovações deste
período são, com efeito, assaz reveladoras: de um
lado, foi introduzida a
PÓLIS
acusação pública de paranomia, usada contra o
proponente de um decreto em contraste com as leis,
com o fim evidente de reduzir o perigo de constantes
derrogações das leis por parte da assembléia; do outro,
concedeu-se uma indenização (mistoforia) a quem
desempenhasse um cargo público, com o claro
objetivo de permitir até aos menos abastados, então
admitidos à magistratura por sorteio, a participação no
Governo da Pólis.
Durante o domínio de Péricles, iniciou-se também a
guerra do Peloponeso que opôs principalmente Atenas
e Esparta, fazendo depois deflagrar a discórdia, de
forma violenta, entre os próprios democratas e
oligarcas em cada uma das cidades. Houve então em
Atenas um temporâneo retorno à oligarquia: o
episódio mais relevante neste sentido é o do Governo
dos Trinta. A restauração do regime democrático deuse em 403, com a volta à constituição de Clístenes e
Péricles; o regime democrático, não obstante os
contínuos conflitos entre as Póleis e as classes sociais,
manteve-se depois estável em Atenas até 338, ou seja,
até à batalha de Queronéia, que assinalou, como se
sabe, a supremacia dos macedônios sobre os gregos.
VI. ASPECTOS SALIENTES DA DEMOCRACIA ATENIENSE.
— A constituição democrática de Atenas foi
diversamente avaliada pelos próprios gregos, como já
dissemos, o mesmo acontecendo com os estudiosos
modernos. Para além de qualquer polêmica, é
indubitável que o regime democrático ateniense
apresenta muitos aspectos positivos, ainda hoje
merecedores de consideração; importa, porém,
reconhecer igualmente que a exacerbação de alguns
princípios trouxe consigo inconvenientes de não
pequena monta. Convirá, pois, a título de mero
exemplo, ressaltar alguns pontos. O primeiro,
fundamental para a avaliação de qualquer regime
político ou ordenamento jurídico, se refere àquilo que
hoje chamamos poder judiciário. Se considerarmos, por
um lado, a composição do supremo tribunal de Atenas
na época democrática (a Eliea em que todo o cidadão
tinha direito de participar), e, do outro, a deficiente
configuração do Estado como pessoa jurídica, logo
veremos que não se pode falar de um verdadeiro poder
judiciário tal como hoje é entendido, e muito menos de
separação de poderes; em suma, exercendo as funções
judiciárias, o cidadão participa diretamente da
soberania da Pólis, entendida como sociedade de
politai. É claro que o não-profissionalismo do juiz
oferece algumas vantagens, pois evita, acima de tudo,
que o corpo judiciário se isole como uma "casta"
(quase sempre guarda de ordenamentos
953
ultrapassados); mas também não se pode ignorar que
isso dá azo à incompetência e, por vezes, à corrupção.
Outro ponto significativo está na relação entre lei e
decreto (no sentido exclusivamente grego de
deliberação da assembléia), num ordenamento
constitucional onde a assembléia popular ocupa posto
de tão grande importância. É evidente que a
assembléia tenderá com freqüência a modificar a lei
existente por meio de uma simples deliberação, sem
ter antes ab-rogado a lei em vigor. Para evitar
precisamente a constante subversão da ordenação
jurídica, nela compreendidas as próprias normas
constitucionais, foram excogitados alguns remédios,
em primeiro lugar a já mencionada acusação pública de
paranomia, que tinha de ser apresentada à Eliea.
Acima dos remédios, estava, contudo, a realidade de
uma assembléia numerosa, onde se desenrolava o jogo
das pressões momentâneas e onde a legalidade, para
ser salvaguardada, precisava de ter defensores.
VII. A VITÓRIA MACEDÔNIA E O FIM DA
POLIS. — A democracia, restaurada em Atenas nos
fins do século V, encontra no século IV sua
decadência. Como os próprios gregos já sublinharam,
as causas de tal declínio podem resumir-se numa só
que foi o predomínio do individualismo mais
desenfreado. A participação na assembléia não é mais
entendida como contribuição para o bem comum, mas
como meio de obter vantagens pessoais. É
extremamente significativo, aliás, que o misthos seja
então pago pelo Estado não apenas aos titulares de
uma magistratura, mas também aos simples
participantes da assembléia. É este o sinal mais
evidente da mudança do clima político; mas o quadro
geral apresenta ainda outros muitos elementos
negativos. Os participantes da assembléia são agora
sobretudo os que nada possuem; isto seria o bastante
para pôr em crise os recursos de um Estado onde as
magistraturas financeiras se tornavam cada dia mais
importantes. Sobre este fundo vai ganhando cada vez
mais corpo a tendência de uma parte considerável do
pensamento político a favor do regime monárquico, o
único que se acreditava seria ainda capaz de devolver
a ordem ao Estado.
As guerras contra os macedônios aceleram o
processo de decadência. As condições de paz impostas
por Filipe Il e a criação da liga de Corinto constituem
uma das maiores contribuições para a consolidação da
idéia pan-helênica. Nessa altura, a época da cidadeEstado grega pode considerar-se finda, mesmo que
continuem a existir formalmente as Póleis e suas
constituições particulares. O novo ideal político é para
muitos, inquestionavelmente, o monárquico.
954
POLÍTICA
BIBLIOGRAFIA. G. PASSO. La democrazia in Grecia.
Il Mulino, Bologna 1959: N. D. FUSTEL DE
COULANGES. La cité antique. Hachette. Paris 1864.
