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A Evolucao do Design de Mobilia

A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Coleção Cadernos de Pesquisa mobíliabrasileira contemporânea pesquisa Marcos Cartum e Maria Lydia Fiamminghi organizadora Claudia de Brito Lameirinha Bianchi São Paulo, 2008 1 :: Depoimentos - IDART 30 Anos copyright ccsp @ 2008 Fotografia de Capa / João Mussolin Centro Cultural São Paulo - Rua Vergueiro, 1.000 01504-000 - Paraíso - São Paulo - SP Tel: 11 33833438 http://www.centrocultural.sp.gov.br Todos os direitos reservados. É proibido qualquer reprodução para fins comerciais. É obrigatório a citação dos créditos no uso para fins culturais. Prefeitura do Município de São Paulo Secretaria Municipal de Cultura Centro Cultural São Paulo Divisão de Informação e Comunicação Gerência de Projetos Idealização Revisão Diagramação 2 Capa Publicação site Pesquisa, texto e entrevistas Tombamento e Revisão Organizadora M687 Gilberto Kassab Carlos Augusto Calil Martin Grossmann Durval Lara Alessandra Meleiro Divisão de Pesquisas/IDART Luzia Bonifácio Lica Keunecke Solange Azevedo Marcia Marani Marcos Cartum, Maria Lydia Fiammingui Celso Eduardo Ohno Claudia de Brito Lameirinha Bianchi Mobília Brasileira Contemporânea [recurso eletrônico] / organizadora Claudia de Brito Lameirinha Bianchi - São Paulo; Centro Cultural São Paulo, 2007 148 p. em PDF - (cadernos de pesquisa: v. 15) ISBN: 978-85-86196-26-3 Material disponível na Divisão de Acervos: Documentação e Cosnervação do Centro Cultural São Paulo. 1. Móveis - Brasil 2. Móveis modernos - Brasil I. Bianchi, Claudia de Brito Lameirinha, org. II. Série CDD 749.2981 A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: AGRADECIMENTOS Agnes Zuliani Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira Vera Achatkin Walter Tadeu Hardt de Siqueira 3 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: PREFÁCIO 4 A “Coleção cadernos de pesquisa” é composta por fascículos produzidos pelos pesquisadores da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, que sucedeu o Centro de Pesquisas sobre Arte Brasileira Contemporânea do antigo Idart (Departamento de Informação e Documentação Artística). Como parte das comemorações dos 30 anos do Idart, as Equipes Técnicas de Pesquisa e o Arquivo Multimeios elaboraram vinte fascículos, que agora são publicados no site do CCSP. A Coleção apresenta uma rica diversidade temática, de acordo com a especificidade de cada Equipe em sua área de pesquisa – cinema, desenho industrial/ artes gráficas, teatro, televisão, fotografia, música – e acaba por refletir a heterogeneidade das fontes documentais armazenadas no Arquivo Multimeios do Idart. É importante destacar que a atual gestão prioriza a manutenção da tradição de pesquisa que caracteriza o Centro Cultural desde sua criação, ao estimular o espírito de pesquisa nas atividades de todas as divisões. Programação, ação, mediação e acesso cultural, conservação e documentação, tornam-se, assim, vetores indissociáveis. Alguns fascículos trazem depoimentos de profissionais referenciais nas áreas em que estão inseridos, seguindo um roteiro em que a trajetória pessoal insere-se no contexto histórico. Outros fascículos são estruturados a partir da transcrição de debates que ocorreram no CCSP. Esta forma de registro - que cria uma memória documental a partir de depoimentos pessoais - compunha uma prática do antigo Idart. Os pesquisadores tiveram a preocupação de registrar e refletir sobre certas vertentes da produção artística brasileira. Tomemos alguns exemplos: o pesquisador André Gatti mapeia e identifica as principais tendências que caracterizaram o desenvolvimento da exibição comercial na cidade de São Paulo em “A exibição cinematográfica: ontem, hoje e amanhã”. Mostra o novo painel da exibição brasileira contemporânea A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: enfocando o surgimento de alguns novos circuitos e as perspectivas futuras das salas de exibição. Já “A criação gráfica 70/90: um olhar sobre três décadas”, de Márcia Denser e Márcia Marani traz ênfase na criação gráfica como o setor que realiza a identidade corporativa e o projeto editorial. Há transcrição de depoimentos de 10 significativos designers brasileiros, em que a experiência pessoal é inserida no universo da criação gráfica. “A evolução do design de mobília no Brasil (mobília brasileira contemporânea)”, com pesquisa de Marcos Cartum e Maria Lydia Fiammingui e organização de Claudia Bianchi, trata da trajetória do desenho industrial brasileiro a partir da década de 1950, enfocando as particularidades da evolução do design de móvel no Brasil. A evolução de novos materiais, linguagens e tecnologias também encontra-se em “Novas linguagens, novas tecnologias”, organizado por Andréa Andira Leite, que traça um panorama das tendências do design brasileiro das últimas duas décadas. “Caderno Seminário Dramaturgia”, de Ana Rebouças traz a transcrição do “Seminário interações, interferências e transformações: a prática da dramaturgia” realizado no CCSP, enfocando questões relacionadas ao desenvolvimento da dramaturgia brasileira contemporânea. Procurando suprir a carência de divulgação do trabalho de grupos de teatro infantil e jovem da década de 80, “Um pouquinho do teatro infantil”, organizado por Maria José de Almeida Battaglia, traz o resultado de uma pesquisa documental realizada no Arquivo Multimeios. A documentação fotográfica, que constituiu uma prática sistemática das equipes de pesquisa do Idart durante os anos de sua existência, é evidenciada no fascículo organizado por Marta Regina Paolicchi, “Fotografia: Fredi Kleemann”, que registrou importantes momentos da cena teatral brasileira. Na área de música, um panorama da composição contemporânea e da música nova brasileira é revelado em “Música Contemporânea I” e 5 :: Depoimentos - IDART 30 Anos “Música Contemporânea II” – que traz depoimentos dos compositores Flo Menezes, Edson Zampronha, Sílvio Ferrraz, Mário Ficarelli e Marcos Câmara. Já “Tributos Música Brasileira” presta homenagem a personalidades que contribuíram para a música paulistana, trazendo transcrições de entrevistas com a folclorista Oneyda Alvarenga, com o compositor Camargo Guarnieri e com a compositora Lina Pires de Campos. Esperamos com a publicação dos e-books “Coleção cadernos de pesquisa”, no site do CCSP, democratizar o acesso a parte de seu rico acervo, utilizando a mídia digital como um poderoso canal de extroversão, e caminhando no sentido de estruturar um centro virtual de referência cultural e artística. Dessa forma, a iniciativa está em consonância com a atual concepção do CCSP, que prioriza a interdisciplinaridade, a comunicação entre as divisões e equipes, a integração de pesquisa na esfera do trabalho curatorial e a difusão de nosso acervo de forma ampla. 6 Martin Grossmann Diretor A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: SUMÁRIO Apresentação A evolução do design de mobília no Brasil Abrahão Sanovics Antonio Oliveira dos Santos João Batista Villanova Artigas Carlos Motta Jorge Zalszupin José Chaves Karl Heinz Bergmiller Léo Seincman Lina Bo Bardi Michel Arnault Sérgio Rodrigues 7 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: MOBÍLIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA :: Apresentação A pesquisa Mobília Brasileira Contemporânea refere-se às trajetórias do desenho industrial brasileiro a partir da década de 50 e está tombada no Arquivo Multimeios, da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo. Os depoimentos que compõem esta pesquisa foram feitos no ano de 1984 pelos pesquisadores Marcos Cartum e Maria Lydia Fiammingui. O objeto deste trabalho é traçar a trajetória do Desenho Industrial no país, com ênfase no período inaugurado no pós-guerra, quando se verifica sua verdadeira implantação através de escritórios especializados, cursos específicos e a criação de concursos e entidades. 8 A sistematização utilizada para o desenvolvimento da pesquisa compõe-se de um quadro histórico da trajetória do Desenho Industrial brasileiro, visualizado a partir da cidade de São Paulo, dentro do cenário cultural que marca o período a partir do pós-guerra, de depoimentos que visam documentar uma memória da obra dos designers paulistas mais representativos do mesmo período e imagens de suas obras. Os depoimentos pontuam o início de suas carreiras, o interesse pela arquitetura e pelo design, a criação de novos projetos, os problemas do design com relação à indústria, as bases para a constituição dos cursos de Desenho Industrial no Brasil, o desenho industrial e a tecnologia nacional, o desenvolvimento do design no Brasil e a trajetória das obras individuais. Para a constituição desse acervo documental vários arquitetos, designers e profissionais ligados ao design de mobília foram entrevistados: Abrahão Sanovics, Antonio Oliveira dos Santos, João Batista Villanova Artigas, Carlos Motta, Jorge Zalszupin, José Chaves, Karl Heinz Bergmiller, Léo Seincman, Lina Bo Bardi, Michel Arnault e Sérgio Rodrigues. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: A EVOLUÇÃO DO DESIGN DE MOBÍLIA NO BRASIL O design da mobília moderna no Brasil nasce, nos anos 20, na prancheta de Gregori Warchavchik e de John Graz, sendo que este último, ligado à estética do Art Dèco, desempenhando importante papel na difusão das artes decorativas ao criar os requintados ambientes da burguesia paulista, em que cada peça recebe desenho e tratamento adequado e próprio a seu cenário e dono. Já em Warchavchik, percebe-se o compromisso com a estética do racionalismo alemão trazido de sua estada na Europa, no seu caminho da Rússia para o Brasil, ainda que não entrasse em contato direto com a Bauhaus. Esse compromisso está expresso na supressão do ornato, na construção lógica baseada no desempenho funcional e estrutural e no purismo no uso dos materiais e das formas. Tais princípios, aplicados ao desenho de objetos, são transferidos da conceituação que rege sua arquitetura. Os móveis de Warchavchik caracterizam-se por complementar o espaço arquitetônico modernista que criou, como podemos ver no final de seu manifesto Acerca da Arquitetura Moderna1, quando proclama: Abaixo as decorações absurdas e viva a construção lógica, eis a divisa que deve ser adotada pelo arquiteto moderno. Deve-se salientar ainda que a arquitetura moderna, contida na utopia da modernidade, tem forte inspiração na máquina e, por extensão, também na indústria. Conforme as orientações do racionalismo europeu, Warchavchik entende a habitação como máquina de morar, em que está presente a idéia de que é, através da indústria, que irá se chegar ao verdadeiro destino da arquitetura quando essa encontra sua função social. Tal pensamento Warchavchik expressa claramente no mesmo manifesto quando afirma: Construir uma casa a mais cômoda e barata possível, eis o que deve preocupar o arquiteto construtor da nossa época de pequeno capitalismo, em que a questão da economia predomina sobre todas as demais. A beleza da fachada tem que resultar da racionalidade do plano de disposição interior, como a forma da máquina é determinada pelo mecanismo que é a sua alma.2 Vemos, assim, que a mobília desenvolvida por Warchavchik denota os compromissos que ele assume como arquiteto. Contudo, sua produção pouco se aproximará de seu desejo de oferecer à sociedade industrial, que engatinhava no país, objetos cômodos, funcionais, duráveis e acessíveis. Talvez por não ter conseguido sensibilizar os industriais com seu “apelo 9 :: Depoimentos - IDART 30 Anos modernista” ou, ainda, por não ter ultrapassado o nível formal em seus projetos, seus móveis jamais sairiam dos limites das bancadas de marceneiros habilidosos que os executavam em pequenas séries. O percurso de Gregori Warchavchik acaba por assumir, então, um caráter exemplar quanto aos caminhos que estariam por vir no desenvolvimento do desenho industrial no país porque se, por um lado, seus objetos não puderam se desprender de um modo de produção artesanal - muito mais próximos das peças únicas e assinadas - por outro, representariam o próprio acesso ao design industrial resultante da experimentação com mobília. 10 Desde os primeiros exemplares, encontramos algumas das questões que ainda hoje ocupam a pauta das discussões acerca do desenho industrial brasileiro, tais como a efetivação do projeto para a indústria, a importação de modelos estrangeiros versus a busca de um desenho genuinamente nacional e a comercialização de peças que sobrevivam aos modismos. Essas questões integram os temas que estavam sendo debatidos no momento de implantação da nova arquitetura e no da eclosão do movimento moderno em todas as suas vertentes. Compreende-se, dessa forma, a ligação íntima que há entre o processo de evolução do design e a introdução da arquitetura moderna no Brasil. Torna-se nítido também que as idéias ligadas ao design de móvel nascem a reboque da evolução da arquitetura brasileira, o que se reflete no fato de a maioria dos designers ser composta de arquitetos, convertidos ou não a esse campo. O problema já está, de saída, colocado. Enquanto o Movimento Moderno Europeu brota diretamente da Revolução Industrial do século XVIII, consolidando-se através do Arts & Crafts e em seguida do Art Nouveau, isto é, profundamente ancorado nas transformações tecnológicas, econômicas e sócio-políticas de uma cultura industrial emergente, em que a arte moderna pode ser vista como uma de suas manifestações, a maneira como esse processo veio se instalar no Brasil corresponde a uma realidade totalmente diversa cuja essência ainda hoje se faz presente. Não houve na raiz de nossa modernidade a mesma herança industrial, e os esforços dos pioneiros do design brasileiro efetivamente pouco conseguiram avançar A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: além da ruptura formal com os velhos ”estilos” e da sintonia com o que se irradiava na Europa. O design desse mundo moderno se descortina com a fundação da Bauhaus de Walter Gropius, em 1919, na cidade de Weimar, fruto das atividades desenvolvidas pela Deutsche Werkbund, de Hermann Muthesius. Uma sociedade que, como parte de um apelo de maior alcance à renovação artística, moral e social, reunia representantes da indústria, da arte, do artesanato e do comércio alemão para a produção de objetos industriais e que, por sua vez, era uma variante da filosofia de John Ruskin e William Morris, no Arts & Crafts e, principalmente, da escola de Van de Velde, de 1901, de quem a Bauhaus é filha. A escola de arquitetura e arte aplicada que Gropius criou, em 1919, e que dirigiu, até 1928, é a conclusão dos esforços desenvolvidos a partir da segunda metade do século XIX para restabelecer o contato entre o mundo da arte e o mundo da produção, para formar uma classe de artífices idealizadores de formas e para basear o trabalho artístico no princípio da cooperação. Se a arte deixa de ser uma revelação do criador, feita ao artista pela graça da inspiração, mas sim o aperfeiçoamento de um fazer que tem o princípio e o fim do mundo e se cumpre inteiramente na esfera social, o problema da gênese torna-se o próprio problema da produtividade e adquire, automaticamente, um caráter social.3 É em torno desses elementos que Gropius articula seu discurso, à estrutura didática da Bauhaus, em que a concepção de design está orientada a impulsionar a criação de uma nova mentalidade para uma nova realidade. Outro ponto a ser ressaltado refere-se à preocupação em definir um desenho brasileiro em que, no caso da mobília de Warchavchik, verifica-se uma posição discordante. Ele, com efeito, está comprometido em romper as fronteiras nacionais e criar um desenho como o de Dessau, segunda sede da escola alemã, colocando o Brasil dentro do grande projeto encabeçado pela nova arquitetura, na qual deveria estar ausente, portanto, qualquer traço regional. Também é notório no caso de Flávio de Carvalho, arquiteto paulista identificado com o futurismo italiano. A crise da natureza coincide, na arte moderna, com a crise da história e com a aspiração de atingir 11 :: Depoimentos - IDART 30 Anos expressões supra-históricas, antinaturalísticas, internacionais. A didática da Bauhaus nasce exatamente da verificação de que, pela primeira vez, um ideal internacional assumiu uma consistência histórica precisa.4 Com a crise econômica desencadeada em 1929, as pretensões de Warchavchik sofrem sério abalo em relação à posição de vanguarda que ocupava até então. A década de 30 assistiria ao advento de um surto “nacionalista” que parte do Rio de Janeiro para conduzir os caminhos de nossa arquitetura. Pelas mãos de Lúcio Costa, sem que ele renegasse frontalmente a experiência do modernismo paulista, é iniciada uma trajetória em direção a um desenho brasileiro partindo da assimilação de nossas raízes. Essa iniciativa iria também buscar inspiração e influência na visão elaborada por Le Corbusier, contrapondose ao domínio de Gropius e presente nas posições de Warchavchik. 12 Le Corbusier assume a racionalidade como sistema e traça grandes planos que deveriam eliminar qualquer problema; Gropius assume a racionalidade como método que permite localizar e resolver os problemas que a existência vem continuamente colocando.5 Dessa postura, lembramos as palavras do próprio Lúcio Costa justamente abordando a questão do mobiliário: E como todos consideramos anomalias não só a fabricação em série de móveis ‘de estilo antigo’, mas também as grotescas produções do falso modernismo e bem poucas nos podemos dar ao bom gosto, ou talvez melhor, à extravagância de adquirir, para uso próprio, móveis de antepassados dos outros, esperemos que essa confusão contemporânea se esclareça brevemente e a casa brasileira, hoje tão atravancada, se vá aos poucos... “desentulhando”, até readquirir, mobiliada com peças atuais e de fabricação corrente, aquela sobriedade que foi, no passado, um dos seus traços mais característicos, senão mesmo o seu maior encanto.6 A década de 30 registra, para o mobiliário, um período de retração se comparado ao fervilhar do momento imediatamente anterior, confinando a contribuição de Warchavchik no tempo e fixando-o no papel de precursor do design de móvel no país. São Paulo, nesse período, encontra-se inundada pela Art Déco, nas construções e nas decorações, contracenando com o ecletismo sem pai nem mãe. Vale lembrar a significativa produção do Liceu de Artes e Ofícios, de onde saíram móveis cuja importância estaria A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: mais no esmero da execução e na reprodução dos estilos decorativos ecleticamente aplicados e veiculados pelo cinema norte-americano. Esse tipo de produção dá mostra do momento vivido pelo design de móvel: uma espécie de compasso de espera principalmente pela tendência irradiada pelos cariocas. O país se agita para vencer sua fase pré-industrial, vigoram os produtos sem autor, sendo necessária novamente a presença de um profissional que, como Warchavchik, conseguisse apontar um caminho “conceitual”. Isso realmente ocorreria e não teria somente um protagonista, mas duas iniciativas, quase simultâneas, que desempenharam esse papel. No Rio de Janeiro, os móveis de Joaquim Tenreiro e em São Paulo, pouco depois, os de Lina Bo Bardi mostrariam a um só tempo que a mobília brasileira teria que se expressar levando-se em conta a leveza imposta pelo clima e pelas possibilidades no trato dos materiais nativos. Chegase, finalmente, a resultados que representam um produto brasileiro, dando um salto renovador dentro do próprio movimento moderno uma vez que partem da aplicação de outros princípios e não apenas do ideário subjetivo das idéias que influíam na moderna arquitetura. Não é por mero acaso que Joaquim Tenreiro tem seu lugar de destaque assegurado na história da mobília brasileira. Trata-se daqueles casos em que as condições de ordem pessoal e os fatores externos combinamse com extraordinário encaixe, donde a fertilidade de sua trajetória. Tenreiro trouxera de Portugal seu ofício de artesão que iria desenvolver e aperfeiçoar nas grandes firmas de mobília em que trabalhou no Brasil, que, apesar de artesanais, possuíam, como no caso da C.Laubisch, Hirth & Co, em 1941, mais de 300 trabalhadores. Porém, a intenção que o trouxe tão jovem ao Brasil, em 1927, era a pintura, que manteria paralelamente à carreira de artesão - necessária à sua sobrevivência, envolvendo-se na área de desenho e artes plásticas, o que o colocaria dois anos mais tarde como participante do Núcleo Bernardelli, em defesa de uma arte sem a mordaça da academia que controlava o salão nacional. Apesar do forte desejo em prosseguir sua carreira como artista, Tenreiro viu-se obrigado a manter-se no emprego de marceneiro onde trabalhava, fazendo móveis tanto mais procurados pelos clientes quanto melhor 13 :: Depoimentos - IDART 30 Anos transmitissem os estilos de sua origem, já fora de época e numa repetição exaustiva.7 É a partir desses dois componentes - seu lado artesão e seu lado artista - que se configura o Tenreiro designer. Cansado de repetir os móveis de estilo e impossibilitado de atuar somente como artista, começa a vislumbrar resoluções com uma “dosagem artística” na vontade de criar modelos de móveis próprios. Sem possuir qualquer informação sobre o que se desenvolvera na Bauhaus, Tenreiro contaria como referência, em termos de linguagem, com os rumos inovadores da arquitetura no Rio de Janeiro. 14 Em 1941, tem a oportunidade de decorar um projeto de Oscar Niemeyer, a residência de Francisco lnácio Peixoto, em Belo Horizonte. Aparece, então, o primeiro exemplar moderno de uma mobília efetivamente brasileira, feito por um profissional que conhece a fundo as características e os processos de trabalho com a madeira, dotado de sensibilidade e em sintonia com o movimento cultural que se consolidava nas artes visuais. Em pouco tempo, criaria seu próprio “negócio”, que prosperaria rapidamente ao longo da década de 50, quando começaram a brotar outros profissionais que se aventurariam em estúdios próprios para a criação e a comercialização de móveis. A atuação de Lina Bo Bardi tem, ao lado da de Tenreiro, importância crucial na abertura dos caminhos que os designers de móvel iriam percorrer durante o período de maior fertilidade do setor: as décadas de 50 e 80. Vinda da Itália, em 1946, de onde trouxera sólida formação como arquiteta, Lina possuía uma visão elaborada a respeito do conceito de indústria a ser incluído nos procedimentos projetuais da arquitetura. Pouco antes do final da II Guerra, já percebíamos o perfil bem claro daquilo que iríamos lançar como a libertação dos homens, da escravidão do trabalho pesado que persistiu até a véspera da II Guerra Mundial. Especialmente, a libertação da mulher, que, com os trabalhos domésticos, sem a ajuda mecânica, ficava presa aos filhos, à casa, à cozinha, sem possibilidade de ter uma vida própria e um trabalho fora do ambiente doméstico. (Lina Bo Bardi em entrevista concedida aos pesquisadores no Sesc Pompéia, em outubro de 1984) A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Em dia com a problemática contida na visão bauhausiana e disposta a realizar experiências com vistas a romper tanto com o formalismo exacerbado como com a produção massificante que chegava dos Estados Unidos, de onde emanava o fenômeno do styling, uma variação do desenho industrial nascido da necessidade da superprodução, a partir da crise de 1929, baseado no capitalismo oportunista, indiferente aos valores artísticos e culturais,8 Lina entusiasma-se com os horizontes criados com os primeiros frutos obtidos pelo grupo liderado por Lúcio Costa. Esse entusiasmo originava-se no desejo de participar da modernização do país, o que possibilitaria a superação do subdesenvolvimento e em que o design teria um papel de libertação e de emancipação. Esse é o sentido de sua intervenção: a vontade de compreender o Brasil nessa dimensão políticocultural e traduzir em propostas de objetos a sua própria identidade moderna. Em 1948, funda, em sociedade com o arquiteto Giancarlo Palanti, o Studio de Arte Palma com o objetivo de produzir um tipo de mobília não existente no mercado, que, aliás, não possuía tradição nem de desenho nem de processo industrial. Um ano antes desse evento, havia projetado uma cadeira dobrável para o auditório do Museu de Arte de São Paulo, que resultou num modelo extremamente engenhoso e elegante, exatamente por não ter sido possível encontrar à venda peças cujo desenho não fosse, na melhor das hipóteses, cópia mal feita de um móvel europeu visto em alguma revista. O Studio Palma, que, além de escritório de desenho contava com uma oficina de madeira, uma mecânica, uma seção de artesanato e montagem, produzia suas peças em função da simplificação estrutural, tentando extrair as possibilidades que as madeiras, o couro e os tecidos ofereciam como o repertório formal brasileiro. Foi também o Studio Palma que introduziu a madeira compensada na fabricação de móveis no Brasil, posteriormente aproveitada nos móveis de Zanine Caldas, um maquetista de arquitetos do Rio e de São Paulo que fez grande sucesso comercial com a sua Fábrica de Móveis Z, explorando com muita habilidade as formas orgânicas típicas dos anos 50. No entanto, Lina encerraria as atividades de seu Studio naquele mesmo ano, pela falta de proteção a que seus desenhos estiveram 15 :: Depoimentos - IDART 30 Anos expostos diante da enxurrada de cópias e imitações que ocorreram desde sua abertura. Desde essa época, Lina mantém-se afastada da atividade de designer de móvel. Desistência que marcaria também, alguns anos mais tarde, já no final da década de 60, a carreira de Joaquim Tenreiro, no momento em que ele fecha suas lojas em São Paulo e no Rio de Janeiro para dedicar-se exclusivamente às artes plásticas. Cabe observar que essa coincidência que une esses dois profissionais revela a precariedade do setor, uma vez que, nos dois casos, é a questão da viabilidade comercial que serve de obstáculo para o curso de suas atividades em design de móvel. Lina Bo Bardi assume uma postura radical na medida em que se recusa a prosseguir desenhando móveis como uma estilista de elite (o que poderia ter facilmente feito), na negativa de fazer um desenho industrial desprovido de um alcance maior. 16 Se o plágio, a que estiveram submetidos seus produtos, levou-a ao desencanto, o mesmo não se pode dizer, contudo, dos benefícios que o mercado dele veio a retirar. Agora, quem sabe pela primeira vez, o modelo a ser copiado era brasileiro e os fabricantes percebiam algo novo e necessário nas formas propostas não apenas pelo Studio Palma, mas por outras experiências que começavam a aparecer, sobretudo em São Paulo com o Zanine, com o Léo Seincman, na Ambiente, com o Geraldo de Barros, na Unilabor, com os irmãos Hauner, na Mobilinea e com o Miguel Forte e Roberto Aflalo, na Branco e Preto, entre outros. Vemos, então, nos primeiros raios da década de 50, nascer, finalmente, uma nova categoria em atuação: o designer de móvel. Surge aí o designer brasileiro, inicialmente ligado apenas ao setor do mobiliário, no qual estavam reunidas as condições para esse surgimento - fato que deve ser frisado no sentido de caracterizar o ponto de partida que define a evolução do desenho industrial no Brasil. A década de 50 representa, portanto, quer para o design de mobiliário, quer para o design em sua totalidade, seu momento de arranque e consolidação. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Com o desenvolvimento econômico no pós-guerra, tendo Vargas posto em prática seu plano de industrialização e com a entrada em vigor do surto desenvolvimentista da era Kubitschek, estão colocados os ingredientes que estimulariam uma produção destinada a um consumo interno. As dificuldades que enfrentávamos naquela época, quando tudo era feito de madeira (de metal não tínhamos praticamente nada), só começaram a ser superadas com o advento da indústria automobilística, a partir do que poderíamos fazer qualquer coisa, pois qualquer tipo de material se tornava acessível, já que existia a partir daí uma tecnologia que nos favorecia. (Carlo Fongaro em entrevista concedida no seu escritório, em outubro de 1984) No âmbito da cultura, os anos 50 comportariam uma enorme expansão, um fervilhar de novas iniciativas e idéias que se aglutinariam e se irradiariam através de todos os campos artísticos, configurando um período extraordinariamente produtivo, ocasião em que se viu a chance de romper com um passado que se interpunha ao sonho de se construir uma sociedade moderna, o mesmo desejo de desenvolvimento, modernização e crescimento detectado no âmbito político-econômico. O esforço de emancipação cultural de um Brasil atual e atuante é evidente: ao defendermos a nossa emancipação cultural, seríamos levados à emancipação política e econômica.9 Um leque de componentes favorecer o arranque do design. De um lado, as movimentações que agitavam o debate da arquitetura, em que os arquitetos começam a assumir interesse enquanto classe de desempenhar seu papel na modernização do país, num instante em que já se tinha plena consciência de que as realizações da arquitetura contemporânea do Brasil indicavam um caminho próprio. Como resultado, veremos esse profissional lutando por alargar sua prática em direção ao planejamento urbano e ao desenho industrial. Nessa época as primeiras marcas e logotipos começavam a ser estudados e planejados, com certa dose de lógica e com certo sentido de comunicação. Também algumas indústrias de aparelhos domésticos adotavam novos desenhos para seus produtos: tratava-se de indústrias que sentiam muito mais de perto a evolução das necessidades do consumidor...10 17 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Por outro lado, no campo das artes plásticas, temos uma série de eventos que, posteriormente, tornar-se-iam decisivos. Em 1948, Francisco Matarazzo Sobrinho funda o Museu de Arte Moderna de São Paulo, enquanto Paulo Bittencourt cria o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; em 1950, é aberto o Instituto de Arte Contemporânea no MASP, o lançamento da revista Habitat e as exposições de Max BilI e Richard Neutra; em 1951, a primeira bienal do MAM em São Paulo e, finalmente, o lançamento do manifesto do Grupo Ruptura também no MAM paulista, definem um passo da maior relevância na implantação de um design nacional. Esse resumido conjunto de fatos, além de seu significado com o que se processava em bloco em todas as artes, tem um sentido específico para o design. 18 Com a consistência que se vai adquirindo com a implantação dos vários espaços culturais cuja missão primeira é trazer “criadores e criaturas” da Europa e divulgá-los aqui, tem-se a oportunidade de travar contato com personalidades atuantes na vanguarda artística. Um desses personagens, cuja visita exerceu especial ressonância, foi Max BilI. Sua passagem agitou os ânimos de uma série de profissionais e artistas, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, uns assumindo a defesa diante da feroz crítica que ele desfechou aos arquitetos modernos brasileiros, acusandoos de terem desenvolvido projetos inúteis por não transcenderem o nível decorativo, e outros nele reconhecendo o acerto em sua prática de artista e de incentivador na área do design e da arquitetura. O arquiteto/escultor fora o responsável pela fundação, logo depois da Segunda Guerra, da Hochschule für Gestaltung em Ulm, escola que dirigiu por oito anos, até 1961, em cuja orientação inicial estava patente à preocupação em reeditar a Bauhaus. Essa escola serviria de modelo para a elaboração do curso de desenho industrial da ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) no Rio de Janeiro, inaugurada em 1963, após um largo período de namoro não só com o suíço Max BiII como também com o diretor que o substituiu em UIm, o argentino Tomás Maldonado, a quem o MAM do Rio de Janeiro convidara ao lado de outro designer, Otl Aicher, para proferir uma série de conferências sobre design, em 1962. Foi com Maldonado, aliás, que a Escola Superior da Forma de Ulm acabou por assumir uma estrutura A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: contrária à filosofia bauhausiana (sobretudo no tocante à manutenção de procedimentos próprios da criação artística), dando ênfase à teoria da informação, posição que se chocaria com as idéias de BiII, as quais remetem à mesma questão polêmica da época da fundação da Bauhaus entre Van de Velde e Muthesius e que continuaria pendente ao longo de sua existência até 1933, quando é fechada pelo nazismo. A ESDI, que resultou do desejo que vinha desde 1956 dos arquitetos e artistas envolvidos na criação do MAM-RJ, entre eles Affonso Reidy, Aloísio Magalhães e Maurício Roberto (seu primeiro diretor), em constituir um núcleo de design dentro do museu, destinava-se a substituir a “bossa” individual, puramente intuitiva e quase sempre formalmente gratuita, por uma metodologia de resolução de problemas. Essa metodologia não é um academismo, e sim, uma atitude estreitamente ligada às dificuldades cotidianamente enfrentadas pelo desenhista industrial.11 Segundo o pensamento de Maldonado, a crescente complexidade da produção industrial o fazia temer uma defasagem entre a indústria e o produtor de formas, sentindo-se este forçado a evitar qualquer interferência do expressionismo na produção industrial, em que o designer deveria estar aparelhado tecnologicamente, ponto em que Maldonado baseou-se para objetivar o ensino em UIm, formando programadores técnico-visuais ultra-especializados.12 Essa abordagem está fortemente presente na direção que toma a ESDI. O problema central desse enfoque é quanto ao fato de que não houve maiores preocupações no momento de importar, para uma realidade completamente distinta, um modelo destinado a uma nação cuja indústria possuía sólida instalação e para um período de pós-guerra, tal qual havia sido com a Bauhaus dos anos 20, quando a indústria necessitava de um “projeto” para reerguer-se. Paralela à importação de mercadorias, davase a importação de um know-how que, nesse caso, passava por cima das necessidades locais. A preocupação em estabelecer uma estrutura de ensino condizente à realidade brasileira apareceu, anos antes, no primeiro curso de desenho 19 :: Depoimentos - IDART 30 Anos industrial do país: em 1950, no IAC do MASP (outra relevante contribuição de Lina Bo Bardi a ser também lembrada como responsável pela edição nesse mesmo período da revista Habitat, que se tornaria importante veículo de informação e debate no campo da arquitetura, design e cultura). Dentro do terreno do mobiliário, devem ser mencionados, ainda, outros fatores atuantes. A presença de profissionais estrangeiros, que se acentuou com o fim da guerra, entusiasmados por encontrar no Brasil perspectivas mais favoráveis para o exercício de suas atividades, e a peculiaridade do momento econômico que propiciava grandemente a abertura de firmas para a produção de móveis com investimentos de capital relativamente baixos e com tecnologias simplificadas. 