Em meio ao desafio que as mudanças climáticas representam para a produção global de alimentos, a vasta biodiversidade pode ser um trunfo para o Brasil. Os biomas têm potencial para contribuir para diversificar a alimentação da população, com produção em maior escala de plantas não convencionais, bem como fornecer variedades mais resistentes aos extremos climáticos a partir de cruzamentos com cultivares tradicionais.
Adaptar a agricultura brasileira a esse “novo normal” é uma das estratégias da Embrapa, que acumula uma centena de projetos em seu portfólio de mudanças climáticas, que vão de estudos do balanço de carbono de diferentes culturas ao potencial da bioeconomia e à produção de cultivares mais resistentes às variações ambientais.
A tarefa parece ser tão grandiosa hoje quanto a que empreendeu na década de 1970, tropicalizando commodities como a soja e permitindo que o país saltasse da posição de importador de alimentos para referência em produção.
“O desafio é olhar para nossa própria sociobiodiversidade e fortalecer uma agricultura multifuncional, que dialoga com a resiliência climática, a conservação dos biomas e a restauração dos solos”, diz Ana Euler, diretora-executiva de negócios da Embrapa. Ela participou, com outros 7 pesquisadores, de um estudo sobre o potencial da Amazônia, mapeando cadeias de produtos não madeireiros que já são importantes para a economia da região, mas que podem atender mercados maiores.
As cadeias do açaí, da castanha-do-pará, das amêndoas da palmeira babaçu e do cacau superaram R$ 10,5 bilhões em valor de produção em 2021. Embora representem uma fração de apenas 0,12% do PIB brasileiro daquele ano, essas atividades superaram com folga os R$ 2,9 bilhões derivados da extração de madeira em toras, indicando que a floresta já vale mais em pé que derrubada.
Estudos apontam que o fomento à bioeconomia pode melhorar a renda de 750 mil famílias, entre agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia brasileira.
A Embrapa deu início em 2023 à elaboração de um plano para fortalecer essa nova economia na região, desenvolvendo soluções tecnológicas voltadas às cadeias da sociobiodiversidade, com nove centros de pesquisa e mais de 300 pesquisadores na Amazônia Legal. Entre as tecnologias geradas estão novas cultivares de açaí, guaraná e cupuaçu, boas práticas de manejo e colheita do açaí nativo, sistemas de criação de tambaqui e manejo de abelhas para meliponicultura.
“A biodiversidade que não entra pela nossa boca não gera calorias, emprego e renda. Para melhorar o presente e o futuro da alimentação, precisamos ter políticas públicas que coloquem as Panc na merenda escolar e favoreçam seu consumo regular”, defende o biólogo Valdely Kinupp sobre as plantas alimentícias não convencionais.
Criador do termo “Panc” e coautor de um best-seller sobre o tema, com mais de 65 mil exemplares vendidos, Kinupp tem se dedicado, nas últimas duas décadas à pesquisa e popularização dessas espécies. Seu livro apresenta 351 tipos dessas plantas, mas a estimativa é que o número das que podem ser consumidas no Brasil chegue a 10 mil. Por serem nativas e crescerem “como mato”, podem ser facilmente cultivadas em hortas comunitárias, a baixo custo.
Embora seja considerado o país mais biodiverso do mundo, o Brasil consume apenas 0,3% do PIB em espécies nativas, segundo estimativa do climatologista Carlos Nobre. Açaí e mandioca são alguns dos poucos alimentos locais que chegam à mesa do brasileiro. Dentre as plantas que poderiam estar mais presentes no cardápio estão inhames, aratura, taioba, vinagreira, ora-pro-nobis, serralha, beldroega e castanhas como o licuri.
Algumas dessas espécies são comercializadas pela foodtech Horta da Terra, que criou um portfólio de ingredientes cultivados sob os princípios da agricultura regenerativa, em sistemas agroflorestais que restauram o solo, sem uso de pesticidas e adubos químicos, em um sítio em Santo Antônio do Tauá (PA). As plantas - incluindo jambu, ora-pro-nobis, açaí, chicória amazônica, vinagreira, cariru e taioba - são liofilizadas, o que aumenta sua vida útil, permite a comercialização em maior escala, mantendo as suas características nutricionais e medicinais.
No início, a empresa buscou vender cestas orgânicas, produzir hortaliças convencionais no bioma amazônico foi mais difícil do que se imaginava. “Tivemos muitas perdas por causa do clima, as chuvas fortes quebravam as folhas das hortaliças. As Panc, por serem nativas, são mais resistentes, mas foi preciso agregar valor para que fizesse sentido produzi-las, já que o mercado é incipiente”, diz o engenheiro Bruno Kato, que está à frente do negócio. Agora, a Horta da Terra mira a exportação dos produtos com “terroir” amazônico.