Vallechi. Firenze 1924 e Laterza. Bari 1925: G.
GLOTZ. La cité grecque, Albin Michel. Paris 1953.
Einaudi. Torino 1956 e Il Saggiatore. Milano 1969:
Zur griechischen Staalskunde. ao cuidado de F.
GESCHNITZER. Wissenschaltliche Buchgesellschatt.
Darmstadt 1969: Hellenische Puleis, Krise-WandlungWirkung. ao cuidado de E. CH. WELSKOUPE. I-IV.
Akademie-Verlag. Berlin 1974.
[ROBERTO BONINI]
Política.
I.. O SIGNIFICADO CLÁSSICO E MODERNO
DE POLÍTICA. — Derivado do adjetivo originado de
pólis (politikós), que significa tudo o que se refere à
cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil,
público, e até mesmo sociável e social, o termo Política
se expandiu graças à influência da grande obra de
Aristóteles, intitulada Política, que deve ser
considerada como o primeiro tratado sobre a natureza,
funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de
Governo, com a significação mais comum de arte ou
ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se
com intenções meramente descritivas ou também
normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis,
sobre as coisas da cidade. Ocorreu assim desde a origem
uma transposição de significado, do conjunto das coisas
qualificadas de um certo modo pelo adjetivo "político",
para a forma de saber mais ou menos organizado sobre
esse mesmo conjunto de coisas: uma transposição não
diversa daquela que deu origem a termos como física,
estética, ética e, por último, •cibernética. O termo
Política foi usado durante séculos para designar
principalmente obras dedicadas ao estudo daquela esfera
de atividades humanas que se refere de algum modo às
coisas do Estado: Política methodice digesta, só para
apresentar um exemplo célebre, é o título da obra com
que Johannes Althusius (1603) expôs uma das teorias
da consociatio publica (o Estado no sentido moderno
da palavra), abrangente em seu seio várias formas de
consociationes menores. Na época moderna, o termo
perdeu seu significado original, substituído pouco a
pouco por outras expressões como "ciência do Estado",
"doutrina do Estado", "ciência política", "filosofia
política", etc, passando a ser comumente usado para
indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de
alguma maneira, têm como termo de referência a pólis,
ou seja, o Estado.
Dessa atividade a pólis é, por vezes, o sujeito, quando
referidos à esfera da Política atos como o ordenar ou
proibir alguma coisa com efeitos vinculadores para
todos os membros de um determinado grupo social, o
exercício de um domínio exclusivo sobre um
determinado território, o legislar através de normas
válidas erga omnes, o tirar e transferir recursos de um
setor da sociedade para outros, etc; outras vezes ela é
objeto, quando são referidas à esfera da Política ações
como a conquista, a manutenção, a defesa, a
ampliação, o robustecimento, a derrubada, a destruição
do poder estatal, etc Prova disso é que obras que
continuam a tradição do tratado aristotélico se
intitulam no século XIX Filosofia do direito (Hegel,
1821), Sistema da ciência do listado (Lorenz von
Stein, 1852-1856), Elementos de ciência política
(Mosca, 1896), Doutrina geral do Estado (Georg
Jellinek, 1900). Conserva parcialmente a significação
tradicional a pequena obra de Croce, Elementos de
política (1925), onde Política mantém o significado de
reflexão sobre a atividade política, equivalendo, por
isso, a "elementos de filosofia política". Uma prova
mais recente é a que se pode deduzir do uso enraizado
nas línguas mais difundidas de chamar história das
doutrinas ou das idéias políticas ou, mais
genericamente, história do pensamento político à
história que, se houvesse permanecido invariável o
significado transmitido pelos clássicos, teria de se
chamar história da Política, por analogia com outras
expressões, como história da física, ou da estética, ou
da ética: uso também aceito por Croce que, na pequena
obra citada, intitula Para a história da filosofia da
política o capítulo dedicado a um breve excursus
histórico pelas políticas modernas.
II. A TIPOLOGIA CLÁSSICA DAS FORMAS DE PODER. —
O conceito de Política, entendida como forma de
atividade ou de práxis humana, está estreitamente
ligado ao de poder. Este tem sido tradicionalmente
definido como "consistente nos meios adequados à
obtenção de qualquer vantagem" (Hobbes) ou,
analogamente, como "conjunto dos meios que
permitem alcançar os efeitos desejados" (Russell).
Sendo um destes meios, além do domínio da natureza,
o domínio sobre os outros homens, o poder é definido
por vezes como uma relação entre dois sujeitos, dos
quais um impõe ao outro a própria vontade e lhe
determina, malgrado seu, o comportamento. Mas,
como o domínio sobre os homens não é geralmente
fim em si mesmo, mas um meio para obter "qualquer
vantagem" ou, mais exatamente, "os efeitos desejados",
como acontece com o domínio da natureza, a definição
do poder como tipo de relação entre sujeitos tem de ser
POLÍTICA
completada com a definição do poder como posse dos
meios (entre os quais se contam como principais o
domínio sobre os outros e sobre a natureza) que
permitem alcançar justamente uma "vantagem
qualquer" ou os "efeitos desejados". O poder político
pertence à categoria do poder do homem sobre outro
homem, não à do poder do homem sobre a natureza.
Esta relação de poder é expressa de mil maneiras,
onde se reconhecem fórmulas típicas da linguagem
política: como relação entre governantes e
governados, entre soberano e súditos, entre Estado e
cidadãos, entre autoridade e obediência, etc.
