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Fernando Pessoa e repúnlica utópica

2018, Metamorfoses - Revista de Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros

FERNANDO PESSOA E A REPÚBLICA UTÓPICA Rogério Santana* Toda leitura é feita de impurezas. Tudo que vem pelo signo linguístico vem cheio de interferências semânticas em geral não muito desejáveis. Mas é assim que a leitura acontece. Cheia de impurezas. Para o caso deste artigo, elas são o que nós brasileiros incorporamos quando lemos um texto vindo de Portugal. A travessia marítima pressupõe a incorporação de elementos de sentido que não são considerados por lá. Ler, portanto, é se manifestar em sentido que só tem guarida no ambiente do leitor. Considera-se aqui leitor uma categoria da realidade: leitor com formação suficiente para compreender o conjunto mínimo de sentidos apresentado pelo texto. A obra de Fernando Pessoa nessa altura apresenta algumas dificuldades. No Brasil em particular, ele sofre com a nossa indolência frente a toda história de colonização por que passou o país. O Brasil de fato não quer saber de Portugal, em diversos aspectos. Isso é um dado histórico. Mas quer saber de alguns escritores portugueses, em especial de Fernando Pessoa. Mas de um Fernando Pessoa que talvez tenha sido em parte inventado por aqui. Dada a divulgação da poesia de Pessoa na população de maneira geral, o que se tem são interesses diversos sobre a obra do poeta português. No Brasil ele é qualquer coisa como um poeta a serviço de vários interesses. Fernando Pessoa é um poeta de todos nós. Esse fato traz uma diferença de leitura no Brasil em relação à leitura que se faz dele em Portugal. Usamos e abusamos de sua poesia. Versos retirados sem escrúpulos aparecem nos mais diversos ambientes linguísticos, com redução ou de ampliação de sentido, em geral atendendo ao ambiente. A relação entre poesia e política é um tema apropriado para o poeta Fernando Pessoa, mais do que se imagina. Por isso aplico aqui a tradição dos estudos literários em perceber no discurso poético uma densidade na maneira de ver o mundo pelo conjunto das ações humanas. Isso pressupõe uma articulação que em muitos casos não é tão evidente assim, embora possa ser dimensionada. Considera-se, para o que será analisado em parte da obra de Fernando Pessoa, no âmbito do conceito de «político»: a compreensão das relações que demandam poder, dos elementos que definem a convivência com o propósito de atuação na área do público, bem como a intervenção intelectual ou mesmo a intervenção pessoal na * Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Goiás. Metamorf11.1.indd 107 10/19/11 4:34 PM 108 A poesia e a República em Portugal esfera ainda do público. Para o objetivo específico desta análise, a intervenção intelectual predomina no caso de Fernando Pessoa, sem, contudo, deixar de haver alguns momentos de pura ação política, ainda que através do texto. Se de um lado da dicotomia do título uma parte já está delimitada, da outra, a poesia de Fernando Pessoa, ficam definidos, para apreciações que seguem, os poemas «Mensagem», «À memória do presidente-rei Sidónio Pais» e «Quinto Império», partindo do princípio de que Mensagem é a obra central do poeta, referência máxima para todas as outras. Embora se tome isso como verdade, não significa que todas tenham uma dimensão poética de continuidade em relação ao poema nacionalista de Pessoa. Ou mantêm uma relação direta com ele ou mantêm uma relação indireta, reforçando de alguma forma os sentidos que lá estão. Mas para se chegar à relação entre a poesia de Fernando Pessoa e a política, em particular a República instituída em 1910, levo também em conta os comentários em texto ligeiro e eficiente de Leyla Perrone-Moisés 1, no qual diz a crítica: «O problema é que, cada vez que Pessoa é citado, é em nome de uma verdade; ora, suas verdades são tantas e tão contraditórias que, no conjunto, negam a existência de qualquer verdade». Aliás a contradição já tinha sido apontada en passant por Jacinto do Prado Coelho 2 em 1969: «E o que há de excessivo, de extremista, no nacionalismo que vai apregoar a tal entusiasmo se deve, quando não ao gosto de surpreender pela originalidade escandalosa, de espantar pelo virtuosismo com que defende o paradoxo». Cabe, pois, pensar sobre a verdade na poesia de Pessoa, ou sua verdade em si. O ponto elevado da constatação de Perrone-Moisés é a contradição interna à poesia de