“Não há urgência para a regulamentação da inteligência artificial (IA) no Brasil. Precisamos de muita calma e ampliar o debate com a sociedade. A IA não é mais uma tecnologia digital, mas de propósito geral que vai mudar a lógica de funcionamento da economia”, disse a professora Dora Kaufman, do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Faculdade de Ciências e Tecnologia da PUC-SP durante a Futurecom, em São Paulo.
Pesquisadora dos impactos sociais da tecnologia, a professora defendeu que a discussão do marco regulatório exige tempo, o que gera conflito, pois a tecnologia avança rápido. “O PL (projeto de lei) 2.338/23 não está pronto para ser o marco regulatório, mas já é um ponto de partida”, afirmou.
Em tramitação, a expectativa do Senado é votar o projeto até o final do ano. Segundo o superintendente executivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Abraão Balbino, o órgão criou uma comissão técnica visando desenvolver uma estrutura institucional para uso de IA dentro de casa. A agência busca ainda parcerias estratégicas para ampliar a competência sobre o tema. “Importante que a regulamentação não trave ganhos de produtividade e competência obtidos com a tecnologia”, disse.
Com o cenário cada vez mais complexo a partir da chegada do ChatGPT, Kaufman citou que a Europa, que é um espaço regulado, discute o tema desde 2018 e ainda não tem uma proposta definida. “Não há no mundo ocidental um marco regulatório, o que reflete as dificuldades sobre o tema.”
Há um consenso entre os participantes do debate na Futurecom de que a ampla discussão da regulamentação, envolvendo atores como governo, agências reguladoras, diferentes setores, universidades e sociedade, está longe de terminar.
Outra questão importante sobre o marco regulatório envolve a responsabilidade sobre a regulamentação e a fiscalização. Assim como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que se inspirou no modelo europeu, o PL 2.328 determina que o Executivo crie uma autoridade competente para trabalhar pelo cumprimento das normas e aplicar as sanções. “Acredito ser temerário a criação de uma nova agência reguladora”, afirmou Balbino.
Para a professora, o lançamento de outro organismo público é mais um ponto a ser amplamente debatido. “O protagonismo da regulamentação e da fiscalização deve ser setorial, dada a complexidade que envolve as diversas áreas e suas particularidades. Não vejo como será possível ter uma regulamentação e fiscalização geral que possa ser aplicada nas áreas de saúde, bancária, telecomunicações.”
A discussão evoluiu e está mais madura, na avaliação de Nairane Rabelo, diretora da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O projeto procura conciliar a tecnologia com os direitos dos usuários. “É importante avaliar como a tecnologia pode impactar cada vez mais de forma positiva o desenvolvimento dos negócios e da economia”, disse.
Em julho, a ANPD publicou análise preliminar sobre o projeto de lei e defendeu que ela seja autoridade-chave na regulamentação e governança de IA, especialmente no tratamento de dados pessoais. A entidade publicou neste mês uma consulta pública sobre o tema que está aberta até o dia 1º de novembro. A ideia é apresentar o programa de testes de tecnologias associadas à IA em um ambiente controlado, visando garantir a aplicação de boas práticas em conformidade com as normas de proteção de dados.
Desde 2017, a IA é uma ferramenta que contribui para aumentar a rapidez do Supremo Tribunal Federal (STF), no qual tramitam mais de 20 mil processos. Uma das novidades é a VitórIA, ferramenta para dar celeridade à análise e ao julgamento dos processos, ao identificar e agrupar automaticamente os que tratam do mesmo tema. “Não se trata de substituir o trabalho de assessores qualificados, mas facilitar o direcionamento dos esforços às questões de maior impacto social”, disse Alexandre Freire, conselheiro diretor da Anatel que assessorou ministros do STF de 2014 a 2019.
A Suprema Corte já utiliza dois robôs, o Victor, para análise de temas de repercussão geral na triagem dos recursos, e a Rafa, que classifica processos de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pelas Nações Unidas para a Agenda 2030.