20 Havia a fábrica Paubra que, no início dos anos 50, abriu uma loja chamada Jatobá, próxima à praça da República. A fábrica foi também uma das precursoras do móvel moderno em São Paulo quando era dirigida por Carlos Paris, que depois montaria a Forma. A Paubra começou como uma marcenaria, tornando-se, ao longo dos anos, uma fábrica em que se produziam inclusive caixas de rádio, tendo também executado projetos do Studio Palma. Os primeiros desenhos da Paubra foram desenvolvidos pelo arquiteto italiano Carlo Fongaro, vindo de Milão, em 1947. Seu envolvimento com o mobiliário deu-se, basicamente, pelo fato de não ser conhecido aqui como arquiteto, sendo mais fácil oferecer seus desenhos em lojas de móveis. Após essa experiência, Fongaro colabora em diversos projetos de mobiliário de escritório para a fábrica Ambiente, do empresário Léo Seincman, seguindo depois como designer na Probjeto. A isso ainda se aliava a abundante oferta de matérias-primas a custos reduzidos, bem como o aparecimento de um consumidor desejoso de atualizar-se; nota-se uma mudança do sentido alegórico com que a mobília comparecia tradicionalmente nas casas refinadas de São Paulo e também o consumo que começa a aparecer na classe média, para a qual surgiram diversas linhas de produtos. Deve-se lembrar que o móvel “de encomenda”, feito por marceneiros, nunca deixou de freqüentar os ambientes paulistas e que, além disso, os arquitetos normalmente desenhavam a mobília que acompanharia seus projetos, incumbência que cresce nos anos 50. O que é A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: inédito nesse momento é o surgimento de um produto com características industriais, veiculando uma proposta formal antes só acessível a uma reduzida elite e bastante diferente da mercadoria convencional. O último ponto que se destaca para compor o painel dos fatores que incidiriam nesse momento cultural dos anos 50 foi a contribuição do movimento concreto. No centro desse movimento, encontramos a figura de Waldemar Cordeiro trazendo para o gesto criativo a dinâmica do pensamento lógico, segundo as tendências enraizadas no construtivismo europeu. No final dos anos 50 tem-se, então, um conjunto de pequenas indústrias atuando na esteira da fartura que marca o momento econômico de maneira ainda tímida em seu modo de produção, rumando, porém, para um comparecimento firme em uma escala maior. Além das já citadas, datam também desse período a Oca, de Sérgio Rodrigues, autor da célebre Poltrona Mole, de 1957, marco importante para o design brasileiro no exterior, tendo ganhado prêmios de bom design e que ainda hoje é bastante conhecida em vários países, um designer em busca da “linguagem brasileira”, que leva adiante a tendência iniciada por Tenreiro; a Arredamento, a Mobília Contemporânea, de Michel Arnault, a L’Atelier, de Jorge Zalszupin, a Escriba, de José Serber e a Italma, que iniciou suas atividades na comercialização de móveis de escritório aproveitando os projetos de Giancarlo Palanti, e a Forma. Essas empresas são basicamente as mesmas que hoje dividem o mercado. As pequenas manufaturas tornaramse grandes indústrias, cujo crescimento correspondeu à assimilação de tecnologias para o desenvolvimento de produtos para escritório. O último ano da década de 50 reservaria ainda uma importante conquista. O lançamento do primeiro concurso para desenho industrial, levado através do Instituto dos Arquitetos do Brasil, em São Paulo e o embrião para a criação da Associação Brasileira de Desenho Industrial (ABDI), em 1963. De início muito ativa, edita a revista Produto & Linguagem, logo interrompida, coincidindo com o paulatino esvaziamento que tomaria conta da entidade mais adiante, na década de 70. 21 :: Depoimentos - IDART 30 Anos No princípio dos anos 60, o design brasileiro começou a estruturarse enquanto setor profissional. Com a reforma curricular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, encabeçada por Villanova Artigas, são introduzidas disciplinas dentre as quais destacamos as seqüências de desenho industrial e programação visual, fato que representa um divisor de águas no ensino de arquitetura no país. Em 1962, às vésperas da criação da ESDI, no Rio, o que ocorre no ano seguinte, a reforma do ensino da FAU tem como tônica a formação do designer de produtos, além da transmissão de uma metodologia que permita a resolução de problemas específicos e o conhecimento dos vários parâmetros que os cercam, segundo a conceituação ampla do “projeto”. ... o dado fundamental do trabalho criador será o projeto. É ele que organiza e direciona todos os esforços, pois a prática multicentenánia nos ensina isso: do geral para o particular e vice-versa13 --- visão que exibe a introdução de um pensamento voltado para o social, que propulsiona a criatividade do trabalho projetual na busca de respostas, na escala da responsabilidade que o arquiteto naquele momento pretende assumir. 22 A figura de Villanova Artigas no centro desses acontecimentos imprime um caráter particular no itinerário do desenho industrial. Suas posições pautavam-se pelo compromisso social a ser desempenhado pelo arquiteto em sua atividade, engajando-se na indústria, o definitivo instrumento para essa operação. Esse pensamento humanista que dá sustentação ao ensino que começava a ser veiculado na FAU não apareceria no modelo adotado pela escola carioca, de tendência mais profissionalizante. O ponto de divergência era, em suma, a ótica sob a qual cada um dos cursos enxergaria alguns temas chaves: a questão da “porção artística” contida no ato projetual, a maneira de encarar o desafio de pensar uma solução brasileira para o design, o enfoque sobre o exercício profissional, conforme as características próprias de cada orientação já mencionada, em que o arquiteto é o todo- poderoso criador de uma sociedade humana e racional (FAU) e o desenhista industrial (ESDI) é formado para amoldarse às exigências de um mercado de trabalho em maturação. O desenho industrial brasileiro teve, portanto, no início da década de 60, condição de expandir-se rumo à sua consolidação, no sentido de A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: estabelecer as bases enquanto setor organizado através da estruturação de cursos, entidades, canais de divulgação e conseqüentemente da conscientização da função do designer dentro da indústria, embora nos anos seguintes tal consolidação fosse diluída em uma situação de impasse. Nessa direção, as indústrias de móveis passariam por um momento de significativa evolução em suas linhas, conceitos e formas, quando se torna imprescindível à presença do designer para ocupar tal função. É o caso de Karl Heinz Bergmiller, na Escriba, e de Carlo Fongaro, na Probjeto, deixando de novo patente que o designer continua praticamente isolado dentro da indústria de móveis em relação ao espaço a ser ocupado nos demais ramos industriais. É de extrema importância, tendo-se em conta essas observações, o lançamento da Cadeira Dinamarquesa pela Probjeto, em 1964, introduzindo a tecnologia da madeira moldada e flexível. A Probjeto continuaria posteriormente com essa finalidade: adquirir e transferir know-how para a produção de peças sob licença de indústrias estrangeiras, absorvendo as tecnologias avançadas inexistentes no país. O golpe de 1964 repercutiria fortemente na trajetória até então ascendente do desenho industrial brasileiro. O design nacional frutificarase ao longo do período democrático que a nação viveu de 1945 a 1964 e sofreria forte abalo com os desdobramentos dessa interrupção. Por um lado, houve o esmagamento da universidade pública, marcando o “fim do debate” com o Ato Institucional n° 5, em 1968. Ocorreu a uma proliferação de faculdades privadas, com a finalidade de desarticular e esvaziar o foco de debate representado pela universidade pública. Nesse processo, incluem-se os cursos de desenho industrial, contando com o agravante de serem recém-nascidos. Além do mais, as dificuldades impostas pelo quadro econômico inflacionário e a instalação de multinacionais fortemente incentivada, cuja contrapartida no campo do design é a devastação da atividade projetual foi ficando, aos poucos, de fora da produção. Dá-se início a uma espécie de hibernação do desenho industrial a reboque da sucessão de crises ocasionadas pelo regime que se instala em 1964: Seria a crise de amplo espectro: econômica (1960-1964), política (1964-....), cultural (1968-...).14 23 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Os anos 60 abrigam um conteúdo amplo face aos movimentos artísticos e culturais, examinando os problemas nacionais, como o subdesenvolvimento, o imperialismo, o engajamento crítico, propondo-se a apresentar e a denunciar uma realidade pela instrumentação da linguagem que fornece o concretismo, ao mesmo tempo, movimentos internacionais, como o Pop e Op Art, fortalecem-se na produção artística brasileira, denunciando e influenciando linguagens e apelos de consumo explorados pela publicidade que também ganhava terreno. A busca do novo da classe média é respondida por uma onda de consumismo através do “design de comportamento” comandado por designers como os Beatles,15 numa expansão do styling a infiltrar-se no desenho de mobília desse período. 24 Vemos, com isso, um certo divórcio entre o plano da cultura “elitizante” e o plano da cultura veiculada pela produção industrial, em que se insere a indústria do mobiliário despida agora do discurso voltado ao nacional presente em outros campos da manifestação cultural. Chegam também influências do design escandinavo, muito em voga nessa época (tendência que se verifica, por exemplo, pela Exposição de Desenho Industrial da Escandinávia organizada pela ABDI no MASP), reforçando a modernização e o crescimento do setor pela exaltação de uma produção que apresentava dois aspectos marcantes: boa forma e bom apelo de consumo, características ideais, porém ainda longe da realidade brasileira. Porém, com o fim do “milagre” em meados da década seguinte, é que a sobrevivência da produção brasileira de mobília moderna é colocada em cheque, exigindo uma reformulação definitiva em relação ao sistema ainda preso ao modo artesanal que prevalecia nas indústrias. É por essa época que os padrões de consumo começam a desempenhar a força motriz do processo, com o sistema industrial, quase condenado a reproduzir uma miniatura mal distribuída dos modismos, padrões de consumo e novos produtos das economias de origem.16 Com relação a isso, é importante apontar os contornos desse impasse estrutural: o processo de industrialização brasileira ou todo o esforço de modernização baseado na importação não planificada de processos, que se sedimentaram ao longo de séculos nas nações desenvolvidas e A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: que aqui se instala abruptamente, tende a conduzir o design, resultado do afastamento de uma identidade cultural brasileira, desprezando, entre outras coisas, o pré-artesanato de uma cultura popular, o qual procurou esmagar, quando deveria ter se preocupado em assimilar. Cultura é design de imponderáveis, é design de designs ancorado na realidade e na necessidade, mas criando sua própria realidade e sua própria necessidade. No Japão, a arte mínima é milenar, funda-se funcionalmente numa necessidade sobrevivencial e se traduz culturalmente e esteticamente na miniaturização.17 No dizer de Aloísio Magalhães: Parece-me que, no caso brasileiro, toda atividade com características de artesanato, ou seja, pequena intermediação entre a mão que faz e o objeto que se usa, são formas iniciais de uma atividade que quer entrar na trajetória do tempo; que quer evoluir na direção da maior complexidade tecnológica para resultados mais efetivos.18 Esse impasse, entretanto, não impede, ao contrário estimula a continuidade do avanço; sinais de saúde que se misturam a sintomas crônicos de um mal antigo. No decorrer da década de 70, o recrudescimento da crise econômica que levaria à queda do consumo interno, o aumento dos custos das matérias-primas e da produção, forçando o industrial a buscar como saída a exportação, recolocava a necessidade de se investir em pesquisa, ampliando o campo de trabalho do desenhista industrial. Nasce uma empresa mais consciente dessa anatomia, e começam a se desenvolver produtos que trazem atrás de si um envoltório mais complexo. Em 1979, é criado, dentro da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) o Núcleo de Desenho Industrial (NDI), destinado exatamente a fazer com que o empresário atentasse à necessidade de canalizar recursos para o desenvolvimento de um design próprio, o caminho mais viável para se desenvolver a indústria nacional. Esse fomento ao design realizado pelo NDI começa a surtir resultado em decorrência dos vários programas e convênios que estabelece com outras entidades associadas à indústria, atingindo pouco a pouco sua meta ao incentivar 25 :: Depoimentos - IDART 30 Anos interesses para essa conscientização, muito embora tal processo evolua num ritmo invariavelmente lento. Não obstante a permanência dos problemas mencionados, a década de 70 abarca uma grande, embora discutível, expansão na atividade do desenhista industrial. O setor contaria, no final da década, com mais de vinte cursos espalhados por todo o país, formando centenas de alunos anualmente. No decorrer da década, consolida-se o reconhecimento da atividade por parte do governo federal, e lembramos a atuação do Instituto de Desenho Industrial do MAM-RJ, que, afora a realização de eventos a respeito do design, como as bienais internacionais de 1968 a 1972, vincula-se ao Ministério da Indústria e Comércio (MIC), em 1973, a fim de desenvolver projetos de pesquisa para a criação de normas técnicas. Nessa fase, dá-se também no Rio de Janeiro a criação da Associação Profissional dos Desenhistas Industriais de Nível Superior (APDINS), quando já circulava um contingente de profissionais em número expressivo. As primeiras gerações de designers formados pelos cursos em multiplicação. 26 Sob essa perspectiva, não apenas na ampliação do espaço de atuação do designer em direção à produção de bens de consumo, mas também na de bens de capital, quando o desenvolvimento industrial do país atinge um expressivo crescimento, o designer começa a comparecer nos projetos de maior complexidade, nos quais sua função técnica é gradualmente mais reconhecida e requisitada, à medida que tais atividades adquirem um contorno multidisciplinar. No plano do projeto estético, o período em que ingressamos a partir da década de 70, apesar de significar esse salto qualitativo indiscutível, não representa para o mobiliário, além de uma melhoria de nível dos produtos, um avanço real, fato que parece ser o fim da hibernação iniciada com os anos 60. Houve, de certa forma, a consolidação do processo em direção ao consumismo. Privado de um espaço considerável, constrangido a se concretizar numa esfera restrita sob a forma de mercadoria, o racionalismo arquitetônico se transforma em ostentação de bom gosto, incompatível com sua direção profunda, ou em símbolo moralizante e desconfortável da revolução que não ocorreu.19 A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: A burguesia, imune à crise, interessada em possuir cultura, incentiva o retorno às experiências pré-industriais, baseadas numa pretendida liberdade criadora (na esteira dos movimentos que contestam a continuidade da arte moderna), sem transpor o formalismo cujo conteúdo baseia-se na reificação da modernidade. Surgem, então, profissionais dedicados a suprir esse tipo de mercado de mobília assinada, fenômeno que corresponde à tendência geral da cultura dos anos 80. São designers de móvel que se afastam dos procedimentos que os acercavam do terreno da arquitetura e se aproximam do “décor” típico do estilista de roupas e acessórios, colocando-se em atrito com a visão conceitual e tradicional do designer industrial. No âmbito da arte, como vimos, o design também caminha na trilha das novas linguagens: a polêmica suscitada nos últimos anos pelo termo e pelo “movimento” pós-moderno, tanto na sociologia e teoria da cultura como, de modo particular, na arquitetura, pôs em evidência um fato simples: a existência de uma nova consciência de radicais transformações em nossa existência e suas condições históricas. (...) Mas nas manifestações atuais da arte e da arquitetura, sente-se antes a falta desse elemento comunicativo e expressivo, a ausência de fala. Existem estilos, quer dizer, formas codificadas, textos sintaticamente consistentes e expressivamente vazios. A forma artística parece ter sido substituída pelo desenho; a expressão, suplantada pelas linguagens. O reino do styling acabou por deslocar inteiramente aquele sentido clássico de estilo, em que o individual e o coletivo, o expressivo e o lingüístico, o mimético e o abstrato conheciam um relativo equilíbrio.20 Mesmo que se mantenha a devida distância crítica ante tais afirmações, é preciso reconhecer esse fenômeno que envolve o campo do design. Segundo apontamentos de um outro crítico, Bruno Munari, o designer ideal deve ser desprovido de estilo pessoal por não trabalhar para uma elite, e sim, para a comunidade; a forma final de seus objetos é sempre o resultado lógico de um projeto que se propõe a resolver da melhor maneira todos os componentes de um problema. 27 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Assim, define o designer como um profissional que se opõe ao fazer do artista por considerar que quando o artista pretende trabalhar como designer, fá-lo sempre de um modo subjetivo (...), deseja que o objeto produzido conserve ou transmita a sua expressão artística. Numa sociedade avançada, já não existem valores subjetivos, mas valores objetivos que tendem a predominar até porque o método subjetivo não leva muito longe.21 Produtos que apontam tanto para a direção de que fala Bruno Munari como para a tendência ao formalismo pós-moderno, encontraram ampla aceitação no Brasil e representaram um passo decisivo para a descoberta de novos caminhos no design de móvel. 28 Enquanto as propostas que vinham surgindo no mobiliário desenhado nos últimos anos continuaram em sua maioria centradas em torno dos partidos já em processo de saturação, provenientes da experiência dos estúdios da década de 50, aparece, em 1978, a Tok & Stok contribuindo para introduzir outras linguagens, a propor inovações tanto em termos de linguagem como de proposta comercial. Produzidos sob licença da Innovator, firma sueca que apresentara em fins da década de 60 móveis inspirados na estética dos materiais industriais usados com cores vibrantes – high-tech - a Tok & Stok entra no mercado rapidamente, num ritmo de uma loja por ano. Ela leva à classe média um móvel ajustado aos espaços reduzidos dos apartamentos das grandes cidades. Sucesso que é acompanhado por um grande número de cópias que vem aparecendo desde a sua inauguração. A fórmula lnnovator coincide com as experiências do designer Michel Arnault na Mobília Contemporânea, firma bastante atuante que o designer dirigiu até 1975 e que, já no início dos anos 60, apresentava móveis que anteciparam essa mesma proposta: a linha Peg-Lev, criada para ser transportada em uma pequena embalagem pelo próprio comprador. A partir de então, uma idéia que Arnault tentou aprimorar com experiências alternativas de comercialização do móvel. Ao mesmo tempo, as discussões a respeito dos traços que configuram um design brasileiro voltam à pauta ante a forte presença de tendências A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: importadas, que, para muitos, representa somente outro sintoma do colonialismo cultural a que estamos permanentemente submetidos. As questões que ocupam o centro do debate em torno da efetivação do design nacional permanecem basicamente as mesmas desde a primeira hora, sendo que o principal fator ainda é o de não termos até agora alcançado, no processo de industrialização, o desenvolvimento consolidado. ... Sofremos também os efeitos da dependência cultural; porém, muito mais importante que essa dependência é a divisão internacional do trabalho, que atribui aos países periféricos o papel de simples reprodutores da tecnologia produzida nos países centrais. A metrópole realiza astutas manobras para manter sob seu controle a inovação tecnológica -instrumento que utiliza em seu interesse. O desenhista industrial em países periféricos encontra-se em uma posição exposta a interesses conflitivos. Por um lado, tem de superar a inércia local, a inércia dos industriais, do público, dos administradores e até dos políticos e libertar-se das restrições acadêmicas. Por outro lado, tem de enfrentar a influência externa, lutando contra a importância do desenho industrial (...). Eu não estou convencido de que haja uma definição universalmente válida do que seja desenho industrial. Existe um desenho industrial na metrópole, com seus pontos positivos e negativos, e há um desenho industrial na periferia, com suas potencialidades e dificuldades.22 De qualquer maneira, é sempre importante deixar em evidência a problemática que cerca a atividade do designer no Brasil, dadas às condições de seu desenvolvimento e revelando sua parcela de importância para o processo de emancipação industrial. Fundamentalmente, a questão do desenho industrial em nosso meio está ligada a aspectos de independência nacional e do estabelecimento da tecnologia nacional. A idéia de tecnologia nacional não pode passar por uma hipótese de identidade formal e estética que pudesse caracterizar o nosso produto pura e simplesmente, como se fosse para atender a um objetivo imediato de conquista de mercado externo, por exemplo. O que caracterizaria um desenho nacional - e cuja questão está no bojo de qualquer discussão que se estabeleça sobre desenho industrial - seria 29 :: Depoimentos - IDART 30 Anos fatalmente nossa condição histórica, passando pela questão da necessidade e daquilo que seria primordialmente nosso mercado por excelência, ou seja, o mercado interno. Se, nesse objetivo da produção industrial o mercado ficar como fato isolado sob um ponto de vista exclusivamente quantitativo, no sentido do lucro, eu tenho a impressão de que cairemos num erro muito sério porque a questão do lucro está, para a produção industrial, no sentido de realimentá-la. A idéia fundamental seria suprir as necessidades de uma civilização ou um conjunto social para que este possa nitidamente expressar-se: o nosso desenvolvimento econômico prevê o estabelecimento de um desenho nacional porque, do ponto de vista de um humanismo moderno, no sentido de abrir uma nova era em relação ao período colonial, pressupõe-se o florescimento de expressões nacionais com independência, sem que seja preciso abrir mão do estabelecimento do mercado internacional, porém, com outros horizontes, diferentes desse que aí está, altamente predatório e monopolista. (Paulo Mendes da Rocha, em entrevista concedida no IAB/SP, em outubro de 1984) 30 Ao lado da questão polêmica a respeito da definição de um design para países em desenvolvimento, há uma outra que vem a reboque, e referese à prescrição de uma conduta do desenhista industrial desses países que opõe o designer ao artista. A demarcação sempre foi pouco clara, e a celeuma existente entre arte pura e arte aplicada não se esgota através de posturas que imponham limites definitivos, que continuarão sendo transpostos, e talvez tanto o design como a arte ganhem com isso. Hoje se diz que a modernidade artística esgotou sua capacidade de renovação e de crítica, seu impulso criador. Dá-se por assentada a impossibilidade de transcender na arte e no pensamento em geral os limites impostos pela dialética de desenvolvimento tecnológico e dominação política e social. Assume-se a impossibilidade histórica de traçar uma saída para a dialética de progresso técnico-científico: a autodestruição. No entanto, esquece-se freqüentemente que essa resignação que se vive hoje em dia na arte, na arquitetura, no desenho e no pensamento em geral frente à objetividade histórica de um progresso destrutivo, não é, senão, uma conseqüência da vontade de integrar totalmente a arte e a cultura ao domínio da máquina e às tarefas da organização racionalizada da sociedade.23 A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: A realidade que hoje pode ser descrita em relação ao momento vivido pelo design e, em particular, pelo design de móvel no país, permite uma visão otimista quanto ao encaminhamento dos problemas que vêm se perpetuando ao longo de seu trajeto. As perspectivas que hoje se tem de uma definição mais precisa do campo profissional do desenhista industrial, de investimentos reais nos diversos segmentos da indústria, da existência de uma legislação que de fato proteja o direito do autor, de um incremento da pesquisa dentro da universidade nos campos da tecnologia, criação e reflexão e de um maior entrosamento do design na esfera das manifestações abrigadas pela historiografia e crítica da arte e da cultura são cada vez mais plausíveis. Vale lembrar, como sintoma, o número de trabalhos de documentação e investigação que tenha se dedicado a enfocar o design brasileiro, atraso devido em grande parte por ele situar-se numa espécie de “terra de ninguém”, pertencente ora à arquitetura, ora às artes plásticas, ora à publicidade, ora à engenharia, fazendo com que permaneça, em termos de registro historiográfico, num plano secundário. A definição do campo teórico do design pode ocorrer a partir de uma crítica que se especialize em suas manifestações, especialmente se resultante de uma estruturação de seu ensino. Uma crítica que contribuiria para conduzir a produção de design no país, já frutífera do ponto de vista quantitativo, para além dessa primeira idade, garantindo seu próprio espaço, colocando-a no rumo de sua identidade formal dentro da cultura material da história brasileira. Ou, como avalia o crítico Marco Antonio Amaral Rezende, quando comenta o evento recém-ocorrido, a Sala Especial de Desenho Industrial, um grande painel da produção nacional dentro da mostra Tradição & Ruptura, o desenho industrial brasileiro pendularia entre dois extremos: a exaltação dos valores de uso/produção/economia de um lado, relegando a forma a um plano secundário, criação gratuita, sem nenhum rigor metodológico, de outro.24 Detectar os pontos que colocam a particularidade da evolução do design de móvel no Brasil é o objetivo primordial que moveu a coleta deste acervo, fazendo o resgate das memórias que, trançadas, compõem os eixos desse percurso. Esta reunião de depoimentos pretende trazer 31 :: Depoimentos - IDART 30 Anos subsídios para a reflexão e matéria-prima de um estudo mais detido cujos depoimentos aqui registrados servem de amostragem de um universo muito mais amplo. Um aspecto que foi se clarificando durante o percurso das entrevistas e que particulariza a trajetória do design brasileiro dá conta da ruptura entre o desenvolvimento econômico do país e o aprimoramento da cultura nacional. Flagra-se na história do mobiliário a mesma condição estruturalmente presente em todos os campos da cultura como fator paralisante. Tal situação, aguda nas manifestações mais diretamente ligadas à indústria, explica em boa medida a fragilidade com que os “bons momentos” do design nacional vieram a ser desmontados, particularmente nos anos do milagre, em que o progresso industrial não esteve vinculado à produção cultural consciente. 32 Durante essa expansão, que trouxe também em seu bojo uma série de aspectos positivos e dos quais os designers souberam tirar proveito, perdeu-se a referência do alcance e da importância cultural do design por seu significado na invenção e na criação de um desenvolvimento que tenha um compromisso com o consumidor, cuja consciência se mistura com o conceito de cidadania e não apenas com o lucro. A mobília no Brasil também nos dá esse quadro, sobretudo quando prestamos atenção em suas raízes - a consciência do papel ideológico do objeto industrial em um país em situação de modernização. Percebese, então, a ligação íntima entre modernização e linguagem moderna. Hoje, o preço de uma cadeira de bom desenho equivale quase ao de uma habitação popular. O sucesso desse desenho caro, importado, que aí está, vem de encontro à situação que se estabeleceu no país, da alta elitização classista da sociedade, ou seja, possuir ou gerir um escritório num país onde os desempregados são a maioria é um privilégio tão grande que a cadeira do chefe tem que custar uma fortuna, tem que dar a idéia de trono. (Paulo Mendes da Rocha, em entrevista concedida no IAB/SP, em outubro de 1984) A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: O Brasil possui grandes designers e o caminho para que sua atuação ocorra em toda a gama da produção industrial pressupõe o avanço da economia na direção de uma sociedade mais resolvida quanto à sua distribuição de renda. A evolução do design de mobília brasileira apresenta uma posição ambígua: enquanto riqueza, por ser o ponto de partida da implantação de uma consciência progressiva do design como um todo, e enquanto paralisia, por não ter sido dado o passo seguinte. Marcos Cartum e Maria Lydia Fiamminghi _____________________________ 1 WARCHAVCHIK, G. Manifesto “Acerca da Arquitetura Moderna”. In:Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1 nov. 1925. 2 Idem, Ibidem. 3 ARGAN, G.C. Walter Gropius e a Bauhaus. Lisboa: Editora Martins Fontes, 1984. p.20. 4 Idem, Ibidem, p.30. 5 Idem, Ibidem, p.10. 6 COSTA, L. Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro. Revista Arquitetura, Rio de Janeiro, 31, jan.1965. 7 TENREIRO, J. Móvel brasileiro - um pouco de sua história. Revista Arquitetura, Rio de Janeiro, 31, 8 jan.1965. 8 WOLLNER, A. Origem e desenvolvimento do desenho industrial. Revista Produto e Linguagem, ABDI, São Paulo, 1, 1965, p. 6. 9 MOTTA, F. In: Diário de São Paulo, São Paulo, abril, 1959. 10 GRINOVER, L. As implicações da ciência e do pensamento lógico no desenho industrial. São Paulo, FAU/ USP, 1964, p. 82. 11 CECCON, C.S.P.Escola Superior de Desenho Industrial - experiência de um ano e perspectivas. Revista Arquitetura, Rio de Janeiro, 12, mar. 1964. 12 DUARTE, R. Notas sobre o desenho industrial. Rio de Janeiro, ESDI, abr. 1965. 13 KATINSKY, J.R. Desenho industrial. In: História geral da arte no Brasil (organização Walter Zanini), São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1983. 14 BOSI, A. Um testemunho do presente. In: MOTA, C.G. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo, Ed. Ática, 1977. 15 PIGNATARI, D. Por um design brasileiro. Revista Artescultura, São Paulo, 3, nov-dez, 1984. 16 LOPES, E.P.Aperfeiçoamento e prática do design. Palestra durante o seminário CACEX-FIESP, São Paulo, dez. 1982. 33 :: Depoimentos - IDART 30 Anos 17 PIGNATARI, D. Op.Cit. 18 MAGALHÃES, A. In: Revista Pernambucana de Desenvolvimento, Recife, 4, 1977. 19 SCHWARZ. R. Notas sobre a cultura e a política no Brasil 1964/1969. São Paulo, C.A.Lupe Cotrim / ECA / USP, 1970. 20 SUBIRATS, E. Progresso e pobreza. In: Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo, Editora Nobel, 1984. 21 MUNARI, B. Artista e designer. Lisboa, Editora Presença, 1979, p. 30. 22 BONSIEPE, G. A tecnologia da tecnologia. São Paulo, Editora Edgard Blucher, 1983. 23 SUBIRATS, E. A crise das vanguardas. Folha de S. Paulo, 30 set, 1984. Folhetim. 24 REZENDE, M. A. A. Os descaminhos do desenho industrial brasileiro. Folha de S. Paulo, 13 jan. 1985. Folhetim. 34 A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: ABRAHÃO VELVU SANOVICZ (Brasil, 1933-1999) Arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Universidade de São Paulo, Abrahão Sanovicz, também mostrou fidelidade aos princípios da escola paulista de arquitetura, na qual projetou e inovou a arquitetura e o design do mobiliário. :: A formação e o interesse pela arquitetura Nasci em Santos, em 1933. Completei o curso ginasial aos 17 anos e, em dezembro de 1950, vim para São Paulo prestar exame de admissão na Escola Técnica Federal para ser técnico em edificações. Tinha uma certa experiência de desenho: enquanto cursava o ginásio de manhã, fazia um curso de desenho arquitetônico no período da noite e, à tarde, trabalhava no escritório de um desenhista cuidando da aprovação de plantas, uma espécie de office-boy um pouco mais qualificado. Fiquei em São Paulo para fazer o curso de edificações, mas o que eu queria mesmo era fazer arquitetura. De fato, cursei edificações e, no ano seguinte, fiz vestibular na FAU/USP e entrei. Era apaixonado por arte e acompanhava muito o movimento artístico. Naquela época, o Ciccillo Matarazzo abriu uma escola de artesanato no Museu de Arte Moderna que ensinava gravura e cerâmica. Fizeram um concurso para selecionar bolsistas, prestei o concurso e fui aprovado, ganhei a bolsa e fiz o curso à noite. Era uma coisa maravilhosa, dado o ambiente de trabalho e o contato com os colegas, muitos dos quais vieram a ser artistas importantes de São Paulo. O meu interesse pela arquitetura foi uma coisa que começou cedo, bem antes de chegar a São Paulo, quase na minha adolescência. Foi quando começou a se ter uma idéia dos primeiros projetos da arquitetura moderna. Meu interesse pelas publicações, pelas coisas que se construíam era muito grande, e isso foi quase naturalmente, apesar da vida inteira sofrer da grande dúvida entre seguir a vida de artista, ou seja, pintor e desenhista, ou fazer arquitetura. 35 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Minha atração pelo objeto foi uma coisa que surgiu dentro da faculdade ou naquela época. Ainda estava fortemente impressionado com as publicações vindas de fora, particularmente as americanas que citavam a Stile Industria. Havia uma revista americana que eu gostava muito, a Arts and Architecture, na qual eles mostravam uma casa como um problema de design. Tinha também um programa interessante chamado Case Study House, e todos os anos eles encomendavam uma casa para um arquiteto. Eles iam publicando todos os croquis, os projetos e os detalhes até chegar na obra. Era uma revista que financiava a casa pronta e, ao final, vendiase a casa. 36 A revista Stile Industria trazia o que de melhor se fazia no design italiano. Os italianos foram muito inteligentes nesse processo de promoção do design. Artistas italianos, desde o Renascimento, talvez sejam os mais interessantes, porque a arte está profundamente arraigada na cultura da Itália. Para os italianos, é um fato normal, não é diferente dos outros. No Brasil, o artista é visto como um ser diferenciado, esperando que ele passe iluminado pelo mundo, sempre soltando raios. :: O interesse pela arte e pelo design No Brasil, o artista é, por vezes, arquiteto, e isso vem um pouco do Flávio de Carvalho1, com sua postura “porra-louca” e o modo do olhar de frente do arquiteto. Apesar de ter sido um grande desenhista, pintor e cenógrafo, não acho tão fundamental o trabalho dele como arquiteto. Ele foi menos conhecido pelo trabalho de pintor, mas eu o acho de uma grande densidade. Um bom exemplo disso é o trabalho em cima da obra de Kokoschka2. 