Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
A arkhḗ da poesia e do drama na Poética de Aristóteles
The arkhḗ of Poetry and Drama in Aristotle’s Poetics
Rafael Guimarães Tavares da Silva
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
CAPES
[email protected]
Resumo: A Poética de Aristóteles é uma obra fundamental para a compreensão do
desenvolvimento da poesia e da filosofia entre os herdeiros da tradição helênica,
constituindo um momento especialmente fecundo da reflexão filosófica sobre a arte
poética. Após situarmos o contexto intelectual de sua produção, pretendemos avançar
uma série de considerações sobre a importância assumida pela noção de arkhḗ (“origem;
princípio; poder”) da poesia e do drama no interior da argumentação aristotélica a fim
de compreendermos as razões que podem tê-lo levado a se contrapor a alguns dos
mais radicais posicionamentos presentes na obra de Platão no tocante à poesia. Para
isso, efetuaremos uma leitura cerrada do texto da Poética, enriquecendo-a com uma
abordagem intertextual e guarnecida por estudos especializados, e proporemos ainda
interpretações pontuais de trechos especialmente obscuros (como é o caso da célebre
passagem sobre a origem ditirâmbica da tragédia).
Palavras-chave: poética antiga; filosofia antiga; drama antigo; Aristóteles; Poética.
Abstract: Aristotle’s Poetics is a fundamental work to understand the development
of poetry and philosophy among the heirs of the Hellenic tradition, constituting a
particularly fruitful moment of philosophical reflection on poetic art. After situating the
intellectual context of its production, we intend to advance a series of considerations on
the importance assumed by the notion of arkhḗ (“origin; principle; power”) of poetry
and drama within the Aristotelian argumentation in order to understand the reasons that
may have led him to oppose some of the most radical Platonic positions on poetry. In
order to achieve this objective we will realize a close reading of the Poetics, enriched
with an intertextual approach to the text and using specialized studies in this movement.
We will also propose specific interpretations of especially obscure passages, such as
the famous passage about the dithyrambic origin of tragedy.
Keywords: ancient poetics; ancient philosophy; ancient drama; Aristotle; Poetics.
eISSN: 1983-3636
DOI: 10.17851/1983-3636.14.2.61-90
62
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
Principiemos com uma passagem célebre do prefácio aos
Fundamentos da filosofia do direito de Hegel, onde o autor reflete sobre
a relação entre o real e o ideal:
Sobre o ensinar como o mundo deve ser, para falar
ainda uma palavra, a filosofia inevitavelmente
sempre chega tarde demais. Enquanto pensamento
do mundo, ela somente aparece no tempo, depois que
a efetividade completou seu processo de formação
e se concluiu. Aquilo que o conceito ensina mostra
a história necessariamente do mesmo modo: que
somente na maturidade da efetividade aparece o ideal
frente ao real e edifica, para si, esse mesmo mundo,
apreendido em sua substância na figura de um reino
intelectual. Quando a filosofia pinta seu cinza sobre
cinza, então uma forma da vida se tornou velha e,
com cinza sobre cinza, ela não se deixa rejuvenescer,
mas apenas conhecer; a coruja de Minerva somente
começa seu voo com a irrupção do crepúsculo.
(HEGEL, 2010 [1967], p. 44).1
Toda obra antiga que aspire à função de arte poética (no sentido
clássico) é, de certo modo, a coruja de Hegel: desperta apenas quando
o esplendor solar do bosque que ela então encara, com o crepúsculo do
dia, está chegando ao fim. Mas isso não indica que sua função se restrinja
a descrever o que passou. Muito antes pelo contrário, observando o
passado e posicionando-se prescritivamente com relação a ele, toda
poética clássica orienta tanto mais a recepção futura e a produção dos
poetas por vir quanto mais autoridade ela própria lhes inspira. Os olhos
da coruja – que esquadrinham o estado de coisas no crepúsculo do
bosque e descobrem muito daquilo que acontecera antes – determinam,
até certo ponto, a possibilidade de movimento às criaturas da noite, além
de exercer uma influência determinante sobre muito do que ainda há de
acontecer no início da próxima aurora.
Todas as traduções de textos em língua estrangeira para o português são de nossa
autoria, a menos que se explicite em nota o nome de quem o traduziu. No presente
caso, tradução de Paulo Meneses et al.
1
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
63
Acredito não precisar evocar os testemunhos de Peter
Szondi (2004) e Roberto Machado (2006) para indicar a importância
fundamental que Aristóteles teve para o desenvolvimento de uma
poética moderna, a partir do “redescobrimento” da dimensão poética
de sua obra no Renascimento, mas sobretudo a partir do debate que
franceses e alemães mantiveram acerca da tragédia desde o séc. XVII
até o séc. XIX. A proposta aqui é entender de que forma esse filósofo –
refletindo sobre a arte poética em seu próprio contexto epistemológico
– desenvolveu uma teoria que dá conta dos efeitos e especificidades
da poesia, articulando essa questão à origem do fenômeno poético e,
mais especificamente, do dramático. Trata-se, portanto, de uma obra
filosófica dotada de uma dimensão histórica e teórica de viés descritivo,
embora também seja prescritiva: sua influência se faz sentir não apenas
sobre a produção de futuros poetas e tragediógrafos, mas até mesmo
sobre uma corrente filosófica que viria a conceber a obra poética como
um objeto de estudo digno em suas próprias especificidades. Creio que
uma melhor compreensão das estratégias adotadas por Aristóteles nessa
obra fundacional de um tipo de abordagem tão determinante para nossa
tradição estético-filosófica possa revelar uma série de desdobramentos
pouco conhecidos acerca de nós mesmos. Antes, contudo, de entrarmos
em sua Poética, alguns esclarecimentos preliminares.
Aristóteles produz seus tratados filosóficos em diálogo e diferença
com relação a muito daquilo que seu mestre, Platão, havia desenvolvido
em sua vida e obra. Essa posição ambivalente deve ser sempre levada em
conta por quem queira compreender as proposições aristotélicas, na medida
em que elas se inserem numa relação dialógica e diferencial complexa: a
fim de que suas considerações sejam analisadas de maneira fecunda pelo
intérprete, é preciso ter uma consciência aguda desse aspecto relacional.
Nesse sentido, um primeiro ponto a ser observado é que a obra
supérstite de Aristóteles – ao contrário da de Platão – emprega de modo
praticamente exclusivo o gênero tratadístico e abandona a composição
de diálogos. Por mais que isso possa se dever aos acasos da transmissão
das obras, ao que tudo indica, o estagirita teria composto apenas alguns
diálogos em sua juventude (como o Perì poiētō̂n [Sobre os poetas], por
64
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
exemplo), embora essas obras tenham se perdido e existam apenas em
fragmentos. Além disso, não é de se ignorar que as obras tradicionalmente
consideradas tardias de Platão – como o Timeu e as Leis – já apresentavam
uma série de características mais próprias do que viria a ser o tratado
filosófico ao modo aristotélico do que dos diálogos socráticos: longas
exposições de temas específicos; abordagens sistemáticas desses temas;
certa impessoalidade em sua apresentação etc. Em que pesem essas
aproximações entre a obra do final da vida de Platão e as primeiras obras
(perdidas) de Aristóteles, é de se destacar que as diferenças no meio
empregado para abordar suas questões filosóficas acarretam mudanças
consideráveis no modo de apresentação e tratamento das mesmas. Como
se há de sugerir ainda, essas diferenças são refletidas também na relação
estabelecida entre o discurso filosófico, tal como proposto por Aristóteles,
e outros gêneros do discurso vigentes em Atenas e no mundo helênico,
como a poesia e a retórica.2
Aristóteles devota uma obra inteiramente à arte poética – ainda
que ela pareça ser composta por uma série de notas pouco sistemáticas,
tomadas para a realização de um curso sobre o tema – e, em sua parte
inicial, desenvolve tanto uma teoria sobre a origem da poesia quanto uma
teoria sobre a origem do drama. Infelizmente, ainda não é possível precisar
a data de composição da Poética – a fim de se estipular com que obras e
acontecimentos históricos ela poderia estar mais em consonância –, sendo
necessário imaginar um ou mais momentos entre 367 a.C., ano da chegada
de Aristóteles a Atenas, e 322 a.C., ano de sua morte.
