Ethos e pathos na primeira página do jornal
(Ethos and pathos in the newspaper’s front page)
Eduardo Lopes Piris1
1
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e Universidade de São Paulo (USP)
[email protected],
[email protected]
Abstract: This paper aims to study the journalistic discourse. For this purpose, it assumes the
premise that the argumentation is a constitutive dimension of the discourse and focuses on
the identification between the newspaper and its reader, which is built in the front page by
ethos and pathos., Also, it is based on the theoretical principles of the discursive-argumentative
approach as proposed by Amossy (2006, 2007) and Mosca (2007). The analysed data consist
of newspaper’s front pages taken from Correio da Manhã and O Globo published on April
2nd and 4th Finally, it concludes that the difference between the composition of the two front
pages shows two regimes of enunciation that legitimate two controversial discourses: Correio
da Manhã, the participatory newspaper, and O Globo, the spectator newspaper.
Keywords: discourse; argumentation; front page; ethos; pathos.
Resumo: Assumindo o pressuposto de que a argumentação é uma dimensão constitutiva do
discurso, este artigo volta-se para o estudo do discurso jornalístico, focalizando os efeitos de
identificação entre o jornal e o seu leitor construídos na primeira página jornalística por meio do
ethos e do pathos. Para tanto, examina as primeiras páginas das edições de 2 a 4 de abril de 1964
dos jornais Correio da Manhã e O Globo. Baseia-se nos fundamentos teórico-metodológicos da
análise discursivo-argumentativa, tal como proposta por Amossy (2006, 2007) e Mosca (2007).
Por fim, conclui que a diferença entre a composição da primeira página dos jornais revela dois
regimes de enunciação que legitimam dois discursos controversos: o Correio da Manhã, o jornal
participativo; O Globo, o jornal espectador.
Palavras-chave: discurso; argumentação; primeira página; ethos; pathos.
Introdução
Este trabalho apresenta a análise das primeiras páginas das edições de 2 a 4 de
abril de 1964 dos diários Correio da Manhã e O Globo, tendo por objetivo mostrar como
a composição do layout dessas primeiras páginas participam da construção dos efeitos de
identificação entre esses jornais e seus leitores, bem como da legitimação da enunciação
de seus discursos no campo jornalístico.
Considerando que a composição da primeira página afigura-se como um fator de
construção da identidade do jornal e, logo, de conquista da adesão do leitor aos seus
posicionamentos, a análise volta-se para as noções discursivo-argumentativas de ethos e
de pathos. Para tanto, assume os pressupostos teóricos da análise discursivo-argumentativa,
tal como proposta por Amossy (2006, 2007) e Mosca (2007), recorrendo aos trabalhos
de Plantin (1996, 2008), Maingueneau (2005, 2006, 2011) e Charaudeau (2007a, 2007b,
2010), para discutir as noções de ethos e de pathos no discurso.
A análise da argumentação no discurso, tal como preconizada por Amossy (2006,
2007), apoia-se no postulado da Análise do Discurso de que o contexto sócio-histórico
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é parte constitutiva do discurso. Dessa maneira, a análise dos discursos do Correio da
Manhã e d’O Globo sobre a deposição do presidente João Goulart leva em conta que o cenário político daquele momento estava marcado pela polarização entre os Estados Unidos
da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Essa polarização ideológica influenciou a política brasileira, matizando as divergências
políticas já existentes, pois, se o cenário político brasileiro apresentava até 1964 diversas
tendências partidárias que representavam os interesses dos vários setores socioeconômicos
estabelecidos no país, o Golpe de 64 (influenciado também pela guerra fria) criou um
novo paradigma ao determinar a reorganização desses diversos setores em torno de apenas
duas posições políticas marcadamente controversas: a dos apoiadores do golpe e a dos
opositores ao golpe. Ademais, o Golpe de 64 elevou a tensão entre esses dois lados e, então,
a controvérsia em torno da deposição do presidente João Goulart e da instalação dos militares
no poder ganhou espaço notório nas páginas dos jornais.