1 Flávio de Carvalho (1899-1973) é o artista brasileiro que personifica o ideal das vanguardas artísticas do século XX. Artista de vanguarda, atuou como artista plástico, arquiteto, encenador teatral e cenógrafo, escritor e animador cultural. 2 Oscar Kokoschka nasceu na Áustria e iniciou seu trabalho como aluno e seguidor de Gustav Klimt para depois firmar um compromisso artístico e literário mais intenso com o expressionismo alemão e austríaco. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Senti um choque muito grande quando fui para a Itália e percebi a diferença de tratamento do que era um arquiteto e um artista lá e do que é um arquiteto e um artista aqui. São completamente diferentes. O Brasil é, de certa forma, um país novo, capitalismo selvagem, economia predatória e ainda por cima, existe a falta de critérios culturais para estabelecer comparações e padrões de qualidade. A história de desenhar objeto apareceu na faculdade com grande impacto. Os italianos começaram muito antes e tiveram a sabedoria de vender o produto, não só para a Itália, mas para o mundo. Eles publicavam insistentemente tudo o que produziam. Publicavam e lutavam para conquistar o mercado. Na época, nós não entendíamos essa coisa com profundidade porque nós víamos somente as figurinhas das revistas, mas atrás dessas figurinhas, dessas revistas, atrás de todo esse impacto editorial, tinha um grande desejo de conquista de mercado. E o que mais impressionava nisso tudo era o Estilo Olivetti3, ou o Olivetti Style, que foi marcante nessa época. Na escola, isso foi surgindo naturalmente. Entre os alunos, havia uma certa preocupação em desenhar o objeto, e era até encantadora a proposta do ponto de vista social. A gente fazia um objeto muito bem estudado, passível de ser produzido e repetido. Ele ia ser usado indistintamente, vendido nas lojas e tudo mais. Seria gratificante entrar numa casa em que estivessem comendo com os talheres que você desenhou. Tinha muito romantismo e pouca objetividade. Também foi nessa época que consegui uma bolsa de estudos na Fundação Rotellini e a experiência de trabalhar no Studio Nizzoli. 3 O Estilo Olivetti foi criado por Ettore Sottsass, que nos anos 60 trabalhava na Olivetti como designer industrial e apresentou, em 1969, por conta dessa empresa, sua célebre máquina de escrever vermelho-tomate, a Valentine, cujo aspecto exterior revelava sua ligação com a cultura beatnik e pop. 37 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: O design e a arquitetura O design não é desligado da arquitetura. Isso não quer dizer que nos anos 80 não se precisasse formar um arquiteto-designer-comunicador. Design e comunicação, no Brasil, são praticamente feitos pelo mesmo profissional; é difícil haver subdivisão entre design e comunicação. Se nos anos 60 era necessário, por razões históricas, ter a Bauhaus4 como referência, no Brasil dos anos 60 era necessário formar um profissional que pudesse passar em todas as escalas porque não se tinha a noção de começar a entender o trabalho do planejamento até o objeto através das escalas. Quer dizer, um planejador tem sua cabeça ciclada para pensar em uma escala, ele vai até o momento em que não é possível colocar uma cota. Quando começa a colocar uma cota, passa para o campo do arquiteto. É do desenho urbano para o desenho de edifício. 38 A escala começou a aparecer na minha cabeça nas reuniões sobre planejamento no IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), nos anos 70. Nos anos 80, se vociferou, se suou e se transpirou planejamento por todos os lados. Todos na faculdade pesquisaram as favelas, que foram viradas do avesso, e chegou-se à conclusão de que na favela tinha gente morando, de que era feita de restos de madeira e de que as pessoas improvisavam soluções. Quando aparece um estrangeiro aqui, fica admirado com a favela. É claro que quando um ser humano estabelece lá um cantinho para viver, ele procura pelo menos aquecer um ou outro ponto do seu entorno mais próximo: põe uma plantinha aqui, uma coisa ali... O ideal seria que não houvesse favelas, mesmo que se fizessem prédios, todos uns sobre os outros, amontoados, como em algumas tendências da arquitetura que se encontram por esse mundo afora, muito bem equipadas, tanto na parte hidráulica como na elétrica. Não tem nada que ver com a favela. Não é a favela que é fonte de inspiração. Ao contrário, a favela só mostra para a gente o atraso e outras coisas mais que a política tem por compromisso resolver. 4 A Bauhaus foi uma escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha, sendo também uma das primeiras escolas de design do mundo. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: O problema também aparece na produção de um objeto, quando alguém tiver que estudar o design de uma caixa de luz, como se monta, como se desmonta, como faz a fiação, como se deixam as previsões, como se fixa na parede, como se coloca a porta, como se coloca a proteção, qual é a cara que isso vai ter, como se dobra a chapa ou coisa assim, isso já é um problema que tem que ser feito na indústria. É um típico objeto que pode ser feito em escala natural. Na maquete, sempre há necessidade de fazer uma abstração: 1:100, 1:200. O próprio projeto de arquitetura tem essa abstração, quando se pensa que ele vai ser aumentado 100 ou 200 vezes, ao passo que o objeto, não. Na maior parte das vezes, dá para se fazer o desenho do objeto em escala natural. Isso vale também para a comunicação, o problema dos sistemas de impressão gráficos e de certas cotas, como: dimensões do papel, custo de produção e impressão. Na comunicação, a coisa também é feita na escala natural; às vezes, aparece certo tipo de trabalho em que as coisas se interpenetram. Os americanos, recentemente, não sei se foi no MIT5 ou em Berkeley6, reduziram toda a ergonomia, essa maravilhosa ciência que estuda o dimensionamento, a ábacos. Em qualquer dimensão, o sujeito vai numa nave espacial e todos os objetos utilizados foram reduzidos a ábacos. Esse trabalho, feito na universidade, durou dez anos e foi orientado por um bom comunicador visual, um bom designer. Os designers inventaram e programaram um trabalho novo, reduziram toda a ergonomia a ábacos, e agora não acaba mais. Quando surgir outro tipo de necessidade estrutural, de comportamento humano, de dimensionamento, faz-se então um outro ábaco. Essas coisas em países mais ricos podem acontecer. Nos países periféricos, raramente acontecem. Não há capital nem cabeça para isso. Para que aconteça, é preciso que uma porção de gente tenha sua inteligência desenvolvida. E a inteligência, no Brasil, é desenvolvida quase a nível bacharelesco: discursa-se muito, temse idéias luminosas, se faz um pouco de demagogia, mas a produção é 5 Instituto de Tecnologia de Massachusetts, mais conhecido pela sigla MIT, é um centro universitário de educação e pesquisa localizado em Cambridge, Estados Unidos. 6 A Universidade de Berkeley, fundada em 1868, é uma extensão da Universidade da Califórnia, Estados Unidos. 39 :: Depoimentos - IDART 30 Anos muito pequena. Na realidade, se produz pouco no sentido construtivo; no fundo, os americanos não estão brincando em serviço. Isso serve para eles afinarem melhor sua produção. A luta pelo mercado é uma coisa muito séria. Quer dizer, os românticos têm que aprender com os americanos. :: A arquitetura e a produção no Brasil Existe um texto do Paulo Francis7 que fala sobre reserva de mercado. Não tenho muita clareza nesse assunto de reserva de mercado, mas eu acho que está havendo alguma coisa errada do lado de cá. Certa vez, aconteceu com a arquitetura, tínhamos passado à frente. Realmente, passamos à frente. Surgiu com o grupo carioca, uma coisa maravilhosa. É necessário haver uma conjugação perfeita para acontecer tudo isso. Por outro lado, a Europa estava em guerra. 40 As críticas à arquitetura brasileira, aos arquitetos de melhor nível, ao contrário, eu tenho o maior respeito. Mas a mídia critica e critica porque ouviu criticar, e a coisa meio que se deteriora, quer dizer, criticouse a arquitetura brasileira dentro da nossa faculdade. O europeu, talvez por fruto da necessidade, não desperdiça. O europeu passou por guerras e sabe como são as coisas, não há desperdício, e isso é uma coisa que me impressionou profundamente. O sujeito fazia um desenho e esse desenho valia. Se não valesse naquele instante, um dia ele iria valer. A cabeça pensou, já é um trabalho. Era o não desperdício do trabalho. Era necessário saber o valor do trabalho. A produção, para acontecer, para ser escoada, provavelmente precise sensibilizar o cliente. Em termos de desenho industrial, no Brasil não acontece. Costuma-se dizer que o empresário é insensível ao problema do design, à importância do design, mas também existe a responsabilidade de o designer não conseguir sensibilizar esse empresário. As duas coisas acontecem; o industrial sabe muito bem o que é design. Ele viaja para a 7 Franz Paul Trannin da Matta Heilborn (Brasil, 1930 – EUA, 1997) foi jornalista, crítico de arte e escritor, sempre muito apreciado pelo estilo jornalístico extremamente coloquial e de uma ironia cáustica. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Europa todo ano, vê as feiras e tudo mais. É porque não chegou a época de essas coisas serem exigidas pelo consumidor. Agora, se há um campo do design que tem uma organização muito interessante, porque leva em consideração os problemas de moda, é o tecido em termos internacionais, que começa pelo pool de empresas que trabalham com as cores e com outras coisas também. Os industriais se reúnem anualmente e estabelecem quais as tendências da moda que serão lançadas: cores, texturas, formas, etc. Eles só produzem aquilo e passam para os desenhistas de tecidos, que passam para os estilistas, que passam para as revistas, que passam a ser feitos no Brasil. É um processo que começa na ponta da pirâmide. É um problema de mercado. No Brasil, o design ainda é periférico. O mercado agora é que começa a exigir novas formas, então começa a surgir o profissional de design. Uma vez, eu vi o catálogo da Rosenthal, fábrica tradicional de vidros. Era uma linha de cálices para aperitivos. Os cálices vinham em diversos tamanhos e alturas, e tinha a fotografia do artista que o desenhou, o designer. Cada cálice era pensado para um tipo de aperitivo, olha que sofisticação! Só o colorido do catálogo já é um grande investimento, fora o tempo que o designer levou para elaborar tudo, além de a empresa elaborar todos os moldes, o que deve ter sido um outro investimento. Para investir em um projeto desses, primeiro deve-se saber o seguinte: existe um mercado beberrão que gosta de aperitivo? A história de tomar os diversos aperitivos e degustar, o mundo de aperitivos... é uma coisa enorme. O mercado europeu e o mercado americano me parecem mais isso. A Rosenthal é alemã. É sinal de que eles sabem que existe um mercado de aperitivos e, também, que existe uma tendência para se poder até saborear esse momento do aperitivo. Então, deve ter sido feita uma pesquisa para todo esse investimento. A Rosenthal não faz um desenho para durar um mês. É desenho para durar muito tempo. Eles têm a sabedoria de entender esse mercado. 41 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: A tecnologia do design O bom design também é muito copiado, mas não é tão fácil copiar. Claro que é mais simples copiar do que projetar e desenvolver um produto, mas, se fosse tão simples assim, se copiaria tudo. Copiar é uma coisa difícil. Quando o pessoal traz para cá e tenta colocar na tecnologia que temos, sempre acontece alguma coisa. Um exemplo que eu tenho acompanhado de perto é o mundo dos plásticos. Pega-se um produto inglês ou escandinavo e traz para cá, mostra para o modelador para ele fazer o molde e depois fazer a injeção: sempre existe uma dificuldade, sempre tem alguma coisa que não dá certo. É feito o modelo e, já nos primeiros testes, rompe aqui, rompe ali, rompe acolá. Isso é normal. Então, mesmo essa cópia precisa ser redesenhada. 42 Existem algumas tecnologias que foram mais adiante. Também não é fácil fazer uma cópia. Nem tudo que se faz lá fora é bom. Eu tenho uns talheres que eu usava para acampar. Quando estava em Roma, vi esses talheres pendurados e pensei: que coisa bonita! Resolvi comprar e trazer. Achei bonito o design, o suporte era de plástico e de metal. Hoje se faz isso aqui no país. Talvez a Wolff ou a Hércules. Então, eu precisava comer com eles, design italiano, bonitinho e, realmente, não era dos dez mais. Quer dizer, nem tudo que é feito é bem estudado. É preciso olhar com muita atenção para as coisas e saber separar o joio do trigo. Esse caso do talher, para mim, foi muito interessante. O desenho me entusiasmou e, talvez para um camping, analisando bem, você vê que não é a melhor coisa. :: A linguagem brasileira É necessário que se faça um design bem resolvido porque, na verdade, o que parece é que a gente tem empatia com o design italiano, sueco, escandinavo, inglês, e faz as coisas mais ou menos parecidas com as deles. Precisamos tentar descobrir alguma coisa, criar alguma coisa que tenha um sentido e que possa ser tirada da nossa textura social. No Brasil, um bom exemplo acontece no design gráfico, principalmente A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: na ilustração da literatura de cordel, que tem uma força muito grande. Um pouco da cerâmica popular, em termos de objetos de uso, que se fazia como fruto da necessidade. A Lina Bo Bardi8 soube tirar proveito das originalidades do Brasil, principalmente no Solar do Unhão9. A Lina pegou muito bem isso, as colchas, os papagaios, as pipas e até o refugo da indústria, que é reaproveitado, são frutos da necessidade. Mas isso não vale nada, não tem nenhum valor, na realidade, não tem nenhum valor até certo ponto. Não vale nada em si. Começou-se a fazer essas cerâmicas, do tipo Vitalino10, esses bonequinhos todos, que eram dados para criança brincar. Depois, virou peça de museu, porque tinha uma certa qualidade artística. Ele era um gênio cuja cabeça funcionava de uma forma tal que se diferenciava sua produção pela temática. Ele sabia pegar o cotidiano, o carteiro, a família. É um exemplo específico do Nordeste, mas pode valer também para a imigração do Sul ou a miscigenação de São Paulo ou em Minas Gerais, com o barroco mineiro e com o Vale do Jequitinhonha, que faz umas cerâmicas maravilhosas. 8 Lina Bo Bardi (Itália, 1914 – Brasil, 1992), arquiteta e designer, fundou as revistas Habitat e Mirante das Artes. Dentre seus projetos, destacam-se a criação do Museu de Arte de São Paulo, o projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia, a restauração do antigo Solar do Unhão, na Bahia, e o Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo. 9 O Solar do Unhão, localizado em um sítio histórico do século XVI, era na sua origem um complexo agroindustrial de produção de açúcar e possuía casa-grande e capela. Na década de 40, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendo posteriormente adquirido e restaurado pelo governo do Estado da Bahia, através do trabalho da arquiteta Lina Bo Bardi. Desde 1969, sedia o Museu de Arte Moderna e suas oito salas de exposição, teatro-auditório, sala de vídeo, biblioteca especializada e banco de dados. 10 Vitalino Pereira da Silva (Brasil, 1909) morava no Alto do Moura, uma vila a cerca de seis quilômetros de distância de Caruaru-PE. Inspirado no folclore nordestino, com um estilo figurativo, universalizou com sua marca pessoal o cotidiano do homem sertanejo. Suas obras registram o cenário rural e urbano onde ocorrem: Cortejo Nupcial, Casamento no Mato, Enterro na Rede, Enterro no Carro de Boi, Boi Transportando Cana, entre outros. 43 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Existe uma polêmica bastante antiga que diz ser possível se chegar a uma linguagem brasileira de design na qual o design é tudo. Uma linguagem, uma estética brasileira na criação de formas. Há uma outra corrente que se contrapõe, que diz que as formas têm que ser universais, que esse regionalismo é uma coisa primitiva, não existe. A questão é: será que dá para desenvolver uma linguagem brasileira se ocorrer uma produção? O design brasileiro não se faz por decreto. Existem algumas coisas que são fortes no sentido da invenção, criadoramente fortes, fruto da necessidade, às quais, às vezes, a gente pode ir e dar uma pinçada para servir de inspiração. Nessa medida, o design brasileiro terá um sentido universal, assim como tem o design italiano. 44 Se o Brasil conseguir desenvolver seu design, necessariamente será um design brasileiro. É como na pintura, com toda a influência, existe uma temática, uma pintura brasileira. O Rebollo11 é um pintor paulista. Morandi12 é um pintor italiano. Eu não quero comparar o Rebollo ao Morandi, não se pode comparar. O Morandi pintava suas paisagens em Bolonha, suas garrafinhas cheias de poeira. Estava preocupado em descobrir a cor atrás daquela história. Às vezes, explicitava um branco, o que, digamos, deixava a gente até meio deslumbrado. Depois, ele escurecia tudo, texturizava e, no fundo, quando estava fazendo aquele pequeno trabalho, ele estava dando um sentido universal. 11 Francisco Rebollo Gonsales (Brasil, 1902) viveu intensamente duas trajetórias: primeiramente, jogador de futebol de 1917 a 1932, atuando no Corinthians e no Ypiranga, ambos clubes da cidade de São Paulo. A partir de 1934, torna-se pintor e completa, no seu falecimento, em 1980, uma história de quase meio século como importante artista plástico. 12 Giorgio Morandi (Itália, 1890-1964), artista plástico, pintor e gravador, teve uma esporádica participação no movimento surrealista. Sua formação, entretanto, ocorreu a partir do estudo de grandes mestres, como de Giotto, Piero della Francesca, Chardin, Corot e Cézanne, dentre outros. As obras de Morandi estiveram presentes em algumas bienais de Veneza, além de terem sido expostas em várias outras cidades italianas e estrangeiras, como Pittsburgh, Kasel, Nova York e São Paulo. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: O Rebollo olhava o Morandi com muita atenção. Se analisarmos as paisagens do Rebollo - que não era um homem muito sofisticado, não era um erudito, era um cara de origem humilde, jogador de várzea, filho de imigrante, uma figura humana maravilhosa, pintor de parede - numa exposição dele no Lasar Segall sobre a cor, você vê que tem uma coisa até quase que ingênua, quase primitiva, lembra um pouco Rousseau. A cor dele em São Paulo é escura. Ele documentou muito bem as matas do Morumbi. É escura porque São Paulo sempre teve esse aspecto carregado. Quando ele vai para o Nordeste pintar, é incrível como explode, fica clara a tela. O pessoal do Grupo Concreto13 tentou, de uma certa medida, considerar o Volpi14 um pintor concreto. Ele não é um pintor concreto, é um pintor paulista que também tem uma origem semelhante à do Rebollo. O Rebollo, o Volpi e o Grupo Santa Helena15 pintavam de uma forma semelhante, uns se adiantavam mais, outros se adiantavam menos, mas é alguma coisa que tem um certo corpo de doutrina, até dá a impressão de que se escudavam um no outro e avançavam todos juntos. Isso acontece em qualquer manifestação, quer dizer, o grupo sempre avança mais ou menos junto. Você sente que é uma pintura paulista, sente muito bem isso. Se observarmos um grupo de pintores pernambucanos, é outra coisa, fortemente marcada pela cor, por aspectos da gravura popular e outros. Se olharmos Brennand16 e toda aquela turma, eles também pintam mais 13 A Arte Concreta defendia os elementos da matemática e da ótica para a composição de obras, cujo objetivo era construir uma nova realidade. A Arte Concreta enfatiza a idéia de estrutura. Os artistas brasileiros que se destacaram foram: Luiz Sacilotto, Waldemar Cordeiro, Alexandre Wollner, Maurício Nogueira Lima, Hermelindo Fiaminghi, além dos poetas Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, entre outros. 14 Alfredo Volpi (Itália, 1896 – Brasil, 1988) pertenceu ao Grupo Santa Helena e à Família Artística Paulista. No início, sua obra era figurativa e de inspiração popular, passando, depois, para a abstração geométrica. 15 Surgido em meados da década de 1930, reuniu os pintores A. Volpi, F. Rebollo, F. Pennacchi, A. Bonadei, H. Rosa, C. Graciano, M. Martins e Rizzotti. O grupo reunia-se no Palácio Santa Helena, na praça da Sé, em São Paulo, e defendia a pintura pela pintura. 16 Francisco Brennand (Brasil, 1927), pintor e ceramista, inspirou-se no folclore nordestino e na literatura de cordel para a construção de pinturas, cerâmicas e murais. Suas obras remetem ao 45 :: Depoimentos - IDART 30 Anos ou menos igual. Alguém começou assim e foi todo mundo nesse sentido. Até porque, na minha opinião, arte para ser arte e também design para ser design precisa ter um sentido de realidade muito forte. É isso que informa, que expressa e que responde à realidade, dando um sentido brasileiro. Não é possível explicar tudo, acaba-se não fazendo nada; perde-se mais tempo explicando que fazendo. É o problema do design nacional. Depois que ele surgir, a gente vai descobrir o que é toda essa informação e elaborar um corpo de doutrina. :: O desenvolvimento do design 46 Para deixar o design acontecer, torna-se necessário o desenvolvimento do mercado. A palavra-chave é prática de mercado. Os românticos tinham a preocupação com a semiologia e, dessa forma, estudavam bastante, confundiam design, que é desenho do objeto, com poesia, e isso só é bom para ilustrar uma dúzia de revistas. Porém, não se pode vender poesia para um homem da indústria, a não ser que você dedique a ele um livro de poemas e ele resolva, então, pagar a produção para te agradar, mas não é assim. O investimento para um produto qualquer requer muito capital. Houve muita bagunça. Tinha gente que eu não sei se estava interessada no design, interessada em discutir o sexo dos anjos ou apenas interessada em aparecer. São essas coisas que acontecem em qualquer ambiente, essa necessidade de estar sendo cogitado diariamente. Tem gente que tem a história das eternas vanguardas. Isso é coisa de periferia. Se pegarmos outros lugares do mundo, por exemplo, Nova York, lá tem um cara que canta blues desde os anos 40 e continua cantando. Ele tem o mercado dele, sabe fazer aquilo direitinho e faz o melhor que pode. No Brasil, que infelizmente chamam de periférico, essa necessidade do panfletário só destrói, e essas coisas no fundo só irritam. universo cultural nordestino. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Área de convivência do Sesc Araraquara, 1991. 47 Área interna do Sesc Araraquara, 1991. :: Depoimentos - IDART 30 Anos Área externa do Sesc Araraquara, 1991 48 A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: ANTONIO OLIVEIRA SANTOS (Brasil, 1951) Arquiteto e designer, Antonio Oliveira Santos aborda os pontos de ruptura de sua produção em relação à das gerações anteriores. Convicto do sentido que quer veicular com sua mobília e em sintonia com as tendências pós-modernas, sua produção apresenta um estilo bem definido e requintado. :: O início da carreira e a arquitetura Nasci em São Paulo, na cidade de Socorro, em 1951. Cursei a faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, na década de 70, fator importante na minha formação, pois, embora isso tenha ocorrido no período pós68, ainda existia uma forte posição política dentro da escola, fato que, praticamente, delineava a nossa atuação profissional. Essa formação nos deixava muito presos à Bauhaus1. Carregamos uma carga muita pesada no sentido de que cada forma deve corresponder a uma função e vice-versa, o que passou a funcionar para nós quase como uma ditadura. Ainda dentro da FAU2, comecei a trabalhar com profissionais com quem eu mais me identificava. Trabalhei com o Siegbert Zanettini3, no primeiro ano da FAU (1971), quando ele estava fazendo um hospital e maternidade em Nova Cachoeirinha, e eu acabei fazendo o detalhamento dos utensílios que teria esse hospital. Em seguida, fui trabalhar com o Pedro Paulo de Mello Saraiva4 (19731 A Bauhaus foi uma escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha, uma das primeiras escolas de design do mundo. 2 FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo 3 O arquiteto Siegbert Zanettini é formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, pertencendo à primeira geração de Professores Doutores da Universidade de São Paulo. Defendeu em 1972, tese de doutoramento intitulada “Habitação: Implicações do Processo de Industrialização”. 4 Pedro Paulo de Melo Saraiva brasileiro é arquiteto, nascido em 1933, em Florianópolis, tendo se formado em 1955, na Faculdade de Arquitetura Mackenzie me São Paulo, ganhou diversos prêmios, é um dos ícones da arquitetura moderna paulistana, juntamente com Paulo Mendes da Rocha e outros arquitetos. 49 :: Depoimentos - IDART 30 Anos 1974), sempre atuando em projeto, comunicação visual e desenho industrial, mas, principalmente, em projeto porque, naquela época, quem quisesse fazer desenho industrial teria que se ligar a uma indústria. Os escritórios com profissionais autônomos viviam mesmo era de projeto. Em 1975, fui trabalhar com o Joaquim Guedes5, e depois de formado, em 1976, com o Eduardo de Almeida6. Neste escritório, a preocupação maior que eu tive foi com o detalhamento. 50 O detalhamento é muito mais próximo do desenho industrial do que do projeto propriamente dito. Por exemplo, o rodapé, as portas ou os caixilhos, são elementos ligados à industrialização e que irão se repetir na obra toda. Em 1978, fui para a Cohab7 a fim de desenvolver um projeto de playground. Eu tinha um cuidado muito grande em detalhar as coisas, e isso se apresentou para mim como uma saída porque eu não estava ligado a nenhuma indústria, mas a escritórios de arquitetura, e a maneira de começar a me formar em desenho industrial foi detalhando projetos: entendendo o batente, a guarnição, o rodapé, em termos de marcenaria ou de serralheria. :: O design do detalhamento Eu tinha a intenção de fazer desenho industrial. Eu via um carro ou uma geladeira e achava que, numa casa, os componentes também poderiam ser bem acabados. Claro que nos objetos industrializados tem toda uma tecnologia por trás. Eu estava tentando ver se chegava a um nível de detalhamento que fosse possível à industrialização. Nessa época, eu estava muito interessado no setor de industrialização de construção, mas isso foi algo que não prossegui depois porque não tinha nem o apoio nem o interesse da indústria. Foi mais ou menos nessa época que o Cândido Motta Campos chegou dos Estados Unidos com o projeto de uma casa cujos banheiros eram de 5 Joaquim Manoel Guedes Sobrinho nasceu em São Paulo, em 1932. É é arquiteto e professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 6 Eduardo de Almeida nasceu em São Paulo, Paulistano, formado na FAU/USP em 1960. 7 COHAB - Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: fiber-glass. Eram ligações autônomas. Tinha uma só rede hidráulica que podia ser acoplada ou desacoplada ao banheiro. Fui fazer o detalhamento desse projeto. Uma indústria se dispôs a executá-lo, mas o custo ficaria muito alto porque não existia mercado. Em seguida, fui trabalhar nos Correios, numa obra de um Centro de Processamento de Dados que estava sendo feita em frente ao Ceasa e que tinha 160 m2, da qual eu era o único arquiteto numa equipe de 20 engenheiros. O design de detalhamento era considerado frescura de arquiteto. Havia uma postura rançosa a esse respeito. No caso de uma porta, por exemplo, que seria repetida 200 vezes, o que em termos de Brasil pode ser considerada uma escala industrial, era necessário pensar no design. O trabalho nos Correios foi interessante enquanto processo para entender uma obra. A partir daí, tentei seguir meu caminho sozinho. Abri meu escritório num modelo que hoje considero falido. Não dá mais para o arquiteto ter o seu ateliê, ser autônomo, fazer projetos num esquema de autonomia quando 90% estão empregados em firmas, em grandes escritórios, em grandes projetos, atendendo a uma classe de poder aquisitivo mais alto, porque é a classe que está fazendo às vezes da indústria, pagando a sua pesquisa, o seu projeto, montando o seu protótipo, pensando numa possível produção em série, num possível avanço em termos de objeto. :: Design de interiores Nessa época, comecei a trabalhar com interiores porque era uma maneira de trabalhar para uma classe de poder aquisitivo mais alto, traçando até um paralelo, guardadas as devidas proporções, ao mecenas de outras épocas, pois em indústria você tem pouca possibilidade de desenvolver um projeto, você tem que se submeter a know-how, a interesses comerciais. Então, como fazer desenho industrial? Fazendo casa para rico, em que você pode chegar ao nível de detalhamento de objeto. Ao mesmo tempo, eu tinha uma carga enorme vinda da Bauhaus, da linha reta, do compromisso com a geometria. Numa viagem a Londres, eu vi uma cadeira 51 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Charles Rennie Mackintosh8, produzida pela Cassina9, que eu conhecia de livros, e trouxe a cadeira para cá desmontada. A Cassina não queria vendêla para mim porque já tinha um representante no Brasil. Fiz a cadeira e vendi ilegalmente porque eu não estava preocupado em ganhar dinheiro, estava preocupado em que tivesse alguém produzindo a cadeira e também preocupado em retomar uma pouco a história do desenho industrial. A idéia era colocar as cadeiras nas lojas para que as pessoas entendessem que não era só a Bauhaus. Trouxe também a cadeira Red and Blue, do Gerrit Rietveld10, executei as duas com marceneiro, nas proporções originais, e fotografei. À medida que isso começou a sair em revistas, na Vogue, as pessoas começaram a falar que era uma coisa moderna demais, que cansaria logo. 52 O dono da Probjeto me chamou e disse que eu estava fazendo algo de que ele poderia ter os direitos e eu respondi que ele tinha mais é que fabricar mesmo; na verdade, era isso que eu pretendia, não queria ganhar dinheiro com isso, mas desencadear todo um processo para sair da cadeira Vassily, porque o protótipo de design que se usava era essa cadeira, presente em toda casa de arquiteto. :: O design no Brasil Ao mesmo tempo, comecei a ver que o desenho industrial no Brasil era uma coisa estagnada. A carga de Brasília era muito grande, a arquitetura de concreto e vidro, da esquadria de alumínio e tudo o que apareceu na década de 50 não estava permitindo que surgissem novos caminhos. Na 8 Charles Rennie Mackintosh (Glasgow 1868 - Londres 1928), arquiteto e design. Suas obras são dotadas de uma simplificação formal expressa em superfícies lisas e uniformes que resultam numa arte mais sóbria e funcional. 9 Empresa italiana de estofados, localizada na cidade de Brianza. 10 Gerrit Rietveld (Holanda, 1888-1964), arquiteto e design, ainda estudante trabalhou com marcenaria e produção de mobiliário. Em 1917, influenciado pelo neoplasticismo, desenha a cadeira Vermelho e Azul. A partir de 1919, passa a ser membro importante do movimento, contribuindo para a revista De Stijl. Em 1924, projetou a Residência Schröder, um marco da arquitetura moderna e do neoplasticismo. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: música popular brasileira, tinha surgido o humor: a Rita Lee, o Dusek; no teatro, tinha pintado o Asdrúbal, que também era levado para o lado do humor, muito diferente de alienação porque era o humor de uma situação que estava acontecendo. O que se fazia em arquitetura e em desenho industrial não tinha nada a ver, sem desmerecer Brasília, mas o compromisso em seguir os caminhos apontados por aquela arquitetura acabou ficando forte demais. :: O surgimento da cor e os novos projetos A Guide Vasconcelos havia visto em Milão uma linha de móveis no estilo Memphis11, que vai contra a ideologia e a posição da Bauhaus, e, na verdade, não foi um movimento muito forte, mais uma moda, que para mim serviu como ponto de referência. A partir daí, comecei a sacar que o humor no design brasileiro era a cor, e as pessoas tinham uma vergonha muito grande em assumir as cores tropicais. Era tido como cafona você ter uma coisa colorida porque dentro de casa predominava a ditadura do bege e do marrom. Você tem a falsa impressão de que o móvel é algo que não passa de moda, e por esse motivo não traz a cor para dentro de casa, mas a cor é um dado importantíssimo na nossa cultura, tem tudo a ver com o humor. A Guide Vasconcelos havia recebido os projetos da Itália para industrializar a linha Memphis, só que os projetos já vinham com os materiais e teriam que ser adaptados porque lá havia, por exemplo, vários tipos de mármores. Aqui, nós não tínhamos mármore, então era necessário pegar os projetos e adaptar à nossa realidade, aos nossos materiais e tecnologia. O catálogo de cor italiano tem por volta de 5000 cores. Aqui, tínhamos pouquíssimas opções. Adaptei todos os projetos para lançar a linha Memphis no Brasil. Quando montei meu escritório, em 1981, comecei a fazer basicamente reformas e criei uma equipe de apoio que tinha, inclusive, marcenaria. Eu vendia o pacote completo. Ao pegar um projeto de reforma, não me atinha apenas à reforma do imóvel, mas fazia também a decoração, colocava os 11 O Memphis foi um estilo baseado em linguagem figurativa e provocativa em que não se priorizava a funcionalidade, mas a imagem. Foi, ainda, caracterizado por materiais pobres, cores gritantes e superfícies decoradas, bem como pela renúncia à produção industrial. 