Pessoa. Se nela a verdade escapa nas imagens da poesia de cada poeta seu, e muito mais na poesia em conjunto, no seu universo de «drama em gente», é preciso ter como um dos seus fundamentos a própria contradição. Não fica descabida a afirmação nos seguintes termos: a contradição é um dos princípios da poética do fingimento, no sentido dado por ele. Quero com isso deslocar o peso dos sentidos em Fernando Pessoa da esfera da verdade exterior ao texto para a esfera da verdade interior ao texto. Mais uma frase de Leyla Perrone-Moisés 3 para aquecer a afirmação: «Toda a obra de Pessoa gira em torno dessa dicotomia (sentir e pensar), experimentando todos os modos de lidar com ela, até a impossibilidade». A radicalidade é elemento constitutivo da poesia de Pessoa. Por isso a ida «até a impossibilidade», no limite em que «sentir» e «pensar» se tornam elementos apenas de um universo pessoal. No que concerne à verdade da poesia, a questão pode ser vista de outra maneira. Não significa que a verdade do texto seja independente da cultura; sua verdade mantém íntimas e profícuas relações com o mundo do qual ele emerge. Nesse ponto busco o que Michael Hamburger 4 afirma para a dependência do poeta com a história: «A dependência (da palavra) está relacionada ao envolvimento do poeta com a história e com a ciência, à transcendência pelo atalho mágico que leva de volta à natureza e à unidade primitiva da palavra e da coisa». Metamorf11.1.indd 108 10/19/11 4:34 PM Fernando Pessoa e a república utópica 109 E ele conclui: «A verdade da poesia, e da poesia moderna especialmente, deve ser encontrada não apenas em suas afirmações diretas mas em suas dificuldades peculiares, atalhos, silêncios, hiatos e fusões». Ao pensar em Fernando Pessoa à luz do que diz o teórico alemão, podemos apontar sua obra na estreita relação da dependência real e da independência fingida. João Gaspar Simões 5 mostrou com propriedade os vínculos entre fatos biográficos do poeta e sua aplicação poética, devidamente guardadas as evidências históricas. Se tivermos em conta a contradição apontada por Leyla Perrone-Moisés, vemos que a poesia moderna de Pessoa se sustenta na dependência em relação ao seu «nacionalismo utópico»6: «Fernando Pessoa prefere inventar Portugal fechado na sua torre de marfim», afirma o grande leitor da obra pessoana. Lentamente as evidências vão levando os argumentos para o plano poético de qualquer elaboração do criador de heterônimos. E esta é a hipótese que me move por estes tempos: a obra de Pessoa só tem sentido no âmbito dela mesma. Com isso a sua verdade estaria na particularidade de sua essência, no contraditório/paradoxal de suas convicções, na transpoeticidade que, por fim, ela encerra. Se é poeta de todos nós, talvez seja pela eficiência nessa transformação em desconexão real em conexão poética, emergindo de sua feitura mais peculiar uma verdade que só é interna, levante utópico contra o cotidiano de um país imperfeito, na sua visão mitificadora. De maneira categórica, João Gaspar Simões 7 não tem a menor dúvida do interesse de Fernando Pessoa pela política. Afirma o biógrafo: «Não, Fernando Pessoa nunca se desinteressou da política. Pelo contrário, a política foi uma das primeiras preocupações do seu espírito na ‘terceira adolescência’». Se a política entrou na vida do poeta de maneira tão contudente, no seu retorno ao país e principalmente à cultura lusitana, e se o momento político (ditadura de João Franco) foi tão importante para sua decisão de escrever em língua portuguesa, inevitável que ele viesse a contemplar na poesia o que presenciava nos acontecimentos. A participação de Fernando Pessoa na vida intelectual viria já na década de 10, com manifestações à maneira do seu «O preconceito da ordem» 8: «No indivíduo, a constante preocupação da saúde é um sintoma de neurastenia, ou de males psíquicos mais graves ainda. Na sociedade, paralelamente, a preocupação da ordem, é uma doença de espírito colectivo». Já disposto a ver o mundo pelo contraditório, Pessoa 9 chega à conclusão da ordem como uma doença, pela via de estar nela o contrário do que é, no pleno exercício da política partidária. Eis seu argumento bruto: «num país onde todos os partidos tenham a constante preocupação da ordem, se estará em constante desordem e anarquia. É este, mesmo, o único modo de se chegar ao estado de anarquia social. Esse estado provém da excessiva preocupação da ordem». Se o autor é capaz de inverter