Tal como sugerido pelo estudo de Depew (2007, p. 132), a Poética
desenvolve-se segundo um modo analítico de tratamento do fenômeno
poético, oferecendo: i) uma definição (horismós); ii) uma explicação de
sua causa (ho dēlō̂n dià tí éstin); iii) e uma demonstração conclusiva
de sua essência (tē̂s toû tí estin apodeíxeōs sympérasma). Essas são as
diretrizes de definição traçadas em Analíticos posteriores 2.10 (93b2894a12) e seguidas em inúmeras discussões biológicas de Aristóteles,
sendo ainda responsáveis pelo arranjo da Poética.
2
Para detalhes sobre “a ordem do discurso na Atenas Clássica”, cf. Silva (2017).
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
65
Assim como a História dos Animais demarca várias
diferenças entre animais, da mesma forma a Poética
1-3 demarca seu assunto mais amplo – área de
imitações (mímeseis) – em tipos de meios de imitação
(cores, formas, sons, movimentos, etc.), objetos
imitados (coisas, ações, caracteres) e modos de
imitação (narração, narração dramática e atuação).
Tal como um tipo animal pode ser demarcado a partir
de uma seleção dos traços de cada categoria de traços,
da mesma forma as espécies poéticas também podem
ser demarcadas por possuírem uma única distribuição
de objetos, meios e modos de imitação. (DEPEW,
2007, p. 133).3
Com isso, Aristóteles define o objeto básico da Poética, qual
seja, o estudo das produções miméticas (Poet. 1.1447a16). Antes de
avançar para aquilo que mais interessa à presente investigação – isto é, a
teoria aristotélica sobre as origens da poesia e do drama (ponto que será
desenvolvido justamente como uma explicação das causas) –, convém
tecer uma breve consideração sobre a mímēsis em Aristóteles.
É inegável que o autor herda a noção de mímēsis a partir do
trabalho de Platão e, em linhas gerais, lida com ele de forma análoga à
que fazia seu antigo mestre (VELOSO, 2000, p. 63). Há, contudo, uma
diferença básica naquilo que ele empreende a partir desse ponto comum.
A questão foi bem colocada por um estudioso da Poética nos seguintes
termos:
A posição de Aristóteles tem uma afinidade com
a de Platão, uma vez que ele aceita que toda arte
ofereça imagens de realidade possível; mas ao
No original: “Just as History of Animals marks off various differences among animals,
so Poetics 1-3 marks off the large subject area of imitations (mimeseis) into kinds
of objects imitated (things, actions, characters), media of imitation (colors, shapes,
sounds, movements, etc.), and manner of imitation (narration, dramatic narration, and
enactment). Just as an animal kind can be uniquely marked off by a selection of traits
from each trait category, so, too, poetic species can be marked off by their possession
of a unique distribution of objects, media, and manners of imitation.”
3
66
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
mesmo tempo é distante dela em espírito, já que a
qualificação expressa por “possível” envolve um
relaxamento crucial das demandas que Platão tinha
feito pesar sobre a mimese, no que elas têm de mais
preciso (ou desdenhoso). Embora compartilhe com
ele o que pode ser chamado frouxamente de uma
“teoria da correspondência” da mimese, Aristóteles
contorna as implicações da visão de Platão sobre arte
ao defender que o conteúdo e o sentido de trabalhos
miméticos não podem justificadamente ser testados
com qualquer critério fixo de verdade ou realidade.
(HALLIWELL, 1989, p. 152-153).4
Em outras palavras, a diferença entre Platão e Aristóteles não
reside tanto naquilo que compreendem sob o conceito de mimese, mas
antes na atitude que demonstram com relação ao mundo sensível – sobre a
possibilidade de conhecê-lo por meio dos sentidos –, ou seja, com relação
ao objeto privilegiado da atividade mimética. Aristóteles reconhece
nessa atividade uma possibilidade de lidar com algo que ultrapassa
aquilo que Platão entendia como característico das aparências sensíveis
– superficiais, externas, enganosas e corruptoras –, para enxergar nela
uma oportunidade de exercício virtual, que, caso apresentasse uma
estrutura unitária e lógica, poderia ser compreendida pelo pensamento,
vindo inclusive a se tornar útil ao indivíduo que a ela se dedicasse. É
interessante notar que essa revalorização da mimese como um meio de
conhecimento prazeroso aberto a todas as pessoas (Poet. 4.1448b12-14)
se revela um deslocamento radical com relação à República, embora
não esteja tão afastada de certas proposições das Leis, no que tange à
No original: “Aristotle’s position has an affinity with Plato’s, in that he accepts that
all art offers images of possible reality; but at the same time it is remote from it in
spirit, since the qualification expressed by ‘possible’ involves a crucial relaxation of
the demands that Plato, at his most exacting (or dismissive), had brought to bear on
mimesis. While sharing with him what might loosely be termed a ‘correspondence
theory’ of mimesis, Aristotle circumvents the implications of Plato’s view of art by
holding that the content and meaning of mimetic works cannot justifiably be tested
against any fixed criterion of truth or reality.
4
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
67
tendência humana natural ao ritmo e à harmonia, bem como ao prazer que
a humanidade tem em trabalhar a ordem por meio deles, desenvolvendo
assim um determinado hábito em corpo e fala.
A partir dessa consideração básica sobre a mimese em Aristóteles
– como meio de conhecimento prazeroso aberto a todas as pessoas –, é
possível explicitar as razões por que o filósofo não concebe a poesia como
mero reflexo de uma realidade qualquer (ligada aos diversos eventos da
vida de um indivíduo, por exemplo), já que fatos assim seriam desprovidos
de unidade (Poet. 8.1451a16-19). O importante para Aristóteles é sua
disposição numa estrutura unitária que permita a inteligibilidade do
mímēma. Em vista disso, a atividade do poeta não seria falar o que
aconteceu, mas o que poderia acontecer, ou seja, “as coisas possíveis
conforme a verossimilhança ou a necessidade (tà dynatà katà tò eikòs ḕ tò
anankaîon)” (Poet. 9.1451a36). Pela expressão katà tó eikós (“conforme
a verossimilhança”), entende-se aqui a necessidade de que um enredo
se desenvolva segundo a lógica, sem representar de modo irracional
(álogon) suas ações dramáticas (Poet. 15.1454b6). Já a expressão katà tò
anankaîon (“conforme a necessidade”) remete ao fato de que um enredo
deva apresentar coerência interna, só devendo se desenvolver – também
de maneira lógica – a partir dos elementos já estipulados por ele próprio
(Poet. 15.1454a33-36). Isso explica a aversão que Aristóteles apresenta
pelo artifício do deus ex machina (apò mēkhanē̂s theós), uma vez que ele
se revela um desenlace do enredo frequentemente inverossímil (porque
contraria a lógica) ou incoerente, isto é, contrário à necessidade do enredo
(porque não é um desdobramento de seus elementos internos).
Essa exigência lógica está fundamentalmente ligada à
hierarquização dos elementos trágicos proposta por Aristóteles no cap.
VI da Poética (1450a7-15). Embora seis sejam esses elementos básicos
– enredo (mŷthos), caracteres (ḗthē), pensamento (diánoia), elocução
(léxis), espetáculo (ópsis) e melopeia (melopoiía) –, o mais importante
deles é a composição de ações (pragmátōn sýstasis), ou seja, o enredo.
A escala de importância orientada segundo a eleição de um elemento do
qual depende a inteligibilidade do todo trágico, além de ser um resultado
da exigência lógica anteriormente mencionada, insere-se diretamente na
68
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
filosofia ética aristotélica, segundo a qual o caráter só se expressa em
termos de claras disposições para agir em determinados sentidos.
Feitos esses esclarecimentos básicos sobre o termo mímēsis na
Poética – e seus desdobramentos teóricos –, convém retomar o modo de
exposição analítico proposto a princípio. Após avançar uma definição
da arte poética, o filósofo dedica um capítulo inteiro à explicação de
suas causas. Como o objetivo da presente análise é compreender a
teoria das origens da poesia e do drama em Aristóteles, sugerindo ainda
as consequências e motivações da mesma, interessa citar este trecho
integralmente:
Duas causas, ambas naturais, parecem ter originado a
arte poética como um todo. Pois o mimetizar é natural
às pessoas desde criança e nisso diferem dos outros
animais, já que ele é o mais mimético e compõe seus
aprendizados inicialmente por meio de mimese; e
todos se comprazem com mímēmas.
