GUTENBERG E O LETRAMENTO DO OCIDENTE
Marcos Henrique Camargo Rodrigues *
Resumo: A intenção deste artigo é apresentar de maneira dinâmica e sintética alguns
conceitos acerca da emergência e afirmação da cultura letrada a partir do século XVI
europeu, trazendo em perspectiva a invenção da imprensa gráfica e suas consequências
para o letramento das populações dos países ocidentais, assim como detectar suas
profundas influências filosóficas, políticas e sociais, que permearam as instituições culturais
nos séculos que construíram a modernidade.
Palavras-chave: Imprensa. Letramento. Modernidade. Mídia.
GUTENBERG AND THE WESTHERN LITERACY
Abstract: This article intend to present, in a synthetic and dynamic manner, some concepts
about the apprising and setting of an writing culture that begun in the European XVI century,
considering the invention of the press and its consequences to the literacy in the western
countries, also in order to detect its deeply philosophic, political and social influences that
transformed the cultural institutions in those centuries when was building the modernity.
Keywords: Press. Literacy. Modernity. Media.
O desenvolvimento do impresso
A tipografia não se adicionou simplesmente à
arte da escrita, como o automóvel não se
adicionou ao cavalo.
Herbert Marshall McLuhan
Mesmo antes da invenção da escrita tipográfica o registro dos textos era feito
em vários materiais. Entalhavam-se escrituras em madeira, mármore, cerâmica ou
pintavam-nas em tabuletas, tecidos, pergaminho ou papel. Há muito já existiam
cartazes, mapas e livros, semelhantes aos que são utilizados hoje.
O ato da leitura, no entanto, permaneceu público por muitos séculos, tal como
se dava com o discurso oral. A palavra, mesmo escrita, estava submetida à atenção
do grupo social. Não era de bom tom interpretá-la de maneira silenciosa e solitária,
inclusive porque o grande número de analfabetos clamava pela chance de ouvir
alguém que pudesse ressuscitar as palavras da superfície estática do papel, dandolhes vida, de modo que fecundassem o ouvido humano com as luzes de uma
sabedoria longínqua.
Se os livros eram principalmente lidos em voz alta, as letras que os
compunham não precisavam ser separadas em unidades fonéticas; bastava amarrálas juntas em frases contínuas. A antiga escrita em rolos – que não separava as
palavras, não distinguia maiúsculas nem usava pontuação – servia aos objetivos de
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alguém acostumado a ler em voz alta, alguém que permitiria ao ouvido
desembaralhar o que ao olho parecia uma linha contínua de signos. A separação das
letras em palavras e frases desenvolveu-se muito gradualmente (MANGUEL, 1997).
Com a crescente demanda por publicações, os copistas profissionais eram
pressionados a enriquecer o texto escrito com sinais que facilitassem a leitura
daqueles que nunca haviam lido um determinado livro e pudessem compreendê-lo
sem tanto esforço.
Depois do século VII, uma combinação de pontos e traços indicava uma
parada plena, um ponto elevado ou alto equivalia a nossa vírgula e o ponto e vírgula
era usado como o utilizamos atualmente. Essas providências garantiram mais
independência ao leitor, permitindo-lhe ler em voz alta os textos desconhecidos,
como também no silêncio de seu recolhimento reflexivo. No século IX, é provável
que a leitura silenciosa já fosse suficientemente comum no scriptorium para que os
escribas começassem a separar cada palavra de suas vizinhas com vistas a
simplificar a leitura. Isso também permitiu uma identificação mais clara dos
elementos
da
oração,
tais
como
sujeito,
predicado,
objetos,
adjetivos,
complementos, contribuindo para o estudo da gramática.
No século X, para facilitar ainda mais a tarefa do leitor silencioso, as primeiras
linhas das seções principais de um texto (os livros da Bíblia, por exemplo) eram
comumente escritas com tinta vermelha, assim como o aparecimento das rubricas
("vermelho", em latim), como explicações independentes do texto propriamente dito.