Há várias formas de poder do homem sobre o
homem; o poder político é apenas uma delas. Na
tradição clássica que remonta especificamente a
Aristóteles, eram consideradas três formas principais
de poder: o poder paterno, o poder despótico e o poder
político. Os critérios de distinção têm sido vários com
o variar dos tempos. Em Aristóteles se entrevê a
distinção baseada no interesse daquele em benefício de
quem se exerce o poder: o paterno se exerce pelo
interesse dos filhos; o despótico, pelo interesse do
senhor; o político, pelo interesse de quem governa e
de quem é governado, o que ocorre apenas nas formas
corretas de Governo, pois, nas viciadas, o
característico é que o poder seja exercido em benefício
dos governantes. Mas o critério que acabou por
prevalecer nos tratados jusnaturalistas foi o do
fundamento ou do princípio de legitimação, que
encontramos claramente formulado no cap. XV do
Segundo tratado sobre o governo de Locke: o
fundamento do poder paterno é a natureza, do poder
despótico o castigo por um delito cometido (a única
hipótese neste caso é a do prisioneiro de guerra que
perdeu uma guerra injusta), do poder civil o consenso.
A estes três motivos de justificação do poder
correspondem as três fórmulas clássicas do
fundamento da obrigação: ex natura, ex delicio, ex
contractu. Nenhum dos dois critérios permite, não
obstante, distinguir o caráter específico do poder
político. Na verdade, o fato de o poder político se
diferenciar do poder paterno e do poder despótico por
estar voltado para o interesse dos governantes ou por
se basear no consenso, não constitui caráter distintivo
de qualquer Governo, mas só do bom Governo: não é
uma conotação da relação política como tal, mas da
relação política referente ao Governo tal qual deveria
ser. Na realidade, os escritores políticos não cessaram
nunca de identificar seja Governos paternalistas, seja
Governos despóticos, ou então Governos em que a
relação entre Governo e súditos se assemelhava ora à
relação entre pai e filhos, ora à entre senhor e
escravos, os quais nem por isso
955
deixavam de ser Governos tanto quanto os que agiam
pelo bem público e se fundavam no consenso.
III. A TIPOLOGIA MODERNA DAS FORMAS DE
PODER. — Para acharmos o elemento específico do
poder político, parece mais apropriado o critério de
classificação das várias formas de poder que se baseia
nos meios de que se serve o sujeito ativo da relação
para determinar o comportamento do sujeito passivo.
Com base neste critério, podemos distinguir três
grandes classes no âmbito de um conceito amplíssimo
do poder. Estas classes são: o poder econômico, o.
poder ideológico e o poder político. O primeiro é o
que se vale da posse de certos bens, necessários ou
considerados como tais, numa situação de escassez,
para induzir aqueles que não os possuem a manter um
certo comportamento, consistente sobretudo na
realização de um certo tipo de trabalho. Na posse dos
meios de produção reside uma enorme fonte de poder
para aqueles que os têm em relação àqueles que os não
têm: o poder do chefe de uma empresa deriva da
possibilidade que a posse ou disponibilidade dos meios
de produção lhe oferece de poder vender a força de
trabalho a troco de um salário. Em geral, todo aquele
que possui abundância de bens é capaz de determinar
o comportamento de quem se encontra em condições
de penúria, mediante a promessa e concessão de
vantagens. O poder ideológico se baseia na influência
que as idéias formuladas de um certo modo, expressas
em certas circunstâncias, por uma pessoa investida de
certa autoridade e difundidas mediante certos
processos, exercem sobre a conduta dos consociados:
deste tipo de condicionamento nasce a importância
social que atinge, nos grupos organizados, aqueles que
sabem, os sábios, sejam eles os sacerdotes das
sociedades arcaicas, sejam os intelectuais ou cientistas
das sociedades evoluídas, pois é por eles, pelos
valores que difundem ou pelos conhecimentos que
comunicam, que se consuma o processo de socialização
necessário à coesão e integração do grupo. Finalmente,
o poder político se baseia na posse dos instrumentos
mediante os quais se exerce a força física (as armas de
toda a espécie e potência): é o poder coator no sentido
mais estrito da palavra. Todas estas três formas de
poder fundamentam e mantêm uma sociedade de
desiguais, isto é, dividida em ricos e pobres com base
no primeiro, em sábios e ignorantes com base no
segundo, em fortes e fracos, com base no terceiro:
genericamente, em superiores e inferiores.
Como poder cujo meio específico é a força, de
longe o meio mais eficaz para condicionar os
comportamentos, o poder político é, em toda a
sociedade de desiguais, o poder supremo, ou seja,
956
POLÍTICA
o poder ao qual todos os demais estão de algum modo
subordinados: o poder coativo é, de fato, aquele a que
recorrem todos os grupos sociais (a classe
dominante), em última instância, ou como extrema
ratio, para se defenderem dos ataques externos, ou
para impedirem, com a desagregação do grupo, de ser
eliminados. Nas relações entre os membros de um
mesmo grupo social, não obstante o estado de
subordinação que a expropriação dos meios de
produção cria nos expropriados para com os
expropriadores, não obstante a adesão passiva aos
valores do grupo por parte da maioria dos destinatários
das mensagens ideológicas emitidas pela classe
dominante, só o uso da força física serve, pelo menos
em casos extremos, para impedir a insubordinação ou
a desobediência dos subordinados, como o demonstra à
saciedade a experiência histórica. Nas relações entre
grupos sociais diversos, malgrado a importância que
possam ter a ameaça ou a execução de sanções
econômicas para levar o grupo hostil a desistir de um
determinado comportamento (nas relações entre
grupos é de somenos importância o condicionamento
de natureza ideológica), o instrumento decisivo para
impor a própria vontade é o uso da força, a guerra.