Sinal disso é o que acontece com as obras: pois
as coisas mesmas que observamos penosamente,
comprazemo-nos ao contemplar suas imagens
muitíssimo bem precisadas, tal como com formas
de feras ignóbeis e cadáveres. A causa disso é que
conhecer é agradável não apenas aos filósofos, mas
também a todos os outros igualmente, ainda que
participem menos disso. Pois assim se comprazem
quando veem imagens, acontecendo de aprenderem
ao vê-las e raciocinarem sobre o que é cada coisa (tal
como “este é aquele”). E caso aconteça de não terem
visto algo anteriormente, não há de ser o mímēma que
fará o prazer, mas ele se dará pelo acabamento da obra
ou pela cor ou por alguma outra causa.
Sendo-nos natural o mimetizar, a harmonia e o
ritmo (pois é evidente que os metros são partes
dos ritmos), desde o início aqueles nascidos para
essas coisas, avançando aos poucos, originaram a
poesia a partir de improvisações. A poesia dividiu-se
conforme seus próprios caracteres: pois, de um lado,
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
69
os mais veneráveis mimetizavam as belas ações e
as de pessoas assim; por outro, os mais vulgares
[mimetizavam] as ações dos infames, compondo
primeiro invectivas, como aqueles compunham
hinos e encômios. (ARISTÓTELES, Poet. 4.1448b41448b26).
Desenvolvendo um argumento análogo àquele proposto pelas
Leis (2.653d), de Platão, para propor a tendência humana natural para
a mimese e alguns de seus elementos – i.e., a harmonia e o ritmo –,
bem como para o prazer que os mesmos provocam nos seres humanos,
Aristóteles avança uma teoria sobre a origem natural da poesia. Aqui
convém salientar a importância do papel gnosiológico e pedagógico que o
filósofo atribui à mimese, sugerindo algo que subjaz também às palavras
iniciais da Metafísica e, de forma ainda mais evidente, na Retórica (a
partir de 1.1371b4). Esse mesmo ponto ainda será desenvolvido de
forma complexa e consequente no interior da própria Poética, com sua
teoria sobre o funcionamento da tragédia. Como se trata de um princípio
basilar do pensamento aristotélico, essa intuição sobre a tendência
humana natural à mimese e ao conhecimento constitui uma das chaves
de compreensão da perspectiva positiva que Aristóteles tem acerca das
performances poéticas e, mais especificamente, dramáticas.
Seguindo essa propensão inata, os seres humanos desenvolveram,
a partir de improvisações inicialmente simples, diferentes formas de
poesia – de acordo com uma dicotomia em que se dividiam seus próprios
caracteres: uns elaboraram formas de poesia mais afins à dignidade e
à seriedade, como o hino e o encômio; outros, formas poéticas mais
relacionadas à baixeza e à comicidade, como a invectiva (psógos) e o
ridículo (geloîon). Convém notar que, assim como os princípios da poesia
são naturais, sua divisão segundo os caracteres humanos também é de
ordem natural: poetas de determinada propensão ética farão determinados
tipos de poesia, enquanto os demais se dedicarão aos outros tipos.
Em todo caso, o mais importante para uma análise da teoria
aristotélica sobre as origens do drama apenas se revela na continuação
daquela passagem e convém retomá-la aqui também na íntegra a fim de
se desenvolver o que está sugerido por Aristóteles a esse respeito:
70
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
Dentre os poetas de invectivas, não temos como
apontar um tal poema antes de Homero, mas devem
ter existido muitos; isso tem início a partir de Homero,
como com o Margites dele e outros assim. Nesses,
segundo a harmonia, foi introduzido o metro iâmbico
– e, por causa disso, é agora chamado iambo, pois
nesse metro eles iambizam [injuriam] os outros. Entre
os antigos, uns se tornaram poetas de versos heroicos;
outros, de versos iâmbicos. Assim como Homero foi o
maior poeta quanto a poemas sérios – pois ele é o único
que não apenas compôs bem, mas também [compôs]
mimeses dramáticas –, assim também ele primeiro
delineou o arranjo da comédia – dramatizando não
a invectiva, mas o cômico. Pois o Margites é algo
análogo: assim como a Ilíada e a Odisseia estão para as
tragédias, assim também aquele está para as comédias.
Surgindo a tragédia e a comédia, cada poeta se lançou,
conforme a natureza que lhe era própria, a cada forma
de poesia: uns se tornaram compositores de comédias,
em vez de iambos; outros, mestres de tragédia, em
vez de epopeias. Isso porque essas formas são mais
complexas e mais estimadas do que aquelas. [...]
Tendo surgido então a partir de um início improvisado
tanto a tragédia quanto a comédia: a primeira provém
daqueles que conduzem o ditirambo; a outra, dos que
conduzem os cantos fálicos, que são ainda hoje muito
estimados em nossas póleis. A tragédia ampliou-se
avançando aos poucos, os poetas desenvolvendo o
que nela se manifestava. E, tendo passado por muitas
transformações, a tragédia se fixou, depois de alcançar
a própria natureza. Ésquilo foi quem primeiro levou o
número de atores de um para dois, diminuiu as partes
do coro e preparou o diálogo [lógos] para desempenhar
o papel de protagonista. Sófocles elevou o número
para três e introduziu a cenografia. Além disso, com
relação à extensão, a partir de histórias breves e de uma
elocução ridícula, por ter se transformado a partir do
elemento satírico, alcançou tardiamente a gravidade,
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
71
enquanto o metro passou do tetrâmetro ao iâmbico.
Pois primeiro faziam uso do tetrâmetro, porque a
forma da poesia era satírica e associada à dança, mas,
quando o diálogo foi introduzido, a própria natureza
da tragédia descobriu qual era o metro apropriado;
pois, de todos os metros, o mais apropriado à fala é
o iâmbico. Sinal disso é que dizemos muitíssimos
trímetros iâmbicos quando falamos em linguagem de
conversa com os outros, mas hexâmetros poucas vezes,
apenas afastando-nos da harmonia da linguagem
de conversa. (ARISTÓTELES, Poet. 4.1448b261449a9-31).
Muitos intérpretes apontaram as contradições e problemas dessa
passagem, evocando, por exemplo, as variantes de alguns termos nas
diferentes tradições manuscritas – como a palavra phaulliká ao invés de
phalliká (em Poet. 4.1449a12), não apenas aludindo ao caráter trivial e
simples dessas representações originais (conforme o significado da palavra
phaûlos), mas colocando em dúvida essa pretensa origem fálica da poesia
cômica (seja porque sequer estivesse presente na formulação original
de Aristóteles, seja porque algum copista dessa tradição manuscrita não
via sentido no emprego de tal palavra). Apesar do aspecto problemático
do trecho, acreditamos ser possível propor uma interpretação coesa de
seu sintético e complicado texto. Tentando concentrar suas informações
da forma mais coerente possível (suplementando-as ainda, quando
necessário, com outras passagens da Poética), é possível sugerir os
seguintes pontos:
* Homero foi o primeiro responsável por
desenvolver uma certa noção de “drama”, qual
seja, o emprego da mimese para se falar numa
primeira pessoa que não coincida com a pessoa
do próprio poeta,5 contudo, não desenvolveu o
drama propriamente dito, uma vez que continuou
Tal definição de “drama” é tornada possível quando se combinam as seguintes
passagens da Poética: 4.1448b37 e 24.1460a7.
