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A Líbia de Heródoto

2024, Coimbra University Press

Resumo: Neste capítulo, analisamos o relato de Heródoto sobre a Líbia, que compreendia um terço do mundo. Através da narrativa do historiador heleno, buscamos informações importante sobre a geografia, cultura e povos da Líbia, contextualizando a visão helena em relação aos “outros”. A obra de Heródoto desempenha um papel fundamental na historiografia grega e no estudo das interações culturais do Norte da África. Abstract: In this chapter, we analyze Herodotus’s account of Libya, which comprised one‑third of the world. Through the narrative of the Hellenic historian, we seek important information about the geography, culture, and peoples of Libya, offering context to the Hellenic perspective of the “others”. Herodotus’s work remains essential for Greek historiography and the study of cultural interactions in North Africa.

Heródoto e a invenção do outro Confrontos e conflitos culturais Maria Aparecida de Oliveira Silva Maria de Fátima Silva (Coords.) A Líbia de Heródoto The Libya of Herodotus Maria Aparecida de Oliveira Silva Labham/UFPI [email protected] Resumo: Neste capítulo, analisamos o relato de Heródoto sobre a Líbia, que compreendia um terço do mundo. Através da narrativa do historiador heleno, buscamos informações importante sobre a geografia, cultura e povos da Líbia, contextualizando a visão helena em relação aos “outros”. A obra de Heródoto desempenha um papel fundamental na historiografia grega e no estudo das interações culturais do Norte da África. Abstract: In this chapter, we analyze Herodotus’s account of Libya, which comprised one­‑third of the world. Through the narrative of the Hellenic historian, we seek important information about the geography, culture, and peoples of Libya, offering context to the Hellenic perspective of the “others”. Herodotus’s work remains essential for Greek historiography and the study of cultural interactions in North Africa. 1. Portais da Líbia Nosso conhecimento sobre a história dos antigos líbios é limitado, pois resta­ r­am poucos e esparsos registros escritos e materiais. Como observou Smith (2003: 460), os poucos registros que temos sobre a história da Líbia funcionam como portais que nos transportam para diferentes momentos desse povo e região. Isso torna inviável a construção de uma narrativa contínua que trace uma história linear da Líbia desde a antiguidade. Devido a essa lacuna, não podemos comparar os relatos de Heródoto com os de outros autores de sua época. É importante salientar que estamos nos referindo aos autores da antiga Hélade, já que Smith (2003: 466) afirma que o relato de Heródoto sobre os líbios e a Líbia é similar ao encontrado em autores árabes e persas do mesmo período. A localização geográfica da Líbia descrita por Heródoto não corresponde à atual, seu mundo estava divido em três grandes regiões: Europa, Ásia e Líbia. Entretanto, ele considerava essa divisão insuficiente e propôs a criação de uma quarta região: o Delta do Egito, argumentando que “o Nilo se divide em dois braços na bifurcação desse Delta, de modo que poderia estar entre a Ásia e a Líbia” (2.16.1­‑2). Através de sua reflexão sobre a divisão geográfica das regiões, percebemos que não estamos lidando apenas com portais temporais sobre a história da Líbia, mas também com portais espaciais. Diante desses portais, escolhemos adentrar no construído por Heródoto para analisar as ocorrências sobre a antiga Líbia em seus registros e para delinear sua interpretação da região e dos povos que lá habitam. Através desses escritos, Heródoto nos proporciona um retrato do território líbio, correspondente hoje ao Norte da África, delineando 131 A Líbia de Heródoto a grande diversidade étnica da região, manifestada em hábitos, costumes, línguas e traços físicos diferentes. 2. Primeira ocorrência A primeira menção ao povo líbio em Histórias ocorre no episódio em que o rei lídio, Creso, pretende iniciar os preparativos para uma guerra contra a Pérsia, com o intuito de expandir seu domínio na Ásia. Dada a magnitude das conquistas territoriais realizadas pela recém­‑instaurada dinastia Aquemênida, o rei lídio temia uma derrota ao enfrentar Ciro, o Grande. Creso parte em busca de respostas para a inquietante pergunta sobre a pertinência de uma guerra contra os persas e envia mensageiros aos oráculos mais renomados de seu tempo para consultar as divindades sobre a validade do embate almejado. E então somos informados de que o rei “enviou outros à Líbia para consultar o oráculo de Ámon.” (1.46.3). Isso é notável, considerando a barreira geográfica de uma cadeia montanhosa que separa as duas regiões, conforme nos informa Heródoto em sua descrição da geografia do Egito: “Defronte a Líbia, estende­‑se outra cadeia de montanha rochosa do Egito, na qual estão as pirâmides, que está coberta pela areia, e é cortada igualmente pela da Arábia, que nos conduz em direção ao meridiano.” (2.8.2). O mais interessante é notar que este é o único oráculo que não pertence à Hélade e que também não cultua um deus heleno, mas sim egípcio. Essa infor­ mação que nos leva a refletir sobre a influência do Egito nos hábitos, costumes e na religião dos líbios. 3. A Líbia e o Egito As influências dos egípcios nos hábitos e costumes dos líbios podem ser explicadas em grande parte pela geografia da Líbia, conforme descrita por Heródoto. A Líbia é um território limítrofe do Egito, situado a oeste do Delta do Nilo. No entanto, apesar dessa proximidade geográfica, Heródoto (2.12.3) observa que a Líbia “tem a terra mais vermelha e arenosa, enquanto a Arábia e a Síria são as mais argilosas e rochosas”. Em sua descrição geográfica, Heródoto enfatiza a importância das cheias do rio Nilo na expansão das terras agricultáveis do Egito e na fertilidade excepcional do solo egípcio, que o distingue dos demais territórios. Além disso, Heródoto (2.25.1­‑5) elabora uma teoria sobre a origem das águas que alimentam a cheia do rio Nilo, como se segue: Quando o Sol atravessa os territórios do alto da Líbia, faz o seguinte: como durante todo o tempo o ar é sereno nesses territórios, e a região está exposta ao Sol e sem ventos frios; quando o Sol passa por lá, age igual; também durante o verão, como está acostumado a fazer quando vai para o meio do céu; pois puxa para si a água, depois de puxá­‑la, leva­‑a embora para a parte alta do território, quando os ventos a carregam e a