Desde dezembro de 2022, a telemedicina pode ser praticada à luz da Lei no 14.510, que conceitua a prática da telessaúde em todo o território nacional. Ao revogar a Lei no 13.989, de abril de 2020 – para permitir a telemedicina na pandemia –, a nova norma amplia o conceito e a abrangência, contemplando todas as profissões da saúde regulamentadas. Pelo texto, é considerada telessaúde a modalidade de prestação de serviços de saúde a distância, por meio de tecnologias da informação e da comunicação.
Além de a telemedicina não estar mais restrita só aos médicos, Marco Aurélio Torronteguy, sócio e especialista da área de ciências da vida e da saúde do escritório de advocacia TozziniFreire, diz que outro avanço importante foi a alteração da Lei no 8.080, do Sistema Único de Saúde (SUS), confirmando a telemedicina no âmbito desse serviço.
“A Lei no 14.510 também prevê que qualquer ato normativo de conselhos profissionais ou portarias de órgãos públicos que queiram restringir a prestação de serviços de telessaúde deverá demonstrar a imprescindibilidade da medida”, diz Torronteguy. Para ele, falta ampliar as discussões sobre o uso da inteligência artificial, como o ChatGPT, e de plataformas que sustentam a prestação de serviços da saúde.
Para Henrique Frizzo, sócio do grupo de ciências da vida do escritório Trench Rossi Watanabe, a nova lei traz um pouco mais de conteúdo do que a lei emergencial, com algumas questões específicas da telessaúde digital. “Um exemplo é a responsabilidade digital garantindo confidencialidade dos dados e obrigando a guarda do registro da consulta.”
Também está em vigor a Resolução 2.314 do Conselho Federal de Medicina (CFM), de maio de 2022, mas Frizzo afirma que não há muitos conteúdos que conflitem com a nova lei, que é autoaplicável, sem necessitar de regulamentação. Mas há pontos que precisam ser esclarecidos, como o que prevê necessidade de consulta presencial a cada 180 dias, que não foi ratificado na nova lei. “Esse pode ser um ponto de conflito entre as normas, porque a lei prevê que cabe ao profissional de saúde definir quando se dará a consulta presencial ou remota.”
Outras questões importantes da regulamentação, como a remuneração do médico e a prestação de serviços por instituições não médicas, ficaram de fora. Caio Soares, presidente da Saúde Digital Brasil (SDB), diz que é preciso regulamentar a prestação de serviços pelas farmácias, o que envolveria a necessidade de discussão de questões éticas relacionadas à prescrição de medicamentos.
Segundo Renato Camargo, vice-presidente de clientes da Pague Menos & Extrafarma, a empresa pratica teleinterconsulta em suas farmácias com plataforma da Conecta e, em breve, fará isso com outros parceiros. As duas redes somam 1.650 farmácias no país, sendo a maioria no Nordeste, região carente de instituições públicas e privadas de saúde. Camargo diz que a teleinterconsulta amplia o acesso à saúde, especialmente para a chamada classe média expandida B2, C e D, lembrando que há cidades de 20 mil habitantes em que, às vezes, há apenas um único posto de saúde.
“A farmácia do futuro é a nova velha farmácia, recuperando o protagonismo que as farmácias tinham no passado”, diz Camargo. Por meio de um farmacêutico e um médico a distância, é possível dar um primeiro atendimento em casos de baixa complexidade. Como há testes rápidos aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – Beta HCG, H Pylori, aferição de pressão e glicemia –, o médico pode solicitar o exame, o farmacêutico aplica o teste e envia o resultado para o médico, que avalia e manda a prescrição para o celular do paciente, para ele fazer a compra.
Para Fábio Tiepolo, CEO da Docway, é inegável que a telessaúde amplia o acesso, mas é necessário que se estabeleçam padrões de segurança, protocolos clínicos, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e sistemas avançados de transmissão de dados. A Docway atende a operadoras de planos de saúde e grandes corporações, tendo investido em treinamento para preparar médicos no atendimento digital. Hoje, são quatro mil profissionais atuando em regime de plantão e escala.
