![Barry Eichengreen: “Há uma oportunidade para a Ucrânia de realmente erradicar o problema da corrupção, uma de suas fraquezas econômicas e políticas” — Foto: Divulgação](https://s2-valor.glbimg.com/7YUWX9bR1hXFDNB4DpJ7aRYAY5A=/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2023/w/I/LFo3GWRlAbgdKD01Sr2A/foto31rel-101-barry-f15.jpg)
O legado da pandemia e da guerra entre Rússia e Ucrânia será um mundo que vai ter de conviver com taxas de juros mais elevadas e um patamar um pouco maior de inflação, avalia o economista e professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Barry Eichengreen, autor de livros como “Privilégio Exorbitante: A Ascensão e Queda do Dólar” e “A Globalização do Capital”. Em entrevista ao Valor, o especialista alertou que “poderemos ver, nos próximos anos, uma inflação um pouco acima de 2% nas economias avançadas, mas não veremos uma repetição da inflação que experimentamos em 2021-2022”.
Segundo Eichengreen, “provavelmente, teremos taxas de juros mais altas do que vimos no passado recente, embora a inflação volte a cair para perto de 2%”. O economista também pontuou haver grande chance de Estados Unidos e Europa entrarem em recessão entre o fim do ano e o começo de 2024. “Existe risco, claramente, porque não apenas as taxas de juros subiram, mas os empréstimos bancários, especialmente nos Estados Unidos, por bancos regionais menores, diminuíram. Portanto, as condições financeiras estão muito mais apertadas.” Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Quais são os principais riscos para a economia global que o senhor enxerga pela frente?
Barry Eichengreen: Há um grande problema entre a Rússia e o G7. Podemos também dizer entre a Rússia e o Ocidente. E há essas tensões contínuas entre os Estados Unidos e a China. Então, acho que se algum desses problemas aumentar, isso seria uma notícia muito ruim para a economia mundial. Fomos lembrados recentemente [devido à quebra de bancos regionais nos Estados Unidos ] que os mercados financeiros estão encontrando dificuldades para digerir os juros mais altos, que não apenas o Federal Reserve [Fed, o banco central americano], mas também outros BCs de países avançados estão adotando. Então eu começaria pelo risco geopolítico e continuaria pelo risco financeiro. E acho que há risco político em vários países. Nos Estados Unidos, o problema do teto da dívida, por exemplo, é puramente político, não econômico ou financeiro.
Valor: A guerra acelerou um questionamento sobre a hegemonia do dólar?
Eichengreen: Em 2011, publiquei um livro chamado “Privilégio Exorbitante: A Ascensão e a Queda do Dólar”, que previu que haveria um movimento muito gradual, ao longo do tempo, afastando-se do domínio do dólar e em direção a um sistema monetário e financeiro internacional mais multipolar, no qual outras moedas como o renminbi chinês também desempenhariam um papel global importante. Acho que essa mudança em geral está em andamento. Portanto, a previsão estava correta. Mas o movimento tem sido muito mais lento do que eu previa. Assim como naquela época, há 12 anos, ainda é muito difícil se afastar do dólar, mesmo com eventos como as sanções aplicadas à Rússia em 2020, que encorajou os países não alinhados a buscar alternativas ao dólar. Diria mais precisamente, que as sanções encorajaram outros países a desenvolver a capacidade não apenas de usar dólares, mas também usar outras moedas para pagamentos transfronteiriços e como forma de manter suas reservas. Mas não há muitas alternativas atraentes ao dólar.
Valor: E quanto à moeda chinesa?
Eichengreen: O renmimbi chinês ainda está muito atrás do dólar americano, em todas as medidas relevantes como veículo de pagamentos interbancários e como forma de manter reservas internacionais. A China tem tentado encorajar outros países a manter e usar sua moeda por mais de uma década, e fez apenas progressos incrementais. Então acho que essa busca por alternativas ao dólar vai continuar. Se você olhar para trás na história, a única vez ou vezes em que vimos mudanças bruscas no uso internacional da moeda foi quando houve uma combinação de desenvolvimento institucional muito rápido e choques geopolíticos muito grandes. O melhor exemplo foi a mudança da libra esterlina para o dólar americano, durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando houve desenvolvimento institucional significativo, com os Estados Unidos criando um banco central, o Federal Reserve, em 1914. E a Primeira Guerra Mundial foi um grande choque para Londres como centro financeiro global. Portanto, esses dois desenvolvimentos muito dramáticos levaram a um crescimento repentino do dólar como rival da libra esterlina. Então, qual seria o equivalente disso no século 21? Teria de haver a eliminação definitiva dos controles de capitais chineses, de modo que o uso de sua moeda ficasse muito mais fácil. Mas não acho que os líderes chineses estejam preparados para isso. E teria de haver um grande choque geopolítico que fizesse com que os países da Ásia e de outros lugares passassem do dólar ao renminbi. Portanto, acho altamente improvável.