5
72
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
*
*
*
*
a realizar a mimese com uma métrica uniforme
e, em grande parte, “por meio da narração [di’
apangelías]” (Poet. 5.1449b10);
os cantos fálicos – liderados por um exarconte
(líder de uma performance poética de coral) e
ainda estimados nas póleis do tempo de Aristóteles
– estão na base daquilo que veio a se tornar a
comédia;
um ditirambo arcaico – liderado por um exarconte;
dotado de caráter satírico e associado à dança;
com histórias breves, elocução ridícula e tendo
por metro o tetrâmetro trocaico – foi o gênero a
partir do qual se desenvolveu pouco a pouco a
tragédia – encenada por atores; dotada de caráter
sério e associada ao diálogo; com histórias de
certo tamanho, linguagem ornamentada e tendo
por metro o iambo para as partes dialogadas;
o aumento do número de atores e a diminuição
do papel do coro – ambos os movimentos
inaugurados por Ésquilo – conduziram a tragédia
até o que era próprio de sua natureza: nesse
sentido, a preponderância do enredo (mŷthos) em
detrimento do espetáculo (ópsis) é mais uma vez
reforçada;
a adoção gradual do metro iâmbico pela tragédia
não apenas ilustra o desenvolvimento natural
do ritmo no interior da história do gênero, mas
indica a crença aristotélica de que a linguagem
da tragédia deveria se aproximar do discurso
cotidiano.
Cumpre observar que as poucas informações oferecidas por
Aristóteles acerca das origens da comédia são justificadas no capítulo
seguinte com base na falta de interesse que os antigos tiveram pelo
início das performances cômicas, não se preocupando em registrar
seu desenvolvimento gradual (Poet. 5.1449a38). Esse ponto é
tradicionalmente mencionado para se defender – acertadamente – que,
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
73
se Aristóteles admite não possuir informações históricas precisas sobre
os primórdios da comédia, por outro lado, acredita ter acesso a detalhes
históricos seguros o bastante no que concerne à origem da tragédia.
Isso, obviamente, não diminui o fato de que o filósofo esteja propondo
um esquema teórico fortemente analítico, no qual tenta encaixar o
desenvolvimento histórico dos gêneros poéticos helênicos (conforme
alertam certos comentadores da Poética).
Um ponto normalmente encarado como problemático nessa
passagem – embora a interpretação acima sugerida o evite – tem relação
com a ordem da argumentação avançada por Aristóteles para abordar a
evolução dos gêneros dramáticos: dando a entender que a tragédia e a
comédia surgiriam na sequência de sua distinção entre poesias que se
dedicavam à mimese de diferentes objetos – i.e., o hino e o encômio tendo
por objeto as belas ações, enquanto a invectiva se voltaria para as ações
de homens infames (Poet. 4.1448b4) –, o texto da Poética não afirma que
a tragédia venha do hino ou do encômio, nem que a comédia venha da
invectiva. Ao invés de continuar um relato sobre a evolução dos gêneros
poéticos, Aristóteles afirma que, depois de terem surgido os gêneros
dramáticos, eles substituíram os gêneros então existentes no gosto dos
poetas, porque eram formas mais complexas (tò meízō)6 e mais estimadas
(entimótera): dentre os gêneros elevados, as tragédias substituíram as
epopeias; dentre os gêneros baixos, as comédias substituíram os iambos
(Poet. 4.1449a2-7). Na sequência da argumentação, abandonando
a distinção entre poesias com base em seus objetos (hino/encômio/
epopeia; invectiva/cômico/iambo), Aristóteles traz gêneros poéticos cuja
origem não especifica claramente: ditirambos e cantos fálicos. Trata-se,
portanto, de um desenvolvimento teórico paralelo àquele que delineara
A tradução de meízō aqui por “mais complexas” e não por “maiores” justifica-se na
medida em que o próprio Aristóteles diferencia os gêneros dramáticos dos épicos não
porque aqueles sejam “maiores” do que estes (antes o contrário seria verdade, Poet.
5.1449b12), mas porque há um aumento na complexidade dos gêneros dramáticos
responsável por torná-los mais aptos a atingir o fim da arte poética (Poet. 26.1462b1215). Essas informações dizem respeito explicitamente à tragédia (em sua relação com
a epopeia), mas, mutatis mutandis, são aplicáveis também à comédia (em sua relação
com o iambo).
6
74
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
anteriormente. Nesse sentido, o fato de que o ditirambo seja descrito como
possuidor de caráter satírico não contradiz o que ele afirmara há pouco
sobre a seriedade do hino, do encômio ou da epopeia, pois não afirma
que o ditirambo constitua a seus olhos uma modalidade desenvolvida a
partir de um desses gêneros. Da mesma forma, não parece que os cantos
fálicos constituam para Aristóteles um desdobramento da invectiva
ou do cômico. Embora esses pontos se deem a ver claramente a partir
do texto da Poética, essas observações não foram feitas por nenhum
dos estudos aqui consultados e parecem constituir uma interpretação
original dessa passagem. Os intérpretes tendem a assumir que Aristóteles
subentenderia o ditirambo como mera modalidade do hino, mas a única
forma de respeitar o texto dessa passagem – propondo uma interpretação
coerente da mesma – é sugerindo a existência de um redirecionamento
da discussão a partir da metade do capítulo IV da Poética, em 1449a2.
Outro ponto importante a ser observado por quem queira delinear
a teoria aristotélica da origem dos gêneros dramáticos é que – assim
como os cantos fálicos continuaram a ser executados depois de terem
dado origem à comédia, que passou a se desenvolver independentemente
deles – o ditirambo continuou a ser executado depois de ter dado origem
à tragédia. Inclusive, a julgar pelo elemento satírico de que é dotado o
ditirambo arcaico mencionado por Aristóteles, é de se supor que em seu
esquema diacrônico de evolução dos gêneros dramáticos, tanto a tragédia
quanto o drama satírico tenham se desenvolvido a partir do ditirambo.
Nesse sentido, esse esquema poderia ser assim delineado:
FIGURA 1 – Esquema diacrônico de evolução dos gêneros dramáticos
tragédia
seriedade
ditirambo arcaico
ditirambo
baixeza
cantos fálicos
drama satírico
comédia
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
75
Ainda que o esquema seja menos simétrico do que aquele
proposto por outros estudiosos – e tenha que preencher certos silêncios
do texto aristotélico, na medida em que postula uma diferenciação com
base nos objetos da mimese entre tragédia e ditirambo, por um lado,
e drama satírico, por outro (algo que não é explicitamente proposto
por Aristóteles) –, essa conformação dá conta dos gêneros poéticos
historicamente executados durante as Grandes Dionísias, por exemplo,
e não contradiz em nenhum ponto o texto da Poética.
Um aspecto interessante desse arranjo teórico é que ele coincide,
em linhas gerais, com uma ideia básica subjacente aos esquemas propostos
por Platão na República e nas Leis. Nesses diálogos, a sugestão comum é
a de que os gêneros mais simples – como os hinos e os encômios – teriam
sido os primeiros a ser compostos pelos seres humanos e que apenas com
o desenvolvimento de sociedades mais luxuosas e desregradas – i.e.,
menos dispostas a se restringir às coisas simples e necessárias – é que os
gêneros dramáticos teriam vindo a se desenvolver. Nesse sentido, a ideia
é de que esses gêneros mais complexos teriam se desenvolvido a partir de
um rompimento com os limites dos gêneros antigos mais simples. Essa
compreensão básica é a mesma que subjaz ao arranjo teórico proposto
na Poética. A diferença, contudo, é que, enquanto Platão censura as
formas mais complexas e desenvolvidas de poesia, propondo um retorno
aos modelos poéticos mais simples e severos, Aristóteles mostra-se
contente com a evolução da poesia e considera positivo que as formas
mais arcaicas deem lugar paulatinamente a formas mais desenvolvidas de
composição poética. Não se trata, portanto, de uma revisão (ou correção)
das premissas teóricas propostas pelos arranjos de Platão, mas de uma
discordância com relação à visão de mundo a partir da qual tais arranjos
deveriam ser avaliados. Os motivos para essa discordância – e para outras
discordâncias (já vistas ou ainda por analisar) – se tornarão explícitos
quando se compreender em que consiste a demonstração conclusiva da
essência da poesia – e, mais especificamente, da tragédia.
Depois de oferecer uma definição básica do campo da arte
poética (nos caps. I-III), uma explicação de suas causas (nos caps. IV-V),
Aristóteles dedica grande parte dos capítulos seguintes a demonstrar a
76
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
essência do fenômeno poético, principalmente em sua modalidade mais
bem-acabada e complexa, que é a tragédia. A fim de que se compreenda
o que está em jogo nesse novo desdobramento da obra, valerá a pena
retomar sua célebre “definição da essência [hóron tē̂s ousías]” da tragédia.