53 :: Depoimentos - IDART 30 Anos móveis, os quadros na parede e tudo mais. Tinha uma equipe que desenvolvia os projetos para mim e, dessa maneira, não precisava mais me ater ao que o mercado oferecia e pude fazer coisas mais avançadas. Foi a forma que eu encontrei para colocar os meus móveis no mercado. Comecei a questionar aquela velha postura de que existem materiais nobres e menos nobres. A fórmica, por exemplo, tanto pode estar na cozinha como na sala. Comecei a misturar os materiais e usá-los independentemente do ambiente. Na verdade, em nenhum momento eu estava me opondo aos princípios da Bauhaus. Geralmente, o pós-moderno é colocado em contraposição aos fundamentos da Bauhaus. Eu acho que nós temos é que pensar no somatório desses elementos, pensando coisas da Bauhaus, do pós-moderno e do high-tec. :: As novas combinações de materiais 54 A liberdade em misturar materiais, ou de tirá-los de seu contexto, foi aceita, primeiramente, não em residências, mas em escritórios. Fiz projetos para a Brascel e também para a Casa Moisés, que queriam renovar sua linguagem visual, passando ao consumidor uma imagem mais up-todate. Era figuração e funcionava um pouco como embalagem, o que criou um novo repertório: engraçado, bonito, sedutor. Mais tarde, fui convidado a fazer as casas dos donos dessas empresas com essa linguagem. O Memphis, no Brasil, acabou adquirindo, num primeiro momento, conotação de status porque acabava refletindo uma postura de vanguarda e essa vanguarda tinha que ser cara, pois deveria ser consumida apenas por alguns, já que, na medida em que passa a ser aceita por muitos, ela deixa de ser vanguarda. Deveria ter um caráter experimental porque, se fosse produzido em massa, perderia seu caráter de peça única e exclusiva. Veja, por exemplo, a Tok & Stok, uma das muitas tentativas de industrialização de um design mais moderno feito a baixo custo. É consumido de uma maneira tal que atinge a saturação e acaba sendo identificado A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: como móvel de quem tem baixo poder aquisitivo, tem um sentido meio pejorativo, identifica a casa do jovem universitário ou do jovem casal. Infelizmente, o design de móvel no Brasil tem que ser feito para uma elite, que é quem paga, quem aceita e quem consome. As pessoas não renovam, ficam muitas presas às fórmulas já garantidas de sucesso e não acompanham o pique, enquanto que na Itália, por exemplo, o Ettore Sottsass12, um designer com mais de 65 anos e que há vários desenha para a Olivetti, a cada ano surpreende com alguma coisa nova. No Brasil, nunca vi uma atitude corajosa com designers da época de Brasília porque eles têm medo de perder a posição, o mercado é muito estratificado. Ao mesmo tempo em que é consumista e destrutivo ao extremo, é também muito estratificado. O mercado deve ser preservado, o que significa também pouca mudança. Inclusive em termos de escala, os móveis que estão aí não são coerentes com o tamanho dos apartamentos. Até pouco tempo atrás, em termos de arquitetura, eram os concursos que propiciavam o aparecimento de coisas novas. No terreno do desenho industrial, isso não tem ocorrido e, quando ocorre, são concursos fechados. Mesmo as próprias escolas não têm elementos realmente envolvidos com o desenho industrial porque os profissionais, quando existem, estão ligados à indústria e não têm tempo de se dedicar à faculdade, até porque a atuação profissional é tão pequena lá fora que não há necessidade de especializar ninguém em desenho industrial. Quando a pessoa tem posses, ela vai ao exterior onde encontra toda a tecnologia e materiais diferenciados. No fundo, o problema da máformação ou deformação profissional está ligado à falta de um mercado de atuação. A solução que eu encontrei foi fazer projetos para quem pode pagar e investir em pesquisa. 12 Ettore Sottsass (Áustria, 1917), arquiteto e designer, exerceu várias atividades, trabalhou na agência de Giuseppe Pagano antes de abrir seu próprio estúdio, em Milão, em 1947. Desde 1958, é responsável pelo aspecto estético das máquinas de escrever Olivetti (Tekne 3, Praxis 48, Valentine, PC M 20). Em 1981, fundou o grupo Memphis, com outros designers. 55 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: A peça única Uma situação que ocorria no início dos anos 50, quando começou a aflorar a possibilidade de um desenho industrial vivo no Brasil, ainda em escala artesanal, continua ocorrendo porque não está surgindo ou nascendo nada em escala industrial, tanto que não recebi nenhum convite de indústria, e sim, convite de uma galeria, para expor meus móveis. É uma postura elitizante e de pouca produção. Em termos de produção, não mudou a mentalidade que existia na década de 40. Não há nenhuma preocupação da indústria em formar a mentalidade do consumidor, nem de oferecer novas opções. Dessa forma, minha produção resulta em peças quase únicas, quase uma obra de arte numerada e assinada. :: A conquista do mercado 56 Nesses dez anos dedicados à produção de móveis, percebo algum avanço no sentido de ter conquistado um espaço. Há dez anos, existiam pouquíssimas opções para se mobiliar uma casa de um modo mais atual. As opções eram: Arredamento13, Hobjeto14 ou Oca15. Com o surgimento do high-tec - que aqui não foi bem high-tec porque os elementos eram produzidos para os próprios móveis, não eram elementos adaptados 13 A Arredamento é uma empresa consagrada no mercado moveleiro nacional há mais de 40 anos. Fabrica móveis com design contemporâneo europeu. Acompanhando o desenvolvimento tecnológico e o ecletismo na decoração que emergiu na década de 60, a Arredamento se consagrou no mercado como precursora do bom design no mobiliário nacional. 14 A Hobjeto foi fundada a partir da experiência de Geraldo de Barros e Aluisio Bione, na Unilabor. A empresa sempre esteve ligada às tendências internacionais, principalmente aos lançamentos da feira de Colônia, na Alemanha. Atua no mercado até hoje, mantendo seu êxito principalmente na linha para escritórios. 15 A Oca foi uma das empresas mais importantes do ramo mobiliário no Brasil. Foi criada pelo designer Sérgio Rodrigues, em 1955, em sociedade com o conde italiano Leoni Paolo Grasseli. Os produtos comercializados e produzidos pela empresa eram norteados pela busca da emancipação e afirmação do design de móveis genuinamente brasileiro, emergente nos anos de 1950. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: houve uma certa abertura, uma possibilidade a mais, surgiu um móvel mais leve, de menor dimensão, mais barato e modular, que podia ser comprado em peças separadas e por isso mesmo um pouco mais arrojado em termos de cor, de forma e de material. Houve uma grande abertura nesse aspecto porque o móvel definitivo, que usa madeiras nobres, está cada vez mais caro. Houve uma mudança de mentalidade no sentido de que não precisaria ter a casa toda no mesmo estilo. A casa é um somatório de vivências e o móvel reflete a sua época, assim sendo, pode-se ter peças de várias épocas coexistindo. Outro fator absurdo que reflete no design é o padrão-novela, que influi muito mais na mentalidade das pessoas que a indústria ou a imprensa. Os valores da classe média saem das novelas das sete ou das oito; chega-se a solicitar o sofá “x” porque é esse o padrão aceito. :: O móvel como resultado de uma produção cultural Uma produção da maneira como a que faço, artesanal, é realizada empiricamente como laboratório e tem que traduzir o momento, seja em termos de experimentação de materiais novos, seja em termos do gosto enquanto padrão vigente. Portanto, esse móvel não tem vínculos como tem o de uma produção industrial, que tenta satisfazer os gostos de A a Z. Como é uma produção mais dirigida, isso se reflete até em termos de cor, que acaba se reportando a um clima existente num plano mais geral. O que está havendo agora é uma retomada, uma releitura dos materiais tidos como cafonas. Estou usando granilite pelas possibilidades plásticas que oferece, podendo misturar várias cores, e também a sanca de gesso, materiais que se reportam aos anos 50 e possibilitam repensar os já existentes, uma vez que não temos uma indústria que forneça grandes quantidades de material. Fiz um bar de tijolo de vidro e néon, que funcionou como escultura num determinado ambiente. A obra de arte não está mais somente no quadro ou na escultura, ela está também na roupa que você usa ou no móvel de sua casa. 57 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: O valor histórico de cada objeto É uma preocupação que vem da Bauhaus, a de que cada objeto transmita o seu valor histórico com a bagagem técnica do momento. E o mais importante, no momento, é a retomada da cor e do humor, uma descontração que tem a ver com nós mesmos, com a roupa que usamos, que seja um código, um reflexo desta época, e não vejo por que isso é considerado vanguarda. Existia um panorama estagnado porque, economicamente, não há interesse em inovar. Desde Brasília que não se faz nada de novo. Continuamos presos aos móveis da Bauhaus, em couro e cromado. Estamos em busca de um espírito novo, no móvel colorido, barato, mais leve e em menor escala, com um certo toque de humor e que reflita um espírito crítico, mais clean e mais despojado. Além do mais, esse móvel também reflete alguns aspectos levantados em outros momentos; ele é um somatório sem ser revival. Outra tendência que surgiu é a substituição da madeira, que pode também 58 aparecer pintada, porque a madeira nobre é um material em extinção; trabalha-se mais com aglomerado e laminado, que necessitam de um revestimento. Daí para o uso da cor é um passo. Procura-se mais o efeito visual do móvel, um aspecto mais ligado à decoração de interiores, o móvel como parte de um cenário. É a possibilidade de se dar uma nova leitura aos móveis criados no início do século 20 por Charles Rennie Mackintosh, Gerrit Rietveld e pelo próprio Michael Thonet16. :: A forma e a função Nos meus objetos, existe a preocupação com a ergonomia, porém sem perder o impacto visual. Olhando para uma cadeira, por exemplo, podese até imaginar um instrumento de tortura, mas se você se sentar nela poderá observar que é confortabilíssima, pois ela tem todo um estudo em função da coluna, da postura do homem brasileiro e de estatura média. Ela foi curvada numa forma de fiber, na água, não perdeu a função de cadeira, que é fazer com que você se sente confortavelmente, apenas deixou de ser a ditadura da função. 16 Marceneiro alemão do início do século XIX, Michael Thonet inventou o processo de vergar a madeira, descobrindo diversas maneiras: através da água, da cola quente e, mais tarde, do vapor. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: A procura de um registro próprio Filiar-se a uma escola ou a uma tendência é uma bobagem muito grande. O Memphis foi uma reação, não deveria ser considerado uma escola nem teve a força da Bauhaus. Foi como o Baile da Ilha Fiscal do desenho moderno. Quanto ao compromisso com o design brasileiro, isso não existe. Considero uma posição reacionária porque você está sujeito as influências externas. O design brasileiro é feito com as condições, à técnica e a mãode- obra que se tem, no caso é o que determina suas limitações ou não. Quando resolvi adaptar os móveis Memphis no Brasil, tive que substituir o mármore por granito. Temos limitações em termos de indústria. As novas tendências apontam para um índice de esgotamento de uma sociedade industrializada, no qual pode ser inserido o pós-moderno, soa falso num país como o nosso, onde a industrialização se deu de maneira impositiva a partir da década de 50 e que até hoje não está sedimentada. O pós-moderno surgiu como todas as outras tendências, como um fenômeno que está acontecendo lá fora e acaba acontecendo aqui também. :: As influências das culturas externas Os padrões impostos pela cultura externa, por vezes, não vão além de um modismo passageiro. Se não for assimilado, se for realmente um transplante, é algo que tende a se dissolver rapidamente, é apenas um cenário. O fenômeno Memphis soou mais como uma moda, sem grandes conseqüências. Se não temos as referências aqui dentro, vamos buscá-las lá fora. Tais influências acontecem principalmente no eixo São Paulo / Rio de Janeiro, quando os fatos chegam a outros locais, eles já morreram. Você não pode falar em termos de Brasil, as coisas acabam acontecendo sempre em termos de São Paulo e Rio. Eu não sei o que o pessoal do resto do país está pensando. O que é divulgado é o que se faz aqui, as indústrias estão aqui, o dinheiro está aqui e os meios de comunicação também. Falar em termos de cultura nacional é muito difícil. De qualquer forma, essa produção vai se concentrar numa elite cultural e financeira até porque a cultura, na maioria das vezes, está atrelada ao poder econômico. Para se ter informação é necessário ter dinheiro. 59 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: O design e a indústria no Brasil O design está ligado à indústria. O objeto é produzido para ser industrializado e vendido em massa. No Brasil, isso não ocorreu; aqui, o design está ligado à pessoa que tem dinheiro e que paga o profissional para desenhar para ela, daí as peças exclusivas. As perspectivas para o design de móvel no Brasil são os Tok & Stok da vida, mas por uma medida econômica, porque eles chegaram com uma proposta mais depurada, mais limpa, mais colorida, mais próxima do design europeu. Para baratear o móvel, ele deve ser industrializado e para isso ele tem que ser o mais limpo possível. 60 Em Milão, onde a escala é industrial, existe uma feira aberta aonde vão compradores industriais do mundo todo. Então, a escala é essa, e a diferença está entre produzir uma peça única aqui e fazer uma cadeira que vai ser vendida para o mundo todo lá, sem perder a característica de ser assinada. Talvez a saída esteja nas indústrias de móveis, que têm uma linguagem mais atual porque produzem numa escala maior. Não é a criação de um design nacional porque isso tudo é copiado do que vem de fora. As pessoas ficaram muito presas a Brasília, que foi uma carga bastante violenta, de acordo com a formação dessa época. Você tinha que ter uma atuação política, compromissada com a realidade, e, isso tudo se torna frustrante quando você vai trabalhar e não encontra apoio nenhum. É você que tem que financiar o seu trabalho se quer produzir alguma coisa. Tenho o maior respeito pela produção desse pessoal, mas acho que o compromisso ideológico assumido por eles é tão grande que se reflete e amarra à produção cultural. Há uma estagnação nesse setor. Os pioneiros do design no Brasil tinham uma postura política, o design aparecia como única atividade redentora, que mudaria os rumos do país. No meu ponto de vista, acredito que o design está a serviço de uma indústria, de uma economia, e você tem que produzir dentro desse esquema. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: JOÃO BAPTISTA VILLANOVA ARTIGAS Um dos últimos testemunhos registrados do arquiteto Villanova Artigas, este depoimento mostra sua visão inquieta e aponta sua maneira de entender a importância do desenvolvimento do desenho industrial no país. :: A importância da história do desenho industrial no Brasil A primeira coisa que deveria ser feita antes de se pensar na trajetória do design no Brasil seria uma introdução de caráter histórico do desenho industrial no país, pensando, realmente, o que seria a estrutura cultural daquilo que chamamos de arquitetura moderna e desenho moderno. Uma das contribuições mais efetivas foi a da Lina Bo Bardi1, em 1945 ou 1946, no primeiro número da Habitat, foram publicadas algumas obras que eu havia feito. Nessa época, a Lina fez uma crítica às senhoras paulistas que promoveram um desfile de modas no museu, dizendo que elas não sabiam se vestir e também, não sabiam se comportar, o que poderia ser tomado como um choque característico entre a arte moderna e a arte burguesa. :: A arte moderna A Arte Moderna esteve ligada diretamente à revolução do proletariado, em 1917, na União Soviética; o resto era considerado arte da burguesia. Creio que a Lina trouxe para cá esse espírito, em 1945, depois da II Guerra Mundial, quando os movimentos da arte que eclodiram na década de 20 já tinham sido assimilados. Ela percebeu, então, que teria que vender aqui um material ultrapassado. 1 Lina Bo Bardi (Itália, 1914 – Brasil, 1992), arquiteta e designer, fundou as revistas Habitat e Mirante das Artes. Dentre seus projetos, destacam-se a criação do Museu de Arte de São Paulo-Masp, o projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia, a restauração do antigo Solar do Unhão, na Bahia, e o Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo. 61 :: Depoimentos - IDART 30 Anos O Lúcio Costa2, em 1930, não conseguiu interpretar qual era o ponto de vista social em que estaria inserido o desenho moderno no Brasil, copiou, somente, as formas publicadas nas revistas sem entender o que estava acontecendo naquele momento brasileiro. Um outro exemplo refere-se ao trabalho do Zanine Caldas3, que começou fazendo maquetes para Oscar Niemeyer, depois veio para São Paulo e se tornou meu maquetista. No ano de 1945 eu percebi que ele trabalhava bem com a serra tico-tico e apresentei a ele alguns de meus projetos de móveis. Desses móveis, baseados em projetos meus, nasceu toda a seqüência de móveis do Zanine Caldas. Ele era nitidamente um homem popular, inteligente, perspicaz e que soube pegar a “onda” do moderno. Não era arquiteto, era um habilidoso maquetista. 62 Fazendo uma crítica do que é a classe dominante paulista e quais são os elementos dos quais ela é formada, basta lembrar quando a Lina chegou aqui “ditando regras” na província, tal como era considerada São Paulo naquele momento. A classe dominante em São Paulo tem o mérito de saber ganhar dinheiro e associar-se a qualquer coisa que possibilite um lucro rápido. Ela explora o povo brasileiro da pior forma possível, monta um exército de imbecis para assegurar o regime que estamos vivendo há vinte anos e que eu chamaria do que existe de mais “boçal” no universo, e ainda representa essa canalha burguesia nacional que pegou a nossa cultura e jogou no lixo. É, em cima desse tipo de atitude, que a dona Lina Bo Bardi pode chegar aqui e colocar certas coisas. Foi devido à burrice míope dessa burguesia que a cultura aconteceu aqui de maneira impositiva. 2 Lúcio Costa (Brasil, 1902), arquiteto e urbanista, teve atuação fundamental para a renovação do pensamento artístico e arquitetônico no país. Foi um dos pioneiros da arquitetura moderna no Brasil, e, junto com Oscar Niemeyer, projetou o plano piloto de Brasília, um marco no urbanismo contemporâneo. 3 José Zanine Caldas (Brasil, 1919), arquiteto e designer, projetou residências rústicas com aproveitamento de diversos materiais. A partir dos anos 50, dedicou-se ao design de móveis, utilizando vários tipos de madeiras. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Temos que começar a ver a história novamente, com seus pequenos aspectos dignos, colocando os primeiros fundamentos lógicos e compreendendo bem esses momentos históricos. Temos que rever os momentos históricos deste país e saber valorizá-los da mesma maneira que os franceses sabem pegar uma cadeira corbusiana, e, em cima dela, montar uma pirâmide invertida. Tem que pegar o pensamento de Descartes lá na ponta, passando por Santo Agostinho, para depois vender sob a forma de Pompidou4, como arquitetura de terra. Um outro exemplo é o Iêmen do Norte que foi um local onde os franceses exploraram anos a fio, como quem diz: Voilà. C’est la beauté même, la primitiveté... E foi num contexto como esse que Picasso fez o cubismo. O homem do terceiro mundo deve dar a ênfase necessária ao seu trabalho para que ele possa ser compreendido pelo seu contemporâneo e para que isso comece a ocorrer, só temos uma saída: que a juventude queira assumir a responsabilidade de rever esse processo sob um novo ângulo crítico. A revolução de 1964 consolidou durante vinte anos a estupidez da classe dominante para seu inteiro proveito e matou alguns dos melhores jovens, mandou calar a boca da universidade inteirinha, tornou o brasileiro indigno de sua própria pátria e transformou todo o povo em suspeito. Ninguém ainda descreveu a profundidade dessa indignidade em que estamos metidos. :: A formação do arquiteto para o universo do design O período que vai de 1958 a 1962 tornou-se muitíssimo importante porque foi nessa época que fizemos a reforma na Faculdade de Arquitetura da USP, inserindo no seu currículo comunicação visual e desenho industrial, substituindo disciplinas como decoração de interiores, desenho geométrico e desenho a mão livre. Disciplinas estúpidas e sem nenhuma conceituação da palavra desenho. 4 O Centro Georges Pompidou é um complexo fundado em 1977, em Paris, que abriga museu, biblioteca e teatros, entre outros equipamentos culturais. É’ um dos marcos da pós-modernidade nas artes. 63 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Cinco anos mais tarde, escrevi um trabalho intitulado O Desenho. O rendimento da reforma de 1962 estabeleceu o desenho industrial como uma atividade prática, concreta, do ponto de vista da produção industrial paulista. Depois disso, começamos a atuar na indústria automobilística, pintar frotas de ônibus e empregar o desenho industrial como elemento diretamente ligado à produção. João de Deus5 e Cauduro6 foram alguns dos artistas que compreenderam muito bem certos princípios científicos de 1962 e transformaram a comunicação visual em programação visual, porém cometeram um erro filosófico muito sério porque a programação visual se transformou numa banalidade, enquanto a comunicabilidade tem um sentido filosófico mais amplo. :: O concretismo e as novas tendências 64 As ilusões que tínhamos com relação ao desenvolvimento industrial brasileiro e também as idéias de vanguarda vigentes no Brasil, nessa época, em particular o próprio concretismo, eu compreendi no momento em que revi o realismo socialista e apanhei o que havia de progressista nesse conceito. O Ferreira Gullar7 assimilou esse momento e acabou no partido comunista porque encarou o concretismo como uma nova visão de mundo que substituiria o socialismo. Dessa maneira, tudo o que eles (os concretistas) fizeram paralelamente na década de 60, os manifestos contra a bienal e outros, foi no sentido de dar um conteúdo social idêntico ao dos revolucionários de 20, quando apanharam o paralelismo do mundo novo que a revolução de 1917 oferecia ao desenvolvimento artístico. 5 João de Deus Cardoso formou-se na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1969, com mestrado em Estruturas Ambientais Urbanas da FAU/USP, em 1981. Foi professor da FAU/USP de 1971 a 1983. 6 João Carlos Cauduro é arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, professor do curso de graduação e pós-graduação da FAU/USP e sócio da empresa de design e comunicação visual Cauduro Martino. 7 José Ribamar Ferreira, poeta, nasceu em 1930, no Maranhão. Além da literatura, trabalhou para televisão, teatro e jornal. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: No concretismo, isso foi feito através da nova Bauhaus8, de Ulm, na Alemanha. A idéia de planejamento, em que a sociedade precisaria planejar esteticamente a sua existência, fez da visão estética um caminho para a salvação social da humanidade. Foi essa a razão por que me aproveitei dessas vanguardas, o que me deu margem para “jogar fora” o realismo socialista, com uma visão de mundo que ligava o desenho industrial brasileiro tal como ele era colocado em 1962. Nesse momento, desencadeia-se o movimento de 1964. De duas, uma: ou a nossa burguesia compreendia o avanço social até aquele momento e fazia a revolução junto com o povo ou juntava-se com a direita e tirava proveito de tudo. E foi o que ela fez: transformou o povo em coisa, tirou todo o salário do operário, tirou a sua voz como eleitor, vendeu inteiramente o nosso país para o imperialismo norte-americano e forjou um desenvolvimento meio paranóico. Temos que aprender a sentir o cheiro de sangue do nosso povo, não a capacidade de iniciativa desse crápula que aí está. Acredito que ainda exista uma revolução para acontecer. O João de Deus é um profissional muito bem pago pela Mercedes Benz, viveu comigo, aprendeu comigo e deu uma contribuição pessoal incrível ao desenho industrial brasileiro. Depois de João de Deus, até paranaense está pintando ônibus. A gráfica brasileira mudou completamente. :: Os caminhos percorridos Estou na arquitetura desde 1945, quando não existia aparelho de iluminação, e tínhamos que criá-lo. Na minha casa, existem várias coisas que eu inventei. Por exemplo, no lustre, foi feita uma parábola na própria espessura da laje, e no centro foram instalados o soquete e a lâmpada, partindo do princípio de que se a lâmpada estiver no centro da parábola, tudo se reflete na vertical. A forma ficou muito bonita, com a lâmpada solta no meio, tal como é, sem nenhuma frescura e sem necessidade de botar globo. O conjunto todo está na minha casa até hoje e vale como 8 A Bauhaus foi uma escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha, uma das primeiras escolas de design do mundo. 65 :: Depoimentos - IDART 30 Anos esforço para se ver o tipo de criatividade necessária para arranjar alguns elementos capazes de se casarem com as formas numa época em que não existia projeto de arquitetura no mundo inteiro, nem no Brasil. Claro que, quando falo de Brasil, estou me referindo a São Paulo. Oscar Niemeyer 9deu uma contribuição enorme em 1942, quando já havia feito a Pampulha10, em Minas Gerais. Veja o valor do Oscar. Pegou os elementos da arquitetura moderna que ele tinha visto no Ministério da Educação e deu uma contribuição totalmente nova, modificou a arquitetura moderna no mundo inteiro, e ninguém tolera isso. Eles me reconhecem como o maior professor do mundo, o grande mestre, mas na hora de dizer que eu sou o arquiteto... Isso vale novamente como crítica à classe dominante porque, se fossem machões, eles diriam: Os bons são esses nossos homens, e está aqui uma verba para publicar quatro livros sobre cada um. Mas o hábito é importar tudo, importar tecnologia, importar cultura, sem que exista qualquer critério. Importa-se tudo. 66 Um outro exemplo dessas atitudes pode ser visto na capa de uma revista semanal, na qual aparece a foto do Roberto Campos11 com cara de múmia e travando um debate fascista do exército e o povo que até hoje não tem capacidade de votar, como disse o general Bandeira. As pessoas que estão no poder não consultam o povo sobre como tratar questões como o FMI, como tratar o problema das reservas tecnológicas. Nosso povo é ignorante, e, assim, o governo também passa por ignorante. Você é uma ignorante de 30 anos, você é um ignorante de 24 anos, e eu sou mais do que um ignorante porque vivi tanto tempo e já deveria ter aprendido um pouco mais. 9 Oscar Niemeyer (Brasil, 1907) é considerado um dos nomes mais influentes da arquitetura moderna internacional. Foi pioneiro na exploração das possibilidades construtivas do concreto armado. Em 1940, projetou uma série de prédios que seriam conhecidos como conjunto da Pampulha, além da Igreja de São Francisco de Assis. Na década de 1950, Niemeyer, juntamente com Lúcio Costa, fazem o projeto urbanístico para a construção de Brasília. 10 A Igreja São Francisco de Assis, também conhecida como Igreja da Pampulha, está localizada às margens da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Foi projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, em 1945. Com suas linhas arrojadas, é considerada um marco da arquitetura moderna brasileira. 11 Roberto de Oliveira Campos nasceu em Cuiabá, em 1917, e faleceu em 2001. Foi economista, diplomata, deputado federal, senador e ministro. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Edifício sede da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1948. Área interna da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1948. 67 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Área interna da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da 68 Universidade de São Paulo, 1948. Poltrona em multilaminado, 1947. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: CARLOS MOTTA (São Paulo, SP, 1952) Arquiteto e design, Carlos Motta se dedica à produção de mobiliário, de forma artesanal, desde os anos 70 contribuindo, assim, para o desenvolvimento do design no Brasil. :: Início da carreira Nasci em São Paulo, em 1952. Fiz várias tentativas de estudo, desde direito, publicidade até chegar à arquitetura, que cursei mais por curiosidade do que por influência do meu tio Flávio Motta, que sempre me mostrou um lado bonito na arquitetura. Estudei em Mogi das Cruzes. No curso, havia uma disciplina chamada desenho tridimensional, de que fazia parte uma oficina de marcenaria pequena e mal equipada, porém com todos os maquinários tradicionais. Sempre gostei muito de madeira, de marcenaria e de construção em geral, mas desconhecia minha habilidade. Nunca tinha mexido, não sabia que eu era uma pessoa hábil com a marcenaria. Pela própria curiosidade, sempre tive intimidade com a madeira. Sempre gostei do cheiro, do tato, da textura, de tudo. Ainda na faculdade, comecei a fazer alguns brinquedos e exercícios com madeira. Cortar, lixar, fazer formas sem função, só pela beleza da forma, quase umas esculturas. Também tive uma disciplina chamada desenho do objeto, ministrada por Maurício Fridman1 e Cláudio Tozzi2. Meu grafismo sempre foi muito ruim, sempre fui péssimo gráfico, não sei me expressar com desenho, no plano, sempre me expressei melhor no tridimensional. O trabalho final dessa disciplina era relacionado ao mobiliário, tinha que apresentar o projeto do móvel e eu não consegui fazer o projeto do que eu 1 Maurício Fridman é arquiteto, doutor pela FAU/USP e artista plástico. 2 Cláudio Tozzi é pintor e desenhista paulista, trabalha no campo das artes gráficas e programação visual. Arquiteto, formou-se pela FAU/USP, trabalha com temas urbanos e conflitos sociais, que foram predominantes e constituíram seu universo visual. 69 :: Depoimentos - IDART 30 Anos imaginava. Fui na oficina e fiz a cadeira. Quando terminei, levei no final do semestre e me reprovaram porque a matéria era desenho do objeto, e eu levei o objeto pronto. Peguei uma disciplina pendente numa matéria praticamente ridícula e que para mim era uma coisa intuitiva, não uma coisa de estudos e de teorias. Reprovaram-me com essa tal cadeira. Nesse momento, o assistente da disciplina de projeto viu a cadeira, gostou e fotografou. Ele levou a foto para o arquiteto Aurélio Martinez Flores, dono da lnterdesign. O Aurélio estava iniciando a revista Casa Vogue e gostou muito da cadeira. Ele colocou uma foto da minha cadeira na Casa Vogue. A revista foi para o exterior, e o diretor da KNV, indústria holandesa, viu, gostou e comprou o desenho da cadeira. Foi muito engraçado: mesmo reprovado na disciplina, vendi a cadeira para uma indústria na Holanda, com contrato feito no consulado e bases em dólar, o que, para um estudante, um adolescente, foi o máximo. 70 A cadeira não foi o primeiro móvel que fiz. Nessa época, eu trabalhava com arquitetura no escritório do Paulo Mendes da Rocha3 e já havia feito o desenho de uma estante para a casa do meu pai, no Guarujá. No Natal, ganhei da minha namorada um serrote e uma furadeira. E foi com essas ferramentas que fiz a tal estante. Foi meu primeiro contato de fazer, desenhar e executar um objeto. :: Os primeiros projetos Para executar a cadeira, eu adotei outra postura, quer dizer, pensei numa estrutura para agüentar o peso de um corpo. Pensei na desmontabilidade com relação ao transporte. Comecei a considerar todos os aspectos. Enfim, o desenho foi vendido, e eu fiquei muito contente. Quando a foto saiu, recebi alguns telefonemas de pessoas querendo encomendar a cadeira. Decidi fazer e comecei a pegar as primeiras encomendas. Nunca soube se a cadeira que desenhei foi produzida na Holanda de forma industrial. 3 Paulo Archias Mendes da Rocha (Brasil, 1928) é arquiteto e urbanista pertencente à geração de arquitetos modernistas liderada por Villanova Artigas. Assumiu, nas últimas décadas, uma posição de destaque na arquitetura brasileira contemporânea, tendo sido galardeado, em 2006, com o Prêmio Pritzker, importante premiação da arquitetura internacional. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Logo depois, eu comprei uma serra de fita, uma lixadeira e outras ferramentas. Aluguei um quarto na rua Cardeal Arcoverde e comecei a trabalhar. No início, era tão ingênuo no assunto que nem sabia comprar material; a loja de ferragens vendia sarrafo de pinho utilizado na construção civil, parafuso passante com porca e corda de sisal. A cadeira foi feita com esses materiais baratos encontrados em qualquer casa de ferragens. Fiz a cadeira e depois o estofamento, que eu mesmo costurei. Ficou ótima, desmonta, funciona bem, tem uma postura muito legal. Tudo muito intuitivo. Fiz também uma estrutura de madeira para segurar almofadas, uma estrutura simples, mas muito bem resolvida. A própria lnterdesign viu e pediu que eu fizesse a cadeira e o sofá. Fiz e botei lá na vitrine deles e, no ato, vendeu. Em meados de 1975/1976, começaram a aparecer pedidos. Entre o desenho e os primeiros pedidos, demorou um ano. Comecei a fazer as encomendas. Estava namorando a minha atual mulher, e ela já trabalhava com tecido. Pedi para ela estampar o tecido das cadeiras. O que resultou foram cadeiras exclusivas porque as estampas eram pintadas a mão. Ficou uma coisa muito simpática. :: A vida na Califórnia e a descoberta da marcenaria Em 1976, estava cansado da escola e frustrado porque eu desenhava arquitetura e ninguém executava. O móvel que eu desenhava eu mesmo executava. Dava-me uma satisfação muito grande. Eu já tinha desenhado quatro projetos de arquitetura, e nenhum tinha sido executado. Eu ia lá e media o terreno, fazia isso, fazia aquilo e não via o tridimensional executado. Com o móvel era o contrário. Eu não precisava quase desenhar, ia direto para o modelo. Comecei a fazer essas primeiras encomendas; no fim do ano, me formei e fui embora para a Califórnia. Dois motivos me levaram para lá: um era o estudo de arquitetura, o outro era o surf, que sempre fez parte da minha história. 