Assim, podemos dizer que a análise da produção discursiva d’O Globo e do Correio
da Manhã sobre os acontecimentos políticos de 1964 baseia-se em dois eixos axiológicos
antagônicos: de um lado, há o discurso fundado nos valores do “comunismo versus
patriotismo” e, de outro lado, estabelece-se o discurso com base no eixo axiológico
“reformismo versus reacionarismo”.
O que nossa análise pretende mostrar é que a diferença entre a composição das
primeiras páginas dos dois jornais examinados revela dois regimes de enunciação bem
distintos, dos quais emanam dois modos opostos de ser (ethos) e de sentir (pathos) no
mundo jornalístico, os quais, por sua vez, legitimam posicionamentos discursivos controversos
dentro da polêmica instaurada em torno da deposição de João Goulart.
Depreendemos, portanto, que, do discurso d’O Correio da Manhã, emergem sujeitos
comprometidos com os fatos políticos de 1964, enquanto que, do discurso d’O Globo,
surgem sujeitos espectadores, que assistem a esses fatos. Assim, podemos concluir que é
a opção do jornal e do seu leitor por participar ou assistir a tais fatos políticos que define
o tipo de jornalismo praticado naquele contexto sócio-histórico.
Discurso e argumentação
A abordagem discursivo-argumentativa define-se como o estudo da “argumentação
enquanto fato de discurso, associada à prática da linguagem em contexto” (PLANTIN,
1996, p. 18). Em outros termos, trata-se de situar a argumentação na dimensão sócio-histórica
do discurso. Nesse sentido, Amossy (2007, p. 123) defende uma perspectiva de estudo da
argumentação e do discurso “que relaciona a fala a um lugar social e a instâncias institucionais”.
Para a autora, a argumentação:
[...] depende das possibilidades da língua e das condições sociais e institucionais que
determinam parcialmente o sujeito, fora dos quais a orientação ou a dimensão argumentativa
do discurso não pode ser apreendida com discernimento. (AMOSSY, 2007, p.128)
O alcance da abordagem discursivo-argumentativa pode ser percebido na crítica
que Maingueneau (2011) tece ao estudo que Ducrot faz sobre as Provinciais de Pascal,
pois, se do ponto de vista de uma análise da argumentação na língua, a aplicação correta
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dos cálculos de predicados permitam a Ducrot concluir que Pascal cometera um erro, do
ponto de vista da análise do discurso, Maingueneau entende que Pascal se utiliza de uma
linguagem de não especialista, para criar a imagem de um homem de bom senso que dirige
sua fala a outros homens de bom senso, o que caracteriza não um erro, mas o uso de um
recurso argumentativo voltado à construção da identificação do autor com seu leitor.
É por essa razão que Maingueneau afirma que, “quando o analista do discurso se
volta para a argumentação, não é com a intenção de estabelecer o modelo dos processos
de validação, mas de relacioná-los a um gênero do discurso histórica e socialmente situado”
(MAINGUENEAU, 2011, p. 71).