Mais tarde, a primeira letra dos parágrafos passou a ser escrita um pouco maior ou
em maiúscula.
No final do medievo já eram comuns os textos impressos. Embora não tenha
sido apenas Johannes Gutenberg o único a pesquisar uma forma de imprimir textos,
a sua ideia de um tipo móvel de metal, que podia juntar-se a outros para formar
palavras, frases encadeadas em linhas ordenadas, foi o modelo que obteve maior
sucesso, em vista de sua eficiência e economia. Entre 1450 e 1455, Gutenberg
produziu uma Bíblia com 42 linhas por página – o primeiro livro impresso com tipos –
e levou as páginas impressas para a Feira Comercial de Frankfurt. Os efeitos da
invenção de Gutenberg foram instantâneos e de alcance extraordinário, pois quase
imediatamente muitos leitores perceberam
suas várias vantagens: grande
capacidade de produção, velocidade na distribuição, uniformidade de textos, custo
menor.
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A cópia manuscrita de originais era muito cara e bem controlada pela
corporação dos copistas, pela Igreja e pelo Estado, por isso disponível apenas aos
mais ricos e influentes. O livro impresso representou não apenas uma opção de
qualidade e mais acessível comercialmente, como também aumentou incrivelmente
a liberdade da sociedade com relação à leitura; foram afrouxadas as proibições
devido à impossibilidade de controlar uma demanda crescente por livros de todos os
tipos.
Poucos anos depois da impressão da primeira Bíblia, máquinas impressoras
estavam instaladas em toda a Europa: em 1465 na Itália, 1470 na França, 1472 na
Espanha, 1475 na Holanda e na Inglaterra, 1489 na Dinamarca. A imprensa não
demorou a alcançar o Novo Mundo: os primeiros prelos foram instalados em 1539 na
Cidade do México e no ano de 1638 em Cambridge, Massachusetts (MANGUEL,
1997). Mas, apenas em 1808 (mais de duzentos anos depois de chegar às
Américas) a tipografia aporta definitivamente no Brasil, com a vinda da família real
portuguesa.
A rápida expansão da indústria tipográfica na Europa e no Novo Mundo
deveu-se a uma conjunção de importantes fatores. A demanda pela leitura era muito
maior do que as cópias manuscritas podiam suprir. Ideias novas estavam
fermentando nas cabeças privilegiadas do renascimento, ávidas por transmitir suas
novas cosmovisões para quem quisesse conhecer um novo mundo que os artistas e
intelectuais sonhavam para as artes e ciências. Além disso, a Reforma protestante
colocada em marcha por Martinho Lutero, Calvino e outros, a partir de 1517, tinha
como um de seus pilares filosóficos a possibilidade do cristão comunicar-se
diretamente com Deus, sem o concurso de intermediários. Mas onde estava Deus
para participar desse diálogo com seus filhos esperançosos da salvação? Em um
livro – a Bíblia. De modo que para falar com Deus o protestante precisava saber ler a
Bíblia. Pelo lado da Contra-Reforma católica, o livro também ganhou importância
como veículo ideológico, em que pensadores e artistas católicos produziam suas
obras em defesa de Roma.
Embora o latim continuasse a ser a língua da burocracia, dos assuntos
eclesiásticos e da intelectualidade de boa parte da Europa até o século XVII, no
começo do século XVI as línguas vernáculas estavam ganhando terreno. Em 1521,
Martinho Lutero começou a publicar sua Bíblia em alemão; em 1526, Willian Tyndale
trouxe a lume em Colônia e Worms sua tradução inglesa da Bíblia, já que fora
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forçado a deixar a Inglaterra sob ameaça de morte; em 1530, na Suécia e na
Dinamarca, um decreto governamental determinou que a Bíblia deveria ser lida em
vernáculo nas igrejas.