Antes, contudo, cabe destacar que o papel primário de uma “definição
da essência” nas obras de Aristóteles é,
por um lado, servir como princípio a partir do qual
um determinado tipo se configura como unidade
genuína, por outro, mostrar dedutivamente por que
suas propriedades subordinadas estão organizadas
de modo tal que a substância, a prática ou o tipo
de poíēsis em questão podem efetivar seu érgon
[efeito] ou sua função distintiva. Uma unidade
genuína é necessária se as partes e outros traços de um
determinado tipo formarem uma hierarquia objetiva
num todo funcional. (DEPEW, 2007, p. 139).7
Isso se aplica a muitas das obras de Aristóteles, principalmente
àquelas que dedica aos animais,8 e deve ser levado em conta na
interpretação que se dê à Poética quando se considera a seguinte
passagem:
Falaremos depois, então, sobre a arte mimética
em hexâmetros e sobre a comédia. Falemos agora
sobre a tragédia, retomando dela, a partir do que foi
dito, a definição de sua essência. É pois a tragédia
a mimese de uma ação séria, completa e de certa
extensão, em linguagem ornamentada, com cada
espécie de ornamento distribuída em suas partes,
No original: “[...] the primary role of a ‘formula of the essence’ is to serve as a
principle from which it can be seen that the kind in question is a genuine unity and to
show deductively why its subordinate properties are organized in such a way that the
substance, practice, or kind of poiesis in question can realize its ergon or distinctive
function. Genuine unity is needed if the parts and other traits are to form an objective
hierarchy in a functional whole.”
8
Exemplos mencionados por Depew (2007, p. 139) são: Part. an. 1.1.640a33-7; Ph.
2.6.197b2-37.
7
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
77
sendo executada por meio de agentes que dramatizam
e não de uma narração, capaz de levar – por meio
de compaixão e temor – à catarse de tais emoções.
(ARISTÓTELES, Poet. 6.1449b20-27).
Muito poderia ser afirmado sobre cada um dos termos dessa
“definição da essência [hóron tē̂s ousías]”, mas aqui convém destacar
aquilo que serve como princípio a partir do qual se organizam as
diferentes propriedades da tragédia a fim de que seu érgon (“efeito”) possa
ser bem efetivado. Que esse érgon seja justamente a catarse das emoções
suscitadas durante uma tragédia, a definição acima não permite ignorar.
O princípio organizador das diferentes partes da tragédia, contudo, não
está explícito aí, uma vez que só vem a ser formulado na sequência do
argumento. Depois de definir as seis partes da tragédia – enredo (mŷthos),
caracteres (ḗthē), pensamento (diánoia), elocução (léxis), espetáculo
(ópsis) e melopeia (melopoiía) (Poet. 6.1450a9) –, Aristóteles sugere
o seguinte:
O enredo é então o princípio [arkhḕ], e como que
a alma, da tragédia; em segundo lugar, estão os
caracteres [...]. A tragédia é a mimese de uma ação e,
por causa desta, sobretudo [a mimese] dos que agem.
Em terceiro lugar, o pensamento: isso é ser capaz de
dizer o que é pertinente e adequado [...]. A quarta
[parte], †com relação à linguagem†, é a elocução.
Entendo por “elocução”, como primeiro disse, a
manifestação de sentido por meio do emprego da
palavra, e que possui a mesma capacidade em versos
ou em prosa. Com relação às partes restantes, a
melopeia é o maior dos ornamentos, enquanto o efeito
visual do espetáculo cênico, embora o mais capaz de
conduzir os ânimos, é o menos afim à arte poética e
o que lhe é menos próprio. Pois a força da tragédia
existe sem a competição e os atores; além disso, para
a execução dos efeitos visuais, mais vale a arte do
cenógrafo do que a dos poetas. (ARISTÓTELES,
Poet. 6.1450a37-1450b20).
78
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
Tal como anteriormente proposto, essa hierarquização das
partes da tragédia atende a um dos pressupostos básicos da teoria de
Aristóteles, qual seja, o de que o mímēma deva ser inteligível a fim
de que o mais próprio de sua essência – i.e., a catarse da compaixão
e do temor despertados ao longo da peça – possa ser efetivado. Ainda
assim, outros pontos são igualmente importantes na determinação dessa
hierarquia, afinal, de que modo o enredo (mŷthos) pode assegurar o efeito
(érgon) da tragédia? Isto é, de que modo o enredo orientará os elementos
da tragédia a fim de que ela seja capaz de suscitar compaixão e temor,
levando à catarse dessas afecções? Isso se deve justamente ao fato de
que o enredo constitui o elemento responsável por assegurar a melhor
maneira para que tais afecções sejam suscitadas junto ao público. Com
relação a isso, um primeiro ponto que foi salientado pela maioria dos
comentadores diz respeito à necessidade de se criarem as condições de
empatia entre público e personagens. Para haver essa empatia, é preciso
que os caracteres das personagens não sejam totalmente estranhos
àqueles que fazem parte da experiência do público. Por isso, Aristóteles
recomenda que a personagem se mostre
sem se diferenciar muito pela virtude ou pela justiça
[ho mḗte aretē̂i diaphérōn kaì dikaiosýnēi] e sem
mudar para o infortúnio por causa da maldade ou da
vileza, mas por alguma falibilidade [mḗte dià kakían
kaì mokhthērían metabállōn eis tḕn dystykhían allà
di’hamartían tiná [...]. (ARISTÓTELES, Poet.
13.1453a7-12).
Tal recomendação busca, sobretudo, criar entre o público e as
personagens uma empatia que ultrapasse a mera apreensão intelectual.
Se, por um lado, a inteligibilidade de que todo enredo baseado numa ação
unitária é dotado coloca-se como condição necessária para a existência de
qualquer tragédia, ela não é condição suficiente para suscitar a identificação
entre o público e a ação encenada. Nesse sentido, alguma proximidade
entre as personagens e o público, do ponto de vista dos caracteres (ḗthē),
é outra condição fundamental para que determinadas afecções possam ser
suscitadas convenientemente em quem presencia a tragédia.
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
79
Para Aristóteles, é preciso que seja possível haver certa
identificação entre o público e as personagens, fato que se daria
justamente por seu caráter intermediário (que não se destacaria, desse
modo, nem positivamente nem negativamente). Ainda que essas
personagens medianas devam apresentar uma dignidade ligeiramente
acima do comum (tal como especificado em Poet. 5.1449b9-10), é
necessário que elas tenham certa falibilidade (hamartía). O detalhe é
que isso deve se manifestar de um modo que não abale profundamente
sua relativa excelência moral, ou seja, elas devem falhar não por causa
de uma falta de caráter, mas devido a certa ignorância (ágnoia).
O desastre trágico deve revelar-se imerecido, porque suas
razões devem estar relacionadas à falha de alguém. Isso leva o público
à compaixão (uma vez que a consequência da falha não parece ser um
castigo merecido) e ao temor (já que qualquer um poderia ser levado a
cometer o mesmo tipo de falha). De toda forma, segundo a concepção
aristotélica, para que essas emoções possam ser sentidas pelo público,
é preciso que se compreenda um envolvimento causal entre os agentes
e os eventos que trazem a mudança de destino. Ainda assim, para evitar
que isso implique numa pesada carga de culpabilidade – capaz de levar
a um questionamento inclusive do ē̂thos da personagem –, é preciso que
esses agentes tenham originalmente agido sob os impulsos da ágnoia
(“ignorância”), fato responsável por levá-los a cometer o que viria a se
revelar sua hamartía (“falibilidade”).