Esta distinção entre três tipos principais de poder
social se encontra, se bem que expressa de diferentes
maneiras, na maior parte das teorias sociais
contemporâneas, onde o sistema social global aparece
direta ou indiretamente articulado em três subsistemas
fundamentais, que são a organização das forças
produtivas, a organização do consenso e a organização
da coação. A teoria marxista também pode ser
interpretada do mesmo modo: a base real, ou estrutura,
compreende o sistema econômico; a supra-estrutura,
cindindo-se em dois momentos distintos, compreende
o sistema ideológico e aquele que é mais propriamente
jurídico-político. Gramsci distingue claramente na
esfera supra-estrutural o momento do consenso (que
chama sociedade civil) e o momento do domínio (que
chama sociedade política ou Estado). Os escritores
políticos distinguiram durante séculos o poder
espiritual (que hoje chamaríamos ideológico) do poder
temporal, havendo sempre interpretado este como
união do dominium (que hoje chamaríamos poder
econômico) e do imperium (que hoje designaríamos
mais propriamente como poder político). Tanto na
dicotomia tradicional (poder espiritual e poder
temporal) quanto na marxista (estrutura e supraestrutura), se encontram as três formas de poder,
desde que se entenda corretamente o segundo termo
em um e outro caso como composto de dois
momentos. A diferença está no fato de que, na teoria
tradicional, o momento principal é o ideológico, já
que o econômico-política é
concebido como direta ou indiretamente dependente
do espiritual, enquanto que, na teoria marxista, o
momento principal é o econômico, pois o poder
ideológico e o político refletem, mais ou menos
imediatamente, a estrutura das relações de produção.
IV. O PODER POLÍTICO. — Embora a possibilidade
de recorrer à força seja o elemento que distingue o
poder político das outras formas de poder, isso não
significa que ele se resolva no uso da força; tal uso é
uma condição necessária, mas não suficiente para a
existência do poder político. Não é qualquer grupo
social, em condições de usar a força, mesmo com
certa continuidade (uma associação de delinqüência,
uma chusma de piratas, um grupo subversivo, etc),
que exerce um poder político. O que caracteriza o
poder político é a exclusividade do uso da força em
relação à totalidade dos grupos que atuam num
determinado contexto social, exclusividade que e o
resultado de um processo que se desenvolve em toda a
sociedade organizada, no sentido da monopolização da
posse e uso dos meios com que se pode exercer a
coação física. Este processo de monopolização
acompanha pari passu o processo de incriminação e
punição de todos os atos de violência que não sejam
executados por pessoas autorizadas pelos detentores e
beneficiários de tal monopólio.
Na hipótese hobbesiana que serve de fundamento à
teoria moderna do Estado, a passagem do Estado de
natureza ao Estado civil, ou da anarchía à archia, do
Estado apolítico ao Estado político, ocorre quando os
indivíduos renunciam ao direito de usar cada um a
própria força, que os tornava iguais no estado de
natureza, para o confiar a uma única pessoa, ou a um
único corpo, que doravante será o único autorizado a
usar a força contra eles. Esta hipótese abstrata adquire
profundidade histórica na teoria do Estado de Marx e
de Engels, segundo a qual, numa sociedade dividida em
classes antagônicas, as instituições políticas têm a
função primordial de permitir à classe dominante
manter seu domínio, alvo que não pode ser alcançado,
por via do antagonismo de classes, senão mediante a
organização sistemática e eficaz do monopólio da
força; é por isso que cada Estado é, e não pode deixar
de ser, uma ditadura. Neste sentido tornou-se já
clássica a definição de Max Weber: "Por Estado se há
de entender uma empresa institucional de caráter
político onde o aparelho administrativo leva avante,
em certa medida e com êxito, a pretensão do
monopólio da legítima coerção física, com vistas ao
cumprimento das leis" (I, 53). Esta definição tornou-se
quase um lugar-comum da ciência política
contemporânea.
POLÍTICA
Escreveram G. A. Almond e G. B. Powell num dos
manuais de ciência política mais acreditados:
"Estamos de acordo com Max Weber em que e a força
física legítima que constitui o fio condutor da ação do
sistema político, ou seja, lhe confere sua particular
qualidade e importância, assim como sua coerência
como sistema. As autoridades políticas, e somente elas,
possuem o direito, tido como predominante, de usar a
coerção e de impor a obediência apoiados nela...
Quando falamos de sistema político, referimo-nos
também a todas as interações respeitantes ao uso ou à
ameaça de uso de coerção física legítima" (p. 55). A
supremacia da força física como instrumento de poder
em relação a todas as outras formas (das quais as mais
importantes, afora a força física, são o domínio dos
bens, que dá lugar ao poder econômico, e o domínio
das idéias, que dá lugar ao poder ideológico) fica
demonstrada ao considerarmos que, embora na maior
parte dos Estados históricos o monopólio do poder
coativo tenha buscado e encontrado seu apoio na
imposição das idéias ("as idéias dominantes", segundo
a bem conhecida afirmação de Marx, "são as idéias da
classe dominante"), dos deuses pátrios à religião civil,
do Estado confessional à religião de Estado, e na
concentração e na direção das atividades econômicas
principais, há todavia grupos políticos organizados que
consentiram a desmonopolização do poder ideológico
e do poder econômico; um exemplo disso está no
Estado
liberal-democrático,
caracterizado
pela
liberdade de opinião, se bem que dentro de certos
limites, e pela pluralidade dos centros de poder
econômico. Não há grupo social organizado que tenha
podido até hoje consentir a desmonopolização do
poder coativo, o que significaria nada mais nada
menos que o fim do Estado e que, como tal,
constituiria um verdadeiro e autêntico salto qualitativo,
à margem da história, para o reino sem tempo da
utopia.