Dessa maneira, a análise da argumentação como fato de discurso considera também
a questão da enunciação. A esse respeito Plantin (1996) e Maingueneau (2011) reafirmam
o caráter concreto de produção do discurso e do estabelecimento da argumentação num
dado contexto sócio-histórico:
Toda fala é necessariamente argumentativa. É um resultado concreto da enunciação em
situação.1 (PLANTIN, 1996, p.18)
Não poderíamos, portanto, estabelecer o texto como um conteúdo independente das condições de sua enunciação, nem reduzir a argumentação ao estatuto de meio a serviço de
uma persuasão. (MAINGUENEAU, 2011, p.85)
Essa perspectiva de estudo considera, portanto, dois aspectos da argumentação,
que, em um, é constitutiva e inerente a qualquer tipo de produção discursiva e, em outro,
caracteriza apenas os discursos explicitamente argumentativos. Segundo Amossy (2006),
o primeiro aspecto da argumentação seria recoberto pela ideia de “dimensão argumentativa”,
enquanto o segundo pela ideia de “intenção argumentativa”:
Um discurso de defesa tem uma clara intenção argumentativa: ele apresenta como objetivo
principal fazer admitir a inocência do indiciado que o advogado tem por tarefa de defender,
ou de apresentar circunstâncias atenuantes que diminuirão sua pena. Uma descrição
jornalística ou romanesca, ao contrário, pode ter antes uma dimensão do que uma vontade
argumentativa.2 (AMOSSY, 2006, p.33)
Tal distinção deve ser considerada, sobretudo, para orientar os procedimentos de
análise da argumentação no discurso, pois as características da materialidade a ser examinada
acabam exigindo do analista a eleição de determinadas categorias de análise e não de
outras. Neste trabalho, por exemplo, a proposta é examinar a composição da primeira
página, verificando os efeitos de sentido de identificação entre jornal e leitor construídos
por meio do ethos e do pathos. Trata-se de explorar a dimensão argumentativa de um discurso
caracteristicamente informacional, e não as estratégias argumentativas de um tipo de discurso
cujas finalidades primeiras são o convencimento e a persuasão.
1
No original: “Toute parole est nécessairement argumentative. C’est un résultat concret de l’énonciation
en situation” (PLANTIN, 1996, p. 18).
2
No original: “Une plaidoirie a une nette visée argumentative: elle se donne comme objectif premier de
faire admettre l’innocence de l’inculpé que l’avocat a pour tâche de défendre, ou de présenter des circonstances atténuantes qui diminueront sa peine. Une description journalistique ou romanesque, par contre, peut
avoir une dimension plutôt qu’une volonté argumentative” (AMOSSY, 2006, p.33).
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Ethos e pathos: duas noções indissociáveis
Aristóteles (1998) define três espécies de provas artísticas de persuasão fornecidas
pelo discurso, dizendo que “umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo
como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece
demonstrar” (1998, p. 49).
Aristóteles detalha essa primeira prova ao afirmar que “persuade-se pelo carácter
quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno
de fé” e que “é, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de
uma opinião prévia sobre o carácter do orador” (1998, p. 49). A segunda prova consiste na
disposição dos ouvintes, ou seja, nas emoções que o discurso os leva a experimentar. Já a
terceira deriva do que é construído por meio do próprio raciocínio. A essas três espécies
de provas técnicas ou artísticas de persuasão correspondem, mais especificamente, os
termos ethos, pathos e logos, respectivamente.
Antes de tudo, é preciso ressaltar que essas três provas persuasivas não são
efetivamente produzidas de forma indissociável e que estudá-las separadamente justifica-se
apenas em razão de uma metodologia de pesquisa. Todavia, há que se destacar a estreita
relação entre pathos e ethos, pois essas duas noções pressupõem a interação entre os
sujeitos participantes do ato enunciativo, integrando-se assim à dimensão subjetiva do
discurso. Corroboram esse ponto de vista autores como Meyer (2000) e Plantin (2008):
As paixões são ao mesmo tempo modos de ser (que remetem ao ethos e determinam um
caráter) e respostas a modos de ser (o ajustamento ao outro). Daí a impressão de que as
paixões nada têm de interativo, sendo somente estados afetivos próprios da pessoa como
tal. A confusão, porém, permanece. (MEYER, 2000, p.XLVII)
“Ele sente como nós”; o ethos tem ainda uma “estrutura emocional” na medida em que
a emoção (ou o controle emocional) manifestada no discurso repercute inevitavelmente
sobre a fonte dessas manifestações, o que estabelece uma primeira ligação entre ethos e
afetos. (PLANTIN, 2008, p.115)
Considerada a indissociabilidade entre o ethos e o pathos, passemos às especificidades de cada uma dessas duas noções.