dispersam, fazendo­‑a evaporar; e 132 Maria Aparecida de Oliveira Silva os ventos que costumeiramente sopram a partir desta região, o Noto e o Lips, são em muito os mais chuvosos dentre todos os ventos. Mas me parece que o Sol não restituiu a todo o momento para o Nilo toda a sua água anual, mas que também a deixa um pouco para si mesmo. […] Assim os territórios do alto da Líbia sempre têm verão. Após discutir a origem das águas que causam a cheia do rio Nilo, Heródoto destaca o papel determinante do Sol1 no ciclo das chuvas. Ao observar que “os territórios do alto da Líbia sempre têm verão,” Heródoto nos revela sua teoria de que a aridez da parte superior da Líbia é a base das cheias do rio Nilo. Sete capítulos depois, Heródoto retoma2 sua descrição da topografia e do clima da região, observando que “a Líbia tem os territórios situados mais acima cheios de animais selvagens; uma parte dessas regiões mais acima cheias de animais selvagens é arenosa, sem água, é o deserto mais terrível dentre todos.” (2.32.4­‑5). No entanto, Heródoto também observa que a região central da Líbia também se beneficia dessas águas: “pois o Nilo corre da Líbia cortando a parte central do território da Líbia” (2.33.2). Embora o Egito tenha sido o principal beneficiário das inundações do Nilo, devido à expansão significativa de sua área agricultável com o acúmulo de matéria orgânica que a tornava altamente fértil, a ponto de Heródoto afirmar que essa extensão territorial do Egito era uma “dádiva do rio” (δῶρον τοῦ ποταμοῦ) (2.5.1). Observamos que o olhar de Heródoto está voltado para a descrição geográfica da região, mas principalmente para o seu ambiente natural, visto que se preocupa com a vegetação, os rios e suas nascentes, os lagos e as lagoas, montes, montanhas e colinas, a fauna e a flora do território visitado. Em um artigo sobre as descrições feitas por Heródoto, Romm (2007: 178) o chama de naturalista (naturalist), mas chama a atenção para o fato de que o historiador se inspira em uma tradição anterior dos pré­‑socráticos, que se debruçavam sobre questões da natureza para elaborar sua cosmologia, também nas descrições de Hecateu de Mileto. 1 Plutarco relata que os egípcios “expressam por meio de alegorias que a luz do sol se origina da humidade” (τὴν ἐξ ὑγρῶν ἡλίου γινομένην ἄναψιν αἰνιττόμενοι.) (De Iside et Osiride, 355B). Portanto, notamos a influência do pensamento egípcio na compreensão herodotiana das cheias do rio Nilo. Interessante notar a visão dos antigos de que o Sol é uma divindade atuante na regulação da umidade na terra, não havia a compreensão atual do processo de evaporação, mas de uma força divina que sugava a umidade da terra e depois a devolvia por meio de seus raios, como se o Sol fizesse um movimento de absorção da umidade e outro de sua devolução, mas não por completo, o que revela sua necessidade da umidade das águas. Já entre os filósofos estoicos, por exemplo, havia outra interpretação, Plutarco nos informa que eles “dizem que o Sol se sustenta e se alimenta do mar, enquanto as águas das fontes e dos pântanos enviam à Lua doces e suaves exalações.” (De Iside et Osiride, 367E). 2 O episódio narrado por Heródoto apresenta uma característica marcante na narrativa épica de Homero, conhecida como ringkomposition (composição anelar). Essa técnica envolve um relato no qual o autor encerra sua descrição (2.32.4­‑5) com a mesma ideia com a qual a iniciou (2.25.1­‑5). 133 A Líbia de Heródoto A contiguidade territorial da Líbia com o Egito gerava discussões sobre a origem dos povos de algumas cidades situadas em território egípcio. Heródoto relata que os habitantes das cidades de Márea e Ápis, por exemplo, consultaram o oráculo de Ámon com o desejo de que fossem reconhecidos como líbios. No entanto, o desfecho não foi como o desejado, pois o deus não lhes permitiu isso, “respondendo­‑lhes que o Egito era esse território que o Nilo avançava e irrigava, também que os egípcios eram esses que habitavam abaixo da cidade de Elefantina e que bebiam a água proveniente desse rio” (2.18.3). Por meio desse relato, compreendemos que o rio Nilo desempenha um papel crucial na amplificação e fertilização da terra egípcia, enriquecendo o solo e promovendo uma expansão geográfica notável. Em menor escala, os líbios também se benefi­ ciam das águas do rio Nilo, que os mantêm vivos e afastados da sede e da seca. Sua planície se beneficia da aluvião, o que favorece as práticas agrícolas e o abastecimento de cereais.3 Portanto, os líbios que habitam terras banhadas pelo Nilo dependem do rio para sua sobrevivência, assim como os egípcios. É interessante notar que o povo que habita o alto da Líbia não é completamente prejudicado por seu verão ininterrupto. Como observado por Heródoto, esse clima estável proporciona aos líbios uma vida saudável, tornando­‑os “os mais saudáveis dentre todos os homens que já foram vistos” (2.77.3). A associação entre as doenças corporais e as mudanças nas estações do ano era um lugar­ ‑comum no pensamento médico dos antigos helenos. O primeiro pensador conhecido por abordar esse tema foi Hipócrates de Cós, um médico que se destacou por seus conhecimentos durante a peste que assolou Atenas. Hipócrates entendia que cada estação do ano era propícia para determinadas doenças devido a fatores como o clima, os ventos e os hábitos alimentares típicos de cada estação, por exemplo (De natura hominis 8.8). No entanto, o pensamento expresso por Heródoto se assemelha ao registrado por Plutarco ao analisar os poderes de Osíris e Tífon. Plutarco entende que um clima estável colabora para a existência de um ambiente mais saudável.4 3 Heródoto nos conta que: “E o Nilo avança, quando está cheio, não somente sobre o seu Delta, mas também no que é dito território líbico e em alguns lugares do arábico, sendo uma jornada de dois dias em cada uma das duas margens.” (2.19.1). 4 Plutarco registra que “na alma, Osíris é a inteligência e a razão, que é guia e soberana de tudo que excele na terra, nos ventos, nas águas, no céu e nos astros, o que é regulado, constante e saudável, em relação com as estações, as temperaturas, os ciclos vêm de Osíris e emanação da sua imagem; e Tífon é do que existe na alma de sensível, titânico, irracional e impulsivo, também do corpóreo, do que perece e é nocivo e perturbador nas estações impróprias e nas intempéries, nos eclipses do sol e desaparições da lua, como as saídas intempestuosas e as rebeldias de Tífon; (De Iside et Osiride, 371A­‑B). 