71 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Quando cheguei a São Francisco, fui direto para Berkeley4 fazer pósgraduação em planejamento urbano. Da mesma maneira que eu entrei na arquitetura meio à toa, foi a minha pós-graduação. No fundo, era a vontade de ir para a Califórnia. Estando lá, vi que não tinha a menor intimidade com o assunto. Planejamento urbano nos Estados Unidos é uma coisa completamente diferente do Brasil: os professores, as matérias, o tratamento do assunto. Percebi que iria me formar em teoria, e, pior, não dava para aplicar em nosso país. 72 Aos poucos, fui descobrindo que meu interesse não estava na universidade. Eu visitei o college e vi a oficina de marcenaria. Era completíssima e maravilhosa. Então, da pós-graduação eu voltei para o college, que é inferior à universidade. Com o passar do tempo, eu fui parar na high school, o colégio, com oficinas ainda mais bem montadas. Eu já era arquiteto e com o meu diploma tive carta branca para desenhar e executar as coisas que eu quisesse usando a oficina, contanto que eu prestasse serviços para a escola. Fiz portão, fiz mesa, fiz um monte de coisas me exercitando. Fiquei um ano fazendo isso. Desenhei alguns móveis na Califórnia, vendi, usei madeiras e aprendi muita coisa. É chato falar da vida no exterior porque parece que aqui é tudo ruim e lá é tudo bom. Da mesma maneira que o Paulo Mendes da Rocha aqui me conscientizou com a arquitetura brasileira, nos Estados Unidos eu tive a consciência do design, do aproveitamento do material, do respeito com o material, do respeito com o ser humano que vai manusear esse material. Tudo isso deu uma organizada legal na minha cabeça. :: Início do trabalho no Brasil Quando voltei para o Brasil, em 1978, aluguei um galpão e comprei várias máquinas usadas. As ferramentas manuais eu comprei nos Estados Unidos, usadas e muito baratas. Abri o ateliê Carlos Motta Ateliê 4 A Universidade de Berkeley, fundada em 1868, é uma extensão da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Arquitetura & Marcenaria. A proposta era desenhar e executar qualquer coisa que fosse de madeira; o resto, outra pessoa executaria. Nos Estados Unidos, as oficinas empregavam trabalhadores de alto nível. Os marceneiros que trabalhavam comigo tinham a mesma cultura que eu, tinham o mesmo nível social, econômico, tudo era igual. Aqui, na hora de chamar um marceneiro, eu fiquei chocado porque a pessoa era muito submissa, não tinha iniciativa própria. Eu não conseguia tratar esse relacionamento. Quando montei uma equipe bem estruturada, formouse uma técnica construtiva muito particular na nossa oficina, tudo em função do desenho. Eu desenhava, e existia uma técnica para construir. Foi uma coisa que eu estudei muito: a melhor maneira de construir. A oficina começou a dar certo, apareceram vários pedidos, e eu nunca neguei pedido nenhum. Certa vez, meu vizinho, que era pipoqueiro, pediu para a gente fazer um carrinho para ele e o filho venderem pipoca na rua. Estudamos todos os itens que o carrinho deveria ter. Eu pegava todo o programa do projeto e executava da melhor maneira. Usava madeira leve, porque ele ia subir e descer ladeiras, e tudo que estava relacionado. E tantos outros exemplos: a Seagram’s, empresa grande de bebidas, queria fazer embalagens de madeira, a Casa Ricardo queria presentes de fim de ano, um hotel queria cadeiras, e eu fazia de tudo, de tampa de privada de madeira até chaveirinho promocional. Eu nunca negava pedido exatamente para desenvolver o projeto e descobrir qual era a maneira mais certa de fazer. :: A ligação com a arquitetura e o interesse pelas cadeiras Continuo desenvolvendo projetos de arquitetura: fiz o prédio que é meu ateliê sempre com o mesmo partido dos móveis: uma construção simples, buscando materiais de qualidade mais acessíveis. Já fiz algumas coisas em arquitetura, inclusive uma casa de madeira no Paraguai, que ficou muito bonita. Devagarzinho, fui executando várias coisas. Um amigo ia viajar para a Amazônia com uma perua emprestada pela Ford e precisava fazer toda a carroceria na qual iriam todos os equipamentos de 73 :: Depoimentos - IDART 30 Anos filmagem, toalete etc. A gente fez todo o interior do carro. Era qualquer coisa mesmo. Foi a partir daí que começou a aparecer cada vez mais o meu interesse por cadeiras. Tem uma coisa quase fantasiosa na minha cabeça: a cadeira. Eu sempre curti, sempre colecionei, sempre guardei e sempre fotografei as tais cadeiras. Então, comecei a fazer mais e mais cadeiras. Qualquer peça do mobiliário, desde o carrinho de pipoca até um armário, é muito simples. O programa é babaca, é fácil de fazer. A cadeira, não. Ela tem uma postura certa, tem problemas de guardar, tem problema de transportar. O móvel é único, a cadeira, não, a gente repete muito. Qualquer casa tem mais cadeira que gente. Qualquer igreja tem mais cadeira que gente. Qualquer hospital tem mais cadeira que gente. Qualquer lugar tem mais cadeira que gente, é um objeto muito usado. 74 Comecei a aperfeiçoar cada vez mais as cadeiras e, hoje em dia, o ateliê está tendendo a virar uma indústria de cadeiras. Sempre tive pavor de virar um industrial, mas não tem saída. Eu já tentei fazer o meu desenho para outra pessoa executar, mas não sai com a qualidade que estou querendo. Então, eu mesmo vou fabricar as cadeiras. Cheguei a fazer uma cadeira especial para partos; a primeira foi encomenda de um médico em Salvador. Fiz, mandei para ele e nem cobrei porque foi uma coisa muito interessante de se fazer, já saiu até em revista. :: A simplicidade do projeto Tanto na arquitetura como no design, talvez seja uma história só: o problema com grafismo. Eu não sei me expressar, fazer um desenho e mandar para alguém executar. Eu sei fazer. E o partido das cadeiras, como o da própria arquitetura, sempre foi a simplicidade. O sentar-se corretamente, seja para comer, para ler, para estudar, para trabalhar, existe uma postura que é a correta. Eu acho isso fundamental. Comecei a procurar qual a postura mais correta pela minha própria intuição e por estudos feitos por outras pessoas. Logo em seguida, minha atenção se voltou para a estrutura. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Tem o lado artesanal. Houve uma exposição no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro e em Salvador, e eles pediram que eu mandasse algo bem expressivo. Desenhei uma cadeira que tinha uma estrelinha. Eu não tinha um cliente, eu somente desenhei uma coisa usando da minha liberdade. Fiz a postura mais correta: você senta e tem a forma da bunda certinha, a altura do braço, a inclinação, as madeiras na parte de trás mexem um pouco para dar o molejo. No final, a cadeira saiu tão austera, tão severa na sua função que eu resolvi colocar uma estrelinha. Não podemos esquecer que eu sou hippie. Fiz a cadeira Saitj, clássica. Quem parte de uma postura, de uma concepção, de uma estrutura para chegar a uma forma está se referindo a um pensamento clássico. Nunca procurei referência nos clássicos para a construção de meus objetos. Certa vez, participei de uma palestra no IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) com o Julio Katinsky5, catedrático da FAU, e com o Abrahão Sanovicz6, que na época era estudante, marceneiro e arquiteto. Minha relação com isso tudo é muito diferente. Eu sou muito mais prático, eu não tenho toda essa cultura. :: O design de mobília Meu envolvimento com o design de mobília se deu de forma intuitiva, quase orgânica, de sentir a madeira. De vez em quando, ficava preocupado por meu trabalho não apresentar uma seqüência de desenho, não parecer um traço pessoal, uma estética. Hoje, vejo que possui um estilo claríssimo. Partindo do uso do móvel, percebia que a concepção e a estrutura de cada um está relacionada com seu resultado final, que é a estética. Minha clientela é diversificada. Aparece punk doido e compra minha cadeira. Depois, aparece uma madame com chofer. Todo mundo gosta. 5 Julio Katinsky é arquiteto e professor de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 6 Abrahão Sanovicz (Brasil, 1933-1999), arquiteto e professor da FAU/USP, também mostrou fidelidade aos princípios da escola paulista de arquitetura, na qual projetou e inovou a arquitetura e o design do mobiliário. 75 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Acho isso muito legal porque parece um trabalho sincero. Tanto que, no encontro do IAB, eu quase me engalfinhei com um industrial. Ele estava fazendo móvel descartável. Eu disse que era paranóia de americano. Americano é que gosta de coisa descartável. Sentar não é descartável. A postura de sentar é igualzinha há 2000 anos e não vai mudar. Eu não vou fazer uma cadeira, usar matéria-prima e mão-de-obra cara para fazer uma peça descartável. Quando a gente falou de móvel de escritório no encontro do IAB, ele mencionou o tal móvel descartável. Eu não concordei, acho que não dá para ser descartável. Descartáveis são outras coisas. Ele me perguntou por que nunca tinha desenhado um móvel de escritório. Porque eu nunca acreditei no escritório. Ele existe e está aí, eu também tenho o meu pequeno escritório, mas esse negócio de vida sedentária de escritório para mim não dá certo. 76 Nesse momento, citei a China. No mundo ocidental, o cara usa uma abotoadura, uma camisa toda fechada, uma gravata apertada, um cinto, um sapato apertado, entra num escritório, senta e fica mais de oito horas trabalhando de maneira sedentária. A cadeira é caríssima e, se não for, o estofado é péssimo porque é duro pra caramba. Na China, o cara usa uma manga solta, a calça mais curta, um sapatinho chinês, senta três horas, depois faz tai chi chuan. Quer dizer, existe o movimento, e a proposta de uma organização do escritório passa a ser diferente. A cadeira pode ser uma simples cadeira, com a postura correta, de madeira. Não precisa ser caríssima, com poliuretano, que segura o rim e a coluna. Eu comentei isso no encontro, e o cara ficou louco: Você está fugindo do assunto! Nós estamos resolvendo o problema do móvel descartável! Que móvel descartável? É descartável para quem está nessa. Se for pensar sempre com a mentalidade americana do chairman, do chefe, não dá. :: O processo de criação e a maneira de trabalhar O desenvolvimento do processo de criação se dá no meu ateliê. Vou à oficina, pego as madeiras e fico nas máquinas. Risco daqui, risco dali e faço uma maquete sempre em escala natural. Com as cadeiras, o processo é diferente, não dá para trabalhar com cadeira em maquete. Cadeira, para A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: mim, é só sentando e experimentando. Convido qualquer pessoa que passa pela rua para testar minhas cadeiras, para dizer o que acha, porque cada pessoa possui uma anatomia exclusiva, uma maneira de se comportar diferente, e o único jeito é experimentando. Dos outros móveis - armários, cômodas, mesas - o grafismo é fácil e simples. Não tem muito que inventar porque não mexe tanto com a anatomia como a cadeira. Eu chego a fazer 200 cadeiras para cada mesa. O que sai mesmo é cadeira. Sempre gostei muito da madeira, da marcenaria. Fosse qual fosse o objeto, sempre tinha um lugar que dava vontade de botar alguma coisa, um equilíbrio estético, como uma pintura. Eu já fiz escultura também. Muitas com madeira, com ferro. Eu gosto muito desse lado do desenho já aplicado direto. :: Tipos de madeira Quando comecei a produzir meus objetos, eu trabalhava com o pinho porque era uma madeira que, além de barata, também vinha maquinada, industrial, já vinha no formato de tábuas de 30 cm aparelhadas, fibra reta. Hoje em dia, já tenho um pouco mais de equipamento, posso comprar madeira bruta. Trabalho também com o mogno, que não é muito mole, pelo contrário, é madeira dura, mas não tão dura como o amendoim e a cabreúva. Uso qualquer tipo de madeira. Para trabalhar com as madeiras, eu as seco no tempo; ficam cerca de dois anos no pátio. Com a ida para a Califórnia, conheci grandes artesãos, conheci ferramentas e também aprendi a fazer ferramentas. Comecei um caso com a madeira e que nunca acabou, apaixonante. Passei a usar os requintes da madeira, fazer encaixes sofisticadíssimos durante um longo tempo. De repente, fiquei conhecido em São Paulo como o construtor em madeira. Eu, que não tinha bagagem nenhuma, estava fazendo os encaixes mais sofisticados, fazendo uma construção mais rica, mais elaborada. Minhas cadeiras são caríssimas por serem totalmente artesanais. Os pedidos andam muito devagar. Para fazer uma cadeira demora muito. 77 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Quando fui para a Finlândia, conheci um pessoal que desenhava e produzia principalmente as peças do Alvar Aalto7, que eu gosto muito, executadas com a técnica de laminados para fazer peças curvas. Visitei todas as indústrias e quando voltei estava com a cabeça feita: vou fazer uma indústria, mas o dinheiro que eu ganho é lento. A idéia principal era montar em São Paulo uma indústria de cadeiras. :: Outros designers Na época da exposição Tradição & Ruptura, percebi que, ao lado da minha cadeira que estava exposta, havia uma outra muito parecida. Fui olhar o nome do cara: Sérgio Rodrigues8, 1948. Eu não tinha nem nascido e o cara já tinha feito a cadeira. Fiquei supercurioso e pensei: Ele não copiou de mim nem eu copiei dele! Fui para o Rio, encontrei o Sérgio: “Você copiou minha cadeira. Em 1948, você copiou minha cadeira”. Ele deu risada. 78 Percebi que o Michel Arnault9 fez uma cadeira de balanço igual à minha: “Michel, qual é a sua?” Começamos a ver que gostar de madeira e ser arquiteto levou a gente exatamente para o mesmo resultado. Hoje em dia, a gente se encontra, bate papo, dá risada, conversa, rabisca e conclui um monte de coisas porque o partido é igualzinho. A história do móvel no Brasil tem um momento importante no começo da década de 50, quando alguns arquitetos começam a se dar conta de que existia um mercado, então, essa experiência de estúdio, de ateliê. É 7 Hugo Alvar Henrik Aalto (Finlândia, 1898-1976), arquiteto e pintor, também se notabilizou como designer de mobília, tecidos e cristais. Foi um dos primeiros e mais influentes arquitetos do movimento moderno escandinavo. 8 Sérgio Rodrigues (Brasil,1927), arquiteto e designer, foi um dos renovadores do design brasileiro, principalmente com a criação da Poltrona Mole em jacarandá e couro, em 1957. 9 Michel Arnault é considerado um dos introdutores do modernismo no móvel brasileiro. Nas décadas de 50 e 60, ele já produzia móveis em série com o intuito de popularizar o design no Brasil. Suas criações apresentavam um desenho claro e funcional, voltado, principalmente, para consumidores de diferentes classes sociais. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: uma espécie de retorno às experiências pré-industriais do móvel no Brasil. O próprio Michel Arnault dizia: Vocês vão ter que abrir uma indústria. A última coisa que eu queria ser era industrial, mas por puro preconceito. :: A indústria Eu sempre imaginei o industrial aquele chefe que chega dando ordens e que nunca teve o contato real com o produto, mas é uma imagem boba. No meu ateliê, desde o começo, existe a participação dos funcionários. Quando tem lucro, eu acho que o funcionário tem que ter acesso a ele. É impossível um cara trabalhar numa firma e não ter acesso ao lucro, independente do salário dele. Tem que ser um trabalho bem administrado e que garanta qualidade. Certa vez, o Percival Lafer veio aqui. Entrou, olhou isso, olhou aquilo, a gente começou a conversar e eu vi que o cara entendia de móvel: “Como é que ele conhece esses encaixes? Como é que ele conversa essas coisas?” Quando foi embora, ele disse: “Eu também faço móveis, tenho uma indústria. Vou deixar meu cartão, vá me visitar.” Um dia, mexendo nos cartões, vi lá: Percival Lafer, mas não liguei uma coisa com a outra. Quando percebi, fui visitá-lo e ele me mostrou tudo, me explicou tudo. Conversamos sobre a organização de uma empresa, e eu disse que queria dar acesso ao lucro, e o cara se queimou no ato. Contraria um princípio. Claro que eu quero ganhar dinheiro, porém quero fazer uma coisa justa. Ou o cara tem afinidade com a madeira e com o trabalho dele ou ele nunca vai trabalhar direito. Tenho certeza que é uma coisa apaixonante e que vai trazer um resultado muito bom, como já está trazendo. Tive que comprar relógio de ponto porque, depois de oito anos de firma, eu vou ter que reeducar certas coisas. Aqui, nunca tivemos horário de entrada, horário de saída, nada. Não existia regra, cada um fazia o que queria: ou o cara faz direito ou pisa na bola. Se pisar na bola, nem preciso mandar embora porque ele se envergonha tanto perante tudo, que se arranca. Aqui é liberdade total. Em cima da minha mesa tem um livro de entrada e saída de grana. Todo 79 :: Depoimentos - IDART 30 Anos mundo sabe quanto eu ganho e quanto o outro ganha. É um time, ou esse time trabalha em conjunto e vai para frente ou não dá certo. Nunca separei a minha grana da grana da firma, da moçada; minhas dívidas particulares das dívidas da marcenaria, da madeira. Sempre foi uma coisa só, e, de tão misturado, hoje em dia prejudica porque a firma está tomando um volume maior. No ateliê, eu tomo o cuidado de escolher as folhas mais bonitas da madeira para o revestimento, ao contrário das marcenarias tradicionais. A estrela que eu gravo nos meus objetos é como se fosse minha assinatura, o controle de qualidade, do qual jamais vou abrir mão. O que acontece é que todo mundo começa a fazer direito, mas, quando entra no mercado, abre mão da qualidade. :: O design brasileiro 80 Meu trabalho está totalmente inserido no design brasileiro porque o design brasileiro não tem nada a ver com o movimento Memphis10 do Ettore Sottsass11, por exemplo. Quando estive em Milão, fiquei chocado com o trabalho deles. É muito bonito, tem uma estética muito interessante, mas você sabe como é Milão, como é a Itália, os caras têm dois mil anos de história, fazendo, refazendo, procurando estéticas novas, procurando uma porrada de coisas que a gente, no Brasil, não tem. Aqui, a história é outra. Eu continuo pensando em sentar bem, em usar bem o material e utilizar bem a nossa mão-de-obra. Pensando nesses termos, principalmente nas cadeiras, sentar não vai mudar tão cedo. Hoje, as cadeiras, como a São Paulo, têm uma técnica particular. 10 O Memphis foi um estilo baseado numa linguagem figurativa e provocativa em que não se priorizava a funcionalidade, e sim a imagem. Foi, ainda, caracterizado por materiais pobres, cores gritantes e superfícies decoradas, bem como pela renúncia à produção industrial. 11 Ettore Sottsass (Áustria, 1917), arquito e designer, exerceu várias atividades. Trabalhou na agência de Giuseppe Pagano antes de abrir seu próprio estúdio em Milão, em 1947. Desde 1958, é responsável pelo aspecto estético das máquinas de escrever Olivetti (Tekne 3, Praxis 48, Valentine, PC M 20). Expôs suas criações no estúdio Alchimia. Em 1981, fundou o Grupo Memphis com outros designers. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Quando fui a Buenos Aires, entrei num museu pequenininho, o Museu de História Argentina, e vi uns móveis feitos há 200, 250 anos. Observei umas cadeiras: tinham exatamente a mesma construção que a minha, que eu, muito criativo, inventei. Cadeira argentina feita lá por um peão de lá. Você vê que a cadeira é feita por peão mesmo, o cara cavoucou a madeira e a fez bem rústica. E o que achei incrível é que, além de ter visto a cadeira ali, também a vi em livro, feita na Inglaterra, não a cadeira, exatamente, mas o partido, a maneira de construir. Não existe quase nada por inventar. Eu nunca inventei nada, somente estou atualizando a coisa. É o material que está na mão, é a mão-de-obra que está na mão, e a estética é o resultado do somatório disso tudo que a gente disse. Se eu vivo hoje, estou caindo na minha realidade de hoje. Acho que isso seria o design brasileiro. O Memphis, todo o movimento post-modern, esses rótulos todos, eu acho legal, uma coisa bonita, interessante, mas não é para a gente, é para quem está ironizando um momento histórico, ironizando a cultura, ironizando o excesso de dinheiro que a Europa tem. Se pegarmos um marceneiro de Milão, além de ter mais cultura do que eu, mais dinheiro do que eu, ele sabe muito mais coisas, é incrível. A Europa está em outro nível, não dá para comparar com o Brasil. Lá cabe um móvel Memphis. O design brasileiro é exatamente o que o Michel Arnault está fazendo, o que o Sérgio Rodrigues está fazendo, e que eu estou fazendo sem a pretensão de me botar ao lado deles. Os móveis da linha Memphis são feitos de fórmicas especiais, caríssimas, e o que recebe a fórmica é um compensado tradicional. A colagem é quase vagabunda, a ferragem não é nada demais, na verdade, é uma supermaquiagem. 81 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: Outros trabalhos No começo da consolidação do meu trabalho, quando ele estava no rumo certo, eu tinha algo a mais do que a marcenaria, isto é, tinha a parte do design, do projeto. Foi quando a Lina Bo Bardi12 veio ao meu ateliê e me convidou para ser o coordenador do Sesc na parte de marcenaria e de design nas oficinas. Entre os coordenadores do Sesc estava o Ivaldo Bertazzo13, da dança, o Evandro Carlos Jardim14, das artes gráficas, e o Megumi Yuasa15, da cerâmica, todos nomes quentes. Eu me sentia demais estar no meio de todos aqueles profissionais encabeçados pela Lina. Ela disse: “Bem, para o próximo encontro nosso, vocês tragam duas folhas datilografadas do partido geral da história.” Eu não consegui escrever duas linhas, nem a mão, uma mistura de travamento com ignorância. Eu não consegui mesmo. Nessa reunião, acabei ficando amigo do Flávio Império16; um dia, ele 82 12 Lina Bo Bardi (Itália, 1914 – Brasil, 1992), arquiteta e designer, fundou as revistas Habitat e Mirante das Artes. Dentre seus projetos, destacam-se a criação do Museu de Arte de São Paulo, o projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia, a restauração do antigo Solar do Unhão, na Bahia, e o Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo. 13 Ivaldo Bertazzo é coreógrafo, bailarino e professor de dança e terapias corporais. Desde 1975, dirige a Escola de Reeducação do Movimento, em São Paulo. 14 Evandro Carlos Jardim, artista paulista, especializou-se em gravura em metal, mas também realizou desenhos, pinturas e objetos. Participou do Jovem Gravura Nacional e Jovem Desenho Nacional, entre 1964 e 1966, eventos promovidos pelo MAC/USP (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo). Foi professor-titular de gravura da Faculdade de Artes Plásticas da FAAP (Faculdade Armando Álvares Penteado, de São Paulo) e de desenho e gravura da ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo). 15 Megumi Yuasa (Brasil, 1938), escultor e ceramista, iniciou sua carreira no mundo das artes plásticas ainda muito jovem. Começou a pesquisar materiais e técnicas expondo esculturas e objetos em cerâmica no Brasil e exterior. 16 Flávio Império, arquiteto e professor da FAU/USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) até 1977. Seu trabalho abrangeu arquitetura, arte carnavalesca, artes A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: foi me visitar na minha oficina e escreveu a tal teoria para mim. Mandei meu projetinho e foi tudo aceito. No Sesc, foi incrível porque conheci muita gente. O trabalho foi se profissionalizando cada vez mais. Com essa turma tive uns dez encontros. Foi uma coisa que me ajudou a acreditar em mim porque todo mundo me deu muita força. Eu ficava quieto, inibido, não sabia falar, não sabia como teorizar as coisas. As pessoas me ajudavam, eu queria falar, e todo mundo curtia. Certa vez, participei de uma exposição muito simples, mas muito equilibrada. Foram expostos móveis, madeiras, ferramentas e, além disso, fizemos um livrinho, eu, o Rubens Matuck e o Mário Cordeiro, um livrinho feito à mão sobre ferramentas, técnica construtiva e uso da madeira. Foi então que a Lina Bo Bardi teve contato com essa exposição e me chamou para participar dos projetos do Sesc. Quando o Sesc abriu, a Lina me pediu para levar uma cadeira e alguns objetos utilitários para expor. A partir de então, meus objetos, principalmente as cadeiras, fizeram com que eu participasse de várias exposições no Brasil e no exterior, tais como no Museu de Arte Moderna de Salvador, de São Paulo, do Rio de Janeiro, em Chicago e tantas outras. plásticas (pinturas, gravuras e desenhos), filmes em formato super-8, em que documentava festas populares e religiosas pelo interior do Brasil. 83 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Museu de Arte Contemporânea MAC USP foto: Rômulo Fialdini 84 Linha São João foto: Rômulo Fialdini Poltrona CM7a Foto: Rômulo Fialdini A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: 85 Cadeira Estrela Foto: Rômulo Fialdini Exposição Museu da Casa Brasileira Foto: Rômulo Fialdini :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: JORGE ZALSZUPIN (Polônia, 1922) Arquiteto polonês, Zalszupin veio para o Brasil em 1949 e fundou a L’atelier, em São Paulo, empresa que começou com um trabalho quase que artesanal passando, posteriormente, à produção em série. Também foi uma das primeiras empresas a comercializar móveis de plástico, utilizando as injetoras de poliuretano. :: A arquitetura Nasci em Varsóvia, em 1922. Fiz todos os estudos nessa cidade até 1939, quando estourou a II Guerra Mundial. Estava com 18 anos e não conhecia nenhum outro país. Devido à circunstância, tive que sair da Polônia imediatamente; consegui fugir do cerco a Varsóvia e fui para a Romênia. Uma vez lá, pensei em prestar vestibular para arquitetura, interesse que já existia desde os 15 anos, quando freqüentava uma livraria, atraído pelo cheiro e pela beleza de impressão dos livros de arte. 86 Havia uma seção de arquitetura em que tomei contato com reproduções das obras de Le Corbusier1, Mies van der Rohe2 e um artista chamado Mendelsohn3, uma espécie de Gaudí4 moderno. Quando meu pai percebeu 1 Charles Édouard Jeanneret, conhecido por Le Corbusier (Suíça, 1887 – França, 1965), foi o mais famoso arquiteto da escola modernista. De inúmeras facetas, fez escultura, móveis, paisagismo e pinturas. O racionalismo presente nas obras de Le Corbusier apontava para ações relacionadas à natureza, ao homem e à arquitetura. Entre suas obras mais importantes estão a Villa Savoye, na França, o Tsentrosoyuz, em Moscou, e muitas outras. 2 O arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) é considerado um dos principais nomes da arquitetura do século XX. Foi professor da Bauhaus e um dos formadores do que ficou conhecido por International Style. Sua arquitetura sempre se voltou ao racionalismo espacial, e a concepção dos espaços arquitetônicos envolvia uma profunda depuração da forma, voltada sempre às necessidades do lugar. 3 Erich Mendelsohn (Alemanha, 1887 – EUA, 1953), arquiteto, aderiu ao funcionalismo em suas obras, como as grandes lojas Schocken, na Alemanha. 4 Antoni Gaudí i Cornet (Espanha, 1852-1926), arquiteto catalão, um dos símbolos da cidade de Barcelona, adotou uma linguagem escultórica bastante pessoal, projetando edifícios com formas fantásticas e estruturas complexas. Entre suas obras estão o Templo Expiatório da Sagrada Família, o Parque Güel e a Casa Calvet. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: meu interesse pela arquitetura, procurou me incentivar nesse sentido. No entanto, as pessoas de nosso relacionamento achavam que eu não deveria fazer arquitetura em Varsóvia por motivos não só ligados ao ensino, mas também devido ao anti-semitismo, com que tomei contato praticamente desde que nasci. Meu pai viajava muito e numa dessas viagens me inscreveu na École Superieur d’Architecture, em Paris. As aulas deveriam começar em setembro, mas antes disso estourou a guerra e não cheguei a ir para Paris. Em Bucareste, persisti na idéia de cursar uma faculdade e sabendo que o vestibular seria muito difícil, decidi cursar provisoriamente uma escola que me desse uma base melhor para enfrentar uma universidade fora de meu país e um tempo maior para aprender a língua. Fiz a Academia de Beaux-Arts, onde aprendi a desenhar, a pintar e a fazer esculturas em argila. Passei por um aprendizado clássico, desenhando a partir da observação de moldes de gesso, o que não foi de todo mal porque me deu uma certa segurança em relação aos problemas de proporção. Fiquei nessa escola cerca de um ano, em seguida prestei vestibular para arquitetura. Na estrutura de ensino da Escola de Belas Artes o peso maior era dado ao desenho. Quem desenhasse bem era separado num grupo e teria que ser muito burro se não conseguisse passar nas outras matérias. Passei no exame em segundo lugar, o que me deu muita coragem. Percebi que não havia nenhum mistério e mergulhei profundamente nos estudos de arquitetura. A partir daquele momento, minha vida passou a ser a universidade. Vivíamos na faculdade mesmo no período da guerra. Havia bombardeios, os prédios caíam, e nós continuávamos indo para a faculdade. Quando a guerra acabou - para a Romênia a guerra terminou um pouco antes porque tinha sido um dos primeiros países ocupados pelo exército vermelho - eu já tinha condições de voltar para meu país, mas iria interromper os estudos quando faltava apenas um ano para sua conclusão, e eu não teria condições de retomá-los. Permaneci em 87 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Bucareste correndo o risco de não sair. As saídas do país começaram a ficar cada vez mais difíceis, quase impossíveis, mesmo para quem possuía passaporte estrangeiro. Ainda assim, arrisquei e fiquei na Romênia até concluir os estudos. Como não tinha intenção de voltar para a Polônia, peguei um trem que passou por Praga, onde desci, conforme planejado, juntamente com minha irmã que também estudava em Bucareste. Meu pai foi avisado e ficou nos esperando. Naquele momento, eu já havia decidido que iria para a França, mas para se conseguir um visto de entrada era praticamente impossível, no máximo obteria um visto de trânsito. 88 Muita gente declarava que ia para a Costa Rica ou para o Paraguai e recebia visto de trânsito de 24 horas para a França, mas sabia-se que essas pessoas não ficariam no país por 24 horas, mas por 24 anos. Assim foi feito. Antes de ir para a França, da cidade de Praga, onde havia encontrado meu pai, me arrisquei e voltei para a Polônia porque queria saber onde e como minha mãe havia morrido. Após 15 dias no país, consegui poucas informações além das que eu já sabia. Voltei para Praga e de lá fui para a França, onde trabalhei com um arquiteto que estava fazendo a reconstrução de casas e prédios na orla marítima de Dunquerque. Nesse período, o governo francês pagava todos os prejuízos aos que padeceram durante a guerra. Para isso, havia um procedimento: primeiro, teria que ser feito um levantamento do que existia antes da guerra. Aos sábados e domingos, nós visitávamos várias cidades da França e abordávamos as pessoas que haviam perdido seus bens. Explicávamos que o governo poderia pagar uma indenização. Com isso, conseguíamos trabalho; fazíamos um contrato de projeto de arquitetura anexando-o ao processo que teria que ser instaurado para se conseguir o financiamento. Isso aconteceu até 1949, quando cheguei à conclusão de que esse tipo de trabalho não oferecia um futuro profissional, então, resolvi abandonar a França e procurar um país mais jovem em que pudesse desenvolver um trabalho. E não me pergunte por que o Brasil. Talvez porque eu tivesse alguma informação sobre o país, que saía na revista Architecture d’Aujourdhui, na qual já se falava sobre a Fábrica Nacional de Motores, o Ministério da Educação e a Pampulha. Eu achava que o Brasil era um país predestinado a fazer arquitetura. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: O início da carreira no Brasil Cheguei ao Rio de Janeiro em pleno carnaval de 1949 e pensei que tivesse desembarcado num país de doidos. Fiquei alguns meses no Rio, mas não encontrei trabalho. Havia um conhecido nosso chamado Luciano Korngold e fui procurá-lo. Trabalhei com ele alguns anos em São Paulo até montar meu próprio escritório, que lidava não somente com projetos, mas funcionava também como construtora, o que me levou a procurar fornecedores que trabalhassem com alvenaria ou mesmo marceneiros. Logo descobri quais eram os bons marceneiros de São Paulo. Percebi também que não havia uma organização maior em que se pudesse comprar móveis prontos. Como arquitetos, desenhávamos primeiro a casa e depois os móveis, que deveriam ser condizentes com a arquitetura. Fabricados sob encomenda, os móveis não passavam de verdadeira seqüência de protótipos. Comecei a pensar em produção de pequenas séries, e, assim, fundei a L’Atelier há 25 anos, com móveis mais residenciais do que para escritórios. Coincidiu com uma época muito propícia para novas idéias nessa área porque as pessoas estavam começando a se preocupar com mobiliário contemporâneo. Algumas lojas, como a do Joaquim Tenreiro5, a Branco e Preto e a Ambiente já existiam no Brasil e, em particular, no eixo São Paulo - Rio de Janeiro. Pouco a pouco fui tomando contato com a área de design através dos trabalhos que fazia para complementar as propostas de arquitetura. Anteriormente, não havia um interesse maior de minha parte nesse sentido. Eu não conhecia madeira como o Tenreiro, que era um artesão de sensibilidade extraordinária e que conseguia tirar da madeira um número incrível de possibilidades. No Brasil, havia madeiras que eu nunca havia visto. As madeiras do meu país são brancas e em geral moles. As madeiras daqui comem os dentes das serras. Devido ao clima, havia também o problema da cola: colava-se a madeira num dia e no dia seguinte já estava soltando. 5 Joaquim Tenreiro (Portugal, 1906 – Brasil, 1992) foi o precursor na busca de um novo estilo para o mobiliário. Sua produção tornou-se um marco definitivo para a história do design no Brasil. 89 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Paralelamente à atividade de design, continuei fazendo arquitetura, sendo que na L’Atelier, além de ter a responsabilidade de criar produtos, eu também era o administrador da empresa. Na área administrativa eu contei com a ajuda de meu pai. Atualmente, a L’Atelier não é só minha. Vendi uma parte para um grupo que o administra e nesse grupo existem outras indústrias: de plástico e de fechaduras e, o que se faz em termos de móveis, passamos a fazer também com outros produtos. Muitas pessoas fizeram parte dessa equipe que se chamava departamento e desenvolvimento de pesquisas. :: A experiência de criar e produzir objetos 90 Nos anos de 1950 e 1960, existia idéia de os arquitetos montarem sua própria firma e, através disso, ter uma produção. Essa idéia foi se desgastando e se tornou muito difícil porque, já naquela época, sofríamos com a falta de capital de giro, com a falta de capital para novos equipamentos, etc. Hoje em dia, não dá mais para trabalhar nesse esquema porque, pensando em tecnologia, você se limita. Para se trabalhar com plástico injetado, por exemplo, seria necessário um maquinário que ocupasse um grande espaço e isso custa caro, embora ainda hoje haja pessoas fazendo móveis quase como uma escultura, peças únicas e assinadas, como se estivesse fazendo um violino. Tenho uma certa preocupação com o partido básico presente em todos os projetos. Não tenho preocupação direta com o desenho brasileiro; eu o faço simplesmente porque vivo no Brasil. Tenho impressão de que, se existe alguma coisa em mim, seria uma confissão que eu não deveria fazer. Não consigo conviver bem com muita rigidez. O ângulo de 90 graus, por exemplo, é algo que eu admiro, mas não posso fazer. As coisas que eu faço acabam ficando um pouco líricas, um pouco enfeitadas, enfim, existe sempre um elemento que não procede de pureza ou limpeza. Esse espírito de limpeza que dominou por várias décadas a arquitetura e o design e que, inclusive, eu abracei como causa na época da faculdade, hoje não faz muito sentido para mim. Eu me lembro que nos projetos que A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: fiz durante a faculdade batalhei pela limpeza das formas, mas depois, não sei bem o que aconteceu comigo porque comecei a ver que as pessoas não eram assim, ninguém era reto e então, cheguei à conclusão de que as formas mais verdadeiras, mais próximas de mim eram as morfológicas e não as naturalmente de linhas retas. Hoje sinto existir uma dupla preocupação com o corpo humano: a primeira preocupação gera a necessidade de alojamento, de abrigo, que talvez seja uma reação às vicissitudes da vida e mais, uma tentativa proteção; a segunda preocupação está relacionada com a compreensão de toda a problemática da ergonomia. Em suma, acho que o ato de criar não procede, no meu caso exclusivamente, ou mesmo predominantemente da reflexão lógica ou rigorosa, o que se poderia esperar de um espírito científico. Tem muito mais a ver com algo de intuitivo, até sensual, apenas censurado e conferido no seu desenvolvimento pelo racional. No fundo, uma procura incessante de reconciliar o racional e o emocional. Ambos os lados tendo que encontrar sua satisfação. Tentando explicar de outra maneira, seria como se um objeto a ser criado tivesse que conter uma mensagem de ordem não lógica que satisfizesse necessidades mais complexas e de difícil explicação. Que necessidades são essas? Qual a satisfação estética? Qual a ordem psicológica procedente de saudosismos e aliviante de neuroses? É óbvio que tudo isso não pode acontecer ao preço do sacrifício da lógica: conforto, adaptabilidade aos meios de produção e outros itens necessários ao bom desenvolvimento de um objeto. :: A Bauhaus Não tive um rompimento em si com a Bauhaus6, foi mais que isso, foi com a racionalidade em si. Mesmo porque a Bauhaus não é tão racional 6 Escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha. A Bauhaus foi uma das maiores e mais importantes expressões do que é chamado modernismo no design e na arquitetura, uma das primeiras escolas de design no mundo. 