Conseqüência direta da monopolização da força no
âmbito de um determinado território e relativas a um
determinado grupo social, assim hão de ser
consideradas algumas características comumente
atribuídas ao poder político e que o diferenciam de
toda e qualquer outra forma de poder: a exclusividade,
a universalidade e a inclusividade. Por exclusividade
se entende a tendência revelada pelos detentores do
poder político ao não permitirem, no âmbito de seu
domínio, a formação de grupos armados
independentes e ao debelarem ou dispersarem os que
porventura se vierem formando, assim como ao
iludirem as infiltrações, as ingerências ou as agressões
de grupos políticos do exterior. Esta característica
distingue um grupo político organizado da "societas"
de "latrones" (o "latrocinium" de que
957
falava Agostinho). Por universalidade se entende a
capacidade que têm os detentores do poder político, e
eles sós, de tomar decisões legítimas e
verdadeiramente eficazes para toda a coletividade, no
concernente à distribuição e destinação dos recursos
(não apenas econômicos). Por inclusividade se entende
a possibilidade de intervir, de modo imperativo, em
todas as esferas possíveis da atividade dos membros
do grupo e de encaminhar tal atividade ao fim
desejado ou de a desviar de um fim não desejado, por
meio de instrumentos de ordenamento jurídico, isto é,
de um conjunto de normas primárias destinadas aos
membros do grupo e de normas secundárias
destinadas a funcionários especializados, com
autoridade para intervir em caso de violação daquelas.
Isto não quer dizer que o poder político não se
imponha limites. Mas são limites que variam de uma
formação política para outra: um Estado autocrático
estende o seu poder até à própria esfera religiosa,
enquanto que o Estado laico pára diante dela; um
Estado coletivista estenderá o próprio poder à esfera
econômica, enquanto que o Estado liberal clássico
dela se retrairá. O Estado todo-abrangente, ou seja, o
Estado a que nenhuma esfera da atividade humana
escapa, é o Estado totalitário, que constitui, na sua
natureza de caso-limite, a sublimação da Política, a
politização integral das relações sociais.
V. O FIM DA POLÍTICA. — Uma vez identificado o
elemento específico da Política no meio de que se
serve, caem as definições teleológicas tradicionais que
tentam definir a Política pelo fim ou fins que ela
persegue. A respeito do fim da Política, a única coisa
que se pode dizer é que, se o poder político,
justamente em virtude do monopólio da força,
constitui o poder supremo num determinado grupo
social, os fins que se pretende alcançar pela ação dos
políticos são aqueles que, em cada situação, são
considerados prioritários para o grupo (ou para a classe
nele dominante): em épocas de lutas sociais e civis,
por exemplo, será a unidade do Estado, a concórdia, a
paz, a ordem pública, etc; em tempos de paz interna e
externa, será o bem-estar, a prosperidade ou a
potência; em tempos de opressão por parte de um
Governo despótico, será a conquista dos direitos civis
e políticos; em tempos de dependência de uma
potência estrangeira, a independência nacional. Isto
quer dizer que a Política não tem fins perpetuamente
estabelecidos, e muito menos um fim que os
compreenda a todos e que possa ser considerado como
o seu verdadeiro fim: os fins da Política são tantos
quantas são as metas que um grupo organizado se
propõe, de acordo com os tempos e circunstâncias.
Esta insistência sobre o meio, e não
958
POLÍTICA
sobre o fim, corresponde, aliás, à communis opinio
dos teóricos do Estado, que excluem o fim dos
chamados elementos constitutivos do mesmo. Fale
mais uma vez por todos Max Weber: "Não é possível
definir um grupo político, nem tampouco o Estado,
indicando o alvo da sua ação de grupo. Não há
nenhum escopo que os grupos políticos não se hajam
alguma vez proposto. . . Só se pode, portanto, definir
o caráter político de um grupo social pelo meio... que
não lhe é certamente exclusivo, mas é, em todo o caso,
específico e indispensável à sua essência: o uso da
força" (I, 54).
Esta rejeição do critério teleológico não impede,
contudo, que se possa falar corretamente, quando
menos, de um fim mínimo na Política: a ordem pública
nas relações internas e a defesa da integridade
nacional nas relações de um Estado com os outros
Estados. Este fim é o mínimo, porque é a conditio sitie
qua non para a consecução de todos os demais fins,
conciliável, portanto, com eles. Até mesmo o partido
que quer a desordem, a deseja, não como objetivo
final, mas como fator necessário para a mudança da
ordem existente e criação de uma nova ordem. Além
disso, é lícito falar da ordem como fim mínimo da
Política, porque ela é, ou deveria ser, o resultado
imediato da organização do poder coativo, porque, por
outras palavras, esse fim, a ordem, está totalmente
unido ao meio, o monopólio da força: numa sociedade
complexa, fundamentada na divisão do trabalho, na
estratificação de categorias e classes, e em alguns casos
também na justaposição de gentes e raças diversas, só
o recurso à força impede, em última instância, a
desagregação do grupo, o regresso, como diriam os
antigos, ao Estado de natureza. Tanto é assim que, no
dia em que fosse possível uma ordem espontânea,
como a imaginaram várias escolas econômicas e
políticas, dos fisiocratas aos anarquistas, ou os
próprios Marx e Engels na fase do comunismo
plenamente realizado, não haveria mais política
propriamente falando.