Nesse sentido, a noção de hamartía tem mais relação com a
ação condenável praticada por uma personagem que agia sem pleno
conhecimento das circunstâncias envolvidas nela – e, assim, por uma
personagem não condenável da perspectiva de suas motivações –, do que
com um defeito moral da personagem, como defendem Dupont-Roc e
Lallot (1980b, p. 243-6). Nesse sentido, as seguintes palavras refletem
melhor o arranjo sugerido pela Poética:
[Os insights tornados possíveis a partir de uma
perspectiva ética] podem ser usados para aumentar a
compreensão da hamartía trágica (ou erro [missingthe-mark]). Pois, apesar das milhares de páginas
escritas sobre essa noção, ainda se faz necessária uma
80
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
explicação que dê conta inteiramente das maneiras
pelas quais, para Aristóteles, o erro prático pode
acontecer devido a certas causas diversas do vício de
caráter e, ainda assim, ter importância para a vida. A
tragédia ocupa-se de boas pessoas que vêm a sofrer
“não por causa de um defeito de caráter ou vileza, mas
por causa de alguma hamartía” (Poet. 13.1453a9-10).
Hamartía e hamartēma são claramente distinguidos
de uma falha ou um defeito de caráter, tanto aqui
quanto em outros lugares (EN 5.8.1137b11, cf. Rhet.
1374b6). (NUSSBAUM, 2001 [1986], p. 382).9
De tudo quanto ficou dito, está claro que o conceito de hamartía
constitui uma espécie de saída para um conflito criado pela própria teoria
trágica de Aristóteles. Por um lado, um princípio quer que o enredo seja
lógico, a fim de que possa ser compreendido pelo público. Por outro,
é necessário que os agentes – apesar de terem cometido uma falha que
vai levá-los à mudança de fortuna e pela qual são responsáveis em
última instância – não se revelem voluntariamente culpados (a fim de
que o público ainda seja capaz de se identificar com eles). Ora, a única
maneira de se garantir que alguma inocência coexista com a quebra dos
mais hediondos tabus da sociedade helênica é sugerir que tais ações
tenham sido perpetradas sem que seus agentes soubessem o que faziam:
assim está garantido o papel da ágnoia nos principais enredos trágicos,
que, tal como ficará claro em breve, são justamente os que Aristóteles
recomenda como os melhores (Poet. 13.1452b30-35), chamando-os
“enredos complexos”.
No original: “There are many areas in which we could use these insights to press
Poetics interpretation further. [...] They can also be used to increase our understanding
of tragic hamartia, or missing-the-mark. For despite the thousands of pages that have
been written on this notion, we still need an account that is fully responsive to the ways
in which, for Aristotle, practical error can come about through some causes other than
viciousness of character and still matter to the value of a life. Tragedy concerns good
people who come to grief ‘not through defect of character and wickedness, but through
hamartia’ (1453a9-10). Hamartia and hamartēma* are sharply distinguished from flaw
or defect of character, both here and elsewhere (EN V.8, 1147b11ff., cf. Rhet. 1374b6ff).”
9
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
81
Antes de passar a essas considerações, contudo, convém explicitar
lateralmente as razões para que a definição aristotélica de tragédia se
encontre tão fundamentalmente ligada à ideia de se suscitar a compaixão
e o temor. Para isso, é necessário remeter à noção de kátharsis, uma vez
que o primordial no caso da tragédia não é apenas suscitar tais afecções,
mas por meio disso ser capaz de despertar o prazer trágico e a kátharsis
das mesmas. Já foi notado inúmeras vezes que a motivação de Aristóteles
para desenvolver essa teoria parece se compreender como resposta à
crítica platônica segundo a qual as emoções fortes da tragédia seriam
perniciosas para a alma do público (Rep. 10.603b-606d). A Poética não
nega que a tragédia seja efetivamente capaz de suscitar as emoções fortes
censuradas pelo Sócrates da República, mas tenta compreendê-las sob
uma perspectiva diferente da que é aí defendida. Contudo, em que pese
a importância desse conceito na Poética, revela-se difícil propor uma
definição precisa de kátharsis, já que o próprio Aristóteles se furta a fazêlo.10 Já houve quem tenha desejado relacioná-lo a pretensas considerações
fisiológicas pretensamente outrora em voga, mas o ponto mais próximo
de algum consenso atualmente é a ideia de que a kátharsis tenha aspectos
propriamente intelectuais de um aprendizado clarificador.
Seja como for, é possível sugerir que na Poética esse mecanismo
seja definidor da tragédia e constitua o grande trunfo da teoria de
Aristóteles para responder a um questionamento radical sobre a utilidade
que a tragédia poderia ter. Além disso, considerando o emprego da palavra
kátharsis por Platão, é lícito supor que a teoria aristotélica constitua um
questionamento ainda mais radical da prática pedagógica defendida por
seu mestre. No Sofista (230c-d) – conversando com Teeteto, Sócrates
e Teodoro –, “o estrangeiro de Eleia [ho xénos ex Eléas]” propõe as
seguintes considerações sobre os que praticam o método dialético pautado
pelo élenkhos (“refutação”):
10
O termo só aparece duas vezes na Poética (6.1449b28 e 17.1455b15), ambas de
forma igualmente não especificada, como bem destacado por Veloso (2004, p. 15). O
estudioso alude ainda ao fato de que na Política (8.6-7), tratando de uma modalidade de
kátharsis levada a cabo pela música, Aristóteles “esclarece” esse conceito remetendo o
leitor ao que é dito na Poética. Ou seja, “a coisa ganha feições labirínticas” (VELOSO,
2004, p. 17).
82
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
Eles questionam alguém que julga dizer algo de
valor acerca de alguma coisa, embora nada diga; em
seguida, verificam facilmente que tais opiniões estão
erradas e, aproximando-as por meio do diálogo de
um mesmo ponto, confrontam umas com as outras e
demonstram, através desse confronto, que umas são
contrárias às outras com relação aos mesmos objetos,
sob os mesmos pontos de vista. Percebendo-o, os
interlocutores indispõem-se consigo mesmos e
mostram-se mais abertos aos outros – desse modo,
com efeito, livram-se de todas as suas opiniões
orgulhosas e frágeis, sendo agradável para quem
escuta essa liberação, além de um benefício seguro
para quem a ela se submete. Ó meu caro jovem, pois
aqueles que se purificam [hoi kathaírontes autoús]
pensam como os médicos responsáveis pelos corpos,
os quais concordam que o corpo não é capaz de gozar
da nutrição que se lhe oferece antes que se remova
qualquer obstáculo existente em seu interior. O
mesmo também pensam aqueles sobre a alma: pois
não terá benefício algum dos conhecimentos que
lhe forem aportados sem antes ter sido refutado e
colocado em seu devido lugar – pela vergonha de ser
refutado –, desfazendo-se das opiniões que impedem
as vias para os conhecimentos até que se mostre
purificado [katharòn] e convencido de saber apenas
as coisas que de fato sabe, nada além disso. (Pl. Sph.
230b-d).
Outros trechos do corpus platonicum poderiam ser aduzidos para
dar a ver algo análogo,11 mas nessa passagem específica, a sugestão é
11
Depois de uma breve incursão pela história do conceito de kátharsis (e seus
derivados) em autores antigos, sugerindo que seu sentido teria relação com a ação
mais concreta de “remoção” e “limpeza”, Nussbaum (2001 [1986], p. 389) avança as
seguintes reflexões sobre seu emprego por Platão: “If we now return to Plato’s usage,
we find that he preserves this general picture. The central sense is that of freedom from
admixture, clarity, absence of impediment. In the case of the soul and its cognition,
the application of the word-group is mediated by the dominant metaphors of mud and
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
83
a de que um tipo de kátharsis intelectual seria suscitado pelo élenkhos
(“refutação”) elaborado no interior de uma discussão guiada pelo método
dialético e que apenas por meio desse expediente haveria a possibilidade
do desenvolvimento de alguma forma de conhecimento seguro. O que
está em questão nesse trecho é o método dialético tal como delineado
em inúmeros diálogos socráticos escritos por Platão (mencionados por
Aristóteles com o nome de Sōkratikoì lógoi, em Poet. 1.1447b11). Se
estiver correta a hipótese de que esse tipo de escrito era empregado na
Academia como meio de treinar o método dialético – tal como sugerido
por Kahn (1996, p. 56) e Depew (2007, p. 144) –, é possível afirmar que,
para Platão, a kátharsis seria um dos efeitos propiciados pela leitura de
seus diálogos socráticos, principalmente dos aporéticos. Tragédias e
outras formas de arte mimética, por outro lado, seriam meros estímulos
responsáveis por afetar o caráter através de um mecanismo pouco racional
de imitação, tendendo a exercer uma influência antes negativa do que
positiva e não sendo, por isso, capazes de suscitar algum tipo de kátharsis.