“Até 2022, o foco era o pronto atendimento digital, ainda como um reflexo da pandemia, que teve ondas em janeiro e junho. De lá para cá, as ferramentas digitais têm contribuído para ampliação do cuidado. Na Docway, tivemos adições de produtos, como de enfermagem, especialidades médicas, psicologia e linhas de cuidado”, diz Tiepolo.
Depois de atuar com teleatendimentos com hora marcada em 29 especialidades, o dr.consulta iniciou pronto atendimento em clínica geral e pediatria. Desde meados de 2020, foram mais de 550 mil atendimentos. “No pronto atendimento, identificamos uma grande demanda de pediatria”, diz o CEO, Renato Velloso.
O Fleury realiza pronto atendimento digital e também atenção primária à saúde num modelo “figital” (físico e digital). Edgar Gil Rizzatti, presidente de unidades de negócios médico, técnico, de hospitais e novos elos do Grupo Fleury, diz que é feita uma classificação de risco do paciente para inseri-lo em determinados protocolos. “Também temos atendimentos especializados, como consultas com geneticistas para avaliar risco de câncer. E estamos ampliando para outras especialidades.”
O Hospital das Clínicas de São Paulo criou o projeto Saúde Digital em parceria com o governo britânico, que incentiva programas passíveis de melhorar o atendimento, porque o SUS é inspirado no NHS, sistema de saúde da Inglaterra. “Tivemos consultoria da McKinsey e a espinha dorsal do projeto foi o teleatendimento com teleconsulta com especialista, telerreabilitação, telemonitoramento, capacitação de profissionais de saúde e TeleUTI. Também fizemos um piloto de atenção básica na região Norte, ampliado também para o Nordeste e Centro-Oeste”, diz Giovanni Cerri, presidente dos conselhos dos institutos de radiologia e de inovação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
Boa parte dos projetos de telemedicina de alcance social está sendo conduzida pelos hospitais de excelência. São projetos no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), que, como contrapartida de renúncia fiscal para esses hospitais, resultou em investimentos de R$ 7,9 bilhões no SUS em 13 anos, de 2009 até hoje.
O Einstein deve fechar o triênio 2021-2023 do Proadi-SUS com R$ 927 milhões aplicados em 42 projetos aprovados pelo Ministério da Saúde. Entre eles, está o TeleAMES, em operação desde 2020 no Norte, com 240 pontos ativos, oferecendo atendimento médico especializado via telemedicina em Unidades Básicas de Saúde (UBS). Em março deste ano, o projeto foi expandido para o Centro-Oeste, onde estão sendo implantadas mais de cem unidades.
“Já foram realizadas mais de cem mil consultas em sete especialidades no modelo de teleinterconsulta. A maior demanda é de neurologia pediátrica. Em toda a região há apenas 21 especialistas; no Eisntein temos 41”, diz o Carlos Pedrotti, gerente médico do centro de telemedicina do Einstein.
Camila Rocon, representante do Proadi-SUS e líder de projetos pelo Hcor, explica que muitos projetos do programa surgem a partir de demandas das secretarias estaduais e municipais de Saúde. Um deles é o TeleNordeste, iniciado em 2022, que leva teleatendimento em 1.149 UBS de 164 municípios de todos os Estados da região. Até maio, foram 10,2 mil teleinterconsultas com especialistas do Hospital Sírio-Libanês, Hcor, Moinhos de Vento, Oswaldo Cruz e Beneficência Portuguesa (BP).
“A telemedicina permite atingir os vazios assistenciais, locais com muita demanda e pouca oferta de especialista”, diz Camila Rocon. O Hcor também conduz, junto com a BP, o projeto Boas Práticas em Cardiologia, iniciado em 2009 e que contempla 300 UPAs e 30 hospitais, para permitir um fluxo de atendimento mais ágil e identificação precoce de infartos.
Também no âmbito do Proadi, a BP promove treinamento para atendimento a pacientes com questões de gênero e identidade. Renato Vieira, diretor-executivo de desenvolvimento médico, técnico e educação e pesquisa da BP, diz que há um despreparo grande do profissional de saúde para atender minorias, em especial o público LGBTQIA+. “O público LGBTQIA+ procura menos os serviços de saúde, sente-se menos acolhido e, muitas vezes, tem desrespeitado o direito ao nome social. Há muita confusão entre gênero [biológico], identidade [percepção individual] e orientação [desejo].”