Os escribas, cujo negócio era ameaçado pela nova tecnologia, deploraram
desde o início a chegada da imprensa gráfica. Para os homens da Igreja, o problema
básico era que os impressos permitiam aos leitores que ocupavam uma posição
subalterna na hierarquia social e cultural estudar os textos religiosos por conta
própria, em vez de confiar no que as autoridades eclesiásticas lhes ensinavam. O
surgimento de jornais no século XVII aumentou a ansiedade sobre os efeitos da
nova tecnologia. Na Inglaterra, na década de 1660, sir Roger L‟Estrange, o censorchefe de livros, ainda questionava se “mais males que vantagens eram ocasionados
ao mundo cristão pela invenção da tipografia” (BRIGGS, BURKE, 2004, p. 99).
Quando uma nova tecnologia é introduzida no ambiente social, ela
não cessa de agir nesse ambiente até a saturação de todas as
instituições. A tipografia influiu em todas as fases de desenvolvimento
das artes e das ciências nos últimos quinhentos anos. Seria fácil
documentar os processos pelos quais os princípios da continuidade,
uniformidade e repetibilidade se tornaram as bases do cálculo da
mercadologia, da produção industrial e das ciências. (MCLUHAN,
2003, p. 203).
O impresso como mídia
A escrita e, com mais ênfase, a tipografia são meios de tecnologizar a palavra.
O impresso é a primeira grande mídia de massa da história ocidental.
Há várias definições para a palavra “mídia”, mas uma aqui nos interessa de
perto. Mídia significa um meio físico tecnológico que serve como veículo por meio do
qual se transporta uma mensagem no espaço e no tempo. Segundo essa definição,
não apenas o livro, mas o jornal, o folheto, mapas, calendários etc. se encaixam
comodamente como sendo tipos de mídia, cuja principal mensagem encontra-se no
conteúdo abstrato decodificado de seus textos. Embora o impresso seja o registro
de formas, isto é, de formas icônicas e alfabéticas impressas sobre papel e
decifradas com o auxílio do olho, o sentido das mensagens veiculadas pelo
impresso provém do significado contido em suas palavras.
A escrita, especialmente a impressa, já pode ser chamada de mídia porque
ela não se insere num contexto. A escrita é uma via de mão única que não considera
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a resposta do leitor, tornando-se assim muito semelhante às demais mídias de
massa, cujos emissores não se encontram presentes no mesmo ato de
comunicação em que estão os receptores.
Há mais de quarenta anos (1964), Herbert Mcluhan escreveu que “qualquer
estudante da história social do livro impresso possivelmente ficará intrigado com a
falta de compreensão dos efeitos psíquicos e sociais causados pela imprensa”
(2003, p. 197). Hoje, tais pesquisas já se encontram presentes justamente porque,
como disse o linguista canadense em outra ocasião, somente quando nos
encontramos no limiar entre uma era e outra podemos entender mais profundamente
o período que está se tornando história.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir o alcance social da influência da escrita
manufaturada, em relação à escrita impressa. Enquanto a escrita era conhecida e
utilizada apenas por uma elite pensante e governante, as sociedades constituíam-se
por meio das tradições orais, porque a esmagadora maioria não experimentava os
efeitos cognitivos e intelectuais da leitura. Porém, com a invenção da imprensa de
tipos móveis, o baixo custo dos livros coincide com a crescente alfabetização da
população europeia, quando tem início grandes transformações culturais.
Na Nova Inglaterra, a porcentagem da população alfabetizada cresceu para
50% durante a primeira metade do século XVII e ampliou-se para mais de 70% por
volta de 1710; ao tempo da Revolução Americana, atingiu cerca de 90%. Alguns
estudiosos chegam a dizer que tais níveis de alfabetização deveram-se a um efeito
colateral da fé puritana, que pregava a importância de se ler a Bíblia. No País de
Gales, a alfabetização ampliou-se velozmente durante o século XVIII, quando Griffith
Jones desenvolveu um sistema de escolas itinerantes, que auxiliaram todos a ler a
Bíblia em galês. Acredita-se que em 1750, o País de Gales ostentava a maior
população letrada do mundo ocidental. Historicamente, portanto, os índices de
alfabetização nos países reformistas do norte da Europa sempre foram elevados; em
1686 uma lei religiosa do Reino da Suécia (que à época incluía também a Finlândia
e a Estônia) estimulou o letramento e, cem anos depois, ao fim do século XVIII, o
nível de alfabetização alcançou quase 100%.