Do ethos retórico ao ethos discursivo
Retomemos a já clássica passagem em que Aristóteles (1998) define a primeira
prova artística de persuasão fornecida pelo discurso:
Persuade-se pelo carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão
de o orador ser digno de fé [e que] é, porém, necessário que esta confiança seja resultado
do discurso e não de uma opinião prévia sobre o carácter do orador. (p. 49)
No que diz respeito à concepção moderna de ethos, podemos notar que tal noção vem
sendo acolhida e adaptada por estudiosos das mais diversas tendências teóricas do discurso.
Para Fiorin (2004, p. 120), “o éthos não se explicita no enunciado, mas na enunciação [...], ou
seja, nas marcas da enunciação deixadas no enunciado”, concordando com a ideia aristotélica
de que o ethos é uma construção do discurso, um efeito de sentido, e não algo dado a priori.
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Não obstante, Maingueneau (2005, p. 70) afirma que “a questão essencial é que o ethos [...]
está ligado à enunciação, não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador”. Assim, essa
apropriação do ethos retórico traz consequências e a mais relevante delas é sustentar que o
ethos não corresponde à imagem de outra instância subjetiva que não a do enunciador.
Para Maingueneau (2006), a multiplicidade do atual emprego do termo ethos torna
difícil uma estabilização dessa noção, mas, sem prejulgar a maneira como ela será explorada,
ainda é possível manter acordo sobre três pontos, a saber:
O ethos é uma noção discursiva, ele se constitui por meio do discurso, não é uma “imagem”
do locutor exterior à fala;
O ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro;
É uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente
avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa,
ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada. (MAINGUENEAU,
2006, p.60)
Partimos, assim, do princípio de que o ethos está associado à construção da imagem
do enunciador no e pelo discurso e não corresponde a qualquer opinião prévia que se tenha
sobre sua pessoa. Ressaltamos, porém, que estar associado não significa ser equivalente, pois
a noção de ethos não se satisfaz em recobrir a imagem do enunciador (logo, entende-se
que há uma distinção entre ethos e imagem do enunciador), mas extrapola isso, ao remeter
à ideia do fiador do discurso, daquele que garante o que é dito, legitimando seu discurso
pelo seu modo de dizer.
A análise também deve ter em conta a construção do anti-ethos ou dos anti-ethé e
sua relação com a incorporação do ethos pelo coenunciador, no sentido de que a construção de
um ethos x acarreta a construção de um anti-ethos não x e é essa correlação que se apresenta
ao coenunciador para a incorporação do ethos. A noção de incorporação é proposta por
Maingueneau (2005, p. 72) para dar conta da relação entre ethos e coenunciador ou, ainda,
para designar a ação do ethos sobre o coenunciador. Uma vez que o entendimento do
processo de persuasão pelo ethos não se exaure na sua descrição em si, é preciso compreender
que a enunciação, ao dar corpo ao fiador, possibilita que o coenunciador incorpore, assimile
o modo de se comportar desse corpo enunciante, tendo a ilusão de que ele faz parte de um
corpo, um grupo social e ideológico. Assim, para Maingueneau (2005), o processo de
incorporação está concluído quando o coenunciador se vê como membro de “uma comunidade
imaginária dos que aderem a um mesmo discurso” (p. 73).
Desse modo, quando se fala em incorporação, está-se determinando o papel que a
imagem do corpo do enunciador cumpre no processo persuasivo, mas não o corpo restrito
a uma compleição física, e sim um corpo dotado de caráter e de reconhecimento sócio--histórico-cultural.
Do pathos retórico ao pathos discursivo
Aristóteles define a segunda prova artística de persuasão fornecida pelo discurso,
o pathos, da seguinte maneira:
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Persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por
meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria,
amor ou ódio. (1998, p. 49)
As paixões são todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem
variar seus julgamentos. (2000, p. 5)
Esses dois excertos deixam patente que o pathos é produzido por meio da enunciação
de seu próprio discurso e pressupõe a interação entre os sujeitos desse ato enunciativo:
“persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por
meio do discurso” (ARISTÓTELES, 1998, p. 49).