134 Maria Aparecida de Oliveira Silva Ao tratar dos deuses helenos de origem egípcia,5 Heródoto afirma que o deus Posídon é o único proveniente da Líbia, visto que os egípcios: “conheceram esse deus através dos líbios; pois nenhum deles tinha o nome de Posídon desde o início, a não ser os líbios, que sempre honraram esse deus” (2.50.2­‑3). Essa afirma­ ção indica que Heródoto aplica a abordagem interpretatio Graeca na análise de suas informações sobre deuses egípcios, semelhante ao que faz com os deuses helenos (von Lieven, 2016: 61). Como bem concluiu Hartog (1999: 353), esse processo de olhar o outro com suas próprias lentes é um tipo de representação do mundo em que o autor não se mantém oculto, mas participa dela com sua língua. Um exemplo dessa lente helena sobre a visão do mundo bárbaro em Heródoto está em seu relato sobre o debate em torno da melhor forma de governo para recém­‑fundado Império Aquemênida por Ciro (3.80­‑82). Evans (1981: 80) afirma que esse debate herodotiano sobre as formas de governo segue o pensa­ mento filosófico da Atenas de seu tempo, que encontra seu lugar de expressão no discurso de Otanes (3.80.6): E o governo do povo, em primeiro lugar, recebe o mais belo de todos os nomes: isonomia. Em segundo lugar, aquele que governa sozinho não faz nada dessas coisas ruins; pois os cargos são ocupados por sorteio, e quem ocupa o poder é responsável pela própria gestão, e todas as deliberações são levadas para a comunidade. Portanto, coloco a minha opinião para que nós abandonemos o governo de um só e o elevemos ao povo; pois o todo está na maioria. O termo ἰσονομία nasceu primeiro no contexto médico, com o significado de “equilíbrio”. Alcméon de Crotona, um médico e filósofo pré­‑socrático do início do século V a.C., abordou esse seu conceito em um dos seus fragmentos compilados por Aécio (4.30.1), afirmando que “a saúde consistia em um estado de equilíbrio (ἰσονομία) dos elementos do corpo”. Esse conceito foi amplamente discutido pela filosofia sob a perspectiva do equilíbrio da privação e da necessi­ dade. No campo político, o termo ἰσονομία adquiriu o significado de igualdade de direitos civis e políticos, o que alimentou o conceito de democracia, especial­ mente em Atenas. Embora Heródoto não utilize o termo “democracia”, ele afirma que a ἰσονομία é característica de um “πλῆθος δὲ ἄρχον”, que pode ser traduzido por “governo do povo”, evocando a noção de democracia. Forsdyke (2001: 333) afirma que Heródoto espelha o pensamento democrático ateniense do século V a.C. que as cidades democráticas eram mais fortes que as tirânicas. E esses foram os principais aspectos analisados por Heródoto sobre influên­ cias mútuas entre líbios e egípcios no segundo livro de suas Histórias, que segue o estilo próprio do autor, com relatos, hábitos e costumes, descrições geográficas, arquitetura de suas cidades, os templos e oráculos, entre outros assuntos. 5 Sobre os deuses egípcios cultuados na Hélade, consultar: Silva 2017: 38­‑49. 135 A Líbia de Heródoto 4. A geografia da Líbia O historiador Heródoto possuía um conhecimento mais abrangente sobre a história da Líbia do que foi registrado em suas Histórias, porque nos informa que redigiu um livro intitulado Histórias da Líbia (οἱ Λίβυκοι λόγοι) (2.161.3). Embora não conheçamos a obra que Heródoto escreveu sobre a história da Líbia, no quarto livro de suas Histórias, encontramos descrições de seus hábitos e costumes, bem como de sua geografia e outras particularidades. Estas informações provavelmente derivam de anotações feitas durante suas investigações para a escrita da história dos líbios. Sobre o nome dado ao território, Heródoto nos conta que seu nome é o mesmo que o de uma mulher local: “Líbia vem de Líbia, é contado pela maioria dos helenos que o nome vem de uma mulher da região” (4.45.3). Nesse processo de interpretatio Graeca, ele considera a versão dos helenos como a verdadeira. Na mitologia helena, Líbia é o nome de uma ninfa, filha de Épafo, ou Io, e de Zeus. Líbia gerou com o deus Posídon os filhos Belo e Agenor, os dois heróis míticos da Fenícia e do Egito. Assim, a narrativa herodotiana combina investi­ gações com relatos míticos e faz com que ambos pareçam verdadeiros e fidedignos, porque são postos em um mesmo plano documental. Um exemplo disso é a sua primeira referência à Líbia no quarto livro, onde Heródoto descreve o território dos citas e utiliza um verso homérico como se este retratasse a realidade: “Na Líbia, onde os cordeiros já nascem com chifres”6 (4.29.4). Com essa referência a Homero, notamos a permanência do interesse dos helenos em narrativas que relembram as aventuras do herói Odisseu, incluindo citações dos lugares por onde ele passou, como é o caso da Líbia (Od. 4.81­‑89).7 No entanto, as referências aos locais visitados por Odisseu esteve não se alinham completamente com a geografia homérica, pois Heródoto critica, por exemplo, o fato de que o poeta conta que o rio Oceano circundava a Terra (2.21). Ao se ocupar da geografia da Líbia, detalhando sua localização e topografia, Heródoto afirma que seu território forma uma península (4.41) que se estende até o Egito, ocupando uma estreita faixa do território com características de planície. (4.42.2). A descrição geográfica de Heródoto demonstra que o Vale do Nilo é a sua referência espacial do mundo, como vimos, a ponto de sugerir que esta região fosse considerada a quarta parte do mundo ao lado da Ásia, Europa e Líbia. E embora o nome da região nos remeta à mitologia helena, foram os fenícios que Od. 4.85 (tradução nossa). Na tradução de Christian Werner (2014): “Sim, após muito padecer e muito vagar,/ conduzi­‑as nas naus e no oitavo ano cheguei,/ depois de vagar por Chipre, Fenícia e entre egípcios;/ os etíopes alcancei, os sidônios, os erembos/ e a Líbia, onde cordeiros de súbito têm chifres completos./ Três vezes ovelhas procriam no ciclo de um ano;/ lá nem senhor nem pastor têm carência/ de queijo e de carne e nem de leite doce,/ mas sempre têm leite abundante para a ordenha.” (Od. 4.81­‑89). 