Tal parece ser o posicionamento de Platão.
No entanto,
clean light: the eye of the soul can be sunk in the mud (Rep. 533d1, Phd. 69c), or it can
be seeing cleanly and clearly. Katharos cognition is what we have when the soul is not
impeded by bodily obstacles (esp. Rep. 508c, Phd. 69c). Katharsis is the clearing up
of the vision of the soul by the removal of these obstacles; thus the katharon becomes
associated with the true or truly knowable, the being who has achieved katharsis with
the truly or correctly knowing (esp. Phd. 65ff., 110ff..). Thus we even find expressions
such as katharōs apodeixai, meaning ‘demonstrate clearly’ (Crat. 426b)” (“Se agora
nos voltarmos para o uso de Platão, descobrimos que ele preserva essa figura geral. O
sentido central é o de ausência de mistura, clareza, ausência de impedimento. No caso
da alma e sua cognição, a aplicação de palavras desse étimo é mediada por metáforas
predominantemente de lama e luz clara: o olho da alma pode ser afundado na lama
(Rep. 533d1, Phd. 69c) ou pode estar vendo limpa e claramente. Uma cognição em
modo kátharos é o que temos quando a alma não está impedida por obstáculos corporais
(especialmente Rep. 508c, Phd. 69c). Kátharsis é a limpeza da visão da alma por meio
da remoção desses obstáculos; então o kátharon torna-se associado com o verdadeiro
ou verdadeiramente conhecível, o ser que atingiu kátharsis com saber verdadeiro ou
correto (esp. Phd. 65ff., 110ff.). Então até encontramos expressões como katharôs
apodeîxai significando ‘demonstrar claramente’ (Crat. 426b)”).
84
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
Aristóteles discorda. Por um lado, ele afirma na
Política que hinos entusiásticos e iambos ritualizados
servem um propósito catártico e não apenas
estimulante, ainda que seja um processo em que as
pessoas evanescentemente “extraem algo de seus
sistemas” (Pol. 8.5.1340a8-14; 8.6.1341a14-24;
8.7.1342a16-28; 7.17.1336b20). Na Poética, ele afirma
algo diferente: que trabalhar com enredos trágicos – e
não apenas diálogos platônicos e outros materiais
textualizados de mesmo tipo – é catártico também, ou
seja, purificador porque oferece clareza intelectual no
sentido que Platão privilegia na passagem citada [do
Sofista]. (DEPEW, 2007, p. 145).12
Nesse sentido, fica cada vez mais claro o intuito de Aristóteles
ao desenvolver sua teoria da kátharsis das emoções suscitadas pela
tragédia: seja por meio de uma resposta às críticas que Platão elaborara
na República contra as pretensões educadoras da tragédia (a partir dos
argumentos psicológicos ali avançados), seja por meio de uma resposta
de viés cognitivo à proposta pedagógica explícita num trecho como o do
Sofista (segundo a qual apenas o método dialético refutativo suscitaria a
kátharsis intelectual necessária ao verdadeiro conhecimento), Aristóteles
promove – com argumentos filosóficos – uma reavaliação do papel que
a tragédia ainda poderia vir a desempenhar na paideía humana. Com a
Poética, o filósofo sugere não apenas que uma tragédia – quando bem
executada – tem uma função pedagógica importante, mas, igualmente,
que não é papel da filosofia propor meios de substituir a função catártica
já realizada por uma tragédia bem executada. Tomando como paradigma
da relação entre filosofia e poesia a própria Poética, seria possível sugerir
No original: “Aristotle disagrees. For one thing, he claims in Politics that enthusiastic
hymns and ritualized iambics do serve a purifying and not just a stimulating purpose,
albeit one in which people evanescently ‘get something out ot their systems’ (Pol. 8.5,
1340a8-14; 8.6, 1341a14-24; 8.7, 1342a16-28; 7.17, 1336b20). In Poetics, he claims
something else: that working through tragic plots, and not just Platonic dialogues
and other such textualized materials, is cathartic as well, purifying because it gives
intellectual clarity in the sense Plato privileges in the passage just quoted.”
12
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
85
que, para Aristóteles, o papel da filosofia seria justamente oferecer certos
direcionamentos para que o tragediógrafo – valendo-se de seus meios
(muito mais aptos do que aqueles disponíveis ao filósofo) – efetue uma
verdadeira kátharsis.
Nesse sentido, é preciso observar que, embora parta de uma
série de definições descritivas da arte poética, essa obra se destaca
muito mais pelas prescrições oferecidas aos poetas com o intuito de que
componham de modo a efetivar aquilo que constitui para Aristóteles
a essência da poesia. É possível compreender tanto a hierarquização
das partes da tragédia quanto a prescrição de determinados enredos
trágicos – em detrimento de outros – como meros desdobramentos do
que Aristóteles define como a “essência” (ousía) da tragédia. Ou seja,
o caráter positivo imputado a conceitos como reviravolta (peripéteia) e
reconhecimento (anagnṓrisis) explica-se por sua relação fundamental
com o mecanismo reconhecido na Poética como essencialmente trágico,
qual seja, a kátharsis. Consequência disso é que Aristóteles considere a
presença de ambos os expedientes como ingrediente imprescindível dos
melhores enredos trágicos (Poet. 11.1452a37).
Para o filósofo, as tragédias são produtos de arte racional, cujo
sucesso depende da coerência de sua estrutura, devendo ser capazes de
suscitar a compaixão e o temor naqueles que os presenciam. Levando
isso em conta, nada poderia ser mais lógico do que a constatação de que
agentes do enredo trágico, motivados por um equívoco fundamental e,
apesar de não serem moralmente condenáveis, agindo para a própria
desgraça, despertem no público os mais extremos sentimentos de
compaixão e temor precisamente no instante em que, dando-se conta
de sua falha, se encontram a ponto de sofrer uma mudança conforme a
verossimilhança ou a necessidade do enredo, mas de forma inesperada
e brusca, com relação àquilo em que acreditavam.
Com isso, a abordagem aristotélica revela-se – muito mais do
que a platônica – aberta à compreensão do papel que determinada poesia
poderia ter, inclusive como objeto legítimo de ocupação filosófica.
Onde Platão demonstrara certa intolerância com a maior parte da
produção poética de sua época – ainda que, mesmo nos momentos mais
86
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
acerbos de sua crítica, algumas modalidades de poesia sempre tenham
sido poupadas –, Aristóteles promoveu um modo de leitura diferente.
O caráter prescritivo de determinadas passagens de sua análise não
permite propor que esse “modo diferente” tenha rompido de todo com
a imposição arbitrária de certos valores pelo filósofo – como é típico da
preceptística clássica –, mas é certo que a poesia recebe o reconhecimento
de seu estatuto como campo discursivo com um potencial distintivo,
a ser avaliado a partir da apreensão de axiomas críticos próprios dela
enquanto arte (tékhnē).
Antes de encerrar essas considerações, contudo, cabe sugerir de
que modo a teoria sobre as origens da poesia e do drama desempenha
um papel fundamental no arranjo proposto na Poética. É certo que,
ao contrário do que já pôde ser sugerido sobre a falta de interesse de
Aristóteles pela origem dos fenômenos poéticos, o filósofo conciliou de
forma brilhante a necessidade de propor um modelo poético capaz de
responder aos questionamentos radicais colocados em várias das obras
de Platão e, ao mesmo tempo, interpretar os dados históricos e teóricos
básicos com que tinha inevitavelmente que lidar.