Vale ressaltar que essa questão do pathos suscita divergentes leituras apresentadas
pelas mais distintas tendências de estudos sobre a linguagem que se desenvolveram na
modernidade. Do ponto de vista de uma teoria do discurso preocupada com a enunciação,
o pathos manifesta-se na interação entre os sujeitos participantes da comunicação. Portanto,
o exame dos procedimentos persuasivos relativos à dimensão passional ou afetiva do
discurso focalizará a instância subjetiva da enunciação, que se desdobra nas figuras do
enunciador e do coenunciador.
Outro aspecto importante é que não se trata, pois, de abordar as paixões efetivamente
experimentadas pelos indivíduos empíricos ditos de “carne e osso” nem de descrever
estados físicos de invejosos, indignamos ou coléricos, por exemplo, mas sim de compreender
as paixões construídas no discurso. A esse respeito, Meyer (2000, p. L) afirma que “com
muita frequência nos esquecemos de que a vida da paixão consiste em sua representação
e expressão”. Não obstante, Charaudeau (2010) estabelece que:
A análise do discurso não pode se interessar pela emoção como realidade manifestada,
vivenciada por um sujeito. Ela não possui os meios metodológicos. Em contrapartida, ela
pode tentar estudar o processo discursivo pelo qual a emoção pode ser estabelecida, ou
seja, tratá-la como um efeito visado (ou suposto), sem nunca ter a garantia sobre o efeito
produzido. (p.34)
Conforme Charaudeau (2010, p. 35), a preferência pelo uso do termo pathos ao
termo emoção marca a filiação de seu trabalho à tradição retórica de inspiração aristotélica,
bem como distingue a abordagem das paixões pela Análise do Discurso daquelas feitas
pela Psicologia e pela Sociologia. E isso vale igualmente para os atuais estudos discursivos,
sobretudo o que aqui se apresenta.
Bem entendido que estamos tratando das paixões construídas pelo discurso, é
preciso compreender também que tais paixões não podem ser depreendidas por aquilo
que é simplesmente dito. O enunciado “estou confiante” pode ser dito em uma situação de
ironia, em que o sujeito está querendo dizer “não estou confiante”; igualmente, o enunciado
“estou com medo” pode ser usado para provocar um terceiro a uma discussão, despertando-lhe
a raiva, por exemplo. A esse respeito, Parret (1997, p. 112) afirma que “dar nome às próprias
emoções, numa situação comunicativa, é às vezes uma sutil estratégia de engano e de
manipulação”. Ademais, não é sequer necessário que uma paixão seja lexicalizada para
que ela se manifeste na interação discursiva. E é sobre essa forma de manifestação da
paixão que iremos discorrer daqui por diante.
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Nessa problemática acerca do pathos, é igualmente importante ressaltar que as
paixões estão associadas aos valores e às crenças de uma comunidade discursiva:
A emoção pode ser percebida na representação de um objeto em direção ao qual o sujeito se
dirige ou busca combater. E como estes conhecimentos são relativos ao sujeito, às informações
que ele recebeu, às experiências que ele teve e aos valores que lhe são atribuídos, pode-se
dizer que as emoções, ou os sentimentos, estão ligados às crenças. (CHARAUDEAU,
2007b, p. 241)
Não obstante, entendemos que o pathos discursivo está vinculado a um conjunto
de crenças compartilhadas e axiologizadas sócio-historicamente, ou seja, a um sistema
de valores que determina o valor de cada paixão, conforme a circunstância em que ela
é manifestada em uma dada sociedade e seu momento histórico. Projetam-se, assim, no
discurso as imagens do sujeito – a de si e a do outro – apoiadas nas paixões determinadas
por um dado contexto sócio-histórico como possíveis ou não possíveis de manifestar. Por
exemplo, em uma democracia republicana de qualquer país do mundo, o discurso de um
deputado acusado de corrupção deve manifestar veemente indignação; isso quer dizer que
os sistemas de valores (da democracia republicana) impõem ao sujeito enunciador (deputado
acusado) que ele, no mínimo, manifeste e desperte em seu coenunciador (Parlamento,
opinião pública etc.) uma determinada emoção (indignação) em resposta à injustiça que
ele supostamente tenha sofrido.