Quem examinar as definições teleológicas
tradicionais de Política, não tardará a observar que
algumas delas não são definições descritivas, mas
prescritivas, pois não definem o que é concreta e
normalmente a Política, mas indicam como é que ela
deveria ser para ser uma boa Política; outras diferem
apenas nas palavras (as palavras da linguagem
filosófica são não raro intencionadamente obscuras) da
definição aqui apresentada. Toda história da filosofia
política está repleta de definições normativas, a
começar pela aristotélica: como é bem conhecido,
Aristóteles afirma que o fim da Política não é viver,
mas viver bem {Política, 1278b). Mas em que consiste
uma vida boa? Como é que ela se distingue de uma
vida má? E, se uma classe política oprime os seus
súditos, condenando-os a uma vida sofrida e infeliz,
será que não faz Política, será que o poder que ela
exerce não é um poder político? O próprio Aristóteles
distingue as formas puras de Governo das formas
deturpadas, coisa que já antes dele fizera Platão e
haviam de fazer, durante vinte séculos, muitos outros
escritores políticos: conquanto o que distingue as
formas deturpadas das formas puras, seja que nestas a
vida não é boa, nem Aristóteles, nem todos os
escritores que lhe sucederam, lhes negaram nunca o
caráter de constituições políticas. Não nos iludam
outras teorias tradicionais que atribuem à Política fins
diversos do da ordem, como o bem comum (o mesmo
Aristóteles e, depois dele, o aristotelismo medieval) ou
a justiça (Platão): um conceito como o de bem comum,
quando o quisermos desembaraçar da sua extrema
generalidade, pela qual pode significar tudo ou nada,
e lhe quisermos atribuir um significado plausível, ele
nada mais poderá designar senão aquele bem que
todos os membros de um grupo partilham e que não é
mais que a convivência ordenada, numa palavra, a
ordem; pelo que toca à justiça platônica, se a
entendermos, desvanecidos todos os fumos retóricos,
como o princípio segundo o qual é bom que cada um
faça o que lhe incumbe dentro da sociedade como um
todo (República, 433a), justiça e ordem são a mesma
coisa. Outras noções de fim, como felicidade,
liberdade, igualdade, são demasiado controversas e
interpretáveis dos modos mais díspares, para delas se
poderem tirar indicações úteis para a identificação do
fim específico da política.
Outro modo de fugir às dificuldades de uma
definição teleológica de Política é o de a definir como
uma forma de poder que não tem outro fim senão o
próprio poder (onde o poder é, ao mesmo tempo, meio
e fim, ou, como se diz, fim em si mesmo). "O caráter
político da ação humana, escreve Mário Albertini,
torna-se patente, quando o poder se converte em fim, é
buscado, em certo sentido, por si mesmo, e constitui o
objeto de uma atividade específica" (p. 9),
diversamente do que acontece com o médico, que
exerce o próprio poder sobre o doente para o curar, ou
com o rapaz que impõe seu jogo preferido aos
companheiros, não pelo prazer de exercer o poder,
mas de jogar. A este modo de definir a Política se
poderá objetar que ele não define tanto uma forma
específica de poder quanto uma maneira específica de
o exercer, ajustando-se, por isso, igualmente bem a
qualquer forma de poder, seja o poder econômico, seja
o poder ideológico, seja qualquer outro poder. O
poder pelo poder é um modo deturpado do exercício de
qualquer forma de poder, que pode ter como
POLÍTICA
sujeito tanto quem exerce o grande poder, qual o
político, quanto quem exerce o pequeno, como o do pai
de família ou o do chefe de seção que supervisiona
uma dezena de operários. A razão pela qual pode
parecer que o poder como fim em si mesmo seja
característico da Política (mas seria mais exato dizer
de um certo homem político, do homem
maquiavélico), reside no fato de que não existe um
fim tão específico na Política como o que existe no
poder que o médico exerce sobre o doente ou no do
rapaz que impõe o jogo aos seus companheiros. Se o
fim da Política, e não do homem político
maquiavélico, fosse realmente o poder pelo poder, a
Política não serviria para nada. É provável que a
definição da Política como poder pelo poder derive da
confusão entre o conceito de poder e o de potência:
não há dúvida de que entre os fins da Política está
também o da potência do Estado, quando se considera
a relação do próprio Estado com os outros Estados.
Mas uma coisa é uma Política de potência e outra o
poder pelo poder. Além disso, a potência não é senão
um dos fins possíveis da Política, um fim que só alguns
Estados podem razoavelmente perseguir.
