Na terça-feira, 26 de julho, o Ministério de Minas e Energia lançou a consulta pública nº 131/2022, para ampliar a abertura do mercado de energia elétrica no Brasil. A proposta viabiliza que todos os consumidores atendidos em alta tensão possam optar pela compra de energia elétrica de qualquer supridor a partir de 1º janeiro de 2024. Ela poderá ser o ponto de partida da maior ampliação do mercado livre desde sua criação em 1995 - aproximadamente 106 mil consumidores adicionais teriam a alternativa de aderir ao ambiente de livre comercialização. Hoje o Brasil possui cerca de 10 mil consumidores livres. Ou seja, com a abertura do mercado livre para toda a alta tensão (contas superiores a R$ 20 mil), ele poderá ser ampliado em dez vezes em menos de dois anos.
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“A publicação da portaria foi uma conquista para pouco mais de 100 mil consumidores adicionais, que vão ganhar o direito de escolher o fornecedor de energia elétrica. Abrir o mercado para toda a alta tensão é um primeiro passo para a verdadeira reforma estrutural que o setor de energia precisa”, diz Rodrigo Ferreira, presidente da Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia Elétrica (Abraceel). “Esse grupo da alta tensão já trabalha com medidores eletrônicos, paga demanda diferenciada e tem maior facilidade para migrar”, diz Rogerio Jorge, vice-presidente comercial da AES Brasil.
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Em paralelo, no Congresso tramita o Projeto de Lei 414 que cria regras para que residências e pequenas indústrias na baixa tensão possam escolher seu fornecedor de energia a partir de 42 meses de sua aprovação pelos parlamentares e sanção pelo governo. Os dois movimentos apontam que a abertura total do setor está para ocorrer, a grande dúvida é quando ela será deslanchada e como será a transição do modelo atual para o 100% livre.
“O mercado livre é o maior impulsionador de projetos”, diz o presidente da PSR, Luiz Barroso. Em geração, estão previstos investimentos superiores a R$ 180 bilhões entre 2022 e 2026 para a instalação de 45 GW de capacidade, sendo que 76% desses projetos são voltados ao mercado livre. O Nordeste é um destaque, pois há usinas com capacidade de 25,3 GW em construção na região que vão entrar em operação até 2026 - quase 100% em projetos eólicos e solares e 80% destinados ao mercado livre de energia, onde consumidores industriais e comerciais querem atrelar estratégias corporativas ao uso de energia renovável.
Por quê? A alta das tarifas e a pandemia reforçaram a pressão para reduzir despesas. A conta de luz é um dos três principais custos operacionais da indústria. Além de poder economizar, no mercado livre há maior previsibilidade de gastos, já que as empresas ficam livres das bandeiras tarifárias. Ano passado, na crise hídrica, foi acionada por alguns meses a bandeira de escassez hídrica, o que representou em alguns momentos alta inesperada de 10% na conta de luz. Há um outro ingrediente, o ambiental. As empresas no mercado livre podem comprar apenas energia renovável e atestar essa escolha com a aquisição de certificados.
Neste ano, a Copel passou a atuar na comercialização de certificados de energia renovável, ampliando o portfólio de produtos ofertados a seus clientes. A Vibra Energia (ex-BR Distribuidora) adquiriu o controle da Comerc para aumentar a oferta de soluções além dos combustíveis e tem na descarbonização de seus cerca de 20 mil clientes corporativos um dos pilares da estratégia de negócios. “O futuro da energia é ser livre e renovável”, diz Élbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica).
Operadora de telecom, a Claro tem diversificado sua matriz buscando reforçar a presença de fontes limpas. Até julho de 2023, a expectativa é ter 80% do consumo abastecido por energia renovável, sendo 65% de fonte solar, 21% de biogás, 8% de fontes hídricas e 6% de cogeração. Investimentos em geração distribuída solar são o carro-chefe. A participação em geração faz com que a empresa avalie gerar certificados de energia renovável e comercializá-los ou estudar se esses créditos podem ser usados em outras filiais do grupo mexicano. “O Brasil tem uma matriz muito limpa e há muitas opções sobre a mesa. Nossa matriz no México está consolidando os dados das operações no mundo e iremos ver o que podemos fazer”, diz o diretor de infraestrutura da Claro, Hamilton Silva.
