Exercício criativo

É preciso desenhar cenários mais verdes, justos e inclusivos para que eles sejam possíveis, diz especialista

Por Dauro Veras — Para o Valor, de Florianópolis


Imaginar o futuro não é tarefa trivial, como mostram as previsões que, em retrospecto, passaram longe do alvo. É célebre o conselho que um banqueiro deu a Henry Ford em 1903: “O cavalo está aqui para ficar; o automóvel é apenas uma novidade”. Em 1995, o cientista Robert Metcalfe, um dos inventores do protocolo de conexão Ethernet, vaticinou que a internet iria sofrer um “colapso catastrófico” no ano seguinte. Ele prometeu engolir suas palavras se estivesse errado. Dois anos depois, triturou uma cópia impressa de seu artigo em um liquidificador e bebeu o líquido diante da plateia de uma conferência internacional sobre a web.

Mesmo com todos os riscos, o exercício de antever o que ainda não aconteceu alimenta a criatividade e pode indicar caminhos valiosos. Em 1905, a revista americana “Popular Mechanics” previu que um médico do século XXI poderia examinar o paciente em outra cidade com um “aperto de mão elétrico”. Foi um vislumbre da telemedicina.

Leia aqui a íntegra do caderno especial Tendências do Futuro

O helicóptero de uso pessoal que os futuristas de 1951 imaginavam para o ano 2000 ainda é cena de ficção, mas já existe um protótipo em testes de um táxi aéreo que decola e pousa na vertical. “Se alguém lhe disser que pode prever o futuro, desconfie”, adverte a futurista e especialista em inovação Marcela Sabino. “É impossível, mas existem diversas ferramentas para usar dados do passado e fazer a prospecção de possíveis cenários.”

Sabino atua como consultora de organizações internacionais e coordenou o laboratório de atividades do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, onde pesquisou impactos de tecnologias exponenciais - as inovações que crescem em ritmo acelerado, como inteligência artificial, fabricação digital, robótica, big data e internet das coisas.

Um dos estudos do Museu do Amanhã imaginou o mundo daqui a cinco décadas. O cenário projeta grandes mudanças nas relações das pessoas com o trabalho, como a aceleração do nomadismo digital e a redução do tempo laboral em favor do tempo criativo. Também antevê a disseminação do uso de biopolímeros e a leitura de ondas cerebrais. A equipe criou um “dispositivo para captar sonhos”, protótipo conceitual dessa tecnologia.

“Precisamos de cientistas e artistas criativos desenhando futuros melhores, mais verdes, justos e inclusivos”, defende a pesquisadora, que evita trabalhar com distopias em seus projetos. “Se não pudermos imaginar um futuro assim, nunca vamos chegar lá.” Ela ressalta que o esforço coletivo para moldar os novos tempos traz uma questão relevante para debate: “Qual será o lugar do ser humano em um mundo onde a inteligência artificial irá ocupar cada vez mais espaço?”

Um estudo finalizado em junho pela KPMG International em colaboração com a Universidade de Leeds, do Reino Unido, imaginou como será o mundo em duas décadas. Os cenários de “Shaping 2040” (Moldando 2040) se baseiam nas tendências emergentes em quatro grandes áreas: sociedade, tecnologia, economia global e ambiente regulatório.

Para os especialistas, o capitalismo como conhecemos poderá estar irreconhecível, impactado por fatores como IA, automação e responsabilidade ambiental. Um viajante no tempo que desembarque em 2040 vai encontrar grandes avanços na neurotecnologia e em produtos cibernéticos, que acentuam a interação entre corpos humanos e dispositivos eletrônicos.

Várias dessas novas tecnologias, voltadas para o cérebro, incluem dispositivos vestíveis e soluções invasivas que requerem cirurgia. Nesse futuro não tão distante, escolas e universidades atualizam seus currículos para se adaptar a dispositivos neurais que aumentam a memória e as habilidades de pesquisa.

O relacionamento entre patrões e empregados, e entre trabalhadores e trabalho, passa por mudanças radicais. Com o surgimento de ecossistemas produtivos mais fluidos, muitos profissionais dão preferência a prestar serviços para as organizações que refletem seus valores. Na saúde, a evolução de terapias genéticas e o surgimento de novas vacinas com tecnologia de RNA mensageiro (mRNA) levam à cura de diversas doenças e praticamente erradicam o vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Em 2040, grandes investimentos na descarbonização da economia avançam por meio de tecnologias verdes e com o uso de energia renovável, impulsionados pela pressão social por melhores práticas ESG (ambientais, sociais e de governança). Mesmo com alianças globais e compromissos coletivos para reduzir o aquecimento global, o planeta ainda está perigosamente perto de atingir mais 2° C de temperatura. A descarbonização em setores como aviação e siderurgia se torna fundamental para zerar as emissões até 2050.

No mundo imaginado pelos futuristas, o conceito de cidadania digital em nações virtuais ou cibercomunidades ganha poder, influência e capital comparáveis ao existente em Estados-nação. Sensores estão integrados em todos os aspectos da vida humana, dando feedback contínuo aos usuários.

A expansão do metaverso leva à proliferação de “personas digitais” para uso em ocasiões diversas. “Cenários que carregam curvas tecnológicas de alto investimento tendem a serem menos representativos em países como o Brasil, que não possuem infraestrutura instalada neste momento em áreas como neurotecnologia ou engenharia genética”, comenta Thammy Marcato, sócia-diretora de inovação e transformação da KPMG no Brasil e cofundadora da KPMG & Distrito Leap. “Entretanto, a estabilização de variáveis como a priorização do estilo de vida, a interconectividade e a relevância de padrões ESG em processos decisórios aponta para oportunidades de novos negócios e posições relevantes no âmbito global”.

No estudo Fjord Trends 2022, realizado pela Accenture, o metaverso é visto como uma nova fronteira que deve abrir inúmeras oportunidades em áreas como educação, entretenimento e compartilhamento de experiências. Esta é uma das cinco grandes tendências identificadas para os próximos anos. A consultoria também aponta a reavaliação do propósito do trabalho como uma transformação social que pode trazer profundas implicações para as organizações.

“O discurso do trabalho em primeiro lugar começa a ser questionado em determinados contextos, como no segmento de tecnologia, onde é comum encontrar profissionais que trabalham alguns meses em uma cidade e se mudam para a próxima”, observa o diretor de design da Accenture Song, Ivan Lucchini. “Vai ser preciso evitar que o trabalho híbrido seja fonte de exploração da mão de obra”, ressalva. Para ele, um dos maiores desafios para que as empresas se mantenham relevantes nos próximos anos será a retenção de talentos.

A terceira tendência identificada pela Accenture é o fim da lógica da abundância. Escassez de produtos e fatores de sustentabilidade devem impulsionar formas mais equilibradas de consumo. A quarta é o crescimento da demanda dos consumidores por respostas rápidas e verdadeiras às suas dúvidas. Definir como responder aos clientes será um grande desafio de comunicação e design. A quinta tendência é a incorporação dos cuidados com a saúde nas práticas cotidianas das organizações. Quem viver verá.

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