Tida como uma das indústrias de investimentos mais resilientes, a previdência complementar aberta, após consecutivas quedas no ritmo de crescimento, volta a avançar de forma mais pujante em captação líquida. Seu patrimônio, que superou a linha de R$ 1,43 trilhão no último mês de março, avança tanto em arrecadação bruta quanto líquida, o que demonstra diminuição do ritmo dos resgates, que haviam acelerado nos três primeiros anos após a pandemia da covid-19. O balanço entre a entrada e a saída de recursos (saldo líquido) em 2023 e no primeiro trimestre de 2024 foi positivo em R$ 42,9 bilhões e R$ 15,6 bilhões, alta de 28,4% e de 194,7%, respectivamente, em comparação a iguais períodos anteriores.
Uma vez que eventos tipicamente geradores de riqueza, como as ofertas iniciais de ações (IPOs, na sigla em inglês) e grandes operações de fusões e aquisições, têm sido esporádicos, o mercado questiona de onde vem esse dinheiro novo. Com exceção do BTG Pactual, o setor não considera que parte dos recursos possa ter migrado de fundos exclusivos – que passaram a ser tributados pelo “come-cotas” no fim de 2023 – para os fundos de previdência, agora um dos principais investimentos nos quais se pode pagar menos impostos. “A discussão da reforma tributária e o fim dos fundos exclusivos atraíram, sim, esse público para a previdência como alternativa. O assunto foi muito debatido e o investidor individual colocou isso na mesa”, observa Marcelo Flora, sócio responsável pelas plataformas digitais do BTG Pactual. O resultado foi uma captação líquida de R$ 1,5 bilhão no primeiro trimestre de 2024, alta de 50% se comparado a igual período do ano passado.
Parte da disputa dos recursos da previdência aberta se dá no jogo do “rouba-monte”, no qual uma instituição tenta atrair capital que já está dentro da indústria, em concorrentes, por meio da portabilidade entre fundos. No primeiro bimestre deste ano, o BTG despontou no topo do ranking da portabilidade e registrou saldo positivo de R$ 704,56 milhões, desbancando as lideranças revezadas nos últimos anos entre XP e Itaú, segundo levantamento da Superintendência de Seguros Privados (Susep).
O BTG, com patrimônio líquido em carteira de previdência de R$ 23 bilhões – atrás de seus concorrentes –, projeta fechar 2024 com R$ 6 bilhões em captação líquida e R$ 31 bilhões em reserva. Segundo Flora, o que deve fazer diferença é o serviço 24 por 7, pelo qual o cliente é atendido por pessoas e não por máquinas. “Nossa excelência de atendimento fez com que ganhássemos o selo RA 1000, do Reclame Aqui, em todos os períodos de apuração de 2021 a 2023”, conta. Outro ponto que, para ele, conta a favor é o fato de a empresa dispor de uma estrutura de custos diferente da dos grandes bancos, por ser jovem na área de seguros e ter crescido mais aceleradamente nos últimos quatro anos: “Nossos custos são competitivos e a precificação dos produtos é mais atraente. O nosso negócio é arquitetura aberta, com 250 fundos de previdência de 85 gestores parceiros”.
Mas, além do BTG, é difícil encontrar outro representante do setor que considere que o dinheiro novo que está entrando na previdência aberta tenha origem nos fundos exclusivos dos super-ricos. Até porque, para evitar distorções e uma migração ostensiva desses recursos, o governo proibiu, em fevereiro deste ano, a criação de fundos exclusivos de previdência. A resolução do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNPS) tem que ser regulamentada pela Susep. O objetivo é não descaracterizar a previdência, que tem incentivos fiscais porque cumpre papel social de complementar a aposentadoria pública.
“Não tem nenhuma evidência de que o dinheiro dos super-ricos esteja vindo para a previdência. O que está ocorrendo é que estamos voltando aos níveis pré-pandemia, com a melhora significativa dos fundamentos da economia neste ano”, afirma Edson Franco, presidente da Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (FenaPrevi). O executivo lembra, no entanto, que comparar o primeiro trimestre de 2024 com o mesmo período de 2023 é ruim, pois a atividade econômica estava pior naquele momento e os mercados viviam algumas crises – como a recuperação judicial da Americanas e da Light. A retomada veio na segunda metade do ano, com o início do processo de queda dos juros. “Se bem que a previdência, mesmo durante a pandemia, foi muito resiliente, sem captação líquida negativa em nenhum trimestre. Diminuiu o ritmo, mas não ficou negativa”, observa.