valores em favor de um argumento que busca no revés seu fundamento, para um ambiente em que predominaria a tradição lógica ocidental do raciocínio, na transpoetização a abolição das amarras históricas vai em Metamorf11.1.indd 109 10/19/11 4:34 PM 110 A poesia e a República em Portugal benefício da verdade da sua poesia. É fato que toda a reflexão de Fernando Pessoa, por ter sido feita em fragmentos, não exerceu a influência talvez pretendida pelo autor. A influência sempre esteve mais por conta de sua poesia. Mas não deixo de ainda caracterizar devidamente a transpoetização delirante de Pessoa. Em entrevista de 1926, ele 10 é assertivo: «O mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo». Se a sua poética é de intensa imaginação, é também de intensa mudança de ordem do pensamento. Caso não fosse, difícil seria entender um poeta da importância de Pessoa. Em «O interregno...» 11, ele é plácido ao afirmar coisas desajustadas: «Escrevemos estas páginas num tom, num estilo e numa forma propositadamente antipopulares, para que o opúsculo por si mesmo, eleja quem o entenda. Tudo quanto, em matéria social, é facilmente compreensível é falso e estúpido. Tão complexa é toda matéria social, que ser simples nela é estar fora dela. É essa a principal razão por que a democracia é impossível». É por conta dessas opiniões polêmicas que Alfredo Margarido e Jacinto do Prado Coelho apresentaram leituras diversas em artigos na Revista Colóquio/Letras. A publicação de alguns textos inéditos de Pessoa mobilizou Jacinto do Prado a aceitar um anti-salazarismo do poeta, ao que recebeu resposta polêmica de Margarido, devoto convicto do reacionarismo do poeta. A defesa desse pensamento em favor da ditadura, mas querendo saber antes «como foi possível a convergência dum homem cujas posições políticas eram discutíveis ou francamente direitistas, com o grande poeta que ele foi, que ele continua a ser e que será enquanto houver língua portuguesa» 12, foi uma posição energicamente rejeitada por Jacinto. Talvez uma contenda como essa não tenha fim. Se é correto pensar assim, novamente a contradição aparece como elemento de solução para o poeta da multiplicidade, de tal forma que o «drama em gente» vai ficando mais amplo do que se imagina. O caráter poético vai tomando conta de tudo em Pessoa. Da impossibilidade de realização de suas ideias, emerge o plano de «ficcionalização» do ato político, no caso dele suas manifestações contraditórias. Mais importante do que definir uma posição frente a uma República recente, é criar ideias sobre ela, sobre o país que pelo seu desejo manifesto sempre deveria andar na esfera do mito. Em última palavra sobre o tópico, Fernando Pessoa se alimenta do utópico, sempre. Em «Mensagem», o verso «Senhor, a noite veio e a alma é vil» se alinha semanticamente com uma frase em seu «A doença da disciplina»: «E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou» 13. Em contextos diferentes, Fernando Pessoa, sempre do seu ponto de vista da impossibilidade, é categórico em desconsiderar a comunidade portuguesa apta para o presente e consequentemente para o futuro. No poema o sentido está na ordem anímica da coletividade; na prosa argumentativa, na virilidade negativa, que vai da Metamorf11.1.indd 110 10/19/11 4:34 PM Fernando Pessoa e a república utópica 111 coletividade à individualidade. A diferença entre os textos está no tratamento que a abstração poética requer e no julgamento direto que a prosa opinativa exige. Mas a ambiguidade está também no âmbito de seu pensamento político, sem se poder definitivamente afirmar que Pessoa é monarquista ou republicano, como bem atesta uma passagem de texto de 1935, em que atesta o sistema monárquico como mais adequado para Portugal, embora ateste também sua inviabilidade. E finaliza: «Por isso, ao haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador de estilo, isto é, liberal dentro do conservadorismo, e absolutamente anti-reacionário» 14. As alternâncias entre pólos guardam um sentido pessoano muito peculiar. Não será somente nesse ambiente semântico que Fernando Pessoa vai se permitir ir além do convencional. E a superação do estado unilateral é uma condição que a poesia permite sem cobranças formais. Assim é que a história passa do centro à margem e vice-versa, na elaboração de Fernando Pessoa, revelando que a poesia, no âmbito dos interesses ideológicos do poeta, é constituída mais pelos interesses poéticos do que