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Valor: O CBDC pode ter um papel nesse processo?
Eichengreen: A China meio que está à frente em termos de desenvolvimento e lançamento do CBDC [moeda digital emitida por um BC]. Mas acho que existem grandes obstáculos para o uso transfronteiriço de CBDCs. Estamos falando de pagamentos transfronteiriços e uso global, não apenas doméstico, então para usar o dinheiro digital da China você precisa residir na China. Se os estrangeiros pudessem usá-lo, seria uma maneira de contornar os controles de capital da China. E enfraqueceria a capacidade dos formuladores chineses de políticas de controlar seu sistema financeiro, sua economia, seu balanço de pagamentos. Se o renminbi digital da China pudesse ser usado no Chile, por exemplo, isso enfraqueceria a capacidade do BC do Chile de usar a política monetária para influenciar os rumos da economia, seria o equivalente à dolarização, no sentido de substituição de moeda. Acho que os bancos centrais e os governos fora da China relutariam em permitir isso. O outro cenário que as pessoas têm em mente é que diferentes CBDCs podem ser negociadas com mais facilidade no mercado de câmbio, e sabemos como fazer isso. Tecnicamente, sabemos como vários CBDCs podem ser executados em um único blockchain. Como alternativa, o Bank for International Settlements [BIS, o ‘BC dos BCs’] fez experimentos nesse sentido de plataforma multimoedas digitais. Portanto, sabemos tecnicamente como fazer. Mas não sabemos, politicamente, como implementar.
Valor: Como seria feita essa experiência?
Eichengreen:Essas plataformas teriam de ser reguladas e supervisionadas da mesma maneira que acontece, por exemplo, no comércio internacional por uma organização multilateral como a Organização Mundial do Comércio ou o Fundo Monetário Internacional e não acho que os BCs e governos vão concordar com essas regras do jogo.
Valor: A guerra acelerou o processo de desglobalização ou ainda podemos voltar à integração vista antes da pandemia?
Eichengreen: Acho que é concebível, mas improvável, uma desglobalização completa. Veremos mais 'nearshoring' e regionalização [de cadeias de suprimentos], com os Estados Unidos, no futuro, importando menos da China e mais do México. Também, de maneira geral, os Estados Unidos fazendo mais comércio com países próximos com os quais têm melhores relações políticas. Mas eu não acho que a globalização vai desaparecer. Ou que a economia global de hoje será substituída por uma regionalização estrita, como, por exemplo, um bloco de dólar outro de renminbi. A globalização tem vantagens ainda. Além disso, Estados Unidos e China ainda estão interligados economicamente. Apenas no caso de uma verdadeira explosão geopolítica na relação entre os dois veríamos esse tipo de regionalização e a reorganização da ordem monetária e financeira global em blocos distintos de dólar e renminbi. Algo dessa magnitude poderia ocorrer, se os Estados Unidos pensassem que a China está exportando hardware militar ou tecnologia de uso duplo para a Rússia, ou no caso de um conflito real sobre Taiwan. Mas as consequências seriam desastrosas. Nesse caso, esperamos que os políticos de ambos os lados percebam isso e possam administrar essas tensões e evitar um cenário tão ruim.
Valor: Quais vão ser as consequências para a Rússia e Ucrânia no pós-guerra?
Eichengreen: Essa guerra se traduziu no isolamento da Rússia e da economia russa. O país ainda é capaz de exportar algum petróleo e recursos naturais para a China e nações não alinhadas [ao Ocidente], mas foi isolado geopoliticamente e economicamente. Ainda não vimos os danos a longo prazo desse isolamento. Terá de haver uma solução diplomática para a guerra. Mas acho que para a Ucrânia conseguir os termos que merece, terá de estar em uma posição mais forte. E é isso que a atual contra-ofensiva ucraniana pretende alcançar. O notável é que a própria Ucrânia, agora, é uma candidata muito mais séria à adesão à União Europeia do que era antes do ataque da Rússia. Portanto, acho bastante realista que dentro de cinco ou 10 anos a Ucrânia esteja mais tranquila como membro da UE. A posição política dos reformadores na Ucrânia agora é mais forte do que a dos antigos oligarcas. Há uma oportunidade para a Ucrânia de realmente erradicar o problema da corrupção que era uma de suas fraquezas econômicas e políticas. Claramente, a Rússia se voltará para a China e se afastará do Ocidente, pois a dissociação dos mercados de energia da Europa Ocidental é irreversível. Quando a guerra acabar, [o gasoduto] Nord Stream 2 não será conectado. Haverá mudança permanente da Rússia para o campo chinês. A esperança é que a China use sua liderança econômica e política sobre a Rússia para insistir que o país siga políticas sensatas.
Valor: A inflação global pode voltar a patamares vistos no período pré-pandemia?
