No Itaú Unibanco, uma das maiores instituições financeiras do país, é grande o movimento para contratar e treinar pessoal para cargos que há pouco tempo sequer existiam, como cientistas de dados e especialistas em aprendizagem de máquina. O impulso para essas ações vem da inteligência artificial (IA).
“Os bancos foram pioneiros nesse campo no Brasil”, diz Moisés Nascimento, diretor de dados do Itaú. Nos anos 1980 e 1990, a IA foi aplicada principalmente na modelagem estatística de operações financeiras como análise de risco, concessão de crédito e detecção de fraudes, diz o executivo. Nos anos 2000, com o fenômeno do big data - armazenagem e processamento de grandes volumes de dados - os bancos passaram a usar a IA para melhorar serviços e ajudar na tomada interna de decisões. Mas foi nos últimos anos, com o avanço rápido da tecnologia, que seu uso se disseminou para todas as áreas, com forte apelo na personalização de produtos e serviços. “Saímos da era dos dados e entramos na era da economia orientada pela inteligência artificial”, diz Nascimento.
No Brasil, 41% das empresas já usam IA em operações comerciais, mais que a média mundial, de 35%, segundo a pesquisa “Índice de Adoção Global de IA” divulgada pela IBM em 2022. Outras 34% disseram que estão explorando o uso dessas tecnologias. Entre as principais áreas de aplicação estão segurança cibernética e chatbots (44% cada), marketing e vendas e automatização de processos (30% cada).
Além do setor financeiro, a adoção da IA no Brasil tem se concentrado em setores que passam por processos intensos de transformação digital, como saúde e agronegócio, afirma Fabio Cozman, diretor do Centro de Inteligência Artificial (C4AI) da Universidade de São Paulo e professor da Escola Politécnica da USP. Entre outros sinais, esse interesse é marcado pela criação de startups especializadas que fornecem tecnologia aos grandes grupos. Das 479 startups verticais mapeadas pelo estudo “Startups e o Uso da Inteligência Artificial”, feita por Google, ABStartups (associação do setor) e Box 1824, de tendências de consumo, 12% são de saúde e biotecnologia e 9,5% de agricultura e comida.
A previsão é que os gastos das empresas com IA no país ultrapassem US$ 1 bilhão, ou R$ 5 bilhões, até o fim do ano, com crescimento de 33% sobre 2022, segundo a consultoria IDC. Será o terceiro maior destino dos orçamentos de tecnologia, atrás de nuvem e segurança digital. Ao todo, estima a IDC, investimentos corporativos em tecnologia da informação (TI) somarão US$ 80 bilhões, alta de 5% na comparação com o ano passado.
A inteligência artificial não é um campo novo da computação. A expressão apareceu pela primeira vez em um estudo do matemático britânico Alan Turing, publicado em 1950. O primeiro chatbot é atribuído ao Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) e foi apresentado em 1966. Chamava-se Eliza, em homenagem ao personagem Eliza Doolitle, do romance “Pigmaleão” e do musical “My Fair Lady”, e simulava uma conversa entre um ser humano e uma máquina.
Desde então, mecanismos de IA têm sido incorporados a modelos de produção, mas só muito recentemente o assunto ganhou superexposição e virou tema de um acalorado debate público. O motivo é o surgimento da inteligência artificial generativa, que vasculha a internet para juntar dados e responder a perguntas, escrever textos e criar imagens, entre outras aplicações. O exemplo mais famoso é o ChatGPT, lançado pela startup americana OpenAI em novembro de 2022 e que recebeu investimento da Microsoft estimado em US$ 10 bilhões no início deste ano.
Na corrida para extrair benefícios da IA, o Brasil ocupa uma posição intermediária, diz Cozman, do C4AI. “Estados Unidos, China, Índia, alguns países da Europa e Canadá estão entre os destaques nos diversos observatórios internacionais. Depois, vem um pelotão no qual está o Brasil”, diz Cozman. Os critérios costumam considerar produção acadêmica, infraestrutura, investimento privado e interesse do governo. No Ranking Global de Vibração de IA, ferramenta on-line da Universidade Stanford que mede o preparo de cada país para a inteligência artificial, o Brasil aparece em 19º lugar numa lista de 29 países na média de critérios relacionados a temas econômicos e de pesquisa e desenvolvimento. A posição muda ligeiramente dependendo do peso que se dá aos itens do índice, mas, em qualquer simulação, continua distante dos primeiros lugares, ocupados por EUA, China e Índia.