VI. A POLÍTICA COMO RELAÇÃO AMIGOINIMIGO. — Entre as mais conhecidas e discutidas
definições de Política, conta-se a de Carl Schmitt
(retomada e desenvolvida por Julien Freund), segundo
a qual a esfera da Política coincide com a da relação
amigo-inimigo. Com base nesta definição, o campo de
origem e de aplicação da Política seria o antagonismo
e a sua função consistiria na atividade de associar e
defender os amigos e de desagregar e combater os
inimigos. Para dar maior força à sua definição,
baseada numa oposição fundamental, amigo-inimigo,
Schmitt a compara às definições de moral, de arte. etc,
fundadas também em oposições fundamentais, como
bom-mau, belo-feio, etc. "A distinção política específica
a que é possível referir as ações e os motivos políticos,
é a distinção de amigo e inimigo.. . Na medida em que
não for derivável de outros critérios, ela
corresponderá, para a Política, aos critérios
relativamente autônomos das demais oposições: bom
e mau para a moral, belo e feio para a estética, e por aí
afora" (p. 105). Freund se expressa enfaticamente
nestes termos: "Enquanto houver política, ela dividirá
a coletividade em amigos e inimigos" (p. 448). E
explica: "Quanto mais uma oposição se desenvolver
no sentido da distinção amigo-inimigo, tanto mais ela
se tornará política. É característico do Estado eliminar,
dentro dos limites da sua competência, a divisão dos
seus membros ou grupos internos em amigos e
inimigos, não tolerando senão as simples rivalidades
959
agonísticas ou as lutas dos partidos, e reservando ao
Governo o direito de indicar o inimigo externo... É,
pois, claro que a oposição amigo-inimigo é
politicamente fundamental" (p. 445). Não obstante
pretender servir de definição global do fenômeno
político, a definição de Schmitt considera a Política de
uma perspectiva unilateral, se bem que importante,
que é a daquele tipo particular de conflito que
caracterizaria a esfera das ações políticas. Por outras
palavras, Schmitt e Freund parecem estar de acordo
nestes pontos: a Política tem que avir-se com os
conflitos humanos; há vários tipos de conflitos, há
principalmente conflitos agonísticos e antagonísticos;
a Política cobre a área em que se desenrolam os
conflitos antagonísticos. Que esta seja a perspectiva
dos autores citados parece não caber dúvida. Escreve
Schmitt: "A oposição política é a mais intensa e
extrema de todas e qualquer outra oposição concreta
será tanto mais política quanto mais se aproximar do
ponto extremo, o do agrupamento baseado nos
conceitos , amigo-inimigo" (p. 112). De igual modo
Freund: "Todo o desencontro de interesses... pode, em
qualquer momento, transformar-se em rivalidade ou
em conflito, e tal conflito, desde o momento que
assuma o aspecto de uma prova de força entre os
grupos que representam esses interesses, ou seja,
desde o momento que se afirme como uma luta de
poder, tornar-se-á político" (p. 479). Como se vê pelas
passagens citadas, o que têm em mente estes autores,
quando definem a Política baseados na dicotomia
amigo-inimigo, é que existem conflitos entre os
homens e entre os grupos sociais, e que entre esses
conflitos há alguns diferentes de todos os outros pela
sua particular intensidade; é a esses que eles dão o
nome de conflitos políticos. Mas, quando se procura
compreender em que é que consiste essa particular
intensidade e, por conseguinte, em que é que a relação
amigo-inimigo se distingue de todas as outras relações
conflitantes de intensidade não igual, logo se nota que
o elemento distintivo está em que se trata de conflitos
que, em última instância, só podem ser resolvidos pela
força ou justificam, pelo menos, o uso da força pelos
contendores para pôr fim à luta. O conflito por
excelência de que tanto Schmitt como Freund
extrapolaram sua definição de Política, é a guerra,
cujo conceito compreende tanto a guerra externa
quanto a interna. Ora, se uma coisa é certa, é que a
guerra constitui uma espécie de conflito
eminentemente caracterizado pelo uso da força. Mas,
se isso é verdade, a definição de Política em termos de
amigo-inimigo não é de modo algum incompatível com
a definição antes apresentada, que se refere ao
monopólio da força. Não só não é incompatível, como
é uma
960
POLÍTICA
especificação da mesma e, em última análise, sua
confirmação. É justamente na medida em que o poder
político se distingue do instrumento de que se serve
para atingir os próprios fins e em que tal instrumento é
a força física, que ele é o poder a que se recorre para
resolver os conflitos cuja não solução acarretaria a
decomposição do Estado e da ordem internacional: são
os conflitos em que, confrontados os contendores
como inimigos, a vita mea é a mors tua.
VII. O POLÍTICO E O SOCIAL. — Contrastando com a
tradição clássica, segundo a qual a esfera da Política,
entendida como esfera do que diz respeito à vida da
pólis, compreende toda a sorte de relações sociais,
tanto que o "político" vem a coincidir com o "social", a
doutrina exposta sobre a categoria da Política é
certamente limitativa: reduzir, como se fez, a categoria
da Política à atividade direta ou indiretamente
relacionada com a organização do poder coativo é
restringir o âmbito do "político" quanto ao "social", é
rejeitar a plena coincidência de um com o outro. Esta
limitação baseia-se numa razão histórica bem definida.
De um lado, o cristianismo subtraiu à esfera da Política
o domínio da vida religiosa, dando origem à
contraposição do poder espiritual ao poder temporal, o
que era desconhecido do mundo antigo. De outro, com
o surgir da economia mercantil burguesa, foi subtraído
à esfera da Política o domínio das relações
econômicas, originando-se a contraposição (para
usarmos a terminologia hegeliana, herdada de Marx e
hoje de uso comum) da sociedade civil à sociedade
política, da esfera privada ou do burguês à esfera
pública ou do cidadão, coisa que também era ignorada
do mundo antigo. Enquanto a filosofia política clássica
se baseia no estudo da estrutura da pólis e das suas
variadas formas históricas ou ideais, a filosofia política
pós-clássica se caracteriza pela contínua busca de uma
delimitação do que é político (o reino de César) do que
não é político (quer seja o reino de Deus, quer seja o
de Mammona), por uma contínua reflexão sobre o que
distingue a esfera da Política da esfera da não-Política.
o Estado do não-Estado, onde por esfera da nãoPolítica ou do não-Estado se entende, conforme as
circunstâncias, ora a sociedade religiosa (a ecclesia
contraposta à civitas), ora a sociedade natural (o
mercado como lugar em que os indivíduos se
encontram independentemente de qualquer imposição,
contraposto ao ordenamento coativo do Estado). O
tema fundamental da filosofia política moderna é o
tema dos limites, umas vezes mais restritos, outras
vezes mais amplos conforme os autores e as escolas, do
Estado como organização da esfera política, seja em
relação à sociedade religiosa, seja em relação
à sociedade civil (entendida como sociedade burguesa
ou dos privados).