Eichengreen: Sim, acho que os bancos centrais, a maioria pelo menos, leva a sério suas metas de inflação. E têm os instrumentos necessários para alcançar e manter essas metas. Então eu esperaria que a inflação nos Estados Unidos, na zona do euro e no Reino Unido voltasse para [perto de] 2%. Isso não significa que cairá até 2%. No ano que vem, ainda podemos ver uma inflação um pouco maior do que isso. Mas o núcleo da inflação já está claramente caindo nos Estados Unidos e descendo mais lentamente no Reino Unido e na área do euro. Poderemos ver uma inflação um pouco acima de 2% nas economias avançadas nos próximos anos. Mas não veremos uma repetição do que experimentamos em 2021-2022. E acho que, provavelmente, teremos taxas de juros mais altas do que vimos no passado recente. Embora a inflação volte a cair para 2%, as taxas de juros não cairão totalmente para onde estavam antes da pandemia e da guerra porque há mais dívida pública. Investidores vão querer taxas mais altas para mantê-la.
Valor: Há risco de recessão nos EUA e na Europa?
Eichengreen: Existe risco, claramente, porque não apenas as taxas de juros subiram, mas os empréstimos bancários, especialmente nos Estados Unidos, por bancos regionais, diminuíram. Portanto, as condições financeiras estão muito mais apertadas. Os custos trabalhistas vão subir nos Estados Unidos e Europa, pois os trabalhadores vão exigir salários mais altos para compensar os preços elevados. Há claramente riscos de recessão. Não sou um especialista em prever ciclos de negócios, portanto, não posso colocar um número nesse risco. É maior na Europa do que nos Estados Unidos. A situação energética é mais difícil na Europa do que nos Estados Unidos.
Valor: O Fed pode ter de manter taxas altas por mais tempo?
Eichengreen: Sim. O Fed parece inclinado a fazer uma pausa em algum momento, porque o núcleo da inflação está caindo e as coisas estão quebrando no sistema financeiro. Além disso, percebe que há uma ligação entre [o esforço de] reduzir a inflação mais rapidamente e [a ocorrência dos] transtornos financeiros. Mas acho que os mercados podem estar superestimando a rapidez com que o Fed fará uma pausa e exagerando ao ver a probabilidade de que o Fed corte as taxas ainda este ano. Acho que o Fed pode aumentar as taxas em mais 25 pontos-base na próxima reunião. Os mercados estão descontando essa probabilidade, mas ainda é possível. Após [a nova alta] o Fed fará uma pausa. E não acho que cortes nas taxas sejam prováveis este ano, exceto se a recessão se materializar.
Valor: O sr. ainda vê risco de estagflação?
Eichengreen: Se os Estados Unidos passarem por uma recessão, a inflação cairá rapidamente de volta para 2% a 3%. A estagflação depende de qual é a definição do termo. Quando falamos de estagflação, pensamos mais na década de 1970, quando o crescimento econômico decepcionou por um longo período e a inflação persistiu por algo entre 5 a 7 anos. A política monetária hoje é melhor e o compromisso do Banco Central com suas metas de inflação é mais crível. Então não acho que uma inflação alta de um ou dois dígitos persistirá por seis ou sete anos. Os fundamentos do crescimento econômico são fortes nos Estados Unidos. A Europa está lidando com seu problema de fornecimento de energia e ajustando-se com muito mais facilidade do que muitos esperavam. Se a definição de estagflação for algo como 5 a 7 anos de alta inflação e crescimento decepcionante, não acho que veremos isso.
Valor: Quais seriam os efeitos de uma recessão mesmo que branda nos EUA?
Eichengreen: Os Estados Unidos são 20% da economia global. Então o que acontece nos EUA, economicamente, não fica só nos EUA. O melhor cenário para o resto do mundo seriam taxas de juros mais baixas nos EUA e um dólar mais fraco. Isso facilitaria a vida de países que têm muita dívida em dólares, condição que se aplica a várias economias em desenvolvimento ou de baixa renda. Os Estados Unidos também têm problemas políticos, e uma recessão tornaria menos provável a reeleição do presidente [Joe] Biden. E a eleição de um candidato republicano ficaria mais provável. Minha opinião é que a economia dos Estados Unidos se saiu muito melhor sob Biden do que sob Trump, e as relações econômicas externas dos Estados Unidos têm sido mais suaves sob a atual administração do que na anterior. Mas uma recessão definitivamente faria pender a balança política americana.
Valor: O Brasil pode se beneficiar de uma reorganização das cadeias de suprimentos?
Eichengreen: Acho que a preocupação nos Estados Unidos está centrada na alta tecnologia e nos principais materiais que entram na produção de baterias, semicondutores e outros equipamentos sensíveis. O Chile, por exemplo, é conhecido por ser um grande fornecedor de lítio. E tende a se beneficiar do desejo dos Estados Unidos de obter lítio do Hemisfério Ocidental, e não da China. Não vejo o Brasil como grande fornecedor de materiais dessa cadeia, ou seja, daqueles que os Estados Unidos estão focando do ponto de vista de preocupações de segurança nacional.