“Não se trata só de dinheiro, embora isso seja importante”, diz Cozman. “O Brasil precisa acompanhar uma série de movimentos internacionais que estão sendo feitos para estruturar políticas públicas para a IA”. O país tem um documento importante - a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial -, mas seria importante que o texto fosse revisado pelo governo federal, para a definição de prioridades e alocação de recursos, afirma o professor. “Precisamos ter um processo contínuo de revisão de estratégia e formulação de políticas públicas, com investimentos inteligentes. O risco não é ficarmos para trás porque paramos de investir, mas porque a corrida nessa direção é velocíssima”, alerta.
Uma das questões mais sensíveis é o impacto da IA no emprego. Segundo o Relatório sobre o Futuro dos Empregos 2023, do Fórum Econômico Mundial, um quarto de todos os empregos vão mudar nos próximos cinco anos. O levantamento, que teve a participação da Fundação Dom Cabral, consultou 803 empresas. A previsão é que sejam criadas 69 milhões de vagas, mas eliminadas 83 milhões, com redução líquida de 14 milhões de vagas, ou 2% dos empregos atuais. “O saldo é negativo”, ressalta o professor Hugo Tadeu, diretor do Núcleo de Inovação e Empreendedorismo da Fundação Dom Cabral.
Caixas de banco e de supermercado, funcionários de serviços postais, estoquistas, seguranças e vendedores de porta em porta estão entre as profissões que tendem a desaparecer. Em contrapartida, o relatório põe no topo das ocupações mais valorizadas os especialistas em IA e aprendizado de máquina. Até 2027, vagas destinadas a essas e a carreiras afins, como cientistas de dados e especialistas em big data, crescerão 30%. O desafio é formar mão de obra adequada para essa demanda, considerando que leva tempo e que o mercado vive uma fase de caça aos profissionais disponíveis, com risco de evasão de cérebros para o exterior.
Além de políticas públicas, diz Tadeu, as empresas terão de dar mais atenção ao tema. “É preciso haver uma avaliação clara de perfil e competência da equipe, mas isso passa longe de grande parte dos diretores de RH”, afirma o professor da Fundação Dom Cabral.
Para funcionar, a prioridade deve ser determinada pelos níveis mais altos de gestão, a começar dos conselhos de administração. Em muitos colegiados, diz Tadeu, a avaliação é quase estritamente financeira e não considera necessidades de longo prazo. “Eles olham muito para o trimestre, para a geração de caixa, a redução de custos etc. Mas se as coisas não começam na primeira camada, é difícil que reverberem na estrutura abaixo.”
Segundo a Brasscom, associação de empresas de tecnologia de informação e comunicação, o mercado brasileiro pode ter déficit de 797 mil vagas até 2025 se a formação profissional não se acelerar. “O que está se desenhando é urgente e se governo, empresas e indivíduos não perceberem a situação vamos ter queda de produtividade”, adverte Tadeu.
O Itaú foi ao Vale do Silício, na Califórnia, recrutar Nascimento para o cargo de diretor de dados. O executivo passou 14 anos em empresas de tecnologia nos EUA antes de voltar ao Brasil, quatro anos atrás, para assumir a função. O banco tem usado a inteligência artificial para entender melhor a fase de vida em que está o cliente e ter conversas contextualizadas, com ofertas de serviços que se mostrem mais assertivas. Iniciativas de IA generativa estão em desenvolvimento. “Estamos criando e testando soluções com inúmeros parceiros de tecnologia”, afirma o executivo. A abordagem não se restringe a desenvolvedores e precisa envolver todo o banco, diz Nascimento. “Fica até difícil mensurar a equipe de tecnologia, porque numa empresa digital tudo é tecnologia.”