miméticos, mais pelos interesses da imagem do que da lógica discursiva, sempre num âmbito de muita formulação mitificada. Os três poemas que abrem as obras do ortônimo na organização de Maria Aliete Galhoz expressam a mitificação; todos os três em torno do sebastianismo. Se, em Mensagem, o poeta termina com «O Encoberto», à espera de que no presente alguém assumisse a envergadura do rei mitificado, em «À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais» há a constatação da dimensão sebastianista em quem foi assassinado em 1918, depois de uma ascensão controversa ao poder, e em «Quinto Império», «Aquele inteiro Portugal» começa com o Mestre de Aviz. A sequência dos três poemas impõe uma leitura histórica que desemboca na matriz mitológica dos três. No primeiro, o histórico; no segundo, o presente republicano; no terceiro, o futuro como superação. Encadeados, eles reforçam a tese pessoana da predestinação, tema também mitificado em «Mensagem». Eis que podemos afirmar que na ambiguidade generalizada de Fernando Pessoa, aflora constantemente a elaboração poética. Dizendo de outra maneira, quase tudo em Fernando Pessoa é poesia, no sentido restrito de que seu pensamento não está condicionado às coerências normalmente exigidas de quem quer intervir intelectualmente. Contrário a isso, mas querendo dizer o que pensa, Pessoa não tem limites de levar para outra esfera o que na poesia é conveniência. Portanto, como o mito requer a formulação, nada mais conveniente que a escrita para dizer e contradizer; enfim, em Pessoa tudo passa pelo exercício da língua escrita, o que lhe permite ser «poético» no sentido mais amplo do termo, ou seja, construir ideias que se sustentam na própria escrita. Definitivamente, Fernando Pessoa é essencialmente linguagem escrita. Parece óbvia a afirmação, mas é a densidade do poeta português. A convicção de que nas palavras se encontra o mundo formulado é que faz do final de seu «O interregno...» muito próximo do final de «Mensagem». Metamorf11.1.indd 111 10/19/11 4:34 PM 112 A poesia e a República em Portugal A utopia de uma República mítica formulada por Pessoa é o mais instigante no âmbito do tema poesia e política na sua obra. E ela está formulada principalmente nos três poemas em questão. Desvendar o mundo de Fernando Pessoa é percorrer sua contradição, ou contradições. Em termos de visão de futuro, Jacinto do Prado Coelho desvenda a fórmula do «nacionalismo utópico», a partir do qual «Fernando Pessoa prefere inventar Portugal fechado na sua torre de marfim»15. Esse nacionalismo está também na ordem do presente, mais precisamente na ordem da República recente. A justificativa dessa pretensão está amparada na condição de que, mesmo numa visão de futuro, Pessoa ecoava em seus textos o frescor dos fatos políticos de maior relevância para a vida nacional. O radicalismo de Pessoa é tão grande que sair de sua escrita é um risco. O risco é considerar a possibilidade de que o que ele escreve é uma projeção do que ele pensa sobre o mundo ou pensa sobre coisas ou pensa sobre ele mesmo. A dicotomia então acaba se reduzindo na escrita; é a escrita que move Fernando Pessoa. A escrita e o resultado advindo dela. O que eu penso sobre o que Fernando Pessoa escreve? Isso é o que ele quer de mim. Não o que eu posso elaborar como um raciocínio lógico, mas o que eu posso sentir a partir das contradições que ele me apresenta. E eu só posso pensar sobre ele como texto. Se pensarmos bem, Fernando Pessoa não tem biografia. Digo biografia que possa ter plena relação com o que se escreve. Mesmo a biografia do cidadão Fernando Pessoa se torna uma das biografias do poeta Fernando Pessoa. E isso significa que ele tem biografias. E são todas elas apenas narrativas, que independem de qualquer grau de verdade. Elas existem por si mesmas. Associadas a elas estão as obras dessas biografias. O que essas obras fazem é tornar essas biografias em narrativas também poéticas. Diria que há um processo de personalização, por meio da criação dos heterônimos. Ele não se divide; dá a face de cada uma das suas possibilidades de vida. Mas são vidas poéticas apenas, portanto tudo misturado nele mesmo. De tal sorte que Fernando Pessoa é sinônimo de poesia. Tudo que ele fez seguiu o princípio básico do fazer poético. Suas interpretações bizarras, suas contradições, suas invenções, tudo está em função do poético. Portanto, só posso lê-lo como uma manifestação poética. Em suma, biografia e obra