As motivações para que Aristóteles propusesse seu modelo
poético podem ser compreendidas a partir de seu interesse em garantir
o emprego de um novo gênero de discurso pela filosofia, qual seja, o
tratado filosófico, em detrimento do gênero mimético que vinha sendo
praticado por Platão e pelos membros da Academia, isto é, o diálogo
socrático. Tratando em sua Poética daquilo que se pode esperar da arte
dedicada à realização de obras miméticas – cujo ápice Aristóteles faz
questão de afirmar que é a tragédia (em sua forma complexa) e não o
diálogo socrático ou qualquer outro tipo de composição mimética –, o
filósofo defende que os maiores benefícios intelectuais propiciados por
uma obra mimética desse tipo estariam ligados à kátharsis da compaixão
e do temor suscitados por ela. Isso está longe de ser uma defesa do uso
filosófico das composições miméticas, mas certamente representa um
avanço com relação ao tratamento anteriormente proposto por Platão,
na medida em que não lhe impõe critérios de verdade e moralidade
externos ao campo da atividade poética (ainda que também lhe faça
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
87
certas exigências, como a de unidade e a de inteligibilidade). Desde
que o enredo (mŷthos) seja dotado de unidade de ação, dispondo certos
caracteres (ḗthē) que agem de modo a sofrer certas mudanças segundo
a verossimilhança ou a necessidade, o que acontece de acordo com o
pensamento (diánoia) (quando dizem o que é pertinente e adequado),
valendo-se de uma determinada elocução (léxis), a tragédia terá seu
efeito básico garantido, para isso não sendo necessário sequer recorrer
aos ornamentos musicais e corais (melopoiía) ou aos efeitos visuais do
espetáculo cênico (ópsis) (Poet. 6.1450a15-1450b19).
De que modo a teoria aristotélica sobre a origem da poesia
e do drama está ligada a esse entendimento? Propondo que os seres
humanos praticam a poesia inicialmente por uma tendência natural
à mímēsis, ao ritmo e à harmonia, Aristóteles supõe que, a partir de
motivos improvisados, surgiram certos gêneros poéticos ligados aos
caracteres desses primeiros poetas: dentre os elevados, hinos e encômios;
dentre os baixos, invectivas. Com Homero surgiram outros gêneros:
as epopeias (elevadas) e os poemas iâmbicos (baixos). Esses gêneros
poéticos, contudo, tornaram-se obsoletos quando surgiram as tragédias
e as comédias – estas, a partir dos cantos fálicos, enquanto aquelas, a
partir dos ditirambos. Para Aristóteles, a tragédia destaca-se de todos os
gêneros miméticos no que tange “ao exercício efetivo da arte poética
[tō̂i tē̂s tékhnēs érgōi]” (Poet. 26.1462b12), por isso desenvolve uma
teoria mais elaborada sobre suas origens, na qual os paralelismos são
notáveis: partindo do gênero coral do ditirambo, associado à dança,
dotado de caráter satírico, com histórias breves, elocução ridícula e tendo
por metro o tetrâmetro trocaico, suas performances foram se desfazendo
pouco a pouco da preponderância do elemento coral e coreográfico,
desenvolvendo um caráter sério, mais associado ao diálogo, com histórias
de certo tamanho, linguagem ornamentada e tendo por metro, nas partes
dialogadas, o iambo. Nesse mesmo sentido, Aristóteles sugere que o
exarconte do ditirambo se transformou no ator da tragédia, passando a
contracenar na sequência com um segundo ator e depois com um terceiro,
de modo a fazer com que o diálogo (lógos) se tornasse o verdadeiro
88
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
protagonista desse gênero mimético.13 Mas a consequência dessa
diferenciação e multiplicação gradual dos atores a partir do exarconte
ultrapassou em muito o mero favorecimento do diálogo, pois instituiu
a possibilidade de que as próprias ações pudessem ser encenadas (em
detrimento de elementos melopaicos e espetaculares, como a dança e o
canto do coro ditirâmbico). Ou seja, oferecendo mais espaço para “a trama
das ações [hē tō̂n pragmátōn sýstasis]” (Poet. 6.1450a15) – i.e., para o
enredo (mŷthos) –, a tragédia veio a desenvolver aquilo que definiria sua
essência e que lhe permitiria cumprir seu verdadeiro efeito, em detrimento
justamente daqueles elementos que se revelavam os menos importantes
para Aristóteles: melopeia e espetáculo. Tal como proposto por Depew
(2007, p. 141), o desenvolvimento gradual do ditirambo configura-se
como o único modo de se gerar uma tragédia completamente formada
e efetiva, segundo a definição da essência que a Poética oferece dela.
A teoria das origens da poesia e do drama está profundamente
implicada na compreensão que Aristóteles apresenta sobre a arte poética.
Nesse sentido, o filósofo revela-se um herdeiro autêntico das mais
fundamentais intuições de seu mestre, Platão: ciente de que o princípio
é o primeiro termo a partir do qual algo é, ou é gerado, ou é conhecido,14
Aristóteles determina as origens da poesia e do drama a fim de afirmar
o que cada um deles é, o que cada um deles veio a ser e o que pode ser
conhecido acerca de cada um deles. O desdobramento investigativo
dessas intuições forma o complexo texto da Poética.
Levando em conta a importância do diálogo para o desenvolvimento da filosofia de
Platão, não seria descabido defender – seguindo aquilo que Peter Szondi e Roberto
Machado já haviam sugerido sobre a importância da tragédia para o desenvolvimento
da “filosofia do trágico” no séc. XIX – que a tragédia também teria sido fundamental
para o desenvolvimento da dialética socrático-platônica e da própria forma assumida
por essa filosofia. Nesse sentido, o platonismo poderia ser visto como uma das primeiras
manifestações de “filosofia do trágico”.
14
A alusão aqui é ao início do livro delta da Metafísica. Depois de elencar seis diferentes
definições para arkhḗ – dentre as quais seria possível sugerir como tradução em
português, no mínimo, “princípio”, “início”, “propedêutica”, “origem”, “fundamento”,
“causa”, “poder” e “premissa” –, Aristóteles propõe o seguinte: “Então é comum a
todas as definições de arkhḗ ser o primeiro ponto a partir do qual algo é, ou se torna,
ou é conhecido.” (Arist. Met. 1013a17).
13
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
89
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Ed. bilíngue; tradução, introdução e notas de
Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015.
DEPEW, D. From Hymn to Tragedy: Aristotle’s Genealogy of Poetic
Kinds. In: CSAPO, E.; MILLER, M. The Origins of Theater in Ancient
Greece and Beyond: From Ritual to Drama. Cambridge: Cambridge
University Press, 2007. p. 126-49.
DUPONT-ROC, R.; LALLOT, J. Introduction (Poétique). In: ARISTOTE.
Poétique. Traduction et notes de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot.
Paris: Éditions du Seuil, 1980a. p. 9-29.
DUPONT-ROC, R.; LALLOT, J. Notes (Poétique). In: ARISTOTE.
Poétique. Traduction et notes de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot.
Paris: Éditions du Seuil, 1980b. p. 143-416.
HALLIWELL, S. Plato and Aristotle on the Denial of Tragedy.
Proceedings of the Cambridge Philological Society, Cambridge v. 30,
p. 49-71, 1984.
HALLIWELL, S. Aristotle’s Poetics. In: KENNEDY, G. (Ed.): The
Cambridge History of Literary Criticism: Classical Criticism. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989. v. 1. p. 149-183.
HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito
natural e ciência do estado em compêndio. Tradução de Paulo Meneses
et al. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2010 [1967].
KAHN, C. Plato and the Socratic Dialogue: The Philosophical Use of a
Literary Form. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
NUSSBAUM, M. The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek
Tragedy and Philosophy. Revised Ed. Cambridge: Cambridge University
Press, 2001 [1986].
PLATO. Platonis Opera. Edited by John Burnet. Oxford: Oxford
University Press, 1903.
90
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 61-90, 2018
SILVA, R. A ordem do discurso na Atenas Clássica. CONGRESSO
INTERNACIONAL DA ABRALIC, 15., Rio de Janeiro, 07-11 ago.
2017. Anais eletrônicos... v. 2. Rio de Janeiro: UERJ, 2017. p. 26842694. Disponível em: <http://abralic.org.br/downloads/2017_anais_
ABRALIC_vol_2.pdf>. Acesso em: 06 set. 2018.
SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Tradução de Pedro Süssekind. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
VELOSO, C. Il problema dell’imitare in Aristotele. Quaderni Urbinati
di Cultura Classica, Roma, v. 65, n. 2, p. 63-97, 2000.
VELOSO, C. Depurando as interpretações da kátharsis na Poética de
Aristóteles. Síntese – Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 31, n. 99,
p. 13-25, 2004.
Recebido em: 20 de setembro de 2018.
Aprovado em: 5 de dezembro de 2018.