A partir do momento em que a cultura tipográfica impõe-se à cultura oral
secundária e que a maioria da sociedade (europeia e norte-americana) ocidental é
composta de indivíduos letrados, então podemos considerar os efeitos culturais
causados pelo letramento em sua modalidade impressa.
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O pensamento humano se processa por meio de vários conjuntos de signos
(linguagens) de modo a elaborar ideias, conceitos e comunicar sentimentos, tanto
quanto manipular e construir as coisas. Portanto, são as linguagens que estão por
detrás das formações culturais e a veiculação de seus textos através das mídias
influencia a forma como se apresenta uma determinada cultura.
O poder fracionador e analítico da palavra impressa sobre a nossa
vida psíquica deu-nos aquela „dissociação da sensibilidade‟, que é o
primeiro item que se procura eliminar das artes (...) Esta mesma
separação entre visão, som e significado, peculiar ao alfabeto
fonético, se estende também aos seus efeitos sociais e psicológicos.
O homem letrado sofre uma compartimentação de sua vida sensória,
emocional e imaginativa. (MCLUHAN, 2003, p. 198).
A tipografia não inventou a simetria, a uniformidade, a linearidade, nem
sequer a lógica, uma vez que tais conceitos são conhecidos dos seres humanos
desde tempos imemoráveis. Contudo, a regularidade homogênea com que as
palavras são dispostas em um impresso, a isonomia gramatical de seus textos, a
uniformidade da morfologia e ortografia oferecem tamanha materialidade e
densidade concreta a esses conceitos, que ao cabo de quinhentos anos a cultura
ocidental já se havia rendido completamente aqueles valores, constituindo com eles
as suas principais instituições sociais.
Vale dizer em tese, que a cultura reproduz em suas instituições os códigos da
linguagem hegemônica. Ou seja, quando se pretende conhecer o funcionamento
interno de uma sociedade é muito útil entender a “gramática” de sua linguagem
hegemônica.
Modernidade
A chamada Era Moderna, para alguns historiadores, teve início por volta de
1453, ano da queda de Constantinopla para os Turcos (data que simboliza o fim do
medievo ocidental), e segue até 1789, ano da Revolução Francesa. Em outras
palavras, também se pode dizer que esse período vai desde a invenção da prensa
gráfica até a Revolução Industrial, embora possa se estender um pouco mais,
atingindo meados do século XX. Mas circunscrever percursos históricos tão
abrangentes e aprisioná-los em datas tão precisas só nos conduz a erros
conceituais. Por isso, é melhor entendermos o que caracteriza a Era Moderna, do
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que tentar encaixá-la nos séculos a disposição.
De fato, o termo “moderno” gera um pouco de confusão, especialmente
quando o traduzimos por “novo”, enquanto percebemos que existem períodos mais
recentes, como o contemporâneo ou pós-moderno. A palavra “moderno” foi criada no
latim tardio com a junção dos termos modus + hodiernus, isto é, modo atual,
momento presente, novo, recente. Portanto, pode-se dizer que o conceito de Era
Moderna – embora o termo “moderno” já fosse utilizado séculos antes – foi aplicado
por historiadores e filósofos do Renascimento com o objetivo de fixar uma diferença
entre seu tempo e aquele protagonizado pelos antigos regimes ainda aferrados aos
valores medievais.
