Alice, Sofia, Ágata, Monica e Elis são casos de sucesso - e não só robôs - do setor público quando analisadas estratégias e ferramentas de inteligência artificial (IA). O Brasil, contudo, ainda usa a tecnologia de forma incipiente na administração federal e outras esferas públicas, sem uma estratégia clara e unificada de governança.
- Leia também:
- Polêmico, reconhecimento facial cresce na segurança pública
- Futuro previsto em 'Minority Report' para 2054 já chegou
- Inteligência artificial tenta reproduzir lógica do cérebro humano e ainda causa confusão
- Brasil ainda discute marco legal da inteligência artificial
Além do desafio da capacitação de servidores, há outros obstáculos profundos que impedem a disseminação da IA nos governos, como organização e incompatibilidade de bancos de dados, garantia plena de direitos individuais e uma regulação específica e consistente que assegure uso ético, transparente e com controle social.
Somente 3,4% dos órgãos públicos federais estão no chamado nível 4 do uso de inteligência artificial em projetos, o que significa utilização de forma estável e madura em parte da burocracia do Estado, enquanto 38% têm nível zero de maturidade em IA: nem sequer planejam seu uso. Os dados foram coletados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em 2021, a partir da aplicação de questionários em 260 órgãos públicos federais.
O relatório tinha como objetivo fazer uma radiografia do uso de IA no setor público. Por ser um órgão de controle, o TCU precisa mapear essas ferramentas para depois desenvolver estratégias para que políticas públicas possam ser auditadas e checadas. Uma das conclusões alarmantes é que mesmo nos órgãos em que o nível de IA está mais avançado, há falhas visíveis entre o diagnóstico de problemas e as soluções aplicadas.
Em 2021 o governo federal lançou a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (Ebia), sob a coordenação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). A iniciativa é uma espécie de diagnóstico do uso da inteligência artificial no setor público, aponta desafios e possibilidades. No entanto, segundo recomendações da assessoria técnica do TCU ao ministério, a Ebia é mais uma compilação de conceitos e princípios do que uma estratégia nacional clara.
Eliana Emediato, coordenadora digital do MCTI, explica que o objetivo da Ebia é “promover e estimular pesquisas de IA e a adoção de estratégias de IA no setor publico e privado”, garantindo a aplicabilidade com princípios éticos. Ela aponta três principais desafios para o avanço da inteligência artificial no setor público: capacitação, segurança cibernética e regulação.
O Brasil, segundo Diogo Costa, presidente da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), tem potencial para utilizar a IA de forma distinta de China, Europa e Estados Unidos, países com padrões avançados no uso da tecnologia e que oscilam entre o pessimismo (China) e o otimismo (EUA), com variados graus de determinação. Para ele, o Brasil pode “misturar o otimismo com um caso concreto e determinação”. Ele explica que a intenção é que o “governo seja fomentador de usos muito claros da inteligência artificial em benefício da sociedade.”
A Enap é um dos canais de fomento do uso de IA no setor público, sobretudo promovendo a capacitação de servidores. A escola fez uma chamada pública com 12 desafios de IA, para startups apresentarem soluções para problemas do setor público na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Serão investidos R$ 36 milhões na primeira rodada, e R$ 80 milhões no total.
O governo quer usar IA para, por exemplo, classificar reclamações de consumidores na ANS, criar um método padrão de análise de processos que pedem ressarcimento do SUS, e usar técnicas de machine learning para investigar denúncias de operações aeroagrícolas.
O Brasil não pode ficar a reboque de soluções de IA adotadas em outros países, sobretudo pelas consequências no mundo do trabalho, diz Costa, citando projeções da Enap: “Até 2030, um de cada quatro servidores que vão se aposentar podem ter a sua função automatizada. Um de cada cinco que não vão se aposentar também”.
Uma minoria de órgãos públicos adota soluções de rotina de inteligência artificial, segundo Juliana Sakai, diretora de operações da Transparência Brasil. Junto com a Northwestern University, a Ceweb, a CGU e o MCTI, a Transparência mapeou 44 sistemas de IA no setor público. De 319 questionários enviados, só 200 responderam.
“Existem fases muito diferentes de uso da IA no setor público. É um universo em que seu uso não está disseminado, e tem alguns órgãos com uso mais forte, como o TCU”, explica Sakai. Os órgãos de controle têm mais maturidade para o uso de IA, e os robôs, destaca a diretora, são uma inovação muito positiva em rastreamentos, como compras públicas e processos judiciais.
A entidade, no projeto “Transparência Algorítmica”, detectou que em 47% dos casos em que o poder público está usando IA, os órgãos não desenvolveram métricas para avaliar a eficácia das ferramentas, o que é preocupante. “Falta essa avaliação de saber o que ela significa e o que ela oferece. Por outro lado, 64% [das ferramentas de IA] consideraram a revisão humana na hora em que o algoritmo foi feito. Nenhuma das ferramentas é autônoma”, pontua Sakai.