são produtos poéticos. É nessa dimensão que os poemas com tema histórico devem ser lidos, como manifestação poética voltada para construção da utopia mítica. Dois aspectos se somam nessa trajetória de Fernando Pessoa: tudo é poesia e tudo é mito. Aplicados nos poemas: a construção do poético no plano de uma República utópica, porque mítica. O verso final de «Mensagem», «É a hora!», tem um desdobramento na importância dada por Fernando Pessoa ao seu «O Interregno...»: «Nem há hoje que, no nosso país ou em outro, tenha alma e mente, ainda que combinando-se, para compor um opúsculo como este. D’isto nos orgulhamos.» Arrematando: «É este o Primeiro Sinal, vindo, como foi prometido, na Hora que se prometera.» 16 Nada Metamorf11.1.indd 112 10/19/11 4:34 PM Fernando Pessoa e a república utópica 113 mais curioso do que os finais que se ligam. Se pudermos identificar uma relação é a textual. A tendência ao retórico acaba sendo uma grande força na obra de Pessoa. A vinculação do prometido e do desejo de cumprir a promessa corre tão somente na esfera do discurso. A defesa feita por Fernando Pessoa do militarismo como solução para Portugal, já em 1928, transforma o que era poesia em defesa argumentativa. Para Joel Serrão, «Pessoa foi republicano – e como republicano, tal o entendia, é que não só reflectiu sobre o presente e o futuro da sua Pátria, mas também principiou a escrever o seu primeiro livro» 17. O mais denso será explicar como sua República é fruto de sua utopia. O primeiro aspecto dessa utopia é a continuidade entre argumentação e poesia no plano da impossibilidade, uma das principais forças da poesia de Pessoa. Tratar o presente republicano como forma de reposição do «encoberto» é considerar o político apolítico. Fernando Pessoa não lança luz propriamente nos atos políticos para a transformação necessária; lança luz sobre o que somente ele vê com suas inigualáveis formulações poéticas além de qualquer parâmetro. Como conclusão óbvia, elas indicam o fruto da poética do fingimento, sem o atendimento a princípios de aplicabilidade no âmbito das decisões políticas. Levemos em conta o poema dedicado ao presidente assassinado. Como superar as contradições de seu próprio personagem histórico? Mitificando. Assim é que o poema pode ser entendido como uma extensão do poema-matriz «Mensagem». Alguém deve assumir a condição do «encoberto». Os versos «Mas a ânsia nossa que encarnara, / À alma de nós de que foi braço, / Tornará, nova forma clara, / Ao tempo e ao espaço»18. «Nova forma» é a expressão da pessoalidade que se requer em novo tempo e espaço. Ver Sidónio Pais nessa condição mitificada atende ao propósito do poeta de superar o que ele constata em «O interregno»: «Estamos divididos porque não temos uma ideia portuguesa, um ideal nacional, um conceito missional de nós mesmos». O poeta emprega a concepção mais tarde perseguida por Mircea Eliade, «em sociedades onde o mito é [...] ‘vivo’ no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência»19. Ao mesmo tempo que a formulação de Fernando Pessoa tem um alto grau de abstração, ela é cortada por não sei quanto de pragmatismo embutido. Das contradições já identificadas em tese, essa é uma das mais caras ao poeta, pois seria converter a impossibilidade em possibilidade, o devaneio em realidade, o mito em fato. E isso não foi visto nos anos seguintes à morte do poeta. O retorno numa «nova forma clara» é uma expressão que serve de elo entre o poema dedicado a Sindónio Pais e a terceira parte de «Mensagem». Mesmo que o mito seja em decorrência da ação impetuosa do jovem rei D. Sebastião, ao mito do retorno fica a possibilidade do preenchimento do contorno, de maneira a dar-lhe conteúdo por inteiro, aqui numa «forma clara». De fato, então, «Tornará feito qualquer outro, / Qualquer cousa de nós com ele». Na imprecisão semântica, entretanto, o mundo das designações se torna suficiente; eis que o mito em Fernando Metamorf11.1.indd 113 10/19/11 4:34 PM 114 A poesia e a República em Portugal Pessoa é formulação poética, escolhido na linguagem que lhe devolve uma certa existência, quase independente do mundo, existindo, no entanto, na coerência contraditória do poeta. «Mas basta o nome e basta a glória / Para ele estar conosco, e ser / Carnal presença de memória / A amanhacer». Quem clama pelo encoberto com certeza experimenta a aflição. Assim é que Fernando Pessoa coloca a nação no ponto de envergadura para a superação, como em «Mensagem», «É a Hora», na certeza do desejado. Em estrofe lapidar quanto à presença de «Mensagem» em «À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais», Fernando Pessoa reitera a presença constante do mito na memória coletiva, sem qualquer perda na solução de continuidade poética: «E um místico vislumbre chama / O que, no plaino trespassado, / Vive ainda em nós, longínqua chama – / O Desejado». Mas o poema é feito em memória de, foi-se o agente, ficou a ideia de um retorno. Há, portanto, uma continuidade entre os que vão ocupando a cadeia de sucessores do Encoberto. Sabemos que três escritores são fundamentais na identificação dessa cadeia, presentes na segunda seção da III parte de «Mensagem», «Os Avisos»: Bandarra, António Vieira e o terceiro, o próprio Fernando Pessoa, lá não nomeado. Aqui continua o aviso do escritor do presente, a identificação no Presidente-Rei de mais um membro da cadeia de sucessores. Breve no seu mandato à frente de Portugal, assim Pessoa o vê na passagem entre o homem e o mito: «Que nova luz virá raiar / Da noite em que jazemos vis? / Ó sombra amada, vem tornar / A ânsia feliz». Na ausência do Presidente-Rei, o poeta tem a possibilidade de já estabelecer a relação entre o que ele significou num passado recentíssimo (2 anos atrás) e o futuro da nação em «ânsia». Ele articula as ideias de maneira a estar acima das conveniências políticas, acima mesmo dos limites do discurso restrito ao âmbito político, seja ele manifestação da ação política seja de reconstituição historiográfica. A Pessoa interessa criar a mitificação com base no histórico, de maneira a superar a própria história. Assim é que ele clama: «Torna possível Portugal. / Por teres sido!» É na ausência que a presença mítica se faz. Essa ambiguidade é umas das mais caras a Pessoa. O final do poema, para selar seu vínculo a «Mensagem», é uma retomada do Desejado, no seu eterno retorno; «E a curva novamente volte / Ao que já fomos». Assim é que a última estrofe de «À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais» é de mesma dimensão que os últimos versos do poema-matriz: «E no ar de bruma que estremece / (Clarim longínquo matinal!) / O Desejado enfim regresse / A Portugal!» Joel Serrão chama a atenção para a dimensão esotérica em «O Interregno...», bem como «em tudo mais que em Pessoa do nacionalismo místico prevaleça» 20. Se posso dar corpo textual ao que diz o historiador português, cito uma das afirmações mais contundentes de Fernando Pessoa, em texto de defesa e justificação da ditadura militar em Portugal: «Tão complexa é toda matéria social, que ser simples nela é estar fora dela. É essa a principal razão por que a democracia é impossível»21. De volta à fissura da impossibilidade, em que a pena do sociólogo, na designação Metamorf11.1.indd 114 10/19/11 4:34 PM Fernando Pessoa e a república utópica 115 de Serrão, cria um fosso entre a sociedade portuguesa e o sistema político democrático. Se se voltam os olhos para o poema «Quinto Império», a impossibilidade ganha dimensão na caracterização que Pessoa faz do universo humano português, «Venham do abismo ou da ilusão, / Todos aqui», como fruto quase do nada, de fato a eles não cabe a democracia. Entre a noção de Império e a República, há um descompasso que abre para o poeta um universo poético de imagens aparentemente desconexas. Essa aparência se mantém porque a natureza dos dois textos é muito distinta; entretanto, num arco mais amplo, eles se encontram na «intuição mística», para falar com Joel Serrão. O «aqui» do poema é de fato o sem chão, o espaço que não existe na dimensão histórica, somente mítica, ou mística. «Aquele inteiro Portugal, / Que, universal perante a Cruz, / Reza, ante a Cruz universal, / Do Deus Jesus». A integridade de Portugal está diretamente relacionada à sua postura universal perante a Cruz. Não há, segundo Pessoa, nenhuma possibilidade de manter-se íntegro sem estar à sombra da cruz. Com essa vinculação tão estreita, com um mundo espiritual atuando no mundo material, a visão de futuro de Pessoa, tão presente na maneira de encarar a realidade em torno de si, aponta mais para o negativo do que para o positivo. A utopia republicana do poeta, dessa forma, na medida em que constrói um mundo de linguagem, sustenta-se na estética formalizada, mas também numa estética não formalizada, em que os elementos também estão dispersos, não permitindo que se construa como ideia aplicável uma série de mirabolantes