A modernidade foi preparada, de certo modo, pela Renascença. E o que havia
renascido na Europa foram as referências de toda sorte aos valores artísticos e
filosóficos da antiga cultura greco-romana, em oposição à escolástica. Era o retorno
a um pensamento original, que havia sido abafado durante os aproximadamente mil
anos do período medieval. Aliás, Idade Média foi um termo cunhado pelos modernos
para designar o período interstício que separou a antiguidade clássica da
modernidade.
Assim como ocorre com qualquer “era”, a modernidade teve um princípio
incerto e pouco promissor, em que se deu a emergência do Estado absolutista, o
cartesianismo, as grandes descobertas ultramarinas e suas subsequentes
colonizações, além do embate político-religioso entre católicos e protestantes que
perdurou por séculos. A era moderna também viu o desenvolvimento da economia
de mercado, primeiramente por meio do mercantilismo, em que predominava o
extrativismo vegetal e mineral (ouro e prata da América ibérica, especiarias da Ásia)
e a pirataria corsária. No século XVIII surgem em maior número as manufaturas e,
posteriormente, a indústria baseada no carvão e no petróleo.
Todas as revoluções ocorridas no período compreendido pela era moderna
ajudaram a consolidar a cultura ocidental. É certo dizer também que a tipografia
influenciou decisivamente as transformações históricas, servindo de suporte para a
transmissão dos conhecimentos e como matriz lógica do pensamento que contribuiu
para uma mudança de mentalidade.
Os que pretendiam manter o estado de coisas tal como era muito fizeram para
deter o avanço das ideias modernas, procurando encarcerar seu principal veículo de
divulgação – o livro. Para isso recorreram à censura, à exacerbação do preconceito,
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tanto quanto ao temor religioso da sociedade, com relação ao distanciamento
intelectual que o livro provocava naqueles que se aventuravam pelas suas páginas,
deixando-se levar pela imaginação suscitada por histórias impróprias para a
salvação das almas.
Os perigos da leitura de ficção, especialmente para as mulheres,
eram usualmente discutidos por escritores homens a partir do início
do século XVI. Como no caso do teatro, os romances eram temidos
por seu poder de despertar emoções perigosas, como o amor. Alguns
homens pensavam que as mulheres não deveriam aprender a ler,
pois poderiam receber cartas de amor (...) Outros opinavam que as
mulheres podiam ler um tanto, mas somente a Bíblia ou livros
religiosos. Uns poucos bravos argumentavam que as mulheres de
classe alta podiam ou deveriam ler os clássicos. (BRIGGS, BURKE,
2004, p. 70).
Por outro lado, o relacionamento com a leitura prosseguia de modo crescente.
Para os padrões da época, o livro impresso espalhou-se como fogo em palha seca,
incendiando a imaginação de toda Europa, fossem comunidades protestantes ou
católicas. Na metade do século XVI, um leitor poderia escolher entre mais de oito
milhões de livros impressos, “talvez mais do que todos os escribas da Europa
haviam produzido desde que Constantino fundara sua cidade no ano de 330”
(MANGUEL, 1997, p. 145).
“A unificação política das populações por meio de agrupamentos vernáculos e
lingüísticos não foi possível até que a imprensa transformasse cada idioma em meio
de massa extensivo” (MCLUHAN, 2003, p. 202). Pela primeira vez na história
ocidental começa a surgir o que mais tarde ficará conhecida como “opinião pública”,
forjada lentamente pela leitura de jornais e livros. O público leitor se expande
consideravelmente, em vista dos antigos grupos tradicionalmente vinculados à
leitura, como os autores, copistas, religiosos e aristocratas. A par com uma lenta
urbanização nesse início de revolução industrial, uma burguesia ascendente vinha
alimentando a indústria tipográfica e lendo não apenas romances ou livros religiosos,
mas ciência e, principalmente, filosofia iluminista.