É exemplar também sob este aspecto a teoria
política de Hobbes, articulada em torno de três
conceitos fundamentais que constituem as três partes
em que se divide a matéria do De Cive. Estas partes
são assim denominadas: libertas, potestas, religio. O
problema fundamental do Estado e, por conseguinte,
da Política é, para Hobbes, o problema das relações
entre a potestas simbolizada no grande Leviatã, por
um lado, e a libertas e a religio, por outro: a libertas
designa o espaço das relações naturais, onde se
desenvolve a atividade econômica dos indivíduos,
estimulada pela incessante disputa pela posse dos bens
materiais, o Estado de natureza (interpretado
recentemente como prefiguração da sociedade de
mercado); a religio indica o espaço reservado à
formação e expansão da vida espiritual, cuja
concretização histórica se dá na instituição da Igreja,
isto é, duma sociedade que, por sua natureza, se
distingue da sociedade política e não pode ser com ela
confundida. Relacionados com esta dupla delimitação
dos confins da Política, surgem na filosofia política
moderna dois tipos ideais de Estado: o Estado
absoluto e o Estado liberal, aquele com tendência a
estender, este com tendência a limitar a própria
ingerência em relação à sociedade econômica e à
sociedade religiosa. Na filosofia política do século
passado, o processo de emancipação da sociedade
quanto ao Estado avançou tanto que, por primeira vez,
foi por muitos aventada a hipótese da desaparição do
Estado num futuro mais ou menos remoto e da
conseqüente absorção do político pelo social, ou seja,
do fim da Política. Conforme o que se disse até aqui
sobre o significado restritivo de Política (restritivo em
relação ao conceito mais amplo de "social"), fim da
Política significa exatamente fim de uma sociedade
para cuja coesão sejam indispensáveis as relações de
poder político, isto é, relações de domínio fundadas,
em última instância, no uso da força. Fim da Política
não significa, bem entendido, fim de toda a forma de
organização social. Significa, pura e simplesmente, fim
daquela forma de organização social que se rege pelo
uso exclusivo do poder coativo.
VIII. POLÍTICA E MORAL. — Ao problema da relação
entre Política e não-Política, está vinculado um dos
problemas fundamentais da filosofia política, o
problema da relação entre Política e moral. A Política e
a moral estendem-se pelo mesmo domínio comum, o
da ação ou da práxis humana. Pensa-se que se
distinguem entre si em virtude de um princípio ou
critério diverso de justificação e avaliação das
respectivas ações, e que, em conseqüência disso, o
que é obrigatório
POLÍTICA
em moral, não se pode dizer que o seja em Política, e o
que é lícito em Política, não se pode dizer que o seja
em moral; pode haver ações morais que são
impolíticas (ou apolíticas) e ações políticas que são
imorais (ou amorais). A descoberta da distinção que é
atribuída, injustificada ou justificadamente a
Maquiavel (daí o nome de maquiavelismo dado a toda a
teoria política que sustenta e defende a separação da
Política da moral), é geralmente apresentada como
problema da autonomia da Política. Este problema
acompanha pari passu a formação do Estado moderno
e sua gradual emancipação da Igreja, que chegou até,
em casos extremos, à subordinação desta ao Estado e,
conseqüentemente, à absoluta supremacia da Política.
Na realidade, o que se chama autonomia da Política
não é outra coisa senão o reconhecimento de que o
critério segundo o qual se julga boa ou má uma ação
política (não se esqueça que, por ação política, se
entende, em concordância com o que se disse até aqui,
uma ação que tem por sujeito ou objeto a pólis) é
diferente do critério segundo o qual se considera boa
ou má uma ação moral. Enquanto o critério segundo o
qual se julga uma ação moralmente boa ou má é o do
respeito a uma norma cuja preceituação é tida por
categórica, independentemente do resultado da ação
("faz o que deves, aconteça o que acontecer"), o
critério segundo o qual se julga uma ação politicamente
boa ou má é pura e simplesmente o do resultado ("faz o
que deves, a fim de que aconteça o que desejas").
Ambos os critérios são incomensuráveis. Esta
incomensurabilidade está expressa na afirmação de
que, em Política, o que vale é a máxima de que "o fim
justifica os meios", máxima que encontrou em
Maquiavel uma das suas mais fortes expressões: "... e
nas ações de todos os homens, e máxime dos
príncipes, quando não há indicação à qual apelar, se
olha ao fim. Faça, pois, o príncipe por vencer e
defender o Estado: os meios serão sempre
considerados honrosos e por todos louvados" (Príncipe,
XVIII). Mas, em moral, a máxima maquiavélica não
vale, já que uma ação, para ser julgada moralmente
boa, há de ser praticada não com outro fim senão o de
cumprir o próprio dever.
Uma das mais convincentes interpretações desta
oposição é a distinção weberiana entre ética da
convicção e ética da responsabilidade: "... há uma
diferença insuperável entre o agir segundo a máxima
da ética da convicção, que em termos religiosos soa
assim: 'O cristão age como justo e deixa o resultado
nas mãos de Deus', e o agir segundo a máxima da ética
da responsabilidade, conforme a qual é preciso
respon