6 7 136 Maria Aparecida de Oliveira Silva tornaram a Líbia conhecida, pois plantavam trigo na área em que o rio Nilo a fertilizava. Foi em razão da circum­‑navegação que os fenícios realizavam no Norte da África que homens de seu tempo conheceram a Líbia (4.42­‑43). Mais tarde, a rota de circum­‑navegação da Líbia descoberta pelos fenícios foi tomada e utilizada por Dario para dominar a Índia por meio da navegação do rio Indo. Nessa ocasião, o rei persa expandiu seu poderio naval e o direcionou para a exploração de territórios desconhecidos; estas expedições se destacaram pelas descobertas de novos territórios na Ásia (4.44.1). Sobre a veracidade dessa circum­‑navegação, Stiffe (1901: 203­‑204) escreveu uma longa nota que nos esclarece sobre sua factibilidade, com a história de um português chamado Diego Botello que conseguiu realizar a circum­‑navegação da Líbia, revelando assim que sua execução permaneceu nos tempos modernos. O desconhecimento geográfico do território europeu pelos helenos sugere que seus olhares estavam mais voltados para o que chamavam de Ásia e Líbia (4.45.1). Como notou Talboys (1854: 7), as regiões situadas à oeste estavam mais desenvolvidas, a Hélade, que estava situada na Europa, estava quase à margem do mundo conhecido. O novo mundo dos helenos continuava a ser a Líbia e a Ásia, devido ao intenso intercâmbio comercial e à disponibilidade de terras agricultá­ veis, que não demandavam custos de transporte para atingir o local de comércio, como vimos no caso dos fenícios que plantavam na região e certamente já vendiam os grãos em entrepostos asiáticos e líbios. Heródoto ainda nos informa que a Europa foi fundada por povos de origem asiática (4.45.4­‑5): E de fato a Europa não é conhecida por nenhum dos homens; não se sabe se é banhada por águas por todos os lados, nem de onde ela recebeu esse nome, nem está claro quem foi o que o colocou, a não ser que digamos que o território recebeu esse nome da tíria Europa; e antes não tinha nome, tal como as outras duas terras. Mas ela certamente parecia que vinha da Ásia e não chegou até essa terra que é chamada de Europa pelos helenos, mas que da Fenícia para Creta, e de Creta para a Lícia. A partir desse ponto de sua narrativa, Heródoto inicia seu relato sobre a expedição militar de Dario contra a Cítia. Como é característico de seu estilo, ele também tece comentários e descreve costumes e hábitos desse povo (4.46­‑144). Após concluir a narrativa sobre os embates entre persas e citas, Heródoto conta a história da fundação da colônia de Cirene e de seu fundador, Bato (4.145­‑167). 5. A Fundação de Cirene Antes de retomar seu relato sobre a expedição persa contra a Líbia em 512 a.C., Heródoto desvia do tema e centra­‑se na história da fundação de Cirene,8 8 Cirene é uma cidade consagrada ao deus Apolo; para mais detalhes, cf. Nicolai (1992). 137 A Líbia de Heródoto uma colônia helena de origem lacedemônia e um importante entreposto comer­ cial líbio. Por meio do relato herodotiano, conhecemos os acontecimentos anteriores à fundação da cidade; ele nos informa que descendentes dos tripulantes da nau Argo foram habitar na região do monte Taígeto, e que deles descendem os lacedemônios que foram habitar em Tera, uma ilha do mar Egeu (4.145­‑149). Sobre as circunstâncias que levaram Bato a fundar essa colônia helena na Líbia, Heródoto (4.150.1­‑3) nos conta que: Então, até esse ponto do meu relato, os lacedemônios contam a história conforme o que contam os tereus, e a partir deste ponto dela, somente os tereus contam os acontecimentos que se seguem. Grino, o filho de Esânio, que era rei de Tera e descendente desse mesmo Teras, chegou a Delfos trazendo uma hecatombe em nome de sua cidade; acompanhavam­‑no também outros cidadãos, além deles, Bato, filho de Polimnesto, que era da linhagem de Eufemo, um dos mínios. E quando Grino, o rei dos tereus, estava consultando o oráculo para outros assuntos, a Pítia disse­‑lhe para fundar uma cidade na Líbia. E ele se virou em resposta dizendo: “Eu, ó Soberano, já estou muito velho e pesado para ser escolhido; e tu, ordena isso a alguns destes mais jovens.” E ao mesmo tempo em que dizia isso, apontava para Bato. Ao afirmar que as informações obtidas dos lacedemônios alcançavam até um determinado ponto da história, Heródoto justifica sua conclusão de que os lacedemônios não se importavam com que havia acontecido com os que habita­ vam em torno do Taígeto, ou que informações externas dificilmente circulavam entre eles. E Heródoto realça a singularidade do acontecido ao afirmar que os tereus não deram muita atenção ao que foi dito pela Pítia e decidiram não enviar ninguém, pois não conheciam a localização da Líbia (4.150.3). O desdém dos tereus custou­‑lhes sete anos de estiagem, e todas as árvores da região secaram. Então, eles retornaram ao oráculo de Delfos e consultaram novamente a Pítia que outra vez lhes aconselhou a fundação de uma colônia na Líbia (4.151.1). Nesse episódio, como em outros,9 o oráculo do deus Apolo é determinante na dinâmica das ações dos agentes envolvidos e no desenrolar dos acontecimentos. Heródoto narra suas histórias com um olhar trágico que interpreta os aconteci­ mentos através da ancestralidade, dos sonhos ambíguos, dos oráculos mal interpretados e da constante presença de Delfos, elementos da tradição poética de Homero a Píndaro que, segundo Herington, demonstram a dependência da 9 Nesse episódio, observamos a participação ativa do oráculo na fundação de uma colônia. No primeiro livro, por exemplo, o oráculo desempenha um papel crucial como instrumento político de aquisição de poder, conforme evidenciado neste registro: “os Heraclidas são descendentes, nascidos de uma escrava de Iárdano e de Héracles, receberam o poder por causa de um oráculo, governando por vinte e duas gerações de homens, por quinhentos e cinco anos” (1.8). Além disso, vemos consultas aos oráculos para a adoção de novos deuses na cidade (2.57), a construção de novos santuários aconselhada por um oráculo (2.149), a organização de expedições militares (1.30; 5.1 e ss.), entre outros. 