“Foi uma decisão de governo. Isso vale para qualquer governo, e neste também é assim: não necessariamente aquilo que sai da área política é aquilo que a área técnica [recomenda]”. Essa frase, proferida por Bernard Appy, revela a vida como ela diante das iniciativas tributárias concebidas pela equipe do ministro Fernando Haddad.
No caso específico, o secretário de reforma tributária do Ministério da Fazenda estava se referindo ao recuo do governo na regulamentação do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD). De competência estadual, o ITCMD carece de um conjunto de normas mínimas aplicáveis a todos os Estados da federação, e sua regulamentação foi um pleito trazido pelos secretários estaduais de Fazenda durante a negociação da reforma tributária.
Uma das demandas dos Estados foi estabelecimento, no âmbito da legislação complementar, de que é passível de tributação a transferência, em caso de falecimento do titular, dos valores aportados em planos de previdência privada como o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) e o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) para seus herdeiros.
Criados como veículos de estímulo à poupança de recursos para a aposentadoria, pois gozam de um regime favorecido de cobrança de imposto de renda, há muito o PGBL e o VGBL são vendidos como um instrumento de planejamento sucessório para o topo da pirâmide social brasileira, valendo-se de uma brecha tributária em parte criada pelos próprios Estados, em parte pelo Judiciário.
A não cobrança de ITCMD sobre PGBL e VGBL é uma das explicações para o Brasil figurar na lista dos países que menos tributam a herança, e uma das engrenagens para a máquina de concentração de renda que temos no país.
Corrigir essa distorção, portanto, é uma aspiração legítima do ponto de vista técnico e político, ainda mais para um governo que tem na questão social uma das bases de seu discurso.
Sentindo o baque da reação do mercado e da classe média-alta assim que uma primeira versão do projeto vazou pelas redes sociais no início da semana, Lula brecou a iniciativa antes mesmo de ela ser apresentada ao Congresso.
Aliás, não foi a primeira vez. Lula já havia se indisposto contra a tentativa do Ministério da Fazenda de equalizar o tratamento tributário entre o varejo nacional e os sites de compras internacionais, sobretudo chineses. Contrariando a plataforma desenvolvimentista do seu partido, que frequentemente se escora em subterfúgios como a política de conteúdo nacional para promover empresas baseadas no Brasil, o presidente recuou diante das críticas de consumidores contra a “taxação das blusinhas” nas redes sociais.
E para fechar a semana, a proposta do governo de restringir a compensação de créditos tributários de Pis/Cofins para reequilibrar as contas públicas depois da prorrogação da desoneração da folha de pagamento gerou uma forte gritaria do setor produtivo, mobilizando a classe política pela derrubada da MP nº 1.227.
Com uma base frágil no Congresso e enfrentando a resistência da sociedade a cada nova ideia para corrigir distorções de nosso sistema tributário, Haddad e sua equipe vêm sentindo na pele o quanto será difícil fazer seu prometido ajuste fiscal olhando apenas para o lado das receitas.