formulações que essencialmente são poéticas em si mesmas. Curioso como «Mensagem» e «Quinto Império» são poemas que atravessam a vida de poeta de Fernando Pessoa. Se o primeiro foi composto de 1913 a 1934 e o segundo, de 1923 a 1935, pode-se inferir que são composições que de alguma maneira foram escritas à medida que o autor também foi formulando seu pensamento sobre o mundo português. Em outro que compõe suas reflexões sobre a política em Portugal, Pessoa fixa o problema na implantação da República: «O que se diz do constitucionalismo pode dizer-se, sem perigo de errar, da implantação da República. Nenhuma reação do espírito progressivo a instaurou; foi um fenômeno, ainda mais adiantado, da nossa decadência, da nossa desnacionalização» 22. A construção de ideias para uma utopia surge dessa visão decadentista que Pessoa herda da geração anterior a sua. A Monarquia, no seu entendimento, é o regime mais afeito aos portugueses, pela submissão coletiva. Mas, se a República é sinônimo de desnacionalização, o que seria posto em seu lugar? Para ele, «o remédio, nesse caso, sobre dever ter um transformador afetivo, deve atender diretamente a unir as classes desunidas e fortalecer o patriotismo de todas»; para emendar com uma solução absurda: «Esse remédio é a guerra – uma guerra qualquer, preferivelmente justa, em que violentamente se lance a nação» 23. Uma guerra qualquer e justa. Difícil entender como o poeta de «Tabacaria» chega a defender uma solução armada para o que deve ser pacífico. Mas há uma saída para o que parece tão definido: à elaboração de uma organização bélica, Metamorf11.1.indd 115 10/19/11 4:34 PM 116 A poesia e a República em Portugal segue-se uma indefinição que tira o poeta do objetivo e o coloca no subjetivo, no meio mais próprio às suas construções, a poiesis, mesmo sem poesia: «o remédio a aplicar tem de ser um transformador mental, criador de interesse e energia»24. A objetividade da proposta armamentista não confere com a imprecisão do que será propriamente um transformador mental, muito menos um criador de energia. Conclusão: Fernando Pessoa é essencialmente um construtor de ideias de papel. O confronto entre textos argumentativos e poesia precipita o conceito de verdade na obra de Fernando Pessoa. Para Michael Hamburger, mesmo que numa leitura de apresentação do poeta português, finaliza com a seguinte consideração: «São os sentimentos do eu empírico que a poesia dilata, complementa ou até substitui por sentimentos fictícios, mas pelo único fato de que o eu empírico não é todo o eu, limitado que está em sua concha de convenções, hábitos e circunstâncias» 25. Se não há uma identificação do eu empírico com todo o eu, pelos fatores que aponta Hamburger, em Pessoa ela é ligeiramente perturbada pelas contradições do poeta já reconhecidas. Com isso as leituras de Pessoa vão sendo afastadas da sua condição normal para uma esfera do inverídico pessoal, mas ao mesmo tempo vão entrando na esfera do verídico poético, da verdade da poesia como verdade em si mesma. Não há conferência que dê conta do imaginativo; ela tem que valer pela coerência que esboça, ou pela incoerência prevista no conjunto dos sentidos que a obra detém. A utopia, portanto, no caso de Fernando Pessoa, está na ordem da utopia poética, associada às concepções de uma República que também entra no seu mundo particular utópico. Talvez seja uma afronta, mas quase nada em Pessoa é aplicável. Por isso que não se procuram nele indicações com o limite de coerência que o pragmatismo exige. Procura-se nele poesia, no sentido restrito do termo, peça literária. Como tal o mundo poético pessoano, poesia e prosa, funciona como uma espiral, em que tudo entra num giro sem fim, no qual o momento de elaboração de qualquer texto tem uma importância ponderável, dada a dinâmica de relações entre textos de diversos momentos. «Mensagem» é o melhor exemplo disso. A sequência dos poemas não corresponde à evolução temporal em que foram escritos. Assim vale para toda a sua obra, talvez com alguma exceção. Recai sobre essa fórmula o peso que tem cada peça literária em si mesma. Em Fernando Pessoa, possivelmente quase nele somente, o texto vale pela vontade exclusiva do poeta. Resumo: A relação entre poesia e política já foi vista há tempos. Sigo aqui uma tradição dos estudos literários em perceber na feitura do discurso poético uma densidade na forma de ver o mundo pelo conjunto das ações humanas. Metamorf11.1.indd 