138 Maria Aparecida de Oliveira Silva tragédia ática em sua visão de causa e efeito dos fatos (1991: 7). Não por acaso, os acontecimentos posteriores ao oráculo proferido estão imbrincados ao que foi dito pela Pítia, em nome do deus Apolo. O oráculo atua para o conhecimento humano da vontade divina, como se tudo estivesse escrito, à espera somente de sua concretização (4.155), como vemos no registro a seguir: Pois os líbios falam báttos para se referirem ao rei; e por esse motivo, penso que a Pítia, por conta do que havia profetizado, ela o chamara assim na língua líbia, porque sabia que ele seria rei na Líbia. Quando Bato se tornou um homem adulto, foi a Delfos para se informar a respeito da sua fala; e depois que ele consultou o oráculo, a Pítia lhe proferiu o seguinte: Bato, vieste pela tua voz; mas a ti o soberano Febo Apolo à Líbia envia, rica em rebanhos, para fundar uma colônia, tal como se tivesse falado utilizando a língua helena: “Ó rei, vieste pela tua voz.” E Bato respondeu isto: “Ó Soberano, eu vim a ti para consultar o oráculo sobre a minha voz, mas tu me previste outras coisas impossíveis ao me ordenar que funde uma colônia na Líbia; com que poder, com qual autoridade?” Bato relutou em cumprir o que fora ordenado pelo oráculo. Somente depois de consultar outro oráculo é que ele partiu para o que pensava ser a Líbia, onde fundou uma colônia. No entanto, a prosperidade ainda não havia chegado à sua terra natal, o que levou os tereus a consultar novamente o oráculo. (4.157.1­‑2). Em resposta ao oráculo que reafirmara o dito anteriormente, Bato partiu outra vez para a Líbia, mas não para o território destinado a ele. Embora tenha permanecido lá por seis anos, precisou da ajuda dos líbios para encontrar a terra (4.158.1). E Bato reinou por 40 anos em Cirene e foi sucedido por seu filho Arcesilau, que reinou por mais 16 anos. Quando Bato III assumiu o trono, houve um oráculo que exortou os helenos a se estabelecerem em Cirene (4.159.2). Neste ponto de seu relato, torna­‑se mais evidente o interesse de Heródoto em contar a história da fundação de Cirene, já que os helenos povoaram a região e expulsaram os habitantes locais, fundando outras colônias (4.160­‑166). Além disso, a cidade de Cirene e seus arredores representavam a expansão dos hábitos e costumes helênicos em territórios bárbaros, um sinal do pensamento civilizador presentes em autores como Homero e o seu herói, Odisseu. Um aspecto que Heródoto pode ter omitido é a tensão existente entre os cireneus e os líbios, como sabemos por informações posteriores encontradas nas cartas de Sinésio. Em sua análise da representação dos líbios nas cartas de Sinésio, Marshall (2000: 140) demonstra que os cireneus conviviam com líbios, ora em paz, ora em guerra, e que havia uma tensão persistente entre eles devido à disputa pela ocupação da região. A descoberta de um grande santuário dedicado a Deméter e Perséfone em Cirene, como mencionado nas escavações de White (1981: 13­‑30), ressalta a influência e presença da cultura helena nessa região. Esses elementos culturais e 139 A Líbia de Heródoto religiosos demonstram como as colônias helenas desempenharam um papel significativo na disseminação de sua cultura em territórios bárbaros, contribuindo para a complexidade das interações culturais na Líbia. 6. Os povos nômades da Líbia Heródoto, em suas Histórias, apresenta uma visão interessante dos líbios que foram influenciados tanto pelos egípcios como pelos helenos. Esses povos habitavam terras próximas ao Egito e também em território egípcio. Além disso, os helenos fundaram colônias na Líbia, ocupando não apenas Cirene, mas várias cidades ao seu redor. Ao concluir sua breve narrativa da história cirenaica (4.145­ ‑167), Heródoto observa que: “existiam de fato muitos e diferentes povos dentre os líbios, e um pequeno número deles eram súditos do rei, enquanto a maioria em nada se preocupava com Dario” (4.167.3). Isso nos leva a entender que os líbios mais influenciados por egípcios e helenos temiam os persas, ao passo que os líbios nômades identificados, embora também influenciados, mantinham suas raízes culturais e não se preocupavam com os persas. Heródoto descreve um território onde diversos povos influenciam uns aos outros em diversos aspectos. O primeiro mencionado são os adirmáquidas, que “são os únicos que apresentam suas jovens virgens ao rei quando vão se casar; e a que ao rei for a mais bela, esta será desvirginada por ele. E esses adirmáquidas estão presentes do Egito até o porto cujo nome é Plino.” (4.168.2). Os adirmáquidas são seguidos pelos giligamas que “utilizam costumes iguais aos outros líbios” (4.169.2). Em seguida, vêm os asbistas, que eram periecos que habitavam no interior de Cirene, enquanto os cireneus ocupavam o litoral (4.170). O auquisas habitavam no interior de Barce, perto dos bacales (4.171). Os nasamões eram dedicados ao pastoreio e à colheita de tâmaras, e seguiam os costumes dos masságetas, um povo cita, que tinham a prática de ter muitas mulheres, com as quais todos compartilhavam (4.172.2). Os nasamões também habitavam o antigo território dos psilos, que foram aniquilados por uma tempes­ tade de areia provocada pelo vento sul (4.173). Os ganfasantes viviam isolados e não tinham contato com outros povos, desconhecendo a guerra (4.174). Os macas se destacavam por seus cortes de cabelos e pelo uso de peles de avestruz como armas, habitavam a colina das Cárites, coberta por florestas (4.175.2). Sobre os costumes das mulheres bárbaras, Heródoto frequentemente aborda suas atividades, principalmente a vida sexual, como no caso dos gindanes (4.176): Na sequência dos macas estão os gindanes, dentre os quais, as mulheres; cada uma delas usa uma grande quantidade de argolas de couro nos tornozelos, como se diz: para cada homem com quem ela tenha mantido relações sexuais ele amarra uma argola em seu tornozelo; a que tiver a maior quantidade delas, essa é considerada a melhor, porque foi amada por mais homens. 140 Maria Aparecida de Oliveira Silva A natureza dessas observações nos leva a considerar que Heródoto tinha a intenção de contrastar a imagem da mulher helena casta com a da bárbara libertina. É válido lembrar que suas Histórias foram lidas em várias partes da Hélade, incluindo Atenas, Olímpia e Túrio, onde o próprio Heródoto leu sua obra. Portanto, seus relatos também refletem a visão dos helenos com quem ele dialogava, pois controlavam suas mulheres e tinham o direito adquirido de mantê­‑las encerradas em seus recintos. Como também notou Wenghofer (2014: 516), Heródoto tem a preferência por retratar bárbaras que ultrapassam as barreiras morais, que são permissivas ou prostitutas em suas regiões, então o autor nos lembra a descrição das mulheres líbias libertinas, que tinham o hábito de ter muitos homens e de se prostituir (1.93.4). Em um extenso e denso artigo, Rosellini & Saïd (2000: 949­‑1005) arrolam os relatos em que Heródoto delineia um retrato deplorável da mulher bárbara sob o ponto de vista da sua sexualidade, em geral, apresentada como excessivamente licenciosa. Na sequência, Heródoto descreve o povo dos lotófagos, o mesmo que Odisseu afirma ter encontrado, conforme estes versos homéricos: “ao tentar dobrar o cabo Maleia, ondas, corrente/ e Bóreas desviaram­‑me, e