91 :: Depoimentos - IDART 30 Anos quanto se propaga. Veja, por exemplo, a Cadeira Barcelona7, cujos pés são soldados no ponto em que se cruzam. A pureza, no caso, existe mais na forma que na tecnologia empregada em sua execução. Um canto em ângulo reto requer uma cisão no material, uma interrupção em sua continuidade e um estudo de encaixe ou de soldagem, que não se faz necessário no caso de cantos arredondados. A preocupação da Bauhaus com a racionalidade existe mais no conceito. Seria mais um despojamento de ornamentos. O pós-moderno apresenta-se como um movimento de caráter lúdico. Minha preocupação, na verdade, é outra; seria mais uma identidade de ordem emocional, que hoje confesso sem temores, o que seria impossível tempos atrás, pois existia uma cobrança no sentido contrário. :: O desenho industrial no Brasil 92 O Brasil está apto a receber ou a desenvolver qualquer tecnologia de ponta, de baixa complexidade e que não requeira um grande investimento de capital. O problema maior aqui, em se tratando de tecnologia, é seu custo e não o não retorno, por impossibilidade de venda em grande escala devido ao baixo poder aquisitivo de grande parte do consumidor em potencial. Se pegarmos como exemplo a cadeira em polipropileno injetado introduzida no Brasil pela L’Atelier, que comprou o know-how da Hille International, de Londres, um desenho de Robin Day e pesquisa executada há vinte anos em conjunto com a Shell (fornecedora da matériaprima), essa pesquisa deveria responder principalmente a fatores como durabilidade do material. Na época, comprei a pesquisa e os projetos prontos, não poderia bancá-los aqui. Creio que nenhuma firma poderia porque só para fazer o molde em aço levaria pelo menos um ano. A Hille fez o primeiro molde, que não deu certo, e partiu para o segundo. Imagine o custo. No Brasil, seria impossível. 7 Criada por Mies van der Rohe, a Cadeira Barcelona foi feita para o pavilhão alemão na Exposição Internacional de Barcelona em 1929. Com estrutura metálica, é considerado um modelo clássico de design, correspondendo às determinações funcionais de caráter técnico, utilitário, conforto e solidez. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: No entanto, existem outros materiais que não exigem um ferramental tão sofisticado. A L’Atelier produziu uma linha chamada Staff que tem os pés executados em ferro fundido (como as antigas carteiras escolares, bancos de jardim ou máquinas de costura). É um material de resultado um tanto rústico, mas que resolvi admitir porque estava perfeitamente dentro do intuito de se trabalhar com as condições existentes, proposta que me foi feita pelo departamento de marketing da própria L’Atelier. Lancei mão de uma tecnologia à minha disposição e diminuí o custo da produção e do produto. Assim como admito ter pagado os royalties e trazido para cá produtos de alta tecnologia, tenho desenvolvido experiências com material plástico misto usando a técnica de vacuum-forming. É o caso da porta de alguns móveis para escritório, executada com a intenção de serem maleáveis e firmes ao mesmo tempo, e cujo sistema de abertura é semelhante aos de certas portas de garagem, se auto-enrolando. Com o uso da técnica de vacuum-forming, a porta adquiriu ranhuras, permitindo o procedimento. Nessa linha para escritório, fizemos também em plástico algumas peças e acessórios, como gavetas e encaixes para canetas e papéis. 93 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Poltrona em jacarandá, 1958. 94 Poltrona em jacarandá, 1957. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Poltrona em jacarandá e couro, 1962. 95 Banco redondo feito para a Pinacoteca do Estado de São Paulo. :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: JOSÉ CHAVES :: Início da carreira Não tive uma formação profissional convencional. Minha formação começou na Escola Técnica Industrial de Porto Alegre, experiência semelhante ao que é feito pelo Senai hoje em dia. Foi em 1943, quando eu tinha 13 anos; hoje tenho 53. Meu envolvimento maior, em termos profissionais, tem sido na área de projeto. A maior parte desse período foi destinada ao desenho de mobília. A Escola Técnica Industrial, em Porto Alegre, como a Escola Técnica Getúlio Vargas, em São Paulo, representava uma experiência educacional muito importante porque havia oportunidade de se envolver com estudos, além do currículo normal oferecido pelas outras escolas. Eu tive uma grande experiência em desenho e, também, em prática de oficinas como madeira, metal, cerâmica, artes gráficas, eletrônica e mecânica. 96 No fim do curso, tínhamos que apresentar um trabalho desenvolvido numa dessas oficinas, escolhi a madeira e apresentei uma cadeira. Concluída a escola, comecei a trabalhar como desenhista de móveis e desenhista de arquitetura, experiência que foi até 1961. Nesse período, freqüentei o escritório de planejamento de interiores de Luís Florêncio Braga, envolvendo residências, escritórios e lojas, o que sempre implicava desenho de mobília. Foi uma experiência incrível. Praticamente, todo o encaminhamento posterior de vida universitária veio pela formação básica da escola técnica industrial e do escritório do Luís Florêncio Braga. Em 1961, vim para São Paulo e fui trabalhar no escritório do Ítalo Bianchi, que, na época, havia fundado o IAB1. Após um ano, ele me convidou para dar aula no IAB. No ano seguinte, montei um escritório de projeto de interiores. Fiz, inclusive, trabalhos profissionais para Porto Alegre. 1 Instituto dos Arquitetos do Brasil. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Em 1968, fui convidado para dar aula na FAAP2 e, até então, minha formação era a da escola técnica. Na FAAP, comecei a lecionar desenho. Na época, a estrutura de cursos correspondia a um verdadeiro picadinho. Era uma série de sete ou oito cursos que não se amarravam: arquitetura de interiores, artes gráficas, cerâmica e outros. Os cursos estavam pendurados num título da Faculdade de Artes Plásticas, e eu, pessoalmente, questionava muito essa estrutura, achava que a experiência de artes plásticas não necessitava de graduação, não prescindia de diploma. Ainda penso que as artes plásticas devem representar um reduto realmente livre de produção. Em 1969, eu, o Ubirajara Ribeiro e mais alguns colegas, como Maurício Nogueira Lima e Antonio Carelli, apresentamos uma proposta de reestruturação da faculdade, que foi aceita pela diretoria. Essa comissão foi a responsável pela criação do curso de Desenho Industrial, Comunicação Visual e um curso chamado, na época, de Desenho e Plástica, que se destinava à formação de professores. Os cursos foram reconhecidos pelo Ministério da Educação e começaram a funcionar a partir de 1970. O que tínhamos como referências eram os cursos da FAU/USP e da Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro. E, naturalmente, uma série de referências históricas que envolviam a Escola de Ulm e a Bauhaus. Ainda em 1969, a Faculdade de Artes Plásticas deu uma peneirada naqueles oito cursinhos, e, ainda vinculados a ela, ficaram os cursos de Desenho Industrial, Programação Visual e Desenho e Plástica. Eram cursos de: formação de profissionais, formação de designers, tanto no sentido da mensagem como no sentido do objeto, e também de formação de professores de desenho. Nesse momento, mudou a diretoria da FAAP, começaram a analisar o currículo dos professores, e ficou claro que eu não tinha formação universitária, embora já estivesse atuando como professor e tivesse pertencido a uma comissão que havia reestruturado os cursos da escola. Recebi a informação de que, por isso, não poderia dar aula numa faculdade, 2 Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo. 97 :: Depoimentos - IDART 30 Anos no máximo, eu seria auxiliar de ensino. Não aceitei, mas tomei a decisão de fazer faculdade. Prestei vestibular para desenho industrial, entrei na faculdade em 1970, fiz os quatro anos de curso e me formei em 1973. A experiência como estudante foi incrível, embora tivesse sido uma experiência sui generis porque fui aluno de um curso que eu tinha ajudado a estruturar. Quando concluí a faculdade, meu escritório já estava andando com alguma segurança e eu já estava dando aula em faculdade. Saí do IAB em 1962. Quando comecei a dar aula na FAAP, em 1968, antes da reformulação do curso, também retomei as aulas do IAB. Minha experiência como professor foi interrompida em 1969, na FAAP, mas continuou no IAB enquanto cursava a faculdade. 98 Em 1974, resolvi fazer arquitetura em Guarulhos e concluí o curso quatro anos depois. Em 1976, aconteceram algumas coisas interessantes sob o ponto de vista profissional. Uma delas é que fui dar aula na FAU de Campinas, na cadeira de desenho do objeto, a convite de alguns colegas, entre eles o Ary Rocha. No próprio curso de arquitetura de Guarulhos fui convidado para lecionar desenho do objeto, além de dar também projeto de produto numa faculdade de desenho industrial que existe junto à de arquitetura, em Guarulhos. Nesse mesmo ano, fiz parte de uma equipe enorme que desenhou o trem do Metrô da linha leste-oeste de São Paulo: o Ary Rocha, a Adriana Adam, alguns estudantes de arquitetura da USP, além de dois designers italianos contratados na época. Ainda em 1976, fui contratado pela Arredamento para desenvolver uma linha de móveis. A experiência em desenho de mobília sempre existiu por força de projetos de interiores, em que sempre desenho uma ou outra peça ou até pequenas séries de objetos. Como o início da minha formação se deu no liceu, a escala do objeto é a que eu mais gosto de fazer. Continuo fazendo projetos de interiores, coisa que não abandono porque acho que fornece um subsídio muito grande de experiências no desenvolvimento de produtos industriais. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Você parte para uma peça, seja ela uma estante, uma cama ou uma mesa, e isso te dá oportunidade de pensar plasticamente um produto, que depois pode ser jogado numa linha a ser desenvolvida industrialmente. Para explicar a aproximação e o interesse pelo moderno, tenho que voltar ao escritório do Luís Florêncio Braga, de formação rigorosa. Na época, havia três pessoas em Porto Alegre que faziam design de interiores moderno cuja formação universitária as levou ao conhecimento do que estava acontecendo em termos de objeto moderno. O que produzíamos no escritório eram peças de mobiliário, e a mobília não era uma peça isolada, ela deveria ser tratada estruturalmente com uma série de outros objetos dentre os quais: os painéis, a iluminação, a vedação, as divisórias, a caixilharia e o piso. Era uma enormidade de elementos a serem tratados no interior de determinado espaço ao qual teria que se adequar à mobília. Isso representava a Escola Moderna de Porto Alegre, que aglutinava uma série de pessoas que não só cuidavam de arquitetura, mas também de mobília. Lá estavam o Cláudio Araújo, o Carlos Antonio Mancuso, o Miguel Pereira e o Maximiliano Fayet, todos por volta dos 50 anos de idade. :: A informação moderna As informações que tínhamos chegava por intermédio das faculdades de arquitetura e de belas-artes e, também, pelos canais comuns de informação: viagens e publicações. Mas, se você queria fazer uma casa moderna, você deveria procurar um desses jovens arquitetos, e muitos deles trabalharam com o próprio Luís Florêncio Braga, que não era arquiteto, e sim, formado na escola de belas-artes. O sentido de moderno era algo, até certo ponto, radical. Como todos os movimentos, todas as propostas que têm a intenção de mudança acabam sendo um pouco radicais, tivemos que romper com alguma carga de informação que existia anteriormente. O que nos movia, naqueles idos dos anos 50 era a produção de objetos absolutamente despojados de ornamentos. Além disso, algumas empresas já se mostravam interessadas em mobília industrial, o próprio Cláudio Araújo havia desenvolvido uma linha de mobília de escritório. Já se usava a serralheria e o tubo de 99 :: Depoimentos - IDART 30 Anos secção quadrada. Então, surgia uma estrutura limpa, sem detalhamento inútil, já dimensionada para suportar um gaveteiro ou um tampo de mesa, organizada formalmente para apresentar rigidez, mas completamente despida de ornamento. :: O design em escala industrial O homem gaúcho pensa politicamente. Havia, em alguns escritórios, um questionamento muito grande sobre o tipo de cliente, um questionamento ideológico, se ele representava uma amostragem da sociedade e qual seu comportamento. Era preciso saber se o que você projetava estava de acordo com o tipo de sociedade em que você estava vivendo. 100 A maior parte do que nós desenvolvíamos como projeto não era feita em escala industrial, eram pequenas séries que, eventualmente, poderiam ser reproduzidas em maior escala. Às vezes, éramos requisitados para resolver um problema de armário embutido para uma casa grande e acabávamos desenvolvendo um tipo de armário com uma tal qualidade que poderia ser reproduzido. Então, você começa a ter uma preocupação em repetir operações, repetir certos componentes, em suma, modular. Eu devo ter desenhado alguns milhares de metros quadrados de armários e, de um para outro, você introduz um aperfeiçoamento em termos de produção e funcionalidade. Não havia, naquela época, a caracterização de produção industrial, mas a preocupação de que determinado volume de coisas produzido já tivesse um direcionamento no sentido da produção. A primeira experiência em trabalhar com escala maior foi ainda em Porto Alegre, numa empresa chamada Fulginite, em 1956/1957, pertencente a uma família de italianos que vinha de três gerações. A empresa tinha tradição em artesanato, mobília sob encomenda, e estava começando a fazer para a indústria, nessa época, desenvolvi alguns objetos para uma linha de escritório, mas sem o sentido sistêmico que tem hoje. O arquivamento era uma coisa muito primária, o que se usava era a pasta A-Z. Na época, havia um tipo de mobília-modelo para escritório, algo parecido com o padrão FMI, de estrutura metálica e integralmente de madeira. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: As influências profissionais e o estilo brasileiro As pessoas responsáveis por desbravar o terreno em direção a uma linguagem moderna de características brasileiras foram fortemente influenciadas pelo design da Itália e da Alemanha, basicamente. Admito que uma parte da minha formação na escola técnica foi alemã. O intercâmbio cultural entre os países tem facilitado muito o não acontecimento do estilo brasileiro. Você tem, no seu escritório, todas as publicações específicas editadas no mundo inteiro. Também as pessoas que consomem, que estão procurando o que comprar, têm acesso a essas informações. Por outro lado, a tecnologia e os equipamentos de produção industrial estão disponíveis no mundo inteiro, e, importados ou produzidos sob licença no Brasil, lhe permitem fazer quase todas as coisas que existem na Finlândia, na Itália e na Alemanha. Falar de um estilo brasileiro é algo muito difícil porque o que se produz aqui está comprometido com as possibilidades do equipamento industrial, como a própria investigação da forma, por exemplo, um sofá bolado pela Cassina. Você começa a fazer aqui o que chamaríamos de styling. A menos que aconteça uma mutação na figura humana, a ergonomia, a altura, o encosto, a curva lombar. Uma vez definido tudo isso, você tem um lugar adequado para um determinado tipo de uso, de descanso e de trabalho. Não vejo muita condição de se definir um estilo brasileiro. Hoje, mais do que nunca, toda a possibilidade de produzir está muito distribuída pelo mundo. O que se poderia pensar em termos de mobília, seria quanto o é possível ser produzido no Brasil se fossem analisadas nossas condições econômicas, segundo a conveniência de um país pobre como o nosso. Se tivéssemos a coragem de assumir essa pobreza, produziríamos coisas tão simples que não haveria essa enorme variedade de objetos no mercado. Os chineses têm um casaco que esquenta bem e é o conforto de milhões de pessoas. Então, não se pensa em fazer outro casaco, é uma forma final. Se assumíssemos a nossa condição de pobreza, acabaríamos por encontrar formas mais limpas e rigorosas. Teríamos uma margem muito maior de pesquisa, poderíamos executar projetos com uma carga de 101 :: Depoimentos - IDART 30 Anos reflexão bem mais profunda. Nós somos uns adolescentes, fazemos tudo diferente todos os dias com o pretexto da criatividade e da liberdade. :: A trajetória do desenho industrial no Brasil As perspectivas para a superação do mal que assola a trajetória de nosso desenho industrial, centrado na ausência de uma consciência da necessidade de se criarem condições para a atuação efetiva de desenhistas industriais dentro das indústrias, não podem ser resolvidas de maneira satisfatória em curto prazo. O mínimo que se espera para que uma profissão se caracterize como necessária numa sociedade é que haja demanda. Eu acho que o empresário brasileiro ainda não quer que o designer trabalhe, ele próprio nem entende o que significa a atuação desse profissional na sua indústria. 102 Existem aqueles que têm um determinado poder aquisitivo e mandam buscar o desenho lá fora. O Leo Seincman3, por exemplo, que tem os direitos da Cassina no Brasil, poderia fazer muito pelo designer brasileiro porque faz exigências quanto ao desenho. O Carlo Fongaro desenhou para ele na época da Ambiente e até hoje faz algum desenho. Há pouco tempo, ele estava desenvolvendo um programa de cadeira com o Ulf Sabey. Eu trabalhei aqui com uma equipe que desenvolvia o trem do Metrô. Temos condições absolutamente satisfatórias para fazer esse tipo de trabalho. Por que precisamos pedir a bênção para a mãe Europa, trazer profissionais de lá, pagar em dólar? Na verdade, não existe uma política que favoreça o emprego do profissional de desenho industrial na indústria e em outros setores que dele necessitem. A própria profissão não é regulamentada. O industrial europeu não vai a uma feira, não coloca um produto no mercado sem ter a assinatura do designer, do profissional responsável pelo desenvolvimento daquele produto. O próprio consumidor 3 Empresário e dono da loja Probjeto, Leo Seincman teve fundamental importância para o crescimento do design no Brasil. A loja, que completou 40 anos em 2004, é a única no mundo licenciada para produzir e exportar os móveis da italiana Lamm, conhecida por seus produtos com design arrojado. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: faz esse tipo de exigência. :: Atividade em sala de aula Eu me comprometo muito com a experiência. O que me preocupa muito na formação do designer é a experiência objetiva, o fazer concreto. Um caminho possível seria a formação de um profissional com tal capacidade de interferir na produção industrial que poderia modificar o tipo de quadro que o empresário faz com o design. Ele venderia o produto nas empresas, não de uma maneira superficial, mas na própria produção. Se fosse possível formar um designer de maneira que pudesse mostrar que ele interfere na produção e modifica uma família de produtos, esse profissional passaria a merecer o respeito dos empresários e de toda a equipe junto à qual ele está atuando. Precisamos riscar a idéia de que projeto é prancheta e papel. O problema é conviver numa comunidade complexa. Nosso universitário tem uma formação basicamente teórica, não está preparado para atuar no mercado. Para que haja uma abertura desses novos caminhos é necessário que a iniciativa parta da própria escola para a formação de novos profissionais. 103 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: KARL HEINZ BERGMILLER (Alemanha, 1928) Designer, formado pela escola de Ulm, na Alemanha, Karl Heinz Bergmiller veio para o Brasil e desenvolveu um design que se destaca pela inovação e qualidade. Também contribuiu com projetos para indústrias, instituições culturais e outras instituições pedagógicas ligadas ao design. :: Início da carreira Estudei com o Alexandre Wollner1 e com o Almir Mavignier2 em Ulm, na Alemanha. Praticamente, foi o Wollner quem indicou o meu nome para uma bolsa de estudos no Brasil. Não vim com a intenção de ficar por muito tempo, somente durante o ano que duraria a bolsa, talvez um pouco mais, e esse tempo está se prolongando por 26 anos. 104 Minha carreira sempre esteve relacionada com o mobiliário, à mobília brasileira; quase 90% dos meus projetos pertencem à área do mobiliário. Estou tão integrado nessa empresa que não tenho tempo para me dedicar a outro tipo de projeto, porém minha formação não se restringe ao mobiliário. Ela compreende o desenho industrial no seu sentido mais amplo, uma formação polivalente, como a que existe no Brasil, onde são desenvolvidos desde equipamentos cirúrgicos até maquinaria pesada, incluindo-se aí o mobiliário. O mobiliário é um produto de baixa complexidade tecnológica, sobre o qual se raciocina como uma marcenaria. Teoricamente, seria possível fazer qualquer produto, excluindo as cadeiras de escritório, que são verdadeiras 1 Alexandre Wollner (Brasil, 1928) começou seus estudos no Instituto de Arte Contemporânea do Masp. Estudou na Escola Superior da Forma, de Ulm, Alemanha. Participou da criação da Escola Superior de Desenho Industrial -- ESDI, no Rio de Janeiro. É autor de inúmeras logomarcas, como a da Klabin, da Santista, da Eucatex e do Itaú. Mantém escritório em São Paulo. 2 Almir da Silva Mavignier (Brasil, 1925), pintor e artista gráfico, iniciou seus estudos com Arpad Szenes, Axl Leskoschek e Henrique Boese, em 1945, no Rio de Janeiro. Entre 1946 e 1951, funda o Ateliê de Pintura e Modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro (atual Museu de Imagens do Inconsciente) com a psiquiatra Nise da Silveira. Naturaliza-se alemão em 1981. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: máquinas pela maneira como são elaboradas hoje numa marcenaria, mas, dificilmente, o marceneiro consegue repetir, fazer uma segunda, uma terceira, uma quarta e muito menos elaborar todo um sistema, o que se torna algo incomponível fora da tecnologia industrial. :: O design de móveis O investimento para um móvel elementar é muito baixo, exceto no caso de poltronas sofisticadas, giratórias, que, às vezes, são bem mais complexas do que um liquidificador. Produtos fabricados na Escriba,3 há 25 anos, ainda estão em linha, como alguns tipos de mesas. Temos uma linha de escrivaninhas, mesas com quatro pés e um gaveteiro, que continuam sendo produzidas da mesma forma que quando foram criadas. No Brasil, encontrei no design de móveis um campo melhor de atuação. Quando ainda estava em UIm, meus interesses não se dirigiam exatamente para o mobiliário. Na Alemanha, desenvolvi, durante quatro anos de estudo, uma cadeira para meu próprio uso. Era desmontável, compacta, podia ser transportada, e eu a realizei como um exercício. Depois de pronta, cheguei a entrar em contato com a Knoll lnternational, mas ela estava interessada somente em grandes nomes. Então, cedi os direitos autorais para uma outra empresa, que a produziu com grande sucesso, não no sentido comercial, mas no sentido cultural, e ela acabou entrando em todas as coleções de design publicadas naquela época. Foi um dos primeiros produtos alemães que fez parte da coleção do Museu de Arte Moderna de Nova York. Talvez tenha sido essa a motivação para atuar na área do mobiliário. Na época de estudante, em Ulm, as cadeiras de aula eram muito elementares: um banquinho de madeira, de pinho, sem encosto e com duas alturas. Os banquinhos foram produzidos dentro da própria escola, e havia um para cada aluno, que os carregava para a sala de jantar, para a sala de trabalho ou para o quarto. Não tenho registro fotográfico dessa cadeira que projetei na escola. 3 Fábrica pioneira do design nacional de móveis para escritório e líder em seu segmento. Atua no mercado há mais de quarenta anos. 105 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Lembro que era desmontável. Normalmente, um produto desmontado, se for, por exemplo, de linha colonial, parece mais um monte de ossos, você não consegue juntar os componentes. Minha cadeira desmontada era tão compacta que, numa caixa onde caberia uma montada, caberiam cerca de oitenta desmontadas. O produto é, inclusive, patenteável. Não é registrado, mas propõe um novo sistema de conexões. Essa inovação também apareceu em outros produtos, algumas cadeiras montadas junto com mesa que eu não utilizei no Brasil, apesar de ser um processo muito elementar, ainda que exigindo alta precisão para se obter uma boa resposta. :: A motivação para desenvolver um projeto 106 Estou na Escriba há dezoito anos e aqui tenho encontrado um grande incentivo para o desenvolvimento do meu trabalho. Cabe ao próprio empresário perceber a importância de se trabalhar com designers. Nesse setor, o profissional pode ser ótimo, mas não encontra um respaldo da parte dos industriais, um incentivo para desenvolver pesquisas, principalmente por não ter condições adequadas de trabalho. O que foi feito na Escriba foi uma verdadeira discussão entre quem projeta e quem comercializa o produto. Nós discutimos todos os problemas e levamos isso a público. Na Escriba, fazemos mobiliário de escritório, o que é totalmente diferente de fazer mobiliário residencial. No caso de mobiliário de escritório, tudo faz parte de um sistema, de um programa, nunca estamos desenvolvendo um móvel isolado. Todos os programas em conjunto fazem o Programa Escriba e todos os produtos mantêm entre si uma certa relação, seja de natureza formal ou construtiva ou de racionalização. Uma peça usada numa mesa pode, por acaso, ser usada num sofá. :: A sutil ligação dos objetos projetados A preocupação de relacionar todos os produtos fabricados não começa na Escriba, isso aparece na Mobília Contemporânea, do Michel Arnault,4 4 Michel Arnault é considerado um dos introdutores do modernismo no móvel brasileiro. Nas décadas de 50 e 60, já produzia móveis em série com o intuito de popularizar o design no A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: empresa que adotou tal comportamento. Eu ouvi do próprio Michel, anos atrás, que eram feitos componentes considerando-se todos os produtos executados. Com cem componentes, era possível fazer toda a linha de móveis. É claro que o programa que ele estava executando na época era muito menos complexo do que o que estamos executando, mas a grande beleza do resultado deveria servir de exemplo para as empresas. As pessoas no Brasil ainda não sabem o que é design. Empresas que usam o “design” e que copiam os objetos baseados nos acertos comerciais porque são incapazes de enxergar vão pagar caro por isso, pois copiam um pouco da firma A, um pouco da firma B, e o resultado é um coquetel. A empresa está fazendo enganosamente um produto barato porque não tem uma programação sistemática e científica. Na própria Dinamarca, cujo design é famoso no mundo todo, andei pelas ruas e o comércio de móveis parecia um verdadeiro “museu de horrores”. No Pacific Design Center, em Los Angeles, existe um andar onde está o “chantilly”, as melhores empresas do mundo, enquanto nos outros andares a coisa se deteriora. Os produtos da antiga Mobília Contemporânea, do Michel, foram comprados, principalmente, por estrangeiros e por universitários. O brasileiro médio não aceitou aqueles produtos. Os dois arquitetos da Innovator, que estiveram na Bienal Internacional de Desenho Industrial do Rio de Janeiro, procuraram, na época, uma empresa que desenvolvesse os produtos no Brasil, mas o mercado não estava sensível para o problema que o Michel havia levantado quando criou o Peg-Lev. Os produtos fugiam do conceito da Escandinávia, onde são de altíssima qualidade, produtos que passam de pai para filho. No caso da Innovator, são produtos feitos mais para o consumo. Anos mais tarde, a Tok & Stok passou a produzílos aqui e exatamente no ponto em que a Mobília Contemporânea falhou, porque o mercado não estava preparado. Eles recobraram a idéia com grande êxito comercial. Brasil. Suas criações apresentavam um desenho claro e funcional, voltado principalmente para consumidores de diferentes classes sociais. 107 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: As idéias fundamentais dos projetos Para iniciar um projeto de design é necessário considerar os seguintes fatores: o problema humano, o problema econômico, o problema de ordem tecnológica e o problema de ordem formal. No Rio de Janeiro, durante alguns anos, desenvolvemos produtos na área do mobiliário escolar, porém o resultado não foi bom porque o Estado compra, em primeiro lugar, devido ao preço. Ele opta sempre pelo mais barato e não se preocupa com a durabilidade ou com a adequação do móvel para as crianças. Na Alemanha, em 1978, havia oito tamanhos de móveis para crianças. Aqui, temos que nos contentar com um tamanho-padrão; as crianças que se adaptem a eles. A criança vai ter, no mínimo, problemas de saúde em algum momento da vida devido à má postura. No caso de móveis de escritório, você tem que estar familiarizado com o uso do produto e fazendo o acompanhamento desse uso. 108 :: Particularidades na maneira de trabalhar Em primeiro lugar, executo uma análise dos dados que me são apresentados. Depois, crio o perfil do produto e, dentro das alternativas que me são apresentadas, escolho uma, faço um teste e entro no problema tecnológico, porque no móvel, principalmente no caso das cadeiras, podem-se detectar quais foram as influências que contribuíram para a sua modificação e, na grande maioria, sempre foi a tecnologia. O exemplo mais fantástico disso é a Cadeira Thonet,5 criada por volta de 1830, quando foi inventado o processo de envergar a madeira com vapor. Existem imitações idiotas da cadeira executadas até em tubo de 5 A história da madeira vergada está atrelada à própria história de Michael Thonet (1796-1871). Em 1859, Thonet criou a célebre Cadeira Thonet, considerada o produto industrializado mais bemsucedido do século XIX, um marco no desenho industrial. Formada por apenas seis peças de madeira, dez parafusos e duas porcas, apresenta extrema facilidade de montagem. É símbolo de um móvel eterno, clássico, um ícone conhecido no mundo inteiro. Desse famoso modelo foram produzidos 30 milhões de exemplares até 1930. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: aço. Depois, surgiram os produtos do Marcel Breuer6 e do Mies van der Rohe,7 na época da Bauhaus8, nos quais foram utilizados tubos de aço, mas ali, as coisas eram totalmente diferentes. Na verdade, desde o século passado, já existiam produtos fabricados em tubo de aço, mas a Bauhaus inventou o processo de envergá-lo, mesmo a frio. Então, entraram os laminados de madeira colados e moldados e, por fim, nos anos 40, a primeira cadeira de plástico, de fiber-glass, criada por Charles Eames,9 que tomou emprestada a tecnologia da construção de barcos para executá-Ia. Depois surgiram as cadeiras de plástico injetado, executadas na base do sopro. Nesse momento, ninguém estava em condições de produzir uma ferramenta para desenvolver uma tecnologia avançada e investir em um maquinário ideal. O Leo Seincman10 faz parte da história do mobiliário brasileiro, principalmente por introduzir a cadeira dinamarquesa e a tecnologia aplicada para o desenvolvimento do seu trabalho. 6 Marcel Breuer (Hungria, 1902 – EUA, 1981), aluno da Bauhaus, tornou-se importante designer, 109 criando desde objetos de uso cotidiano até projetos arquitetônicos que modificaram o conceito de modernidade. A simplicidade das formas e a integração com o espaço foram os princípios que guiaram Breuer para um design sofisticado e racional. 7 O arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) é considerado um dos principais nomes da arquitetura do século XX. Foi professor da Bauhaus e um dos formadores do que ficou conhecido por International Style. Mies van der Rohe possuía uma arquitetura sempre voltada ao racionalismo espacial. Sua concepção dos espaços arquitetônicos envolvia uma profunda depuração da forma, voltada sempre às necessidades do lugar. 8 Escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda, que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha. A Bauhaus foi uma das maiores e mais importantes expressões do que é chamado modernismo no design e na arquitetura, uma das primeiras escolas de design do mundo. 9 Charles Eames (EUA,1907-1978), arquiteto e designer, em 1940, conhece Ray Kaiser, artista plástica que mais tarde se tornaria sua esposa. Em 1946, já consagrado, foi objeto da primeira retrospectiva pessoal dedicada a um só design no MoMA. Ainda com sua mulher, criou vários móveis para a Herman Miller, na década de 50, baseado num protótipo exibido no concurso Organic Design in Home Furniture. 10 Empresário e dono da loja Probjeto, Leo Seincman teve fundamental importância para o crescimento do design no Brasil. A loja, que completou 40 anos em 2004, é a única no mundo licenciada para produzir e exportar os móveis da italiana Lamm, conhecida por seus produtos com design arrojado. :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: O pioneirismo do mobiliário no Brasil Os produtos estrangeiros exerceram grande influência no Brasil, como os da linha Knoll International, presentes em qualquer lugar do mundo, e os programas da Herman MiIIer, que influenciaram a concepção do mobiliário de escritório. Além disso, outros fatores também contribuíram para o desenvolvimento do design no Brasil: a ascensão da indústria automobilística, a construção de Brasília e uma certa sensibilidade dos governantes do Rio de Janeiro. Quando criaram a ESDI,11 havia um secretário de cultura sensível àquela proposta. Enfim, o clima era contagiante e favorável a uma conscientização da necessidade do design. Também foi criado o Núcleo de Desenho Industrial, por José Mindlin12 na qual muitos intelectuais estavam envolvidos com o assunto, além do mais, foram realizadas três Bienais Internacionais de Desenho Industrial. 