Enfim, parece-nos que essas são as questões essenciais que acercam a natureza do
pathos discursivo e que podem orientar sua depreensão.
Análise das primeiras páginas do Correio da Manhã e d’O Globo
A enunciação do discurso jornalístico instala, simultaneamente, as instâncias subjetivas
do enunciador – um jornalista ou o próprio jornal, ou seja, o enunciador institucional – e
do coenunciador, recoberto pela figura do leitor. E a composição da primeira página fornece
elementos que nos permitem depreender essas instâncias subjetivas da enunciação, bem
como as estratégias discursivo-argumentativas e os posicionamentos discursivos aí decorrentes.
Vejamos as figuras 1 e 2:
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Figura 1. As primeiras páginas do Correio da Manhã, edições de 2 a 4 de abril de 1964.
“Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil”
Figura 2. As primeiras páginas d’O Globo, edições de 2 a 4 de abril de 1964. “Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional - Brasil”
O Correio da Manhã compõe sua primeira página com os gêneros editorial, notícia
e nota comentário relatado (conforme FIGUEIREDO, 2003), na qual há o predomínio
espacial dos gêneros verbais sobre os gêneros verbo-visuais (estes, destacados em vermelho).
Já O Globo compõe sua primeira página com os gêneros editorial, foto-manchete, foto--legenda e chamadas para aprofundamento da notícia, constituindo-se, basicamente, de
gêneros verbo-visuais.
Quanto à função dos gêneros na página, notamos que, no Correio da Manhã, o
gênero nota comentário relatado cria, sob a forma do discurso direto,3 o simulacro da
3
Entendemos o discurso direto como uma das formas do discurso citado, tal como é concebido por Bakhtin/
Volochinov (2002, p. 144): “o discurso citado é o discurso no discurso, um discurso sobre o discurso”.
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opinião das principais lideranças políticas do país a respeito da deposição do presidente
(alhures manifestada por meio de nota oficial, manifesto, mensagem telegrafada, transcrição
de pronunciamento emitido por rádio e televisão etc.), lançando, no contorno do discurso
citado, as apreciações valorativas do jornal sobre a opinião ali relatada. Já, n’O Globo, o
gênero que cumpre semelhante função é a foto-legenda, pois a imagem fotográfica exerce
o papel de mostrar os fatos, enquanto a legenda, o de expressar sua avaliação.
Podemos depreender daí que os leitores desses jornais são expostos a dois regimes
diferentes de construção do real: de um lado, o Correio da Manhã constrói o simulacro
de documentos e pronunciamentos oficiais; de outro lado, O Globo engendra os fatos por
meio de imagens obtidas pela lente “neutra” da câmera fotográfica.
Nessa inter-relação dos gêneros de discurso na primeira página, entendemos que a
opinião do jornal emitida por meio do editorial permeia os sentidos produzidos pelos demais
gêneros de discurso que compõem a primeira página, consistindo aí em um forte elemento
de homogeneização de sentidos dessa página, caracterizando-a não apenas como o rosto
ou o espelho do jornal, mas também como uma página opinativa.
No entanto, há diferenças na construção dessas páginas de opinião, pois a primeira
página do Correio da Manhã constrói uma cena enunciativa que convida subitamente seu
leitor a refletir sobre os fatos midiatizados, enquanto que a primeira página d’O Globo
instala uma cena de enunciação própria ao que Marcondes Filho (2002) chama de ideologia
do flash:
No final, restam na memória do leitor apenas sinais, traços da informação que cada segmento
porventura deixou. Ele não será capaz de recordar a matéria que acabou de ler e nem terá
o conhecimento para aplicar essa informação adquirida em outros casos semelhantes.