vaguei para longe de Citera./ De lá, nove dias, fui levado por ventos ruinosos […] na terra dos lotófagos, que comem alimento floral” (Od. 10.80­‑84).10 Porém, como notou García (2008: 175), a localização dada por Homero não é precisa, não se pode afirmar que os lotófagos de Homero habitavam a Líbia, pois Heródoto é o primeiro a detalhar o lugar que ocupam. O autor nos lembra ainda que, após serem levados por um forte vento, os Argonautas também aportaram na Líbia, mas não há qualquer menção aos lotófagos.11 Heródoto afirma que “os lotófagos, que vivem se alimentando somente do fruto do lótus (τοῦ λωτοῦ καρπός). E o fruto do lótus é quase do tamanho do fruto do lentisco, e é doce como o fruto da tâmara. E os lotófagos também fazem vinho desse fruto” (4.177). Por outro lado, no relato homérico, os lotófagos comiam “um alimento floral” (ἄνθινος) (Od. 9.84) e mais adiante fala em “um fruto melífluo” (μελιηδέα καρπόν) (Od. 9.90), que coincide com o relato herodo­ tiano. Assunção (2016: 275) nos informa que Teofrasto (Historia plantarum 4.3.1­‑2) afirma que o fruto dos lotófagos é “saboroso e inofensivo e, ainda, bom para o ventre;” notamos então que Heródoto segue a tradição homérica e transforma o fruto ou a flor do lótus em um alimento com capacidade alucinógena. Tradução de Christian Werner (2014). “[..] Mas ainda/ não era destinado aos heróis pisarem na terra acaia/ até que também sofressem nos confins da Líbia. [..] Este é um relato das musas, eu canto obediente/ às Pérides e ouvi com toda exatidão essa história: que vós, ó mais valorosos filhos de reis,/ com força e virtude levastes, pelas ermas dunas/ da Líbia, a nau suspensa e tudo o que havia nela,/ carregando­‑a sobre os ombros durante doze dias inteiros/ e doze noites.” Tradução de Fernando Rodrigues Junior (2021). Cf. Apolônio de Rodes, Argonáuticas 4.1225 e ss. 10 11 141 A Líbia de Heródoto A perspectiva de Heródoto sobre o herói heleno como civilizador de povos é evidente em seu relato sobre os lotófagos. Enquanto nos versos homéricos, eles eram conhecidos como agricultores, como lemos neste verso: “chegou à gorda lavoura dos varões lotófagos”,12 o relato de Heródoto revela que os lotófagos eram conhecedores da técnica de produção do vinho, apesar de não terem videiras, usavam o fruto da flor de lótus. A afirmação de Heródoto de que os lotófagos consumiam vinho feito a partir do fruto do lótus levanta a possibilidade de que Odisseu, que esteve entre eles, possa tê­‑los ensinado a produzir essa bebida. Essa perspectiva do heleno civilizador do mundo bárbaro é recorrente na obra de Heródoto. Um exemplo adicional pode ser observado no quarto livro, que relata a missão civilizadora de Héracles, responsável pela origem e por certos hábitos dos citas (4.9­‑10). No entendimento de Hartog (2004: 112), esse processo evidencia que o modo de vida do heleno poderia ser ensinado ou adquirido por meio da educação. Na sequência, Heródoto conta que Jasão também teve dificuldades ao atraves­ ­sar o cabo Málea e foi surpreendido pelo vento que “o levou embora em direção a Líbia; e antes de avistar a terra, estava nas águas rasas do lago Tritônis”. Ele completa afirmando que “haveria uma absoluta necessidade de que fundassem cem cidades filhas da Hélade às margens do lago Tritônis” (4.179.3). Portanto, vemos duas formas com as quais os helenos deixavam sua descendência, hábitos e costumes que aproximaram os bárbaros dos helenos. A primeira é através dos relacionamentos sexuais entre os heróis helenos e as mulheres bárbaras que davam origem a novos povos, como no caso de Héracles. Em segundo lugar, a fundação de colônias, onde os descendentes dos helenos passaram a habitar, formando um pedaço da Hélade no mundo bárbaro. Os máclios eram vizinhos dos lotófagos, e Heródoto acrescenta que eles utilizavam menos o lótus (4.178). Depois deles vêm os auseus, que também habitam em volta do lago Tritônis e diferem em aparência porque “os máclios também deixam os cabelos crescerem atrás da cabeça, enquanto os auseus os deixam na parte da frente” (4.180.1). Os povos citados até esse ponto do território são habitantes do litoral, são os nômades líbios identificados. Em seguida, na direção sul, depois de atravessar uma região repleta de animais selvagens, e os “amônios são os primeiros que estão a um caminho de dez dias a partir de Tebas, cujo templo segue o modelo do de Zeus Tebano” (4.181.2). Em uma montanha de areia, habitavam os augilos, e nas colunas de sal, os garamantes, que distavam deles cerca de dez dias de caminhada, o mesmo local em que os nasamões colhiam tâmaras (4.183). Ao descrever os garamantes, Heródoto nos revela uma região não somente repleta de animais selvagens, como vimos acima, mas também de homens selvagens, como os trogloditas (4.183.4). Porém, é preciso ter em 12 142 Tradução de Christian Werner (2014). Maria Aparecida de Oliveira Silva mente que o relato de Heródoto alimenta estereótipos já existentes entre os antigos helenos sobre os povos mais afastados, tratando o que foi ouvido como realidade (Török 2005: 113). Ainda há os atarantes, que têm nome coletivo, mas não individual, segundo Heródoto, mas ele não nos esclarece qual o sistema de identificação de cada um, uma vez que não utilizavam nomes para cada um deles. Estes também se comportavam de modo selvagem, profanando as divindades. Um exemplo dado foi quando o Sol se tornava escaldante, eles lançavam imprecações contra ele (4.184.2). Depois temos os atlantes que recebem este nome por causa da montanha Atlas, em torno da qual habitavam. Heródoto conta ainda que: “que eles não se alimentam com nada vivo nem com o que veem em sonhos” (4.184.4). Esses são os últimos líbios nômades que Heródoto conhece pelo nome. Quanto aos costumes desses povos, Heródoto afirma (4.186): Assim, do Egito até o lago Tritônis, os líbios são nômades que comem carne e bebem leite; também não provam carne de vaca, por esse mesmo motivo que não a provam os egípcios, e não criam porcos. Então as mulheres dos cireneus também julgam que não é digno comer carne de vaca por causa de Ísis do Egito, mas também elas realizam festas e jejuns em sua honra. E as mulheres dos barceus não provam carne de vaca nem de porco. E de fato esse território é assim. 