O setor está animado ainda com uma série de mudanças em regras que vêm sendo sancionadas desde o fim de 2023. Uma dela é Lei nº 14.652/2023, que permite o uso dos recursos da previdência como garantia na tomada de crédito e está em fase de regulamentação. “No caso da garantia, irá permitir que o cliente tome crédito mais barato e não precise resgatar seus recursos para não perder incentivos tributários da previdência”, diz Franco. Outra mudança diz respeito à postergação da escolha do regime tributário, entre o progressivo e o regressivo, que poderá agora ser feita ao fim do período de acumulação e de resgate do plano.
Já as circulares 698 e 699 da Susep discorrem sobre a adesão automática aos planos corporativos de previdência, nos quais, ao contrário do que ocorre hoje, o colaborador vai ter que se manifestar para não aderir ao benefício ao ser admitido na empresa. Para o segundo semestre, o setor aguarda ainda a tipificação tributária do Universal Life – novo seguro de vida, com acumulação de recursos resgatáveis ao final do período de contratação.
Para a líder de mercado, Brasilprev, que atingiu em fevereiro deste ano R$ 400 bilhões em ativos sob gestão, vários temas que vinham sendo discutidos há anos foram aprovados e auxiliam até nas contribuições mensais, ao facilitar a compreensão dos planos pelos clientes, como as diferentes possibilidades de escolher a renda. “Isso ajuda na decisão na hora da saída e sobre qual é a melhor forma de acumular os recursos”, afirma Ângela Beatriz de Assis, presidente da Brasilprev, que registrou captação líquida de R$ 8,9 bilhões em 2023, cinco vezes superior à de 2022, e de R$ 4,2 bilhões nos dois primeiros meses de 2024, 181% maior ante o mesmo período de 2023.
Para continuar crescendo de forma acelerada, a executiva conta com o Banco do Brasil (BB) como seu principal canal de distribuição, mas não o único. A Brasilprev tem parceria com 500 corretores e reestruturou a área que atua em planos corporativos. “Há quatro anos, mantemos o ritmo de cerca de cem mil novos entrantes anuais na carteira – entre pessoa física e jurídica”, afirma Assis. Hoje, 90% dos 2,6 milhões de clientes são pessoas físicas, a maioria de média e alta renda. Como estratégia para 2024, a Brasilprev quer retomar a indução dos aportes mensais. “Tivemos crescimento de 30% dos aportes mensais desde o segundo semestre de 2023, comparado aos mesmos períodos de anos anteriores. A grande maioria vinda dos planos juniores, que representam 700 mil pessoas na nossa carteira.”
Com a terceira maior carteira de previdência do mercado, o Itaú está ampliando sua equipe de consultores financeiros na área. “Saímos de 600, em 2021, para 2,2 mil especialistas superqualificados hoje. Também melhoramos o ambiente digital e as ferramentas de comunicação com os clientes”, conta Claudio Sanches, diretor de investimentos e previdência do Itaú Unibanco, que fechou 2023 com R$ 255 bilhões em reserva e R$ 8,5 bilhões em captação líquida – em 2022, a captação líquida tinha sido negativa em R$ 1,5 bilhão.
O executivo credita a virada de jogo ao melhor ambiente macroeconômico a partir do segundo semestre de 2023 e à melhora na assessoria e na jornada oferecidas aos clientes. O banco fechou como líder no ranking de portabilidade da Susep no ano passado, com saldo líquido de R$ 5,74 bilhões, desbancando a XP (com R$ 5,56 bilhões), que vinha mantendo por três anos consecutivos o topo da lista. Já no primeiro bimestre de 2024, sua captação líquida bateu em R$ 1,5 bilhão, enquanto em mesmo período de 2023 tinha sido zero.
