A pandemia e a guerra colocaram o mundo em uma espécie de encruzilhada com vários caminhos possíveis a serem trilhados. Economistas ouvidos pelo Valor consideram haver uma multiplicidade de cenários possíveis, nos quais grandes forças tendem a redesenhar a geopolítica e a atividade global. Alguns fatores, porém, parecem estar no rumo de se consolidar no médio prazo: a inflação em economias avançadas não deve voltar ao patamar abaixo de 2% visto antes da covid-19 e a era do juro zero também ficou para trás.
“O mundo no qual estamos entrando é um em que os juros e a inflação serão estruturalmente mais altos”, afirma o economista global do Citi, Robert Sockin. “Além disso, a taxa neutra pode ter subido um pouco, ainda que seja difícil avaliar, e talvez tenhamos um juro nominal de longo prazo próximo a 3% [nos EUA]”, acrescenta.
O especialista avalia que, após termos ultrapassado o período de aperto monetário sincronizado entre os bancos centrais globais, os índices de preços tenderiam a permanecer acima de 2% ao ano e, provavelmente, mais perto de 2,5%. Se essa nova realidade se concretizar, significa um nível cerca de 1 ponto percentual acima da média do período entre a crise financeira de 2008 e antes da pandemia nas economias avançadas.
“Minha percepção vai na linha de que os juros globais pós-pandemia serão mais altos”, diz o chefe de pesquisas econômicas para América Latina do BNP Paribas, Gustavo Arruda. “Não vai ser algo como 5%, mas também não estará perto do zero como passamos mais de uma década”, analisa.
Na visão da economista-chefe da CM Capital, Carla Argenta, o mundo que começa a emergir passa por uma mudança estrutural da própria matriz produtiva. “A guerra acelerou um processo que vem desde a pandemia, de quebra da matriz produtiva vigente, que foi baseada em uma interdependência mútua global”, afirma. “Esse cenário vem desde o fim da Segunda Guerra, justamente para diluir a possibilidade de novos conflitos. Mas isso caiu por terra quando a Rússia invadiu a Ucrânia”, diz.
A especialista afirma que os países ocidentais perceberam que essa interdependência não funciona mais e começaram a querer diminuir a vulnerabilidade. Ela cita como exemplo, a Alemanha, que fez se esforçou para reduzir a dependência de energia russa. O problema, segundo Argenta, é que construir essa nova matriz leva tempo, o que gera inflação no curto prazo. “A inflação vai ficar mais volátil e podemos ver repiques de tempos em tempos” até a consolidação do modelo, afirma.
Na análise de Arruda, do BNP, o mundo caminha para um segundo momento em termos de efeitos da pandemia e da guerra, com alta de preços. “A questão de ‘nearshoring’ [movimento de trazer cadeia de suprimentos para mais próximo do país] e ‘onshoring’ [trazer a fabricação de volta ao país] é mais custosa e gera inflação para cima”, diz. “A impressão é que os juros nominal e real serão um pouco mais altos [daqui para a frente]”, afirma.
A vice-diretora gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Gita Gopinath, abordou o tema durante conferência organizada pelo órgão no fim de maio. “Os sinais iniciais de fragmentação geoeconômica estão se enraizando”, alertou. “A pandemia, a guerra e a intensificação da rivalidade geopolítica aumentaram as preocupações com a segurança nacional e sobre a resiliência da cadeia de suprimentos”, pontuou.
“Essas mudanças marcam o início de um novo paradigma na ordem econômica global, que se afasta de décadas de integração mundial”, disse Gopinath. Para a vice-diretora do FMI, os formuladores de políticas estão, cada vez mais, considerando e implementando medidas para mover a produção de volta ao país ou a nações aliadas. Segundo a dirigente, dados do Fundo mostram que as restrições ao comércio e ao investimento direto no exterior aumentaram três vezes desde 2018.
O economista-chefe do banco suíço Lombard Odier, Samy Chaar, enxerga o exemplo de como os europeus lidaram com a restrição energética logo após o início da guerra, como uma sinalização de como pode ocorrer a transição na economia global. “A Europa diversificou as fontes de gás, reduziu o consumo do combustível, estão usando mais energias renováveis, provavelmente mais energia nuclear nova. É notável ver o quão rápido foi. No ano passado, todos diziam que a Europa não conseguiria e estamos, meses depois, com preço do gás perto do período pré-guerra. E a Europa acelerando a eletrificação da economia”.
Na avaliação de Chaar, não há risco de haver uma grande restrição da cadeia de suprimentos no médio prazo. “Se uma companhia não puder mais produzir na China, pode ir para a Índia, Indonésia, outro país no sudeste asiático e o México”, afirma. O especialista cita também Norte da África, Europa Oriental e América Latina. Chaar lembra que pouco mais de duas décadas atrás ninguém estava produzindo na China.
Para a economista-chefe do Banco Inter, Rafaela Vitória, o momento de transição não se caracteriza, na verdade, como uma “desglobalização”, como muitos observaram no início da guerra. “Vejo mais como a fase final do processo de globalização, porque chegamos no limite de buscar novas fronteiras para baratear custos”, afirma. “Tivemos um longo período de mudança na produção industrial global com concentração na China, mas esse modelo mudou”, complementa.
“Parece mais que estamos nos movendo em direção a cadeias de suprimentos redundantes, do que a substituição simples”, afirma Sockin, do Citi. O economista explica que em vez de obter uma peça de apenas um país, as companhias podem ter quatro ou cinco fornecedores do mesmo item. O especialista avalia ainda não ver êxodo em massa de empresas da China, mas um movimento da cadeia global em direção a diversificação.
Outro fator que tem suscitado debates na comunidade econômica diz respeito à hegemonia do dólar como moeda de referência no comércio, finanças e como reserva de valor global. Na avaliação do analista internacional e professor de relações internacionais da ESAMC, Guilherme Camara, a ordem monetária internacional como conhecemos corre risco de desaparecer no longo prazo. O especialista pontua que, diante das sanções ocidentais, o governo russo vem tentando criar um sistema de pagamentos internacionais paralelo. “Vemos ecos desse movimento em outros países, que começam a querer viabilizar novas moedas no comércio bilateral”.
A China, como segunda maior economia do mundo, é sempre apontada como candidata a ver a sua moeda, o renminbi, se tornar rival do dólar. Os economistas ouvidos pelo Valor, porém, avaliam ser prematuro essa avaliação. “A era do dólar como reserva de valor global ainda vai continuar por muito tempo”, afirma Chaar, economista-chefe do Lombard Odier.
Conforme o especialista, a China é um país superavitário, enquanto os Estados Unidos são deficitários. “Isso significa que os americanos abastecem o mundo de dólares, enquanto os chineses mantêm o renminbi dentro do país”. Para Chaar, os chineses precisariam avançar em reformas institucionais para que sua moeda se internacionalize. “O país precisa extinguir o controle de capital, mas isso significa ter moeda flutuante e livre, que pode oscilar e trazer inflação”, diz o representante do Lombard Odier.