Apesar dos constantes desafios, o ativismo feminista e antirracista no país tem gerado impacto não apenas em uma maior participação de mulheres em cargos de lideranças, como também no mercado livreiro. De alguns anos pra cá, mulheres querem ler cada vez mais mulheres. E assim, passaram a ganhar maior projeção escritoras e iniciativas de livrarias e editoras especializadas em um movimento que dá maior voz às autoras, inclusive as negras, que costumavam constar em último lugar desta fila.
O papel das mulheres na literatura também se evidencia com maior força na academia. A partir de 2026, o vestibular da Fuvest, responsável pelo ingresso do estudante na Universidade de São Paulo (USP), estabeleceu como leitura obrigatória obras de dez autoras: Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Djaimilia Pereira de Almeida, Julia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Paulina Chiziane, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen.
No Brasil, a escritora brasileira de ficção mais vendida é Carla Madeira, autora do best-seller “Tudo é Rio”, que já superou a marca de 600 mil exemplares. A publicitária mineira começou a ficar conhecida nos clubes de leitura que costumam ter em sua maioria leitoras. “Os clubes de leitura são só um começo. As pessoas estão querendo conversar sobre livros. Costumo dizer que o livro acontece no leitor. E o boca a boca, através das redes sociais, se tornou muito potente”, diz ela.
Assim como outras autoras, Madeira questiona escrever apenas para mulheres. “Desejo fazer uma literatura universal. Eu fico sempre dizendo sobre a necessidade de se abrir espaço para as mulheres em todos os lugares. A gente não tem que ser nicho por nossa capacidade de falarmos sobre tudo”, afirma.
A questão de gênero no mundo literário tornou-se evidente para as editoras, inclusive as comandadas por mulheres, como é o caso do Grupo Editorial Record, que tem como vice-presidente Roberta Machado. “Estamos vivendo um momento de maior identidade entre grupos e, finalmente, dando a importância devida à representatividade. E o público leitor é muito mais feminino, somos a maioria. Daí o resultado é que mulheres estão querendo ler mais mulheres. Isso está presente em clubes de livro, em mensagens de redes sociais e está sendo discutido em podcasts”, afirma a executiva.
Entre a população adulta que comprou ao menos um livro no último ano, 57% são mulheres e 43% são homens, segundo a pesquisa “Panorama do Consumo de Livros”, publicada pela Nielsen BookData em 2023. “A Record emplacou por três anos consecutivos o autor que mais vendeu livros no Brasil; em 2021 com Sarah J. Maas, autora americana de fantasia e, em 2022 e 2023, com Colleen Hoover, autora americana de drama. Também costumam frequentar a lista de mais vendidos nomes como Elisama Santos e Isabel Allende”, diz Machado.
Por melhor que seja a obra literária de uma mulher, nem sempre o reconhecimento chega, ou se chega, acontece tardiamente - ainda mais se ela for negra, em razão do racismo estrutural no país, como foi o caso de uma das maiores escritoras, poetas e ensaístas contemporâneas, Conceição Evaristo, eleita em 15 de fevereiro para a Academia Mineira de Letras.
A ficcionista e poeta mineira costuma apontar que apenas aos 71 anos seu trabalho literário passou a receber o devido valor. Em 2015, ela recebeu o Prêmio Jabuti na categoria contos e crônicas pelo livro “Olhos D’água”, que segue como um best-seller adotado por muitas escolas. Em 2019, foi a homenageada do 61º Prêmio Jabuti como personalidade literária. Em 2023, Evaristo foi agraciada com o Prêmio Juca Pato como Intelectual do Ano e laureada com o prêmio Elo no Festival Internacional das Artes de Língua Portuguesa.
Sobre a entrada de uma escritora negra na academia, ela é direta: “O importante não é ser a primeira, mas abrir perspectivas, caminhos, questionar esse lugar”, disse a escritora ao Valor. “A minha imagem vai marcar a academia como um passo que está sendo dado e pode ser seguido por outras mulheres negras.”
Evaristo vai na linha da editora Machado ao entender sua eleição e a do escritor e líder indígena Ailton Krenak (neste caso para a Academia Brasileira de Letras), como um sinal de que o Brasil começa a se dar conta de sua diversidade populacional. “A sociedade brasileira está forçadamente tomando consciência das questões do racismo, do machismo, da xenofobia. E a concepção dos saberes brasileiros corresponde a essa pluralidade na literatura”.
A escritora reforça a ideia de que percorreu um árduo caminho até alcançar a academia mineira. “Nada cai do céu. São processos de luta. [A escritora negra] Carolina Maria de Jesus teve um processo solitário, não teve outras autoras a seu redor”, lembra, sobre uma das autoras mais importantes da literatura brasileira. E recomenda: “É preciso haver uma política de citação. Citar e conhecer as obras de outras mulheres, ler outras autoras e criar uma rede de cooperação”.
Dar voz a escritoras foi justamente a intenção da empresária Johanna Stein ao focar seu negócio, a livraria Gato sem rabo, no centro de São Paulo, em obras escritas por mulheres. Apesar de Stein fazer parte desse movimento de divulgação de autoras, que inclui grupos de leitura como Mulherio das Letras e Leia Mulheres, ela também faz a ressalva que sua livraria “não é de nicho”. “Nós acreditamos que a literatura escrita por mulheres, que por muito tempo foi invisibilizada em um mercado dominado por homens, está desmistificando essa esfera universal. O que queremos são muitos pontos de vista, obras com pluralidade de vozes. É possível se pensar outros cânones literários, outras literaturas”, afirma.
As livrarias entenderam a necessidade de se avançar na temática e se tornaram espaços para discutir literatura escrita por mulheres. “Estamos muito comprometidos com a representatividade, em nosso catálogo e em todos os projetos que desenvolvemos, e é claro que os livros de autoria feminina têm grande presença nos debates que organizamos”, diz Irene de Hollanda, diretora e fundadora da livraria Megafauna, ao lado de Fernanda Diamant, que foi curadora da Flip, festa literária realizada em Paraty (RJ). E sobre os eventos literários, Hollanda é categórica: “Hoje, uma programação literária com mulheres sub-representadas é uma programação sem credibilidade curatorial”.