110 A ESDI é uma escola que existe há mais de vinte anos. A Bauhaus fechou depois de catorze anos e Ulm, depois de treze. A ESDI tinha, nos seus primeiros anos, uma característica experimental. Atualmente, ela está ligada à Universidade Estadual do Rio de Janeiro e perdeu naturalmente sua primeira característica. Enfim, para que o desenho industrial brasileiro volte a se desenvolver, como era esperado naquele momento, seria necessário que se implantassem mudanças no setor econômico e educacional a fim de possibilitar um crescimento permanente dos nossos projetos e produtos. 11 Escola Superior de Desenho Industrial criada no Rio de Janeiro, em 1963, hoje faz parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 12 José Mindlin é um dos mais importantes bibliófilos brasileiros, abrigando raridades em seu acervo com mais de 30 mil livros entre ficção, poesia, teatro, biografia, ensaio, relato de viagem e muitos outros. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Cadeira SBM 680, 1958 111 Mesa Alberflex. Programa EA4, 1996 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: LÉO SEINCMAN Léo Seincman, que teve a iniciativa de investir no ramo de mobiliário, incentivando a produção dos designers brasileiros, foi de substancial importância para a expansão desse mercado. Em seu breve depoimento, expõe algumas das principais passagens das empresas que encabeçou ao longo de mais de trinta anos. Único desta série que não é designer, Seincman continua exercendo o mesmo papel de destaque, tendo, entre outras responsabilidades, a de introduzir algumas das mais modernas tecnologias do setor. :: Início da carreira 112 O começo do meu trabalho com móveis, em 1951, se deu em sociedade na loja Ambiente, situada à rua Martins Fontes. No início, importava móveis da Finlândia, de Alvar Aalto,1 logo em seguida comprava desenhos do Studio Palma, que pertencia a Lina Bo Bardi2 e ao Giancarlo Palanti.3 Posteriormente, convidei o arquiteto Roberto Claudio Aflalo para me assessorar na seleção de bons desenhos de móveis contemporâneos. Para desenvolver o trabalho, enviamos cartas para todos os designers que estavam produzindo móveis de qualidade na época: George Nelson, Yamagushi, Charles Ives e outros, solicitando a compra de seus desenhos. Pagaríamos os royalties para que pudéssemos produzí-los. Comecei a 1 Hugo Alvar Henrik Aalto (Finlândia, 1898 – 1976), arquiteto e pintor, também se notabilizou como designer de mobília, tecidos e cristais. Foi um dos primeiros e mais influentes arquitetos do movimento moderno escandinavo. 2 Lina Bo Bardi (Itália, 1914 – Brasil, 1992), arquiteta e designer, fundou as revistas Habitat e Mirante das Artes. Dentre seus projetos destacam-se a criação do Museu de Arte de São Paulo, o projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia, a restauração do antigo Solar do Unhão, na Bahia, e o Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo. 3 Giancarlo Palanti (Itália, 1906 – Brasil), arquiteto, pertenceu à segunda geração de arquitetos racionalistas do país. Sua obra italiana abrangeu desde o desenho industrial até projetos urbanísticos. O interesse comum em desenvolver um mobiliário moderno, produzido industrialmente, o leva a associar-se a Lina Bo e Pietro Maria Bardi no Studio de Arte e Arquitetura Palma. Ali, Palanti e Lina realizam uma série de móveis e vários projetos de interiores entre 1947 e 1950. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: receber respostas, não dos designers, mas das firmas para quem eles trabalhavam como a Knoll e a Herman Miller, empresas muito importantes porque investiam em pesquisas e em novas tecnologias de materiais. Dez anos depois, a Forma adquiriu direitos sobre a Knoll, e a Ambiente teve que parar de produzir as móveis da Knoll. Em dezembro de 1963, vendi minha parte para meu sócio na Ambiente e viajei para a Dinamarca. Em 1964, montei a Probjeto, iniciando a produção da Cadeira Dinamarquesa, projetada por Arne Jacobsen,4 feita com madeira moldada e flexível. A peça vendeu mais de um milhão de unidades no mercado brasileiro e é atual até hoje. A Cadeira Dinamarquesa sempre vai ser considerada um marco do design. :: As propostas de design internacional para o desenvolvimento no Brasil O mercado de design no Brasil ainda é muito pequeno, na maioria das vezes, o industrial não pode investir dinheiro e contratar um designer, garantindo-lhe um ordenado por mês porque o ônus é muito alto. Investir em pesquisa custa muito caro. Algumas firmas mantêm um departamento de design, como a Escriba, por exemplo, mas são raras as que investem no setor. Então, somos obrigados a recorrer às coisas de fora, que, cá entre nós, estão alguns anos na frente. Os royalties, quando feitos decentemente, não encarecem o produto, pelo contrário, facilitam o modo de produção. Um bom exemplo disso foi quando fiz negócio com a Cassina e mandei três pessoas para estagiar durante um mês na Itália. Lá, eles aprenderam o que demoraria dez anos para se desenvolver aqui. A espuma de poliuretano feita sob alta pressão não existia aqui, bem como a fiber-glass utilizada na produção de móveis. Na Itália, os estagiários aprenderam rapidamente esses processos. A Cassina, dentro dos móveis estofados residenciais, é a melhor do mundo e é ela que detém 4 Arne Jacobsen (Dinamarca, 1902-1971), arquiteto e designer, desenhou uma série de móveis, principalmente sofás, cadeiras e poltronas, todos em plástico moldado. 113 :: Depoimentos - IDART 30 Anos os direitos de produção do Mackintosh5 e do Rietveld6. Além de pagar um royalty baixo para a Cassina, eu também recebo tudo desenvolvido, com todos os detalhes técnicos e ainda me dou ao luxo de esperar um ano ou dois para eles tirarem todos os defeitos que, por ventura, possam existir no lançamento do produto. Até os dados mercadológicos eles me passam. Certa vez, enviei 5000 cartas para arquitetos de São Paulo, colocando a fábrica à disposição para desenvolver o que quisessem. Os únicos que ainda hoje estão produzindo alguma coisa, dentro dessa proposta, são o Fongaro desenvolveu uma Carlo Fongaro e o Sérgio Rodrigues.7 O linha de móveis para escritório produzida pela Probjeto. 114 Acho que deve existir uma integração entre o industrial e o designer. O industrial deve atuar mais como um coordenador que procura a assessoria de profissionais de diversas áreas. Para se ter uma idéia, em 1976, lancei os produtos do Mackintosh, do Rieteveld e os de Le Corbusier8. Que lucro esperava disso? Se conseguisse vender dez peças por mês, estaria satisfeito. Na verdade, o que introduzio com isso é um pouco das coisas que eu gosto e, também, um pouco de cultura. 5 Charles Rennie Mackintosh (Glasgow 1868 - Londres 1928). Arquiteto e designer, suas obras são dotadas de uma simplificação formal expressa em superfícies lisas e uniformes que resultam numa arte mais sóbria e funcional. 6 Gerrit Rietveld (Holanda, 1888-1964), arquiteto e designer, ainda estudante trabalhou com marcenaria e produção de mobiliário. Em 1917, influenciado pelo neoplasticismo, desenha a Cadeira Vermelho e Azul. A partir de 1919, passa a ser membro importante do movimento, contribuindo para a revista De Stijl. Em 1924, projetou a Residência Schröder, um marco da arquitetura moderna e do Neoplasticismo. 7 Sérgio Rodrigues (Brasil, 1927), arquiteto e designer, foi um dos renovadores do design brasileiro, principalmente com a criação da Poltrona Mole, em jacarandá e couro, em 1957. 8 Charles Édouard Jeanneret, conhecido por Le Corbusier (Suíça, 1887- França, 1965), foi o mais famoso arquiteto da escola modernista. De inúmeras facetas, fez escultura, móveis, paisagismo e pinturas. O racionalismo presente nas obras de Le Corbusier apontava para ações relacionadas à natureza, ao homem e à arquitetura. Entre suas obras mais importantes estão: Villa Savoye, na França, e Tsentrosoyuz, em Moscou. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: A exportação dos móveis brasileiros A ampliação do mercado de exportação encontra cada vez mais dificuldade, pois a mão- de-obra é ainda muito cara e o material também. A exportação de móveis não ajuda o país porque os móveis aqui fabricados não são considerados artigos de primeira necessidade lá fora. Uma vez, o assessor da Cassina disse que a reprodução de peças históricas do início do século 20 deveria ser feita da mesma maneira como era no passado, isto é, não destruindo a parte formal, e sim, adicionando elemento técnico mais moderno para melhorar a execução do produto. Como é puro artesanato, eu simplesmente destaco um ou dois marceneiros para trabalharem somente com isso. Assim como existem pessoas que compram um Picasso original, existem outras que compram uma gravura e também os que compram cópias feitas por qualquer um. Há mercado para tudo. :: As lojas de design A Ambiente foi a primeira loja em São Paulo a produzir peças assinadas. No Rio Janeiro, o Joaquim Tenreiro9 já fazia isso. Ótimo conhecedor de madeiras, bom pintor, bom escultor e excelente marceneiro, tinha uma loja na Rua Barata Ribeiro, mas não em escala industrial, eram somente peças artesanais. Numa ocasião, ele se aborreceu comigo porque comecei a fabricar uma mesinha que tinha sido publicada na revista Spazzio e ele já estava produzindo uma de desenho semelhante. No final, tudo foi esclarecido. Quando montei a Ambiente, eu não conhecia o Joaquim Tenreiro. Minha história começou, simplesmente, devido ao ambiente que freqüentava e pela visão que eu tinha que ter de um móvel adequado à arquitetura da época. Depois é que soube da existência de Tenreiro no Rio de Janeiro. Ele 9 Joaquim Tenreiro (Portugal, 1906 – Brasil, 1992) foi o precursor na busca de um novo estilo para o mobiliário. Sua produção tornou-se um marco definitivo para a história do design no Brasil. 115 :: Depoimentos - IDART 30 Anos é um caso único. Claro que existem artesãos fantásticos, mas nenhum teve a sensibilidade e a visão que ele teve de atuar no mobiliário, seguindo o conceito de acompanhar a arquitetura da época. Ele se fez sozinho. O Aflalo, que trabalhou dois anos comigo, sentiu que o negócio tinha futuro e montou, juntamente com outros arquitetos, a loja Branco e Preto. Faziam parte do grupo o Milan, o Jacob Rusti, o Miguel Forte e um chinês chamado Cheng Wa. Depois disso, o Sérgio Rodrigues abriu a Oca, e o Jorge Zalszupin abriu a L’ Atelier. O próprio Tenreiro abriu sua loja em São Paulo. :: O trabalho na Ambiente 116 A Ambiente começou com a primeira loja na rua Martins Fontes, um ponto considerado ruim para o comércio e, também, para as pessoas que passavam por ali. No entanto, os móveis que nós vendíamos eram muito bem aceitos pelos arquitetos, por serem modernos. A loja foi aberta no momento exato e a primeira linha de móveis de escritórios que o Fongaro desenhou para mim, em 1959, foi decorrente de uma necessidade do Lúcio Costa.10 O Lúcio não fazia projetos para empresas que construíam prédios de apartamentos, ele não queria fazer concessões às necessidades comerciais. Certa vez, um grande amigo dele, o Odilon Ribeiro Coutinho, deputado da Paraíba, pediu-lhe um projeto de um prédio comercial, construído atrás da Candelária da praça Pio X, no Rio de Janeiro. O térreo e os três primeiros andares pertenciam ao banco Aliança do Rio de Janeiro, que hoje não existe mais, e teriam que ser mobiliados. No mercado, só existiam móveis de pezinho palito ou o modelo Dasp, do tipo caixão. O Lúcio contratou meus serviços. O Fongaro, que trabalhava comigo, criou uma linha de escritório com tubos quadrados, que a Ambiente continuou fazendo mesmo depois que saí da sociedade. 10 Lúcio Costa (Brasil, 1902), arquiteto e urbanista, teve atuação fundamental para a renovação do pensamento artístico e arquitetônico no país. Foi um dos pioneiros da arquitetura moderna no Brasil, e, junto com Oscar Niemeyer, projetou o plano piloto de Brasília, um marco no urbanismo contemporâneo. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Ao deixar a Ambiente, em 1963, a primeira providência que os novos sócios tomaram foi fechar a galeria, que era conhecida não só no Brasil como também no exterior. Eu havia feito exposições como a do Alexander Calder11 e do Yamagushi, e tinha como assessora nessa área a Wanda Svervo, secretária da bienal, e depois que ela faleceu num desastre em Lima, eu convidei a Radha Abramo. Auxiliado por Sérgio Milliet, convidava novos artistas para expor, artistas que não eram conhecidos e que, portanto, não tinham espaço para mostrar seu trabalho. A cada quinze dias, uma nova exposição. Foi uma experiência fantástica porque, inclusive, promovia a loja. Na praça da República, em São Paulo, montei uma loja que atendia somente aos escritórios. Contratei a agência de propaganda Standard, e eles fizeram uns anúncios lindos para a loja. O logotipo da Ambiente foi feito pelo Leopoldo Haar, desenho composto de um arco e um compasso, bem ao gosto da época. O logotipo da Probjeto foi criado por Alexandre Wollner, e o nome, por Décio Pignatari. A Ambiente também foi a primeira loja a fazer, em 1960, um concurso para desenho industrial, cujo texto-convite foi feito pelo Artigas.12 O concurso era de âmbito nacional, e o primeiro prêmio ficou para o Karl Heinz Bergmiller e para o Joaquim Guedes, que desenharam um sofá-cama. É muito difícil vender um produto contemporâneo porque o grande público gosta de coisas mais clássicas, não no bom sentido, mas no sentido convencional. Por isso, procuramos muito bem o tipo de loja para expor os nossos produtos, pois sabemos que ele será bem aceito por determinado tipo de público. Os representantes que revendem os móveis da Probjeto são: a Compasso d’Oro, a Mobilinea, a Forma, a Design Store e o Fulvio Nanni. 11 Alexander Calder (EUA 1898-1976), escultor, desenvolveu suas obras a partir da criação de móbiles feitos de placas de metal suspensas. 12 João Baptista Villanova Artigas (Brasil, 1915-1985), arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, foi fundador do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Entre seus projetos, destacam-se o edifício- sede da FAU/USP, o estádio do Morumbi e as estações rodoviárias de Jaú, em São Paulo, e de Londrina, no Paraná. 117 :: Depoimentos - IDART 30 Anos 118 Léo Seincman. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: LINA BO BARDI (Itália, 1914 – Brasil, 1992) A arquiteta italiana Lina Bo Bardi foi a responsável pelo projeto do Centro de Lazer Sesc Fábrica Pompéia, em cujas obras foi realizado este depoimento em 29 de outubro de 1984, expondo suas posições frente aos obstáculos existentes no país para a plena implantação da atividade profissional de desenho industrial. Dona de um discurso bastante crítico e conciso, Lina Bo discute os fatores que a fizeram desligar-se da atividade do desenho de móvel quando produziu uma grande série de modelos que se destacaram por sua elegância, respeito aos materiais nativos, simplicidade formal e engenhosidade. :: O interesse pelo design Para a minha geração, que é a geração da II Guerra Mundial, o desenho industrial, que ainda não tinha esse nome, era o desenho ligado à produção industrial daquela época, apareceu como uma esperança de libertação. Pouco antes do final da guerra, já percebíamos o perfil bem claro daquilo que iríamos lançar como a libertação dos homens, da escravidão do trabalho pesado, que persistiu até a véspera da II Guerra Mundial. Especialmente, a libertação da mulher, que, com os trabalhos domésticos, sem ajuda mecânica, ficava presa aos filhos, a casa, a cozinha, sem possibilidade de ter vida própria e um trabalho fora do ambiente doméstico. As novas informações chegavam via pára-quedas para nós, que éramos da resistência, nos falavam de um grande país, o país da liberdade: os Estados Unidos, que já haviam avançado bastante na era da indústria. Todas as publicações que chegavam às nossas mãos naquele momento eram informações que durante a ocupação da Itália nos eram trazidas pela armada americana. Ficamos sabendo de colegas nossos que tinham achado asilo em Boston, como Walter Gropius1 e outros arquitetos de nome. Nós nos entusiasmamos com a idéia e nessa época, eu e o Bruno 1 Walter Gropius (Alemanha, 1883 – EUA, 1969), arquiteto adepto do funcionalismo alemão, foi professor e diretor da Bauhaus e teve como principal preocupação a relação entre a arte e a indústria. Dentre suas obras, destaca-se a fábrica Fagus, projetada em 1911, na Alemanha. 119 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Zevi2 editamos um semanário de arquitetura, a revista “A” - Cultura della Vita, que incluía o desenho industrial. As informações que nos chegavam através dessas publicações sobre a produção industrial e o design americano causavam um impacto fortíssimo. As peças eram muito bem acabadas, com os cantos arredondados, aspecto que chamávamos de aerodinâmico. Então, dentro dessa visão de libertação, especialmente das mulheres, com a possibilidade de se ter equipamento doméstico e tudo aquilo que depois chamamos de gadgets, o design foi encarado por nós, como já havia sido por Gropius, nos anos da Bauhaus, como libertação e salvação da mulher, isto é, tinha uma função de esquerda política e libertadora. 120 A Alemanha tinha indústrias, mas ainda predominava uma preocupação ligada à produção artesanal; a Itália também tinha forte tradição ligada ao artesanato. A imagem dos Estados Unidos, um dos países realmente industrializados e que para nós se apresentava como a grande visão de liberdade, trouxe a possibilidade de começarmos a estudar dentro desse esquema, a tomar contato com as indústrias para fazer desde tecidos até objetos. Naquele momento, a esquerda tinha tudo nas mãos, até o ministro do trabalho era comunista, mas logo depois, tudo aquilo que nós pensamos que tinha afundado estava retornando. Toda a velha direita que tinha colaborado com o fascismo acabou voltando à vida política. Ficamos marginalizados e eu vi o futuro da Itália como algo pior do que havia ocorrido no período pré-guerra. Então, mudei de país. O Chateaubriand3 havia convidado o Pietro Maria Bardi4 para dirigir o Museu de Arte de São 2 Bruno Zevi (Itália, 1918-2000), arquiteto e historiador da arquitetura, defensor da tese de que são as formas orgânicas e não a simetria clássica a chave do desenho moderno. Foi professor nas universidades de Veneza e Roma. 3 Assis Chateaubriand (Brasil, 1891-1968), jornalista pernambucano, foi o fundador do jornal Diários Associados e Emissoras Associadas. Em 1950, introduziu a televisão no Brasil, além de fundar o Museu de Arte de São Paulo. 4 Pietro Maria Bardi (Itália, 1900 – Brasil, 1999), crítico e historiador de arte, em 1947, constituiu, juntamente com Chateaubriand, o Masp, que dirigiu desde sua fundação até 1990. Foi casado com a arquiteta Lina Bo Bardi. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Paulo e eu o acompanhei para ver como era. :: A vinda para o Brasil Chegando ao Rio, me encantei com o país. Conheci o Oscar Niemeyer,5 o Lúcio Costa,6 o Cândido Portinari7 e percebi que, aquilo que tínhamos procurado anteriormente, existia aqui. Fiquei entusiasmada e queria ficar no Rio a vida toda. Cheguei a conclusão de que aquilo que havíamos sonhado para o futuro da Europa poderia ser transferido para outra sociedade O Chateaubriand fez o museu em São Paulo porque aqui tinha o dinheiro. Aliás, eu não gostava de São Paulo, só agora estou gostando um pouco. Achei muito diferente do contexto do resto do país devido à grande imigração que havia sofrido. Até brinquei na televisão chamando São Paulo de “Principado de Mônaco” do Brasil. O museu foi inaugurado em 1947 e eu fiz todas as instalações nos Diários Associados, localizado à rua 7 de Abril. Lembro que na época percorri toda a cidade à procura de uma cadeira industrial ou mesmo semiindustrial que pudesse entrar no contexto do museu, que era moderno, e não encontrei. Então, desenhei aquela dobrável, que ficou sendo a cadeira do auditório do museu, da qual hoje já não existe nenhuma. 5 Oscar Niemeyer (Brasil, 1907) é considerado um dos nomes mais influentes da arquitetura moderna internacional. Foi pioneiro na exploração das possibilidades construtivas do concreto armado. Em 1940, projetou uma série de prédios que seriam conhecidos como conjunto da Pampulha, além da Igreja de São Francisco de Assis. Na década de 1950, Niemeyer, juntamente com Lúcio Costa, fazem o projeto urbanístico para a construção de Brasília. 6 Lúcio Costa (Brasil, 1902 - 1998), arquiteto e urbanista, teve atuação fundamental para a renovação do pensamento artístico e arquitetônico no país. Foi um dos pioneiros da arquitetura moderna no Brasil, e, junto com Oscar Niemeyer, projetou o plano piloto de Brasília, um marco no urbanismo contemporâneo. 7 Cândido Portinari (Brasil, 1903-1962), pintor, desenhista e gravador, foi um dos maiores nomes do expressionismo brasileiro de caráter social. Dentre suas obras estão os painéis e os azulejos da Igreja da Pampulha, em Minas Gerais, o painel Tiradentes, no Memorial da América Latina, em São Paulo, e obras como a série aos retirantes. 121 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: O início da produção no Brasil Desenhei a cadeira para o Masp com madeira brasileira, jacarandá da Bahia e couro. O Brasil tinha ótimos artesãos. Depois dessa experiência, fizemos o Studio de Arte Palma. Tinha uma grande fábrica situada no Itaim Bibi, que, naquele tempo, era mato. O que nos supria era uma oficina de metais, uma fábrica que se chamava Paubra e uma outra artesanal, na Consolação, que tinha um velho artesão. O Studio foi criado juntamente com o arquiteto italiano Giancarlo Palanti8, funcionava atrás da biblioteca municipal, num espaço muito bonito. 122 Era uma experiência ligada à produção e venda de móveis. No Brasil, ainda não existia uma tradição no comércio de móveis. Os fabricantes, ao verem o que estávamos produzindo, acharam que era muito fácil fazer o móvel moderno e faziam a mesma coisa, só que muito mal feita, por sinal, porque não existia patente. Isso acabou criando um desgaste e trouxe também um prejuízo muito grande. O Zanine Caldas9, que era meu maquetista e do Oscar Niemeyer, entrou no escritório e disse para o Palanti, olhando para a madeira cortada, porque nós usávamos o compensado de pé: Eu vou fazer uma série igual. O Palanti disse que não podia, que existia o problema do direito autoral e que aquilo era um projeto de um arquiteto, tínhamos o copyright e tudo mais, porém ele não deu ouvido, foi fazendo e vendendo a um preço muito baixo porque estava precisando de dinheiro. Confesso que fiquei desanimada. Isso foi no início de 1949 e, naquele momento, quis desistir de fazer móveis. Disse: Daqui por diante, eu só vou desenhar móveis para 8 Giancarlo Palanti (Itália, 1906 – Brasil, 1977), arquiteto, pertenceu à segunda geração de arquitetos racionalistas do país. Sua obra italiana abrangeu desde o desenho industrial até projetos urbanísticos. O interesse comum em desenvolver um mobiliário moderno, produzido industrialmente, o leva a associar-se a Lina Bo e a Pietro Maria Bardi no Studio de Arte e Arquitetura Palma. Ali, Palanti e Lina realizam uma série de móveis e vários projetos de interiores entre 1947 e 1950. 9 José Zanine Caldas (Brasil, 1919), arquiteto e designer, projetou residências rústicas com aproveitamento de diversos materiais. A partir dos anos 50, dedicou-se ao design de móveis, utilizando vários tipos de madeiras. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: a indústria. Vendo o meu projeto, recebo os royalties, e fica por conta da indústria produzir e comercializar. Naquele tempo, tínhamos madeiras fantásticas, os artesãos eram ótimos, mas o problema da patente era terrível. O Pietro deu alguma coisa de presente ao Hauner, algo artesanal. Logo depois, o Carlo Hauner fundou a Mobilinea; o Ernesto Hauner,10 seu irmão, também era meu desenhista. Depois, fiz outros trabalhos profissionais e desenhei uma cadeira que não foi produzida até hoje porque não tem uma grande indústria interessada. Ela pode ser feita em fiber-glass, em acrílico e outras resinas. Nos Estados Unidos, fez um sucesso enorme. Eu estava na Europa quando recebi um telefonema dos Estados Unidos pedindo o modelo para produzí-la em série. A cadeira foi publicada na Architectural Review e no Newsweek, entretanto eu não consegui fazê-la aqui. Foi a última coisa que eu fiz em mobiliário. Continuei desenhando alguns móveis inseridos na arquitetura. Fiz a cadeira para o auditório do teatro Castro Alves, na Bahia, e outras coisas, mas sempre ligada à arquitetura. :: A atuação do design na indústria O que aconteceu com o design? Aquilo que era a libertação do homem, da escravidão dos trabalhos domésticos e não domésticos se transformou numa das maiores denúncias da perversidade de todo o sistema, quer dizer, aquilo que era o ideal de toda uma geração, inclusive dos industriais, na realidade se transformou no que chamamos de sociedade de consumo. Eu tenho uma geladeira em casa, muito antiga, cujo acabamento parece artesanal no sentido de procurar uma durabilidade do produto. Uma das características dessa geladeira é ter os cantos arredondados, que ajudam na durabilidade. Hoje em dia, as geladeiras são retas e enferrujam com a maior facilidade porque os cantos descascam. O fogão amassa porque as chapas são como papel de seda. O que era uma coisa importante 10 Carlo Hauner e Ernesto Hauner, arquitetos italianos, estão entre os formadores da primeira geração de industriais moveleiros do país. Foram os fundadores da marca Forma. 123 :: Depoimentos - IDART 30 Anos transformou-se numa coisa que é a denúncia de todo o sistema. O verdadeiro design implica uma participação profunda da indústria, coisa que não ocorre porque o engenheiro que desenha um avião, que desenha um navio ou uma máquina agrícola está inserido no processo de interesse industrial e não nas novas pesquisas. Alguns arquitetos conseguiram fazer parte de um processo industrial, mas são raríssimos; os outros atuam no design como atividade paralela a outro tipo de trabalho. São coisas colaterais. Quando as indústrias resolvem produzir algum projeto, o fim é sempre o dinheiro. O design ficou nadando numa cacimba quando nós pensávamos que estava num oceano. É uma crise mundial que vem dos Estados Unidos. Afinal, o que para nós era um sonho de libertação, virou o Vietnã, e junto com o Vietnã, a incapacidade de se sustentar economicamente sem guerras ou a incapacidade de ver a humanidade como merecedora de atenção. 124 :: A arquitetura e o design Um arquiteto que se dedica ao industrial design tem muito pouco a fazer no que diz respeito à grande indústria. Os artistas de fora do Brasil procuraram sair desse impasse, porém, não tinham uma análise verdadeira da situação porque, no final do processo, culparam as formas ainda ligadas ao racionalismo, quando o fracasso é realmente social, político e econômico. Depois disso, inventaram o pós-moderno, fazendo umas porcarias de desenho industrial, que não é desenho industrial e sim uma volta ao artesanal. Ocorreu na Itália, na França, nos Estados Unidos, aqui não. No Brasil, não conta. Na Itália, são coisas do século XIX, do período eclético, quando se fazia de tudo sem assumir nenhum compromisso. O arquiteto que desenha móveis tem saída na arquitetura. Já o designer, não sei o que poderia fazer, a não ser se ligar a alguma indústria. Nesses últimos anos, com a cibernética, os equipamentos são tão sofisticados e necessitam de tamanha atenção que se pode dizer que A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: o design é um artesanato industrial porque é o artesão que produz o modelo. Esse tipo de atitude pode ser uma saída para um futuro próximo, fora outras implicações que a situação proporciona. :: A busca da linguagem para o design brasileiro É inexistente a preocupação com um desenho industrial que tenha característica genuinamente brasileira. Isso você pode conseguir numa obra literária, por exemplo, ou numa pintura, numa escultura, que depende somente de um artista, mas o arquiteto e o designer produzem algo que não depende somente deles. Eles podem pensar uma coisa fantástica e não realizar nada como arquiteto porque não têm os meios para concretizar o projeto, eles dependem de inúmeros fatores e a escala é muito grande. No caso do designer, a coisa é ainda mais difícil porque depende de interesses bem deinidos, que são os da sociedade industrial de hoje e da sociedade de consumo. O Brasil está reproduzindo coisas de fora porque é mais barato comprar um desenho já experimentado e em produção na Alemanha ou na Itália, por exemplo, do que pagar pesquisas aqui no país. Uma experiência testada pode custar dois milhões, uma pesquisa custa trinta, então o empresário não investe porque tem medo de perder capital. Existem outros empresários que vão para o exterior, trazem o objeto para o Brasil e, simplesmente, o copiam. O Brasil não viveu todo o processo de industrialização, ele pegou o resto, veio a reboque, foi atropelado por aquilo que se chamou de milagre da década de 70. O Brasil não tinha uma preocupação com o processo industrial, nem com suas raízes mais profundas. Vinha de uma imposição, e os resultados estão aí: com a fome mais desgraçada do que nunca. Quem é que vai pensar em desenho industrial num momento como este? Sinto muito decepcioná-los. 125 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Cadeira Bowl, 1951 MASP, Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1947. 126 Casa de Vidro, 1951. Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo, 1957 / 1969. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: :: MICHEL ARNAULT (França, 1922) Michel Arnault é considerado um dos introdutores do modernismo no móvel brasileiro. Nas décadas de 50 e 60, ele já produzia móveis em série com o intuito de popularizar o design no Brasil. :: O interesse pela arquitetura e o início da carreira Na época em que era estudante, eu queria fazer arquitetura na Belas Artes, uma escola na França. Porém, queria algo mais prático, então surgiu uma escola formada por professores dissidentes da Escola de Artes Decorativas, que é uma escola nacional. Eu, como aluno, estimava muito todos os professores. A escola foi fundada num museu, e eu fiz parte da primeira turma. Era um diálogo interessante entre professores e alunos. Já naquela época, eu queria muito fazer desenhos de móveis, mas com aspecto industrial, de grande produção e massificação, o que sempre me interessou. Nasci em fins de 1922, eu tinha 16 anos quando a guerra começou. Aos 20 anos, fui mobilizado, mas não tinha exército. Então, nos mandavam para a França, ocupada pelos alemães, que substituíram o serviço militar pelo serviço de trabalho obrigatório. Eu já era estudante dessa escola e quando preenchi a ficha e informei que era estudante de móveis, me mandaram para uma fábrica de móveis. Foi fantástica essa experiência para mim porque era uma das maiores indústrias da Europa na época, e eu fiz um estágio importantíssimo. Fiquei lá nove meses, depois resolvi fugir. Os móveis eram de excelente desenho, móveis para criança e caixas de bomba. Fazia as duas coisas. Trabalhei também como faxineiro, como maquinista e na parte administrativa. As pessoas notaram meu interesse pela produção e pela organização. Fiquei muito amigo do dono da fábrica, um oficial muito simpático, que, logo em seguida, me ajudou a fugir. Deu-me uma certidão dizendo que eu era indispensável na França, o que me ajudou muito. Cheguei a Paris na véspera do desembarque dos americanos, em 1944, no fim da guerra. Depois de dois meses sem documentos - eu estava clandestino - voltei à escola e terminei o curso em dois anos. 127 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Formei-me em 1948. No último ano, quando a guerra já tinha terminado, apareceu um industrial francês estabelecido no México e fez um concurso entre os alunos do último ano, éramos cerca de 30, para saber quem queria desenhar móveis Luís XV. Eu me candidatei, ganhei o concurso e fui para o México trabalhar durante um ano. Em 1944, em Paris, a guerra já estava no fim, o exército não existia mais. Os alemães fugiam de bicicleta. Anarquia total. Além disso, tinha os bombardeios dos ingleses e dos americanos. Era terrível. Antes de ir para o México, eu ainda era estudante em Paris e trabalhei um ano no escritório de um designer que era o nosso grande mito, o Marcel Gascoin.1 Na época, não existia designer especialista em modulação, em móveis modulados e seus aspectos industriais que eu queria tanto aprender. Nós estávamos desenvolvendo um estudo sobre as cozinhas de Le Corbusier2 e dos seus prédios em Marselha. 128 :: A arquitetura de Oscar Niemeyer Desde o começo, tive preocupação com a modulação, com o problema de produção, de encontrar produtor. No México, eu fazia um trabalho distante do que eu gostava, era um trabalho de decoração. Tinha um contrato de três anos, mas depois de um ano eu pedi a rescisão porque sentia que estava perdendo tempo. Foi ótimo, pois me deram uma indenização enorme na época. Tinha 25 anos, o bolso cheio de dinheiro e todo o tempo possível. Com um amigo, viajamos por toda a América Central, ele precisava ir até a Venezuela e eu o acompanhei. De lá, eu deveria voltar para a França, mas antes eu queria fazer um estágio com o Oscar Niemeyer3 no Brasil. 1 Marcel Gascoin foi um dos pioneiros da fabricação de móveis em série. 2 Charles Édouard Jeanneret, conhecido por Le Corbusier (Suíça, 1887- França, 1965), foi o mais famoso arquiteto da escola modernista. De inúmeras facetas, fez escultura, móveis, paisagismo e pinturas. O racionalismo presente nas obras de Le Corbusier apontava para ações relacionadas à natureza, ao homem e à arquitetura. Entre suas obras mais importantes estão: Villa Savoye, na França, Tsentrosoyuz, em Moscou, e muitas outras. 