O papel central desse movimento (Iluminismo) foi desempenhado por
pensadores franceses, os chamados philosophes, dentre eles Voltaire (1694-1778),
Rousseau (1712-78), Diderot (1713-84) e D‟Alembert (1717-83). Designando a si
mesmos como “homens de letras”, muitas vezes foram descritos como os primeiros
intelectuais, independentes de patronos, no sentido de serem críticos sistemáticos
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do regime sob o qual viviam. Eles buscaram difundir amplamente sua mensagem,
dentro e fora da França, tanto para mulheres quanto para homens (BRIGGS;
BURKE, 2004, p. 103).
O principal movimento filosófico da modernidade não poderia ter existido sem
a participação do livro e de seus leitores. A indústria literária praticamente pôs em
marcha as revoluções sociais que iriam inflamar o cenário mundial até hoje. Na
medida em que mais e mais pessoas penetravam o mundo da leitura, entravam
pelas portas de um novo tempo do qual se negavam a retornar. Mundos utópicos,
existentes apenas no imaginário de escritores e leitores contrastavam gritantemente
com a realidade em que estavam imersos. Livros sobre os direitos dos homens,
sobre sua igualdade fundamental e a necessidade da busca da felicidade inflamaram
a consciência de milhões de pessoas. De modo que, a distância entre o que o
mundo era e o que o mundo poderia ser, esgarçou a fé pública na aristocracia e
plantou as sementes das revoluções burguesas, cujas mais notáveis foram a
revolução americana e a francesa.
Por outro lado, a impressão de caracteres tipográficos alfabéticos, em que
cada letra é gravada em uma peça separada de metal, assinalou uma ruptura
psicológica. Ao transformar a escrita numa espécie de produto, foi a tipografia que
introduziu pela primeira vez a ideia de “industrialização” de uma mercadoria. A
primeira linha de montagem, uma técnica de manufatura que, em uma série de
etapas
fixas,
produz
objetos
complexos,
idênticos,
compostos
de
partes
substituíveis, não era do tipo que fabricava fogões, sapatos ou armas, mas do tipo
que produzia o livro impresso. Em fins do século XVIII, a revolução industrial
começou a aplicar em outras manufaturas as técnicas de substituição de partes com
que os impressores haviam trabalhado durante 300 anos (ONG, 1998).
A escrita impressa foi gradativamente se popularizando no ocidente e em
meados do século XIX havia atingido seu apogeu como principal mídia de
transmissão de conhecimentos. A literatura, paulatinamente, foi refletindo e também
reafirmando o movimento de privatização da cultura, em que se substituía epopéias
heróicas por protagonistas de dramas pessoais. Assim, o livro ajudou sobremaneira
a incorporação psicológica e social do individualismo moderno.
Como quase todas as instituições sociais mais importantes, o Estado, a
religião, a ciência, a filosofia e outros valores culturais mudaram muito nos últimos
quinhentos anos. As transformações que estas instituições sofreram foram
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influenciadas fortemente pela tipografia.
[A partir da Renascença] o sistema racional da representação
lingüística se torna representativo para todas as outras ordens
científicas e culturais, como a pintura, a do sistema econômico do
dinheiro e a das riquezas ou das ciências naturais. A ordem da razão
lingüística determina, assim, a ordem das coisas em geral.
(SANTAELLA; NÖTH, 2005, p. 24).
As novas ideias filosóficas e científicas, cuja proliferação ampliou-se com o
auxílio das publicações, não só criaram o novo método de observação do real, como
permitiram o emprego da lógica e da eficiência técnica na produção de mercadorias
em manufaturas racionalmente organizadas, dando início à revolução industrial.
