A pobreza energética é uma realidade no Brasil. Pesquisa do Instituto Datafolha de 2022 mostra que a conta de luz ocupa uma fatia considerável do orçamento doméstico das famílias de baixa renda: para 67% dos brasileiros, o custo da energia representa um dos maiores gastos mensais. A projeção aponta que 79% dos entrevistados gostariam de ter a portabilidade desse gasto, ou seja, a chance de escolher seu fornecedor.
Estudo da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) estima que mais de 5 milhões de consumidores de baixa renda poderiam ter acesso a energia mais barata com o mercado livre de energia, com potencial redução entre 7,5% e 10% dos custos da conta de luz. Somadas, as mais de 14 milhões de unidades de consumo desse segmento equivaleriam a uma economia de R$ 880,9 milhões anuais. Se considerados todos os setores a economia projetada é de R$ 35,8 bilhões.
Rodrigo Ferreira, presidente da Abraceel, explica que o estudo aponta a abertura do mercado livre para esses consumidores como um instrumento de justiça social, na medida em que o mercado livre existe há 20 anos e está restrito a grandes consumidores.
“O cliente de baixa renda tem descontos que variam entre 10% e 65% na conta de luz. São 15 milhões assistidos por esse tipo de tarifa escalonada por faixas”, afirma. “Quando a gente faz uma análise de 33 distribuidoras, percebemos um volume muito grande de casos em que vale a pena o consumidor abrir mão do desconto e comprar energia no mercado livre porque o desconto que ele vai obter é maior do que o garantido pela política pública”, observa.
No calendário do governo, os mais de 6,4 milhões de consumidores de baixa tensão do comércio e da indústria devem ter acesso ao mercado livre somente em 2026. A portaria 690/2022, do Ministério de Minas e Energia, estabelece o ingresso de 62,9 milhões de residências apenas em 2028. No começo de 2024, os 106 mil consumidores de alta e média tensão, segmento antes limitado ao consumo acima de 500 quilowatts (kW), terão liberdade de comprar energia de um fornecedor escolhido. A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) estima que o mercado de energia livre cresceu 30% no primeiro trimestre de 2023, chegando a 32 mil pontos de consumo - a maioria composta por comércios, serviços e alimentos. Segundo a Abraceel, só em 2022, consumidores livres pouparam R$ 41 bilhões com energia elétrica.
Um cenário de transição gradativa, no entanto, pode ser preocupante, de acordo com Marcos Madureira, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee). Isso porque a base do mercado cativo, no qual estão atualmente os consumidores residenciais, é que fica com parte dos subsídios de R$ 36 bilhões da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). “No momento em que o consumidor migra, ele deixa contratos que foram comprados de valores mais altos. Por consequência, essa energia do mercado cativo tem valor mais alto e a tarifa termina ficando mais elevada. O ponto que tem que ser observado é se, de fato, o consumidor está tendo custo menor por eficiência do processo ou se está sendo beneficiado pelos demais, que são consumidores de menor condição financeira”, aponta.
Ambos os executivos reforçam que a abertura do mercado depende de regulações para que não se criem novos custos para os clientes. No Congresso, tramita o projeto de lei 414 (já aprovado no Senado, em fase de emendas na Câmara dos Deputados), que dispõe sobre aspectos legais da abertura do mercado (inclusive para clientes residenciais), e cuja votação está prevista para outubro.
Pesquisador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Brandão diz que a abertura do mercado gerou uma espécie de corrida do ouro. “Houve redução de 50% da tarifa de fio. Isso é histórico, não é de agora. Só que o consumidor cativo paga essa conta do consumidor livre. Mas esse cenário vai mudar, porque todos estão disputando consumidores que querem migrar. É melhor? Os europeus estão felizes com o que eles têm. Dá para fazer, mas tem que ser muito bem feito. É preciso se criar uma infraestrutura melhor”, opina.
A experiência europeia dá uma dimensão sobre o tema. Em Portugal, que possui mercado livre e cativo há mais de 15 anos para todos os clientes, a abertura também foi gradativa e começou pela indústria. Vitor Santos, catedrático do Instituto de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa e ex-diretor geral na Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (Erse) por 12 anos, conta que o distribuidor tinha duas atividades: a gestão de fios e a comercialização. Houve, no entanto, muita intervenção estatal para estabelecer regras para isso.
“Os consumidores residenciais foram transferidos para um conciliador regulado. De início, as tarifas eram fixadas, ou seja, todos compravam ao mesmo preço. Eles passaram a ser disputados e começaram a fazer contratos anuais com esses fornecedores de mercado”, relata. Embora tenha sido um processo muito rápido em relação à indústria, com os consumidores domésticos o processo de mudança foi mais demorado. “Os fornecedores fixaram tarifas mais baixas e começaram a fornecer serviços, como assistência técnica, seguros, cartões com descontos em supermercados. Houve uma série de estratégias comerciais, um portfólio de propostas para atraí-los.”
A Erse, no entanto, atua com regras muito precisas sobre o que deve ser feito. Há fiscalização constante e estímulos a denúncias, além de multas elevadas para quem descumprir o que é determinado. O site da entidade reguladora mantém ainda um simulador para comparar preços de energia e gás natural de fornecedores.