Em julho, a Arcos Dorados, franquia responsável pela operação da rede de fast food McDonald’s na América Latina e Caribe, firmou acordo com a EDP pelo qual foram inauguradas três usinas solares - uma em Cotia (SP) e duas em Rio Paranaíba (MG) -- para atender exclusivamente a demanda de energia de 28 restaurantes da rede e de sete quiosques de sobremesa, em um contrato com duração de 12 anos.
Mesmo sem legislação que abra totalmente o mercado (o PL 414 está em discussão para a abertura chegar às residências), já se vê uma abertura gradual e ainda limitada ocorrendo via geração distribuída solar, que tem ganho espaço com a adesão de pessoas físicas e empresas. Hoje há mais de um milhão de consumidores nesse nicho, de grandes empresas a pessoas físicas. Instalar um painel fotovoltaico em um condomínio, uma casa ou empresa permite liberdade e pode reduzir a conta de energia.
“O projeto de lei abriria em grande escala o mercado, mas a geração distribuída solar tem aberto para um público que começa a ganhar espaço”, afirma Ewerton Henriques, diretor de infraestrutura do banco Fator. Na média, a geração distribuída solar estaria com um perfil de consumidor com tíquete acima de R$ 600 de conta de luz mensal e com empresas que gastam mais de R$ 5 mil por mês.
O PL 414 não será uma panaceia e nem significará que a abertura representará economia para todos os brasileiros que migrarem para o mercado livre, aponta Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “Pela versão que li do projeto, todo o risco do pequeno consumidor de migração fica com ele, ele assume grandes riscos, paga muitas coisas, o que não ocorre no mercado dos grandes consumidores. Então me parece que foi criado um mercado de primeira e um de segunda categoria. Um com pulseirinha, outro sem. Tenho muitas dúvidas de que os benefícios superem os custos. Então é um projeto de lei que poderá nascer com a necessidade de outros”, analisa.
Desde 2012, quando sua primeira regulação foi aprovada, até esse ano, quando a Lei 14.300 criou seu marco regulatório, o país já instalou 10 GW de capacidade em projetos com mais de um milhão de consumidores que aderiram à nova tecnologia. Segundo o Plano Decenal 2031, da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o segmento poderá chegar a 37 GW em 2031, cerca de 7% da carga do país.
Os números podem ser conservadores, pois variáveis que vão definir essa velocidade deverão ser divulgadas pelo governo federal em breve. “Mas o futuro é muito promissor”, diz Barbara Rubim, vice-presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira da Indústria Solar (Absolar). Ela aponta que bancos como o Inter já começam a oferecer a geração distribuída para seus correntistas, movimento que deve se intensificar com mais instituições analisando essa possibilidade. Assinatura do serviço também começa a ser oferecida.
O avanço da geração distribuída solar e a ampliação do mercado livre têm deixado as distribuidoras de energia preocupadas. Se a instalação de painéis fotovoltaicos dá poder ao consumidor, ela retira dinheiro das distribuidoras, enquanto não há regulação ainda sobre a separação fio e energia (o PL 414 trata disso também).
A abertura total depende do equacionamento de um ponto. O atual modelo, estabelecido em 2004, fixa que os geradores ofertem contratos de longo prazo, de 25 a 35 anos, o que também contribui para financiar os projetos. São os chamados contratos legados. Alguns vão até 2046. Ampliar esse segmento implica resolver os contratos legados e o papel das distribuidoras. “A transição precisa ser olhada com cuidado, assim como a estrutura tarifária e os encargos que estão pesando cada vez mais no consumidor cativo”, diz Marcos Madureira, presidente da Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee).
“Não temos ainda um desenho de como será a abertura total de mercado e isso ocorre com um avanço muito forte da geração distribuída solar, que cria um efeito perverso para quem está no mercado regulado e subsidia essa fonte e tem um efeito também sobre a distribuidora, porque acaba capturando receita do mercado cativo”, analisa Joisa Dutra, diretora da FGV-Ceri.