116 Abstract: The relationship between poetry and politics has been recognized for a long time. Here I follow a literary studies tradition in perceiving the depth of poetic discourse as a form of seeing the world through the entire set of human 10/19/11 4:34 PM Fernando Pessoa e a república utópica 117 Isso pressupõe uma articulação que em muitos casos não é tão evidente assim, embora possa ser dimensionada com certa segurança. Considera-se, para o que será analisado em parte da obra de Fernando Pessoa, no âmbito do conceito de «político», não apenas a ação do intelectual, mas também o puro resultado do texto poético. A combinação desses dois elementos será desdobrada na relação entre «Mensagem», «À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais» e «Quinto Império». O principal aspecto a ser apresentado é a República utópica de Fernando Pessoa, um resultado da concomitância entre passado e presente nos três textos. Como o passado se desfaz no presente, resta ao poeta imaginá-lo em outro patamar, o mítico. Do lado do intelectual em ação, seus textos sobre a reorganização política de Portugal são fundamentais: em especial «O preconceito da ordem» e «O Interregno: defesa e justificação da ditadura militar em Portugal». actions. This presupposes a relationship that in many cases is not so apparent, although it can be measured with relative ease. This analysis of part of Fernando Pessoa’s work will consider, in terms of the concept «political», not only the action of the intellectual but also the pure result of the poetic text. The combination of these two elements will be deployed in the relation between «Message», «In memory of the President-King Sidonio Pais» and «The Fifth Empire». The main aspect being presented is Fernando Pessoa’s utopian republic, the result of a concurrence between past and present in all three texts. As the past vanishes into the present, the poet is left to imagine it on another level, the mythical. From the perspective of the intellectual in action, his writings on the political reorganization of Portugal are fundamental, especially The Bias for Order and The Interregnum: defense and justification of the military dictatorship in Portugal. Palavras-chave: República mítica, poesia portuguesa modernista, utopia poética, poesia e política. Keywords: mythical republic, modernist portuguese poetry, utopian poetics, poetry and politics. Perrone-Moisés, Leyla. «Pessoa de todos (os) nós». In: – Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 146. 2 Coelho, Jacinto do Prado. «O nacionalismo utópico de Fernando Pessoa». In: – A Letra e o Leitor, 2.ª ed. Lisboa: Moraes, 1977, p. 199. 3 Op. cit, p. 148. 4 Hamburger, Michael. «A verdade da poesia». In: – A Verdade da Poesia: tensões na poesia modernista desde Baudelaire. Tradução Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 61. 5 Simões, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa: história duma geração, 6.ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1991. 6 Op. cit., p. 201. 7 Op. cit., p. 539. 1 Metamorf11.1.indd 117 10/19/11 4:34 PM 118 A poesia e a República em Portugal Pessoa, Fernando. «O preconceito da ordem». In: – Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 586. 9 Idem, p. 585. 10 Apud Brechon, Robert. Estranho Estrangeiro: uma biografia de Fernando Pessoa. Tadução Maria Abreu e Pedro Tamen. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 406. 11 Pessoa, Fernando. Op. cit., p. 602. 12 Margarido, Alfredo. «Sobre as posições políticas de Fernando Pessoa». Colóquio/Letras, n.º 23 jan., 1975, p. 66. 13 Pessoa, Fernando. «A doença da disciplina». In: – Op. cit., p. 600. 14 Apud Iglésias, Francisco. Op. cit., p. 257. 15 Coelho, Jacinto do Prado. Op. cit., p. 201. 16 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 617-618. 17 Serrão, Joel. «Da República portuguesa e de Fernando Pessoa». In: PESSOA, Fernando. Da República (1910-1935). Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Lisboa: Ática, 1978, p. 15. 18 Todas as citações de poesia de Fernando Pessoa foram retiradas de: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. 19 Eliade, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 8. 20 Op. cit., p. 95. 21 Pessoa, «O Interregno...» In: – Op. cit., p. 602. 22 Pessoa, «Como organizar Portugal». Op. cit., p. 598. 23 Idem, p. 599. 24 Ibidem. 25 «Personalidades múltiplas». In: – Op. cit., p. 206. 8 Metamorf11.1.indd 118 10/19/11 4:34 PM