O diretor do Itaú diz que o dinheiro novo da previdência muitas vezes tem vindo de produtos de caixa mais conservadores, usados temporariamente enquanto se decide onde fazer a alocação de forma mais estratégica. “Os clientes às vezes colocam o dinheiro em fundos DI e depois migram para outros veículos, como previdência e renda fixa, mais estratégicos, ou mesmo em multimercado”, afirma. Para ele, a previdência se recupera quando há menos volatidade no mercado.
Quem virou o jogo e opera agora com sobra no positivo é o Bradesco, segunda maior carteira do mercado, com mais de R$ 300 bilhões em reserva. A instituição, que sofre constantes ataques da concorrência na questão da portabilidade, fechou 2023 com captação líquida de R$ 7 bilhões e o primeiro trimestre deste ano em R$ 1,7 bilhão. “Estamos em um momento muito bom. Acho que a briga da portabilidade vai continuar a ocorrer em cima das grandes reservas, mas vejo certa estabilidade e seu volume não tem crescido”, observa Estevão Scripilliti, diretor da Bradesco Vida e Previdência.
Para ele, há muita simetria de produtos no mercado e o que tem pesado mais para os clientes são as jornadas, o relacionamento e os serviços pós-venda. “Todo mundo investiu em ter relacionamento próximo com gerentes e consultores. Daqui para frente, vai sair ganhador quem tiver capacidade de crescer o número de clientes e crescer dentro do próprio cliente com aportes mensais”, diz Scripilliti. Hoje, os aportes recorrentes representam 11% da arrecadação anual da instituição.
O fato é que o ritmo dos novos negócios está tão acelerado que a Zurich Santander chega a comparar o início de 2024 com o fim do ano, período em que sazonalmente o setor arrecada mais, devido ao pagamento de 13º salário, bônus e planejamento de Imposto de Renda (IR). Com total de reserva de R$ 88,2 bilhões e captação líquida nos dois primeiros meses do ano de R$ 739 milhões, incremento de 317% em relação a igual período de 2023, a instituição também espera ventos favoráveis no restante de 2024. E, para continuar avançando, irá ampliar sua equipe de consultores de investimentos, dos atuais 1,2 mil para 2 mil. “Os grandes bancos, onde a força está na renda fixa, vão continuar surfando a boa onda, se forem mantidas as condições atuais de mercado”, diz o CEO Marcelo Malanga.
No que tange ao jogo do “rouba-monte”, o executivo nota uma mudança: “BTG e XP estão tendo agora que mostrar a sua série histórica. Éramos muito atacados na portabilidade por essas casas. Hoje, o jogo está mais equilibrado, pois eles também começam a mostrar as suas fragilidades”.
A XP, que vinha sendo muito beneficiada pela portabilidade, continua com saldo positivo da portabilidade tanto em 2023 quanto no primeiro bimestre deste ano. “Muitos dos nossos ganhos vêm da portabilidade, com mais de R$ 10 bilhões de entrada em 2023. Nosso foco em portabilidade ainda é forte, mas a segunda etapa de crescimento é ter o maior marketplace do mercado”, afirma Roberto Teixeira, sócio da XP Inc e head da XP Seguros. Hoje, 40% dos recursos que entram na casa são de aportes de recorrência e 60% por portabilidade. Mas esse percentual já foi bem maior: há dois anos, a proporção era de 10% e 90%. A XP Seguros passou os R$ 60 bilhões em reserva. “Já estamos entre os seis maiores do mercado em cinco anos de vida.”
Com saldo positivo no ranking da portabilidade em 2023 e no primeiro bimestre de 2024, a SulAmérica diz que não entra no jogo de compra de market share para crescer a qualquer custo. “Mantemos a nossa venda de forma cuidadosa, respeitando o perfil do cliente, garantindo sua manutenção por estar bem posicionado. A nossa preocupação estratégica é com qualidade e performance dos nossos fundos e com assessoria financeira adequada”, conta Victor Bernardes, diretor de vida e previdência da SulAmérica. O executivo cita como exemplo um fundo de crédito ESG de previdência que foi lançado há pouco mais de 30 meses e captou R$ 800 milhões. “Desde o lançamento, a rentabilidade está em 135% do CDI, e ele tem sido um dos carros-chefe de captação.”