7. Os inominados nômades e os sedentários da Líbia Após descrever os povos líbios nômades identificados, Heródoto registra que “depois do território que está na direção do poente do lago Tritônis, os líbios não são mais nômades, não adotam os mesmos costumes” (4.187.1). Em seguida, ele inicia a exploração dos hábitos e dos costumes dos povos nômades de nomes desconhecidos, que denominamos inominados nômades, e dos povos sedentários, além de realizar uma análise da geografia e dos recursos naturais de seus territórios. Embora Heródoto afirme que a oeste do lago Tritônis os líbios não eram mais nômades, a parte dedicada à descrição dos costumes dos povos líbios que não eram nômades apresenta diversos costumes que eram seguidos apenas pelos inominados nômades. É perceptível que Heródoto constrói uma narrativa que contrasta as práticas dos povos inominados nômades com as dos sedentários, como evidenciado pelo registro do ritual que os pais nômades deviam seguir (4.187.2­‑3): Pois os líbios nômades, se são todos eles, não posso dizer isso com certeza, fazem as seguintes coisas: quando seus filhos completam quatro anos de idade, com a lã gordurosa das ovelhas queimam as veias das suas cabeças, e alguns deles também queimam as das têmporas, por este motivo: para que no futuro a fleuma que desce da cabeça não lhes seja prejudicial; também por isso que os líbios dizem que são os homens mais saudáveis. 143 A Líbia de Heródoto Heródoto continua sua narrativa, descrevendo como os inominados nômades realizavam seus sacrifícios em honra ao Sol e à Lua, enquanto menciona que aqueles “que habitam em torno do lago Tritônis sacrificam especialmente a Atena, junto com Tritão e Posídon.” (4.188). Nesse paralelo entre os rituais religiosos, Heródoto aponta as características primitivas desses inominados nômades ao cultuarem deuses ligados à natureza, como o Sol e a Lua, ao passo que os líbios estabelecidos no território cultuam deuses citadinos, especialmente divindades tipicamente associadas aos atenienses, como Atena e Posídon. É interessante observar que Heródoto entende que os líbios tiveram influên­ cia nos rituais religiosos dos helenos. Ele provavelmente chega a essa conclusão porque compreende que os líbios estabelecidos no território eram descendentes dos helenos que fundaram colônias na região. Ele acredita que as práticas religiosas dos helenos continentais ou insulares foram influenciadas pelo desenvolvimento das colônias helenas da Líbia, como vimos no exemplo dos deuses egípcios entre os helenos (2.52). Heródoto comenta essa influência da seguinte maneira (4.189.1­‑2): E certamente os helenos fizeram as roupas e as égides das imagens de Atena influenciados pelos líbios; pois, exceto pelo fato de a roupa dos líbios ser feita de couro e as franjas das suas égides não terem serpentes, mas serem feitas com correias, mas todas as outras coisas são feitas do mesmo modo. E, além disso, o próprio nome anuncia que vem da Líbia a roupa dos Paládios; pois as líbias colocam peles de cabra sem os pelos sobre suas roupas, adornadas com franjas e tingidas na cor vermelha, e dessas peles de cabras, os helenos o tomaram o nome. Desse relato salta aos olhos a afirmação de Heródoto de que os líbios influen­ ciaram a maneira como os helenos representavam a deusa Atena, uma divindade intimamente relacionada ao imaginário religioso da Hélade, especialmente da cidade de Atenas. Por outro prisma, Heródoto parece esclarecer aos atenienses que ouviam sua leitura que, embora pudessem afirmar que eram autóctones,13 algumas de suas práticas não o eram; essas práticas também eram influenciadas pelas colônias da Ásia. Com isso, Heródoto demonstra que não apenas a metró­ pole deixou suas marcas culturais nas colônias, mas que também que as colônias contribuíram com marcas culturais resultantes do encontro de culturas distintas. 13 A crença de que os atenienses eram nativos da Ática e habitavam a região desde os tempos imemoriais desempenhou um papel importante em sua identidade e mitologia. Essa convicção na autoctonia do povo da Ática estava relacionada à sua conexão com a deusa Atena, a protetora de Atenas, que lhes havia presenteado com a oliveira. O relato de Tucídides reforça esse pensamento: “A Ática, em todo caso, desde a mais remota Antiguidade, por causa da aridez do solo, não era perturbada por disputas e habitaram­‑na sempre os mesmos homens”. (Thuc. 1.2.5), tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado (2008). 144 Maria Aparecida de Oliveira Silva Vale lembrar que Heródoto (4.180) apresenta outra versão do mito mais conhecido de Atena, que é o de ser a filha virgem nascida da cabeça de Zeus após seu pai ter engolido a deusa Métis, grávida de Atena. O relato herodotiano encontra eco em Aristófanes (Eq. 1189, onde se refere à deusa como Tritogênia, ou a “nascida do lago Tritônis” na Líbia. Além disso, Hesíodo (Th. 924­‑926) também relata que Atena nasceu da cabeça de Zeus e a chama de Tritogênia no verso 895. Portanto, a narrativa herodotiana não apresenta uma versão desconhe­cida na Hélade, o que sugere que a parte de seu mito permaneceu no imaginário heleno e que a parte em que menciona a Líbia foi esquecida ao longo do tempo. Por seu caráter crítico e irreverente, Heródoto nos lembra a origem líbia de Atenas, que é o símbolo máximo da cidade de Atenas. A nosso ver, o esquecimento da origem líbia de Atena faz parte de um discurso identitário ateniense que se apropria de símbolos alheios para torná­‑los autóctones através de um processo de reinter­ pretação e esquecimento. Como Heródoto informara antes, a partir deste ponto do seu relato, não conhecia os nomes dos povos nômades dessa região. A parte do território líbio não habitada por inominados nômades é descrita por Heródoto (4.191) assim: E o território em direção ao oeste do rio Tritão, dentre os auseus, já existem alguns líbios que utilizam arados e têm o costume de construir casas, que recebem o nome de máxies, os que mantêm cabelos no lado direito de suas cabeças enquanto os raspam do lado esquerdo, e pintam seus corpos com vermelhão. E eles dizem que são descendentes dos varões troianos. E esse território e o restante do território da Líbia que está voltado para o poente é em muito mais infestado de animais selvagens e mais arborizado que o território dos nômades; pois o território da Líbia voltado para a aurora é onde os nômades habitam, e é baixo e arenoso até o rio Tritônis, e deste ponto em direção ao poente, o território é o dos lavradores, e é muito montanhoso, arborizado e infestado de animais selvagens. Em linhas gerais, Heródoto segue se relato demonstrando que a Líbia, ocupada pelos inominados nômades, é um território hostil e selvagem (4.191­ ‑192). Essas características se perdem na região próxima ao Delta do Nilo e na cidade de Cirene, onde existiam a navegação, o comércio, a agricultura e outras atividades relacionadas a uma cidade cujo modelo se aproxima à pólis ateniense. Os máxies, que acima vimos que construíam suas casas, são vizinhos do povo dos zaveces, que se distinguem por suas mulheres conduzirem carros para a guerra (4.193), seguidos dos gizantes, que eram apicultores e artesãos (4.194). Por meio do relato dos carquedônios, Heródoto acrescenta informações sobre os povos que habitavam uma ilha chamada Ciravis, cuja localização desconhecemos, local onde se encontravam oliveiras, vinhedos, piche14 e ouro 14 Heródoto afirma que ele próprio vira a extração do piche da água da lagoa (4.195.2). 