A impressão não apenas influenciou o cientificismo, como era influenciada
pelos resultados espantosos da tecnologia ocidental, reforçando as convicções
racionalistas, progressistas e mecanicistas. Portanto, para se ter um Estado capaz
de dar conta dos novos desafios da era moderna, ele também precisava ser
racionalista, progressista, positivo, objetivo, imparcial. Sua formação não comportava
mais as idiossincrasias do período aristocrático. Era preciso dar-lhe uma constituição
denotada, lógica, histórica, universal. As leis não deviam mais espelhar as distinções
herdadas da monarquia absolutista, porém a igualdade de direitos sugerida com a
homogeneidade padronizante da lógica linguística embutida nos livros. O sociólogo
alemão Max Weber (1864-1920), propugnando por uma autoridade racional legal
enfatizou o crescente uso da racionalidade prática como um tipo de administração
mais impessoal. A impessoalidade – virtude republicana – torna-se mais aplicável
devido à descontextualização provocada pela escrita, geratriz da objetividade
imparcial.
Por sua vez, a escola devia também sofrer suas transformações
modernizantes. Não seria mais privilégio de classe, mas entraria para o esforço
nacional pela instrução pública (homogeneizante), complementando sua função com
a nobre tarefa de formar os cidadãos para o trabalho industrial. A escola refletiria o
ambiente da fábrica, com capatazes, linhas de produção, uniformes, sirenes,
horários, tarefas, hierarquia, disciplinas, testes e promoções.
Para escapar da informalidade subjetiva dos estudos praticados antes do
período
moderno,
a
escola
tipográfica
também
adotou
a
linearidade
e
sequencialidade em vários de seus aspectos, tais como na divisão em anos de
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estudos e na progressividade linear dos conhecimentos, aplicados aos alunos
conforme seu desenvolvimento intelectual e etário. A linha reta também pode ser
vista na sala de aula ao observar-se as cadeiras dos alunos em relação à mesa do
professor, as filas em ângulos retos e a própria arquitetura dos prédios escolares.
A verticalização também é reproduzida, tendo como base da hierarquia o
aluno, seguido dos inspetores, bedéis, professores, coordenadores e diretores. Por
outro lado, a descontextualização é incentivada, de modo a priorizar-se a teoria – o
“próprio” da escola moderna –, como também a impessoalidade do estudo, que deve
garantir a objetividade do conhecimento. Assim, a escola moderna não deve ensinar
o que as coisas são, mas como devem ser.
Na escola moderna aprende-se aquilo que é ideal, de modo a incutir no aluno
o desejo de uma sociedade idealizada de maneira lógica, que deve garantir a
homogeneização dos direitos aos recursos da produção social. Por fim, todo o
conhecimento a ser introduzido nas mentes estudantis deve estar isento de dúvidas,
de duplos sentidos (conotação), de modo a lhes introjetar a exata noção do certo e
do errado.
A linguagem e o Estado
No entanto, processos que são considerados "democráticos" e “libertadores”,
tais como as campanhas de alfabetização, de aumento das oportunidades e dos
recursos educacionais, estão muitas vezes conjugados com processos de
padronização da língua, que são menos obviamente democráticos e libertadores. A
chave da unidade profunda desses processos é a função, que eles vão assumindo,
de instrumentos para o aumento do controle do Estado sobre faixas menos
controláveis da população (GNERRE, 2003).
A concepção de língua nacional aparece com o surgimento dos
Estados modernos. Foi depois da Revolução Francesa que os
dialetos regionais foram substituídos pelo dialeto de Paris e que o
francês, dialeto da região de Île-de-France, passou a ser considerado
língua nacional. (...) A Itália só termina seu processo de unificação
política em 1870 e apenas então aparece aí uma língua nacional,
que teve como fundamento o dialeto florentino (toscano). (...) A
política lingüística do Estado espanhol, durante o governo de Franco,
quando proibia o ensino e o uso oficial do basco, do catalão e do
galego, tinha como objetivo promover a unificação nacional, de que
falava Stalin. (FIORIN, 2005, p. 71-72).