(MARCONDES FILHO, 2002, p. 46)
Essas cenas enunciativas construídas a partir da composição da primeira página
integram as estratégias discursivo-argumentativas de construção dos efeitos de realidade e
de identificação entre jornal e leitor, constituindo aí dois modos distintos de enunciar, a saber:
1. A enunciação da primeira página do Correio da Manhã constrói um leitor
participativo, que deve ler e acompanhar os argumentos do jornal e das vozes
relatadas;
2. A enunciação da primeira página d’O Globo projeta um leitor espectador, que
deve assistir às fotografias e ler a apreciação do jornal lançada nas legendas.
Assim, se, ao leitor do Correio da Manhã, compete acompanhar os argumentos e a
linha de raciocínio do jornal, para o leitor d’O Globo o que fica é um grande material residual
condensado numa forma de pensar orientada mais pela emoção do que pela razão, já que
a página não convida o leitor a refletir sobre a informação, mas a se sensibilizar com ela.
As diferenças observadas nos dois jornais são responsáveis também pela construção
da identidade discursiva de cada jornal. A esse respeito, Grillo (2004) afirma que “a configuração
da primeira página é uma das grandes responsáveis pela identidade de cada órgão de imprensa” (GRILLO, 2004, p. 50). É interessante notar como o contrato midiático entre enunciador
(jornal) e coenunciador (leitor do jornal) é estabelecido, uma vez que a reiteração de traços
específicos da primeira página constrói a identidade visual do jornal, ao mesmo tempo em que
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constrói seu próprio leitor. Basta ter em conta que a paginação (fortemente marcada pela relação
entre o verbal e o visual) propõe certas opções (e não outras) de direção do olhar do leitor pela
página, o que caracteriza já a orientação argumentativa do jornal, hierarquizando o valor de
cada texto na página e apresentando de maneira velada seus próprios valores.
Com base no contexto sócio-histórico desses discursos jornalísticos, podemos dizer
que o discurso do Correio da Manhã projeta uma cena de enunciação em que jornal e leitor
participam do processo político, de modo que valoriza positivamente um ethos participativo
e negativamente um anti-ethos não participativo ou “submisso”, se considerarmos a grade
axiológica dos discursos contrários à imposição das Forças Armadas. De outro lado, podemos
depreender do discurso d’O Globo a projeção de uma cena enunciativa em que jornal e leitor
assistem ao processo político, valorizando positivamente um ethos espectador e negativamente
um anti-ethos não espectador ou “agitador”, do ponto de vista da grade axiológica dos
discursos favoráveis àquela intervenção dos militares em abril de 1964.
Considerações finais
A análise pôde revelar como as cenas enunciativas projetadas pela primeira página
captam o imaginário do leitor, conferindo papéis sociais aos parceiros da comunicação,
jornal e leitor, atribuindo-lhes também modos de ser (ethos) e de sentir (pathos), orientando--lhes a posicionamentos discursivos perante a situação política do país num determinado
momento histórico.
Mostrou que, se a primeira página do Correio da Manhã requer um leitor que
deve acompanhar o raciocínio argumentativo do jornal e das vozes relatadas no jornal,
atribuindo-lhe a imagem de um leitor participativo, e, se a primeira página d’O Globo
destina-se a um leitor mais afeito a acompanhar os fatos políticos por meio de fotografias,
conferindo-lhe a imagem de um leitor espectador, emergem, nesse contexto sócio-histórico
de abril de 1964, duas identidades discursivas distintas e com posicionamentos discursivos
bem definidos em relação ao episódio político que marcou o Brasil naquele ano.
Por fim, é preciso ressaltar que este estudo não é conclusivo, pois nossa pesquisa está
em andamento e necessita analisar outros aspectos constitutivos da primeira página, desbastar os
sentidos construídos em cada um de seus gêneros, examinar as demais edições de abril de 1964,
explorando mais detidamente o ethos e o pathos desses jornais. Todavia ficam aqui algumas
considerações sobre a relação entre o ethos, o pathos e a primeira página do jornal impresso que
irão nortear o andamento de nossa pesquisa e que podem vir a inspirar outros estudos.
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