3 Oscar Niemeyer (Brasil, 1907) é considerado um dos nomes mais influentes da arquitetura moderna internacional. Foi pioneiro na exploração das possibilidades construtivas do concreto armado. Em A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Fiquei um ano num escritório de arquitetura em Caracas, economizei mais um pouquinho de dinheiro e cheguei, em 1950, ao escritório do Oscar Niemeyer. Era sábado, telefonei e na segunda-feira já estava trabalhando. Fiquei um ano e meio com ele. Foi muito bom. Profissionalmente, não estou de acordo com a arquitetura dele, mas é muito interessante porque ele é um grande criador. Ele é muito brasileiro. Em seu escritório, a gente mantinha contato com um monte de gente: Juscelino Kubitschek, Cândido Portinari e outros. O Oscar Niemeyer foi muito simpático. Tive a sorte de pegar o Oscar na hora em que ele recebeu autorização para abrir o escritório. Éramos três: um desenhista profissional português, eu e uma estudante de arquitetura. Só nós três. De manhã, ia à casa dele, e ele rabiscava, ainda de pijama, os projetos que íamos fazer depois no escritório. Durante um ano e meio, foi fantástico. Não tinha domingo, não tinha feriado, não tinha nada. Era uma euforia total. Eu não desenhava móvel, fazia mesmo era desenho de arquitetura, mas quando tinha oportunidade de desenhar mobiliário, eu fazia. O desenho de móveis e a criação da Mobília Contemporânea e da Senta Fiz faculdade de arquitetura porque talvez estava muito pressionado, não sabia ao certo se queria arquitetura ou outra coisa. O dinheiro era curto, e eu tinha que pensar na minha própria sobrevivência. Então, desenhei durante um ano, na minha casa, com o arquiteto inglês que também estagiava com o arquiteto Henrique Mindlin, no Rio de Janeiro. Nós dois desenhamos uma linha de móveis, a Mobília Contemporânea. Em 1954, abrimos a primeira loja no Rio. A Mobília Contemporânea durou até 1975. Foram vinte anos durante os quais nós fizemos, em parte com o inglês Norman Westwater, em parte sozinho - porque ele voltou para a Inglaterra - mais ou menos cinco linhas de 1940, projetou uma série de prédios que seriam conhecidos como Conjunto da Pampulha, além da Igreja de São Francisco de Assis. Na década de 1950, Niemeyer, juntamente com Lúcio Costa, fazem o projeto urbanístico para a construção de Brasília. 129 :: Depoimentos - IDART 30 Anos produtos. Quando acabamos com a Mobília em 1975, pedi ao meu sócio para ficar com algumas máquinas que eu tinha ido buscar na Dinamarca, muito preciosas e queridas para mim. Em 1976/1977, fizemos a Senta. Como ainda não um tínhamos local exato, deixamos as máquinas num galpão abandonado, emprestado pela Lundiawillo,4 e começamos a fazer uma pequena fábrica. A idéia era ter um laboratório de produtos dirigidos à exportação. Tudo com madeira maciça. Fizemos uma primeira linha de estofados. Por isso, a firma se chamava Senta, porque só tinha assentos. Depois de ter escolhido Mobília Contemporânea, um nome tão comprido, tão difícil de escrever e que ninguém sabia soletrar, decidi escolher o nome mais curto possível, Senta, mesmo que não seja muito bom como nome porque todo mundo pergunta: “Santa? Seta?” 130 Na Senta, foi muito difícil encontrar um caminho comercial porque pegamos uma crise econômica que eu não conheci no tempo da Mobília. Depois, eu estava muito sozinho. Na Mobília, éramos três sócios de bom nível, e no tempo da Senta, estava sozinho, sem a crítica dos outros, o que é muito bom. A idéia era produzir primeiro para exportação. Em 1976, a legislação mudou, e o couro era mais caro no Brasil do que lá fora, a madeira era mais cara no Brasil do que fora. Era impossível exportar. Então, voltamos nossos esforços para o mercado interno. Entretanto, comecei a criar para terceiros. Desenvolvi uma linha para uma empresa do Ceará, uma experiência interessante. Depois, para uma firma de Maceió, e assim eu encontrava, de vez em quando, alguns clientes. Era muito difícil vender esse tipo de serviço, vender projeto. Também não tinha encontrado a fórmula certa. A Senta finalmente se dirigiu para o mercado nacional, e nós tivemos que cair na fórmula tradicional: abrir lojas próprias. Para justificar uma loja, você tem que ter uma linha bastante grande de escolha. Tem que ter camas, mesas, e praticamente repetimos a fórmula da Mobília só que fora de época, num contexto econômico completamente diferente. Acho que foi um grande erro. Todas as firmas dos anos 50, a Mobilínea, a Hobjeto, todas elas tinham essa fórmula, uma linha monolítica, própria, fabricada pela 4 Indústria de artefatos de ma deira. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: gente e vendida pela gente. A fórmula ficou obsoleta. Hoje em dia, não vale mais. A Hobjeto ainda está em pé, mas acho que é um negócio que não deve ser muito brilhante. A Mobilínea se desfigurou completamente, e os criadores já saíram. Não sei explicar bem por que, mas acho que a fórmula dos anos 50 e 60 morreu. Em 70, já era completamente diferente. :: O desenvolvimento de outros projetos Entre os serviços para terceiros, houve uma primeira experiência muito interessante por volta de 1968. Um vizinho me pediu para desenhar uma linha porque ele tinha comprado uma fábrica de móveis e não sabia o que fazer com ela. Então, desenhei o primeiro daquela seqüência de produtos nos quais eu me especializei. A fábrica, muito barata, estava situada em Fortaleza, dentro da Sudene5. Desenhei o primeiro produto, fizemos os protótipos, e me pagaram, uma das poucas vezes em que eu fui pago. Pediram-me para fazer uma pesquisa de mercado nos Estados Unidos sobre o produto. Fui, participei de uma exposição, e o resultado foi muito bom. Uma coisa pioneira porque esse tipo de experiência nunca tinha acontecido. Percebi que, por acaso, você descobre um peixe. Descobri que a fórmula era boa, e os contatos feitos nos Estados Unidos, na época, já começavam a passar para pedidos. Encaminhava toda a correspondência para eles porque eu não tinha nada a ver com a fabricação, simplesmente eu vendia o desenho. Fui lá pesquisar o mercado, e um dos americanos contatados na época mandou fazer na Argentina um dos modelos que eu tinha desenhado. Até hoje é feito com sucesso, fabricado e vendido na Macy’s6. Cada vez que vou a Nova York, vou ver como vai, e vai muito bem. No Brasil, esse tipo de coisa não existe. Nos Estados Unidos, é uma prática absolutamente correta e normal. Se tiver um produto que eles acham bom e não está sendo fornecido pelo fabricante, eles dão para outro fazer. Não existe a noção da autoria, de direitos autorais. Absolutamente nada. 5 Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. 6 A Macy’s é uma rede de lojas sediada em Nova York. Foi fundada em 1851e possui 431 lojas espalhadas ao redor dos Estados Unidos. 131 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Depois, eu desenhei para uma firma de Maceió, e também foi muito bem na exportação. A empresa nunca chegou a se criar. Eram, simplesmente, alguns poucos protótipos que fizemos na Mobília Contemporânea; eu apresentei lá e foram muito bem recebidos. Não houve a fábrica, não houve nada, e o negócio acabou. De qualquer jeito, a experiência foi muito interessante para mim. Primeiro, porque me pagaram; depois, porque eu conheci, senti uma fórmula. :: A idéia de exportar Na Mobília, projetei uma cadeira com o mesmo partido, e foi muito bemsucedida. Vendemos e exportamos bastante. Nessa época, apareceu uma firma de Maceió que queria justamente um produto do tipo que eu desenhava. Eram as primeiras experiências de venda de desenho para terceiros. 132 É curioso porque, geralmente, uma fábrica que se interessa por um tipo de móvel compra, copia e pronto. Eu tive uma sorte incrível: toda vez que eu arranjei clientes, eles estavam na falência, razão pela qual necessitavam de um designer. Numa hora dessas, você arrisca tudo, você se compromete. Nunca tive experiência negativa de produtos no exterior. Em 1975/1976, a Lundiawillo tinha um débito grande com o fisco brasileiro porque eles tinham importado um equipamento sem pagar os direitos aduaneiros sob a condição de exportarem o equivalente ao valor que deveriam pagar de taxa alfandegária. Era um troço oficial, permitido na época, mas eles tinham um prazo. Dois meses antes de vencer o prazo, o Willo me chamou e disse: “Você vai se virar, você vai produzir na minha fábrica, sem comprar nenhuma máquina, com a matéria-prima que eu tenho, um produto qualquer e que me venda.” Foi muito interessante porque eu tinha que desenvolver um produto dentro de um equipamento que já existia e destinado ao mercado externo. Então, foi feita uma linha de caixas sem acabamento para serem pintadas lá porque no Brasil não tinha folha, não tinha nada. Nós aparecemos em Nova York, numa feira, vendemos, e foi muito bom. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Ele vendeu em um ano o que ele devia e conseguiu entrar no catálogo de uma dessas enormes firmas americanas de duzentas, trezentas filiais, lojas de departamentos. Honra suprema, mas já não interessava continuar exportando. Nesse momento, veio mais um ponto desfavorável para o Brasil: a total falta de palavra. A pessoa aceitou entrar no catálogo, primeiro porque ela foi convidada, segundo porque o produto interessava, e terceiro porque o catálogo ia ser publicado. O compromisso de exportação não aconteceu simplesmente porque a pessoa tinha o seguinte pensamento: “Para que complicar a vida e exportar, vender a 10, 20 mil quilômetros daqui, se posso vender a 5 quilômetros?” :: ‘A Senta e os novos projetos Hoje em dia, a Senta representa mais uma atrapalhação do que uma ajuda para mim. Estou montando um escritório só de desenho industrial, por enquanto especializado em móveis. Comecei há um ano, e as coisas estão se concretizando. A primeira linha fabricada em São Bento do Sul. Santa Catarina, começa a exportar. A segunda, que está sendo testada nos Estados Unidos, é de um produto que eu gosto muito. Agora só estou com o escritório de desenho. A Senta continua. Hoje, procuro o que fazer com ela porque acho que a linha está fora do mercado, a fórmula está fora do mercado. Estou em busca de um produto para fazer em série para a Senta. Creio ser iminente uma mudança de estrutura. São Paulo não tem mais a loja porque o prédio onde ela estava localizada foi destruído. Não tenho pressa em encontrar outro local porque ainda estou em dúvida sobre o que pôr à venda. Estou muito interessado em novas fórmulas de comercialização, por exemplo, a venda por correspondência, um campo que eu vou atacar agora. Todos os móveis que eu desenhei nesses últimos anos são destinados a isso. Pacotes com dimensões do correio: venda por correspondência e venda em supermercados. Sair da Iojinha comum. Sair do custo do revendedor tradicional de móveis que não sabe vender móveis. 133 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Poltrona em jacarandá, 1962. Cadeira Peg Lev em jacarandá 134 e produzida pela Mobília Contemporânea, 1968. Poltrona Peg Lev, 1972. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: SÉRGIO RODRIGUES (Brasil, 1927) Arquiteto e designer, Sérgio Rodrigues, foi um dos renovadores do design brasileiro. Em 1957, cria a Poltrona Mole, um marco do design de mobília e considerada, no mundo todo, uma das mais importantes criações de design. :: A arquitetura e o início da carreira Nasci no Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 1927. Sou formado pela Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro e pertenci à última turma que freqüentou a escola quando ainda funcionava junto à Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), na avenida Rio Branco. Formei-me em 1951 e, quando ainda cursava o último ano da faculdade, tive meu primeiro trabalho de arquitetura, o projeto para o Centro Cívico de Curitiba. Foram convidados quatro arquitetos: David Xavier de Azambuja, Olavo Redig de Campos (pai do Joaquim Redig), Flávio Régis do Nascimento e eu. Foi um projeto que durou dois anos. Depois, veio a geada, que acabou com o dinheiro do Estado. Algumas obras foram concluídas e outras ficaram para mais tarde, para quando houvesse verba. Meu edifício, que não chegou a ser construído, seria o maior em concreto armado do mundo, fato que vim a saber depois. A cúpula da Recebedoria e Pagadoria também seria a maior do mundo. É claro que não fiz com essa intenção, mas isso ocorreu devido às necessidades do programa. A cúpula não foi executada, e o edifício de trinta e seis pavimentos foi construído somente até o décimo. Infelizmente, comecei na arquitetura com uma obra inacabada. O convite para participar do projeto partiu do Azambuja, catedrático na ENBA de uma matéria que se chamava Composição Decorativa, sobre arquitetura de interiores. Sempre me interessei por esse tema porque, logo nos primeiros anos da faculdade, percebi que o Brasil não tinha nada nesse sentido. 135 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Nossa arquitetura já era conhecida e famosa internacionalmente devido ao lançamento do livro Brazil Builds no Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA), porém a documentação mostrada no livro era somente de fachadas e plantas baixas. De interior não havia praticamente nada, por isso comecei a me interessar pelo assunto. A arquitetura sem um ambiente, sem ter o interior tratado, eu chamaria de escultura. Uma arquitetura vazia é uma escultura. É claro que a afirmação é muito vaga, vale somente para defender a importância do interior. O arquiteto, em princípio, não levava em consideração o interior. Isso, hoje em dia, já é visto de outra maneira, já existe uma preocupação com o uso. Para exemplificar esse uso, hoje em dia é marcado adequadamente, na planta, o lugar onde sai o vaso sanitário, a pia no banheiro; na cozinha, é marcado o lugar do fogão e da pia. No caso de uma sala de estar não existe nenhuma indicação de onde seria, por exemplo, o centro principal de conversa. 136 Já naquela época, comecei a me preocupar muito com esses fatores, e o David de Azambuja, percebendo meu interesse, me chamou para ser monitor da disciplina Composição Decorativa enquanto ainda cursava a faculdade. Quando o Azambuja recebeu o projeto do Centro Cívico de Curitiba, me convidou para fazer parte do projeto. Data daquele período o meu primeiro contato com o Lúcio Costa1 e o meu primeiro estudo acerca do Modulor, de Le Corbusier.2 Para o projeto de Curitiba foram executadas diversas maquetes, e o Lúcio Costa, amigo dos outros arquitetos, 1 Lúcio Costa (Brasil, 1902), arquiteto e urbanista, teve atuação fundamental para a renovação do pensamento artístico e arquitetônico no país. Foi um dos pioneiros da arquitetura moderna no Brasil, e, junto com Oscar Niemeyer, projetou o plano piloto de Brasília, um marco no urbanismo contemporâneo. 2 Charles Édouard Jeanneret, conhecido por Le Corbusier (Suíça, 1887- França, 1965), foi o mais famoso arquiteto da escola modernista. De inúmeras facetas, fez escultura, móveis, paisagismo e pinturas. O racionalismo presente nas obras de Le Corbusier apontava para ações relacionadas à natureza, ao homem e à arquitetura. Entre suas obras mais importantes estão: Villa Savoye, na França, Tsentrosoyuz, em Moscou, e muitas outras. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: estava freqüentemente no escritório, possibilitando um contato que me entusiasmou muito. Quando acabou o contrato em Curitiba, montei uma lojinha junto com as pessoas que seriam os futuros fundadores da Forma: Carlo Hauner3 e Conde Grasselli. A loja chamava-se Artesanal Paranaense, e a maioria dos móveis eram do Carlo Hauner. Havia também alguma coisa da Lina Bo Bardi4 e do Giancarlo Palanti.5 Em 1953, em Curitiba, os móveis modernos, os móveis chamados de futuristas não eram aceitos. A intenção era fazer a decoração dos palácios, mas a loja não deu certo porque eu não me insinuava muito e quem acabou fazendo a decoração foi um cenógrafo chamado Julio Sena. Durante seis meses, a loja não vendeu absolutamente nada e fui obrigado a fechar as portas para não falir. Tive alguns fracassos também na área da arquitetura. Certa vez, entrei num concurso para o Country CIub e tinha certeza de que ia ganhar porque não havia outros concorrentes. Tinha o Rubens Meister, engenheiro-arquiteto que fez o projeto do teatro Guaíra, o único arquiteto que existia lá naquela época. Na véspera do concurso, o presidente do Country CIub veio me dizer para não participar porque o projeto já havia sido escolhido. Fiquei chateado, mas, ainda assim, apresentei as onze pranchas do projeto, que não seguiu adiante. 3 Carlo Hauner, arquiteto italiano, está entre os formadores da primeira geração de industriais moveleiros do país e um dos fundadores da marca Forma. 4 Lina Bo Bardi (Itália, 1914 – Brasil, 1992), arquiteta e designer, fundou as revistas Habitat e Mirante das Artes. Dentre seus projetos, destacam-se a criação do Museu de Arte de São Paulo, o projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia, a restauração do antigo Solar do Unhão, na Bahia, e o Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo. 5 Giancarlo Palanti (Itália, 1906 – Brasil), arquiteto, pertenceu à segunda geração de arquitetos racionalistas do país. Sua obra italiana abrangeu desde o desenho industrial até projetos urbanísticos. O interesse comum em desenvolver um mobiliário moderno, produzido industrialmente, o leva a associar-se a Lina Bo e Pietro Maria Bardi no Studio de Arte e Arquitetura Palma. Ali, Palanti e Lina realizam uma série de móveis e vários projetos de interiores entre 1947 e 1950. 137 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: O mobiliário Comecei a fazer as primeiras tentativas em desenho de móveis muito cedo, pois tinha um tio que era alucinado por marcenaria. Ele havia contratado dois marceneiros portugueses que eram artesãos incríveis. A marcenaria me apaixonava porque lá eu passava dias tentando fazer aviãozinho e outras coisas, sempre com o intuito de aprender a usar as ferramentas. Meu tio gostava de fazer móveis muito bem acabados, mas que não diziam nada, não tinham estilo. Quando montei a lojinha em Curitiba, comecei a receber encomendas para desenvolver algumas peças. Foram feitos protótipos das peças, as primeiras que cheguei a fazer, mas não foram vendidas. Foi a primeira experiência negativa no sentido comercial, mas muito importante para começar a ter contato com esse tipo de problema. Quando acabou meu contrato em Curitiba, em 1954, procurei o Carlo Hauner e ele me disse que estava montando a Forma. Nessa época, eu 138 tive um contato maior com o Warchavchik,6 com o Ícaro de Castro Mello e com o Villanova Artigas,7 enfim, com os grandes arquitetos da época em São Paulo. Resolvi ficar na fábrica e, mais tarde, fui para a loja, na rua Barão de Itapetininga. Um dos diretores da Forma, vendo meus desenhos de móveis, me aconselhou a mudar de ramo; já o Carlo Hauner me apoiava. Houve um problema na sociedade e acabei me afastando da firma. Voltei para o Rio, pois já estava fora havia três anos e o pessoal não me conhecia mais, tanto que eu passei alguns meses sem trabalho e tive 6 Gregori Warchavchik (Brasil, 1896-1972), arquiteto e designer de origem russa, publicou o primeiro manifesto sobre a arquitetura moderna no Brasil. Em 1927, projetou a primeira construção concebida dentro dos princípios da arquitetura contemporânea, a Casa Modernista, em São Paulo. Também desenvolveu uma linha completa de móveis em madeira, tubos de metal, couro e tecido. 7 João Baptista Villanova Artigas (Brasil, 1915-1985), arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, foi fundador do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Entre seus projetos, destacam-se o edifício-sede da FAU/USP, o estádio do Morumbi e as estações rodoviárias de Jaú, em São Paulo, e de Londrina, no Paraná. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: que “meter a cara” e fazer a Oca, já com o objetivo de tentar uma fábrica futuramente. Comecei com uma loja onde eram vendidos móveis da Forma, da Ambiente, lustres da Dominici e tecidos. Foi em 1955, e não havia nada no Rio nesse sentido, a não ser o Joaquim Tenreiro. A Oca foi um sucesso no primeiro mês. Inaugurou com alguns desenhos meus que não tinham sido aceitos na Forma e que começaram a ser produzidos lá. Oficinas de artesãos, vendo que os móveis faziam sucesso, começaram a reproduzí-los e a vendê-los. De repente, comecei a ver cópias dos meus móveis espalhadas pelo Rio de Janeiro, mal executadas, feitas com economia de material e mal produzidas, o que me deixou muito chateado. :: As casas pré-fabricadas e outros estudos Em 1959, comecei a estudar um sistema de casas pré-fabricadas de madeira. Em 1960, o pessoal da Oca permitiu que eu executasse as experiências dentro da própria loja. Naquele momento, o pessoal do MAMRJ, inclusive a própria Niomar, interessou-se pelo projeto e me informou da intenção do museu em começar a realizar mostras de arquitetura. Fui o primeiro arquiteto convidado a expor lá. A exposição foi sobre casa pré-fabricada, da qual chegamos a montar um protótipo no local. Foi um sucesso incrível e deu origem a um convite do Darcy Ribeiro8 para fazer a hospedagem dos professores na Universidade de Brasília, em 1961. Fiz dois pavilhões grandes. Fiz também o late Clube de Brasília e casas em Goiânia e em outros estados, baseadas naquelas pré-fabricadas. Não houve necessidade de se montar uma indústria porque imaginei um sistema no qual o material necessário era encomendado em diversos pontos e reunido na casa do cliente, onde acontecia unicamente a montagem. Era uma experiência inédita porque havia apenas alguns comerciantes de madeira que tinham tentado algo nesse sentido, mas sem nenhuma pesquisa em arquitetura. 8 Darcy Ribeiro (Brasil, 1922-1997) foi antropólogo, romancista e político. Dentre suas obras, destacam-se a criação do Museu do Índio e a fundação da Universidade Federal de Brasília. 139 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: O desenvolvimento do design e os primeiros prêmios O termo design ou desenho industrial não era usado com muita freqüência. Quase todos os desenhos que eu fazia previam possibilidade de industrialização, mas no tocante às casas, elas eram praticamente artesanais porque não existia indústria por trás do projeto. Porém, a intenção era transformar a proposta em indústria mais cedo ou mais tarde. Considero o projeto para casas pré-fabricadas um desenho industrial, uma ligação entre design e arquitetura. Fui um pouco mais adiante e criei móveis para as casas, gerando quase uma empresa total, com todos os elementos necessários para equipar a arquitetura. Para a Universidade de Brasília também executei desenhos de móveis, mas não foram feitos na Oca. Procurei o Ernesto Hauner e me associei a ele na Mobilinea, que já existia naquele momento, mas só fazia estante. 140 O Ernesto desenhou para a Forma quando esta passou do sistema artesanal para o industrial, mas os primeiros móveis da Mobilinea, depois do período em que só faziam estantes, foram desenhos meus, quarenta modelos, que depois foram desenvolvidos por eles. Em 1981, a convite do Wladimir Murtinho, do ltamarati, fiz o protótipo de uma mesa para ministros, na qual foram executadas duas peças; uma foi para Brasília, a outra ficou exposta na loja da Oca. A peça foi vista pelo Hugo Contier, que me convidou para ir à Itália fazer o palácio Doria Pamphilli, justamente a embaixada brasileira. No princípio, a idéia era vender os móveis da Oca para aquele projeto, porém não houve possibilidade de se importarem os móveis e, além disso, havia o problema da urgência para a inauguração do palácio. Então, os móveis teriam que ser executados lá mesmo. Procurei o Carlo Hauner, que tinha se desligado da Forma e estava morando em Milão, e trabalhamos juntos no projeto. Em 1961, uma fábrica de móveis suecos começou a comprar móveis da mesma linha do palácio, feitos pelo Carlo Hauner, para vender em Roma. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: O Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara, já havia comprado a Poltrona Mole e tinha recebido um convite de Cantù, na Itália, para que a Guanabara representasse o Brasil no concurso ali promovido, então ele me chamou para participar da competição, então, mandei as plantas da Poltrona Mole para serem expostas. Depois, foram convidados diversos fabricantes locais para analisarem o projeto e a viabilidade da produção em série. Em seguida, recebi a notícia de que meu desenho havia sido escolhido para começar a ser fabricado. Dias depois, recebi outro comunicado dizendo que não poderiam aceitar o desenho da Poltrona Mole porque ela já era conhecida e uma das condições para a participação no concurso era a peça ser inédita. Fiquei muito satisfeito por ter uma peça conhecida numa entidade como aquela, o que significava que já tinha sido analisada por arquitetos e pessoas do local. Mudei o desenho das travessas da cadeira e o mandei para a Itália. Dias depois, recebi a notícia de que havia sido selecionada para a fabricação e recebido o primeiro prêmio do concurso. Foi uma surpresa bastante grande porque quando você imagina um objeto feito fora daqui, você supõe que seja de alta tecnologia e não uma simples estrutura de madeira, como era o meu projeto. Não acreditei quando ganhei o primeiro prêmio e os elogios dizendo que aquela era uma peça que apresentava características da região, que só poderia ter sido feita no Brasil e, mais especificamente, no Norte do Brasil. A estrutura da cadeira era a estrutura de um catre, em que você tem quatro pés e as correias de couro suportando o almofadão em couro. Só poderia ser feito no Brasil porque ninguém usaria o couro e a madeira com aquela abundância. A firma que fez o trabalho era uma das indústrias mais conceituadas e trabalhava somente com móveis feitos com painéis de madeira maciça. Para promover a peça, deram-na de presente para todos os grandes chefes de Estado da época: Kruschev recebeu uma Poltrona Mole, a rainha Elizabeth e, também, o Papa. Depois, recebi um livro de decoração feito por Lord Snowdon, casado com a princesa Margareth, da Inglaterra, no qual dizia que usava a poltrona desenhada pelo arquiteto mexicano Rodriguez. 141 :: Depoimentos - IDART 30 Anos :: A Poltrona Mole Em 1957, desenhei a Poltrona Mole. Em 1962, foi publicada na revista Senhor uma história sobre a Poltrona Mole. O fotógrafo Otto Stupakoff estava começando na época e me pediu algo que fosse “soltão” para o estúdio dele, os almofadões indianos ainda não estavam na moda. Então, sugeri um supersofá. Ele gostou da idéia, mas como era uma peça artesanal, que usava muito material bom, como jacarandá e couro, a peça ficou muito cara e ele não pôde comprá-la. Ficamos com a peça na loja, disponível, e os meus sócios não admitiam aquilo, diziam que era uma coisa monstruosa, achavam uma brincadeira. Fiquei quase convencido disso. Os operários a chamavam de poltrona mole, aquela que é molenga. E o nome ficou. 142 Depois de um ano exposta na vitrine, chamada de “cama de cachorro”, foi para o interior da loja num lugar escondido, mas a Niomar Muniz Sodré, diretora do MAM-RJ, comprou-a. Aí, diversas pessoas começaram a procurar a peça. Outra que a comprou foi o Carlos Lacerda.9 Em 1958, quando a cadeira começou a ser vendida, fiz uma exposição de arte dentro da loja, proposta que teve início com o Joaquim Tenreiro10 em sua loja no Rio de Janeiro. Achei a idéia simpática e devido ao sucesso que alcançaram as exposições do Tenreiro, decidi fazer o mesmo. Era uma exposição de móveis como se fossem objetos de arte e ela acabou sendo um grande sucesso. Naquela época, eu já tinha mais ou menos 50 modelos. Em 1964, fui à Dinamarca, entrei numa determinada loja e fiquei curtindo meus ídolos, os grandes da mobília. Vi uma poltrona que era igual à Poltrona Mole, lá no fundo da loja e me certifiquei de que era a 9 Carlos Lacerda (Brasil, 1914-1977), jornalista, político e escritor, foi o primeiro governador eleito do estado da Guanabara (atual Rio de Janeiro), em 1960. 10 Joaquim Tenreiro (Portugal, 1906 – Brasil, 1992) foi o precursor na busca de um novo estilo para o mobiliário. Sua produção tornou-se um marco definitivo para a história do design no Brasil. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: própria, colocada sobre um praticável, num lugar de destaque. O vendedor me explicou ser aquela a última novidade, criada por um arquiteto mexicano. Na exposição Tradição & Ruptura, promovida pela Fundação Bienal de São Paulo, mostrei quatro painéis: um com os desenhos iniciais da Poltrona Mole e os outros mostrando três poltronas através do desenho técnico: a de Cantù, a Poltrona Desmontável, que, para mim, tem alguma coisa mais de Brasil e de indústria e a Poltrona Sheriff, que não foi produzida no Brasil, da qual temos aqui somente dois modelos, uma delas eu dei de presente para o Zanine.11 A terceira poltrona foi o modelo produzido para exportação porque a Poltrona Mole era toda rígida, não tinha parafusos e não era desmontável, assim como a de Cantù. Para a exposição, a própria Oca, com a qual eu não tenho mais nada a ver, apresentou também a Poltrona Mole tal como ela é produzida atualmente, com parafusos, o que tira um pouco a característica de catre que tinha o desenho original: não era desmontável, mas cabia num Volkswagen. Em 1963, fiz outra exposição de móveis e convidei o Lúcio Costa, o Sérgio Bernardes e o Arthur Lício Pontual para entrarem com alguma coisa nova. Os três produziram um desenho novo para o evento. O que me interessava no momento era mostrar a capacidade da Oca na produção. Eu, que a princípio não entraria para expor, criei uma cadeira considerada, hoje, pós-moderna. Foram feitos apenas dois modelos, comprados por pessoas exóticas. :: A Poltrona Mole pelo mundo e outras criações Em 1965, fui montar uma loja de móveis em Carmel, nos Estados Unidos, cidade de veraneio dos maiores magnatas. Dois americanos vieram para o Rio, se entusiasmaram com os móveis e me procuraram para fazer uma sociedade: eles montariam uma estrutura de venda lá e nós mandaríamos os móveis. Houve, no entanto, um problema com relação 11 José Zanine Caldas (Brasil, 1919), arquiteto e designer, projetou residências rústicas com aproveitamento de diversos materiais. A partir dos anos 50, dedicou-se ao design de móveis, no qual utilizou diversos tipos de madeiras. 143 :: Depoimentos - IDART 30 Anos à madeira, que deveria ter sido tratada seguindo várias regras, no que diz respeito à secagem dos móveis, que foram mandados para lá. Alguns não tinham recebido o tratamento. Resultado: não podiam ser montados porque as peças não se encaixavam. Apesar disso, as peças foram vendidas com sucesso porque a região sofreu enorme influência da arquitetura, principalmente do México. Havia uma certa ligação entre a arquitetura da região e esse tipo de móvel, mas tivemos que desistir do projeto porque não tínhamos condições de levá-lo adiante. Tal fato coincidiu com a minha saída da Oca em 1968, quando passei a executar mais trabalhos de interiores, como a sede da Manchete no Rio e o Banco do Estado da Guanabara. Mesmo desligado da Oca, continuei fazendo desenhos para eles e também para outras firmas. Criei um desenho também para móveis de jardim, produzidos pela Tenda do Brasil, para a qual fiz também uma linha para escritórios, passando, depois, a projetos de casas pré-fabricadas. 144 :: O interesse por novos materiais Quanto ao que se poderia chamar de motivação para o desenho de móveis, na faculdade não existia nada nesse sentido. Ensinava-se decoração de interiores, que consistia em fazer ornatos e estudos de época. Por volta de 1947 e 1948 comecei a procurar outros cursos e acabei entrando num ministrado por um hindu, o que me empurrou nesse sentido. Naquele curso, foi a primeira vez que vi a fórmica, um material novo na época. As apostilas traziam novidades. Acabei me entusiasmando pelo assunto de tal maneira que o catedrático David de Azambuja me convidou para ser seu assistente. Minha primeira visita profissional a São Paulo foi com o hindu, professor do curso de decoração que eu freqüentava. Sempre que as pessoas o procuravam com problemas de decoração e que desejavam alguma coisa mais moderna, ele me pedia para opinar sobre a questão. Assim, me nomeou encarregado da decoração moderna. Tudo que era moderno ficava por minha conta. A partir daí, comecei a usar as cores de maneira incomum. A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Em 1978, fui chamado pela Santa Matilde para fazer uma experiência com as casas pré-fabricadas. Na ocasião, realizei um protótipo em estrutura metálica, totalmente desmontável, as paredes e o teto de fibras, o piso de madeira, os armários e containers já fixados na estrutura. A experiência foi aceita, mas a Santa Matilde resolveu mudar de rumo. A experiência coincidiu com a crise do petróleo e, como dependia da resina para a fabricação de fibra de vidro, foi suspensa. Foi uma das únicas vezes em que tive a satisfação de mexer com um material diferente da madeira. :: A madeira Acredito que a madeira não vá oferecer mais grande coisa no campo da invenção. O Thonet12 inventou uma maneira de envergar a madeira, depois se conseguiu tornar o compensado moldável em duas dimensões, até o Saarinen13 conseguir moldar a madeira em três dimensões, quer dizer, quase como um material plástico. Não há mais o que inventar com o material, porém, estamos sempre pesquisando. Minha intenção é procurar uma linguagem brasileira, apesar de discutível. Tenho a impressão de que todo móvel e toda peça que desenho apresenta uma certa sensualidade devido, talvez, ao uso do material; os cantos arredondados têm uma ligação inconsciente com a latinidade. Sou apaixonado por madeira. A minha casa é inteirinha desse material: banheiro, cozinha, tudo de madeira. Não comecei como o Tenreiro, que além de ser um grande artesão é também artista e escultor. Tenho uma consideração muito grande por ele. Meu contato com o material se deu de outra maneira. Admito que sofri influência dos móveis dinamarqueses e dos italianos. Meus primeiros desenhos tinham influência italiana. 12 A história da madeira vergada está atrelada à própria história de Michael Thonet (1796-1871). Em 1859, Thonet criou a célebre Cadeira Thonet, considerada o produto industrializado mais bemsucedido do século XIX, um marco no desenho industrial. Formada por apenas seis peças de madeira, dez parafusos e duas porcas, é de extrema facilidade de montagem. Essa cadeira é símbolo de um móvel eterno, clássico, um ícone conhecido no mundo inteiro. Desse famoso modelo foram produzidos 30 milhões de exemplares até 1930. 13 Eero Saarinen (EUA, 1910 – 1961), arquiteto e designer de origem finlandesa. 145 :: Depoimentos - IDART 30 Anos Quando entrei em contato com o móvel nórdico, fui ver como eles trabalhavam com a madeira, e o meu entusiasmo com o material veio também daí. Por várias vezes, vi alguma coisa minha no móvel dinamarquês, mas não sabia dizer o que era. Comecei a perceber que aquilo tinha a ver com as coisas que eu fazia. Depois, acho que me encaminhei mais para o lado latino, tropical, brasileiro. Darcy Ribeiro chama a Poltrona Mole de “muié-dama” porque é algo que abraça, sensual, onde você se vira à vontade, como se estivesse no útero. Meus dois analistas tiveram uma Poltrona Mole. A poltrona ficou cinco anos na Exposição de Milão e saiu publicada na revista Modern Chair, em reportagem que a considerava um dos trinta assentos mais importantes criados no último século. 146 A Evolução do Design de Mobília no Brasil :: Poltrona Mole, em jacarandá e Cadeira Cantù Baixa, 1958. couro, 1957. 147 Cadeira em jacarandá e couro, Poltrona em jacarandá, 1957/1959. 1958/64. :: Depoimentos - IDART 30 Anos 148 São Paulo, 2008 Composto em Myriad no título e ITC Officina Sans, corpo 12 pt. Adobe InDesign CS3 http://www.centrocultural.sp.gov.br