A digitalização crescente tem proporcionado vantagens econômicas inegáveis, como redução de custos, ganhos de escala, aumento da eficiência e melhorias na produtividade. É um caminho sem volta. Mas como as inovações que a antecederam, a tecnologia digital também traz riscos que exigem a atenção de legisladores, governos e cidadãos para evitar danos à sociedade ou, pelo menos, reduzir seus efeitos. É o lado obscuro da tecnologia.
Há pelo menos três áreas críticas, observam analistas: emprego, segurança e privacidade. No primeiro caso, a automação do trabalho, a princípio concentrada no chão de fábrica, se espalhou para quase todas as atividades nas empresas. Lembra do atendente de telemarketing que oferecia cartão de crédito ou cobrava a conta atrasada do telefone? Foi substituído por um robô. O cobrador de ônibus e o agente de trânsito? Estão desaparecendo. E quantos caixas de banco você conhece?
Essa, claro, é uma simplificação. Ainda existem seres humanos nessas vagas. Muitos, dependendo do caso. Mas a tendência é que sejam substituídos pela tecnologia no futuro.
Há quem argumente que a própria tecnologia se encarregará de resolver a questão. Segundo essa linha de pensamento, ao mesmo tempo em que elimina empregos menos qualificados, a inovação abre vagas especializadas e mais bem remuneradas. Ao fim de algum tempo, portanto, o ajuste seria até positivo.
O problema é que, por falta de formação e treinamento, dificilmente a pessoa que perde o emprego menos qualificado será a mesma que ocupará a vaga especializada. Se não houver um amplo processo de requalificação, o resultado será uma massa de desempregados de um lado e de vagas não preenchidas do outro - o que já está acontecendo.
Segundo a Brasscom, associação das empresas de tecnologia, o Brasil demanda 159 mil profissionais de tecnologia por ano, mas forma 53 mil. A continuar nesse ritmo, o déficit de mão de obra chegará a 530 mil profissionais até 2025. Isso em um país com 13,9 milhões de desempregados, de acordo com os números mais recentes do IBGE.
A cibersegurança é outro ponto. O trabalho remoto e a pirataria fizeram o número de ataques digitais aumentar 23% no Brasil em 2021, segundo a Kasperky, empresa de segurança digital. Nos oito primeiros meses do ano passado, foram 481 milhões de tentativas de infecção. No segmento de empresas, o país foi o mais atingido na América Latina, com 5 milhões de tentativas.
Não por acaso, um levantamento da consultoria PwC mostra que, no início do ano, 83% das organizações brasileiras pretendiam aumentar seus gastos com cibersegurança, bem acima da média global, de 69%.
Tornou-se lugar comum dizer que dados são o ouro do mundo digital; e os cibercriminosos parecem concordar entusiasticamente com isso. À medida que mais informações ficam disponíveis on-line - de indivíduos, empresas e governos -, mais intensos e sofisticados ficam os golpes. Uma das modalidades que chamam atenção é o ransomware, uma espécie de sequestro virtual. Os criminosos invadem a rede da vítima e codificam dados, impedindo seu acesso. Depois, cobram um valor para liberá-los.
No ano passado, os ataques de ransomware mais que dobraram no mundo, chegando a 623,3 milhões de golpes, ou 105% mais que em 2020, segundo relatório da SonicWall, empresa de segurança de rede. A prática joga sombras sobre o potencial da digitalização. Há uma grande expectativa em torno do que tecnologia poderá fazer no futuro em áreas como saúde e serviços financeiros. Um sistema digital de prontuário médico poderia salvar vidas ao possibilitar que médicos tenham acesso ao histórico do paciente, não importa em que hospital ou clínica estejam. Mas dá arrepios imaginar o que criminosos poderiam fazer com esse tipo de dado.
A privacidade completa a lista suja. A internet se expandiu sobre um modelo de serviços aparentemente gratuitos, remunerados pela publicidade. Alheio à máxima de que não existe almoço grátis, o consumidor demorou para perceber que suas informações pessoais eram a moeda de troca. As plataformas recolhem dados do usuário e rastreiam sua movimentação para permitir que o anunciante ofereça produtos de maneira mais personalizada e eficiente, com base nessas informações.
Mais recentemente, e depois de uma concentração brutal da publicidade on-line em torno de pouquíssimas empresas, o assunto tornou-se alvo de legislação em vários países. No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) entrou em vigor em agosto de 2020. As grandes companhias de internet têm anunciado mudanças em suas políticas de privacidade para se ajustar às novas regras internacionais e fazer frente ao questionamento crescente dos usuários. Mas todo cuidado é pouco.
Privacidade não é apenas uma questão comercial, embora só isso já justificasse a criação de regras e sua fiscalização. Também pesam suspeitas de que, em regimes autoritários, empresas de internet sejam coagidas a fornecer dados sobre adversários políticos de quem está no poder.
Mesmo em democracias, o assunto inspira cuidado. As redes sociais usam algoritmos para recomendar perfis e conteúdos com base nas preferências do usuário, de maneira a mantê-lo o maior tempo possível na plataforma. Uma das consequências, alertam especialistas, é a criação das bolhas sociais de internet. Nelas, os mesmos assuntos são discutidos e as mesmas opiniões cultivadas, com pouca ou nenhuma tolerância com posições divergentes. É um risco à pluralidade e, em última análise, à própria democracia.