Questão de sobrevivência

Conferência da ONU sobre água vai buscar plano de ação para crise global da água, agravada pelas mudanças climáticas

Por Andrea Vialli — Para o Valor, de São Paulo


Com 2 bilhões de pessoas ainda sem pleno acesso a água potável e 27% da população mundial vivendo em áreas de alto risco de escassez, a crise global dos recursos hídricos é uma realidade palpável, agravada pelas mudanças climáticas. O cenário desafiador levou as Nações Unidas a organizar, pela primeira em 46 anos, uma conferência internacional dedicada ao tema, com o objetivo de avaliar a implementação da década da ONU para ação na água e saneamento (2018-2028).

O encontro começa hoje em Nova York e deve reunir 200 países para discutir um plano conjunto para enfrentar esse cenário, nos moldes das conferências globais sobre clima e biodiversidade. A expectativa é que do encontro, que termina no dia 24, saia a Agenda da Ação da Água, uma espécie de Acordo de Paris para o tema, com obrigações para todos os níveis, incluindo governos, instituições, empresas e comunidades locais

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O Brasil chega à conferência com uma delegação de quase 60 pessoas, entre representantes de cinco ministérios, membros do Parlamento, de governos estaduais e municipais, além de companhias de água e saneamento. Defenderá a segurança hídrica, bem como a necessidade de recursos e de cooperação internacional para dar respostas à crise climática. “Essa não será uma conferência com negociações em curso, tais como as cúpulas do clima, mas terá uma agenda propositiva. Vamos buscar apoio financeiro e transferência de tecnologia para que possamos avançar na adaptação às mudanças climáticas, ainda mais com o agravamento dos eventos climáticos extremos”, diz João Paulo Capobianco, secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

Dados do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) lançados na segunda-feira (20) corroboram a estreita relação entre o aumento da temperatura global, suas consequências para a disponibilidade da água e os impactos dos efeitos climáticos extremos. Segundo o relatório-síntese lançado pelo painel de cientistas do clima, a temperatura global já se elevou 1,1ºC acima dos níveis pré-Revolução Industrial, de modo que os efeitos sobre alguns ecossistemas já se tornam mais difíceis de reverter.

“Com cada novo incremento na temperatura global, a mudança climática aumenta a exposição a eventos extremos, como secas, e reduz a oferta global de água, o que traz impactos para a saúde da população e para a produção de alimentos”, diz Paulo Artaxo, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC. O documento alerta que evitar que o limite de 1,5º C seja ultrapassado depende de ação rápida e ordenada até o fim desta década.

O senso de urgência dos climatologistas converge para a Agenda 2030, que contempla os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um dos pontos de partida da conferência da ONU sobre água é a lenta implementação dessa agenda, em especial no cumprimento do ODS 6 que prevê, até 2030, a universalização do acesso à água potável e ao saneamento básico. Existam avanços - quando passaram a vigorar, em 2015, um terço da população mundial não tinha acesso a água potável; hoje, essa parcela é de 26%. Mas o processo precisa ser acelerado e os problemas também ganharam outra dimensão: a perda de ecossistemas que garantem a recarga hídrica, como florestas, continua em ritmo acelerado - o mundo perdeu 3,75 milhões de hectares de florestas primárias em 2021, segundo a plataforma Global Forest Watch (GFW).

O Brasil vive a contradição de ser o maior detentor de água doce do planeta e, ao mesmo tempo, ser um país vulnerável a extremos climáticos, de escassez a inundações. Além disso, a água está distribuída de forma desigual no território. Mesmo assim, o Brasil foi um dos três países do mundo, ao lado de Singapura e Gana, que mais avançou na ODS 6. No acesso a água potável, por exemplo, o país está acima da média mundial, cobrindo 86% da população; os serviços de saneamento básico atendem 49% da população, e, embora esteja abaixo da média global (54%), houve avanços nos últimos anos, como mostram dados da ONU Água, apresentados em conferência on-line realizada na semana passada. A proporção de efluentes tratados saltou de 43% em 2009 para 59% em 2020, aumento de 16%, graças à construção de 900 estações de tratamento de efluentes (ETEs) no período. O progresso no tratamento de esgotos ajudou a aumentar em 8% a área de corpos hídricos com boa qualidade de água, que atingiu 71% em 2020.

“O novo marco legal do saneamento básico [Lei nº 14.026/2020] foi um dos fatores que contribuiu para esse resultado, pois têm proporcionado um aumento do investimento tanto público quanto privado”, diz Felipe Tavares, superintendente de estudos hídricos e socioeconômicos da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Em 2021, foram investidos R$ 17,3 bilhões em saneamento básico, número que se aproxima dos R$ 20 bilhões/ano em investimentos, que é a cifra necessária para que a universalização do serviço seja alcançada até 2033, meta da lei.

Representantes da sociedade civil enfatizam a centralidade da pauta. “Levamos ao governo brasileiro um pedido para que o país assuma um papel de protagonista na conferência e reconheça o acesso a água como um direito humano”, diz Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da SOS Mata Atlântica. A ONG defende que as agendas de restauração de ecossistemas, biodiversidade e clima estejam interligadas e encaminhou uma proposta ao governo com objetivos como restaurar 15 milhões de hectares de florestas, sendo 1 milhão em áreas de preservação permanente (APPs) da Mata Atlântica. “Essas metas são estratégicas para que o país alcance a segurança climática e hídrica, e também para avançarmos na agenda da mitigação e adaptação”, diz.

A temática da justiça climática no acesso aos recursos hídricos também deve dar a tônica da participação na conferência dos movimentos sociais ligados à juventude e populações vulneráveis. Segundo o IPCC, hoje quase metade da população mundial - entre 3,3 bilhões a 3,6 bilhões de pessoas - já vivem em condição de vulnerabilidade a eventos climáticos extremos e têm 15 vezes mais chances de perderem a vida em tragédias semelhantes à do litoral norte de São Paulo, em fevereiro. “A gestão dos recursos hídricos e do saneamento básico são importantes para serem tratados dentro da perspectiva das mudanças climáticas e sob o prisma da democratização do acesso às populações que ocupam os espaços vulnerabilizados, onde o Estado não chega”, diz Marcelo Rocha, ativista e fundador do Instituto Ayika.

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