145 A Líbia de Heródoto (4.195.1­‑2). Os carquedônios mantinham relações comerciais com os líbios, sendo, portanto, uma fonte de informações para Heródoto, como podemos ler a seguir (4.196.1­‑2): E os carquedônios ainda dizem o que se segue, que existe um território da Líbia em que homens habitam e além das Colunas de Héracles que, quando chegam neste lugar, descarregam suas mercadorias e as colocam alinhadas à beira do mar, entram em seus barcos e fazem sinal de fumaça para que os habitantes locais vejam a fumaça e venham para a beira do mar; em seguida, em troca das mercadorias, coloquem ouro e depois se afastem das mercadorias; então os carquedônios desembarcam para examinar o ouro, se lhes parecer que o ouro das mercadorias é justo, eles o levam e vão embora, mas se não for justo, eles embarcam de novo nos barcos e ficam sentados esperando, e os habitantes locais se aproximam e colocam mais ouro para eles, até atingir a quantia que lhes persuada. Heródoto observa que esse método de troca comercial era mais justo, uma vez que ambas as partes concordavam sobre a quantidade justa de ouro a ser trocada pelas mercadorias, sem imposição de valores por nenhuma das partes envolvidas. Esse episódio, assim como muitos outros dentro das investigações de Heródoto, exemplifica o que Munson (2005: 68­‑69) chama de “etnocentrismo linguístico” onde o narrador atribui a si mesmo um status privilegiado e absoluto nas infor­ ma­ções e interpreta palavras estrangeiras em termos helenos, como se todos falassem a língua da Hélade. Depois desse episódio, Heródoto faz suas considerações finais sobre os povos da Líbia, destacando que a maioria dos povos arrolados não se preocupava com os persas e que seu território era habitado por povos líbios autóctones e outros não, por etíopes, fenícios e helenos (4.197.2). E encerra seu relato sobre a Líbia comparando seu território com outros em termos de fertilidade (4.198.3). O discurso sobre a baixa fertilidade do território líbio feito por Heródoto parece ser um recurso retórico para ressaltar a fertilidade da terra de Cínips, que se destaca por sua terra negra e abundância de fontes, com uma produtividade três vezes maior que a do solo da Babilônia (4.199.1). Ele também enfatiza a fertilidade do solo de sua principal cidade: “e o território de Cirene, quando se está do lado mais alto da Líbia em que os nômades habitam, tem ainda três colheitas por ano nele, é algo digno de admiração […] Assim, os cireneus ocupam oito meses com a estação da colheita” (4.199.2). Após concluir sua descrição da Líbia, Heródoto escreve: “foi dito o sufi­ciente sobre esses territórios.” (4.199.2) e logo retoma sua narrativa no ponto em que os persas invadem o território líbio e tomam Barca (4.200­‑205). Os persas tiveram de cercar a cidade por nove meses para vingar a morte de Arcesilau em nome Feretima, a esposa de Bato, o fundador da cidade, ambos eram pais de 146 Maria Aparecida de Oliveira Silva Arcesilau.15 O episódio da vingança de Feretima demonstra o poder persa na política das colônias helenas localizadas não apenas na Líbia, mas também na Ásia menor, como a instituição da tirania de Histieu em Mileto, devidos aos favores prestados por Histieu ao rei Dario (4.137 e ss). 8. Conclusões A Líbia descrita por Heródoto revela­‑se um território multifacetado do ponto de vista geográfico. Compreende uma região desértica, outra com densas florestas e vida selvagem, e caracterizada por ter um solo negro fértil e úmido. Essas regiões abrigavam uma variedade de grupos étnicos, incluindo líbios nômades identificados e inominados, líbios sedentários, egípcios, helenos e etíopes, que mantinham relações comerciais entre si e com citas e carquedônios. O contexto delineado por Heródoto sugere um processo de assimilação cultural que ocorreu tanto das colônias para a metrópole quanto no sentido oposto, com os primeiros colonos introduzindo práticas culturais da metrópole na região. Essa percepção é evidenciada na descrição de Heródoto da Líbia como uma terra habitada principalmente por nômades, cujo estilo de vida estava menos ligado à organização de cidades e mais focado no pastoreio e na agricultura silvestre. No entanto, nas áreas habitadas por povos sedentários, ele observa a presença de povos dedicados à agricultura cultivada e ao comércio. Mesmo com essa diversi­ dade de influências, Heródoto destaca elementos que marcam a identi­dade cultural helênica, especialmente no que diz respeito à organização de cidades. A variedade de paisagens na Líbia, como descrita por Heródoto, abrange desde áreas desérticas até regiões com solos férteis e florestas densas. Essa diver­ sidade geográfica contribui para a formação de diferentes modos de vida entre os habitantes da Líbia, que incluem diversos grupos étnicos na Líbia, como líbios nômades e sedentários, egípcios, helenos e etíopes, o que confere à região caracte­ rísticas multiculturais e promove processos de interação e assimilação cultural. Heródoto ressalta a presença de práticas culturais helenas na região, especialmente no que diz respeito à organização das cidades, dado que sugere que as colônias helenas desempenharam um papel significativo na moldagem da cultura líbia. Contudo, Heródoto demonstra que a metrópole também recebeu a influência dos líbios na iconografia da deusa Atena. 15 Cf. 4.162­‑163. 147 A Líbia de Heródoto Bibliografia Assunção, T. R. (2016),“Lotófagos (Odisseia IX, 82­‑104): comida floral fácil e risco de desistência”, Revista Classica 29.1: 273­‑294. Bakos, M. M., Silva, M. A. O. (2017), Deuses, Mitos e Ritos do Egito Antigo. Balti: Novas Edições Acadêmicas. 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