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O Estado é uma das instituições sociais do ocidente que nos parece mais
influenciado pelos efeitos modelizantes do letramento. A existência do Estado
moderno está garantida pelo conjunto de textos verbais que compõem a constituição
e suas leis complementares, como também pela mentalidade letrada da sociedade
ocidental. Desse modo, as respostas políticas do Estado frente aos desafios
impostos pelo governo da sociedade refletem os valores intelectuais e culturais
adquiridos com o letramento geral, em cuja base se encontram a linearidade e a
sequencialidade da narrativa verbal pela qual se traduz a ordem social; a
verticalização das regências gramaticais e a hierarquia de valores culturais e de
estratos sociais se equivalem; a universalidade da aplicação das leis pode ser
entendida a partir da descontextualização objetiva da descrição textual – todos são
iguais perante a lei; a idealidade dos conceitos está embutida na descrição dos
casos legais; a lógica gramatical atua como suporte da racionalidade e da
veracidade dos procedimentos estatais; e a isonomia sintática serve como
pressuposto de mecanismos administrativos generalizantes.
A lei, base conceitual da existência do Estado moderno, é um tipo específico
de discurso verbal, “uma espécie de organização de linguagem que não significa
outra coisa senão sua própria conclusão. O [signo] interpretante do texto, que se
produz na mente do receptor, já está expresso no texto mesmo: é a sua conclusão.
No caso, portanto, a única possibilidade de interpretante que o discurso [da lei]
desperta é a aceitação da conclusão por parte do receptor.” (SANTAELLA, 2001, p.
362).
A lei (que estrutura e dá forma ao Estado moderno) é um texto verbal
polarizado pela lógica, que se fundamenta na interpretação literal positiva, assim
como na etimologia da palavra e pelas regras gramaticais que permitem constituir
um cenário ideal, de aplicação universal, de maneira que possa ser generalizado o
bastante para realizar a promessa de imparcialidade perante um julgamento. Ou
seja, a lei enreda e encerra o pensamento jurídico na esfera da interpretação verbal,
descolando o ato em julgamento do contexto de sua geração. Isso não é errado,
porque é preciso abstrair os motivos da ação para melhor julgar sua motivação e seu
contexto. Entretanto, como a linguagem não é a realidade, mas sua representação,
perde-se na interpretação a maior parte do entendimento do fato.
O juiz deve fazer uma interpretação gramatical, lógica e histórica da lei. Mas,
enquanto a gramática é o conjunto de regras que rege a posição relativa dos signos
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verbais na oração, a lógica e a história também são frutos do texto verbal, na medida
em que se revelam ao leitor, respectivamente, por meio da sintaxe e da causalidade
linear. Desse modo, gramática, lógica e história não são instâncias essencialmente
diferentes, porém facetas do mesmo poliedro da linguagem verbal.
Conclusão
Assim, podemos dizer sem exageros que, para o bem e para o mal, o
impresso nascido com Gutenberg (como um complexo sistema midiático de
comunicação da linguagem verbal) é, justamente, uma das mais importantes causas
que conduziram aos fenômenos culturais e históricos forjadores da modernidade.
Causa que ainda produz seus efeitos mesmo atualmente, quando outros
conhecimentos, pensamentos e ideias baseados em outras linguagens e mídias
emergem da cibercultura.
Notas
* Marcos Henrique Camargo Rodrigues é doutor em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da
UNICAMP (2010). Atualmente é professor da Faculdade de Artes do Paraná –
UNESPAR/FAP, onde leciona Estética, Semiótica e Análise da Linguagem Cinematográfica.
Tem experiência na área de Comunicação, Semiótica e Linguagens, com ênfase em
Midialogia, atuando principalmente nos campos: publicidade, mídia, aprendizagem midiática,
semiótica
geral,
retórica,
teoria
da
comunicação
e
estética.
E-mail:
[email protected]
Referências
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de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Editora Ática, 2005.
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SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento. São Paulo: Editora
Iluminuras, 2001.
SANTAELLA, L., NÖTH, W. A imagem. São Paulo: Iluminuras, 2005.
Recebido em: maio de 2012.
Aprovado em: julho de 2012.
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